Chicos 66 - 18.10.2021
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar gratuitamente nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Nº 66
18 de outubro de 2021
Literatura e ideias em
Cataguases – MG
Um dedo de prosa
Esta é a nossa edição 66
Quarentena 2021
Chicos é uma publicação que circula apenas pelos meios
digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te
enviar nossas edições ou visite-nos nos links listados
nesta página.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,
uma diversidade temática.
Neste número de início da primavera, em meio a quarentena,
sofrendo perdas com a Covid 19. Nesse inacreditável
e desgovernado país, em que a morte, capitaneada
pelo descaso e indiferença dos negacionistas,
continuamos contando cadáveres de mortos sem nomes.
Mesmo assim, seguimos em frente na luta pela vida.
Erthos Albino de Souza, conterrâneo de Ascânio Lopes
é o poeta da primeira página.
Desejamos uma boa leitura para todos! E até o início
do verão.
Os Chicos
Capa: Foto - Vicente Costa
Técnica mista - Pierre Bettencourt, artista,
escritor, impressor, editor francês 1917-2006
Editores:
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores:
Gabriel Franco
Vicente Costa
José Vecchi de Carvalho
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com
Visite-nos em:
https://independent.academia.edu/ChicosCataletras
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras
01
Chicos
ÍNDICE
03 Poeta da primeira página - Erthos Albino de Souza
1 8 Maria do Carmo/Carminha Ferreira Guilherme Gontijo Flores
33 Profetas da utopia Paulo José Cunha
41 Poema 13 Inez Andrade Paes
42 Pórtico + 1 poema Ronaldo Cagiano
44 Tango + 2 poemas Amelia Arellano
48 Sete-sangrias Leonardo Campos
49 Bandeide Flausina Márcia
51 A árvore do esquecimento (continuação) Fernando Abritta
58 Eu e a FLIP Antônio Jaime Soares
6 1 Cães de Pavlov José Antonio Pereira
63 O sonho José Vecchi de Carvalho
64 Manacá Raquel Naveira
66 Memória e Folia Emerson Teixeira Cardoso
68 SeRurBanO de Jorge Lenzi Fernando Abritta
7 1 A poesia de Dheyne de Souza não deixa que olhar envelheça
Salomão Sousa
75 Lendo os clássicos Luiz Ruffato
77 Clips
02
Chicos
Poeta da primeira página - Erthos Albino de Souza
Nasceu em Ubá – MG (1932) e faleceu em
Juiz de Fora – MG (2000). Formou-se em engenharia
e foi morar em Salvador na década de
1950 onde trabalhou como engenheiro de minas
na Petrobrás até se aposentar na década de 90.
Em Salvador, editou a importante revista literária
de vanguarda Código com 12 números entre
1974 e 1990.
Poeta e artista gráfico considerado pioneiro
no emprego do computador para a elaboração
poética e um precursor da poesia digital. Criava
sua poesia a partir da programação de gigantescos
computadores, utilizando conceitos da física
e da matemática. Além de dirigir uma das mais
importantes revistas brasileiras de poesia de vanguarda.
Desenvolveu técnicas de dessemantização
de textos, por meio da introdução em seus
corpos de taxas controladas de ruídos, de modo
a fazer degenerar mensagens previamente construídas.
Aplicava modelos matemáticos ou físicos
à construção ou desconstrução de textos. O
poema gráfico Tumba de Mallarmé, considerado
um dos primeiros poemas eletrônicos brasileiros
e do mundo, é uma boa demonstração desse
processo. O poeta elaborou um programa de distribuição
de temperaturas e o aplicou a um fluido
aquecido que corre no interior de uma tubulação.
Esse programa permitia obter um desenho
das diferentes temperaturas do fluido nas diversas
secções da tubulação, mas como o poetaengenheiro
codificou o seu sistema gráfico de
modo a que cada fase de temperaturas correspondesse
a uma das letras do nome de Mallarmé,
o resultado é um gráfico em que as letras se
dispõem no espaço formando configurações que
lembram imaginariamente o "túmulo" de Mallarmé.
