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Sapeca 35

Misto de sapo e perereca Nº 35 – Abril/2022 – Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

Misto de sapo e perereca
Nº 35 – Abril/2022 – Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

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Sapeca

Misto de sapo e perereca

Nº 35 – Abril/2022 – Editor: Tonico Soares

e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

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MUSA DESTA EDIÇÃO

Hedy Lamarr (19l4-2000) – Atriz e inventora, nasceu na Áustria e atuou

numas 30 fitas, famosa em 1933 por fazer o primeiro nu nas telas, no filme Êxtase,

do tcheco Gustav Machatý, em que sentiu também o primeiro “orgasmo”

em cena. Antes, isso só era visto em filmes pornográficos. Premiado e proibido

na Europa, nem passou nos Estados Unidos, considerado “imoral e degradante

para mulheres", mas ela se fez estrela em Hollywod, com direito a seis casamentos,

como era de praxe. Curiosamente, conheço uma senhora que viu Êxtase

num cinema do interior do Brasil. A penúltima notícia que tive dela é que fora

presa roubando em supermercado, por duas vezes. A última e mais interessante

é que fez uma importante contribuição tecnológica durante a Segunda Guerra

Mundial, uma co-invenção, com o compositor George Antheil, um sistema de

comunicações capaz de confundir os radares inimigos, desenvolvido pelas Forças

Armadas estadunidenses, que serviu de base para a atual telefonia celular.


A velha história

Dia desses, vi entrevista com a bispa Sarah Shiva, filha de Pepeu Gomes e

Baby Consuelo. Disse ela que vivia num mundo de prazeres, sem noção da existência

do inferno e por isso abraçou a Bíblia. E “vamos correr a sacolinha”, como

dizia o pastor Tim Tones, uma das muitas grandes sacadas de Chico Anysio. A

Bíblia fala de um mundo criado em seis dias, há dez mil anos, quando se sabe,

para dar só um exemplo, que os dinossauros foram extintos há cerca de 65,5 milhões

de anos e o planeta Terra continua sendo um caldeirão fervente (os vulcões

podem ter inspirado o inferno), hoje em boa parte solidificado, o que criou um

clima favorável à vida em sua superfície. Mais de 70% desta cobertos por oceanos,

igualmente habitados, o que permite um equilíbrio de forças que mantém

essa porra em funcionamento. Pode continuar assim até que o sol se apague, daqui

a cinco bilhões de anos, mas é melhor dizer que o fim está próximo e que a

salvação está nas religiões. E tome crenças infundadas: em março passado, uma

multidão entrou em êxtase na Índia, ao ver um fio que seria da barba de Maomé;

no Decameron, livro de Boccaccio (1353), o mesmo ocorria numa igreja em que

o padre exibia uma pena que teria caído da asa do anjo Gabriel, quando anunciou

a Maria que ela estava grávida do Espírito Santo, “fenômeno” recorrente em muitas

lendas asiáticas; em O crime do padre Amaro (1875), de Eça de Queiroz, mulheres

ficam encantadas na casa de uma delas, que possui um retalhinho que seria

do cueiro do Menino Jesus. A necessidade de acreditar produz absurdos como

esses, sem confirmação. Então, vale ler este texto que pesquei por aí: “Com a

Evolução não há Adão e Eva. Sem Adão e Eva não há pecado original. Sem pecado

original, o mito do sacrifício de Jesus não tem sentido. Sem o sacrifício de

Jesus não há sentimento de culpa. Sem o sentimento de culpa não se pode vender

o perdão. Se não se pode vender o perdão, acabou o negócio”. Negócio que tem

isenção de impostos e deveriam criar um fundo para socorrer vítimas de catástrofes

ou pesquisas para descobrir a cura de doenças. Dez por cento do lucro de cada

igreja, já que cobram a mesma taxa sobre os rendimentos dos fiéis seguidores.

Por falar em Baby e Pepeu

Também revi a abertura das Olimpíadas do Rio e outras. Gostei mais das

de Atenas. Conseguiram transmitir a grandiosidade daquele povo que, para simplificar,

trocou o curandeirismo pela medicina, a astrologia pela astronomia, o

totalitarismo pela democracia. Sobre as do Rio, a equipe técnica deu conta do

recado e eu só mudaria, lá pelo final, o trecho em que Caetano, Gil e uma certa

Anitta cantam Isso aqui o que é, de Ary Barroso. Ary já havia comparecido com

Aquarela do Brasil e fiquei pensando: por que não os Novos Baianos, cantando

“Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor...”, do samba Brasil

pandeiro, de Assis Valente. Mas era preciso encaixar os ex-tropicalistas, mais

aquela coisa fabricada que é Anitta e coisa e tal, fiquei pensando. De pensar,

morreu um burro, diz o ditado. Vá lá, mas quem pensa mais, aceita menos facilmente

governos autoritários e/ou corruptos, montanhas de lixo que a mídia empurra

goela abaixo da “plebe rude” e, pior, valores morais e espirituais impingidos

por indivíduos que se autonomeiam portadores da men$agem divina.


Cadê Edin Barroca?

Um dos nossos encontros se deu quando eu ia para casa, altas horas. Parou

um carro e o motorista me convidou a entrar: simplesmente, Luiz Linhares, um

dos maiores atores brasileiros, acompanhado de Edin e do advogado Pedro Paulo

Moura. E fomos à Casa Rosa, onde Luiz foi recebido em clima de festa pelas

sirigaitas. Outro encontro no D’Angelo, quando lhe dei a notícia da morte de Pedro

Paulo, cuja viúva, Miriam, acabava de chegar. Depois, na casa do Henrique

Frade. Gostei duma exposição dele no antigo Clube Social: quadros com “acabamento”

profissional, do figurativo ao abstrato, deu para sacar que dominou a

técnica, antes de procurar uma linguagem própria. Agora eu soube por Zé Antônio

Pereira que continua em Brasília produzindo telas em estilo hiperrealista, em

lonas de caminhão. As velhas e com remendos são as suas favoritas. Alguns desses

trabalhos, em tamanhos menores, estiveram na exposição que vimos aqui e,

tivéssemos museu de arte, cada artista deixaria uma lembrança, formando um

acervo. Isso já foi feito, mas não foi adiante, veja algumas razões no texto a seguir.

