Chicos 68 - 08.04.2022
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Nº 68
08 de abril de 2022
Literatura e ideias em
Cataguases – MG
Um dedo de prosa
Esta é a nossa edição 68
Chicos é uma publicação que circula apenas pelos meios
digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te
enviar nossas edições ou visite-nos nos links listados no
canto inferior desta página.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,
uma diversidade temática.
Neste número de início de outono, apesar da Covid 19
continuar rondando por aí, seguimos em frente. Comemora-se
o centenário da Semana 22. Nós decidimos
render homenagens ao histórico evento, trazendo como
Poeta da primeira página, Luís Aranha o poeta futurista
de 22.
Na nossa edição 62 o poeta Álvaro Alves de Faria nos
trouxe em “Lygia Fagundes Telles, a dignidade da palavra”
um ótimo texto sobre a escritora.
Desejamos uma boa leitura para todos!
E até o início do inverno.
Os Chicos
Capa: Foto - Vicente Costa
Arte - Vincent Mengeot, nasceu em Uccle -
Bruxelas - Bélgica, mora num sítio em Itamarati
de Minas MG - Técnica OST
Editores:
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores:
Gabriel Franco
Vicente Costa
José Vecchi de Carvalho
Lygia Fagundes Telles em retrato de 1949
Foto de Chico Albuquerque Acervo Instituto Moreira Salles
Esta edição é dedicada a Lygia Fagundes Telles
19.04.1923 — 03.04.2022
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
https://independent.academia.edu/ChicosCataletras
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras
01
Chicos
ÍNDICE
03 Poeta da primeira página - Luís Aranha
20 Do alto da Urca, conjuro + 3 poemas Bruna Martins
26 O cavalo transbordante Ruriko Mizuno
28 Poética Paschoal Motta
30 Reencontrar o amor + 1 poema Amosse Mucavele
33 A jogada Flausina Márcia
35 Eram mais felizes.... Luiz Ruffato
36 A noite é... Adília César
37 O sono dos justo + 2 poemas Jeová Santana
4 1 Hoje não tem sexta-feira Helen Massote
42 Claro enigma + 1 poema Ronaldo Cagiano
44 Proemio Arturo Herrera
45 We are the losers Emerson Teixeira Cardoso
47 a Água Fernando Abritta
48 Poemas visuais Tadeu Costa
50 O conselheiro silencioso José Antonio Pereira
52 Paradas breves Ieda Estergilda de Abreu
53 As provas Jacques Stemberg
54 Antielegia para um ocaso José Vecchi de Carvalho
56 Panambi Raquel Naveira
57 Embora não pareça, hoje é terça de Carnaval José Antonio Pereira
59 Tchaikóviski: uma vida e muitos segredos Vera Lúcia de Oliveira
62 Um livro por amor a Clarice Lispector Adelto Gonçalves
67 Poesia de muitas faces Paulo Lima
69 O antilirismo lírico de Lopito Feijóo Paulo Martins
76 O livro do Acir Emerson Teixeira Cardoso
78 Dois filmes sobre a Ucrânia Antônio Jaime Soares
80 Lendo os clássicos Luiz Ruffato
82 Clips
02
Poeta da primeira página: Luís Aranha
Chicos
Luis Aranha, sentado ao centro atrás de
Oswald de Andrade ao chão
Luis Aranha Pereira nasceu em São Paulo
em 1901 e faleceu no Rio de Janeiro RJ em
1987. Após concluir o ginásio no Colégio dos
Irmãos Maristas, por um breve período trabalhou
na Drogaria Bráulio, em 1919. Um ano depois
conhece Mário de Andrade através de seus irmãos
mais velhos, moravam próximos. Passa a
frequentar a casa da Rua Lopes Chaves e apresenta
a ele poemas que mostram inovação em
relação ao ambiente literário reinante da época.
Participa das reuniões às terças feiras, ligando-se
consequentemente aos organizadores da Semana
de Arte Moderna. Em 1921, Oswald de Andrade
publica o artigo O meu poeta futurista. Participa
da Semana de Arte Moderna, em fevereiro de
1922, colabora na Revista Klaxon até o último
número desta, publicando os poemas Aeroplano,
Pauliceia desvairada, Crepúsculo e Projetos. Ingressa
no curso de direito na Faculdade do Largo
São Francisco, concluído em 1926. Segundo
alguns estudiosos, sai da cena literária contemporânea
como quem foge de um mal, reproduzindo
de certa maneira a sua mudez diante das
vaias da plateia do Teatro Municipal de São Paulo
em 22. Aprovado em concurso, ingressa no
Itamarati, onde exerce diversos cargos. A partir
de 1934, reside em vários países por causa da
carreira diplomática, que encerra como embaixador
no Ceilão (atual Sri Lanka), ao se aposentar
por idade.
Ao sair muito cedo da cena literária e a
permanência por mais de cinquenta anos de seus
poemas inéditos e esparsos, deixou o autor e sua
obra apartados da história literária. Nem o lançamento
do livro Cocktails em 1984, por iniciativa
do poeta Nelson Ascher, com base nos poemas
publicados na Klaxon e nos que integram um
datiloscrito entregue por Luis Aranha a Mário de
Andrade na década de 1920, parece ter despertado
a atenção de críticos e historiadores da literatura,
mesmo que algumas resenhas tenham
destacado a reunião de seus poemas. Destaca-se
o esforço de José Lino Grünewald ao escrever,
nas décadas de 1960 e 1970, dois artigos muito
elogiosos que sugeriam o lugar de precursor em
seus versos quanto ao contexto modernista do
início dos anos 1920. Os artigos intitulam-se Um
poeta esquecido e Um marco esquecido: Luís
Aranha, publicados no Correio da Manhã a 24
03
Chicos
de março de 1962 e a 27 de fevereiro de 1972,
respectivamente. Grünewald aponta o caráter de
épica da civilização urbano-industrial - uma épica
que não se prende ao nacionalismo defendido
por muitos modernistas.
Como é extremante relevante as considerações
de Mário de Andrade a respeito da poesia
de Luís Aranha no ensaio Luís Aranha ou a poesia
preparatória, escrito para a Revista Nova, em
1932, e depois incluído em Aspectos da literatura
brasileira, de 1943.
Em 2009, com seleção e prólogo de Juan
Bonilla, publica-se em Málaga na Espanha, Aviones
Plateados 15 Poetas Futuristas Hispanoamericanos.
Uma antologia da poesia ligada ao
Futurismo em escala ibero-americana. Luis Aranha
é o único poeta brasileiro incluído (p. 259-
281) com os poemas: Poema Pitágoras, Cocktail,
Telegrama, Poema pneumático, O aeroplano,
Pauliceia Desvairada, Crepúsculo e Projetos
A produção poética de Luis Aranha, embora
pequena, traduz intensamente o espírito da
primeira fase do modernismo brasileiro. Dos
seus 26 poemas conhecidos, alguns ainda trazem
traços de uma poética tradicional nas rimas
e no tratamento dos temas, mas a maioria se
serve da subversão sintática, da montagem, da
simultaneidade, de recursos da propaganda e do
cinema em versos livres e brancos para falar sobre
elementos da vida moderna, como a eletricidade,
o telegrama e o automóvel.
Chama atenção dos críticos seus três poemas
longos. Em Drogaria de éter e de sombra,
que evoca sua experiência como balconista de
farmácia, o éter na atmosfera leva o eu-lírico a
delírios quixotescos, que faz os objetos do local
parecerem inicialmente os de uma novela de cavalaria;
mostra-se aí um dos recursos mais explorados
pelo poeta, a associação de imagens,
que aproxima preocupações comerciais, amorosas,
informações geográficas e científicas. No
Poema Pitágoras, as associações envolvem a astronomia
e a geometria, revelando o desejo pueril
de tornar palpáveis os objetos de estudo, como
no trecho: “Enrolando-o na fieira da Via
Láctea/ Joguei o pião da Terra". Imagem semelhante
se encontra no Poema Giratório, em que
a febre provocada por escarlatina (doença que
acometeu Aranha na infância) é o fator de rotação
dos pensamentos e do globo terrestre, que
se eletriza, em estado convulsivo, expressando o
desejo do menino acamado de "viajar por todo o
mundo".
04
Chicos
Edição francesa publicada em 2010
pela La Nerthe Librairie
Tradução: Antoine Chareyre
Sinopse; Luis Aranha (1901-1987) foi um
poeta brasileiro precoce e de carreira meteórica.
Começa, de fato, a publicar em 1922 e
cessará toda a atividade literária a partir de 1924
para estudar Direito antes de iniciar a carreira
diplomática. Ele foi imediatamente recebido por
Sérgio Millier (que o traduziu para o francês) e
Mário de Andrade. Participou da famosa Semana
de Arte Moderna em fevereiro de 1922 no
Teatro Municipal de São Paulo, sessão inaugural
da modernidade brasileira.
Presente também na recepção ao Cendrars,
durante este curto período de atividade
literária, publicará apenas em revistas, em particular
na emblemática Klaxon. Poeta audacioso,
voluntariamente provocativo e hiperbólico, que
o coloca na história ao lado de outros jovens
agitados poetas europeus (sejam futuristas, dadaístas
ou surrealistas) que também cessaram
toda atividade poética por motivos trágicos na
maioria das vezes.
Luis Aranha simplesmente desaparece,
sem ser esquecido pelos amigos. Mário de Andrade
dedicou-lhe um estudo em 1932. Só em
1984 é que os seus poemas são recolhidos por
Nelson Ascher e Rui Moreira Leite.
Esta antologia ocupa a maior parte dos
poemas de Luis Aranha e os estudos que lhe são
dedicados por Sérgio Millier e Mário de Andrade.
Edição espanhola publicada em 2012
Pela La Isla de Siltolá
Tradução: Marie-Christine del Castillo
Descrição da edição: “Os poemas deste
volume foram escritos há sessenta anos por um
rapaz de vinte anos, e nunca foram reunidos em
livro, embora tenham atraído a atenção de Mário
de Andrade, Manuel Bandeira e Sérgio Milliet,”
Nelson Ascher e Rui Moreira Leite escreveu em
1984, editores da primeira edição de
Cocktails. O primeiro também dizia: “Aranha foi
o único pioneiro que não se tornou modernista:
ele nasceu modernista”.
E, de fato, o modernismo brasileiro, ou
seja, a vanguarda brasileira, atinge um de seus
ápices nos poemas de Aranha. O impacto da industrialização
na sociedade, na ciência e no cinema
são alguns de seus temas favoritos, atacados
com um verso rápido, frenético, enérgico e
futurista. Cocktails reúne os 26 poemas escritos
por Luís Aranha, aquele rapaz educado que ambicionava
electrificar o globo, assaltar todos os
bancos do mundo ou abrir um antro de ópio na
China e que acabou por abandonar a poesia.
Com prólogo de Juan Manuel Bonet, que
coloca Aranha na paisagem hipnótica de São
Paulo dos anos 20, tradução e notas de Marie-
Christine del Castillo e capa desenhada pelo próprio
autor, La Isla de Siltolá oferece
“Coquetéis”, pela primeira vez, ao leitor espanhol.
Fontes:
Luís Aranha: a química e a crise - Eduardo
Coelho - Rev. Diadorim, Rio de Janeiro 2012
www.algumapoesia.com.br
www.enciclopedia.itaucultural.org.br
www.pt.wikipedia.org
05
Chicos
Poema Pitágoras
Luís Aranha
Depois de um quadro
Uma escultura
Depois de uma escultura
Um quadro
Antianatômico
Risco de vida numa tela morta
Extravagante
Quisera ser pintor!
Tenho em minha gaveta esboços de navios
Só consegui marinhas
Somos os primitivos de uma era nova
Egito arte sintética
Movimento
Exagero de linhas
Baixos relevos de Tebas e de Mênfis
Ir ao Egito
Como Pitágoras
Filósofo e geômetra
Astrônomo
Talvez achasse o teorema das hipotenusas e a tabela da multiplicação
Não lembro mais
Preciso ir à escola
O céu é um grande quadro-negro
Para crianças e para poetas
06
Chicos
Circunferência
O círculo da lua
De Vênus traço a ela uma tangente luminosa que vai tocar algum
planeta ignorado
Uma linha reta
Depois uma perpendicular
E outra reta
Uma secante
Um setor
Um segmento
Como a Terra que é redonda e a lua circunferência há de haver planetas
poliedros planetas cônicos planetas ovoides
Correndo em paralelas não se encontram nunca
Trapézios de fogo
Astros descrevem no céu círculos elipses e parábolas
Os redondos encontram-se uns aos outros e giram como rodas
dentadas de máquinas
Sou o centro
Ao redor de mim giram as estrelas e volteiam os celestes
Todos os mundos são balões de borracha coloridos que tenho presos
por cordéis em minhas mãos
Tenho em minhas mãos o sistema planetário
E como as estrelas cadentes mudo de lugar frequentemente
A lua por auréola
Estou crucificado no Cruzeiro
No coração
O amor universal
07
Chicos
Glóbulos de fogo
Há astros tetraedros hexaedros octaedros dodecaedros e icosaedros
Alguns globos de vidro fosco com luzes dentro
Há também cilindros
Os cônicos unem as pontas girando ao redor do eixo comum em
sentido contrário
Prismas truncados prismas oblíquos e paralelepípedos luminosos
Os corpos celestes são imensos cristais de rocha coloridos girando em
todos os sentidos
A cabeleira de Berenice não é uma cabeleira
O Centauro não é centauro nem o Caranguejo caranguejo
Música colorida ressoando nos meus ouvidos de poeta
Orquestra fantástica
Timbales
Os címbalos da lua
Rufa as castanholas das estrelas!
Elas giram sempre
Furiosamente
Não há estrelas fixas
Os fusos fiam
A abóbada celeste é o barracão de zinco de uma fábrica imensa
E a lã das nuvens passa na engrenagem
Trepidações
Meu cérebro e coração pilhas elétricas
Arcos voltaicos
Estalos
Combinações de idéias e reações de sentimentos
O céu é uma vasta sala de química com retortas cadinhos tubos
provetas e todos os
Vasos necessários
08
Chicos
Quem me quitaria de acreditar que os astros são balões de vidros
Cheios de gases leves que fugiram pelas janelas dos laboratórios
Todos os químicos são idiotas
Não descobriram nem o elixir da longa vida nem a pedra filosofal
Só os pirotécnicos são inteligentes
São mais inteligentes do que os poetas pois encheram o céu de
planetas novos
Multicores
Astros arrebentam como granadas
Os núcleos caem
Outros sobem da terra e têm uma vida efêmera
Asteróides asteriscos,
Rojões de lágrimas
Cometas se desfazem
Fim da existência
Outros encontram como demônios da idade média e feiticeiras de
Sabbath
Fogos de antimônio fogos de Bengala
Eu também me desfarei em lágrimas coloridas no meu dia final
Meu coração vagará pelo céu estrela cadente ou bólido
Estrela inteligente estrela averroísta
Vertiginosamente
Enrolando-o na fileira da Via-Láctea
Joguei o pião da Terra
E ele ronca
O movimento perpétuo
Vejo tudo
Faixas de cores
Mares
Montanhas
Florestas
09
Chicos
Numa velocidade prodigiosa
Todas as cores sobrepostas
Estou só
Tiritante
De pé sobre a crosta resfriada
Não há mais vegetação
Nem animais
Como os antigos creio que a Terra é o centro
A Terra é uma grande esponja que se embebe das tristezas do universo
Meu coração é uma esponja que absorve toda a tristeza da Terra
Bolhas de sabão!