Aquecendo o fluido a temperaturas diferentes,
ele obteve diferentes esquemas gráficos
e, portanto, várias configurações do nome de
Mallarmé, donde a sequência gráfica que compõe
o poema.
“A poesia computadorizada começa, no
Brasil, com Erthos Albino de Souza, um dos pioneiros
internacionais do uso poético do computador.
Conheci o seu trabalho em 1973, mas sei
que seus experimentos vinham de antes. Engenheiro
da Petrobrás, Erthos iniciou suas pesquisas
e seus ensaios nos computadores da empresa.
Ele é pré-micro, portanto, poeta do tempo do
computadorzão, com cartão perfurado e válvulas
enormes. Em 74, publicou na revista Código
[número 1], que editávamos na Bahia, o Soneto
Alfanumérico, jogando com letras e dígitos (este
é o sentido do alphanumeric, no vocabulário informático),
em base permutatória, no interior da
antiga forma literária (...)”
Antonio Risério, Ensaio sobre o texto
poético em contexto digital 1998.
03
Chicos
“Erthos é o primeiro poeta brasileiro a
pensar o poema eletronicamente. Ao contrário
de muitos escritores – que alardeiam o fato de
utilizarem computadores para escrever romances
ou poemas em versos como se o novo meio fosse
apenas uma máquina de escrever sofisticada –
Erthos busca a novidade do material poético nas
linguagens Fortran e PL1, ao subverter sua função
numérica objetiva e fazer com que se processem
palavras de maneira subjetiva. A nova
poética surge, então, desse uso criativo e programático
das linguagens para a obtenção de textos
-imagens, um uso em que a precisão da sintaxe
dos programas origina poemas com uma nova
estrutura visual e sequencial”.
Eduardo Kac (KAC, 2004, p. 321)
"poeta que opera nos interstícios dos Códigos/linguagens,
veicula em seu trabalho nesgas
de informação, primando pelas sutilezas, onde o
verbal funde com o visual: é verdadeiramente
um poeta intersemiótico. Lidando com computadores,
Erthos elaborou muitos poemas que fazem
uso corrente do instrumento – ou seja considerando
a natureza do instrumento[...]”.
Omar Khouri (KHOURI, 2003, pp. 27-28)
"Não sei muito bem como defini-lo pessoalmente.
Magro, alto, o olho meio puxado sugerindo
alguma ascendência indígena, ele era muito
recolhido, muito monástico e muito solitário.
Ao mesmo tempo, gostava de sair com a gente
(eu, Caetano, Waly, etc). E não era apenas por
interesse estético ou intelectual. Era amizade,
também. Além disso, Erthos (...) se sentia muito
mais à vontade com aquele bando de cabeludos
malucos que não tinha preconceito contra nada,
muito pelo contrário. Ele morria de rir com as
maluquices e as frases de efeito do Waly. Ficava
muito só, em casa, com a televisão ligada sem
som, com seus gatos e lendo às vezes coisas totalmente
surpreendentes, como a biografia de
uma bailarina da corte de não me lembro que rei
francês... Mas nos recebia com alegria. Sabia
Euclydes e Guimarães Rosa de cor e salteado.
Amava arte abstrata. "
Antonio Risério em depoimento recebido
por Felipe Paros via correio em 28 de junho de
2004.
"Infopoesia ou Poesia Informacional" ”.
EM de Melo e Castro
Este artigo de referência ajudou a definir o
estado da arte da “poesia computacional”, expondo
os fios criativos dos anos 1960 nas obras
de Nanni Balestrini, Herberto Helder, Margaret
Masterman e Marc Adrian, e também introduzindo
novos autores portugueses e brasileiros,
como Pedro Barbosa, Silvestre Pestana, Antero
de Alda, Erthos Albino de Souza e João Coelho.