Síndrome de Cataquase

Quando nossos centros culturais estavam de bola cheia, numa só noite,

vernissages no Eva Nil, na Chácara e no Instituto, além de mostra já em cartaz no

Humberto Mauro. Havia otimismo no ar e quase que a cidade trilhou novos caminhos,

nas artes plásticas e em outros setores, como as tradições mineiras. Ficou

no quase. Antes, participei de um concurso de contos promovido pela prefeitura e

os premiados ficaram inéditos, apesar do jornal oficial, o que não dá para entender.

Na mesma época, tivemos salão de humor e bienal de arte e as obras vencedoras

ficaram no arquivo público, de lá surrupiadas por gatunos, aquela história:

sabe-se que são funcionários, mas não se pode provar. Que tal um mandado de

busca e apreensão? Depois tivemos a Lei Ascânio Lopes, que foi pro beleléu,

com a desculpa de que não era uma “lei impositiva”, podendo a verba ter outro

destino. Ou seja, pura má-vontade. Ktá continua sendo polo cinematográfico e

tentei ver uma das produções, barrado, era só para quem havia aparecido na fita

(comunico que estou à toa e tenho alguma experiência como ator). Agora, veio a

Covid, o remédio é esperar, para que outros projetos fogo-de-palha sejam implantados.

E devidamente esquecidos. A arquitetura modernista local é apreciada

por gente que entende do riscado e um dia, na praça, saiu do cinema um daqueles

grupos de estudantes que vêm aqui para conhecê-la e o professor falou: “Agora,

vamos ver uma obra-prima” – o edifício da Nacional. O mesmo não diria, por

exemplo, do painel em azulejos diante da sede da Energisa que dá para a avenida,

que não tem como ser mais feio. O novo prédio é meio fúnebre, quando deveria

ser luminoso, para fazer jus à força e luz que representa. No mesmo estilo, o da

escola infantil do Colégio Carmo, enfeado por aquela logomarca gritante e disparatada.

A fachada do C. C. Humberto Mauro já nasceu clássica, em ferro “enferrujado”,

hoje parece loja de 1,99. Existe o Conselho de Cultura municipal, ao

qual deveriam ser submetidos projetos de prédios prestadores de serviços, problema

é ser composto por indivíduos cujo preparo cultural se resume a escrever atas.


Sapeca nº 1 estampou a foto à esquerda

(de Blumenau) ao lado da nossa

ponte velha, à sua imagem e semelhança,

confirmada por Ronaldo

Werneck, que a viu de perto (estive

lá só para almoçar e não olhei as pontes).

Mandei as fotos para Washington

Magalhães e ele não deu bola. E

escreveu em seu livro sobre a ponte

de Ktá que esta é um design exclusivo.

Agora, vi outra igual em várias

sequências do filme Desejo humano,

da fase hollywoodiana de Fritz Lang.

Logo, ficou mais que provado que é

um produto fabricado em série e dizer

o contrário é contrariar a história.

É aí que a

porca torce

o rabo

"Muito poucas pessoas possuem verdadeira capacidade artística. É, portanto, improdutivo

forçar a barra. Se o cara tiver uma vontade ardente e inquieta, por

exemplo, de escrever, coma algo doce e a sensação passará." (Jairo José da Silva)

Em terras paraguaias

Fevereiro chegou chuvoso e me pegou gripado, não a maldita Covid, fosse

ela, eu poderia não estar aqui a batucar estas mal digitadas. Numa saidinha básica

para compras inadiáveis, o toró me prendeu sob a marquise do Depó di Pão (Depósito

de Pães, em mineirês), na Vila (leia-se Domingos Lopes), o que me forçou

a tomar um esquenta-peito, ouvindo um caminhoneiro egresso do Paraguai, aonde

fora fazer entregas, tudo dentro da lei, com nota fiscal. Na volta, trocou trezentos

reais por notas de guarani para guardar de lembrança e dar de presente.

Considerando-se que um guarani vale 0,00073 Real, encheu um saco plástico, no

porta-luvas. Detido na fronteira, foi um deus-nos acuda para explicar a origem de

tanto dinheiro. E tá que conta e reconta a história, que nunca que acaba mais, entremeada

de críticas aos valorosos homens de farda que, sem mais evidências,

levaram horas insistindo em busca de outras provas, em vão. Os guaranis foram

retidos como evasão de divisas e, por certo, embolsados pelos agentes fiscais.

4


Frases enviadas pelo

confrade Tobias Mendes

• Inauguração da Ponte Rio-Niterói. "Por um lado, é muito bom; por outro lado, é Niterói".

(Max Nunes)

• Viver no Rio é uma merda, mas é bom. Viver em New York é bom, mas é uma merda.

(Tom Jobim)

• Quando estamos fora, o Brasil dói na alma; quando estamos dentro, dói na pele. (Stanislaw

Ponte Preta)

• O sol nasce para todos, a sombra, pra quem é mais esperto. (Stanislaw Ponte Preta)

• Pior do que o fim do mundo, para mim é o fim do mês. (Zeca Baleiro)

• A Academia Brasileira de Letras se compõe de 39 membros e um morto rotativo. (Millôr

Fernandes)

• Quem se mata de trabalhar merece mesmo morrer. (Millôr Fernandes)

• Democracia é quando eu mando em você. Ditadura é quando você manda em mim.

