Chicos 67 20.01.2022
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Nº 67
20 de janeiro de 2022
Literatura e ideias em
Cataguases – MG
Um dedo de prosa
Esta é a nossa edição 67
Chicos é uma publicação que circula apenas pelos meios
digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te
enviar nossas edições ou visite-nos nos links listados no
canto inferior desta página.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,
uma diversidade temática.
Neste número de início de verão, continuamos sofrendo
perdas com a Covid 19 e contando cadáveres de mortos
sem nome. Até quando?
2022 traz o centenário da Semana de 22, com seus reflexos
em Cataguases.
Finalmente a poesia de Maria do Carmo Ferreira vai ser
publicada em livros. Aqui, nas edições 56 e 66, vocês
poderão encontrar o pouco do que circula da poesia dela.
Desejamos uma boa leitura para todos!
E até o início do outono.
Os Chicos
Capa: Foto - Vicente Costa
Arte Rodrigo Franzão Abadiânia - Goiás
Técnica mista
Editores:
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores:
Gabriel Franco
Vicente Costa
José Vecchi de Carvalho
Esta edição é dedicada a Aquiles Branco
13.08.1943 — 24.11.2021
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
https://independent.academia.edu/ChicosCataletras
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras
01
Chicos
ÍNDICE
03 Poeta da primeira página - Aquiles Branco
1 3 Ode 1.11 Horácio
1 5 Confissão + 2 Bruna Martins
21 A noite - de preto Alexander Blok
23 M de medo + 5 Ieda Estergilda de Abreu
27 o vento corta a nesga da porta Inez Andrade Paes
28 A bússola e o mar Amosse Mucavale
3 1 Cristal Paul Celan
32 guerra e paz Flausina Márcia
34 Quatro aquarelas para blindar o tempo Jeová Santana
36 Urgência + 2 Ronaldo Cagiano
39 A flor de Deus Carlos San Diego
42 Versos de saudades tão impossíveis hoje Emerson Teixeira Cardoso
43 A árvore do esquecimento (continuação) Fernando Abritta
51 A taberna do sapateiro José Antonio Pereira
53 Vale das corujas Eltânia André
57 O guardador de segredos José Vecchi de Carvalho
60 A galinha sem cabeça Ozias Filho
62 Inocência Raquel Naveira
64 Um ourives da linguagem Ronaldo Cagiano
67 Poesia de muitas faces Paulo Lima
69 A escrita em modo combativo Sérgio Tavares
72 Academia de letra, para quê? Antônio Jaime Soares
74 Semana de Arte Moderna - 100 Anos - 1922-2022 Hugo Pontes
76 Eles atiraram no pianista José Antonio Pereira
78 Lendo os clássicos Luiz Ruffato
80 Clips
02
Poeta da primeira página: Aquiles Branco
Chicos
“As pessoas normais não têm o menor interesse.”
Aquiles Branco
Poucas horas antes, conversamos e rimos,
como sempre fazíamos, até porque Cataguases
tem muita gente ridícula, daí, a imagem
dele que guardei é a da alegria. Preocupava-me
ultimamente o seu andar muito lento, talvez por
conta do diabetes e da coluna. Matou-o o fuzil
limpo do ataque cardíaco, como escreveu João
Cabral sobre W. D. Auden, mesma arma que
assassinou pai, mãe e o primeiro irmão, lá em
casa. Quisera ter sorte igual, no devido tempo,
bem entendido, pois, como já escrevi por aí, citando
Woody Allen, “Eu não tenho medo de
morte, eu apenas não quero estar lá quando
acontecer”. Aquiles aprovaria.
Antonio Jaime Soares
Aquiles Branco Ribeiro nasceu no dia 13 de
agosto em Cataguases, filho de Joaquim Branco
Ribeiro e Ruymar Branco Ribeiro. Teve 2 irmãos:
Pedro e Joaquim. Uma avó abnegada
(Mariquinhas) e uma tia tanto quanto (Namur).
Estudou como os irmãos no Grupo Escolar Cel.
Vieira e depois no Colégio Cataguases, onde
lecionou Francês e Inglês, e formou-se também
em Contabilidade e Administração de Empresas.
Nos anos 60 foi professor no Colégio Carmo e
na Escola de Enfermagem onde fez grande sucesso
com os alunos, dando aulas de Francês,
Inglês e Português.
Por meio de concurso, foi admitido no BNH
(Banco Nacional de Habitação). Ali trabalhou
muitos anos no Rio de Janeiro, e depois se aposentou
na Caixa Econômica quando esta incorporou
o BNH.
Na volta para Cataguases, fundou um grupo de
Artesanato e criou muitas peças de barro que
eram dadas e vendidas a grande público, até no
exterior.
Criou a Associação dos Diabéticos de Cataguases
em funcionamento até hoje com grandes serviços
prestados à comunidade.
Trabalhou também como marchand de quadros
mantendo contato com artistas proeminentes do
país.
Exerceu o cargo de Vereador na Câmara Municipal
de Cataguases por uma legislatura.
Na literatura, marcou presença com o Grupo Totem
nos anos de 1960 e 70, na criação de bons
poemas especialmente os gráficos. Deixou um
livro de poemas de ótima qualidade: “Voo das
Cinco” e organizou o livro de sua mãe:
“Histórias da rua do Pomba” e “O admirável
mundo de Manuel das Neves”, grande cronista
da cidade.
Ficou muito conhecido na cidade pelo temperamento
extrovertido e às vezes irreverente, mas
também pelo seu caráter humanitário de ajuda
às pessoas que o procuravam.
Morreu no dia 24 de novembro de 2021 em sua
casa na av. Astolfo Dutra provavelmente de um
infarto fulminante.
Para mim, foi uma perda irreparável, pois nós
três éramos inseparáveis, mais do que amigos
mesmo. No geral, uma lástima sua morte neste
país tão carente de valores autênticos e mergulhado
em trevas tenebrosas de egoísmo, negacionismo
e desonestidade.
Joaquim Branco
03
Chicos
A PROVÍNCIA
*Aquiles Branco
H
Os olhos da província
são olhos de desconfiança.
Os olhos da província
são olhos de destemperança.
Os olhos da província
são olhos cheios de remelança.
Os olhos da primeira lixa
são olhos da província.
São cheios de calor e cheiro.
Os olhos são olhos
de uma província sempre.
A província incha
os olhos saltam
a província lincha
as dores aumentam
os olhos saltam
os desejos se ocultam
os anseios se perpetuam
a província vigia
os olhos saltam
a província não cochila
os olhos requebram
Os olhos da província são olhos de desconfiança:
absolutamente
plena e insatisfeita.
(1977)
04
05
Chicos
06
Chicos
07
Chicos
08
Chicos
09
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10
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11
Chicos
12
Chicos
Chicos
Ode 1.11 (Quinto Horácio Flaco)
Não pergunta, sabê-lo é mau, quando a mim, quando a ti,
os deuses vão dar fim, Leucônoe, nem, na Babilônia,
a loteria vá tentar. Em vez, seja o será.
Quer Júpiter nos dê invernos muitos, se este o último,
que mesmo agora em pedra-pomes quebra o Mar Tirreno,
seja sábia, aviva o vinho, e a este breve espaço,
poda teu longo anseio. Falo, e, veja, foge o instante.
Rapta o dia, pois no futuro eu pouco apostaria
[Tu ne quaesieris, scire nefas, quem mihi, quem tibi
finem di dederint, Leuconoe, nec Babylonios
temptaris numeros. ut melius, quidquid erit, pati.
seu pluris hiemes seu tribuit Iuppiter ultimam,
quae nunc oppositis debilitat pumicibus mare
Tyrrhenum: sapias, vina liques, et spatio brevi
spem longam reseces. dum loquimur, fugerit invida
aetas: carpe diem quam minimum credula postero.]
Tradução: Álvaro A. Antunes
13
Chicos
Sobre Horácio (65-8 a. C.)
Dados colhidos na Wikipédia
Seu pai, escravo liberto, com a função
de recolher o dinheiro público nos leilões,
juntou um capital que permitiu ao filho estudar
em Roma, discípulo de Orbílio Pupilo.
Estudos completados em Atenas, para onde
foi aos vinte anos. No ano de 44 a.C. eclodiu
a guerra civil que se seguiu ao assassinato
de Júlio César e Horácio tomou o partido
dos assassinos Bruto e Cássio, participando
da Batalha de Filipos. Prevendo a derrota,
fugiu de volta para Roma.
Já sem o pai e sem herança, que foi
confiscada, Horácio conseguiu trabalho como
escriturário e dedicou-se à literatura. Conheceu
então o poeta Virgílio, que o apresentou
a Mecenas, patrono das artes que,
nove meses depois, o convocou para integrar
o círculo de artistas protegidos, tornando-se
assim um dos poetas oficiais do estado
e ganhou uma vila, equivalente a uma
boa propriedade, para os padrões atuais.
Eclodiram, então, as lutas de Otaviano
contra Cleópatra e Marco Antônio (32-30
a.C.) e Horácio apoiou o primeiro, que venceu
a contenda. Tendo início o Império, e
Otaviano passando a chamar-se Augusto,
iniciou-se um período de paz que o poeta
louvou, agradando ao imperador que, então,
lhe ofereceu o cargo de secretário, sendo a
oferta recusada. Também recusou os pedidos
de Mecenas e Augusto para que cantasse
os feitos guerreiros, preferindo exaltar o
papel de pacificador do governante, dedicando-se
aos poemas curtos e com temas
variados.
Mesmo havendo jurado que não sobreviveria
a Mecenas, sua morte deu-se meses
após o falecimento do amigo, ao lado de
quem foi sepultado. Alguns temas caros ao
filosofo Epicuro destacam-se em sua obra,
como a importância de se aproveitar o presente
(carpe diem) pelo reconhecimento da
brevidade da vida e a busca pela tranquilidade
(fugere urbem).
14
Chicos
Confissão
*Bruna Martins
A poesia é insustentável.
Gasto muita água no banho
pensando, tentando, batendo o verso:
Quanto mais eu me esfrego,
mais te degrado,
ó insustentável poesia.
Por fim eu escorrego,
o ralo diante do rosto,
meu depósito secreto de poemas.
Cabelos, fungos, bactérias.
A água flui nessa sociedade,
monges poetas copiando copiando
meu corpo original.
Uma poesia que não sustenta os próprios seios:
dói na coluna o peso do sexo
que limpo e sujo e limpo e sujo
no fazer poeteiro.
15
Chicos
É insustentável
a culpa da poesia,
mas eu gosto.
16
Chicos
Bão mesmo é leite gordo
Sempre aberto o portão de casa,
anfitriã senhora à espera de alguém,
qualquer ôpa palma pó entrá!
Do balanço ela impera seu reino imóvel,
cátedra dos artríticos e artrósicos.
Ouvir: sua arma de guerra.
Somente o leiteiro adentra,
moto-boi sagaz.
Dois litros de leite sobre a mesa,
deixa-os, ensacados, estáticos.
A filha mais velha os ferve e transborda
uma espuma leitosa entre as chamas.
Eros agindo…
Chega a tarde,
o amarelo ocre no chão outro derrame.
Ajunta o castigo filial,
chora a criança desamparada,
o caos o sermão depois silêncio.
Carencia o falar.
17
Chicos
Logo mais, retorna a filha o leite à caneca
o leiteiro em sua nova bezerra que
toma
devagar
sua porção de vida.
18
Chicos
Às vítimas da civilização
Le corps est un parasite de l’âme
Jean Cocteau
Eu queria escrever sobre corpos em paixão,
a volúpia, o ardor, a flexão dos corpos.
Um mundo hilstiano com alguma dose de Deus.
Peço perdão, eu falhei.
Pois tudo o que havia de composto
agora é uma existência solo.
O outro está proibido,
pois se aproximar é muito perigoso.
Sabia que Cristina não viria.
Carne não como mais,
porque recordo que já foi corpo
e tenho nojo.
Estranho a mim mesma
lendo Augusto dos Anjos na cozinha.
“Acho que tenho saudade da peste”, falei a ninguém.
“A culpa fora mais democrática que nosso Estado”.
Talvez eu tenha nostalgia do caos
indomável, meu último resquício.
19
Chicos
Mas eu gemo diante da presença do Grande Metal na minha esquina
aguardando os objetos frios como porcos abatidos.
A conservação frigorífica
do ultraje.
Escrevo com um corpo envelopado
ao meu lado.
Brás Cubas sem cova sem face contamina
a inspiração.
Disseram que eu devia produzir.
É isto um poema?
* Bruna Martins
Nasceu em Itamarati de Minas (MG) e mora em São Paulo (SP). É poeta, editora e graduanda
em Letras Português e Francês pela Universidade de São Paulo. Colabora no Boletim
3×22 (1822 – 1922 – 2022), da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP. Sua produção
busca diálogos com outras linguagens, além de refletir sobre o dialeto e a vivência
mineiros, sob um corpo feminino, em confronto com a experiência nas grandes cidades.
20
Chicos
A noite — de preto
*Alexander Blok
O poeta agora não verseja.
O sol — em preto.
A neve — em branco.
O vento, o vento que vente!
O vento, derruba as pessoas na calçada!
O vento, o vento,
Em toda a terra vivente.
No vento, desviam, voam
Flocos brancos.
Sob os flocos — placas de gelo.
— É assustador, escorregadio:
O desavisado passante —
Pobre rapaz! — Tomba.
De prédio a prédio
Um cabo é estendido -
Nele uma faixa:
"Todo o poder à Assembleia Constituinte!"
21
Chicos
Uma avó enlutada, entra em pânico:
"O que significam estas palavras,
Por que fazer uma faixa tão longa,
Um pedaço de pano tão grande!
Faria disso, roupas para crianças pequenas!
Eles estão lá, em farrapos, descalços. »
Poema de Blok em uma parede em Leiden (Holanda)
Foto de Vysotsky
* Alexander Blok
Nasceu em São Petersburgo (Rússia) em 16.11.1880, faleceu em 07.08.1921) . Simbolista,
foi muitas vezes comparado ao grande poeta Aleksandr Puchkin. A denominada Era
de Prata da poesia russa tem sido referida em numerosas ocasiões como a "Era Blok".
Na década de 1910, Blok era já admirado por todos os seus colegas e a sua influência
nos poetas jovens era incontornável. Anna Akhmatova, Marina Tsvetaeva, Boris Pasternak
e Vladimir Nabokov escreveram importantes versos de tributo a Blok.
22
Chicos
M de medo
*Ieda Estergilda de Abreu
Está guardado, aguardando, o livro de K que prometi
sobre nossa travessia no deserto,
para quando nos encontrarmos novamente
e em termos, sobrevivido,
será seremos mais cuidadosos?
Cruzaremos a linha dos estereótipos?
Nos veremos livres na outra margem?
Medo, medo, que medo é esse?
Se por cima tem o manto de um azul que afronta
amplidão arredondada, sem pontas,
se já sabemos que a sombra e a dor passarão
ou não? Que medo é?
MeE Do.
23
Chicos
Hoje
é dia de sorrir, sofrer, resistir, como sempre foi com os dias
hoje é só mais um na coleção do tempo.
Passo a limpo o que não entendo,
o que não desce na garganta e fere o coração,
o que me completa e atordoa, a tudo libero.
Hoje é onde tudo acontece e transborda,
um acalanto para hoje.
Poder
Fala tu pelas nuvens
pelas formas em constante mutação
fala do eterno disponível, onde o possível é sempre.
A fala fura a bruma do peito
acaricia como um raio o olho da vida.
(inéditos)
Pandemonias
Olá, companheiro, companheira de chão, de ar, mesmo sol
mesmo céu, lua e nuvens, cá estamos pelos cantos do mundo.
!Ieda Estergilda de Abreu
24
Chicos
Poema em v
vivo
vivo
vivo
vivo
vivo
vivo
vivo
vivo
vivo
vivo
vivo
até que morro.
De: Mais Um Livro de Poemas, Fortaleza, 1970
África
Poema épico inacabado, saga sangrando
e tudo por causa da cor.