Os telescópios apontam o céu
Canhões gigantes
De perto
Vejo a lua
Acidentes da crosta resfriada
O anel de Anaxágoras
O anel de Pitágoras
Vulcões extintos
Perto dela
Uma pirâmide fosforescente
Pirâmide do Egito que subiu ao céu
Hoje está incluída no sistema planetário
Luminosa
Com a rota determinada por todos os observatórios
Subiu quando a biblioteca de Alexandria era uma fogueira iluminando
o mundo
10
Chicos
Os crânios antigos estalam nos pergaminhos que se queimam
Pitágoras a viu ainda em terra
Viajou no Egito
Viu o rio Nilo os crocodilos os papiros e as embarcações de sândalo
Viu a esfinge os obeliscos a sala de Karnak e o boi Apis
Viu a lua dentro do tanque onde estava o rei Amenemat
Mas não viu a biblioteca de Alexandria nem as galeras de Cleopatra
nem a dominação dos ingleses
Maspero acha múmias
E eu não vejo mais nada
As nuvens apagaram minha geometria celeste
No quadro negro
Não vejo mais a sua nem minha pirotécnica planetária
Uma grande pálpebra azul treme no céu e pisca
Corisco arisco risca no céu
o barômetro anuncia chuva
Todos os observatórios se comunicam pela telegrafia sem fio
Nem penso mais porque a escuridão da noite tempestuosa penetra em
mim
Não posso matematizar o universo como os pitagóricos
Estou só
Tenho frio
Não posso escrever os versos áureos de Pitágoras!...
11
Chicos
DROGARIA
SOCIEDADE ANÔNIMA
Produtos Químicos e Farmacêuticos
Especialidades em artigos para toilette
Perfumarias Finas
Aparelhos e objetos de cirurgia
Importação direta
Atacado e Varejo
Preços módicos
Informações gratuitas
As contas são liquidáveis invariavelmente
no fim de cada mês
Vende-se
Livro de Ouro do Veterinário
Manual do Farmacêutico
Formulário de Chernoviz
Tratado de Versificação
Eu era poeta...
Mas o prestígio burguês dessa tabuleta
Explodiu na minha alma como uma granada.
Resolvi um dia,
Incômodo mensal das musas,
Ir trabalhar numa drogaria
E executei meu projeto.
(trecho inicial do poema “Drogaria de éter e de sombra”)
12
Chicos
Poema elétrico
Querida
Quando estamos juntos
Vem do teu corpo para o meu um jato de desejo
Que o corre como eletricidade...
Meu corpo é o polo positivo que pede
Teu corpo é o polo negativo que recusa...
Se um dia eles se unissem
A corrente se estabeleceria
E nas fagulhas desprendidas
Eu queimaria todo o prazer do homem que espera...
(trecho do poema “Drogaria de éter e de sombra”)
13
Chicos
Drogaria
Injeções hipodérmicas contra a estética atrasada
Vacina contra a nova...
Laboratório químico
Cadinhos retortas balões vidros copos termômetros tubos
Vasos e alambiques
Grande fábrica de produtos químicos sobre o rio Tietê
Grandes conduções de água com reservatórios e tanques especiais
Pontes que se fecham e se abrem
Elevadores e chaminés
Volantes roldanas caldeiras carretilhas
Vagonetes turbinas canos máquinas e aparelhos elétricos
Chave especial de uma estrada de ferro
Trens internos para uso exclusivo da indústria
Os fios telefônicos e elétricos são uma rede sobre a fábrica...
O mundo é estreito para minha instalação industrial!...
(trecho do poema “Drogaria de éter e de sombra”)
14
Chicos
Pauliceia desvairada
Convulsões telúricas
Estésia
Fendas
Mário de Andrade escreve Paulicéia
Nem o siasmógafo de Pachwitz mede os tremores do teu coração
Ebulição
Sarcasmo
Ódio vulcânico
Tua piedade
Escreveste com um raio de sol
No Brasil
Aurora de arte século XX
Como na pintura Anna Malfatti que pintou o teu retrato
Catodografia
Um momento de tua vida estampado no teu livro
Roentgem
Raios X
Mas há todos os brilhos
Ar rarefeito de poesia
Kilômetrops quadrados 9 milhões
Tubo de Crookes
Os raios catódicos de teu lirismo colorem as materialidades incolores
Aquecimento
Todas as distensões e todas as liberdades
Sinto a vida cantar em mim uma alvorada de metal
O meu corpo é um clarim
Muita luz
Muito ouro
Muito rubro
Meu sangue
Eu sou a tinta que colore a tarde!
15
Chicos
O Túnel
To think the thought of death
merged in thought of materials.
Walt Whitman - Leaves of Grass
O luar cai de leve pelo chão,
Pela estrada e nos flancos da montanha
Como algodão...
Sobre os dormentes do seu leito
A linha férrea vai ao infinito...
O trem que ulula e gesticula
Passa iluminado,
Agitando no ar a sua bandeira de fumaça...
Rola na sua fuga pelo espaço
Bufando
Berrando
Silvando
Roncando
Rápido
Rangente
Como a bramir a sua loucura...
Assemelha um cometa
Com o núcleo da máquina incendida
E a cauda luminosa dos wagons...
16
Chicos
Além se avista a sombra
Do túnel encravado na montanha
Garganta que assombra como a morte:
Treva entre duas vidas luminosas...
Túnel!...
Em ti o trem se precipita e corre
Inflamado de lâmpadas vermelhas
Como um jato de sangue que escorre,
E tu semelhas
Na negridão das trevas latejantes
A uma veia Túrgida e cheia...
Eu, que admiro tudo
Que vejo pela terra e pelos céus
Amo tua face tétrica e parada
Em que o trem penetra
Como um punhal de luz no coração da treva...
Amo também o que tu simbolizas:
A sombra hiante da morte,
Túnel de minha vida...
17
Chicos
Crepúsculo
Pantheon de cimento armado
A luz tomba
Refluxo de cores
Mel e âmbar
Há liras de Orfeu em todos os automóveis
Reses das nuvens em tropel
Céu matadouros da Continental
Todas as mulheres são translúcidas
Ando
Músculos elásticos
Andar com a força de todos os automóveis
Com a força de todas as usinas
Com a força de todas as associações comerciais e industriais
Com a força de todos os bancos
Com a força de todas as empresas agrícolas e as explorações de
linha férreas
Os capitais amontoados em pilhas elétricas
Forças presidenciais e forças diplomáticas
A força do horizonte vulcânico
As forças violentas as forças tumultuosas de Verhaeren
Som um trem
Um navio
Um aeroplano
Sou a força centrífuga e centrípeta
Todas as forças da terra
Todas as distensões e todas as liberdades
Sinto a vida cantar em mim uma alvorada de metal
18
Chicos
O meu corpo e é um clarim
Muita luz
Muito ouro
Muito rubro
Muita sangue
Eu sou a tinta que colore a tarde!
19
Chicos
Do alto da Urca, conjuro
*Bruna Martins
Jamais verei um navio sem lembrar.
Da Inocência, foi.
Leva bauxita?
Poeira de enrubescer.
Leva seios?
Das meninas tão gerais.
Leva discursos? Fascistas tropicais?
Pesam trezentos anos
sobre o meu corpo marítimo
ou seriam toneladas
de lama?
Morena,
mas bonita
mas diferente de vocês.
Passo o filtro na face
fico branca à la française
e recordo:
20
Chicos
que nunca fui ao Leblon
que essa areia é suja
e a guerra é outra
adentro.
21
Chicos
Meninas tão gerais
Quando tinha quinze anos
Um homem torto que só
Passara à minha esquerda
Me dera um panfleto de Deus
Nuvens se abriram sol ardeu
Depois doeu tive febre tosse cólica
Corre-corre à metrópole
Tomografei-me toda
Pelada na maca estéril
Doutô me deu a foto da pedrinha
Disse um triste “tadinha, mas não dói.
Vamos tirar sua pepita canhota”.
Sorte a minha que ia ficar rica
Vendendo gramas de mim
No mundo do garimpo.
22
Grandes eventos no noticiário
Chicos
Ele disse:
“Estamos morrendo afogados no seco”.
Eu achei tão bonito aquele verso
e a tevê valorizando o trabalho dos poetas contemporâneos
(apesar de não lembrar o nome deste cânone de nossos tempos)!
Graças a Deus, à família e aos costumes,
Dante poderá revisitar o sub-imundo
e incluir o novo jugo para os servos
voluntários dos holocaustos.
Ah… a modernidade
renovando os clássicos.
23
Chicos
Três vezes santo
Do mundo da seda à mata
atlântica, o Povo-em-Pé chora
um salgueiro tropical distante.
Um charco de negro sangue,
o mangue, refaz a casa de outrora.
Ave, peregrino! Jerusalém é disputada
com a Baía de Guanabara sagrada.
Nossa Senhora da Ponte!
De Judeia metralhados os montes.
As chagas doutro rio curastes,
às margens pregastes,
mas estas águas de maio
são rubras de Juno,
coturnos sujos agindo soturnos.
Que milagre salvará o patrono
dessa terra de alvo engano?
Vê a hélice demente girar, escorraçado
por novas guilhotinas do Estado.
Espera a cesta de vime dos trópicos
teus infantis e condenados ossos.
Abençoa-lhes Santa Ágatha que
imortal serás de volta à mata.
24
Chicos
Grande salgueiro barlavento,
abrace os filhos do tormento!
Nossa Senhora da Ajuda,
ofertai salix à dor muda!
Todo complexo é reprimido,
logo, faço amplo pedido:
Que louvem em 18 de maio
João Pedro de São Gonçalo.
* Bruna Martins
Nasceu em Itamarati de Minas (MG) e mora em São Paulo (SP). É poeta, editora e graduanda
em Letras Português e Francês pela Universidade de São Paulo. Colabora no Boletim
3×22 (1822 – 1922 – 2022), da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin da USP. Sua produção
busca diálogos com outras linguagens, além de refletir sobre o dialeto e a vivência
mineiros, sob um corpo feminino, em confronto com a experiência nas grandes cidades.
25
Chicos
O cavalo transbordante
*Ruriko Mizuno
É uma terra lamacenta de primavera.
Na superfície nascem cavalos,
com brilho, como dos melões que amadurecem.
Quando flamejam suas crinas
eles se movem como ninfas... efeméridas.
Se metem em meu sonho
e passam por todos seus cantos,
dando uma sensação de fole vivo ...
(Há um cavalo que, apagado numa curva,
transforma-se numa moita amarga de urtiga).
Eu sempre pensei que
a primavera chegava tão apressada.
(Rolando no meio do sono,
girando, um dos meus olhos
percebe uma luz da casa vazia que desconheço,
e o outro uma vela acesa
que se consome ao lado da cama,
cambaleante).
De muitas partes,
o cheiro de mato sobe pela janela,
e ao lado, desamparado,
relincha um pequeno cavalo.
(Acaso... lhe dei água?),
26
Chicos
fiquei em dúvida.
A sensação da pele ... semelhante à casca de árvore,
a chegada dos cavalos ... tão abrupta.
A terra se crispa como a pele ...
No sonho de primavera
pegadas dispersas dos cavalos espalhados
que jamais voltarão.
* Ruriko Mizuno
Ruriko Mizuno nasceu em Tóquio, 1932 e mora em Yokohama no Japão. Estudou
literatura francesa na Universidade de Tóquio. Traduziu para o japonês Décimas,
autobiografia poética de Violeta Parra. Publicou entre outros, os livros A enciclopédia
ilustrada dos animais (1977), O cavalo de Rapunzel (1987), Irmã mais nova de
olhos castanhos (1999).
27
Chicos
Poética
*Paschoal Motta
o poema, meu ganho e gala:
o traço, a decifração;
o poema, silêncio e fala,
tumulto e quietação;
a canção inacabada,
a harpa da sinfonia,
abismo de ser e nada;
juventude e nostalgia.
O poema me enreda
numa rede e numa fome;
me ampara em toda queda,
de mim perdido de nome;
o poema, profundo rio
falto de navegação;
lagrima no meu estio,
faca, sangue, peixe e pão;
a procura sem achado
na perdição da loucura;
o verso pra ser rimado
no suporte da aventura;
minha paz e aflição,
lenço de adeus, o gesto,
um lento aperto de mão
28
Chicos
pruma jornada sem presto;
a chave do dele enigma,
o diamante da lavra,
dos códigos sem estigma;
imprudência da palavra;
o poema aflige e ri,
bonança na tempestade,
anúncios de bem-te-vi;
da mentira, a verdade;
é lagoa e cachoeira,
guia da nave e deriva;
é semente em fértil leira;
é verbo na voz ativa;
tão na guerra, tão na paz,
épico, ou lírico haja,
e o poema ser capaz
do que o coração engaja;
o rumor da rebeldia,
a tábua do oprimido,
rescaldo na noite fria,
vige em que é, virá, ou ido
(em Pretextos Para um Livro de Poemas, em preparo)
* Paschoal Motta
Nasceu em São Pedro dos Ferros (MG), mora em Belo Horizonte (MG). Jornalista, Crítico
de Literatura, professor universitário de Literatura Brasileira e Linguística, Teoria
da Literatura, Didática de Literatura Portuguesa. Editor do Suplemento Literário do
Minas Gerais.
29
Chicos
Reencontrar o amor
*Amosse Mucavele
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos
atiram-se, através deles, como jactos/para fora da terra.
Herberto Hélder
Nas manhãs
A minha mãe
Abre as vagas incontornáveis da saudade
Símiles da luz ausente que me esculpiu
Entre lágrimas e quedas rebenta a inaudível angústia
Espinhos feridos pela distância assinada pelo medo
E quando o silêncio purifica as paredes da casa
A minha heroína derrete
Na sílaba que renuncia a sua presença
Agora, sinto a fragrância do meu canto
Pela voz obscura dos distantes acenos
Na esperança de açoitar a lápide onde jaz
Com flores seguro a memória emudecida,
uma oração fria se converte em fogo
Entristeço-me quando releio o testamento do luto
Esta herança indecisa,
Mergulhada num passado descorado
30
Chicos
Teu silêncio - língua de sinais que me conduz
Pelos escombros da casa abandonada
hasteia o altivo sonho de uma criança em ruínas
Permaneço no mesmo lugar de sempre
onde o dilúvio
eterno murmúrio dos sonhos presos na tumba.
se depreende em combustão diária
Antes, porém, transeunte pela noite ausente
Colho a dor agrária
dos sulcos vazios.
31
Chicos
Notícias do nevoeiro
Quando a noite tarda em voltar aos seus aposentos
Acordamos de olhos prostrados na enxurrada do escuro anterior
A manhã se serve de postas de chuva
À mesa construímos caminhos distantes da luz
onde os pratos crescem na fome da partida
Sem idioma, as gaivotas anulam o seu voo matinal
Lavra-se o dia na Costa do Sol
As amêijoas festejam no obscuro encanto
A linguagem da sua liberdade
Os passos dos pescadores esfumam-se,
Enlouquecem e estão a apontar o silêncio com os remos cerrados
sem força procuram a chave do horizonte furado
a medida das incertezas dos maziones
Na Catembe os barcos não circulam
Encalhados
acenam o dedo ao bailado das nuvens
* Amosse Mucavele
Nasceu em Maputo, Moçambique, onde vive. Poeta e jornalista cultural, Com textos
publicados em diversos jornais do mundo lusófono, publicou os livros: A Arqueologia
da Palavra e a Anatomia da Língua – Antologia Poética, (2013), Geografia do Olhar:
Ensaio Fotográfico Sobre a Cidade (2016) Pedagogia da Ausência (2020.). Curador da
Feira do Livro de Maputo e da Área Internacional da Feira do Livro de Quelimane,
Curador e coordenador com Abreu Paxe, Nuno Rau e Amanda Vital do Templo D’Escritas
-Festa Literária da Língua Portuguesa (2020) e curador do Mapas da Língua -
Encontro Literário da língua portuguesa.