(Millôr Fernandes)

• Brasil? Fraude explica. (Carlito Maia)

• A arte de ser louco é jamais cometer a loucura de ser um sujeito normal. (Raul Seixas)

• Não é triste mudar de ideias; triste é não ter ideias para mudar. (Barão de Itararé)

• Comecei uma dieta: cortei a bebida e as comidas pesadas e em quatorze dias perdi

duas semanas. (Tim Maia)

• O que te engorda não é o que você come entre o Natal e o Ano Novo, mas o que você

come entre o Ano Novo e o Natal! (Hebe Camargo)

• Nada nos humilha mais do que a coragem alheia. (Nelson Rodrigues)

• Celulites não são apenas celulites, elas querem dizer..."Eu sou gostosa". Só que em

Braille !!! (Rita Cadilac)

• Fumo maconha, mas não trago, quem traz é um amigo meu. (Marcelo Anthony)

• Se o horário oficial é o de Brasília, por que a gente tem que trabalhar na segunda e na

sexta-feira? (Marta Suplicy)

• Para seu marido não acordar com a macaca... depile-se! (Vera Fischer)

• O homem é um ser tão dependente, que até pra ser corno, precisa da ajuda da mulher.

Pra ser viúvo, também... (Dercy Gonçalves)

• Por maior que seja o buraco em que você se encontra, pense que, por enquanto, ainda

não há terra em cima. (Yasser Arafat)

• Preguiçoso é o dono da sauna, que vive do suor dos outros. (Príncipe Charles)

• Não me considere o chefe; considere-me apenas um colega de trabalho que tem sempre

razão. (George Bush)

• Malandro é o pato, que já nasce com os dedos colados pra não usar aliança. (Zeca Pagodinho)

• Todo mundo tem cliente. Só traficante e analista de sistemas é que tem usuário. (Bill

Gates)

• Seja legal com seus filhos. São eles que vão escolher o seu asilo. (Desconhecido)

5


A Anunciação, de da Vinci, que vi na Galleria degli Uffizi, em Florença

um valor mais alto se alevanta

Leonardo da Vinci (1452-1519) – Pintor, escultor, arquiteto, engenheiro, matemático,

fisiólogo, químico, físico, mecânico, botânico, geólogo, cartógrafo, inventor,

anatomista, escritor, poeta e músico. O chamado polímata. Vi há pouco o filme

de Renato Castellani sobre ele, cinco horas e meia de duração e, se durasse o dobro,

veria com o mesmo prazer. Vida pessoal complicada, a começar por ser filho de mãe

solteira. Existissem mais recursos na época, teria nos legado o avião (observando o

voo dos pássaros), o submarino, a bicicleta e o escambau a quatro. Como era de costume,

viveu às expensas dos poderosos, não sem atritos. Na corte dos Sforza, em

Milão, teve que animar festas palacianas e inventou até um globo giratório, movido

a manivelas, tipo carro alegórico, mal comparando, o mesmo que bicheiro contratar

um Joãosinho Trinta para animar o aniversário da filha. Ossos do ofício. Na pintura,

esmerava-se ao extremo para atingir a “beleza eterna” e deixou menos de vinte quadros.

Viveu os últimos anos na França, protegido por Francisco I, outro homem de

gênio empreendedor, para o qual Leonardo da Vinci trabalhou, como engenheiro.

Moura dá dicas

Conheço Carlimoura desde o guichê da Citran, no Hotel Villas, a vender passagens

para o Rio. Sempre de olho num livro, com menos de 12 anos já havia lido

alguns gregos e peças de Shakespeare. Pelos jornais, acompanhava os lançamentos,

que pedia a um comissário (havia vários que, mediante uma taxa, levavam e

traziam encomendas, o que hoje pode ser feito pela net) para comprar, no Rio. E

continua de olho no futuro, ou seja, nos novos escritores. Já escrevi neste Sapeca

que, para mim, todo bom livro é uma novidade, mas Moura corre atrás, “seja em

Paris, ou nos brasis”. Quanto a escrever, não ousa, talvez por não ter o que acrescentar

e continua produzindo documentários sobre gente que acrescenta alguma

coisa, em Além Paraíba. Dicas dele: “A literatura brasileira vem ganhando uma

penca de novos escritores excelentes (José Falero, Stênio Gardel, Micheliny Verunschk,

Jéferson Tenório). Some-se a isso os curtos contos de Paulliny Tort, que

são um assombro! Há muito eu não lia uma escrita desse calibre e com essa fecundidade

– no estilo e no conteúdo – no terreno da ficção no Brasil. Me pegou”.

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A recepção de “Grande sertão: veredas”

Quando lançado, em 1956, o hoje canônico romance de Guimarães Rosa ganhou

inúmeros desafetos, que não o compreenderam – nem ao livro, nem ao autor

Luiz Ruffato

(no jornal Rascunho)

Antenado(a) leitor(a), você há de concordar comigo que parece não haver

dúvida de que Grande sertão: veredas é um marco da literatura brasileira e seu

autor, Guimarães Rosa, um dos maiores escritores da língua portuguesa. Mas não

foi sempre assim. Se à época do lançamento, 1956, houve gente como Tristão de

Athayde, Cavalcanti Proença e Sérgio Milliet que reconheceu imediatamente a

genialidade do autor, nem de longe a obra contou com uma recepção favorável.

No ano mesmo de sua publicação, o respeitado crítico Wilson Martins publicou

um extenso artigo, intitulado ironicamente Um novo Valdomiro Silveira,

em que afirmava: “O que acontece é que, sob as aparências da interpretação mais

direta, o sr. Guimarães Rosa na verdade nos oferece uma transcrição eminentemente

literária da realidade. Com isso, os seus heróis perdem densidade e ganham

convencionalismo: como os ‘gaúchos’ de Simões Lopes Neto ou os ‘caboclos’

de Valdomiro Silveira, os ‘vaqueiros’ e ‘jagunços’ do sr. Guimarães Rosa

não escapam de certa construção estereotipada, mais ou menos mecânica e sem

surpresas, que fazem desse livro, que deveria ser um ‘documento humano’, apenas

uma obra-prima de literatura”.