Quem inventou/ensinou assim
a diferença da cor dos homens?
Responde, África, lua de todas as horas
sol que nunca se esconde.
De A Véspera do Grito, S. Paulo, 2001
25
Chicos
Confesso que fui eu
Facho, fiapo, franja fama, fútil fácil
Fui,
enchi os espaços
cantei o hino da ilusão
comi um pedaço do pão do futuro
rolei em pedras escuras
vi minha face boiando no lago
de amarelo e negro circundei a terra
fui dona da noite e da aurora
esculpi minha face em pedra sabão.
Perguntei ao fundo do poço, ao lago
à lua coberta de nuvens, ao lobo, ao cão
à noite que não acabava
me responderam silêncio.
Contei até à última estrela meu caso
minha cruz, elas sumiram.
Esperei o dia e que trouxesse apenas luz.
De A Véspera do Grito, S. Paulo, 2001
* Ieda Estergilda de Abreu
Nasceu em Fortaleza (CE), mora em São Paulo (SP) desde 1975. Morou em Brasília,
onde fez jornalismo na UnB, andou por Havana, Madri, Paris, Toulouse, e internamente
segue visitando lugares. Autora de: Mais Um Livro de Poemas, Grãos-poemas de
lembrar a infância, A Véspera do Grito e O Jogo do ABC (para crianças), tem originais
inéditos de poesia e prosa. Participou de oficinas poéticas coordenadas pelos poetas
Eunice Arruda e Claudio Willer, organizou alguns livros para a coleção Aplauso, da
Imprensa Oficial do Estado
26
Chicos
O vento corta a nesga da porta
*Inez Andrade Paes
o vento corta a nesga da porta
e fala
fala com voz grossa
rosna zangado
o vento empurra a porta
que estala
e assobia
assobia e faz ranger as juntas
o triunfo do vento
a porta aberta em rajada seca
forte
O vento e a janela
©Inez Andrade Paes
e o vento continua
e a porta batuca como uma gelosia
solta
solta
e volta
em cada rajada como uma mola
o vento triunfante entra
o calor da casa
refresca
* Inez Andrade Paes
Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de O Mar que Toca em Ti
(Crônica de viagem - 2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011); Libreto
em três atos, constituindo a Cantoriana Marítima - Acto I Mar falante,
Acto II Transparente Luva de Água, Acto III Flores de Acanto em Marfileno
Lençol ; D Estrada Vermelha (Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia
2015) : À Margem de Todos os Rostos (2017). Coordena desde 2012 o Prêmio
Literário Glória de Sant’Anna.
27
Chicos
A bússola e o mar
*Amosse Mucavele
1
Se a suspensão dos Tubos metálicos
Que percorrem as águas do índico
Olham (não obstante) o murmúrio fresco
Sob os pilares móveis
Da árvore eterna
Uma coloração do tempo acrescenta
Nos blocos de concreto maciço
A Incessante hierarquia do infinito caminho
Intempestiva música das ondas impera
Nas asas monumentais que cintilam nas nuvens
De uma linguagem emudecida
A ponte não tem fim
Veste-se de grinaldas coloridas, o perfume da alegria
A flutuar nos degraus da memória insular
Cúmplices do eterno sonho de plantar
Triângulos no desejo húmido
28
Chicos
2
Guarda-se a embriaguez da distância
Nos 137 metros de altura
De uma pirâmide faminta
A devorar os barcos
Sob a catarse da língua morta
Ergue-se uma gaiola salpicada
De sorrisos no quintal da espera
Um monumento que sangra 680 metros de extensão
Porém, já não há deuses na ponte cais
Para ofuscarem as conchas em via de extinção
Arde o tempo nos 35 km de estrada
Diante das rochas liquidas onde o sol se levanta
Em maiúsculas, desabrocham as pétalas de água
Soma-se o afã da gente que dança
Ao ritmo geométrico dos faróis
Como um pescador que em silêncio rasga os remos
29
Chicos
3
Hóspede oculto num galho exposto ao mar
Compreende e traduz o desejo
Das PEDRAS insondáveis
No misterioso castelo
Que se agiganta como uma estátua na praça pública
Meus olhos são dois troços longos que fervem
Em gritos, as vestes coladas à bruma
Para suster os 9 quilómetros de pista sobre o mar
Anelado à solidão do céu
O que pensa o velho Bagamoyo
Em chuvisco sobre o sol sangrento da Katembe?
É já um altar erecto de esperança
Com o vazio das rotas do desvario
Descalço, a bússola descasca o mar
Soberano é o ofício de viajar
Até ao derradeiro destino
Quiçá um poema de amor
Galopando na passividade das ondas?
* Amosse Mucavele
Nasceu em Maputo, Moçambique, onde vive. Poeta e jornalista cultural, Com textos
publicados em diversos jornais do mundo lusófono, publicou os livros: A Arqueologia
da Palavra e a Anatomia da Língua – Antologia Poética, (2013), Geografia do Olhar:
Ensaio Fotográfico Sobre a Cidade (2016) Pedagogia da Ausência (2020.). Curador da
Feira do Livro de Maputo (org. pelo Conselho Municipal de Maputo) e da Área Internacional
da Feira do Livro de Quelimane ( org. pelo Conselho Autárquico de Quelimane),
Curador e coordenador com Abreu Paxe, Nuno Rau e Amanda Vital do Templo D’Escritas
-Festa Literária da Língua Portuguesa (2020) e curador do Mapas da Língua -
Encontro Literário da língua portuguesa (org. pela Fundação Fé e Cooperação-
Portugal)
30
Chicos
Cristal
*Paul Celan
Não busques nos meus lábios a tua boca,
nem diante do portão o forasteiro,
nem no olho a lágrima.
Sete noites mais alto muda o vermelho para vermelho,
sete corações mais fundo bate a mão à porta,
sete rosas mais tarde rumoreja a fonte.
Tradução de João Barrento e Yvette Centeno
* Paul Celan
Nasceu em Cernăuţi Romênia em 23.11.1920 e suicidou-se
em Paris, 20.04.1970. Paul Celan é o pseudônimo de Paul Pessakh Antschel
(em alemão). Foi um poeta, tradutor e ensaísta romeno radicado
na França, traduziu mais de quarenta poetas, de diferentes línguas, inclusive
o português Fernando Pessoa. Sobrevivente do Holocausto, Celan é considerado
um dos mais importantes poetas modernos de língua alemã.
31
Chicos
guerra e paz
*Flausina Márcia
Se eu não me esquecer
Te amo
Se eu não me lembrar
Te amo
Se o mundo acabar
Te amo
Se deus quiser, ou não
Te amo
Se dúvida houver
Te amo
Se for por certeza
Te amo
Se não sei de nada
Te amo
Se meu saber é tudo
Te amo
Se choro hoje e depois
Te amo
32
Chicos
Se meu riso é farto
Te amo
Se a raiva é tanta
Te amo
Dadas as condições
Amor em Pedaços
Dezembrol/2021
* Flausina Márcia
Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo Horizonte (MG) onde trabalhou
na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre outros, Vagalume
(2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014).
33
Chicos
Quatro aquarelas para blindar o tempo
*Jeová Santana
1. Irreversível
Quando a vida diz a que veio:
a mãe torna-se um pesado bebê
a boiar numa banheira
de sonhos e sombras.
2. Triste Pã
O sol verde
no pé de limão japonês.
Mas não há mais samba no quintal.
Dentro de casa
só desfila o cheiro branco da enfermeira.
34
Chicos
3. Dona Luz
Aracaju toda assanhada de sol.
O poeta na casa da memória.
Da varanda ao ínfimo quintal
tudo é um prisma daquela
que o trouxe para enfrentar
a ruidosa máquina do mundo.
Voz gorda, cabelos algodão:
um expressionismo-consolo.
Na meada dos lembramentos
da casa ferida de tempo
só resta ao poeta cultivar
um pé de adeusinhos
para ser visto da esquina.
4. De castigo
Como era possível:
a mesma mão da palmatória
do cipó de goiabeira
do murro nos beiços
fazer doces tão sedutores
confinados na proibida cristaleira?
Hoje faço poemas
entre o intervalo
das frituras.
* Jeová Santana
Nasceu em Maruim, Sergipe, em 1961. É graduado em Letras pela Universidade
Federal de Sergipe, mestre em Teoria Literária pela Universidade Estadual de
Campinas, doutor em Educação: História, Política, Sociedade: Educação e Ciências
Sociais, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Publicou Dentro da
.
casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de ranhuras (2006) e Poemas passageiros
(2011))
35
Chicos
Urgência
*Ronaldo Cagiano
Embrião de dores
Habitante da erosão dos sonhos
Passageiro de vertigens
com devoção a Thanatos,
nessa existência entre estresses,
vou tentando a fuga para o anonimato
em meio à tirania do inevitável
à perpetuidade do
efêmero
Viagem de sobressaltos
36
Chicos
Sísifo
Tento escrever um poema
entre o ontem e o abismo
que me separam do futuro
O presente
essa montanha íngreme
com sua escaldante jornada,
onde em vão rolo meus versos
e corro atrás das palavras
Subo e desço
e não (me) encontro
(no) rumor dos dias
Fico com o suor
e as lágrimas
e um fígado
de Prometeu
37
Chicos
Liturgia
O sino provecto e exausto
badala inútil
Essa solidão soletrada
na boca do destino
trazendo secreções de engano
Quando a noite espalha insônias,
o meu rosto coreografa horrores
Tu és tão certa, ó, Indesviável.
* Ronaldo Cagiano
Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre
outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária
2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012),
Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016) e Todos os desertos:
e depois? (2021).
38
Chicos
A flor de Deus
*Carlos San Diego
Não me venhas com isto
de que és minha costela.
Não.
És a pimenta do cérebro.
És a flor
e a forma da flor.
O talo do lírio que cheira a canela.
És o códice que dá origem ao mundo.
Quero dizer útero.
Misto de carícia e recato
cinzas e raças.
Beleza e consciência de espírito virtuoso.
Não me venhas com isto
de que és minha costela.
Eu sou lenho
mas nasci de tuas águas.
Eu sou osso
mas nasci do mel que derramas no barro.
39
Chicos
Eu sou árvore
mas nasci de teu fulgor.
Tu ramificas novamente.
Voltas a espiga
e falas ao calor do canavial.
Eu só consigo amamentar do verbo.
Do verbo que expulsa o rancor.
Da cicatriz do verbo é que amamento.
Comovo-me quando ris sobre o espinho.
Celebro cada vez que te amo mais que te amo.
Não me venhas dizer que sou tua costela.
És o jogo das nuvens.
Ninho de sol.
Abelha que voa atrás do pólen do feitiço.
És mãe.
És a casa do amor.
E começas a ser espelho de novas fundações.
Mulher
sonzinho doce de campana de chocolate
Não me bastam estes braços para abraçar-te.
40
Chicos
Infinito dia.
Terna noite.
Fragrância que desperta com alguma oração na ribeira.
Diante de ti fico de pé.
Sob o teu céu canto em silêncio.
Só ouço a música que vibra em tuas pétalas
o incorruptível de tua língua
flor de Deus
mulher de minha sede.
Tradução de Anderson Braga Horta
* Carlos San Diego
Nasceu em San Diego de Cabrutica, Anzoátegui, Venezuela. Poeta, jornalista,
autor dos livros: Baldíos (2002) e Los mare mares (2005). Seus poemários inéditos
Alboroto de pájaros e Tonooro foram levados ao teatro pelos grupos
Teatro do Imaginário e Companhia de Teatro Noel Llovera. Sua poesía contém
muitos elementos da cosmogonia da comunidade karinha assentada na
Mesa de Guanipa. Colabora em meios digitais. Tem desenvolvido constante
promoção cultural na cidade de El Tigre, onde mora.
41
Chicos
Versos de saudades tão impossíveis hoje
*Emerson Teixeira Cardoso
O poeta pensou na sua cidadezinha mineira tão distante.
Cataguases estava tão longe que ele imaginou ouvir a Canção do Exílio
"Minha terra tem palmeiras, onde canta o sabiá..."
E ficou tão triste que na sua inconsolável solidão escreveu um poema
que começava assim:
"E no seu rosto onde sempre havia um sorriso, desta vez, uma lágrima
escorregou"
Sentiu se como um cavaleiro do medievo que saiu a combater pelo
amor de sua dama...
Se quisesse, ali caberia a citação do verso de um poema do Ribeiro
Couto, (“que na opinião de um crítico debochado "chovia tanto, que só
se poderia atravessa-lo de guarda chuva e galochas")
Todo feito na clave do desamor...
Mas aí, um sujeito grave detectou nele os sinais de um romântico irreversível,
doentio e antiquado, e avisou que não tolerava versos derramados,
que o poeta apedrejava seus ouvidos com uma profusão de adjetivos,
e mais ainda:
Com tantos e-mails, skipes e outros aplicativos,
Pra que botar tanta distância entre São Paulo e Minas?
* Emerson Teixeira Cardoso
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa
da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas
Hardy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967),
mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul
(1997).
42
Chicos
*Fernando Abritta
Talvez não entenda
a lenda silenciosa em mim
(Em mim, Luiz Ruffato)
10 – Uma rainha negra em São Luiz
Barco negreiro – tumbeiro de brasileiros descansa nas ondas agitadas da costa de São Luiz.
Cruzou o oceano Atlântico, suportou tempestades. Perdeu o rumo e se descobre na boca do
porto.
Dentro leva muitos escravizados. Levava, também, a rainha esposa do poderoso rei
Agonglô que morreu deixando dois sucessores: Adandozan, o regente, para reinar até quando
Guezo, o rei bebê filho de Nã Agotimé, estivesse pronto. Do alto de seu trono Adandozan determinou
e entregou aos brancos negreiros mãe de rei infante para que nunca ninguém mais a
visse e nem lembrasse da ordem dada por Guezo. Fez Nã Agotimé rodar tronco da árvore que
rouba memórias, a árvore do esquecimento. Fez dela escrava de brancos que a levaram para
que sumisse no outro lado das águas em terras desconhecidas.
Exu e orixás haviam decidido este porto como destino. O capitão, na ilusão de comando,
decide vender um lote de dez escravizados para cobrir despesas decorrentes da mudança da
rota.
O barco que os desembarcou está no porto de São Luiz. O lote de escravizados se aproxima
do mercado.
43
Chicos
À direita do palco, um senhor pardo com uma peruca branca de lorde inglês na mão e
chapéu de abas largas e penacho vermelho, estilo nobreza francesa, na cabeça, narra sua procura
de escravizados para trabalhar em seus novos empreendimentos. Senhor de muitas posses,
funcionário da coroa portuguesa, precisa de mão de obra para sua fábrica de farinha de
mandioca.
Do lado esquerdo do palco, Vodum procura terminar a história com um final épico e glorioso.
No centro, Exu, Iemanjá, Oyá, Xangô e Oxum traçam planos, enquanto à direita o senhor
pardo vestido como nobre português segue à procura de escravos para seus empreendimentos.
VODUM (solene) diz:
Em mim Exu se instala,
fala de caminhos que não trilhei.
Em mim Exu se assenta.
EXU resmunga ─ Nem pensar. Não baixo em qualquer um, nem de qualquer jeito.
VODUM continua:
Riso e choro, amor e ódio,
festa e funeral, paz e guerra,
em mim se instalam
riso e choro,
gemido e palavra,
em mim fala Exu.
EXU retruca ─ Falo nada. Ninguém fala por mim. Que tenho minha palavra e dela não me
afasto.
VODUM provoca:
Nã Agotimé escrava chegou ao porto,
no pescoço apertava corda de escravizada
e colar de contas de rainha brilhava,
os coaris brancos de reserva para gastos.
EXU, zombando ─ Isso, depois de padecer no aperto do navio tumbeiro dos traficantes de escravos?
E ainda sobrou coaris como dinheiro?
44
Chicos
VODUM insiste:
Nã Agotimé, esposa do rei Agonglô,
estufa peito nu apontando mamilos fortes
para colina dos senhores brancos.