Além disso, divulgou para o público em geral a
relevância da programação computacional na
criação literária, ao frisar que, para alguns autores,
“a própria programação [é] o ato de criação
poética por excelência, sendo o programa um
poema”. (é) o ato de criação poética por excelência,
sendo o programa um poema], o que facilita
diferentes saídas.
publicado a 29 de Outubro de 1987, no Diário
de Lisboa , no suplemento “Ler Escrever”.
Referências:
Itaú Cultural
https://elmcip.net/person/erthos-albino-de-souza
Revista Código
04
Chicos
ESTRanH0
ERTH0S –
P0ESIGN0S
*Augusto de Campos
“Jamais conheci um intelectual tão generoso como
ele. Erthos Albino de Souza (1932-2000).
Em ERRÂNCIAS, seu livro de memórias, prosa
única, semiótico-futurista, publicado no ano em
que Erthos falecera, Décio Pignatari deu-nos dele
uma significativa e emocionante memorabilia.
Carlos Ávila conseguiu arrancar-lhe uma rara
entrevista, em 1983, e organizou uma primeira
bibliografia de seus trabalhos, que veio a ser
acrescida ao estudo “o engenheiro da poesia”,
incluído no livro poesia pensada (2004), que
Carlos dedicou ao poeta mineiro-baiano. faltava
preencher o branco da obra desse estranho personagem
que nos fascinou a todos, um albino
“livro-livre” que esta exposição começa a preencher.
Que era um grande pesquisador, responsável
que foi por inúmeras descobertas de textos de
Sousândrade, Kilkerry e Patrícia Galvão, é um
fato conhecido, reconhecido e proclamado nos
livros dos concretos. Que financiou, espontaneamente,
muitas das nossas produções, é também
sabido e consabido. Mas e o Erthos poeta?
05
“Amava os livros, não lê-los: em consequência,
literatura sem literatura.” “Bibliófilo amador e
errático, era um livro a procura de autor – sintetiza
drasticamente Pignatari o seu “desretrato”
verbo-reticular do poeta. Imagens pirandelloborgianas,
que recarregam, com tintas de propositado
alto-contraste, os traços de um vulto que nos
evoca algo de Bartleby, o personagem de Melville:
“Prefiro não fazer”. Mas fazia. Só que, por
timidez ou bloqueio, não se animava a publicar
um livro. Preocupava-se, angelicalmente, acima
de tudo com os outros, e ficava feliz com o êxito
dos projetos e das obras dos poetas em quem
acreditava e que financiava com a maior e mais
desinteressada generosidade. Curiosamente,
embora mostrasse extrema sensibilidade estética,
não tinha animus crítico ou ensaístico. Suas cartas
eram sucintas e pragmáticas, no indicar as
suas aprovações ou desaprovações, concentrando-se
em registrar os achados de suas pesquisas,
as sugestões e correções bibliográficas que fazia,
com apuro além das expressões de sua admiração
e amizade. Minha correspondência com ele
vai de 1962 a 1994 – mais de 30 anos. Com
suas cartas me chegavam, em primeira mão,
muitos dos poemas, dáctilo ou digitografados
que integram esta mostra.
Depois nossos contatos foram escasseando, limitando-se
a telefonemas e envio de livros, até
que, aos poucos, foi deixando de se comunicar
Chicos
comigo e com todos os amigos, à medida que se
agravava a enfermidade que o fez perder, de
todo, a memória, e da qual só tivemos tardias
notícias.