Inconformada com a quantidade de cartas de leitores que reclamavam do

livro de Guimarães Rosa, a revista Leitura, um dos mais importantes órgãos de

divulgação de literatura entre as décadas de 1940 e 1960, promoveu dois anos

após o lançamento do romance uma enquete e publicou matéria intitulada Escritores

que não conseguem ler Grande sertão: veredas. Abaixo, seguem algumas

das opiniões – e, no fim, a reação do próprio Guimarães Rosa a respeito desta

recepção desfavorável.

“Grande sertão: veredas é uma imitação de Ulisses, de Joyce, e sofre,

consequentemente, dos males de toda imitação” – Barbosa Lima Sobrinho

“Gosto muito do Guimarães Rosa, mas quando ele não cai nos excessos do

virtuosismo, numa espécie de esnobismo literário. (…) Acho que o Guimarães

Rosa devia pôr de lado esse injustificado pudor de ser simples, que está dominando

sua obra, e que amanhã poderá esterilizar por completo o seu poder criador”

– Joel Silveira

“Se a intenção de Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas, foi pretender

criar uma linguagem nova, ao seu gosto e preferências pessoais, terá certamente

atingido esse objetivo. Essa é a linguagem do criador de Sagarana, quer

dizer, toda sua, jamais uma reprodução do linguajar regional, dos grupos sociais

em que situou os episódios da sua última obra” – Ascendino Leite

7


“Li 70 páginas de Grande sertão: veredas. Não pude ir adiante. A essa

altura o livro começou a parecer-me uma história de cangaço contada para os

linguistas. Parei, mas também sempre fui péssimo leitor de ficção” – Ferreira

Gullar

“Diante de seus famosos Corpo de baile e Grande sertão: veredas sintome

um analfabeto. Várias vezes tenho-me preparado para gozar as delícias desse

novo mundo, mas me engancho miseravelmente oito ou dez páginas adiante.

Quer me parecer – sem que isso implique em desconsideração à sua obra – que o

número dos eleitos é bem pequeno” – Permínio Ásfora

“A obra de Guimarães Rosa, apesar do interesse que possa oferecer, constitui

um equívoco literário, que necessita ser imediatamente desfeito” – Adonias

Filho

“Guimarães Rosa é escritor para escritores de seu tempo, que se deleitam

com o virtuosismo verbal dele, mas separa-se do leitor comum de hoje e talvez

aliene de todo o leitor do futuro, que não terá pontos de referência para compreender

suas frases e vocábulos” – Ivan Pedro de Martins

Além desses, a revista consultou ainda outros intelectuais, que disseram

apenas que não conseguiram passar das primeiras páginas, entre eles, Agripino

Grieco, Raymundo Souza Dantas e Marques Rebelo*.

E o que pensava o próprio Guimarães Rosa sobre as críticas acima?

“No começo da minha carreira vários deles [críticos] me atacaram sem

absolutamente me compreenderem, pois me lançavam ao rosto que meu estilo era

exaltado, que eu permanecia no irreal, e assim toda espécie de retórica. Não é

possível dialogar com pessoas que manifestam por escrito a sua incompetência,

pois lhe falta a condição básica para o diálogo: o respeito mútuo.”

*Curioso que Marques Rebelo rechaçasse Grande sertão: veredas, em 1958,

quando, exatos 20 anos antes, manteve uma grande discussão com Graciliano

Ramos, durante votação do Prêmio Humberto de Campos, patrocinada pela Livraria

e Editora José Olympio. Rebelo “gritou, espumou” defendendo o primeiro

lugar para um livro intitulado Contos, de Viator, contra Graciliano, que, apesar

de reconhecer méritos neste volume, optou por um outro, intitulado Maria Perigosa,

de Luís Jardim, que acabou levando o prêmio. O livro perdedor seria publicado

apenas em 1946, com o título de Sagarana, o nome do autor, Guimarães

Rosa, devidamente aposto na capa.

Sapeca comenta

Manuel Bandeira lembra de quando Guimarães Rosa foi contratado pelo

Globo para escrever uma crônica por semana: “Escrever para jornal é como escrever

na areia, mas Rosa grava na pedra. Para a eternidade”. Uma semana era

pouco para entregar o trabalho, as ideias vinham-lhe aos borbotões. “Escrevo

cinco, dez, quinze páginas. Aí preciso reduzir a três”. E Manuel concluiu que cada

um daqueles textos poderia ser um capítulo de um novo romance, sempre de alto nível.

Adiante, carta de Bandeira a Rosa, depois de enveredar-se no Grande Sertão.

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Carta de Manuel Bandeira ‘O romance de Riobaldo’

AMIGO MEU, J. Guimarães Rosa, mano-velho, muito saudar!

Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de

Riobaldo. Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá…

Você sabe: a vida é um Itamarati – viver é muito dificultoso.

Ao despois de depois, andaram dizendo que você tinha inventado uma

língua nova e eu não gosto de língua inventada. Sempre arreneguei de esperantos

e volapuques. Vai-se ver, não é língua nova nenhuma a do Riobaldo. Difícil é, às

vezes. Quanta palavra do sertão! A princípio, muito aplicadamente, ia procurar a

significação no dicionário. Não encontrava. Pena o título: Grande Sertão: Veredas.