Nã Agotimé escrava chega ao porto de São Luiz,
o porto tomado ao rei francês pelos portugueses.
Nos pulsos amarrados por corda brilha pulseira de contas.
Nã Agotimé, mãe de Guezo, herdeiro infante,
anca forte, negra vigorosa avante
encanta o senhor dos engenhos de açúcar e roças de cana.
Em mim, Exu se instala,
fala de caminhos que não trilhei,
em mim fala Exu.
EXU retruca ─ Falo nada. Inda mais fazendo uma negra sofrida e maltratada virar deusa de
orgulho e arrogância. Ninguém fala por mim. Que tenho minha palavra e dela não
me afasto.
IEMANJÁ (se fazendo de desinteressada) ─ Qual o problema? Já está na hora de acabar essa
história. Que mais precisa? A negra já está em terra, desfila por lá suas prendas e encantos.
Vodum descreveu muito bem. Que mais falta?
VODUM se explica ─ Como posso falar da chegada de Nã Agotimé se não for de forma gloriosa.
Essa mulher trazia em si toda a tradição de Daomé, a linhagem dos deuses e
dos antepassados. Trazia em si a história desses que atravessaram o Atlântico.
EXU ─ Trazia? Trazia sim. Trouxe. Mas essa que chega aí é uma derrotada. Seria gloriosa nas
margens do rio Niger enquanto foi predileta de um rei que já morreu. Seria forte se
seu filho estivesse no trono. Agora é nada. É ninguém. É escrava. Não é dona de sua
vontade, não pode dispor nem de seu corpo. E o que precisamos fazer é descobrir
um que cuide desse corpo escravizado.
SENHOR PARDO (um empreendedor) reclama ─ Minha plantação de mandioca está uma beleza.
Nem posso avaliar quantas cestas de mandioca terei para vender. Preciso de
braços para colheita e o transporte até o mercado, até o porto. E não encontro bons
escravos. Os que me chegam já estão alquebrados, dentes podres, barrigas grandes
de vermes. Valha-me, meu Senhor do Bonfim.
45
Chicos
OYÁ ─ Espere um momento. Você não está querendo matar no trabalho da roça minha queridinha,
a mãe do rei Guezo? Essa é uma ideia absurda. Quem vai para as fazendas
trabalhar no eito sob o chicote de um feitor não sobrevive nem dez anos. E não tem
tempo para nada mais do que fazer buraco no chão e tapar. Como ela vai cumprir as
obrigações com os orixás?
OXUM ─ Verdade. Não vai sobrar nenhuma energia nesse cadáver em pé para dançar ou tocar
o tambor.
EXU ─ Então, ela não pode ir para a roça? Ela é forte, tem anca larga...
SENHOR PARDO (Falando sozinho) ─ Eu circulo por esse mercado há semanas e não encontro,
nunca acho negros que sirvam a meus empreendimentos. Minha mandioca seca
nos armazéns, se perde na lavoura e não há mão de obra que a transforme em alguma
coisa de valor.
OXOSSI ─ Sei, Exu. Ela tem seios fartos. Sei. Mas isso tudo vai se acabar na lavoura em
muito pouco tempo. Lá não se come direito. É angu todo dia. Além do mais, o senhor
branco coloca todo mundo na frente das imagens dos santos dele para rezar. E
coloca o feitor manejando o chicote e vigiando quem dorme ou se distrai. Como você
pensa que ela vai poder fazer o egungum pra buscar a sabedoria dos eguns, os
antepassados?
EXU ─ Não havia percebido essa diferença entre o escravo na lavoura e o escravo na cidade.
Na fazenda a vida é muito mais vigiada. O trabalho começa antes do nascer do sol e
termina depois que escurece. A negrada se embrutece na labuta.
SENHOR PARDO (evolui seu planejamento) ─ Encontrasse uma boa cozinheira, uma quituteira,
eu mandava preparar uns tabuleiros e colocava umas negras a vender talhadas de
mandioca cozidas ou fritas em azeite de dendê pelas ruas do centro. Aposto que faria
um bom dinheiro.
EXU ─ Então? Uma boa ideia. Hora de me aplaudir. Sou ou não o melhor? A rainha dos tabuleiros.
Ou vocês tem alguma objeção?
IEMANJÁ ─ Ora, bonitinho, e como ela vai se lembrar do tesouro, se não tem memória? Se
ela sabe, mas não lembra? Ou eu ouvi errado?
EXU ─ Ora, ora nada. Eu coloquei os moleques no lote à venda junto com ela.
46
Chicos
IEMANJÁ ─ Mas esse aí só está pensando numa cozinheira. Ele tem dinheiro pra comprar o
lote todo?
OXOSSI ─ Ah, isso ele tem. Está planejando trazer uma noiva de Portugal, pra se casar. Ele
tem muitos contos de réis guardados em casa, escondidos nos buracos da parede do
quarto. E tem crédito por ser funcionário do rei.
OYÁ (olhando para Oxossi) ─ Quem é o civilizador aqui? Quem é o senhor que domina o ferro,
a indústria, a forja? Quem aqui domina o poder transformador do fogo? Está na
hora de uma ideia nova, de empreendedor. Uma ideia que demande uma equipe.
OXOSSI ─ Não venha me apertando, Oyá. Aqui ninguém tem forja. Aqui eles compram dos
ingleses todas as ferramentas de ferro, tudo o que precisam e for industrializado vem
de fora. Até queijo que se come aqui vem da França. Bem, o queijo daqueles poucos
que comem por aqui; a maioria não come, passa com angu e farinha.
OYÁ ─ E quem faz a farinha?
SENHOR PARDO ─ A procura por farinha de mandioca tem sido grande, muita gente se embrenhando
por esses matos em busca de terras pra cultivar cana. Muitos barcos com
porões cheios de tonéis de açúcar demandando farinha para alimentar a tripulação. E
minha mandioca se perdendo. De que adianta meu chicote, minha prensa, meu tacho,
se não há quem os faça produzir.
OXOSSI ─ Uma fábrica de farinha seria boa ideia.
OYÁ ─ Se ele já tem o capital, o dinheiro suficiente para pagar ao capitão do navio, o que
falta?
SENHOR PARDO ─ O trabalho de sua majestade não me dá muitas regalias nem grandes ganhos.
Mas me sobra algum pouco tempo para esses investimentos que me dão tanto
prazer. Depois, posso vender o produto com bom lucro aos amigos que me procuram
no Paço com alguma demanda para a coroa. Fácil será vender essa farinha.
Quem dirá não a um funcionário do rei?
OXOSSI ─ Falta coragem. Falta a ele ousadia de quem não tem nada a perder. Esse encardido
tem tudo que precisa para uma vida sem sustos.
47
Chicos
IEMANJÁ ─ E existe vida sem susto? Vida é surpresa, é desafio, é mergulho na crista da onda.
OYÁ ─ Sei não. Vida é calmaria também, é um cochilo agarrado na cacunda do amante. É
um prato de fufu quente, preparado com muito carinho e um inhame bem sequinho.
Vida não é só correria.
IEMANJÁ ─ Melhor pensar que vida é tempestade, depois calmaria, depois tempestade, depois
calmaria, até o fim do chi, a energia divina que cada coisa traz.
EXU ─ Bom, então é melhor atiçar a energia desse aí.
OXOSSI ─ Pra quem estava pensando em comprar um negro, no máximo dois, esse chi vai ter
que ser muito agitado.
EXU ─ Fácil, fácil. Só deixar ele ver o balanço das cadeiras da rainha. Ele vai explodir de
energia. Chi dele vai ferver quem nem um vulcão.
VODUM ─ Mas isso seria um desastre. Eguns não tolerariam nenhuma safadeza com a sua
sacerdotisa. Uma gonjaí da casa de Agonglô não pode se dar ao desfrute ou perde
seu chi e quebra a relação com os eguns.
OXUM ─ Verdade. Depois de usada ela servirá pra mais nada.
EXU (recita) ─ Donga, minha bunda bole?
Bole sim, sinhá.
E meu branco viu, Donga?
Viu e seguiu com os olhos.
Então, Donga, deixa ele sofrer, viu.
OXOSSI ─ E agora?
EXU (com cara de moleque) ─ E quem estava falando da anca da velha rainha? Falta de respeito
de vocês pensarem isso da gojaí. E vocês nem perceberam beleza das tetas da
negra fula que acompanha a rainha. Como não viram o porte dela mesmo debaixo
dessas correntes. Aliás, a corrente rodeando a cintura dela pode deixar um senhor
maluco de doido.
48
Chicos
SENHOR PARDO (audacioso) ─ Mas, que vejo? Que belo lote. Mãos e braços fortes, prontos
ao trabalho. Dentes fortes e brancos. Língua vermelha. Deixa eu apertar a barriga
dessa negra da cintura fina. E essas pernas com esses joelhos fortes?
OXOSSI ─ Esse encardido aí já esqueceu a noiva portuguesa, com toda certeza.
OYÁ ─ E para onde ele irá levá-los?
IEMANJÁ ─ Para mim, já está de bom tamanho. Melhor deixar esses mortais seguirem a vida,
que já sinto falta de ondas mais fortes.
SENHOR PARDO ─ Não tão fortes. Muito castigados pela viagem. Esses molecões precisam
de comida. Melhor levar logo esse lote para o casarão e colocar esses negros no trabalho.
Preciso recuperar o capital investido.
EXU ─ Isso responde à sua pergunta, Oyá? Eles não irão trabalhar na lavoura com feitor chicoteando
suas costas. Ficarão na cidade que agora cresce muito rápido com a chegada
de mais e mais gente. Aqui eles terão mais oportunidades de ganhos. E terão que
se livrar do chicote com toda mandinga que carregam. Eles saberão criar alternativas.
OYÁ ─ Um tabuleiro de quitutes na praça pode garantir um bom ganho. E essas mulheres sabem
muito bem cozinhar. Trazem da África toda a sabedoria de civilizações muito
antigas.
OXUM ─ Isso mesmo. Logo essas mulheres e esses homens vão aprender a se comunicar com
os da terra. A cidade é pequena, mas permite muita troca, muitos encontros, e esses
fulas aí trazem o comércio no sangue.
EXU ─ Falou comigo. E pode deixar que teremos muita vida aqui, muita coisa para mostrar,
fazer. Trocar mesmo sem entender muito bem onde estamos. Mesmo não sabendo
em qual encruzilhada estamos, eu e eles atracados.
SENHOR PARDO ─ Difícil será conviver com essas negras da cara riscada de cicatrizes. E esses
penteados? Mas vamos ao que temos. Importa agora tirar o prejuízo. Minha
mandioca não ficará perdida na terra. Uma fortuna paguei por essas peças! Uma loucura.
Minha noiva vai ter que esperar mais um bom tempo para o casamento se realizar.
Melhor ela ficar lá na terrinha, em Portugal, por enquanto.
49
Chicos
EXU ─ Deixe estar que chegaremos lá, cara-pálida.
SENHOR PARDO ─ Vamos lá, negrada. Que cheiro horrível têm esses animais. Em marcha,
que o trabalho os espera. Força nas canelas. Logo, logo, chegaremos ao estabelecimento,
onde poderão tomar banho, comer e descansar um pouco. Logo amanhã cedo
estaremos estalando o chicote para acordá-los ao trabalho. A mandioca já está à
espera.
Continua...
* Fernando Abritta
Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino, distrito de Cataguases (MG). Mora em
Juiz de Fora (MG) Publicou, entre outros, umÁrvore, O Caso da Menina Que
Perdeu a Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma Verde História, além
de um ebook, Relâmpago.
50
A taberna do sapateiro
Chicos
*José Antonio Pereira
─ Lá vem a Ilda!
De pé, no lado interno do balcão, junto à
porta que dá para a praça, Rui anuncia a chegada
da rainha do boteco. Zapatero, o dono da
bodega, sorri.
─ Fodeu tudo!
Histriônica, enquanto espera o sinal abrir,
já vai se anunciando.
─ Zapata, meu amor, frite mais coxinhas!
Sinal aberto, atravessa a rua e para na porta.
Ofegante, apoia o braço na parede, põe a
perna direita no degrau, a testa brilha revelando
o calor da tarde de verão.
─ Oi Rui, meu gênio do mal, quando é
que você vai me levar para o ar condicionado de
um motel para uma tórrida paixão. Você é cruel!
Acabe com a minha sede de prazer.
Ergue o pesado corpo, entra no boteco e
caminha com as mãos balançando o vestido para
se refrescar e para diante do Rui.
vai.
─ Vamos?
─ Quando sair o décimo terceiro a gente
─ Então, é agora, estamos em dezembro.
─ Não, o deste ano, já gastei todo. É o do
ano que vem.
Zapatero tira poeira da única mesa da casa,
metálica, um marrom que já foi vermelho, a
marca de cerveja estampada toda esfolada pelo
desgaste, se mete na conversa.
─ Ô Ilda, ele gastou o décimo terceiro todinho
com a Bete Balanço.
Ilda faz um muxoxo e beija a boca de Rui.
─ Nossa! Que beijo azedo. Cruz credo!
Está bebendo desde cedo, né? Caminha seu
corpanzil até a mesa, senta-se diante de um prato
cheio de coxinhas ainda quentes e um copo
enorme de coca. Depois de beber metade do
copo e comer mais uma coxinha:
─ Meu mulato faceiro, você me traindo
com a falsa loira da lojinha mequetrefe lá de
baixo. Não sei porque vocês a chamam pelo título
da música do Cazuza, não tem nada a ver o
cu com as calças.
Zapatero:
─ Uê, ela chama Bete. E o balanço é por
causa do rebolado. Quando ela desce a rua do
Comércio, tudo quanto é homem a acompanha
gulosamente com os olhos.
Ilda, zombeteira:
─ Tudo nela é falso. O cabelo é pintado, os
peitos e a bunda são de plástico.
Rui:
─ A inveja mata, viu, Ilda.
─ Eu? Nada aqui é artificial. Sou carnuda,
uns quilinhos a mais de gordura para ficar mais
fofa. E você, Rui, noutras épocas experimentou
e gostou.
Zapatero não perdoou.
─ Eu sempre desconfiei. Você, Rui, não
livra a cara de ninguém.
E Ilda, depois de uma escancarada gargalhada.
─ Gostou tanto que repetiu várias vezes.
Mais uma rodada de coxinhas quentinhas
e outro copão cheio de refrigerante. Enquanto
Ilda se deliciava gulosamente, o silêncio tomou
conta do ambiente.
O pai de Zapatero, anarquista que fugira da
Guerra Civil Espanhola, depois de uns tempos
no Rio de Janeiro, desembarcou na estação ferroviária
da cidade com a mulher grávida, poucas
malas e um grande caixote. Sem demora estabeleceu-se
nas imediações da estação, beirando a
linha do trem. O caixote de pinho-de-riga que
transportara todo o aparato virou prateleira e ali,
na sala da casa, o menino cresceu entre pés-deferros,
uma máquina de costurar couro e fôrmas
de sapatos. Já adulto, ainda se enfurecia com a
cínica e provocante afirmativa: “Perguntei qual
é seu nome e não a sua profissão”.
51
Chicos
Os Zapateros, tornaram-se conhecidos na
cidade pelo sobrenome e a qualidade dos calçados
que o patriarca da família produzia. Rui,
ainda menino frequentava a sapataria, ora com
o pai, ora com a mãe, para reparos de seus calçados.
E o tempo avançou. Um dia, descendo a
rua, dá de cara com o filho do sapateiro atrás do
balcão da Lanchonete Carolina, homenagem à
filha do proprietário. Tornou-se frequentador
diário, de manhã, um cafezinho a caminho do
trabalho e ao final da tarde e do expediente, a
cerveja gelada.
Ilda, ainda jovem tentou a carreira de cantora,
durante muito tempo cantou na noite, morou
em BH, Rio e SP. Uma grande frustração,
que ela teima em não revelar, encerrou sua trajetória.