33
Chicos
A jogada
*Flausina Márcia
foi da peste
não do cabra
da peste
foi de fogo
foi de água
uma jogada
instituída
malversada
na peste
é de lama
sem o dalai
enxurrada
é a peste
máscara
da jogada
são invasões
eram soldados
empesteados
33
Chicos
indecisões
a jogada
da peste
Ouvi dizer que quem
inventou o parafuso
foi a porca, essa mesmo,
a miséria.
* Flausina Márcia
Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo Horizonte (MG) onde trabalhou
na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre outros, Vagalume
(2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014).
34
Chicos
Eram mais felizes...
*Luiz Ruffato
Eram mais felizes que nós,
os índios que aqui viviam?,
conjecturamos na madrugada.
Arranquemos, pois, os tacos
que revestem a sala:
restaram cinzas das fogueiras?
Derrubemos as paredes dos cômodos:
soará alguma voz, talvez?
Compartilha conosco essas dúvidas,
alguém? Ninguém, na monolítica
escuridão da rua.
Serão mais felizes que nós,
aqueles que habitarão essa casa
no futuro?, conjecturamos
na magnífica carruagem noturna.
(Para o Chico Pimenta)
Em: Manhãs de Sabre
* Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras
de sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou
o Troféu APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e
o Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o
tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o projeto
Inferno Provisório, com a publicação do romance Domingos Sem Deus,
iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros
sobre o operariado brasileiro.
35
Chicos
A noite é...
*Adília César
A noite é total perante os dias duradouros.
No espelho projectas a tua imagem nua e inicias
uma aprendizagem exacta de anatomia.
Segues o contorno da sombra onde o brilho dos olhos
evidencia a beleza das polpas de carne.
Longos cabelos atenuam as imperfeições das asas
ao vento, com o vento, em todas as fechaduras fêmeas.
São os teus dedos que descobrem o fim da fulguração.
Recriam uma escultura perfeita, efémera
e o pó de mármore suja a minha pele com sangue
depois do recorte deste ângulo de mulher viva.
Fábrica de deslumbre na humana e consciente tentação do voo.
Por fim, apagas todas as luzes e fechas a porta à chave.
A carne estremece no pedestal. O museu
está encerrado ao público por motivos alheios à minha vontade.
Em: Uma agulha no coração
* Adília César
Nasceu em Lagos e reside em Faro, Portugal. É educadora de infância e
formadora no âmbito da Didática das Expressões Artísticas, sendo Mestre
em Teatro e Educação pela Universidade do Algarve. Autora dos livros O
que se ergue do fogo (2016), Lugar-corpo (2017); O tempo o tempo (2019)
e Uma agulha no coração (2020). Edita, juntamente com Fernando Esteves
Pinto, a revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.
36
Chicos
O sono dos justos
*Jeová Santana
Aqui, embaixo da marquise
do banco mais rico do país
enquanto a temperatura cai,
cada vez mais, sem piedade.
A ardente faca do frio escama
e se chega aos meus ossinhos.
Um raio de lâmpada passeia
sobre a vazia garrafa de pinga.
Os trecos que os guardinhas
não me arrancaram de manhã
divido com um novo parceiro.
De vez em quando cutuco ele
para saber se continua vivo.
Boa noite, querida São Paulo.
37
Rascunho perdido num livro de Neruda
Chicos
Um poema está
para nascer.
Virá embalado
em grandes tristezas
ou em pequenas.
De longe:
massacres no primeiro mundo.
Ou pertinho:
bateram no meu ex-aluno
até a morte.
Os carrapatos mataram
meu cachorro.
38
Terceto para corte e costura
Chicos
I.
Vidas
No quintal
sob sol e chuva
o automóvel
do acidente.
Nas escaras da ferrugem do motor
passeiam joaninhas e soldadinhos
unidos pelo melão de São Caetano.
Ela achou que é um bom lugar
para colocar umas plantinhas.
II.
Flores e chumbo
Naquela casa magenta
morava um torturador.
Dona Aurora saía cedo
para varrer a calçada.
Dele sempre recebia
um efusivo bom dia.
O verde-oliva na goma
era um pedaço de sol.
Sua mulher e o pequinês
esperavam fielmente
até o Gordini sumir.
39
Chicos
III.
Cafezinho entre Shakespeare e Nietzsche
Se realmente há espírito...
Como, então, desejar
que ele descanse em paz?
De: Estilhaços
* Jeová Santana
Nasceu em Maruim SE, em 1961. É professor titular da Universidade Estadual de
Alagoas e autor de Dentro da casca (1993), A ossatura (2002), Inventário de ranhuras
(2006), Poemas passageiros (2011), A crítica cultural no ensaio e na crônica
de Genolino Amado (2014), O internato como modelo educacional segundo a literatura:
um estudo sob a perspectiva da teoria crítica (2015) e Solo de rangidos
(2016). Participou das coletâneas Chico Buarque, o romancista: ensaios (2021)
e Sobressaltos: antologia de poemas brasileiros contemporâneos (edição bilíngue,
França, 2022).
40
Chicos
Hoje não tem sexta-feira
*Helen Massote
Ao poeta Thiago de Mello
Hoje não tem sexta-feira
o sabiá-laranjeira
não me acordou
naquele canto costumeiro
das madrugadas de verão
mas que no outono
confesso, sinto falta
sinto falta de inverno
como se incêndio fosse
na raiz da floresta
e não apenas
algumas folhas
caídas no
colo de
algum poeta.
*Helen Massote
Nasceu em Belo Horizonte (MG) e mora no Rio de Janeiro (RJ). Redatora, poeta e
cronista trabalha no Portal Fiocruz.
41
Chicos
Claro enigma
*Ronaldo Cagiano
Dentro da inércia
o coração flutua
enquanto
insetos cortejam a luz pálida
do abat-jour
e bailam para a morte
no choque contra a vidraça.
A felicidade é tão remota
quanto o uirapuru,
nesse quarto arruinado,
onde a única novidade
é a sensação funerária
de derrota
42
Chicos
Estrangeiro
Não tem lugar
o homem de corpo e alma
nessa inexpugnável
selva digital
Cada ser deixou de ter
coração e linguagem
perdeu-se numa imensa teia
devorado pela escuridão do não-ser.
Não-lugar
de tantos exílios.
Em Cartografia do abismo
* Ronaldo Cagiano
Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Publicou, entre
outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária
2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012),
Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016) e Todos os desertos:
e depois? (2021).
43
Chicos
Proemio
*Arturo Herrera
Viento de voz alargada. Rumor de cipreses.
Ingrávidas lágrimas de Cipariso.
Avenida perenne de sombras tristes.
Flores sin abejas. Epitafios olvidados.
Bronce negro. Avispas en el grifo que gotea.
Ángeles que lloran pétreos. Cruces inclinadas.
¡Deja que mi voz abra sus alas!
Y contemplar el cielo sin más lágrimas.
Cespecito verde tímido entre despojos…
Florece un junquillo entre las tumbas
y sobre la grácil copa del ciprés
un pajarito canta como siempre
su amarilla melodía del alba.
Abajo, ya, toda esta ciudad de huesos.
* Arturo Herrera
Nasceu em Catamarca, Argentina, onde reside. Professor, pesquisador, poeta
e ensaísta, é autor entre outros dos livros: Obsesions -Tasco (1991), Borges:
reescritura y voces confluentes (2001), Dones de la vigilia (2005), Luis Franco
y la tradicion clássica (2015), Mariposa tinta (2016) e Cantos de Cipariso
(2021)
44
We are the losers
Chicos
*Emerson Teixeira Cardoso
Sabe de quem, meus cuidados andam sem?
dela...
Ponha o pronome na terceira pessoa:
Sujeito simples, "ELA"
"E" verbo de ligação.
Ligação direta ao meu coração.
Pode até ser, exageradamente, parecer, muito pedante, romântico,
derramado.
Mas é a pura verdade.
Representação fidelíssima de uma realidade...
Sua indecisão me encheu de expectativa,
Quando a sua ausência era mais do que sentida...
E eu nessa história...
Minha vida ficou sendo uma corrida
longa e cheia de obstáculos,
Infelicidade minha:
Não sou "the Champion" daquela já velha canção,
Não sou, não.
Ficou assim, esse pobre espetáculo!
E ainda que a palavra "fitness" esteja na ordem do dia,
Por causa da minha timidez,
Veja que nosso caso.
Cada dia mais se esvazia,
E um amor assim não tem franquia.
Não ter um coração valente nunca foi minha prerrogativa.
E o nosso romance era um jogo do tipo: QUE VENÇA O MELHOR!
45
Chicos
E aquela canção, "We are the Champions,
Ficou assim:
We arent the Champions.
Resumo da ópera:
We loose (perdemos)
* Emerson Teixeira Cardoso
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa
da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas
Hardy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967),
mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul
(1997).
46
Chicos
→a Água
Poema 2
*Fernando Abritta
meu pai xingava esbravejava
ao ver a conta de água
que o município lhe enviava.
Criado no alto da Serra da Onça,
água rolava como graça
e ele bebia sem agradecer.
Agora pagava para matar
sede dele e nossa.
De um bem comum
a água havia virado propriedade
de todos, pública
e paga.
Como propriedade pública
a qualidade era duvidosa:
água pura engarrafada com lacre
virou mercadoria produzindo
riqueza pra uns e milhões
de frascos de plásticos
para todos.
Mas a fonte ainda é livre,
é de todos, é grátis
para quem possa lá
matar sua sede.
Será?
* Fernando Abritta
Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino, distrito de Cataguases (MG). Mora em
Juiz de Fora (MG) Publicou, entre outros, umÁrvore, O Caso da Menina Que
Perdeu a Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma Verde História, além
de um ebook, Relâmpago.
47
Beijo
Chicos
*Tadeu Costa
48
Chicos
eye ojo olho
* Tadeu Costa
Nasceu em Cataguases MG mora em São Paulo SP. Designer gráfico e ilustrador,
autor de: Eu não sei de qual África veio o meu bisavô!, Cada número uma
história e O Menino, a Folia de Reis e o Natal, publicados pela Editora Lazuli.
Professor de Tipografia na Universidade Senac.
49
O conselheiro silencioso
Chicos
*José Antonio Pereira
Se olha no espelho. Estou gorda! ─ os
olhos retratam esse espanto. Ainda desatinada
pela constatação, caminha até o chuveiro, abreo.
Nunca gostou de pensar em nada durante o
banho da manhã, é parte do seu lento despertar,
antes de se jogar no frenesi do dia a dia. Mas,
espremida por tantas tarefas, o banho da manhã
passou a ser a hora de pensar o que fará ao longo
do dia. Para que agenda se a cabeça vasculha
o dia inteiro o que e a que horas deve fazer,
é assim do acordar ao dormir. Mas hoje o espelho
atropelou a rotina, olha para a barriga, corre
os dedos nervosos e se acha flácida. Gravidez
detona a gente ─ pensa. Mas a última já faz dez
anos! ─ fala para a surdez dos azulejos. As
mãos mecanicamente tiram o excesso de água
dos cabelos. E o endiabrado espelho mudou tudo
nesse dia.
Chega ao escritório, não olha para ninguém
e vai direto para sua estação de trabalho.
Enquanto seu computador abre as telas e conecta-se
à rede, ajeita as coisas e fala consigo mesmo.
Estou me sentindo feia, acho que meu marido
já não sente atração nenhuma por mim, faz
tempo que não faço um mísero exercício físico,
nem a porra de uma caminhada. Qual foi a última
vez que fiz sexo? Se dá conta que a última
frase era audível para quem estivesse por perto.
Preocupada, corre o olhar num círculo, mas todos
estão absortos em suas atividades e inicia
sua rotina de trabalho. Talita, uma de suas colegas
no escritório, a tira da concentração, Amiga.
Vamos tomar um café? Já! Nem vi a hora
passar. Estou de cabeça cheia.
50
Atravessam sorridentes o ambiente onde o
som dos saltos de seus sapatos prevalece sobre
todos os ruídos, na copa sentam-se, como sempre,
numa mesa bem distante da porta. Dali observam
todos movimentos dos demais. O sorriso
de Raissa desaparece com a voz irônica da colega,
junto ao ouvido. Então, você não se lembra
da última vez que fez sexo? Já passei por isso,
amiga. Quem me salvou foi este site. E entrega
um cartão da empresa em que trabalham com o
endereço de um site anotado. E recomenda, Não
leve para casa, viu! Será que estou tão feia ao
ponto de ninguém mais se interessar por mim?
Talita num olhar travesso e cumplice por cima
dos óculos. A solução está no seu bolso. Eu sou
mais velha do que você, meu filho mais novo já
está na faculdade, o que salvou minha vida em
todos os sentidos foi o que está no cartão que te
dei. Eu disse todos os sentidos, viu!
Talita, passa por Raissa toda apressada e
enche a voz, Não vai almoçar não? Todo mundo
já foi. Já vou! Indecisa pega o cartão olha para
um lado, para o outro e digita o endereço, cadastra
a senha e entra. Se assusta. Mas isso é
um site de paquera só de traição. Desliga tudo,
esconde o cartão na gaveta e sai atabalhoada
para o almoço. Vou matar Talita. Ela acha que
sou o quê?
Dias e mais dias de dúvidas, A raiva de
Raissa com Talita vai se dissipando e num fim
de tarde, meio insegura retorna ao site. Percebe
que desperta interesses, discreta entra e sai várias
vezes.
Numa manhã, ao fim do café, Talita vamos
almoçar juntas? Preciso conversar contigo.
Claro! Vamos sim. A ansiedade de Raissa não
a permitiu fazer mais nada. Nem deu a hora,
ela já estava na estação de trabalho da colega.
Vamos! E saíram as duas.
Chicos
Talita escolhe seu prato, Raissa emenda,
Dois! E para beber? Água mineral sem gás!
Esquecem o garçom que se afasta, Estou com
medo, aquilo lá é só traição. Talita convicta, É
site de pessoas comprometidas para encontros
eventuais e sem compromissos. Ali, todos estão
no mesmo balaio, estão traindo seus companheiros?
E daí? Os homens sempre fizeram isso
e se sentem livres para fazê-lo. Não é você que
diz que seu nome em russo significa livre, despreocupada...
Mas como você consegue? Na
hora do almoço querida. Neste tempo se faz
muita coisa, inclusive uma refeição leve e rápida.
Dobra o tronco sobre a mesa, aproxima-se
do rosto de Raissa e com as mãos em concha
junto a boca. E uma ótima trepada, viu?
Escova os dentes, dormira bem, relaxada
pelo vinho e a divertida conversa com o marido.
Caiu no sono, nem viu o marido ir para a cama.
Ele a acordara com um beijo e disse, Já combinei
com minha mãe, as crianças vão para lá. Devo
passar o dia com um cliente numa propriedade
a 40 quilômetros da cidade. Mas a noite estaremos
todos aqui, não se preocupe. Seu olhar
encontra seus olhos no espelho, a piscadela estabelece
a cumplicidade.
Até a hora do café trabalhava e pensava
nos que demonstraram interesse em seu perfil lá
no site. No café se diverte com o bom humor de
Talita, sente uma ponta de inveja daquele dinamismo
todo, há uma energia juvenil naquela
mulher dez anos mais velha do que ela. Volta
do café e fala com dois ou três admiradores que
já vinha trocando e-mails e se falando pelo celular.
Decide-se por um encontro na hora do almoço.