Nenhum dicionário dá a palavra “vereda” com o significado que você mesmo

define à página 74: “Rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno

é vereda”. Tinha vezes que pelo contexto eu inteligia: “ciriri dos grilos”,

“gugo da juriti” etc. Mas até agora não sei, me ensine, o que é “arga”, “suscenso”,

“lugugem” e um desadôro de outras vozes dos gerais. Tinha vezes que eu

nem podia atinar se a palavra era nome de bicho vivente, plantinha ou coisa sem

corpo nem cor nem coragem, abstrato que se diz, não é? Ou é? Ou será?

Ainda por cima disso, você fez Riobaldo poeta, como Shakespeare fez

Macbeth poeta. Natural: por que um jagunço dos gerais demais do Urucuia não

poderá ser poeta? Pode sim. Riobaldo é você se você fosse jagunço. A sua invenção

é essa: pôr o jagunço poeta inventando dentro da linguagem habitual dele. O

vocabulário dele já é riquíssimo, dá a impressão que não ficou de fora nenhuma

dicção de seus pagos e arredores; aumentado com os neologismos, sempre de boa

formação linguística, ficou um potosi, nossa! A gente acaba tendo que entregar

os pontos, nem que seja um Gilberto Amado. O diabo é que depois de ler você a

gente começa a se sentir e cantar eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema, rema, ré.

Só que acho que não precisava contar de um rojão só, como o Joyce do

último capítulo de Ulysses, as 594 páginas da história de Riobaldo. Quantas horas

levaria? Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente.

E o caso de Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é

que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era

mulher. Honni soit qui mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como

você disfarçou bem! nunca que maldei nada.

Amigo meu J. Guimarães Rosa, mano-velho, o menino Guirigó e o cego

Borromeu são duas criações geniais. Aliás todo esse mundo de gente vive com

uma intensidade assombrosa. E o sertão? O sertão é uma espera enorme. E o silêncio?

O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio, põe no colo.

Tão deleitável tudo, nem que estar nos braços da linda moça Rosa’uarda,

ou de Nhorinhá, de Ana Dazuza filha, ou daquela prostitutriz que proseava gentil

sobre as sérias imoralidades. Ah Rosa, mano-velho, invejo é o que você sabe: “O

diabo não há! Existe é o homem humano.”

Soscrevo.

13/3/1957

9


Intervenção de Jaguar no quadro de Pedro Américo

Pasquim: 50 anos da prisão de uma

redação de craques

Por Rogério Marques - 17/11/2020

Você, jovem jornalista, que está neste momento numa dessas redações

silenciosas, bem comportadas, crachá pendurado no peito, olhos pregados na tela

do computador ou do celular, pare um pouco, um pouquinho só. Vamos voltar 50

anos no tempo. Seja bem-vindo a uma redação esporrenta, de muitas risadas, falatório,

altas doses de descontração.

Repare que alguns colegas, até mesmo o chefe, trabalham com um copo de

uísque ou uma cachacinha ao lado da máquina de escrever, contando histórias da

noite anterior nos bares famosos do Rio. Ali estão alguns dos maiores e mais criativos

jornalistas deste país trabalhando num jornal que fez história na imprensa

brasileira, o Pasquim. Um semanário que usava a irreverência, o humor, o deboche,

o escracho para cutucar todos aqueles que se levavam muito a sério – os grãfinos

de nariz em pé, políticos conservadores e o governo, embora na época isso

fosse extremamente arriscado.

E foi exatamente há 50 anos que tudo aconteceu. De repente, o medo tomou

conta daquela redação quando os principais (i)responsáveis pelo jornal começaram

a ser presos. Estávamos em 1970, final de outubro, início de novembro,

pior fase da ditadura militar brasileira, com a imprensa censurada, opositores presos,

torturados ou que simplesmente desapareciam para nunca mais voltar.

Lançado em junho de 1969, apenas seis meses depois da decretação do AI-

5 – uma ousadia inacreditável –, o Pasquim logo se tornou um fenômeno editorial.

Em pouco tempo chegou a vender 220 mil exemplares. O jornal foi criado por

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Tarso de Castro, Jaguar e Sérgio Cabral – o pai, é claro. Depois foram chegando

outros craques do texto, do desenho e da fotografia, como Claudius, Fortuna,

Millôr Fernandes, Carlos Prósperi, Luiz Carlos Maciel, Ivan Lessa, Paulo Garcez,

Ziraldo, Paulo Francis, Henfil, Miguel Paiva, Flávio Rangel, Redi, Caulos,

Sérgio Augusto e um monte de colaboradores da pesada.

Um dos pontos altos eram as entrevistas com os famosos da época (alguns,

do primeiro time da cultura), sempre regadas a cerveja, uísque, cachaça, que ajudavam

a descontrair o clima. Tudo muito diferente do que acontecia nos jornalões

engravatados. Ficou famosa, entre tantas, a entrevista com a atriz Leila Diniz,

na edição número 22, um verdadeiro arraso. Há 50 anos, a bela fez revelações

chocantes, e pontuava os casos com um monte de palavrões, prudentemente

substituídos por asteriscos. Resultado, uma tiragem de 117 mil exemplares.

O pasquim na música de Roberto e Erasmo

Em pouco tempo o Pasquim era sucesso até nas paradas musicais. Em 1970

a dupla Roberto-Erasmo Carlos lançou Coqueiro Verde, em que o “Tremendão”

faz referência à Narinha, com quem era casado, e ao “meu Pasquim”:

Em frente ao coqueiro verde

esperei uma eternidade,

já fumei um cigarro e meio e Narinha não veio.

Como diz Leila Diniz,

homem tem que ser durão,

se ela não chegar agora não precisa chegar,

pois eu vou me embora,

vou ler meu Pasquim,

se ela chega e não me vê,

sai correndo atrás de mim.

A música, tocada diariamente nas rádios, acabou sendo o fundo musical do

momento mais difícil da história do jornal, justamente numa fase financeiramente

boa. As tiragens cada vez maiores atraíram anunciantes de peso, muito dinheiro

e também muitos problemas com o governo militar, comandado pelo ditador

Emilio Garrastazu Médici.