Nascido em Ubá (MG), viveu a sua maturidade
intelectual em Salvador, profissionalmente como
engenheiro da Petrobras. Nos dois apartamentos
que lá adquiriu, um na Barra e outro em Pituba,
repletos de livros, ele hospedava, cheio de cuidados,
os amigos visitantes — eu e Lygia, Décio,
Haroldo, Leminski e tantos outros.
pliado, sob o título SOUSÂNDRADE: O TERRE-
MOTO CLANDESTINO, NA Revista do Livro,
RJ, em março de 1964. Desde que tomou conhecimento
do trabalho, em 1962, Erthos entusiasmou-se
por ele e nos escreveu, propondo-se
financiar o nosso projeto de resgate da obra do
poeta, RE-VISÃO DE SOUSÂNDRADE. Conseguimos
uma pequena editora, que assumiu o
compromisso de imprimi-lo e nos ofereceu um
orçamento. Passamos para o Erthos e ele nos
mandou um cheque para cobrir as despesas.
Nunca nos tinha visto. O livro saiu em 1964 e
ainda com uma separata de O INFERNO DE
WALL STREET, com capa de Pignatari, sob a
rubrica “Edições Invenção.”
Só viemos a nos conhecer pessoalmente em
1969, quando fui a Salvador completar as pesquisas
de outro projeto. RE-VISÃO DE KILKER-
RY, iniciado ainda em 1962, com a inestimável
cooperação de Erthos. Mais adiante, com a colaboração
do juvenilíssimo Antonio Risério, que,
aos 20 anos, despontava brilhantemente para a
poesia e para a ensaística, fundou e financiou a
revista CÓDIGO, que teve 12 números – de
1974 a 1990.
Como começou tudo? Em 1960, o crítico Oliveira
Bastos me fez conhecer um volume de O
GUESA, de Sousândrade, na Biblioteca Nacional
do Rio de Janeiro. Entre dezembro do mesmo
ano e fevereiro de 1961, Haroldo e eu publicamos
os primeiros estudos abrangentes sobre o
esquecido poeta maranhense: MONTAGEM:
SOUSÂNDRADE, na página “Invenção”, do jornal
Correio Paulistano. O ensaio veio a ser republicado
na revista pernambucana Estudos Universitários,
no ano seguinte, e voltou a sair, am-
Suas obras criativas estão disseminadas nas revistas
experimentais da época, como CÓDIGO,
POLEM, QORPO ESTRANHO, ARTÉRIA, MU-
DA, ATLAS. O poeta Omar Khouri que, com
Paulo Miranda, lançou heroicamente várias delas,
publicou em livro a sua tese de doutorado –
REVISTAS NA ERA PÓS-VERSO – Revistas experimentais
e edições autônomas de poemas no
Brasil, dos anos 70 aos 90 (Ateliê Editorial,
2004), que recenseiam as principais dessas publicações,
ainda hoje, de impressionante novidade,
mas que têm permanecido “à margem da
margem” dos estudos literários que abrangem o
período.
Pode-se situar em três fases e faces distintas a
06
Chicos
prática poética de Erthos: 1) DACTILOGRAMAS
– 1967; 2) POESIGNOS e 3) MUSA SPECULA-
TRIX, os poemas digitais – as últimas obras, desenvolvidas
na década de 1970. O terceiro título
aqui sugerido aparece na nota de um texto
visual computadorizado, onde estão dispostas
circularmente as palavras
latinas SORTE PALUDE
SEDULA PETROSA, com
a nota “poema da série
Musa Speculatrix, dedicado
a Lola [gata de estimação
do poeta] por ocasião
de sua operação devido a
uma palindromia – Bahia
Junho de 1974”. Erthos
joga com a expressão
“palindromia” – no sentid
o m a i s c o m u m
(palíndromo: palavra ou
frase que podem ser lidas
da esquerda para a direita
ou ao contrário) e no sentido
clínico de “recaídas
de certas doenças nas quais os líquidos se acumulam
nos órgãos inferiores” (segundo o Dicionário
Cândido Figueiredo). A frase latina completa
seria SEDULA PETROSAS IRRISA SORTE
PALUDES, a primeira linha de uma quadra de
versos palindrômicos, de significado conjectural.