Chega sozinha no motel, sente-se nervosa,
mal conhecia o parceiro. Bate um frio na barriga.
Casada a vinte anos, não sabia mais como
agir num encontro casual. Ele a recebe e a acalma
com um sorriso e um carinhoso toque dos
dedos nos cabelos, a mão corre lentamente pelo
rosto e se detém no pescoço. Deitam, ainda
vestidos na cama. Seu parceiro, Você é lindíssima!,
sussurra ao ouvido. Olha para o espelho
do teto, sorri relaxando e fala com ela nele, Ao
prazer não cabe culpas, afinal não fiz voto de
castidade nem vivo num convento.
E se deixa levar.
* José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
51
Chicos
Paradas breves
*Ieda Estergilda de Abreu
O trem chega manso em Manoel Vitorino,
Bahia. Casas com frentes descascadas,
luz entrando pelos buracos das paredes de
barro, crianças brincando de dar adeus.
Uma moça olha a estrada, o tempo e o trem
passam diante dos olhos dela, a solidão brilha
no trilho que divide a cidade.
Agora é Armazem. O trem para devagar
diante de quintais com trepadeiras e flores
nos muros. O cemitério de Armazem fica na
passagem, tumbas coloridas fazem pensar
na vida que passou como passa o trem azul
pelo meio do Brasil. O trem ganha velocidade,
café-com-pão-bolacha-não, come trilhos,
galhos, barrancos. A menina ao lado se despede
sorrindo de bois e cavalos.
Catinguá. A cidade é apenas um nome
na velha parede que logo desaparece.
Catanduva. Hortas, quintais, prédio, viaduto,
esgoto escorrendo por baixo dos trilhos.
Pindorama. Coqueiros, coreto. Liberdade
é uma palavra pixada nos muros de Pindorama.
Uma mulher deixa a cozinha, limpa
as mãos no avental xadrez e corre até à porta
para ver o trem passar. A menina quer
por que quer ficar na janela para sentir o
vento. Bandeirolas brancas saúdam a passagem
do trem diante dos roçados, o sol desmaia
lento e avermelhado pela tarde, nos
trilhos, campinas, desertos se sucedem. Um
pedaço de lua tão próximo, é quase hora do
Angelus, o silêncio parece tomar conta do
mundo. Valei-me, Santa Adélia, com seus
tambores coloridos, valei-me, Santa Gertrudes,
com suas estâncias e fazendas a se perder
de vista.
Em Amparo, urubus espreitam, voam
baixo entre serrotes, vacas e ovelhas pastam
no tempo que escorre sem vertigens. Hortas
suaves dividem o verde em outros verdes,
nesse lugar onde os grilos mostram o caminho
da noite. Quem entrou no Café do Ponto,
quem fez ponto no antigo prédio da estação?
Que rei morou no castelo azul, hoje
hospital?
Poços de Caldas, Minas, Hotel Nacional.
Uma chuva fina empurrou o sol para outras
bandas, a piscina lá embaixo é uma estrela
azul de cloro. Cascos de cavalos no asfalto,
toc toc toc parando no sinal, seguindo. Vi
um cavalo com uma flor apagada na testa,
cavalos parados detestam moscas, odeio viseiras
em cavalos. Poços de Caldas é puro
doce, o doce mel das flores, das frutas, dos
vinhos. Tem uma mineirinha na janela de
uma casa inacabada, olhos e cabelos esparramados
na tarde.
* Ieda Estergilda de Abreu
Nasceu em Fortaleza (CE), mora em São Paulo (SP) desde 1975. Morou em Brasília, onde
fez jornalismo na UnB, andou por Havana, Madri, Paris, Toulouse, e internamente segue
visitando lugares. Autora de: Mais Um Livro de Poemas, Grãos-poemas de lembrar
a infância, A Véspera do Grito e O Jogo do ABC (para crianças), tem originais inéditos
de poesia e prosa. Participou de oficinas poéticas coordenadas pelos poetas Eunice Arruda
e Claudio Willer, organizou alguns livros para a coleção Aplauso, da Imprensa Oficial
do Estado
52
Chicos
As provas
*Jacques Sternberg
Numa cidade sem crime, cada objeto é
suscetível de estar relacionado a um: incumbe-se
às pessoas não levar o que não é delas
porque, no fundo, sabe-se lá o que pode
acontecer [...]
Antes de mais nada, é aconselhável desconfiar
dos objetos. Especialmente para objetos
perdidos.
Não pegue em nenhum objeto jogado
na rua ou em qualquer outro lugar público.
Nestes casos, existe sempre o risco de
comparecimento dos delegados, que ao
mesmo tempo fazem o papel de testemunhas
e executores para arrastar o suspeito
até à porta de qualquer denúncia.
Sempre, de forma irrevogável, após cinco
minutos de investigação fica comprovado
que o objeto recolhido foi a peça-chave de
um crime relacionado a um determinado caso
ainda em aberto e que as impressões digitais
são, evidentemente, provas irrefutáveis.
O objeto encontrado torna-se, na hora,
prova criminal; o suspeito se torna, por sua
vez, culpado; a situação, desesperada.
O fenômeno é mais arbitrário porque,
na verdade, nunca há casos de polícia na cidade.
Ninguém jamais matou, ninguém jamais
roubou.
Isso não exclui, entretanto, que dessa
forma um certo "crime flagrante" seja provado.
* Jacques Sternberg
Nasceu em Antuérpia Bélgica (17.04.1923), morreu em Paris, França 11.10.2006 foi um
escritor francês de ficção científica e fantástico. Começou a escrever por volta dos
quinze ou dezesseis anos. Eram textos entre o fantástico e o burlesco, mais tarde, começou
a escrever ficção científica. Mudou-se para Paris na esperança de se tornar um
escritor. O clima literário da década de 1950 em Paris era dominado pelos surrealistas e
Sternberg encontrou algum sucesso nesse ambiente. Sternberg nunca se identificou com
sua herança judaica ou belga preferindo pensar em si mesmo como simplesmente
"mortal". Escreveu sobre o empregado, que representava o único mundo que ele conhecia
e podia imaginar. (fonte: Lamediatheque.be)
Sternberg também escreveu para o cineasta Alain Resnais, o roteiro de seu filme surreal
de 1968, Je t'aime, Je t'aime.
53
Antielegia para um ocaso
Chicos
*José Vecchi de Carvalho
Corria pela cidade que o dia estava com
suas horas contadas. Uma estranha tempestade
trouxe nuvens densas e antecipou a noite.
Já bem cedo começaram os desastres: enxurradas
imundas, mortes e destruição. O
lodaçal empesteado impregnava calçadas e
casas, e a escuridão temporã trazia consigo
figuras horrendas. Para uns, era um dia para
esquecer; para outros, obra de Deus. O tal
dia chegara com algazarra novidadeira, mas
usava roupas cheirando a naftalina, e convocou
uma monstruosa horda que se despia
impudente, como se os olhos dos demais pudessem
suportar aquela visão aterradora. Orgulhosos
de suas feiuras, os aberrados daquele
dia suscitavam perigo. Era bom ter cuidado,
mas era preciso, também, um pouco
de coragem para enfrentar o funesto temporal,
e defender a claridade, o canto, o gozo,
o riso e a vida que os monstros daquele dia
queriam sufocar. Por sorte, havia alguns com
seus guarda-chuvas e capas impermeáveis a
cantar e dançar em meio à torrente, desentupindo
os bueiros e fazendo escoar a lama
fétida que tomou as ruas da cidade. Seguiam
sob rajadas ameaçadoras, procurando fossas
para sepultar os monstros, subiam nos montes
para arrastar o sol e fazer nascer a fórceps
um novo dia com manhãs e tardes e
noites e auroras grávidas de alegria.
Quando o dia turbulento começou a
tombar, muitos trataram de esconder suas
abjeções, mas já carregavam em si os respingos
indeléveis da sombria tempestade. Ensandecidos,
tentavam, em vão, dilatar as horas
para impedir o novo dia. Acusavam os
outros pelos desastres e odiavam a noite natural,
mas o certo é que ela, quando chega,
esfria os estrondos inflamados, traz o silêncio,
o sono reparador, e propicia o cicio das
54
Chicos
ritual festivo dos tempos felizes, teria composto
um hino que evocasse até o coro dos
mais céticos e, mal começasse a manhã, juntos
cantariam com toda a força dos pulmões
— a despeito da quase hipoxemia — uma
canção vibrante, uma antielegia zombando
do ocaso e comemorando um novo tempo.
coisas, do vento, das folhas e dos bichos, e
até mesmo o bramir dos mais ferozes.
Por isso, o dia desastroso e caótico rugia
numa tentativa agônica de sobrevida.
Mas já se ouvia o canto dos destemidos com
suas capas impermeáveis e seus guardachuvas,
empurrando as horas da noite densa
e artificial, e logo a vizinha madrugada
anunciaria a aurora com outro sol, outro dia.
E, por certo, alguém introduzido há muito no
Conto finalista - Prêmio Off Flip de Literatura 2021
* José Vecchi de Carvalho
Nasceu em Cataguases, após morar por muito tempo em Viçosa vive
hoje em Paula Candido todas cidades mineiras. Coautor de A casa da
Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes (contos
2018), Contradança (contos 2020) e Cada gota de silêncio (contos 2021)
55
Chicos
Panambi
*Raquel Naveira
O casulo guarda um terno segredo: o da
vida que se transforma. Um dia, sob o sol de
primavera, ele explode no êxtase de uma borboleta.
São graciosas e ligeiras as borboletas. Um
prodígio as suas asas, misto de flor e fímbrias.
Os seus corpos, misto de lava e líquidos.
Na fazenda, quando íamos tomar banho
no córrego, nos monturos de lama pisoteados
pelos cascos dos cavalos, pousavam enxames de
borboletas: o panapaná. Panapaná é o coletivo
de borboleta. Uma nuvem interminável delas,
geralmente amarelas, flamejantes. Sorvem os
sais da lama do brejo, num desassossego próprio
de seres que não se cansam. Formam uma
onda, um caudal de pétalas, de espíritos viajantes.
Esvoaçam como almas saídas de estranhas
moradas.
Em Campo Grande, minha cidade ao sul
de Mato Grosso, no Museu do Índio, há uma
das maiores coleções de borboletas do mundo.
Todas classificadas por seus nomes científicos,
embalsamadas, asfixiadas nos armários, espetadas
por invisíveis alfinetes. Das mais variadas
cores, tamanhos e formatos: alaranjadas, púrpuras,
azuis, grandes e pequenas, estateladas nos
túmulos de vidro. Quando criança, eu ficava
fascinada e desejava pegá-las entre os dedos e
soprar-lhes um novo ar, um novo frêmito de
vida. Imaginava vê-las voando pelas salas sombrias
do museu até alcançarem o céu da liberdade.
Quando ia para o sítio de meus tios Anita
e Pila, que ficava em Bela Vista, fronteira do
Paraguai, ouvia as pessoas se comunicarem em
guarani, essa língua nativa pré-colombiana, que
se fala no centro da América do Sul. Ramona,
paraguaia de longos cabelos pretos, presos na
nuca, explicou-me:
_Panambi significa ‘borboleta’. Panambi
moroty: borboleta branca; panambi ura: borboleta
da noite; panambi verá: borboleta brilhante.
Pegava um disquinho compacto e colocava na
vitrola. Era a guarânia “Panambi Verá”:
Panambi che raperãme
reserva rejeroky
nde pepo Kuarahy
ã me tamora e añeñoty.
Ramona vibrava, o corpo embalado pelos
som das harpas.
_Tudo é harmônico nessa música. É uma
canção perfeita, belíssima, entende?
_ E o que quer dizer a letra? Ela traduzia:
_ Que a borboleta brilhante, de asas douradas,
doce e terna, convida a alma ao sossego.
Que o seu nome é como mel silvestre na garganta.
Que a mariposa passa pelo nosso caminho,
bailando e, ao persegui-la, entramos num
bosque cheio de espinhos. A alma se alegra em
segui-la, mas as mãos sangram.
Eu então fechava os olhos e repetia entre
lágrimas:_Panambi moroty, panambi ura, panambi
verá.
Bor-bo-le-ta. Uma palavra que parece ter
asas. Como diria Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira, um colecionador de palavras, “definir
uma palavra é capturar uma borboleta no ar.”
* Raquel Naveira
Nasceu em Campo Grande MS, formada em Direito e Letras, Mestre em Comunicação
e Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, é escritora e
publicou, entre outros, Abadia (1996), Casa de tecla (1999) indicados ao Prêmio
Jabuti de Poesia
56
Chicos
Embora não pareça, hoje é terça de Carnaval.
*José Antonio Pereira
Ontem foi o último dia de fevereiro, segunda
feira de carnaval. Dona Carmita, fervorosa
católica, comemoraria seus 90 anos de idade.
Dediquei a ela um copo. Fico imaginando, em
tantas décadas, quantas vezes e de quais formas
comemorou seus aniversários durante as festas
momescas. Alguns lampejos de carnavais de minha
infância surgem em preto e branco num
flashback, alguns induzidos por antigas fotografias
da época. A mais antiga imagem que me
ocorre, estou nos braços do meu pai e minha
mãe de braço dado a ele na esquina da Rua do
Comércio em frente ao Banco Hipotecário.
A pandemia foi a pá de cal no moribundo
carnaval da cidade. O amigo Emerson Teixeira
sempre insistiu comigo sobre a grande e festiva
confraternização do povo e tentava me convencer
a irmos no fluxo desse alegre cortejo. Nunca
me empolguei, acho que sua benevolência é
muito mais um desejo de seu irresignável espírito
carnavalesco. Para mim acabou faz tempo e
bota tempo nisso.
De um bar perto de minha casa, onde outrora
com certeza fervilhavam marchinhas, frevos
e afins vem, como a confirmar esse fim, a
poderosa voz da Cássia Heller cantando seu Palavras
ao vento. Brota na minha cabeça a lembrança
de um domingo de carnaval lá detrás.
Quase ao fim de uma tarde calorenta e o sol ainda
ardente, depois de uma passagem pela sorveteria,
eu e Gabriel, ainda um menino, cada um
com sua casquinha contendo duas bolas de sorvete
gulosamente as lambíamos enquanto cruzávamos
a praça do baiano Rui Barbosa. Na praça
vazia, nem o refrão, mais que calôôôô .. só duas
figuras. O Cesinha Samor sentando naquele banco
em frente ao Cine Edgar entregue ao seu cansaço,
as pernas abertas eram contidas pelo vestido
que puxara para cima dos joelhos no afã de
se refrescar, a cara larga e a boca borradas pelo
pó-de-arroz e batom vermelho e do outro lado
caminhando pela calçada do Café Mulambo rumo
ao prédio da A Nacional desfilava Chicão e
sua caixa de guerra. Gabriel termina seu sorvete
e vamos embora. Não tenho a menor ideia do
que passou pela sua cabeça, ao se deparar com
as duas figuras. Naquela praça que fervilhava
noutros carnavais, só nós quatro. Aquilo foi para
mim o crepúsculo do carnaval local.
A praça do baiano, que feito aquela de
Salvador cantada por Caetano, A Praça Castro
Alves é do povo..., noutros carnavais se apinhava
de gente, em lugar de veículos circulavam
blocos, ranchos e tantos foliões solitários. Dentre
tantos uma figura marcante era o Ormeu Werneck,
um Orfeu trash no carnaval, provocador e
de estilo inusitado. Cada ano apresentava um
adereço nada convencional, lembro-me de dois.
Uma velha gaiola com uma ratazana que balançava
em direção ao povo a provoca-los e outro
com ares duchampiano: um urinol cheio de cerveja
com um filão de pão enfiado na cintura do
calção, eram suas oferendas ao povo na praça,
gerava perplexidade, nojo e repulsa em muita
gente e nós, adolescentes rebeldes freados pela
ditadura, adorávamos aquilo tudo.