Chegou a aparecer cantando em programas
de auditório na televisão, voz poderosa,
emocionava a todos quando cantava a capella
“Meu guri”, de Chico Buarque, com os olhos
marejados. A canção era um autoflagelo, já que
ela não podia ter filhos.
Desistiu de tudo. Mesmo nas crises depressivas
não arredava pé da taberna do sapateiro,
assim batizada por ela com a colaboração do
Rui. Entrara ali pela primeira vez com o Rui e se
apaixonou pelas coxinhas. Tanto fizeram que,
numa segunda de manhã Rui chega para o café
e dá de cara com o novo nome estampado na
parede quase junto ao teto. Rui, que era um ótimo
desenhista, viu uma lata de tinta que sobrara
da pintura das portas, sem dar a mínima para o
dono que o xingava sem parar, desenhou letra
por letra a frase: “Zapatero, a tus sapatos, y dejate
de otros tratos”.
─ Que porra é essa? Vocês me encheram
o saco para mudar o nome do bar. Topei! Dois
dias de trabalho para pintar o estabelecimento e
você me faz uma merda dessas.
─ Lá vem a fúria espanhola. Calma, espanholito!
─ Era assim que Ilda e Rui o chamavam
quando ele estava bravo. Depois de acalmar o
esquentado, Rui se explica.
─ A frase é uma advertência aos seus fregueses
que adoram se meter na conversa dos
outros. Afinal, você sabe o que ela significa,
aprendi com seu pai. Cada um dá opinião apenas
sobre o que entende, não se metendo no
que não o afeta nem entende. Não é isso que
significa?
Numa tarde, Rui entra desconsolado na
taberna vazia, pede uma pinga, olhos turvos,
dispara.
─ A Ilda morreu hoje de manhã por complicações
numa cirurgia de redução de estômago.
─ Como? Não tem uma semana ela estava
aqui, devorando coxinhas.
─ Não falou nada para ninguém. Viajou
para o Rio sozinha. A prima dela é que me deu
a notícia, ninguém por aqui sabia disso.
– Eu me sinto meio culpado. Sabia que a
Ilda não tinha autocontrole. Glutona, chegava
aqui no boteco às escondidas dos familiares que
tentavam controlar. Comia todas as coxinhas.
─ E eu? Estou arrependido de tantas vezes
tê-la sacaneado.
─ Você pegava pesado. Imitando a voz e o
movimento das mãos de Rui quando falava.
─ Porra, Ilda! Você come coxinhas absurdamente.
Vai explodir de tanto comer, bem no
meio do bar. Feito a Wilza Carla, na novela Saramandaia.
E ela explodia na gargalhada. Rui tira os
óculos, seca a lágrima e suspira.
─ E lá se foi a Ilda.
* José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
52
Vale das corujas
Chicos
*Eltània André
Não importa se Deus existe
ou não, mas como ele goza.
Jacques Lacan
A manhã de primavera inundada de sol
era o convite à quietude. Adônis faz questão
da boa convivência, acena para um e outro
com o melhor semblante. Embora tenha
uma certeza: se uma casa é considerada mal
-assombrada, os moradores se transformam
em fantasmas aos olhos de quem a olha.
Não, nunca quis assombrar ou ser importunado.
Bastava ter que suportar as corujasmecânicas
de dentes afiados e ameaçadores
que vagam pelos telhados. Malabaristas da
casa ancestral. Vigias impiedosas e rotineiras.
Da varanda do quarto andar, Adônis observa
as crianças brincando ao redor da piscina,
na área de recreação do prédio, enquanto
se serve de uma xícara de chá. Vê
quando o filho do vizinho chuta a bola em
direção ao telhado da garagem, vê quando
Beatriz trepa no baixo muro sem se importar
em exibir a calcinha do biquíni enfiada no
bumbum. Ele sente uma espécie de corrente
energética relampejar a partir do abdômen.
Tenta se recompor, tenta pensar em outra
coisa, mira os barquinhos brancos no tecido
felpudo do roupão. Precisa de uma imagem
banal para reacomodar o mal-estar. Teme,
entretanto, não ser possível recuar tantas vezes.
Nunca quis ter filhos, sempre se sentiu
inabilitado para a tarefa de pai. A algazarra
das crianças ecoou em seu espírito como a
sirene de uma ambulância. A pequena Beatriz
o ameaça sem intenção.
Entre um gole e outro do chá, encana o
lamento antiquíssimo: antes eu não tivesse
nascido.
Compelido, regressa ao passado: quando
pequenino foi escalado como gandula na
partida das equipes júnior, o que não durou
muito, pois distraía-se e era lento para recolher
a bola. Naquele lugar experimentou o
seu primeiro beijo. Ana era dois anos mais
nova do que ele, mas soube invocar o deleite
enfiando a língua dentro de sua boca. Ela
queria a caixinha de cigarrinho de chocolate
Pan que ele exibia nas mãos. Um beijo por
um doce.
Uma camiseta por uma chupadinha. Igor
ambicionava possuir uma camisa oficial do
time pelo qual torcia, igual àquela que Adônis
ganhou num Natal. Adônis perguntoulhe:
você faria qualquer coisa para ir ao próximo
campeonato com esta camisa? Igor
respondeu-lhe: eu mataria um búfalo por
ela, disse de sopro com os olhos reluzentes.
A negociação foi legitimada. Horas mais tarde,
Igor vomitava e Adônis fechava a braguilha
da bermuda, depois de tirar a camisa
e jogá-la no chão. Adônis foi para casa co-
53
Chicos
mo se carregasse nas costas os pecados do
mundo e no peito uma legião de fantasmas.
Compreendeu que a angústia exigia dele silêncio
e sigilo.
Noutro tempo, tentou usar a estratégia de
troca e ouviu um não rotundo na voz débil
da irmãzinha, seguido da ameaça de dedurálo
para o pai. Ela queria o pote de biscoitos
que a mãe havia escondido na última prateleira
do armário, ele queria explorar a xoxotinha
da pequena. O perigo do aniquilamento
aliado ao conceito de pecado aprendido
nas aulas de catecismo e nos conselhos da
madrinha que pertencia à Congregação das
Carmelitas frearam as ações voluptuosas do
garoto, mas não definitivamente. Nada pode
se calar para sempre. Temia o caráter punitivo
de Deus, embora se amedrontasse ainda
mais com o código penal e moral dos homens.
Há proibições que são inegociáveis,
por isso Adônis não teve coragem de levar
ao confessionário seus pecados e encheu os
ouvidos do Padre de historiazinhas previamente
arquitetadas e de poucos Pai-nossos
ele queria explorar a xoxotinha da pequena.
O perigo do aniquilamento aliado ao conceito
de pecado aprendido nas aulas de catecismo
e nos conselhos da madrinha que pertencia
à Congregação das Carmelitas frearam
as ações voluptuosas do garoto, mas
não definitivamente. Nada pode se calar para
sempre. Temia o caráter punitivo de
Deus, embora se amedrontasse ainda mais
com o código penal e moral dos homens. Há
proibições que são inegociáveis, por isso
Adônis não teve coragem de levar ao confessionário
seus pecados e encheu os ouvidos
do Padre de historiazinhas previamente
arquitetadas e de poucos Pai-nossos.
54
O sentimento inominável amalgamouse
à obediência ao pai, que o levou à casa
de prostituição. Inconformado com a virgindade
do filho de 16 anos, apressara o tempo.
A mulher que escolhera para o filho tinha
pelo menos o dobro de sua idade, o que
tornou a experiência ainda mais árdua. Com
o cerebelo encharcado da dose de cachaça
com guaraná, o garoto cedeu à expectativa
de todos. Na saída, quando o pai lhe abarcava
a testa para que o jorro de sua garganta
não sujasse a roupa, ele se lembrou de Igor
— que já treinava num time profissional no
Rio de Janeiro. Conservou da experiência o
gosto do vômito e o júbilo: indissociáveis,
uniram-se à culpa (velha amiga), formando a
indigesta trindade. Ana, Igor e seus mortos
jamais envelheceram. Via as suas faces nas
faces de outras crianças. Era impossível conter
o dique do desejo, embora o ato sempre
abortado. Pensou ter sob o seu controle as
rédeas da tentação que se insinuava desde
tempos primitivos. Semelhante ao rei abatido,
sentia-se condenado na flor de seus pecados.
Ele seguiu a carreira de cirurgião plástico,
e, quando incidiu pela primeira vez na
carne viva a lâmina do bisturi, a cor vermelha
lhe deu ainda mais certeza de que há
coisas que devem correr sub-repticiamente,
como o sangue quente que navega nas artérias
e veias. Passou a vida adestrando corpos.
Distraía-se medindo a largura das sobrancelhas
e o eixo dos olhos, redirecionando
a espacialidade de um nariz, apagando os
mapas dos rostos, empinando seios, reconstituindo
órgãos, preenchendo bocas. Seu trabalho
era uma fonte de distração e até de
salvação, pois o despertar absoluto seria a
Chicos
sua sentença de morte. Albertina queria ser
oncopediatra, mas Adônis não toleraria
acompanhar, sequer pelo discurso de terceiros,
o sofrimento de crianças vitimadas pelo
câncer. Tinha por elas um carinho paradoxal.
Tentou com sucesso dissuadir a noiva da decisão.
Hoje, ela trabalha como anestesista na
mesma equipe que ele. São bons colegas de
trabalho, do que viveram não restou nenhuma
faísca acesa.
Adônis não andava bem, qualquer um
poderia notar as olheiras fundas, os olhos
assustados, o corpo suscetível ao assalto. Há
tempos a insônia intermitente desarrimavalhe
a rotina. Desassossegado, persistia em
reprimir os sonhos ao ver Ana e Beatriz num
mesmo instante.
Um corpo para esculpir, de menina, de
menino, tanto faz, qualquer intenção serve à
argila, moldar cada milímetro de pele, o torso,
a cabeça, as pernas, os bracinhos, a gengiva
expulsando os dentes de leite. Alojar o
segredo dentro do umbigo para navegar sanguíneo
pelo tubo de oxigênio. Servir-se da
frescura da imagem e entregar-se ao gozo.
A sensação primordial e obscura ganhava
força e frenesi. Um balão vermelho para pintar
e sobrevoar a cabeleira infante, o resto
de cor a tingir os corações de cartolina.
Qualquer analogia inflamaria à revelia o
membro vivo e soberano. O pênis calcificado,
virando um grande osso, quase pronto a
se calar seria a remissão, a comunhão dos
santos.
Mesmo que Adônis nunca tenha tocado a
pele tenra e macia de uma gruta ou tenha
aliciado seres minúsculos com doces e histórias
da carochinha, ele não venceu o páreo:
55
os olhos esfaimados o tiraram da órbita
quando viu a calcinha lilás mal cobrindo a
pele aveludada da pequena Beatriz. Um banquete,
um leitão assado depois de um longo
jejum, a maçã na boca, o encantamento selvagem
atiçando o peito em brasa, pondo a
enguia a se mover com autonomia. Ele perdeu
o domínio, e um turbilhão de sensações
cobria de rubor e de esgares o rosto de Adônis,
que se pôs num combate vão. De nada
adiantou o pênis calcificado, as chicotadas
no lombo, os joelhos feridos de tantas promessas
e orações, pois a cobiça emanava do
pântano. O paraíso nunca se insinuou para
ele, eis a verdade. Perdeu-se no vale das corujas,
ora vítima na boca da fera, ora a ver a
fera comer os ovos do ninho. Ferasmecânicas
a abocanhar homens lascivos, sujos
e imorais; a trancá-los em porões insalubres;
a mutilar seus corpos — máquinas desejantes.
O que poderia ser vivido como uma
fantasia, fetiche ou faz-de-conta era para ele
fardo, horror e repugnância. Adônis sempre
a queixar-se: antes não tivesse nascido. Mas
você nasceu, respondia a si mesmo. A quem
interessa o que lhe passa pela cabeça? A
quem interessa a sua luta diária, os murros
em ponta de faca? Bastou ver a dobrinha da
coxa da garotinha para derrubar todos os
alicerces que aprendeu desde o beabá até o
último culto.
Arrancar os olhos, sem qualquer metáfora,
de nada lhe adiantaria. O desejo é arte
rupestre grafada em cada milímetro do seu
organismo, nas cavernas, abrigos rochosos,
no não dito, no sim e no não. A prática clínica
não lhe acudiu como esperançava nem
as noites de amor com as mulheres nem a
Chicos
biografia sem nódoas nem os gestos natimortos.
Há regras fundamentais que ele anotou na cartilha:
não deseje isso-aquilo, meu caro; olhe a
carteira de identidade, a data de nascimento;
Adônis, não cumpra a profecia! Seja homem,
não seja bestial! Porém a língua indelével de
Ana ainda plainava sob o céu de sua boca, roçava
nos dentes, navegava na saliva, reativando o
que deveria permanecer adormecido. Dome-se,
meu caro — o coral de outras eras ordenava.
A xícara de chá tremulou em suas mãos,
ato contínuo; ele a jogou contra a parede.
Os olhos oceânicos de Igor a repetir-se
antes e depois do asco, as pupilas no espelho
como duas meninas a chamá-lo para a ciranda
de roda. És um homem, então? — foi o que o
pai lhe disse quando Adônis deixou a mulher se
limpando no quarto do bordel. O velho pai, com
o orgulho em pauta, abriu mais uma garrafa de
cerveja para comemorar o futuro, a primeira de
muitas! Nunca mais o garoto quis visitar a madrinha,
cismava que a tia desnudava a sua alma,
por ser pura, por ter feito os votos de castidade.
Adônis fechou todas as cortinas, algo havia
cindido dentro dele feito os cacos da porcelana.
As corujas acrobáticas já habitavam o teto
da casa. De um cômodo ao outro, Adônis via
suas bocas arreganhadas com dentes afiados em
risos sardônicos. Tirou o robe, fez-se nu. Cederia
à fome das feras? Antes não tivesse nascido,
seu pulha, Adônis vociferava. As imagens da
libido vindo à tona: o recreio do jardim da infância,
a brincadeira de cabra-cega, o campo de
futebol... a garotinha não saía de sua cabeça,
Beatriz ocupou todos os seus poros.
Adônis pôs-se diante do espelho.
Com o membro em plenitude, assim que o
tocou notou a deformidade causada pela
completa calcificação. Uma grande placa
fibrosa. Um osso suculento. Compreendeu
que era necessário extrair o tumor, cortar o
mal pela raiz. A princípio, tentou inutilmente
desenroscá-lo. Parafusar e desparafusar,
como uma prótese móvel, seria a salvação.
Sem outra alternativa, recorreu ao bisturi da
obsidiana, rocha negra que trouxe na mala
quando retornou de uma viagem ao deserto
do Atacama. Fez o corte preciso como havia
aprendido na universidade. As corujasabutres
avançaram com voracidade sobre a
carne morta que caía no chão frio, enquanto
a pergunta do pai retumbava nos ouvidos de
Adônis: És um homem, enfim?
* Eltânia André
Nasceu em Cataguases (MG), mora em Portugal. Autora de Meu nome agora
é Jaque (contos, 2007), Manhãs adiadas (contos, 2012) Para fugir dos vivos
(romance, 2015), Diolindas (romance, 2016, escrito em parceria com Ronaldo
Cagiano), Duelos (contos, 2018) e Terra dividida (romance, 2020).
56
O guardador de segredos
Chicos
*José Vecchi de Carvalho
Todos os dias, no mesmo horário, Amon
passava pela porta de vidro grosso e escuro,
pontualmente às sete e cinquenta da manhã. Depois
da porta não era possível distingui-lo dos
demais, embora as outras pessoas que trabalhavam
naquele lugar não apresentassem a sua singularidade.
Andavam pelas ruas em grupos, como
bandos de pardais barulhentos, falando alto,
gesticulando e rindo. Era um monte de gente
apressada, uns entravam às oito horas, outros
chegavam um pouquinho antes, e uma minoria,
um pouco mais tarde, entre oito e meia e nove
horas. E havia os pouquíssimos engravatados
que entravam pelos fundos com seus carrões.