Numa carta de 4 de julho de 1972, anunciou-me
que estava trabalhando em computador e já fizera
algumas experiências com letras e palavras.
Do computador serviu-se também ele para fazer
contagens vocabulares – o da frequência de palavras
na poesia de Kilkerry, que utilizei para o
estudo do poeta de O VERME E A ESTRELA; o
dos vocábulos de UM COUP DE DÉS; o das
combinações possíveis dos meus poemas PERDE
-GANHA, 1968 (deste, apenas alguns exemplos
das 1.625.702.400 permutações possíveis, segundo
cálculo feito à época por Roland de Azeredo
Campos) e COLIDOUESCAPO (1970). Erthos
também colaborara com Pedro Xisto na
contagem estatística do poema permutacional
VOGALÁXIA (1966). Foram anos em que os
poetas concretos se interessaram
pela poesia aleatória (o
meu ACASO, ALEA I de Haroldo,
TORRE DE BABEL, de
Décio Pignatari, todos de
1963). E foi Erthos também o
autor da espiral verbo-digital
de PARTÍCULAS (capa do livro
de Xisto, publicado em
1984), um verdadeiro poema
visual, que poderia ser incluído
na série MUSA SPECULA-
TRIX.
Terá sido em 1968, na antologia
25 POETAS/BAHIA – dezembro
– Salvador, que ele
publicou pela primeira vez um
poema, CRISÁLIDA, composto
no ano anterior. Mas foi na década de 1970,
e principalmente depois que criou com Risério a
revista CÓDIGO, que Erthos se tornou mais conhecido,
passando a ser requisitado para divulgar
seus poemas, principalmente nas revistas
experimentais do eixo Bahia/São Paulo – “a pororoca”
como a denominou Paulo Leminski num
artigo definidor e definitivo. CRISÁLIDA e outros
dactiloscritos foram reunidos em um projeto
de livro, intitulado DACTILOGRAMAS 1967 (13
poemas), dos quais foram aquele poema e o primeiro
da série, DE TANTO VER TRIUNFAR AS
NULIDADES... os únicos, que eu saiba, publicados.
Tenho uma cópia original desse livro, inédito,
que marca o início da criação poética de Erthos.
Tributário, certamente, da poesia concreta
07
Chicos
da linha ortodoxa, mas com realizações distintas,
e demonstrando muita habilidade de composição.
CRISÁLIDA é um dos mais bem realizados,
e resolve de modo inteligente e sutil a metamorfose
do vocábulo em BORBOLETA, que tem o
mesmo número de letras,
mas configura uma impossibilia
posta sob o desafio
dos doublets de Lewis Carroll,
nos quais, há que se
passar de um termo ao outro
mudando só uma letra
de cada vez e sempre
usando vocábulos vernaculizados.
Aos seus DACTILOGRA-
MAS acresceu o poeta um
caderno de iguais dimensões,
em folhas soltas (12
ao todo), que também me
presenteou, e onde transita
dos dactiloscritos aos poemas
executados com letraset,
nos anos 1970 – dos quais apenas STRIP-
TEASE e RASGAR vieram a ser difundidos.
Nessa época, certamente por influência dos
“logogramas” de Pedro Xisto publicados, na bela
arte-final de J.R. Stroeter, no nº 5 da revista
INVENÇÃO (1967), interessou-se também por
criar logotipos para homenagear determinados
autores, como os que dedicou a Pagu e a mim,
este estampado numa caixa preta, que ele criou
para que eu abrigasse meus poemas. Dos logotipos
passou aos menos despretensiosos logopoemas,
que chamava de POESIGNOS, que foi capa
da revista CÓDIGO nº 2 no ano seguinte.