O Pasquim era submetido à censura prévia, teve algumas edições apreendidas

e a pressão só aumentava. No mesmo ano de 1970, um grupo da extremadireita

botou, de madrugada, uma bomba com alto poder de destruição na sede do

jornal, um sobrado na Rua Clarice Índio do Brasil, em Botafogo, no Rio. Cinco

quilos de dinamite! Por sorte, devido a um defeito no dispositivo detonador, a

bomba não explodiu e foi desativada por peritos da polícia. Um deles disse que

em caso de explosão a casa inteira teria ido pelos ares, matando o caseiro e sua

mulher, que moravam lá.

Da redação para a Vila Militar

Foi no fim deste turbulento ano de 1970 que aconteceram as prisões de

quase toda a redação. O primeiro a cair nas mãos da repressão foi Paulo Francis.

Quem conta é Haroldo Zager, em um texto disponível no site BN Digital, da Bi-

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blioteca Nacional. Na época Haroldo, chamado pela equipe de Haroldinho, tinha

17 anos e era arte-finalista do semanário:

“A rotina na noite de fechamento de cada edição do jornal, quando fazíamos

a montagem das páginas que iriam ser impressas, era sempre a mesma. Ficávamos

até meia-noite nesse preparo, com um intervalo para comer alguma coisa

no boteco da Rua Marquês de Abrantes, esquina com a Rua Clarice Índio do

Brasil, sempre por volta de 22h. Naquela terça-feira, final de outubro de 1970, no

fechamento da edição nº 72, não foi diferente. Na redação só tinha o pessoal da

chamada cozinha do jornal. Fomos eu, arte-finalista; Alcino, secretário gráfico;

Waltinho, arte-finalista de anúncios; Calazans, motorista, para o lanche habitual

antes de finalizar as páginas e levá-las para a gráfica.

Na volta do boteco, o segurança, contratado após o atentado, abriu o portão

e, ao entrarmos, fomos rendidos. Eram seis homens armados com revólveres

e fuzis, à paisana. Estavam ali para levar todos os redatores. O Alcino, responsável

naquela hora, explicou que não tinha mais nenhum redator, coisa e tal.

– Cadê o Paulo Francis? Queremos ele primeiro – vociferou o que parecia

chefe do grupo, brandindo um revólver enorme.

– O Francis quase não vem aqui – respondeu o titubeante Alcino.

– Não interessa. Liga para ele vir – apontando o telefone –, inventa qualquer

coisa.

Pobre Alcino, ligar logo para quem? E liga e inventa, sob mira de revólver:

– Perdemos sua matéria, você pode trazer pra gente?

Francis soltou vários impropérios. Se quisessem, que fossem pegar. Sobrou

para quem? Haroldo. Dois deles pegaram o carro do jornal e foram comigo

para a Rua Barão da Torre, em Ipanema, no apartamento de dois quartos do

Francis. Subimos os três. Cada um deles se postou de cada lado da porta para não

serem vistos pelo olho mágico. Toquei a campainha. Abre a porta um Paulo

Francis transtornado, de pijama, já com o pau na mão para me dar uma mijada.

– Porra, Haroldinho, que merda é essa?

E os dois passam na minha frente:

– O senhor precisa vir conosco!

– Vocês podem esperar eu trocar de roupa e fazer uma malinha, por favor?

– disse, tranquilo, escolado por várias detenções anteriores.”

Destino: Vila Militar

Nos dias seguintes, as prisões continuaram: Ziraldo, o fotógrafo Paulo

Garcez, o cartunista Fortuna, José Grossi (diretor de publicidade), Flávio Rangel,

Luiz Carlos Maciel, Jaguar, Sérgio Cabral, Tarso de Castro. Todos levados para

um quartel do Exército na Vila Militar, Zona Oeste do Rio.

Haroldo e seus companheiros presos no fechamento do jornal foram libertados

depois de dois ou três dias. Os milicos queriam mesmo os cabeças. E que

cabeças incríveis eram aquelas! Grandes articulistas, cartunistas geniais. Só não

foram presos Millôr Fernandes e o cartunista Henfil, porque não foram encontrados

pela polícia. A secretária de redação Martha Alencar chegou a ser detida,

mas foi liberada no dia seguinte. Estava grávida. E foi graças ao esforço de Mar-

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tha, Millôr, Fortuna e de uma grande equipe de colaboradores solidários que o

jornal continuou circulando, durante os dois meses em que a equipe esteve presa.

Os militares, se quisessem, poderiam impedir que o Pasquim continuasse

circulando. Mas a popularidade do jornal era tamanha que eles decidiram não

passar recibo. Preferiram sufocar o jornal aos poucos, com censura rigorosa para

diminuir a tiragem e afastar anunciantes.

“A gripe” pegou todo mundo

Como a imprensa estava sob rigorosa censura, as prisões não puderam ser

noticiadas. Por isso, o sumiço repentino da turma ficou conhecido, entre os amigos,

como “a gripe”. Haroldo conta que foi Chico Buarque que criou essa expressão,

em carta que foi publicada no jornal: “Eu queria abraçar vocês, mas não tinha

ninguém aqui. Deve ser por causa da gripe. Ninguém segura essa gripe. Assim

mesmo, estimo melhoras”.

– Os principais articulistas e humoristas no xilindró. Redação desbaratada.

E aconteceu a maior mobilização de solidariedade de intelectuais já vista. Antonio

Callado, Rubem Braga, Rubem Fonseca, Glauber Rocha, Hugo Carvana,

Paulo Mendes Campos, Carlos Heitor Cony, Noel Nutels e muitos outros, cortesmente,

muniram o jornal com suas colaborações durante os dois meses de prisão.

A pièce de résistance nesse momento foi Martha Alencar, chefe de redação,

que mobilizou toda a turma.