Não se podia ver nem ouvir nada através das
paredes e dos vidros escuros, mas sabia-se que
lá dentro era claro, cheio de lâmpadas elétricas
iluminando salas e corredores, móveis e máquinas,
reuniões e sigilos. Às dezoito horas, a porta
de vidro grosso e escuro se abria para a saída de
muita gente, e todos se afastavam efusivos.
Amon nunca saía no horário como os demais,
sempre um pouco depois. Na maioria das vezes,
era o último a sair, por volta de dezenove horas.
Quando pisava a calçada já iluminada pelas luzes
dos postes e caminhava até o estacionamento,
dava para ver as linhas azuis de suas veias
sob a pele branquíssima dos braços magros.
Acho que nunca tomava sol, de tão pálido. O
rosto parecia sem vida, não fossem a cabeça
sempre em movimento, de um lado a outro, como
se desconfiasse de qualquer coisa, e os olhos
atentos a tudo, sob grandes cílios piscantes e
grossas sobrancelhas que também se moviam
para cima e para baixo, franzindo e desfranzindo
a testa. Movia os olhos como os gatos mexem as
orelhas. Acho que via e ouvia através dos seus
grandes olhos negros.
Trabalhava ali desde muito moço e já passava
agora dos cinquenta. Talvez, antes, não me
lembro nem posso garantir, fosse um pouco diferente,
tivesse amigos, frequentasse bares e lupanares,
jogasse baralho, futebol, xingasse juízes
e adversários, bebesse cerveja depois das partidas,
fizesse gracinhas perto de moças bonitas,
manchasse a camisa com picolés e balas comprados
de ambulantes, cantasse uma música
qualquer pelos corredores da casa ou sob o chuveiro,
misturando letras e melodias de músicas
diferentes, tudo sem preocupação ou compromisso.
Mas agora não era assim, a sisudez tomou
conta do seu corpo. Era bom profissional,
57
Chicos
todos diziam, sério, austero, assíduo e pontual. E
mais confiável do que qualquer máquina moderna
para guardar em segredo uma grande quantidade
de números e palavras. Senão, não justificava
tanto silêncio e o seu jeito arredio e lacônico.
Falava pouco, quase nada, mesmo em casa,
com dona Laura, falava o mínimo necessário.
E muitas vezes, quando chegava mais tarde, o
que se ouvia era um ou outro suspiro, como
quem está exausto e puxa o ar mais fundo para
soltá-lo em seguida, devagar, como se soprasse
dentro de si a poeira de seus segredos. Às vezes,
dormindo, sentava na cama e falava, inconsciente,
alguma coisa ininteligível, palavras e números
desconexos, e depois deitava-se novamente. Dona
Laura já estava acostumada e não o acordava,
não comentava nada, e não fazia inúteis perguntas.
Acho que o trabalho de Amon era mesmo
engolir palavras e números e enterrá-los em seu
inviolável silêncio, como se fossem tesouros. Vivia
a acumular palavras e números em seus silêncios,
como os rentistas acumulam mais e mais
dinheiro. Às vezes, saía do trabalho com o rosto
meio avermelhado contrastando com a brancura
dos braços, caminhava até o carro e se demorava
bastante para arrancar. Só saía quando seu
rosto já tinha voltado à cor branca natural, à sua
palidez de cadáver.
O silêncio o acompanhava até à casa. Dona
Laura, resignada, deixava o marido com os
seus segredos profissionais, seus resmungos noturnos
e seus sonos entrecortados sabe-se lá por
quais sonhos e pesadelos. À mesa, ele tamborilava
o tampo com os dedos, mas não parecia percutir
nenhum ritmo musical; parecia um tique,
uma mania, como se digitasse num teclado qualquer
de alguma máquina num escritório cheio de
papéis, canetas, telefones, computadores, tensões,
ordens, comandos e senhas. Comia pouco,
quase não mexia no prato. Depois, sentava-se na
sala para assistir ao jornal da tv e, nos intervalos
comerciais, levantava-se, caminhava até a cozinha,
tomava um café e beliscava alguma coisa,
um biscoito, uma torrada ou um pedaço de pão,
e retornava ao sofá mastigando lentamente, com
a boca fechada, como a impedir a passagem de
alguma palavra que tentasse escapar.
Numa tarde de agosto, Amon surpreendeu
a todos quando saiu do trabalho às dezoito horas,
nem um minuto a mais ou a menos, fato
que nunca ocorrera antes. A brancura de seus
braços magros com as veias visivelmente azuis
contrastava com o rubor de seu rosto. Um vermelho
escuro, quase roxo, nem parecia o mesmo
que chegara pela manhã, com sua brancura dos
pés à cabeça, pontualmente, às dez para as oito
e cruzara a porta de vidro grosso e escuro que
não permitia distinguir as pessoas lá dentro.
Acho que naquele dia, seu trabalho foi intenso e
deve ter engolido uma grande quantidade de palavras,
números e segredos. Quem sabe tenha
ingerido palavras indigestas e apresentava, então,
sintomas de indigestão ou congestão alimentar.
Não caminhou para o estacionamento,
seguiu em outra direção com passos lentos e vacilantes
como se não tivesse certeza do rumo a
ser tomado. De vez em quando parava, atraves-
58
Chicos
sava a rua, caminhava um pouco mais, parava
novamente, voltava a caminhar, andando devagar
como se procurasse um endereço ou pensasse
em alguma decisão a ser tomada. Entrou numa
farmácia e saiu pouco tempo depois.
Não era uma tarde quente, mas Amon tinha
o rosto encharcado. Abriu dois botões da
camisa, perto da gola, em pleno passeio-público,
como nunca fizera antes, e em seu peito magro
também escorriam gotículas de suor. Não parou
com ninguém, nem cumprimentou. Estancou o
passo de repente e, como se tivesse arrependido
do caminho escolhido, voltou andando um pouco
mais depressa em direção ao estacionamento.
Estava passando mal, não havia dúvida, seu
semblante era de algum transtorno, algum malestar,
parecia ter ânsia de vômitos. Bateu a porta
do carro e não esperou um minuto, saiu apressado,
estabanado, desatento, quase atropelou um
transeunte na calçada, e seguiu por um caminho
diferente, como se buscasse o outro lado da cidade,
distante do bairro onde morava. Não pude
acompanhá-lo, mas logo pensei que procuraria
algum lugar afastado, longe da vista de todos,
para descarregar as palavras indigestas gritando,
vomitando ou até mesmo evacuando os segredos.
Foi encontrado horas depois estacionado
numa avenida deserta. Os vidros do carro fechados,
o rosto tombado para o lado, a camisa toda
aberta, nenhum sinal de vômito ou outra excreção
qualquer. Estava frio, inerte, desfalecido.
Cheguei a pensar que na preparação do corpo
lhe fariam um rasgo, do peito ao abdome, para
extrair seus tesouros, mas nada fizeram. Por certo,
sabiam que, Amon, prevendo algum perigo,
tratou de escondê-los ainda mais, e assim, deixaram
que levasse os seus insondáveis segredos
para todo o sempre.
* José Vecchi de Carvalho
Nasceu em Cataguases, após morar por muito tempo em Viçosa vive
hoje em Paula Candido todas cidades mineiras. Coautor de A casa da
Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes (contos
2018), Contradança (contos 2020) e Cada gota de silêncio (contos 2021)
59
A galinha sem cabeça
Chicos
*Ozias Filho
Seis, cinco, três e dois. Pela ordem decrescente
era a minha idade e a dos meus irmãos.
Para onde a corda seguia, também se
descolocava a caçamba. Sempre em grupo, um
bando de piratas, de polícias, bombeiros, médicos
e pacientes, super-heróis ou super-vilões.
Sempre nós, os quatro, em qualquer aventura,
no enredo sem rotinas, de uma infância desregrada.
Não precisávamos de outros amigos, nós
nos bastávamos. A festa, a alegria, as brincadeiras
inventadas, o baloiço quase nas nuvens,
o roubo das frutas no quintal dos vizinhos, faziam
parte no contrato do gangue. O mundo,
o nosso vasto mundo sem filtros, nos pertencia,
mas a vida por vezes nos apresentava portas
que não deveríamos ter aberto.
Não tenho muito boa memória do que
aconteceu na minha infância, já lá vão muitos
anos nas páginas dos calendários. Sei, e posso
afirmar, com a certeza da criança que ainda
guardo dentro de mim, de que ela foi rica e
generosa comigo. Talvez seja mais marcante
lembrarmo-nos daquilo que nos marcou pela
negativa, do que pelos momentos de felicidade
que vivenciamos. Mais depressa nos lembramos
da dor. E por isso não me sai da memória,
a galinha sem cabeça, decapitada por uma
espécie de guilhotina, que a minha mãe guardava
lá para os lados da cozinha. Não esqueço
da galinha sem cabeça atirada para o céu, na
expectativa do bater de asas natural de qualquer
ave. Ela foi projetada para o ar, sem cabeça,
e aterrou, num poiso forçado, e saiu em
disparada pela pista inexistente.
A galinha sem cabeça, a galinha decapitada,
a correr sem norte para lugar nenhum no
quintal lá de casa, a tropeçar nas próprias patas
ou pernas que barravam o seu caminho, a
invadir terrenos dos outros animais, e nós maravilhados
diante daquele espetáculo de sangue,
a correr atrás dela sem imaginar a sua
morte. Na nossa ingenuidade de crianças, muito
antes da internet, do excesso da informação,
e do politicamente correto, a morte era
algo sem expressão como nos desenhos animados,
pois quem morria voltava sempre à
vida.
A galinha Patinha (nome ficcionado, pois
já não me recordo de como a chamávamos),
naqueles seus poucos segundos de eternidade
foi o alvo da euforia, da catarse, do rejubilo
ritual de uma infância em que só a resgato
subtilmente, com os fragmentos da memória
que se esforçam em permanecer no meu juízo.
Cada um de nós gritava um nome de
guerra para confundi-la ainda mais, enquanto
60
Chicos
cercávamos aquela alma, literalmente penada,
que de certeza não corria desesperadamente
para fugir de nós, mas porque o seu corpo,
sem cabeça, guardava a lembrança de uma cabeça
que há bem pouco tempo estava presente
e a comandar o seu destino.
Após o festim adveio a nossa solidão, minha
e de meus irmãos, desolados frente ao
corpo inerte da galinha sem cabeça, no chão
de terra batida. Afinal, a televisão era mentirosa,
já que a Patinha não ressuscitara ao mundo
dos bem vivos.
A galinha sem cabeça foi parar à panela,
e aos pratos do jantar que se seguiu. Naquela
noite, a fome não tinha espaço no nosso estômago
de tristezas; fome esta, que era o apanágio,
e ingrediente principal, na mesa de muitas
famílias brasileiras.
- Tenho fome não, mãe! - disse com coragem
a minha irmã caçula. Lembro-me como
se fosse agora.
- Posso sair da mesa? - choramingou palavras,
a pequenina.
- Só sai quando o prato estiver vazio, limpinho!
E não quero ouvir mais pedidos como
este, ouviram bem? - sentenciou a minha mãe,
e ao mesmo tempo calou todas as possibilidades
de protesto.
Acredito que até hoje, eu e os meus irmãos,
ainda não fizemos a digestão daquele
jantar.
* Ozias Filho
Foto de Raquel Barata
Nasceu no Rio de Janeiro (hoje, com nacionalidade portuguesa) mora em Cascais
Portugal. Escritor, fotógrafo, jornalista e editor de livros, pós-graduado em Edição
e Novos Suportes Digitais, pela Universidade Católica Portuguesa. Lançou em 2001,
o livro Poemas do Dilúvio. Idealizou e protagonizou na Casa da América Latina em
Lisboa, por uma década, vários projetos: Uma Hora Com os Poetas, Noites em Pasárgada
e Neruda com Amor. Em 2013 publicou, com o poeta juizdeforano Iacyr
Anderson Freitas, o livro Ar de Arestas; as fotos deste estiveram expostas no Museu
de Arte Moderna Murilo Mendes, em Juiz de Fora, MG. Suas últimas exposições
são QUASINVISÍVEL, integrou a iniciativa Passado Presente – Lisboa Capital
Ibero-Americana de Cultura e, ainda, em 2019, em A Pequena Galeria (Lisboa) o
ensaio, Por estes dias o mar tem dentes. Como poeta editou em Portugal e no Brasil
os livros O Relógio avariado de deus (Texto Território) e Insulares (Editora Jaguatirica).
É editor nas Edições Pasárgada. Assina a coluna Quem eu vejo quando
leio no Jornal Rascunho de Curitiba PR e colabora com o coletivo de artistas Mapas
do Confinamento.
61
Chicos
Inocência
*Raquel Naveira
Deparei-me com um quadro clássico: “A
Inocência”, de William Bouguereau (1825-
1905), um pintor acadêmico francês, que dominava
perfeitamente a forma e a técnica realista.
Trata-se de uma moça descalça, recostada
numa fonte. O vestido é simples, branco,
vaporoso. Um jarro ao chão. Dois anjos, um
em cada ombro, parecem dispostos a elevá-la
ao céu. Um deles deposita uma flor em seu
decote. Talvez seja uma camponesa. A personificação
da inocência, essa qualidade de
quem é incapaz de praticar o mal. A pureza
tem um poder que protege. É uma necessidade
de realização plena de uma vida em comunhão
com Deus no coração, nas intenções, nos
pensamentos. É uma maneira limpa, sem contaminação,
de ver as coisas, afinal, “para os
puros todas as coisas são puras”.
As crianças possuem essa inocência. São
crédulas, imaginativas, acreditam em tudo que
contamos, confiam e admiram os adultos. Presas
fáceis da crueldade humana. É necessário
manter vivo esse estado de infância em que
habitam a criança e o poeta. Mas como lavar
as mãos na inocência? Dispensando amigos
rudes? Não se lamentando nunca da própria
sorte? Controlando a mente? Abstendo-se de
tudo que mancha e entorpece os nervos? Invejo
quem não conhece motivos de dor e revolta.
Queria o conforto da inocência. Bem sei o
que sinto e o porquê sinto. Conheço os finais
trágicos das histórias e dos romances.
E por falar em romance, Inocência, do
Visconde de Taunay, é um livro encantador,
charmoso, suave e pitoresco. Um caso de
amor contrariado, em meio à luxuriante natureza
do sul de Mato Grosso.
Alfredo d’Escragnolle Taunay (1843-
1899), primeiro e único Visconde de Taunay,
foi um nobre aristocrata, escritor, músico, político,
historiador e sociólogo brasileiro. Lutou
na Guerra do Paraguai como engenheiro militar,
de 1864 a 1870. Desta experiência surgiram
os livros: A Retirada da Laguna, episódio
épico, vibrante, descrevendo a bravura dos heróis
que foram obrigados a bater em retirada,
perseguidos por numerosos inimigos e pela
peste que os dizimava e Inocência, uma joia
de estilo natural e romântico. O leitor se sente
cativado pela narrativa e se indaga qual seria o
final daquele triângulo amoroso formado pela
bela Inocência, de faces mimosas, cílios sedosos
e olhos matadores; Cirino, o prático em
farmácia que percorria os caminhos medicando
as pessoas e Manecão, o noivo violento,
bruto, a quem ela era prometida. Tudo se passa
numa fazenda próxima ao município de
Santana do Paranaíba, nos ermos do cerrado
cheirando a araticum;
Inocência era um ser com pouca consciência
de si e, ao mesmo tempo, tão cheia de
resistência, que preferiu a morte a renunciar
ao amor verdadeiro que sentia por Cirino. E a
morte desceu sobre os amantes com sangue e
vingança.
Meyer, um cientista que caçava insetos
para os museus europeus, batizou com o nome
de “Papilio Innocentia” uma espécie de
borboleta, talvez laranja e preta, que tremulava
as asas sobre os tufos de hortênsias.
62
Chicos
Essa obra prima regionalista tornou-se o
romance brasileiro mais traduzido da época e,
mais tarde, foi considerado o precursor da literatura
sul-mato-grossense.