Esta magra terça-feira de carnaval, nem a
cara da velha quarta-feira de cinza tem. Daqueles
que amanheciam a quarta-feira na folia, para
não perder seus empregos, dirigiam-se ao trabalho
com suas improvisadas fantasias ainda cheirando
a suor e cerveja, alguns ganhavam um
tempo para ir em casa para um banho e uma
vestimenta mais adequada, segundo o patrão.
Outros, já atrasados após uma soneca rápida
num banco sob a sombra das árvores, perderiam
o resto do dia se em casa fossem, encaram o batente
ressaqueados. Mas todos sem exceção teriam
essas horas descontadas do pagamento. Mais
tarde, para a ira do padre buscavam a deposição
57
Chicos
das cinzas em suas testas reluzindo a pintura
pagã da purpurina, tão contritos que ao padre só
restava a resignação do “fazer o quê” e, Não
esqueça de confessar meu filho!
Das figuras do carnaval solitário, o único
sobrevivente é o Cezinha. Mas ele depois que
virou comunista e entrou para PCdoB, mas continuou
acompanhando todas as procissões da
semana santa. Acho que nem ele sabe o que é
comunismo. Acabou eleito prefeito da cidade e
abandonou a folia. Também pudera, imagino ele
tentando entrar num vestido da primeira dama,
impossível! Aliás é divertido ouvir alguns reacionários
e fascistas que frequentam a Boca
Maldita, fica exatamente na esquina do Café
Mulambo, chamar quem pensa diferente deles
de comunista. Não sabem, mas são filhos diletos
do Plinio Salgado.
O “Bloco do Eu Sozinho” foi nos últimos
anos a resistência do carnaval no Carnaval. Explico.
Os blocos carnavalesco da cidade saem às
ruas na semana anterior, na sexta-feira o povo
se manda para o litoral capixaba, para a roça e
os que ficam vão para a folia em Miraí, Itamarati
e outras cidades do entorno. Só o Chicão, único
folião e ritmista do “Eu Sozinho” permaneceu
fiel ao Carnaval da cidade e o foi até a morte.
Da última vez que vi o Chicão, ele seguia
firme na caixa de guerra e desfilava seu bloco
solitário. Ia passando na porta de onde um dia
foi a Taberna do Embalo. Com certeza noutros
tempos, e ela aberta, entraria e por lá encontraria
Carlim Moura, Antônio Jaime, Sereno, Lião
Condé e Mário “Lêlê” Teixeira, a turma do
CAC. Todos transbordando euforia e picardia,
gorgolejaria uma cachaça e entre tantos risos e
tanta alegria cantariam a marchinha da colombina.
Francisco Marques - Chicão
Foto de Emanuel Messias
* José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
58
Chicos
Tchaikóvski: uma vida e muitos segredos
*Vera Lúcia de Oliveira
No dia 12 de agosto de 1893, na cidadezinha
de Klin – entre Moscou e São Petersburgo -,
Piotr Ílitch Tchaikóvski (1840-1893) concluiu a
Sexta Sinfonia. Nesse dia quente sem uma brisa,
o mundo ainda não sabia que acabara de ganhar
uma obra-prima da música. Foi chamada imediatamente
de Sinfonia Patética pelo irmão Modest
Tchaikóvski, também artista. Era o canto do cisne.
Ou o seu réquiem. Não por outra razão,
trouxe em cada acorde a tristeza, o drama, o
desespero de uma vida inteira naqueles quarenta
e cinco minutos. Foi dedicada ao jovem sobrinho
Wladimir Livovitch Davidov, adorado pelo
tio talentoso. Mais que adorado, motivo da sinfonia,
sua inspiração, sua razão de viver.
É dessa vida trágica que trata o livro Sinfonia
Patética – a vida de Tchaikóvski (SP: Brasiliense,
1989) do não menos trágico Klaus Mann
(1903- 1949), célebre autor de Mefisto (1936),
romance fundamental da literatura alemã e mundial
do século 20. Filho primogênito de Thomas
Mann, identificou-se com o solitário músico russo,
ele também, Klaus, um eterno expatriado,
um eterno viajante. Disse ele sobre Tchaikóvski:
“Ele era um emigrante, um exilado, não por motivos
políticos, mas porque não se sentia em casa
em parte alguma. Sofria onde quer que estivesse.”
(Pág. 257). Um estranho no ninho. Como
santo de casa não faz milagre, na Rússia,
consideravam pouco “russa” a sua música porque
não buscava paisagens ou cor local (como
se na Abertura 1812, em Eugene Onegin e em
A Dama de Espadas, baseada no romance de
Púchkin, não estivesse toda a alma russa); já na
Alemanha, era tida como asiática; e em Paris,
alemã. Assim também Klaus, que se sentiu incompreendido
em seu meio e foi um exilado
político com toda a família Mann, fugindo do
nazismo de Hitler. E ambos, Tchaikóvski e
Klaus, eram naturezas complexas, torturadas e
sensíveis, homossexuais e grandes artistas. “Eu
o apreciava com todos os seus defeitos, fraquezas
e equívocos. Minha ambição era representálo
por inteiro.” (Pág. 258), diz o autor.
Tchaikóvski sofria horrivelmente ao reger
suas obras. Sentia tanta vergonha em frente ao
público que tinha vontade de “sumir sob a terra”.
Mas precisou fazê-lo incontáveis vezes
mundo afora. Era o seu trabalho, o seu ganhapão
desde que por volta dos vinte anos, tardiamente
portanto, passou a interessar-se pela arte
da música, que seria a paixão e a dedicação de
toda uma vida. Detestava, porém, as viagens
intermináveis, sempre com o pé no trem, ora na
Rússia, ora na Alemanha, ora na França e até
nos Estados Unidos, onde foi aclamado e tratado
como rei. Mas o excesso de compromissos,
festas, jantares, discursos, pompas, tudo o castigava.
Queria tão somente voltar para casa, para
a sua solidão. E rever o sobrinho Bob, como o
chamava, a quem dava todo o seu amor e a
quem dedicou a Patética, cujo título só Modest
elucidaria, a partir dos comentários do irmão,
59
Chicos
segundo o Posfácio de Martin Gregor-Dellin:
“A primeira parte representa a sua vida,
aquela mescla de dores, sofrimentos e o irresistível
anseio pelo grande e pelo nobre, de lutas e
angústias mortais por um lado e, por outro, as
alegrias divinas e um amor celestial pelo belo,
pelo verdadeiro e pelo bom em tudo o que a
eternidade promete em termos de graças celestiais.”
O segundo movimento espelharia as alegrias
fugazes de sua vida, incomparáveis com as
diversões comuns dos outros, daí o compasso de
cinco por quatro. O terceiro movimento descreveria
a “história de sua evolução musical. Não
passava de um folguedo, uma espécie de passatempo
e uma brincadeira no começo de sua vida,
até os vinte anos, mas depois vai se tornando
cada vez mais sério, e finalmente acaba coberto
de glórias.” O quarto movimento representaria
o estado emocional de Tchaikóvski durante
seus últimos anos de vida, “a amarga decepção
e profunda dor pelo fato de ser obrigado a
reconhecer que até uma vocação artística é efêmera
e incapaz de aplacar seu pavor do eterno
Nada, daquele Nada que ameaçava devorar inexoravelmente
e para sempre tudo o que ele
amava e que durante a vida inteira considerou
como eterno e duradouro.” (Pág. 260).
Ou seja, vida, paixão e morte. Uma vida de
paixões ocultas, proibidas, e uma morte desejada,
a última fuga.
Sua música não compreendida inicialmente,
a exemplo do lindíssimo Concerto para Violino
e Orquestra, cuja batalha travada entre o solista
e a orquestra era considerada de difícil execução.
E o Concerto para Piano n. 1? Tanta beleza
e sentimento juntos nos transportam ao sétimo
céu, o da música dos anjos. Como não se
deixar enfeitiçar pela magia do oboé em O Lago
dos Cisnes? E a leveza da Valsa das Flores?
Tchaikóvski não gostava de falar de si
mesmo: “- Da minha vida não há nada para contar.
Eu trabalho.” (Pág. 91). As lembranças que
ocultava pesavam-lhe e tinham o gosto acre de
uma erva amarga, como disse em carta a uma
amiga. As mulheres, aliás, fizeram parte de sua
vida de modos diferentes: a bela mãe de olhar
triste que cedo partiu e o deixou eternamente
órfão; a querida irmã Alexandra, que também
se foi; a misteriosa amiga e protetora, que o ajudava
a distância, pois só se comunicavam por
cartas, e que um dia o abandonou; a esposa de
mentirinha Antonina; e a babá francesa Fanny
com a sua caixinha de música na qual ouviu pela
primeira vez o Don Juan de Mozart e compreendeu
que não poderia haver música mais bela –
e que lhe contou a história da Virgem de Orléans,
que o inspiraria a compor a ópera A dama
de Orléans, que nos transporta para os campos
de batalha da França, com a poderosa mão de
Deus guiando a destemida Joana D’Arc. Todas o
marcaram com o sentimento da perda irreparável.
Da família, conservou poucas fotografias
sobre as quais o seu olhar emocionado via todos
bonitos, bem vestidos e penteados posando para
a eternidade. Onde estão esses rostos agora?
Nada restou dos meninos cujos rostos, vozes
e riso Piotr Ílitch ainda recorda muito bem.
Com o tempo, tudo neles se transformou. Cada
segundo decorrido desde então modificou algo
neles. Pois cada segundo é uma pequena morte
que mata a vida, mas ao mesmo tempo também
é vida, pois a vida é constituída somente desses
segundos fugidios, fatalmente transitórios. Ficam
as lembranças. (Pág. 98).
60
Chicos
Pois foi desse compositor extraordinário,
que amava a cidade sagrada de Kiev, onde se
ouviam sinos desde a entrada, agraciado com o
título de doutor honoris causa pela Universidade
de Cambridge, honraria e reconhecimento pelo
trabalho de trinta anos, de que Klaus Mann se
ocupou nas 260 páginas do livro. Identificou-se
com sua vida errante de incessante procura de si
mesmo, regida por uma lei impiedosa, preferindo
estar em qualquer outro lugar – de preferência
em lugar nenhum – a estar aqui. E o mais
doloroso: a morte voluntária de ambos.
Klaus Mann ofertou a nós leitores as mais
impactantes cenas de uma vida dedicada a mais
bela música, cheia de arrebatamentos, tormentos
e também de ternura, como no balé A Bela
Adormecida. O século 19 está inteiro no romantismo
de Tchaikóvski. E o 20, na alma torturada
de Klaus Mann.
Klaus Mann
* Vera Lúcia de Oliveira
Nasceu em Luziânia GO, mora em Brasília DF. É graduada em Língua Portuguesa e
respectivas literaturas pela Universidade de Brasília - UnB, onde também se especializou
em Literatura Brasileira e em Teoria Psicanalítica no UniCEUB. Tem se dedicado à
escrita de artigos, resenhas e ensaios publicados em jornais de Brasília, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Norte e Ceará. É autora do livro O beijo da mãe e outros ensaios de
Literatura e Psicanálise.
61
Um livro por amor a Clarice Lispector
Chicos
* Adelto Gonçalves
I
Se os grandes romancistas ou contistas
projetam nova luz sobre os predecessores que
lhes apontaram os caminhos e foram nada
mais que ávidos leitores, então, a fronteira entre
o vivido e o lido, praticamente, não existe
e, portanto, procurá-la seria vã tarefa, como
afirma o hispanista norte-americano Stephen
Gilman (1917-1986) em Galdós and the Art of
the European Novel: 1867-1887 (Princeton,
1981). Mais: que leitor, por mais desmemoria-
62
do que seja, não constatou nas páginas de
uma novela gestos e palavras de outras?
Afinal, como observou a filósofa e crítica
literária búlgara-francesa Julia Kristeva (1941)
no ensaio “Le mot, le dialogue et le roman”,
escrito em 1966, “todo texto é construído como
mosaico de citações, todo texto é absorção
e transformação de outro texto. E no lugar da
noção de intersubjetividade o que se instala é
a intertextualidade, e a linguagem poética é
lida, ao menos, como dupla”. Nesse caso, o
texto passa a ser um “diálogo de várias escrituras”,
como define Julia Kristeva.
Estas observações foram extraídas de Entre
lo Uno y lo Diverso (introducción a la Literatura
Comparada – ayer y hoy (Barcelona,
Tusquets Editores, 2005), do acadêmico e escritor
espanhol Claudio Guillén (1924-2007), e
vêm aqui a propósito de Feliz aniversário, Clarice:
contos inspirados em Laços de família
(Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2020), organizado
pelo jornalista e escritor Hugo Almeida
e que reúne 27 contos escritos por autores
tanto novatos como experientes a partir da
leitura de um dos contos que integram o livro
Laços de família, de Clarice Lispector (1920-
1977), publicado em 1960.
Chicos
O livro saiu em 2020, com pouca repercussão
na mídia – aliás, esta seria a primeira
resenha da obra, segundo o seu organizador –,
e marca não só a data do centenário de nascimento
da autora como os 60 anos da publicação
do volume. Traz duas versões inspiradas
em cada um dos contos que constituem Laços
de família e seguem a ordem dos textos do
livro, como observa no prefácio Hugo Almeida,
que foi quem teve a ideia de criar a obra e
tratou de convidar escritores de vários Estados
brasileiros, do Rio Grande do Sul ao Pará, nascidos
na década de 1920 até a de 1990, sem
se concentrar no triângulo São Paulo, Rio de
Janeiro e Minas Gerais. Há ainda três autores
que moram no exterior – Estados Unidos, Inglaterra
e Portugal.
Além disso, o organizador preocupou-se
em colher dos autores breves depoimentos sobre
o processo de recriação dos contos de Clarice.
Ao expor a “gênese dos contos”, os autores
lembram como chegaram a conhecer
(alguns, pessoalmente) a escritora, que, aliás,
este resenhista também conheceu, em 1971, à
época em que a via caminhar pelas ruas do
Leme e Copacabana e a quem também dirigiu
uma carta manuscrita que hoje, se não estiver
perdida, talvez faça parte do acervo que ela
deixou. Ao final, o livro traz ainda uma breve
biografia de cada autor.
II
Como observou numa das “orelhas” do
livro a professora Nádia Battella Gotlib, livredocente
em Literatura Brasileira pela Universidade
de São Paulo (USP) e uma das maiores
especialistas na obra clariciana, a partir da escolha
de um dos contos de Laços de família
como motivo inspirador, cada autor seguiu o
seu caminho, às vezes transcrevendo um trecho
do texto escolhido, outras vezes se detendo
“num traço de caracterização de personagem
ou mesmo num detalhe episódico, ou
num traço cênico.
E o resultado foi um livro de contos que
pouco fica a dever à grande autora que os inspirou,
aquela que, ao escrever Laços de família,
teria produzido “a mais importante coletânea
de contos publicada neste país desde Machado
de Assis”, como afirmou o romancista
Érico Veríssimo (1905-1975) em carta à própria
autora datada de 3/9/1961, cujo trecho é
reproduzido pelo organizador como epígrafe
da apresentação. São contos que procuram reproduzir,
com outras palavras e temas, a prosa
intimista e cheia de metáforas de Clarice,
igualmente carregados de lirismo, em meio a
questionamentos sobre a vida e seus mistérios.