Muitos desses poemas Erthos me enviava para
apreciação, sem contudo se decidir a editá-los
em coletânea. Apareciam, sempre, esparsos, nalguma
revista experimental. Não lhe faltava humor
– sorriso despretensioso com que produziu
o seu “dactilograma” DE TANTO VER TRIUN-
FAR AS NULIDADES... e, mais adiante, um duchampiano
WANTED, em homenagem a Duchamp,
com os retratos de frente e de perfil de
Ruy Barbosa, no cinquentenário
da sua morte, em 1973.
Por essa época também me
deu de presente um retrato
anamórfico, formado com tiras
recortadas de uma foto minha
na exposição de poesia concreta
realizada em Salvador no
mesmo ano.
Foi também em meados de
1970 que Erthos iniciou a sua
fase mais característica, e que
o faz indiscutível precursor da
poesia de computador entre
nós. Ignoro o quanto ele chegou
a conhecer das pesquisas
de Waldemar Cordeiro, que já
começara a desenvolver os
seus trabalhos, dois anos antes, em colaboração
com o físico Giorgio Moscati, da Unicamp, em
um computador IBM/360, então dos mais modernos,
chegando a realizar, em 1971, uma exposição
internacional de arte de computação,
ARTEÔNICA, na Fundação Fernando Álvares
Penteado, em São Paulo. Não se pode esquecer
que Décio Pignatari vinha pesquisando a informática
desde o início da década de 1960, tendo
publicado na revista INVENÇÃO nº 4 (1964),
com Luiz Ângelo Pinto, o artigo CRÍTICA, CRI-
AÇÃO, INFORMAÇÃO, em que dava notícia de
experiências feitas em um computador mais antigo,
o IBM1620, na Escola Politécnica da USP,
exemplificadas com deformações – vocalização
e desvocalização – de textos de João Cabral, Experimentos
de exploração das probabilidades
08
Chicos
estatísticas da ocorrência vocabular que suscitariam,
anos depois, divertidas provocações pignatarianas
de prioridade a Cordeiro, que em 1964
expunha e publicava comigo os popcretos, nem
um pouco digitais...
Cordeiro e Erthos trabalhavam com as primeiras
linguagens de programação computadorizada,
como o sistema de programação conhecido sob
o nome Fortran, com entrada por cartões perfurados,
que veio a ser logo muito utilizado para a
confecção de holerites. Entre nós, o desvio para
as artes foi obra deles. Vindo de um convívio
intenso com os poetas – seus companheiros de
viagem concretista –, Cordeiro não deixou de
aventurar-se também com palavras (sua primeira
experiência, BEABÁ, a partir de um programa
para gerar vocábulos de seis letras ao acaso, foi
exposta em 1968), mas como era natural explorou
com mais consistência o universo não verbal
(DERIVADAS DE UMA IMAGEM, 1969). Erthos,
sem deixar de experimentar ocasionalmente
com imagens – como na sequência anamórfica
sobre o retrato de Brigitte Bardot (VIOLAT
IRREVOCABILE TEMPUS), e nos seus desenhos
geométricos –, fixou-se mais definidamente na
linguagem verbal, seja partindo de nomes ou
títulos, MALLARMÉ, SOUSÂNDRADE, NOI-
GRANDES, LEMINSKI, seja construindo um texto
palindrômico para desenvolver suas implosões
e explosões de letras a partir de vocábulos retrogradáveis
de duplo sentido – SERVILIVRES.
Nesta série se incluiria também o SONETO AL-
FANUMÉRICO, resultado de estudos de tradução
criptográfica de sonetos de Mallarmé – no
caso, LE VIERGE, LE VIVACE ET LE BEL AU-
JOURD’HUI. Ex: "|¬ ( ) por Cygne. Guardo
alguns desses poemas, tais como me chegaram
às mãos, impressos nas resmas pautadas dos papéis
característicos da Petrobras, utilizados pelo
sistema Fortran que podem ser vistos nesta exposição.