Viram? Assim como Taunay, conheço os
dramas de guerras e do amor e morte universais.
Tenho prática em viagens. Explorei as
margens dos rios Taquari e Aquidauana. Escalei
morros e mergulhei em cachoeiras. Quem
viaja sozinha por essas matas, não é mais inocente.
O prazer que tive ao observar aquele
quadro e ler aquele livro me surpreende e
emociona. A inocência tem a marca da originalidade
e faz chorar.
* Raquel Naveira
Nasceu em Campo Grande MS, formada em Direito e Letras, Mestre em Comunicação
e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é escritora e
publicou, entre outros, Abadia (1996), Casa de tecla (1999) indicados ao Prêmio
Jabuti de Poesia
63
Um ourives da linguagem
Chicos
* Ronaldo Cagiano
Em seu percurso literário e existencial,
Cunha de Leiradella contabiliza uma bibliografia
premiada e bem recebida pela crítica, antes
e depois de sua chegada ao Brasil (em 21 de
abril de 1958, para escapar à ditadura salazarista),
onde viveu mais de quatro décadas, antes
de retornar às suas raízes portuguesas, vivendo
atualmente em São Paio de Brunhais,
no Concelho de Póvoa do Lanhoso, no distrito
de Braga.
Aos 87 anos e em plena atividade criativa
e intelectual, o autor (que durante sua vida,
primeiro no Rio, e a maior parte em Belo Horizonte,
onde foi presidente do Sindicato dos
Escritores de Minas Gerais e agitou a cena literária
da Capital), acaba de lançar seu novo
livro, “Isto não é um romance” (Ed. Nova
Fronteira, Rio, 2021, 120 pgs.).
Obra que dá continuidade às deambulações
de Eduardo da Cunha Júnior, personagem
que habita suas histórias na pele de protagonistas
tão diversos e constitui uma fauna
espalhada por mais de vinte títulos como
“Sargaços” (1984), “Cinco dias de sagração”
(1993), “O circo das qualidades humanas”
(1998), “O longo tempo de Eduardo da
64
Chicos
Cunha Júnior” (1997), “Os espelhos de Lacan”
(2004), dentre outros, transitando pelo
conto, novela, infanto-juvenil, dramaturgia,
jornalismo.
Funcionando como espelho autoral, Eduardo
da Cunha Júnior empreende nesse novo
romance uma espécie de encontro de contos
com a própria vida. Septuagenário, vive sua
recolhida aposentadoria e estratégica insularidade
na companhia de dois seres que poderiam
parecer-lhe estranhos intrusos, mas revelam-se
interlocutores silenciosos em sua misantropia
e reclusão: o gato Tovarich e a passarinha
Minha, que lhe dão suporte psicológico
ao lado de seus livros, enquanto des(a)fia o
novelo da memória. Na convergência entre o
passado e o presente, as lembranças de um
amor platônico, que agora emerge sob o influxo
de um tempo premido pela monotonia,
apenas quebrada por esse diálogo ficcional em
que uma realidade sensorial e emotiva aflora,
dando asas a uma intimidade mental e psicológica
repleta de expansões oníricas.
No rio caudaloso das recordações, o personagem
deslinda suas leituras, revisita seus
autores prediletos (vamos encontrar a intertextualidade,
ao invocar autores como Albert Camus,
David Mourão-Ferreira, Cèline etc), retoma
os passos de certos personagens que, ao
fim e ao cabo, são projeções de sua própria
geografia, na apreensão dos sentidos de uma
vida, como um estrangeiro a viver o mais fundo
de sua noite, o seu outono indesviável.
O livro vai exumando o tempo de Eduardo
da Cunha Júnior, onde Beatriz renasce simbolicamente
como metáfora da inconcretude,
o que alimentou sua juventude seja em termos
afetivos ou na funcionalidade do quotidiano,
período em que viveu conflituosa relação com
os pais, enquanto passava os dias encenando
fados com um amigo na expectativa de um
amor não correspondido, porque não declarado
àquela musa de seus tempos de liceu.
Leiradella consolida com “Isto não é um
romance” (e aqui encontramos uma alegoria
magritteana ao universo das aparências que a
arte sempre evoca ao nos contrastarmos conosco
e com o mundo tangível) sua rica bibliografia,
prestigiada por algumas das mais importantes
láureas do Brasil e do exterior, destacando-se:
Prêmio Antônio Chinaglia (Rio,
1981), Concurso Nacional de Literatura Cidade
de Belo Horizonte (1984 e 1986), Prêmio
Plural (México, 1987e 1990), Prêmio Instituto
Nacional do Livro-INL (1988), Concurso Nacional
de Contos do Paraná (1990), Prêmio
Cruz e Sousa (Florianópolis, 1995), Prêmio
Literário Terras de Lanhoso (1997), Prêmio
Caminho de Literatura Policial de Portugal
(1999).
Verdadeiramente um sensível ourives da
linguagem, como enfatiza o professor, escritor
65
Chicos
crítico e ensaísta Adelto Gonçalves, que na
apresentação ressalta as qualidades intrínsecas
e as sutilezas estilísticas do autor: “a partir do
fluir de recordações do narrador, a dissimulação
como traço distintivo do seu caráter, o
que nos leva a concluir que seria uma espécie
de Capitu portuguesa em formação. Em resumo:
neste conto-romance, Leiradella, tendo
vivido pelo menos metade de sua vida no Brasil,
soube como unir o que de melhor cada
variação do idioma português nos dois continentes
poderia lhe oferecer, produzindo um
texto sensível que se destaca pelo vigor da linguagem
e por frases poéticas compostas pela
habilidade de um verdadeiro artesão da palavra.”
* Ronaldo Cagiano
Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre
outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária
2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012),
Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016) e Todos os desertos: e
depois? (2021).
66
Poesia de muitas faces
Chicos
* Paulo Lima
O título do novo livro de poesia de Jeová
Santana, ESTILHAÇOS (Editora Mondrongo),
já anuncia o mote que o constitui. Trata-se de
um apanhado das muitas andanças, físicas e
poéticas, que o autor realizou nos últimos
anos.
Por esse motivo, a recolha se apresenta
caleidoscópica, às vezes colada às circunstâncias,
às vezes atemporal.
Duas partes dão forma ao livro, nomeadas
por dois neologismos: Palavração e Andarilhagens.
A primeira parte é composta por poemas
que explicitam as muitas referências literárias
do autor - suas imersões no cânone poético
que inclui Bandeira, Drummond, Cabral, Jorge
de Lima. E por formas que incluem o verso
livre, o soneto, o haicai, e até incursões pelo
cordel.
Esses poemas trazem uma defesa apaixonada
e visceral da poesia, como uma
"âncora" que possibilita nos manter respirando.
"Talvez só a poesia deixe traço/como leveza
da tarde e beijo/no oscilar da memória e
espaço", dizem os versos do "Poema do esquecimento".
O poeta, contudo, reconhece que nestes
tempos tão materiais, a poesia enfrenta outros
rumos e desafios. "A escrita de hoje é outro
pique:/pintura de ferozes demandas,/neón em
negra fulô de butique", constata no poema "A
casa de Jorge de Lima", no qual dialoga com o
poeta alagoano.
É com esse "outro pique" que Jeová
Santana, na segunda parte, expõe as percepções
de seu estar no mundo, traduzindo as suas
múltiplas perambulações de poeta e professor,
em cidades como Aracaju, Maceió e São
Paulo.
Nesse mosaico cabe a aflitiva realidade
brasileira, com seus absurdos aparentemente
inesgotáveis, explorados numa combinação de
linguagem rigorosa, abusada e irônica, em versos
tecidos entre o lirismo e a acidez. "Haja
Maria,/haja penha,/haja lenho,/haja energia/
para impedir/esta epidemia,/a lista infinda/de
todo dia", anota no poema "As Marias, as penhas".
67
Chicos
-A primeira parte é composta por poemas
que explicitam as muitas referências literárias
do autor - suas imersões no cânone poético
que inclui Bandeira, Drummond, Cabral, Jorge
de Lima. E por formas que incluem o verso
livre, o soneto, o haicai, e até incursões pelo
cordel.
Esses poemas trazem uma defesa apaixonada
e visceral da poesia, como uma "âncora"
que possibilita nos manter respirando. "Talvez
só a poesia deixe traço/como leveza da tarde e
beijo/no oscilar da memória e espaço", dizem
os versos do "Poema do esquecimento".
O poeta, contudo, reconhece que nestes
tempos tão materiais, a poesia enfrenta outros
rumos e desafios. "A escrita de hoje é outro
pique:/pintura de ferozes demandas,/neón em
negra fulô de butique", constata no poema "A
casa de Jorge de Lima", no qual dialoga com o
poeta alagoano.
É com esse "outro pique" que Jeová Santana,
na segunda parte, expõe as percepções
de seu estar no mundo, traduzindo as suas
Nesse mosaico cabe a aflitiva realidade
brasileira, com seus absurdos aparentemente
inesgotáveis, explorados numa combinação de
linguagem rigorosa, abusada e irônica, em versos
tecidos entre o lirismo e a acidez. "Haja
Maria,/haja penha,/haja lenho,/haja energia/
para impedir/esta epidemia,/a lista infinda/de
todo dia", anota no poema "As Marias, as penhas".
E cabe a memória afetiva do poeta, com
suas dores e suas perdas. Muitas delas pungentes,
como nos versos em que rememora
sua mãe, recém-falecida: "Quando a vida diz a
que veio:/a mãe torna-se um pesado bebê/a
boiar numa banheira/de sonhos e sombras".
E comporta também a crítica ao consumismo,
na forma do humor tanto certeiro
quanto incisivo: "Toda vez que ouço/falar em
bleque fraid,/saco a minha rede!", zomba em
diálogo com a preguiça de Macunaíma.
Os estilhaços poéticos de Jeová Santana,
enfim, são muitos e nos alcançam com a força
da boa (e necessária) poesia.
múltiplas perambulações de poeta e professor,
em cidades como Aracaju, Maceió e São Paulo.
* Paulo Lima
Nasceu em Aracaju SE e mora em Brasília DF. é jornalista e escritor. Autor
dos livros Anônimos e Cante minha canção, ambos de contos, e Dicionário
de nuvens, de poesia.
68
A escrita em modo combativo
Chicos
* Sérgio Tavares
Crítico de respeito e, acima de tudo, um
leitor de vasto alcance, Ronaldo Cagiano chegou
a um nível de percepção em que seu conhecimento
literário é o moinho ao mesmo tempo
que a matéria de sua produção artística. Seus
escritos são produtos da união entre experiência
do vivido e componente imaginativo, a partir da
qual se destaca uma intertextualidade que não é
estabelecida através da fria superposição ou do
empréstimo, e sim dos livros e dos autores que
abrasam sua formação cultural e visão de mundo.
Tal procedimento é facilmente observado
em Todos os desertos: e depois?, sua mais recente
seleta de contos. Para além da formulação
do argumento, cada enredo traz o compromisso
de abrigar as referências, as influências e os tributos
do autor, como que imantados por um signo
pessoal mediante o qual a ficção se sustenta
numa literariedade que visa se repercutir no leitor.
Porém não através de um didatismo barato e
arrogante, mas de pontes que conectam a leitura
a outras leituras fora dos limites paginados.
Cagiano demonstra uma lealdade inabalável
à bibliografia afetiva da qual se abasteceu a
todos esses anos, repassando e reverenciando as
matrizes elementares ao seu processo de composição.
Não por menos, faz questão de mapear a
antologia com citações de autores que, por conta
de circunstâncias variadas e obscuras que fizeram
com que suas obras não alcançassem uma
notoriedade merecida, possam chegar até o leitor,
ainda que por meio de luminosos fragmentos.
É um livro de dezenove textos e dezenas
de outros filiados, uma coletividade que, de uma
forma sumária, trata desta possibilidade de perpetuação
através da literatura, de continuar ao
longo, de ser transmissível, de prevalecer numa
hora dissonante, aqui, mas existindo em outra
latitude, como escreveu Jeter Neves. O ofício da
escrita na qualidade da manifestação mais germinal
e libertária, pela qual se pode dialogar
consigo e com aqueles que lhe precederam, uma
voz que segue, quando a vida não mais está. Por
este prisma, a definição, se necessária, de um
tema central seria o tempo. A permanência diante
da areia da ampulheta, a finitude explorada
em suas múltiplas noções.
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Chicos
tema central seria o tempo. A permanência diante
da areia da ampulheta, a finitude explorada
em suas múltiplas noções.
É o caso de “Invasora”, narrativa que abre
a antologia. Uma barata com uma consciência
kafkaniana, encafuada em meio aos bancos de
uma igreja, desvela as mentiras e os segredos
dos fiéis e do sacerdote, refletindo se vale existir
após uma hecatombe com a vidência da sujidade
da vida. “Óbito nº 75.888” acompanha o descaso
das pessoas que orbitam um serventuário desparecido,
fazendo uma elegia a um escritor real
que morreu solitário e esquecido, desprezado
igual a maioria dos escritores no Brasil. Enquanto
“No banco” se constitui de um diálogo amargo
entre dois funcionários acerca da tecnologia e
dos prazos infernizando a humanidade, com citação
designativa a Luiz Vilela.
Escritor com vivência em cidades dentro e
fora do país, suas histórias se passam em lugares
que residiu e lhe emprestou suas idiossincrasias,
revisitando, como de costume, o cantão mineiro
de Cataguases, município onde nasceu e lhe recruta
para sua atmosfera memorialista. Outro
aspecto identitário é a inquietação decifrável em
seu fazer literário, transparecendo sua posição
política, seu inconformismo, sua adoção ao uso
do mecanismo inventivo como dispositivo de
força combativa tanto simbólica quanto social.
“Espectro dissonante” exuma os ossos da
ditadura militar, os fantasmas tirados de armários
na última eleição que voltam a vilipendiar o
povo brasileiro, contra os quais a voz narrativa
vibra em falas duras que parecem dublar a opinião
de seu criador. Um ato de protesto contra o
apagamento daqueles que foram trucidados “sob
ordens de Médici, Costa e Silva, Fleury e Brilhante
Ustra”, um apelo de esperança que se
verbaliza numa sentença ambígua: “Deus é muito
longe”.
Situada nesta bifurcação entre o aterro histórico
e o magma filosófico, a vida moderna é
derivada de uma matéria inerte, uma náusea e
uma indisposição orientada por pensamentos
sartrianos e nietzschianos segundo os quais a
verdade não passa de uma ilusão, “viver é irremediável”.
“Homem invisível, cidade proibida”
narra a asfixia de um cidadão incauto consumido
pela Brasília que nasce; “Paralelo 16: Miragens”
é a Brasília com dentes, febril e selvagem, onde
“se é obrigado a fazer das tripas coração, de
vender a mãe para manter o emprego”. A trilogia
candanga se fecha com “Via-crúcis”, a Brasília
que desnatura aos poucos, convertendo a carne
em massa burocrática.
Na mesma proporção em que as agruras
sociais são contadas de dentro, a comunicação
com outras obras buscam retratar o estar vivo
numa mundanidade estéril e massacrante. “O
mundo lá fora” soa como um trecho desgarrado
de Esperando Godot. Em “O enfermeiro acidental”,
o paralelismo é com o conto machadiano
“O enfermeiro”, no qual um sujeito aceita o emprego
de cuidar de um coronel de temperamento
70
Chicos
difícil, levando a estudo sobre a degeneração.
“Constantinopla” é um passeio nervoso pelas
mazelas que atraem o passado, estabelecendo
convergências com as narrativas de “Hóspede
secreto”, coletânea de Miguel Sanches Neto, incursões
assombradas pelo espectro da melancolia.
“Há uma tristeza comprida nisso tudo e não
me sinto à vontade no agora”, declara o personagem-narrador.
recortes da problemática moderna, buscando um
espelhamento para seu desconforto e inquietude
na literatura. Um processo de criação rigoroso,
no qual o imaginário adquire a consistência do
real para questionar os contextos político, social
e cultural, e transcender as margens do texto de
modo que, a partir de sua rede de referências, o
leitor possa enriquecer e ampliar seu plano de
reflexão.