De fato, o conto escrito pelo organizador
do volume, “O canto de Clarice”, inspirado
no conto “Feliz aniversário”, trata do encontro
entre integrantes de uma vasta família a
propósito da comemoração dos 90 anos de Zilda,
a matriarca. O autor cria e recria diálogos
entre filhos, filhas, netos, netas e bisnetos. Na
recriação de Hugo Almeida há até um monólogo
interior que seria o da matriarca (ou da pró-
63
Chicos
pria Clarice, transformada em personagem?) à
beira da viagem para o eterno: Cumpri a minha
jornada, acabou minha curta eternidade.
Ela, ainda que tardia, vem pelo ar. Entre, o
corpo é seu. Resina, bálsamo, ládano? Não.
Não paro aqui. Um ser póstero, eu. Fico ainda
comigo. No fim, o fim; só restam o nome e a
lembrança. Se restarem. O caminho nunca acaba.
A noite me assusta. Esse infinito me estremece.
Mas vou. Estou pronta para a última
tarefa. Mãe, pode me buscar.
Já em “Sonhos de Ana”, Marta Barbosa
Stephens (1975), jornalista e crítica literária
pernambucana que vive desde 2014 na Inglaterra,
autora do romance Desamores da portuguesa
(Rio de Janeiro, Ímã Editorial, 2018) e
do livro de contos Voo luminoso de alma sonhadora
(São Paulo, Intermeios, 2013), reconstitui
o viver de uma mulher, Ana que, à noite,
tem sonhos que a levam para longe daquele
destino opaco de dona de casa. Eis um excerto:
Pensou em por quanto tempo continuaria
a viver assim, mais dentro do sonho do que da
vida. Outra manhã, e ela não sabia como se
comportar. (...) O que a movia à mesa de café
da manhã era a lembrança dos sonhos. Saía da
cama, mas seguia amarrada a uma memória.
Não eram imagens nítidas, mas eram sensações
reais que a acompanhavam à cozinha, e
logo ao mercado, ao salão de beleza, à biblioteca,
à sessão de terapia. Até se dispersarem
na rotina, para de novo a tomarem pela noite.
Por aqui se constata que Marta Barbosa
Stephens não só levou ao pé da letra a sugestão
do organizador do livro como foi além:
produziu um texto que parece saído diretamente
das mãos de Clarice Lispector.
III
Outro conto que se destaca é “Delírios e
divagações da miúda”, do mineiro Ronaldo
Cagiano (1961), autor dos livros de contos
Eles não moram mais aqui (São Paulo, Editora
Patuá, 2015), Dezembro indigesto (Governo
do Distrito Federal, Secretaria de Estado de
Cultura, 2002) e Dicionário de pequenas solidões
(Rio de Janeiro, Editora Língua Geral,
2006), entre outros. Nesse texto, o autor faz
um diálogo com a obra clariciana, a partir do
conto “Devaneio e embriaguez duma rapariga”,
buscando uma escrita que seja “um flerte
e não um pastiche; uma simbiose, não um plágio;
um olhar pessoal, jamais uma releitura”,
como explicou em seu depoimento.
Vivendo desde 2016 em Estoril, freguesia
de Cascais, Cagiano optou por localizar seu
conto em Lisboa e por uma linguagem em que
não são poucas as palavras de uso corrente em
Portugal para reconstituir o dia a dia de uma
jovem, Gilda Helena, que, arrancada às pressas
do Brasil, fora viver às margens do Tejo, quando
os pais tiveram de optar pelo exílio para
fugir dos horrores da ditadura militar brasileira
(1964-1985). E ela, então, já adolescente, vive
o drama de ser cortejada pelo neto de um antigo
agente da Pide, a polícia política do regime
salazarista. E, assim, Cagiano reconstitui “a
64
Chicos
paixão segundo G.H.”, que o leitor pode ler
como uma intertextualização, pois esse é o título
de um dos mais conhecidos romances de
Clarice Lispector, publicado em 1964. É de se
observar que Cagiano usou a linguagem, a dicção
de Portugal, como no conto de Clarice Lispector
que ele recriou.
Já para a premiada romancista e contista
paraibana Marília Arnaud (1964), recriar um
dos contos de Clarice Lispector equivale a
“estar no centro do coração selvagem”, o que
remete para o romance de estreia da autora,
publicado em 1944. Em “A mulher do casaco
marrom”, ela trata de recriar o conto “O búfalo”,
de Clarice Lispector, em que a protagonista
é mais uma mulher oprimida no exercício de
suas funções como esposa e dona de casa. E
que, para fugir daquele destino de viver com
um homem que já não a ama (ou talvez que
nunca a tenha amado), procura livrar-se da
opressão caminhando sozinha pelas ruas da
cidade. E reflete: A vida, um barco em correnteza.
Sem remos. Maldito homem! Se ao menos
houvesse morrido, não teria de aprender a
odiá-lo. Conhecia a morte, que visitara a sua
casa quando ela era ainda uma garota. Com a
partida repentina da mãe, entupira-se de silêncio
e aninhara-se nos livros (...).
Por aqui se vê que razões não faltam a
Hugo Almeida, o organizador, quando diz, no
texto de apresentação, que “o leitor verá que
inquietação, dor, mistério, amor, inveja etc.
atravessam as narrativas deste livro”. E que,
portanto, ler esta coletânea é o melhor caminho
para se descobrir ou se reencontrar com
uma das maiores escritoras brasileiras do século
XX, senão a maior.
IV
Mineiro radicado em São Paulo desde
1984, Hugo Almeida (1952), doutor em Letras
na área de Literatura Brasileira pela Universidade
de São Paulo (USP), é autor de Mil corações
solitários (São Paulo, Editora Scipione,
1988), que conquistou o Prêmio Nestlé de
1988 e o Prêmio Cidade de Belo Horizonte de
1987, com o título de Carta de navegação. Em
2021, publicou Certos casais (Editora Laranja
Original), seu quarto livro de contos, que reúne
nove textos inéditos, alguns escritos há duas
ou três décadas, mas que receberam ajustes
para a publicação.
Publicou ainda os livros juvenis Porto Seguro,
outra história, novela (São Paulo, Nankin
Editorial, 2005) e Que dia será o dia?, novela
(Nankin Editorial, 2007), e os infantis Mais
rápido do que a luz (São Paulo, Editora FTD,
1993), Todo mundo é diferente (São Paulo, Lê
Editora, 1996) e Pare, olhe, siga: boa viagem
(São Paulo, Editora Ícone, 2000), além da novela
Meu nome é Fogo (Belo Horizonte, Editora
Dimensão, 2009), do livro infanto-juvenil
Cinquenta metros para esquecer (São Paulo,
Didática Paulista, 1996) e do romance Minha
estreia no crime – Estação 111 (São Paulo, Lê
Editora, 1997), inspirado no massacre do Carandiru,
ocorrido a 2 de outubro de 1992, em
65
Chicos
Feliz aniversário, Clarice: contos inspirados em
Laços de família, de Hugo Almeida (organizador).
Belo Horizonte: Autêntica Editora, 272 págs., livro
impresso: R$ 54,90; e-book: R$ 38,90, 2020. Site
da editora: www.grupoautentica.com.br
São Paulo. Tem à espera de publicação um romance
que dialoga com a obra de Osman Lins.
Autor de tese de doutoramento na USP
sobre o romance A rainha dos cárceres da Grécia,
de Osman Lins (1924-1978), organizou (e
prefaciou) Osman Lins: o sopro na argila, ensaios
(2004) e, com Rosângela Felício dos Santos,
Quero falar de sonhos (2014), artigos deste
escritor. Organizou ainda as coletâneas de
contos Nove, novena: variações (São Paulo,
Olho d´Agua, 2016), que reúne narrativas inspiradas
na obra de Osman Lins. Profissionalmente,
sempre trabalhou como jornalista, com
longa carreira na redação do jornal O Estado
de S. Paulo.
Hugo de Almeida -
Foto de Barbara Braga
* Adelton Gonçalves
Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela USP e autor de Gonzaga, um
poeta do Iluminismo (1999), Barcelona brasileira (Lisboa, 1999; São Paulo, 2002), Bocage,
o perfil perdido (Lisboa, 2003; São Paulo, 2021), Tomás Antônio Gonzaga (2012),
Direito e Justiça em terras d´el-rei na São Paulo Colonial (2015), Os vira-latas da madrugada
(2015) e O reino, a colônia e o poder: o governo Lorena na capitania de São Paulo
– 1788-1797 (2019), entre outros
66
Poesia de muitas faces
Chicos
* Paulo Lima
O título do novo livro de poesia de Jeová
Santana, ESTILHAÇOS (Editora Mondrongo),
já anuncia o mote que o constitui. Trata-se de
um apanhado das muitas andanças, físicas e
poéticas, que o autor realizou nos últimos
anos.
Por esse motivo, a recolha se apresenta
caleidoscópica, às vezes colada às circunstâncias,
às vezes atemporal.
Duas partes dão forma ao livro, nomeadas
por dois neologismos: Palavração e Andarilhagens.
A primeira parte é composta por poemas
que explicitam as muitas referências literárias
do autor - suas imersões no cânone poético
que inclui Bandeira, Drummond, Cabral, Jorge
de Lima. E por formas que incluem o verso
livre, o soneto, o haicai, e até incursões pelo
cordel.
Esses poemas trazem uma defesa apaixonada
e visceral da poesia, como uma
"âncora" que possibilita nos manter respirando.
"Talvez só a poesia deixe traço/como leveza
da tarde e beijo/no oscilar da memória e
espaço", dizem os versos do "Poema do esquecimento".
O poeta, contudo, reconhece que nestes
tempos tão materiais, a poesia enfrenta outros
rumos e desafios. "A escrita de hoje é outro
pique:/pintura de ferozes demandas,/neón em
negra fulô de butique", constata no poema "A
casa de Jorge de Lima", no qual dialoga com o
poeta alagoano.
É com esse "outro pique" que Jeová
Santana, na segunda parte, expõe as percepções
de seu estar no mundo, traduzindo as suas
múltiplas perambulações de poeta e professor,
em cidades como Aracaju, Maceió e São
Paulo.
Nesse mosaico cabe a aflitiva realidade
brasileira, com seus absurdos aparentemente
inesgotáveis, explorados numa combinação de
linguagem rigorosa, abusada e irônica, em versos
tecidos entre o lirismo e a acidez. "Haja
Maria,/haja penha,/haja lenho,/haja energia/
para impedir/esta epidemia,/a lista infinda/de
todo dia", anota no poema "As Marias, as penhas".
67
Chicos
E cabe a memória afetiva do poeta, com
suas dores e suas perdas. Muitas delas pungentes,
como nos versos em que rememora
sua mãe, recém-falecida: "Quando a vida diz a
que veio:/a mãe torna-se um pesado bebê/a
bleque fraid,/saco a minha rede!", zomba em
diálogo com a preguiça de Macunaíma.
Os estilhaços poéticos de Jeová Santana,
enfim, são muitos e nos alcançam com a força
da boa (e necessária) poesia.
boiar numa banheira/de sonhos e sombras".
E comporta também a crítica ao consumismo,
na forma do humor tanto certeiro
quanto incisivo: "Toda vez que ouço/falar em
Nota dos editores: Republicado por ter
saído com erro na edição anterior.
* Paulo Lima
Nasceu em Aracaju SE e mora em Brasília DF. é jornalista e escritor. Autor
dos livros Anônimos e Cante minha canção, ambos de contos, e Dicionário
de nuvens, de poesia.
68
O antilirismo lírico de Lopito Feijóo
Chicos
* Paulo Martins
Dos livros de poesia do poeta angolano
Lopito Feijóo que me chegaram às mãos, o
“Desejos & Doutrinárias Marintimidades” é o
que me tocou mais fundo. Descrevo aqui, de
forma sucinta, o sentido e a qualidade que encontrei
em seus poemas.
I
De um modo geral, a poesia de Lopito Feijóo
parece escrita a machado, riscado em tampos
de madeira de lei, com cortes ora profundos
ora superficiais, pelo que certamente também
são usadas outras ferramentas de diversos calibres,
todas simbolicamente fálicas. Já sabia, de
outros livros, que na visão deste veterano poeta
nossa sociedade de classes não pode ser encarada
com delicadeza e amabilidade: ela nos obriga
a ser duros, contundentes e um pouco ferozes,
por ordem de suas contradições, que nos agridem
e engendram nossa revolta. As relações humanas
e, no seu bojo, as relações amorosas, são
reféns dessa condição. Então, quando a poesia
amorosa ou erótica está talhada e pode ser declamada,
ela urra como leão, grita como ave de
rapina, ameaça como uma hiena; mas tem uma
particularidade, aparentemente paradoxal: os poemas
acabam num doce enlevo, com as carícias
e delicadezas das aves canoras quando em conluio
de acasalamento. A ferocidade então se
transforma em ternura e o realismo expressionista
se converte em lirismo exposto.
Lopito Feijóo se declara um poeta doutrinário.
Não é à-toa que seu primeiro livro de poemas
se chama Doutrina e vários outros são nomes
compostos, em que a palavra “doutrina” ou
“doutrinário” estão presentes, como a querer
destacar esta qualidade vital: tudo na vida decorre
de uma doutrina. Ou seja, a existência é doutrinária
por natureza. Na verdade, é isso mesmo,
pois doutrina é um conceito que implica sabedoria,
ciência e erudição; e doutrinar não é mais do
que a forma de adquirir tais atributos. Ele escolheu,
então, estender a sua criação poética no
desvelamento dos misteriosos e multifacéticos
meandros doutrinários da vida.
Assim também será visto o amor. É preciso
cantar a experiência do amor, a sua sabedoria, a
própria arte de amar, como a coisa mais sublime
da vida. Parece não lhe interessar as declarações
de amor pessoal, pelo que sua poesia jamais é
dedicada a esta ou aquela mulher particularmen-
69
Chicos
Clarear uma preta
escurecer uma branca
enaltecer temendo,
uma destemida anca
te, ou a narrar histórias vividas. A amorosidade
que escorre dela não é a que carrega dentro de
si para um ente específico: é a que o homem
deve desenvolver para tornar a vida uma experiência
válida, prazerosa e feliz. Quando ele a extravasa,
é no sentido de alcançar o universal. Ele
também quer aprender a experiência da mulher,
alcançar o amor universal, tornar-se profundo no
amor. E por esse caminho parece que deseja nos
doutrinar, ou simplesmente nos orientar a ação,
fazer com que vivamos a experiência transcendente
que nos fará felizes.
Esta intenção fica bem explícita no poema
Erótica Oração de Eficiência, no qual chega a ser
didático, nos conduzindo pelos caminhos do
amor:
Antes do interlúdio o prelúdio.
Antes da sufixação a prefixação.
Antes do par o ímpar.
Antes do envolvimento o sentimento.
O poema prossegue neste ritmo, traçando
um rigoroso ritual, no qual o antes é uma preparação
imprescindível, e o depois, uma espécie de
liturgia de completude. Enfim, “antes das eróticas
relações as conjugais conjugações”; ou seja,
“a entrega dos corações” sempre deve preceder
as “ações”.
Este cuidado com a relação amorosa e erótica
será encontrado em diversos outros poemas,
como em Poética & Erótica & Colorida & Florestal,
no qual o mantra da poesia anterior se repete
ad infinitum, pois essa é a própria dimensão
do amor:
e assim até o fim. São, no dizer da excelente
prefaciadora, a poetisa Ana Mafalda Leite,
“premissas de uma espécie de manual de sedução,
recorrendo uma vez mais o poeta à proposta
de ensinamento e utilizando um registro, a
que a sua poesia nos habituou, o da lúdica ironia
e desconstrução”. Queiramos ou não, somos
despertados pelo desejo de “eficiência”
“orientação” e “conhecimento” da relação amorosa.