Da mesma série são também as variações
do TOMBEAU DE MALLARMÉ, que Erthos
me enviou em 1972 e Décio, Haroldo e eu
fizemos estampar na nossa edição dedicada ao
mestre francês (1975). Casos especiais de poema-objeto
são a magnífica transcriação semiótica
do poema CIDADE CITY CITÉ, também de
1972, incluída na CAIXA PRETA (1975) que fiz
com Julio Plaza, edição para a qual o poeta contribuiu
também financeiramente: e o pequeno
“livro livre”, em branco, recortado dos cartões
perfurados, com o qual me presenteou no ano
seguinte. Dou com minúcia os dados cronológicos,
por realçarem o mérito da atuação de Erthos.
“No Brasil a Computer Art encontra antecedentes
metodológicos na Arte Concreta”, afirmava
Waldemar Cordeiro, no artigo “Arteônica”, de
1971, ano dessa mostra em São Paulo. Tanto o
percurso de Erthos, como o do próprio pintor,
que iniciou suas pesquisas digitais em 1968 e
morreu prematuramente em 1973, ilustram convicentemente
a sua tese. Como Cordeiro, o poeta,
devido a sua enfermidade, não chegou a
desfrutar dos avanços tecnológicos que a partir
da década seguinte disponibilizaram os computadores
domésticos e, em mais 20 anos, os favores
da rede eletrônica. Mas ocupa como ele,
com todos os méritos, um lugar privilegiado na
arte digital brasileira. Impulsionada por softwares
cada vez mais sofisticados. “literatura sem
livros” caminha hoje, celeremente, para as
“páginas” dos monitores e para o cibercéu eletrônico.
Pignatari lembra que Erthos se atormentava com
o fato de não ter chegado a decifrar o significado
da palavra “stsioei” que aparecia num verso
do “Taturema” do GUESA de Sousândrade”:
“Stsioei, rei das flores.” (Estrofe 52). Transformou-a
numa espécie de totem-tabu vocabular
09
Chicos
que exorcizou num “poesigno”, por sua vez
convertido em logomarca de seu próprio nome.
Quis o destino que me coubesse decifrá-la, a
partir de uma viagem pela internet. Ao trabalhar
num prefácio para a nova edição de O GUESA
(Annablume, selo Demônio Negro, 2009) deparei-me
no Google com uma cópia da edição original
da enciclopédia francesa L’Univers (1837),
onde se encontra o capítulo “Brésil”, de Ferdinand
Denis, uma das fontes informativas de
Sousândrade. Quando percorria os seus textos
sobre a flora e a fauna da Amazônia, à procura
de alguma referência que me pudesse ser útil,
bati os olhos nesta frase: “Os índios de diversas
partes da América o chamaram de stsioei, o pequeno
rei das flores. Os portugueses lhe deram o
nome poético de beija-flor...”
Ao me enviar o “poesigno” siqnd, que deve ser
virado e lido ao revés para completa leitura, Erthos
colocou ao lado do seu prenome um logo
que constitui, de fato, o signo reduzido de um
outro poesigno enigmático.
Apareceu também assim na revista QORPO ES-
TRANHO nº 1 (1976), junto ao poema STEP BY
STEP. Visto em escala maior, formatado como
um cartão de boas festas de duas folhas. 22 por
11 cm, com o logotipo recortado sobre fundo
p r a t a - a l u m i n i z a d o i n t e r p o s t o , o
“poesigno” (imagem) me foi enviado por Erthos
com o título STSIOEI, e a dedicatória “aAugusto
e Lygia – Feliz 1986”, posta na parte interna da
última folha de forma a indicar a direção vertical
de leitura.
Ideogramatizando a sua dúvida sousandradina,
parecia insinuar o esfíngico protótipo de uma
escultura in-finita. À primeira vista, horizontalizando
como um postal comum pareceria um logo
para Kilkerry. Mas lido verticalmentelevitando,
quase asa – segundo o direcionamento
sugerido pelo autor –, pode ser visto como
um incerto E espectral e especular do próprio
poeta. Enigma.