Mocotó indigesto

Parece que tudo estava escrito para dar errado naquele ano de 1970. Jaguar,

que não tinha sido preso nos primeiros dias, por estar fora do Rio, fez uma

montagem com o quadro Independência ou morte, de Pedro Américo, no Pasquim

número 71, da semana anterior. Ele substituiu o famoso brado da versão

oficial por “Eu quero mocotó”, em um balãozinho que saía da boca de D. Pedro

I. A frase foi extraída de uma música de Jorge Ben, que ainda não era Benjor. Na

época, mocotó era uma gíria para pernas femininas bonitas.

A música já tinha dado problema dias antes das prisões, no V Festival Internacional

da Canção, no Maracanãzinho. Ela foi cantada pelo maestro Erlon

Chaves, com uma coreografia em que ele, negro, beijava algumas jovens louras

com roupas colantes, cor da pele. Isso há 50 anos, tempo de muito mais racismo

e conservadorismo do que atualmente. A mídia conservadora caiu de pau. O maestro

teve que depor na Polícia Federal e ficou 30 dias proibido de trabalhar.

Nesse clima, a charge-montagem do Jaguar enfureceu ainda mais os militares,

que já estavam com o Pasquim na alça de mira desde sua criação, no ano anterior.

Em entrevista ao Jornal da ABI de maio de 2009 Jaguar conta que ao saber

que estava sendo procurado pela polícia em princípio pensou em não se entregar:

– Eu tava viajando, na minha casa de pescador lá em Arraial do Cabo.

Quando voltei, me aconselharam. “Se esconda Jaguar, tá todo mundo preso!”.

Pra você ver como o Brasil é surrealista, eu fiquei na casa do sujeito que era um

dos mais reacionários: Flávio Cavalcanti. Ele me escondeu! Ninguém iria procurar

um “subversivo” na casa do Flávio Cavalcanti! (risos) E tinha uma outra subversiva

comigo, que era uma maravilha de companhia, a Leila Diniz. Eu ficava o

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dia todo tomando uísque. Até que um dia, não sei como, eu recebo uma ligação

do Paulo Francis, lá da cadeia. Ele dizia que eu tinha que me entregar pois, caso

contrário, ninguém seria solto. Eu me entregando, todo mundo sairia… Aí, eu

falei: “Ô Francis, porra! Tá maluco, rapaz? Eu vou ficar preso e vocês também

vão continuar aí!”. E ele falou assim: “A sua consciência é que responde isso”.

Fudeu, né? Pensei. “E agora?”. O Sérgio Cabral também tava escondido. E

eu perguntei: “Sérgio, o que você acha?”. “Vamos lá”, respondeu. E o Flávio

Rangel, que não estava sendo procurado por nada, gritou: “Eu também vou!”.

(risos) O lugar era lá na Vila Militar, na Zona Oeste, longe pra cacete! E eu ainda

tive que pagar o táxi! Chegando na porta da Vila Militar eu mandei o táxi parar.

E o Sérgio Cabral, pra mim: “O que foi, mudou de ideia?”. “Não, mas vamos pro

boteco mais próximo!”. Tomei meia garrafa de cachaça, depois voltei e me entreguei.

Cheguei e pedi para falar com um oficial. “Eu sou o Jaguar, estou sendo

procurado…”. “Ah, é? Prendam esse cara aí!”. E lá fiquei por dois meses.

Tenente impede sequestro da equipe

Jaguar lembra que durante a temporada da equipe na prisão aconteceu um

episódio que poderia ter graves consequências. Um comando de militares de extrema-direita,

do quartel da Polícia do Exército, na rua Barão de Mesquita, onde

muitos opositores da ditadura foram torturados, tentou sequestrar os jornalistas

do Pasquim. O grupo foi impedido por um tenente.

– A Polícia do Exército, ali do batalhão da Tijuca, resolveu sequestrar a

gente. Aí, sim! A gente ia se fuder, né? Os caras entraram na Vila Militar pra levar

a gente na mão grande. Eles, sei lá, achavam que a gente tava levando uma

vida muito mansa, e quiseram dar uma ‘dura’ na gente. E o Tenente Macieira

pegou a metralhadora e disse: “Se derem um passo, eu atiro!”. Só aí é que os caras

foram embora. Nossa sorte era que o Tenente Macieira era um soldado mesmo,

ou seja, ele atiraria pra valer. E aí os caras desistiram.

No fim de dezembro de 1970 quase toda a equipe do Pasquim foi libertada.

Apenas Tarso de Castro continuou preso, até janeiro de 71, mais um ano dificílimo

para o jornal, lembra Haroldo Zager.

– Foi o ano do revés. Tiragens caindo assustadoramente – os jornaleiros

se recusavam a vender o jornal, com medo de terem suas bancas incendiadas. Os

leitores não tinham coragem de levar o Pasquim na mão – quando muito, compravam

e escondiam dentro de outra publicação qualquer. Grandes anunciantes

cancelando contratos, com receio de retaliação do regime militar. Ninguém queria

se arriscar.

A situação financeira do jornal foi ficando cada vez mais difícil. Salários

atrasados, a gráfica cobrando faturas. O clima azedou. Haroldo, que mais tarde se

tornou editor do Pasquim, conta que os colegas, até ontem “amigos de infância”,

começaram a se estranhar. Tentavam, inutilmente, encontrar culpados para os

problemas financeiros do semanário que fez história na imprensa brasileira.

Democracia é por aí – “Paulo Freire não era contra quem fosse contra ele,

mas contra regimes que não permitiam que alguém fosse contra ele. Em

suma, Paulo Freire era um democrata.” – Mário Sérgio Cortella

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Dois filmes sobre a Ucrânia

O cinema foi inventado em Paris, em 1895, pelos irmãos Lumière. Dois

anos antes, porém, já existia um dispositivo semelhante na Ucrânia e um fotógrafo

filmou documentários em Odessa, cidade que se tornaria iconográfica para os

cinéfilos, por meio do filme Encouraçado Potemkin, de Sergei Eisenstein (1925).