Diante do livro de Lopito, talvez devêssemos
primeiro perguntar: seria o sexo poetável?
Claro, a resposta é sim. Só que não é fácil. Talvez
seja um dos temas diante do qual encontraremos
os mais difíceis obstáculos, dado os riscos
de se cair na vulgaridade. Lopito responde à pergunta
na prática de seus próprios versos. Todo o
seu livro pretende dar uma resposta a ela de forma
até mesmo didática. Na verdade, o sexo só é
poetável através do erotismo, com o que deveríamos
mudar a pergunta: seria o erotismo poetável?
Sim, é Lopito mesmo quem revela, em Onda
Fálica, por exemplo:
Digitando versos
entre as coxas
do teu alongamento
debitando rimas
escorreitas
em teu peito
70
Chicos
ou em Quase Masturbação:
Em outro poema, intitulado Onda Bronzeada,
a mulher também aparece explicitamente
Sonhavas quando
despido em teu corpo
laminei
as falésias d’outras mágoas
Sendo assim, abracemos esta leitura com a
devida paixão poética e erótica.
II
O livro se divide em duas partes: Navegando
Marintimidades e Desejos de Aminata.
A marintimidade do título está presente em
ambas as partes. Trata-se de uma palavra inventada,
junção de duas outras: marinho (ou marítimo)
e intimidade, com o que Lopito idealiza a
experiência amorosa dentro das águas do mar,
como se só ali ela se concretizasse para ele. A
marintimidade é, portanto, o lado poético e sonhador
do poeta ao pensar o amor, algo que só
alguém de altos voos imaginativos poderia alcançar.
É um vasto passeio visionário pela nudez,
como se ela só existisse em estado líquido.
No poema Divina & Pornofônica, sente-se levado
assim pela parceira:
propões-me maríntimo
viajar no paraíso feito líquido.
Em Consagrando o sonho, ainda é mais
explícito:
Sedento e voraz
resolvi-me
com o suor da tua pele porosa
somente liquefeita para mim.
como ser marinho, uma simples “onda”; já em
Navegando na Crista da Onda ela é uma
“destemida moreia / na crista da onda / envolta
em prazeres”. Aliás, neste último poema o bardo
sente-se
Navegando nos picos do prazer
Nas horas quentes do prazer
Num quarto poema, Despindo-se, retoma o
tema com a mesma fluidez das águas:
Na praia da minha praia
vislumbra-se
um banho de mar sem roupa.
É sempre a nudez e o mar, e o ser amoroso
navegando nos dois. Ou seria outra a ilação? Seja
como for, tais versos não deixam de representar
os líquidos fluxos eróticos da imaginação do
poeta.
Prosseguindo na sua navegação pelas
águas do erotismo, Lopito Feijóo às vezes esgrime
versos um tanto rudes, se vistos superficialmente.
É por isso que, quando falo que sua poesia
parece ser escrita a machado, também me
reporto a seu lado animal, aparentemente grosseiro
e naturalista, que ele não desiste de externar:
Eu, babado envenenado e desnudo
dançando extenso e erótico
viajando intenso e linguarudo.
Tu, delirando deitada
71
Chicos
ajeitada e apressada
no compasso da intimidade sonhada.
Este conluio, no entanto, acaba sempre em
ternura:
ofegantes siameses no chão
unidos pelo kuduro e pelo coração.
No poema Maiúsculas Intimidades a mesma
imagem se repete. É preciso preludiar a ambientação
do amor:
Magnifica os sentidos do toque
na densa pele da pedra que toco
no mundo das florestas animais.
Mas é nesse espaço que
Pontifica nos seios dum peito
angelical induzindo a loucura
dos acesos faróis encantatórios.
O sexo tem, incontestavelmente, seu lado
animal, e o poeta sabe disso e não o esconde. É
meio antropofágico, e o revela. No poema Gestos,
do começo do livro, já vislumbra o seu lado
canibal:
Na areia da praia contigo
deitar-se fantasiado de eterno
antropófago por demais assediado.
Na segunda parte do livro, esta fantasia
persiste, como no poema Para uma Noite Feliz:
Falo do falo do fogo das falas
Da fonte do divino
Do sémen morninho e do próprio canibal.
Nesse contexto animalesco, a mulher pode
adquirir várias denominações: “onda”, “sereia”,
“moreia” e mesmo “lontra”, sempre relacionadas
ao mar.
Há que se notar, ao lado dessa dinâmica
animalesca, desse fundo de convívio louco e terno
ao mesmo tempo ao qual o poeta se entrega
com paixão, a presença de um linguajar aparentemente
grosseiro, mas na verdade franco, explícito,
sem rodeios. Por natureza, o sexo é obsceno.
Não se pode falar dele somente com palavras
doces. No poema Conjunção Carnal ele já
alerta:
A prática das carnes envolve
alguma espiritual ferocidade.
Já no poema Sensualmente Nós, nos apanha
desprevenido:
…são válidos todos os gestos
na hora de procriar.
Daí o vocabulário poético de Lopito descambar
muitas vezes para o cru, o óbvio, mas
um óbvio que não perde a sensualidade. Pode
ser que alguém se espante diante de versos como
“…na mão o furor da masturbação”; ou rejeite
palavras ou formulações que no fundo, têm
papel insubstituível no contexto de seus versos:
“falo” (usado em diversos poemas), “genitália”,
“porra”, “caralho”, “tesão””, ”fornicada emoção”,
“papaias defloradas”, “viscosa desgraça
carnal”, “bicéfalos andando libidinosos”,
“desgraça carnal”, “pecado genital”,
(desconstrução irônica em que emerge o verda-
72
Chicos
deiro nome do lendário ‘pecado original’),
“hasta púdica” (ironizando o hasta pública),
“fálica cumplicidade”, “triângulo viperino”,
“lavoura carnal”, “envaidecida qual caralho vermelho
e teso”, “vagina sempre erecta” e outras
tantas.
Este linguajar sem rodeios aparece até nos
títulos dos poemas: Quase Masturbação, Concerto
Com Genitália, Erótica Oração de Eficiência,
Retocada Missa Hormonal, Divina & Pornofônica,
Onda Fálica, Húmida Lavra, Pecado Genial
ou Recado Genital.
Só que ao lado dessa linguagem aparentemente
vulgar, não podemos perder de vista que
o poeta contrapõe outra linguagem, onde se ressalta
um lírico e afetuoso tom amoroso, já que o
animal é “a fera que não fere”. Em Para uma
Noite Feliz, diz:
Entregue a fera que não fere
sou fênix engalanado na vulva da virgem
harmonizando segredos de tanto musgo
para neste natal se for cabal,
em paz, adormecer-te ao som de NOITE
FELIZ!
E assim, vamos encontrar, no desenrolar
do livro, versos que exaltam a mulher e seu papel
amoroso fundamental na vida do homem, a
aliviadora de todo o seu sofrimento, como em
Desígnios de Mulher:
Quantos dias de mais prolongados?
Quantas luas sacrificadas?
Quantos cantos indesejados?
Quantas noites tão bem malamadas?
Quantos prantos descarregados?
Quantas estâncias palmilhadas?
Quantos sorrisos afunilados?
Quantas oferendas ao bem-amado?
E outros versos belíssimos, dignos da melhor
poesia lírica de nosso tempo, afluem aqui e
ali, fazendo um contraponto com os versos fesceninos,
como estes de Inútil Correspondência:
Um pombo correio beija
minhas pálpebras e descobre
um inabitado coração. (…)
Ou este de Canção Para…:
Intimidade
é saudade a todo instante
Que extraordinária e comovente beleza!
III
Paralelamente, Lopito cria suas próprias
regras criativas, através da invenção, decomposição
ou agrupamento de palavras e outros artifícios
vernáculos, técnicas que já vinha utilizando
em poemas de livros anteriores. Já vimos isso
ao abordarmos a palavra “marintimidade”. Com
o prefixo “porno”, bem apropriado à temática
do livro, ele cria diversos sucedâneos, como
“pornofônico” e “pornofálico”. E com os advérbios
em “mente” costuma brincar à vontade, ora
injetando um duplo sentido no verso, ora buscando,
na simples decomposição, uma melhor
sonoridade, ou uma simples surpresa léxica.
73
Chicos
Como “mente” é terceira pessoa do indicativo
do verbo mentir, um advérbio terminado
em “mente”, decomposto, leva a duas hipóteses.
Imaginemos esta frase: “aquela que é
verdadeiramente…” Se decompormos a última
palavra, colocando uma vírgula no verdadeira,
(“aquela que é verdadeira, mente”),
criamos um paradoxo. Sem a vírgula, a frase
fica incompleta. No entanto, se ela é alusiva
a uma palavra anterior, ela se completa e adquire
duplo sentido. É o que acontece com
todos os versos de Juramento Inicial. Vamos
a um exemplo:
Fanático. I Admirar-te permanente mente
Admirar permanentemente é fanatismo.
Portanto, o fanático mente. Daí que “admirar
fanaticamente” não passaria de uma força de
expressão poética, sem nenhuma submissão
ao conceitual. Assim, todos os versos de Juramento
Inicial e de Juramento Final repetem
o artifício, oferecendo-nos um buquê de surpresas.
O que vai diferir os dois juramentos
são as palavras de abertura de cada verso,
em número de dez, talvez uma alusão aos
dez mandamentos, que delinearão uma determinada
consequência. No primeiro poema,
temos: “fanático”, “boquiaberto”,
“louco”, sensível”, “carinhoso”,
“educativo”, “possessivo”, “domante”,
“bendito” e “diverso”; no segundo:
“romântico”, “artístico”, “concertado”,
“esclarecido”, “encarecido”, “faminto”,
“atrevido”, “deslumbrado” e “imaginário”.
Os dois poemas se entrelaçam. No primeiro,
se bem percebermos, o poeta alude às mentiras
do amor, oferecendo à amada sempre o
exagerado ou o impossível (nada mais poético
do que isso em se falando do amor), como
no verso
Domante. I Possuir-te intemporal mente
No segundo poema, o poeta descobre
as facilidades e mentiras do juramento inicial
e penetra num romantismo onde tudo é imaginário:
Romântico. I Cultivar-te poética mente
(…)
Esclarecido. I Desejar-te humilde mente
(…)
Imaginário. I Devorar-te mental mente
O juramento final é um desdobramento
do juramento inicial. Isto fica claro no desfecho
dos dois: No primeiro o poeta diz:
EU CAVALGANDO-TE ALEGREMEN-
TE
SOMENTE APARENTE MENTE DE-
MENTE
No segundo conclui:
TRITURAR-TE FISICAMENTE NA
TERRA
74
Chicos
E EM MARTE AMAR-TE ETERNA-
MENTE!
Observe-se que o último advérbio do
poema, eternamente, já não é decomposto. É
como se pela primeira vez o poeta estivesse
a dizer a verdade. Mas com a força de um
verso cheio de sonoridades e de aliterações:
“na terra e em marte amar-te eternamente”.
Para finalizar, lembremos que a segunda
parte do livro, Desejos de Aminata, é uma
espécie de desfecho da “doutrina amorosa”
de Lopito Feijóo. Se devemos amar profunda
e eternamente, seria de se perguntar: mas
quem? Pode não ser Maria nem Joana nem
Luanda, mas terá que ser uma Aminata. É o
sonho de todos: alguém especial; alguém
perfeito. O amor sai do seu anonimato e passa
a ter um nome, um ser que o personifica,
a Aminata, que congregará a beleza, o encantamento,
o erotismo, o prazer, a amorosidade,
o gozo total. Assim é que os quarenta
poemas de Desejos de Aminata se transformam
num “hino amoroso”, na arguta visão
da prefaciadora, em que se destaca, do começo
ao fim, a perfeita sintonia entre os dois
amantes. Hino, samba, sinfonia, kuduro, seja
o que for, a música toma posse do amor e
ele se faz divino.
* Paulo Martins
Nasceu em Ipiaú BA, mora em Lisboa, Portugal. Poeta, letrista de canção popular,
romancista, cronista e ensaísta. Entre seus destacam-se os romances
Glória Partida ao Meio (2009), Adeus Fernando Pessoa (2014), História de
Roque Bragantim – Olhares do Campo (2017); o ensaio biográfico Jacques Brel
– A Magia da Canção Popular (1998), e o livro de memórias e ensaio As Diabruras
de Orfeu – Cantorias sem fim (2020).
75
O livro do Acir
Chicos
* Emerson Teixeira Cardoso
Acir Simões que conheci um pouco tarde
como artista e em pessoa, nos deixou em 2021
vitimado pela COVID 19. Nossos laços de amizade
começavam, então, a se estreitarem e o
interesse pela sua arte de poeta e desenhista
crescia entre nós. O número 65, edição de inverno,
de nossa Chicos foi dedicado a ele, após colaborar
durante muito tempo com seus desenhos
e poemas.
Aquele poeta, um tanto quanto introspectivo
que parecia deslizar na vida querendo não
incomodar ninguém, era de fato, um artista de
76
vibrações íntimas, tímidas, mas poderosíssimas.
"Na barriga do Minotauro” cabem outras
aflições, reúne dezenas de poemas em que o
artista estampa as manifestações do seu "eu"
sensível e de suas impressões do mundo. O resultado
final é este volume que marca de forma
surpreendente e definitiva a sua estreia na literatura.
São poemas e temas que revelam experiências
vivenciadas, necessidades materiais e anseios
intelectuais de um autor comprometido com
a sociedade e seu tempo.
O autor, desde o princípio irá se deparar
com a miséria e os conflitos de um povo condenado
a uma existência aflitiva, que uma elite
detentora do poder inflige as populações pobres
como uma morte anunciada.
Poesia impregnada de sentimento humano,
de uma estranha sensibilidade, de revolta íntima
e de uma incontrolável necessidade de desabafo
e sublimação. Ele, nos deixa, forçosamente, uma
sensação de incômodo, pois nos faz penetrar
num universo inexorável, angustiante no qual se
sente, não fosse pela liberdade de expressão,
incapaz de escapar. E apesar dos pesares, no
que tange a dureza dos temas que Acir explora,
há momentos de puro lirismo, como nesse poema
que transcrevo na íntegra:
" Aprisionam jardins
na memória dos duendes,
vigilantes do orvalho
que cai nas poças d'água,
refletindo a lua."
Chicos
As vezes a esperança de um belo dia vem
do zodíaco:
"A hora do meu quase morrer
um esplêndido dia
aos nascidos em Touro.
Ou estes versos de rara beleza imagética:
"Um dia pela tardinha ficou estupefato,
como um urbano vendo um canário."
Nas lembranças da infância pobre, a inocência
dos primeiros anos dando a revelação da
vida entre dores e crenças, dúvidas, e de quebra,
desenganos:
" Nós, os não escolhidos, sem esperanças
de ter os lábios colados pelo néctar dos anos
corríamos da amarga ira do Sr Teodoro."
A matemática da fome não acompanha a
velocidade da locomotiva que leva a riqueza da
terra, apitando alto para assustar os desvalidos:
"Cento e dois vagões de minério contou
um mendigo com sua fome toda "
O amor, signo e significado a pairar sobre
a curiosidade do menino diante de um suicídio:
"E em meio a risinhos safados, entreouvi a
palavra amor balbuciada pelas outras infelizes.”.
Acir Simões parece as vezes incursionar
por outros temas, bora se atenha aos mesmos
processos em suas criações. Neste poema de
apenas quatro versos, recorre a metalinguagem
trazendo a pauta outra habilidade, a metalinguagem.
"Traço sombra a compor cara e tormento.
Em cada lágrima
escorre um rosto."