Todos os desertos: e depois? semeia a visão
consciente de um autor completo através de
* Sérgio Tavares
Nasceu em Niterói RJ Escritor, jornalista e crítico literário, é autor, dentre outros,
de “Cavala” (Prêmio SESC de Literatura, 2010, Contos) e dirige a revista
eletrônica “A nova crítica”
71
Chicos
Academias de letras, para quê?
*Antônio Jaime Soares
A Academia Brasileira de Letras voltou ao
noticiário com as eleições de Fernanda Montenegro
e Gilberto Gil. Sobre a atriz, seu amigo
Millôr Fernandes, estivesse vivo, cairia de pau,
como fez com o também amigo Antônio
Houaiss. E quanto a Gil, Chico Anysio deitaria
na sopa, no papel de Zelberto Zel. O que ele gozava
era justamente o falar empolado do baiano,
como um Rui Barbosa do candomblé, um falar
sem nada dizer, bem típico das hostes acadêmicas.
Deixo claro que continuo gostando do compositor
e da “ímpar atriz”, como disse o “ímpar
atroz”, o já citado Millôr, num cartão que vi pregado
na parede da casa dela.
Assim como o hábito não faz o monge, o
fardão acadêmico não faz o escritor. Se for
ruim, não será melhor. Também porque, ao entrar,
já é “quase uma vaga”, como disse Erico
Verissimo de si mesmo, na hipótese de ser candidato.
Drummond era uma unanimidade, mas
descartou a ideia. Para um Mário Quintana, que
morava de favor num hotel de propriedade do
jogador Falcão, o dindim da ABL poderia garantir
uma velhice mais folgada; para a maioria dos
postulantes, contudo, é por pura vaidade, a mesma
que mantém lá o execrável José Ribamar
Sarney, de quem Millôr (sempre ele) revelou a
total insignificância.
O crítico José Veríssimo, que muito lutou
pela criação daquele “silogeu”, foi, creio, o primeiro
dissidente, depondo as armas em 1912,
com a eleição do político Lauro Müller. Começou
ali a puxação de saco. Pegou mal também a
eleição de Getúlio Vargas (1943), um ditador
em pleno exercício da ditaduragem. Idem, em
1970, ao acolher o general Lira Tavares, que
havia integrado a junta militar – os três patetas,
no dizer de Yolanda Costa e Silva –, que governou
quando o marido dela adoeceu, dando uma
banana para o vice, Pedro Aleixo. Lira foi acadêmico
por ter escrito um livro de poemas assinado
com o pseudônimo Adelita.
Outro dissidente foi Graça Aranha, mentor
e líder da Semana de Arte Moderna, em 1922,
malgrado ter sido um dos fundadores da casa.
Em 1924, “chutou o pau da barraca” discursando
na própria, com frases como “somos exageradamente
quarenta imortais, consagração exagerada
para tão pequena literatura”. Diga-se que
fora eleito contra o regulamento, por ainda não
ter sequer um livro publicado, justo para completar
a exigência de quarenta membros. E
acrescentou, entre outras chicotadas, que a Academia
era “uma reunião de espectros, um túmulo
de múmias, um império de todas as velhices.
Se a Academia não se renova, morra a Academia!”.
E a plateia respondeu em uníssono:
“Morra!”.
Morta, de certa forma, ela sempre esteve e
o mesmo pode-se dizer de suas afiliadas, Brasil
afora. Já faz tempo, Cairu Teles Nunes me falou
que pós-carnaval explodiria uma bomba em Cataguases.
E fez segredo. Depois soltou a bomba:
foi fundada a Academia Cataguasense de Letras.
De cara, recusei o convite e a mesma reação tiveram
Francisco Marcelo Cabral, Joaquim Branco
e Ronaldo Werneck. Obteve apenas três ou
quatro adesões e o negócio não ficou de pé. Entanto,
estamos cercados, pois Leopoldina, Muriaé
e Ubá têm suas academias. Só sei que, na
última, uma “poetisa” cunhou o epíteto “cidade
carinho” para o seu torrão natal.
72
Chicos
O objetivo da ABL é o cultivo da língua
portuguesa e da literatura nacional. A língua,
pelo jeito, está mal cultivada, com esse acordo
ortográfico que só o Brasil adotou. Sobre literatura,
ela edita “obras de grande valor histórico e
literário, e atribui diversos prêmios”. Aí, depende
do gosto de quem edita e um dos trabalhos
publicados há algum tempo se chama O estudo
da fraseologia na obra de João Ribeiro. Não deve
ser do interesse de muita gente, para dizer o
mínimo. A língua e a literatura têm dinâmica
própria e atrás dessa vitalidade só não vai quem
já morreu. Ou ficou perdido nos salões “século
XVIII” da Academia. Não digo que essa dinâmica
dê a quem escreve o direito de desrespeitar
as normas gramaticais e dessas pode se encarregar
o Ministério da Educação.
Quanto aos prêmios, acho que ninguém
reclamou. Seja como for, a imagem que se tem
da ABL é de uma instituição descartável. E como
eles ficam feios, encadernados pelo fardão.
Já foi pior, quando usavam chapéu de plumas e
espada, aqueles mosqueteiros desajeitados, como
num baile de carnaval no Quitandinha. A
propósito, um acadêmico, o cientista Silva Melo
que, entre outros méritos, gozava da amizade de
Albert Einstein, foi agredido dentro de casa por
seu mordomo. Com a espada da Academia, que,
enfim, teve alguma utilidade.
Da Wikipédia, com retoques:
No geral, os críticos da Academia consideram
que ela virou um "agrupamento de escritores
conformistas e políticos poderosos e vaidosos".
Foi criticada, inclusive, por nunca ter se
aberto para aclamados escritores, tais como Lima
Barreto, Monteiro Lobato, Carlos Drummond
de Andrade, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
de Holanda, Caio Prado Júnior, Graciliano
Ramos, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Vinicius
de Moraes, Erico Verissimo, Mário Quintana
e Paulo Leminski, bem como por ter tornado
"imortais" políticos como Lauro Müller, Getúlio
Vargas, Aurélio de Lira Tavares, José Sarney,
Fernando Henrique Cardoso, Marco Maciel. E
nomes discutíveis, no contexto, como Ivo Pitanguy,
Assis Chateaubriand, Roberto Marinho,
Merval Pereira e Paulo Coelho.
Também ausentes os escritores Jorge de
Lima e Gerardo Melo Mourão, indicados ao Prêmio
Nobel de Literatura. Antonio Candido, Autran
Dourado, Rubem Fonseca, Dalton Trevisan
e Raduan Nassar, vencedores do Prêmio Camões,
são outros nomes importantes que não
figuram entre seus membros. No total, uns, por
vontade própria, outros, por má vontade do pessoal
da casa.
Criticada ainda por acolher pessoas que,
muitas vezes, escreviam apenas para concorrer
ao fardão, nunca mais voltando àquela atividade.
E o processo eleitoral nem sempre leva em
conta os méritos literários dos candidatos. E
mais: a Academia não empreende projetos em
favor da cultura da língua portuguesa, apesar de
dispor de capital para, por exemplo, relançar
edições esgotadas e promover campanhas de
alfabetização e incentivo à leitura. Além disso,
permaneceu calada diante das pesadas censuras
do governo Vargas e do regime militar.
* Antônio Jaime Soares
Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais
mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um
longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.
Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que
não quebra (2011)
73
Chicos
Semana de Arte Moderna – 100 Anos – 1922-2022
*Hugo Pontes
Muito se fala e se estuda sobre a Semana
de Arte Moderna realizada em São Paulo de 11
a 18 de fevereiro de 1922. Tal movimento assumiu
importância fundamental para o futuro da
Literatura, da Música e das Artes Plásticas no
Brasil.
Era o fim e o início de períodos históricos
no contexto da cultura brasileira no século XX.
Visualizada há 100 anos, fica difícil imaginar
o impacto causado pelo Movimento Modernista
sem que se leve em conta o cenário conservador
que era vivido no Brasil.
Os modernistas eram vistos como um grupo
de jovens inconsequentes e, no entanto, hoje
são os poetas, escritores, músicos e artistas plásticos
considerados avançados para a época e que
abriram portas para a liberdade de expressão no
universo das artes brasileiras.
Da Semana de Arte Moderna constavam da
programação os nomes de Guiomar Novaes, Lucila
Villa-Lobos, Frutuoso Villa-Lobos, Heitor
Villa-Lobos e Alfredo Gom – ligados à música;
na Literatura: Agenor Barbosa, Cândido Mota
Filho, Guilherme de Almeida, Luís Aranha, Mário
de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del
Picchia, Renato Almeida, Ribeiro Couto, Ronald
de Carvalho e Sérgio Milliet; e na pintura: o
grande mentor intelectual da semana Di Cavalcanti;
e Anita Malfatti,Ferrignac, Martins Ribeiro,
John Graz, Martins Ribeiro, Oswaldo Goeld e
Zita Aita; nas Artes Plásticas com Victor Brecheret
e na Arquitetura com Antônio Garcia Moya.
Modernos também foram no Recife, Pernambuco:
o poeta Manuel Bandeira; João Cabral
de Melo Neto; o poeta e pintor Vicente do Rego
Monteiro e o pintor Cícero Dias. Alberto da Veiga
Guignard, pintor, em Belo Horizonte, MG.
No Rio de Janeiro, metrópole cultural e
centro das decisões políticas, as manifestações
aconteciam e eram vários os nomes que despontavam
no cenário dos anos de 1920: Lima Barreto,
Cecília Meireles, Gilka Machado, Bidu
Sayão, Roquette Pinto, Pixinguinha e outros.
Se nos remetermos aos estudiosos da Semana
de Arte Moderna e perguntarmos o que o
movimento representou, especificamente para a
Literatura Brasileira, vamos encontrar a seguinte
resposta:
“O movimento representou uma grande
renovação na linguagem, na busca pelo experimentalismo
e na ideia de um novo momento da
criação seja nas letras como nas artes em geral.
E, em relação ao contexto da época, o momento
brasileiro era pleno de problemas de caráter social,
político, econômico e cultural.
74
Chicos
Abandonando os antigos dogmas estéticos,
os modernistas projetaram naqueles anos de
1920 até os anos de 1950 novos rumos para as
artes no Brasil.
Em Minas Gerais surgiram poetas como:
Carlos Drummond de Andrade, Emílio Moura,
Pedro Nava, Martins de Almeida, Abgar Renault,
Milton Campos, Gustavo Capanema e João Alphonsus
Guimaraens. Em Cataguases tivemos:
Ascânio Lopes, Rosário Fusco, Gilhermino César,
Oswaldo Abritta e outros; em Poços de Caldas
Jurandir Ferreira.
A partir do Modernismo conseguimos presenciar
a partir dos anos de 1950, chegando ao
ano 2000 e neste início do século XXI – a ousadia
do Movimento Concretista na literatura; o
Tropicalismo na música e as artes plásticas e arquitetura.
Na poesia encontramos o Poema/
Processo no final dos anos de 1960; o Poema
Visual no início dos anos de 1970 até os dias
atuais, englobando a Arte Postal, a Poesia Digital,
a Poesia Sonora e tudo o mais que a arte e a
tecnologia proporcionaram e proporcionam para
consolidar a criatividade e a imaginação dos nossos
escritores/criadores.
* Hugo Pontes
Nasceu em Três Corações MG e mora em Poços de Caldas (MG). Poeta e professor, fundou
o Grupo VIX de poesia de vanguarda junto com Márcio Almeida, Márcio Vicente
Silveira Santos e Waldemar de Oliveira. Fez parte do movimento de Poema/ Processo com
o grupo de poetas de Cataguases. Sua produção está ligada à poesia, ao poema visual, à
arte postal e arte-xerox. Nos anos 1990, participa de exposições no Canadá, Hungria, Rússia
e Austrália com a temática do poema visual. Desde 1996, mantém o site Poema Visual,
que divulga poemas visuais e arte postal.
75
Eles atiraram no pianista
Chicos
*José Antonio Pereira
Durante o ano que se encerrou, li várias
vezes a respeito. Talvez, neste 2022, finalmente
veremos o filme sobre o pianista Tenório Júnior
dirigido pelos espanhóis Fernando Trueba, que
também é o roteirista, e Javier Mariscal. Segundo
a produtora inglesa Film Constellation, homenageiam
a bossa nova com uma animação musical
de nome They Shoot The Piano Player, ambientada
no Brasil nas décadas de 1960 e 1970,
pouco antes do continente ser tomado por ditaduras
totalitárias, época em que vivemos no Brasil
a ditadura militar entre os anos de 1964 a
1985, é “uma história comemorativa de origem”
da bossa nova que “captura um tempo fugaz
repleto de liberdade criativa em um momento
decisivo na história da América Latina”. Um hiato
de liberdade criativa na América do Sul das
décadas de 1960 e 1970, antes de a maioria dos
países do continente serem engolidos por regimes
opressivos.
Cristina Huete da Trueba PC, "Chico &
Rita" na Espanha e Valerie Schermann da Prima
Linea Studios "A Tartaruga Vermelha" da França
são coprodutoras, com Nano Arrieta e Fabien
Westerhoff na produção executiva da Film Constellation.
Westerhoff disse: "O acesso único de
Fernando ao melhor dos músicos latinos de jazz,
e os desenhos icônicos de Javier fazem uma jornada
musical formidável, explorando a graça e a
tragédia que nos tornam humanos, e conectando
pessoas em todo o mundo".
A bossa nova foi um dos principais movimentos
musicais do Brasil reconhecidos internacionalmente.
O ator Jeff Goldblum de Jurassic
Park e Independence Day dá voz ao protagonista
da animação, um jornalista musical de Nova
York que tenta descobrir a verdade por trás do
desaparecimento do talentoso pianista. O filme
também homenageia nomes famosos como João
Gilberto, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Vinicius
de Moraes e Paulo Moura.
No dia 18 de março de 1976, quando
acompanhava os artistas Toquinho e Vinicius de
Moraes em show na Argentina, Tenório desapareceu
misteriosamente em Buenos Aires, depois
de deixar no hotel um bilhete dizendo: “Vou comer
um sanduíche e comprar um remédio. Volto
logo”.
76
Chicos
Nunca mais voltou. Segundo testemunhas,
Tenório Jr. teria sido sequestrado pelo serviço
secreto da Marinha da Argentina e torturado durante
nove dias. Passados quase 50 anos, o que
aconteceu com Tenório continua um mistério.
Nunca mais foi visto. A mobilização para tentar
encontrá-lo nos dias seguintes incluiu incursões
de Vinicius nos meios diplomáticos e rondas dos
músicos e outros integrantes da excursão por
delegacias, hospitais e necrotérios. Tudo em
vão.
Desaparecido nas trevas de uma nascente e
sanguinária ditadura argentina, o pianista brasileiro
Tenório Júnior continua como um dos casos
mais notórios da lista de vítimas dos anos de
chumbo cujo paradeiro é totalmente desconhecido
dos registros oficiais. Ao mesmo tempo, fãs
torcem para que o documentário sobre Tenório,
do cineasta espanhol ganhador do Oscar, Fernando
Trueba, chegue às telas. Depois de tomar
mais de 100 depoimentos. Embalo é seu único
disco, cultuado como obra-prima do instrumental
brasileiro. Gravado em 1964, traz composições
do jovem pianista e de outros autores, como
Consolação, de Baden Powell e Vinicius de
Moraes, em vigorosos arranjos e acompanhamento
de músicos do naipe de Raul de Souza e
Edson Maciel nos trombones, J. T Meirelles no
sax e Milton Banana na bateria. Junte-se a isso
uma personalidade exótica, alguns canos em
compromissos, um pouco de droga e estaria
pronto o perfil de um artista e tanto.