Logo, começaram a surgir nomes de peso na Ucrânia e, em 1918, a instalação

de um estúdio bem aparelhado em Kiev. Em 1922, o país passou a integrar

a União Soviética, de cuja cinematografia o ucraniano Aleksandr Dovjenko foi

um dos mais celebrados. Entre outras, ele criou o "cinema poético", uma tentativa

de se opor aos cânones ditados pelo regime de Stalin, sempre exigindo temas

“realistas”, ou seja, propaganda do regime, como acontece em todas as ditaduras.

Apesar das imposições, os ditos cineastas, mais Vsevolod Pudovkin, Dziga

Vertov e outros alçaram o cinema russoviético (também o pessoal do teatro,

literatura, música, dança, artes plásticas) aos níveis mais elevados que se pode

desejar. O mesmo aconteceu na Alemanha, duas grandes culturas sufocadas, respectivamente,

por Stalin e Hitler, sendo que a Rússia passou mais 46 anos sob

ditadura e tem um presidente há 23 no poder. Isso emperra o avanço da cultura.

E retornemos à Ucrânia. História descontínua, ao longo dos séculos, a

maior parte do tempo sob ocupação estrangeira. Entre 1917-21, foi independente,

mas dominada de novo pela Rússia (até 1991), que agora ameaça repetir a dose.

País muito fértil para a agricultura e para a corrupção, que nem o nosso. Em

1929, Dovjenko filmou lá, produzido pela URSS, O arsenal, sobre o levante dos

operários de uma fábrica de armamentos (1921), promovido pelos veteranos bolcheviques

da 1ª Guerra Mundial contra o governo burguês de Kiev, por uma

Ucrânia soviética. Filme muito elogiado pelo “olho de Dovjenko para os absurdos

do tempo de guerra (por exemplo, um ataque a uma trincheira vazia), o que

antecipa sentimentos pacifistas em filmes de Jean Renoir e Stanley Kubrick”.

Produzido pela própria Ucrânia, em 1991, vi agora Fome 33, de Oles Yanchuk,

que conta a tragédia da Grande Fome de 1932-33, resultante da política de

confisco de Stalin. Confisco de bens, comida, até crianças dos camponeses que se

recusaram a trabalhar feito escravos em fazendas coletivas. Estas foram criadas

para exportar a produção e desenvolver a indústria, e a recusa dos nativos resultou

numa espécie de holocausto em que morreram 3 milhões e 900 mil pessoas

(dados oficiais, alguns falam em dez milhões). Tudo mantido em segredo pelos

dois governos até 1990, quando a União Soviética já estava pedindo penico.

Conheço gente que defende a Rússia invadir a Ucrânia, alegando que, recentemente,

os Estados Unidos invadiram vários países e ninguém ligou. Certo,

mas, só porque o inimigo faz, não é justificativa para o outro fazer. E o histórico

da Rússia também não é nada recomendável, basta lembrar a fome ucraniana citada

acima, sem esquecer os vários expurgos naquela mesma década, eliminando

pessoas aos milhões, até por razões étnicas. Os esquerdistas fanáticos fingem

ignorar todas aquelas barbaridades, mesmo fatos mais recentes, como os soviéticos

terem invadido o Afeganistão primeiro, em 1979, e foi tão difícil sair de lá

quanto os americanos do Vietnam. Daí, me considero um esquerdista independente,

até por não compactuar com governos capazes de falsificar a história.

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Clayton Pettet, estudante de arte em

Londres, decidiu perder a virgindade

anal durante performance para 120 especadores,

em 2014. Na verdade, uma

simulação em que um encapuzado u-

tilizou uma banana, sem penetração.

Em revolta, o público emporcalhou o

ambiente até com Modess usado. E

Clayton desabafou: “Eles não queriam

uma obra de arte, mas me ver fazendo

sexo. Seja lá o que está deixando as

pessoas tão putas, excitadas ou confusas,

isso está trazendo emoção para a

arte. Que é algo que perdemos”. E diz

não ter interesse em sexo, só na arte.

• • •

E agora, José? – Lembro que o censo de 1980 revelou que “José”

perdeu a liderança como o nome de homem mais popular no Brasil. Antes,

era tanto Zé que inspirou o baião Como tem Zé na Paraíba, de Catulo de

Paula, que pode ser ouvido na net, com Jackson do Pandeiro. Vale a pena.

Tanto Zé desse jeito é um estrago,

eu só sei que tem Zé de dar com o pé,

faz lembrar a gagueira de um gago

que aqui se danou a dizer Zé.

Num forró que eu fui em Cajazeira

o cacete cantou e fez banzé,

pois um bebo ‘no mei’ da bebedeira

falou mal e xingou a mãe dum Zé.

Como tem Zé na Paraíba

Vige, como tem Zé,

Zé de baixo, Zé de riba,

desconjuro com tanto Zé,

como tem Zé lá na Paraíba.

Lá na feira é só Zé que faz fervura,

tem mais Zé do que coco catolé,

só de Zé tem uns cem na prefeitura,

outros cem no comércio tem de Zé.

Como tinha só Zé nesse zunzum,

houve logo tamanho rapapé,

mãe de Zé era a mãe de cada um,

no salão brigou tudo que era Zé.

É Zé João, Zé Pilão e Zé Maleta,

Zé Negão, Zé da Cota, Zé Quelé,

todo mundo tem uma receita:

quando quer ter um filho, só tem Zé.

E com essa franqueza que eu uso,

eu repito e se zangue quem quiser,

tanto Zé desse jeito é um abuso,

mas o diabo é que eu me chamo Zé.

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