Instantes de pura poesia nos oferece Acir
Simões neste seu livro de poesia, que certamente
irá satisfazer aqueles leitores que buscam num
livro tudo que um ótimo autor pode expressar.
***
Nascido em Cataguases-MG, Acir Simões
era formado em Direito, advogado e bancário
aposentado. Desde cedo, interessou-se pela
poesia. Publicava poemas no jornal do Grêmio
do Colégio Cataguases e nos fanzines da
cidade. Já em idade madura, decidiu reunir os
seus melhores textos e submetê-los para avaliação
na Caos & Letras. Seus versos trazem a recordação
do melhor da poesia mineira e abordam
temas universais como a morte, o amor e o
tempo com lirismo e singularidade. Aprovado
para publicação, Acir se foi antes de ver o seu
livro inédito vir ao mundo. Faleceu por complicações
decorrentes da covid-19 em junho de
2021. Devido ao atraso das vacinas e a má gestão
de crise do governo federal, não pôde tomar
a segunda dose e se imunizar. Em tributo ao
nosso autor, a Caos & Letras manteve o projeto
da publicação junto à família. A obra tem prefácio
de Ronaldo Cagiano, orelha de Adriane Garcia
e um poema de apresentação escrito por
Marcos Bagno.
Editora: Caos e Letras (2022)
Páginas: 90
ISBN: 978658080409
https://www.caoseletras.com/
* Emerson Teixeira Cardoso
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa
da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas
Hardy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967),
mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul
(1997).
77
Dois filmes sobre a Ucrânia
Chicos
* Antônio Jaime Soares
O cinema foi inventado em Paris, em
1895, pelos irmãos Lumière. Dois anos antes,
porém, já existia um dispositivo semelhante na
Ucrânia e um fotógrafo filmou documentários
em Odessa, cidade que se tornaria iconográfica
para os cinéfilos, por meio do filme Encouraçado
Potemkin, de Sergei Eisenstein (1925).
Logo, começaram a surgir nomes de peso
na Ucrânia e, em 1918, a instalação de um estúdio
bem aparelhado em Kiev. Em 1922, o país
passou a integrar a União Soviética, de cuja cinematografia
o ucraniano Aleksandr Dovjenko
foi um dos mais celebrados. Entre outras, ele
criou o "cinema poético", uma tentativa de se
opor aos cânones ditados pelo regime de Stalin,
sempre exigindo temas “realistas”, ou seja, propaganda
do regime, como acontece em todas as
ditaduras.
Apesar das imposições, os ditos cineastas,
mais Vsevolod Pudovkin, Dziga Vertov e outros
alçaram o cinema russoviético (também o pessoal
do teatro, literatura, música, dança, artes plásticas)
aos níveis mais elevados que se pode desejar.
O mesmo aconteceu na Alemanha, duas
grandes culturas sufocadas, respectivamente, por
Stalin e Hitler, sendo que a Rússia passou mais
46 anos sob ditadura e tem um presidente há 23
no poder. Isso emperra o avanço da cultura.
E retornemos à Ucrânia. História descontínua,
ao longo dos séculos, a maior parte do
tempo sob ocupação estrangeira. Entre 1917-21,
foi independente, mas dominada de novo pela
Rússia (até 1991), que agora ameaça repetir a
dose. País muito fértil para a agricultura e para a
corrupção, que nem o nosso. Em 1929, Dovjenko
filmou lá, produzido pela URSS, O arsenal,
sobre o levante dos operários de uma fábrica de
armamentos (1921), promovido pelos veteranos
bolcheviques da 1ª Guerra Mundial contra o governo
burguês de Kiev, por uma Ucrânia soviética.
Filme muito elogiado pelo “olho de Dovjenko
para os absurdos do tempo de guerra (por
exemplo, um ataque a uma trincheira vazia), o
78
Chicos
que antecipa sentimentos pacifistas em filmes de
Jean Renoir e Stanley Kubrick”. Produzido pela
própria Ucrânia, em 1991, vi agora Fome 33, de
Oles Yanchuk, que conta a tragédia da Grande
Fome de 1932-33, resultante da política de confisco
de Stalin. Confisco de bens, comida, até
crianças dos camponeses que se recusaram a
trabalhar feito escravos em fazendas coletivas.
Estas foram criadas para exportar a produção e
desenvolver a indústria, e a recusa dos nativos
resultou numa espécie de holocausto em que
morreram 3 milhões e 900 mil pessoas (dados
oficiais, alguns falam em dez milhões). Tudo
mantido em segredo pelos dois governos até
1990, quando a União Soviética já estava pedindo
penico.
Conheço gente que defende a Rússia
invadir a Ucrânia, alegando que, recentemente,
os Estados Unidos invadiram vários países e ninguém
ligou. Certo, mas, só porque o inimigo
faz, não é justificativa para o outro fazer. E o
histórico da Rússia também não é nada recomendável,
basta lembrar a fome ucraniana citada
acima, sem esquecer os vários expurgos naquela
mesma década, eliminando pessoas aos
milhões, até por razões étnicas. Os esquerdistas
fanáticos fingem ignorar todas aquelas barbaridades,
mesmo fatos mais recentes, como os soviéticos
terem invadido o Afeganistão primeiro,
em 1979, e foi tão difícil sair de lá quanto os
americanos do Vietnam. Daí, me considero um
esquerdista independente, até por não compactuar
com governos capazes de falsificar a história.
* Antônio Jaime Soares
Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais
mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um
longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.
Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que
não quebra (2011)
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Chicos
Lendo os Clássicos
*Luiz Ruffato
O livro do xadrez (1942)
Este conto longo (ou pequena novela, como
queiram) contraria aqueles que acreditam em
volume e não em qualidade. Em suas pouco
mais de sessenta páginas, somos apresentados
a um personagem intrigante, o campeão de
xadrez Mirko Czentovic, órfão, "filho de um
barqueiro eslavo da região setentrional do Danúbio,
extremamente pobre" (p. 8), criado por
um padre, entusiasta amador do jogo. Apesar
de considerado um gênio do xadrez, Czentovic
era pouco inteligente, tímido, intratável,
pois, acima de tudo, faltava-lhe imaginação,
oque não impedia, entretanto, que ele conseguisse
brilhar neste jogo que "não está em
permanente evolução, ao mesmo tempo que
segue estéril, pensamento que não leva a nada,
matemática que nada calcula, arte sem
obras, arquitetura sem substância, e mesmo
assim a mais constante em sua existência do
que os livros e obras" (p. 14). Mas, após essa
apresentação de um brilhante jogador e medíocre
personalidade, que julgaríamos protagonista
da história, somos apresentados a outro
personagem, esse sim fascinante, o advogado
doutor B. Mas, vamos ao cenário. O narrador
encontra-se num vapor de passageiros que faz
a viagem de Nova York a Buenos Aires, com
uma escala no Rio de Janeiro -onde desembarcará
-, e descobre que irá desfrutar da companhia
de Czentovic, uma verdadeira celebridade,
que, após ganhar todos os torneios nos
Estados Unidos, parte para Buenos Aires, para
desafiar os enxadristas locais. O narrador, um
enxadrista amador, tenta se aproximar de
Czentovic, para conhecer melhor sua personalidade,
mas esbarra em sua total insociabilidade.
Até que, por dinheiro, Czentovic aceita o
convite-desafio de um engenheiro civil escocês,
McConnor, que fizera fortuna com poços
de petróleo na Califórnia, e enfrenta um gru-
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Chicos
po, capitaneado por McConnor, que joga coletivamente.
Ele ganha fácil, mas MConnor pede
revanche. Na segunda partida, já praticamente
decidida em favor de Czentovic, um anônimo se
aproxima e orienta a movimentação das peças
no tabuleiro, conduzindo a partida para o empate.
Entusiasmado, McConnor desafia Czentovic
para uma nova partida, no dia seguinte, em nome
do anônimo, que já havia desaparecido nos
corredores do navio. O narrador procura o anônimo
e comunica o desafio aceito por Czentovic,
o que, num primeiro momento, o deixa em pânico,
mas em seguida o arrebata. Então, em poucas
páginas, ficamos conhecendo a história do
doutor B., advogado de mosteiros e da família
real austríaca, encarregado de contrabandear suas
fortunas para fora do país, antes que sejam
confiscadas pelo regime nazista. Doutor B. é de
família nobre da Áustria e, quando preso pelos
nazistas, ao invés de ser levado para um campo
de concentração, é encarcerado num quarto de
hotel, onde por quase um ano, sem livros, sem
papel, sem caneta, não tem contato com ninguém,
a não ser com seus interrogadores: "Não
havia nada para fazer, para ouvir, para ver, por
todo o lado estava o nada, ininterruptamente,
um completo vazio de espaço e tempo" (p. 34).
E, então, num rasgo de ousadia, um dia ele consegue
roubar um livro de xadrez, que decora,
página a página, até à loucura. Ao final, não importa
quem vence aquela partida, pois o que fica
é a certeza de como a barbárie corrói os fundamentos
da cultura.
O livro do xadrez (1942)
Stefan Zweig (1881-1942) - ÁUSTRIA
Tradução: Silvia Bittencourt
São Paulo: Fósforo, 2021, 82 páginas
Entre aspas:
"(...) antes de armarem suas tropas contra o mundo, os nazistas começaram a organizar
outro exército, também perigoso e treinado, em todos os países vizinhos: a legião
dos desfavorecidos, dos preteridos, dos ressentidos" (pág. 30)
Avaliação: Obra prima
* Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria
destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu
APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de
Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no
país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance
Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto
por cinco livros sobre o operariado brasileiro.
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Chicos
Clips
Corpos Luminosos
Eltânia André
ano de edição: 2022
www.editoraurutau.com
Cantos de Cipariso
Arthur Herrera
ano de edição: 2021
www.editorialimaginante.com.ar
A manhã de primavera inundada de sol era o
convite à quietude. Adônis faz questão da boa
convivência, acena para um e outro com o melhor
semblante. Embora tenha uma certeza: se
uma casa é considerada mal-assombrada, os moradores
se transformam em fantasmas aos olhos
de quem a olha. Não, nunca quis assombrar ou
ser importunado. Bastava ter que suportar as corujas-mecânicas
de dentes afiados e ameaçadores
que vagam pelos telhados. Malabaristas da
casa ancestral. Vigias impiedosas e rotineiras.
10% de desconto
pré-venda até o dia 1/5/22
Os livros serão enviados após o termino da prévenda.
As composições reunidas em Cantos de Cipariso
evocam com nostalgia o que se perdeu definitivamente
e transmitem a muda dor provocada
por tudo aquilo que é irrecuperável, tudo o que
pertence a um tempo passado e morto (hoje subordinado
à memória), num cenário simples, talvez
bucólico quando não se habita nele. Há também
diversos sinais de sossego: uma partida iminente,
uma viagem desejada, o jogar de um animal
de estimação, um passeio distraído, um objeto
despercebido, uma decisão acertada, fugazes
sinais de felicidade e tudo o que, de vez em
quando, nos permite um respiro. É uma poesia
cujo balanço oscila entre a simples reflexão cotidiana
e a complexa experiência dos fatos.
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Chicos
Poemas póstumos
Andityas Soares de Moura Costa Matos
ano de edição: 2022
www.kotter.com.br
Continuando o caminho aberto em seus dois
livros anteriores de poesia – Deus está dirigindo
bêbado e nós estamos presos no portamalas
(2019) e Poemas para a noite dos mortos
-vivos (2020) –, Andityas Soares de Moura
Costa Matos aprofunda uma imprevisível e algumas
vezes cômica viagem entre os retalhos
do que um dia pôde se chamar Brasil, território
hoje dominado por um bovinismo boçal, arrogante
e suicidário. Nessa perspectiva, o poeta
inventaria cuidadosamente os absurdos da condição
atual do país, que bem poderiam ilustrar
um bestiário medieval se não fossem tão inegavelmente
kitsch, bandeira e lema dos canalhas
governantes cujas taras e neuroses parecem
comprimir o cérebro de todos aqueles ainda
capazes de pensamento. Mas não só a exótica
e perigosa fauna de Brasília povoa estas páginas
ferozes, dado que o poeta, como se estivesse
morto e enterrado, dirige suas blasfêmias
ao suposto bom mocismo do politicamente
correto, aos egoicos discursos identitários, às
panelinhas literárias e aos ridículos lugares de
fala que mais não fazem do que compactuar
secretamente com o fascismo tupiniquim, este
que separa a humanidade em grupos
autoexcludentes para melhor gerir o gado.
As armas que a poesia aqui concentrada sacam
contra tudo isso são pobres diante da força real
das milícias cariocas (e muitas outras) que sustentam
o poder e seus ilegalismos, mas ao menos
têm a duvidosa honra de se juntar a uma
longa tradição em que o sarcasmo, a ironia e a
provocação pura e simples nos lembram que o
deboche é libertador. Assim, Andityas se inscreve
em uma linhagem que vai
do romano Juvenal ao catalão Joan Brossa, das
russas Akhmátova e Tzvietáieva aos nossos
Gregório, Drummond e Piva, vendo na palavra
e em sua incandescente materialidade a força
sempre viva do NÃO!
***
Trata-se de uma poesia que apenas um adjetivo
pode defini-la – diferente – porque é nova a
emoção que o leitor sente. Qualquer coisa profundamente
real e profundamente surrealista.
Geraldo França
Eu com certeza sou essa daí
Rosalia Sousa
ano de edição: 2022
www.editoraflyve.com
Muitas vezes, nos escondemos em fisionomias
sérias e olhares carrancudos. O trabalho, como
preocupações, como lutas diárias e constantes
para cumprir agendas e compromissos com filhos,
estudos entre outros, nos absorvem e
abafamos o nosso eu. ''Com certeza, eu sou
esse daí'' reflete o olhar interior, o essencial de
nossa alma. Com leveza deixamos ser tocados
pelos contos e encantos da essência humana.
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Chicos
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Horizontes de espantos
Ronaldo Cagiano
ano de edição: 2022
www.editoraurutau.com
Ninguém em casa
Luiz Ruffato
ano de edição: 2021
www.editorapositivo.com.br
Mal rompe a manhã, Dasdores chega em casa
do serão, depois de comer o pão que o diabo
amassou naqueles teares da Manufatora. A noite
inteira foi um suplício: mato ou não mato
aquele desgraçado? A vida besta demais para
um desagravo assim tão derradeiro. Cachorro!!!
Quando um não quer, dois não brigam,
dizia seu velho pai. Nem filho arranjou, era nova,
podia arrumar outro homem, ouviu do Abdias
contramestre naquela noite. Esquentar a
cabeça com o Nerivaldo? Não merece que eu
suje minhas mãos. Aquele traste já nasceu torto,
pensou. Decidida, entrou de mansomansinho,
apagou a luz da sala, ele dormia
ainda com o cheiro da cachaça da noite anterior,
pegou as malas e picou a mula. Quando
deu meio-dia, ele pulou da cama esfregando os
olhos, a ressaca tinindo em seu fígado, a boca
amargando e um vazio enorme dentro de casa.
Dasdores estava bem longe.
As crônicas que compõem o livro extrapolam o
que o gênero mais comumente anuncia – a vida
imediata, cotidiana, ainda que contemplativa
– e convidam os leitores à intimidade do
menino pobre e de sua família na pequena Cataguases,
no interior de Minas Gerais, e à improvável
trajetória como escritor. Os textos têm
tom memorialístico e são marcados pelo olhar
atento e voltado para a vida comum. A escrita
literária, que desloca o cotidiano de seu tempo
e espaço, faz deles – os textos, seus acontecimentos,
personagens e lugares – uma experiência
mediata de saudades, lembranças e um suspiro
de melancolia.
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