* José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
77
Chicos
Lendo os Clássicos
*Luiz Ruffato
Tempestades de aço (1920)
Trata-se de um relato da participação do Autor no
front da I Guerra Mundial, como oficial do exército
alemão, no qual se alistou como voluntário e
permaneceu entre janeiro de 1915 e agosto de
1918, e, "não contadas insignificâncias como tiros
de ricochete e feridas abertas", "fora atingido pelo
menos catorze vezes" (p. 345-346) - recebendo
por isso, a Ordre pour leméritre, ao final do conflito.
O livro é uma narrativa bastante objetiva do
confronto - o Autor se encontrava na frente ocidental,
entre terras francesas e belgas, combatendo
as forças aliadas (ora ingleses, ora indianos, ora
neozelandeses). O que mais impressiona, de fato,
não é nem mesmo a forma quase científica com
que são descritos os horrores da guerra - uma objetividade
que se faz por vezes desumana -, mas o
orgulho e o fascínio demonstrados pela guerra.
São inúmeras frases como essa: "Durante a tarde,
a aldeia permanecia sob o fogo dos mais diferentes
calibres. Apesar do perigo, eu só conseguia me
separar da lucarna no sótão de minha casa com
muita dificuldade, pois era empolgante o espetáculo
das guarnições isoladas e dos mensageiros correndo
afoitos; muitas vezes eles se jogavam no
chão, no terreno bombardeado, enquanto à direita
e à esquerda deles a terra se levantava em redemoinho"
(p.162). Ou essa: "Ao avançar, uma fúria
ancestral tomou conta de nós. Um desejo supremo
de matar deu asas a nossos passos. A raiva me
arrancou lágrimas amargas" (p. 279). Estranhamente,
o Autor, ao contrário de outras narrativas
da mesma época, em momento algum questiona
78
Chicos
os superiores que enviam os subordinados para a
carnificina ou coloca em xeque a ideia da guerra
em si -que, ao fim e ao cabo, serve apenas para
estabelecer marcos políticos à custa devidas humanas,
empolgadas com abstrações sem sentido como
nacionalismo, patriotismo, etc. Ele simplesmente
marcha para a frente, empolgado com a
guerra-ela-mesma, que tanto arrebatou os movimento
protofascistas do começo do século XX.
Apesar de tudo - e isso demonstra que o que no
campo literário a intenção do autor é o que menos
importa -, o livro começa com uma ilusão e termina
com a imposição do real. "Havíamos deixado as
salas de aula, bancos de escolas e mesas de trabalho
e, em curtas semanas de treinamento, estávamos
fundidos em um grande e entusiasmado corpo.
Criados em uma época de segurança, todos
sentíamos a nostalgia do incomum, do grande perigo.
E então a guerra tomou conta de nossas vidas
como um desvario. Em uma chuva deflores, saímos
de casa, inebriados com a atmosfera de rosas
e sangue. A guerra, por certo, nos proporcionaria
o imenso, o forte, o solene. Ela nos parecia uma
ação máscula, uma divertida peleja de atiradores
em prados floridos e orvalhados de sangue" (p. 7).
E esse entusiasmo termina assim: "Tínhamos um
número cada vez menor de homens para lhes opor
resistência [aos inimigos], muitas vezes quase crianças,
e também faltavam equipamentos e treinamentos"
(p. 329).
Tempestades de aço (1920)
Ernst Jünger (1895-1998) - ALEMANHA
Tradução: Marcelo Backes
São Paulo: CosacNaify, 2013, 347 páginas
Avaliação: Bom
* Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria
destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu
APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de
Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no
país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance
Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto
por cinco livros sobre o operariado brasileiro.
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Chicos
Clips
Cantos
Giacomo Leopardi
Tradução de Álvaro A. Antunes
Edição bilíngue
Introdução e notas de Álvaro A. Antunes
ano de edição: 2021
www.editora34.com.br
A Editora 34 assim descreve a obra, o autor e o
tradutor:
“Se a Europa de seu tempo não lhe deu a devida
atenção, as décadas seguintes se encarregaram
de corrigir esse equívoco. Hoje o italiano Giacomo
Leopardi (1798-1837) é amplamente reconhecido
como um dos maiores poetas do Ocidente,
e seus Cantos, segundo Otto Maria Carpeaux,
são a resposta moderna à Divina Comédia.
Nos 41 poemas desta obra incomparável, que
podem ser lidos como um único canto escrito e
reescrito pelo poeta entre 1816 e 1836, os aspectos
mais significativos da experiência humana
estão magistralmente integrados — da felicidade
agônica provocada pelo amor ao sentimento áspero
da natureza madrasta e da nulidade dos
nossos esforços. Por mais árduo, porém, que seja
o sofrimento, a poesia de Leopardi opera o
milagre de transfundir o que é dor individual em
comovente dor e ardor universais.
Com poemas tecnicamente impecáveis, dotados
de uma densidade de sentimento e pensamento
quase única na literatura dos últimos duzentos
anos, poucos livros de poesia são tão diversos e
simultaneamente tão coesos quanto estes
Cantos de Leopardi, que vão do gesto heroico
ao silêncio mais íntimo, sempre intensos,
sempre límpidos. Neles até mesmo a beleza das
paisagens da Itália se revela uma moldura da
condição humana. Precedida por uma luminosa
introdução à vida e à obra do poeta, a tradução
de Álvaro A. Antunes, publicada pela primeira
vez em 1985 e revista especialmente para esta
edição bilíngue, reproduz fielmente os metros e
os esquemas estróficos do original enquanto
acompanha de perto os movimentos da singular
sintaxe leopardiana.
Giacomo Leopardi nasceu em 1798 no pequeno
burgo de Recanati, região das Marcas, na província
de Macerata, na Itália. Seu pai, o conde
Monaldo Leopardi, reuniu em seu palácio uma
biblioteca com aproximadamente vinte mil volumes.
Aos dez anos de idade, Giacomo, já então
um menino-prodígio, lê com avidez enciclopédica
e, sem a ajuda de preceptores, domina o grego
e o latim, empenha-se em trabalhos de filologia,
compõe obras de erudição, diálogos filosóficos,
poemas e traduções de textos clássicos.
Com a saúde extremamente frágil e encerrado
no palácio da família, por volta de 1815 Giacomo
Leopardi começa a se corresponder com literatos
de renome — como Pietro Giordani, por
exemplo, que reconhece de imediato o gênio do
rapaz —, e inicia as primeiras anotações de seu
Zibaldone, uma miscelânea de reflexões e comentários
em registros diversos. Com o sucesso
de seus dois primeiros Cantos dedicados à Itália,
publicados em 1818, Leopardi finalmente consegue
sair da província e viajar a Roma, Milão,
Bolonha (onde publica uma edição ampliada dos
80
Chicos
Cantos em 1824), Ravena, Florença e Pisa. Em
Florença encontra o jovem Antonio Ranieri, que
será seu amigo mais próximo nos últimos sete
anos de vida. Em 1834 ambos decidem ir a Nápoles
e morar numa casa emprestada nas encostas
do Vesúvio. Em Nápoles publica uma versão
quase completa dos Cantos em 1835, escreve os
poemas “A giesta” e “O pôr da lua”, e, quase
cego e praticamente inválido, vem a falecer em
1837, aos 38 anos de idade.
Álvaro A. Antunes Fernandes nasceu em 1953
em Além Paraíba-MG. Por quinze anos, viveu e
trabalhou em São Paulo e no Rio de Janeiro na
área de informática. Nos anos 1980 foi um dos
fundadores da Interior Edições em Além Paraíba,
para a qual traduziu Os papéis de Aspern, de
Henry James (1984), A caça ao turpente, de Lewis
Carroll (1984) e os Cantos, de Leopardi
(1985). Em 1984 graduou-se em Economia no
Rio de Janeiro, e depois concluiu o mestrado em
inteligência artificial (1990) e o doutorado em
ciência da computação (1995) em Edimburgo,
na Escócia. Viveu no Reino Unido nos últimos
32 anos, onde, na área da ciência da computação,
foi pesquisador na Heriot-Watt University,
em Edimburgo, professor no Goldsmiths College
da Universidade de Londres, e, por vinte anos,
professor na Universidade de Manchester, onde
se aposentou em 2018. Desde então vive em Buxton,
Derbyshire, dedicando-se à tradução e aos
estudos literários.”
Ninguém em casa
Luiz Ruffato
ano de edição: 2021
www.editorapositivo.com.br
As crônicas que compõem o livro extrapolam o
que o gênero mais comumente anuncia – a vida
imediata, cotidiana, ainda que contemplativa
– e convidam os leitores à intimidade do
menino pobre e de sua família na pequena Cataguases,
no interior de Minas Gerais, e à improvável
trajetória como escritor. Os textos têm
tom memorialístico e são marcados pelo olhar
atento e voltado para a vida comum. A escrita
literária, que desloca o cotidiano de seu tempo
e espaço, faz deles – os textos, seus acontecimentos,
personagens e lugares – uma experiência
mediata de saudades, lembranças e um suspiro
de melancolia.
Capa da edição da Interior Edições
81
Chicos
Forças Coeternas
Eduardo Henriques
ano de edição: 2021
Edição do Autor
O título não dá pistas ao leitor sobre a história
contada pelo autor Eduardo Henriques, mas se
torna perfeitamente compreensível durante o
desenrolar da incrível e fascinante trama vivida
pelo protagonista. Trata-se de um menino pobre
e matuto que se vê forçado a entrar para
um seminário para ser padre, única solução
encontrada pelos pais para salvá-lo da miséria.
Já nessa parte inicial da história, Eduardo Henriques
cativa o leitor ao narrar com minúcias o
cotidiano de um grotão de Minas, reproduzindo
o linguajar e os costumes do interior mineiro.
[...]
[...] Mas preciso ressaltar a coragem do autor
ao questionar preceitos sagrados e ousar mostrar
com intrepidez as entranhas de um seminário
onde dogmas rígidos formulados pela igreja
católica eram impostos a imberbes seminaristas.
Preceitos estes que felizmente sofreram
transformações através dos tempos. Eduardo
Henriques, em seu livro, conseguiu expor, com
enorme evidência, as forças coeternas que traçam
o destino da humanidade.
Carlos Sérgio Bittencourt
Poesia na Pandemia
Org. Éric Meireles de Andrade
5ª Antologia da Confraria dos Poetas
ano de edição: 2021
www.editoraparatexto.com.br
Este trabalho retrata o esforço de 67 poetas,
jovens e maduros, na intenção de divulgar seus
trabalhos dentro e fora de seus círculos de amizades
e contou com um sentido ainda mais sublime:
o de socorrer pessoas das mais variadas
idades que estavam confinadas em suas casas
ou apartamentos, muitas das vezes solitárias.
A ideia central foi usar a ferramenta da poesia
como um grito, uma arma para denunciar e
expressar a indignação contra as injustiças.
A Confraria dos Poetas buscou, ainda que virtualmente
durante esse período de isolamento
social, garantir vida, ritmo, crescimento e sobrevivência
em tempos nebulosos de dor, morte
e pandemia.
A poesia também cura e gesta consciência e
resistência às intempéries históricas.
Nota:
O nosso amigo e colaborador Fernando Abritta participa
da antologia com o poema “Ao largo”
82
Chicos
Erassim - Cataguases noutros tempos
Washington Magalhães
ano de edição: 2021
Edição do Autor
De Régua na mão
Neste livro o leitor encontrará uma novidade: o
autor resolveu milimetrar o texto. Ou seja, optou
por escrever pequenos textos, todos medidos,
todos em torno de 1050 toques digitais.
Um exercício de respiração e controle de criação
no qual se obrigou a se comportar nas linhas
que estabeleceu. Seria para dar aos seus
temas os mesmos limites e com isso mostrar
um sentido de equidade e valoração para seus
temas? Não sei, mas achei interessante alguém
estabelecer para si seus próprios limites literariamente.
Quanto aos textos em si, Washington Magalhães
tem a preocupação de ser um autor popular
na acepção da palavra e realmente o que
escreve parece vir das ruas e vielas, das praças
e jardins, das calçadas e bares, dos becos e esquinas
da cidade, tudo isso aspirado num passado
recente de vidas que se reajustam, se mexem
no espaço do município de Cataguases.
Estou torcendo para que também este meu texto
tenha os mil e poucos toques que o Washington
prescreveu para as suas crônicas tão
bem planejadas, Fechei, (1.056)
Joaquim Branco
O ano em que o meu rododendro
enlouqueceu
Maria do Céu Nogueira
ano de edição: 2021
Edição do Autor
“Mas também, nestes tempos de raivas, ódios,
discriminações, do apagamento inexplicável de
vidas inocentes, que sabe ele de amor, de ternura,
de empeno, de dádiva? Muito pouco ou
mesmo nada. Do exterior do ninho o homem
comum vê apenas os gravetos rijos que lhe servem
de alicerce. Do interior vê apenas a parte
fofa onde nasceram os ovos que deram origem
aos passarinhos. Não vê nem sabe mais nada.
Porém, quando o seu conhecimento chega até
aqui, ele julga já saber o bastante, já saber tudo
o que interessa saber sobre os ninhos. E é
esse, na verdade, o seu maior erro.
Mas deixemos o homem comum com a sua
pseudo sabedoria e voltemos aos dois ninhos
de que se fala no início. Eram de serrazina, esses
dois pequenos ninhos perfeitos e iguais.
Também as serrazinas não sabem nada dos homens
e, talvez por isso mesmo, vivam tão felizes.”
Nota:
Entre os textos desse belo volume dois foram publicados
aqui. História com um maluco dentro (Chicos
59) e O ano em que o meu rododendro enlouqueceu
(Chicos61)
83
Chicos
mil habitantes. Além disso, a cidade contava
com ótimo sistema educacional e uma geração
intelectual ávida por novidades, tanto na literatura
(Rosário Fusco, Ascânio Lopes, Guilhermino
César, Francisco Inácio Peixoto), quanto no
cinema (Humberto Mauro). De certa forma, o
movimento Verde marca o início do fim da fase
heroica e radical do modernismo.
A Revista Verde, de Cataguases
Contribuição à história do Modernismo
Luiz Ruffato
ano de edição: 2022
www.grupoautentica.com.br
No ano em que se comemoram os 100 anos da
Semana de Arte Moderna, o premiado romancista
Luiz Ruffato apresenta uma importante
contribuição para a compreensão do desenvolvimento
e consolidação das ideias modernistas
no Brasil, por meio de uma abordagem sobre o
movimento vanguardista ocorrido em Cataguases
MG. A revista Verde, lançada em 1927,
reuniu em suas páginas o que de melhor e
mais ousado havia em termos de produção literária
naquele momento, com explícito incentivo,
moral e financeiro, de nomes como Mário
de Andrade, Alcântara Machado, Prudente de
Morais Neto e Oswald de Andrade, entre outros.
Ao contrário do que até hoje a historiografia
aborda como “fenômeno inexplicável”,
Ruffato demonstra, de maneira cabal, que o
surgimento desse movimento numa localidade
do interior de Minas Gerais deveu-se a uma
convergência de fatores econômicos, sociais e
culturais. Na época, a aristocracia cafeeira de
Cataguases estava se transformando em burguesia
industrial e a sede do município, um
núcleo urbano consolidado, agregava uma população
em torno de 16 mil pessoas - Belo Horizonte,
capital do estado, tinha cerca de 100
Estilhaços
Jeová Santana
ano de edição: 2021
www.editoramondrongo.com.br
“Foi uma honra para mim, como escritor e gestor
da Mondrongo, publicar esse “Estilhaços”
de Jeová Santana. Foi, sobretudo, uma enorme
satisfação conviver com uma poesia enxuta,
em que nada parece faltar ou sobrar mesmo
nos poemas e versos mais longos.
Poesia moderna, que traz consigo temas atuais
sem que o autor descuide dos elementos essenciais,
como a melodia e as imagens que, amalgamadas
pela sensibilidade e talento do poeta,
vão além de mera relação sensorial. Uma poesia,
portanto, fincada firmemente na tradição,
mas que mira o infinito. Assim mesmo, como
proposto por Ezra Pound.”
Gustavo Felicíssimo
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