STSIOEI. Isto é. ERTHOS.
ESTRanHO nome. EstranHa SORTE. ErThos. Er-
THOS.
10
Chicos
Tumba de Mallarmé
11
Chicos
Ninho de metralhadoras
12
Cidade City Cité
Chicos
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Soneto Alfanúmerico
Chicos
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Crisálida
Chicos
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16
Chicos
Chicos
Nota:
Boa parte do material e o texto do Augusto de
Campos, foram extraídos do prospecto da Exposição
─ Erthos Albino de Souza poesia: do
dáctilo ao dígito ─ Realizada pelo Instituto
Moreira Salles, Rua Marquês de São Vicente,
476, Gávea - Rio de Janeiro, no período de
24/08 a 03/10/2010 com a curadoria de Augusto
de Campos e André Vallias.
17
Chicos
Maria do Carmo/Carminha Ferreira (1938—)
*Guilherme Gontijo Flores
Todos sabemos, e já venho ficando rouco
de falar (ou tendo LER de tanto escrever) esta
paráfrase de Roman Jakobson sobre a Rússia:
este país esbanja os seus poetas; porém, à diferença
da URSS de então, o Brasil por vezes os
deixa morrer à míngua, por vezes nem percebe
sua existência; no mais das vezes até os deixa
trabalhar aos trancos e barrancos, mas os relega
a um canto qualquer. Não vou repetir nomes,
que já mencionei demais. Hoje é dia de falar de
Maria do Carmo Ferreira, ou, como é mais conhecida,
Carminha Ferreira. Estamos falando de
uma poeta que nasceu em 1938 e continua inédita
em livro, apesar de ter escrito com bastante
regularidade desde os anos 60. Irmã da também
poeta Celina Ferreira (esta sim publicada), Carminha
teve uma vida ligada às artes por um longo
período, dentro e fora do país. É também dona
de uma obra variegadíssima, com rasgos de
riso ferino ainda um tanto raros (poderíamos dizer
que nossa poesia satírica segue pouco apreciada,
a começar pelo fato de que o Sapateiro
Silva volta a estar há anos sem reedição, além
de ficar fora de antologias, como eu já escrevi
na R.Nott anos atrás), uma autoironia por vezes
virulenta, e um domínio de linguagem fora de
série: dos lances surtojoyceanos de
“Meretrilho”, passando pelos latinismos de
“Seqüênciaconseqüencia”, ou pelo papo reto de
“A quem interessar possa”, mas também momentos
de lirismo familiar dolorido, como em
“Dia das mães”, ou pela contração de
“Contratual”. Nesse meio de caminho, vemos
poemas em quadras, como “Anticorpo”, em decassílabos
geniais com rimas retorcidas, como
“Auto-retrato”, na anti-terça-rima de “Tornaviagem”,
no gosto marginal de “As lesbianinhas”
(peça talvez fundamental para performances
de gênero na poesia brasileira, embora pouquíssimo
lembrado), sempre flertando com os
diálogos poéticos bem humorados ou quase delirantes,
como em “Telecarlos”, ou mesmo nas
séries de emails alucinados de “Poemails”, compilados
e organizados por Ronaldo Werneck
na Chicos; isso sem falar na curiosa metapoesia
18
Chicos
de “Anúncio”, “Dois poetas” e “Rimbaud et
l’air (que funde em seu título os sons dos nomes
de Rimbaud e Baudelaire). Enfim, houvesse livros,
quiçá veríamos fases de sua poética; na
ausência deles, é um verdadeiro caleidoscópio
de uma figura fascinante e esquiva.
Ela mesma se descreve assim no site de
Elson Fróes:
“Maria do Carmo Ferreira (Carminha) natural
de Cataguases, a princesinha da zona da
mata mineira. Aos 14 anos se tornou poeta por
excesso de amor. Morou em Belo Horizonte,
São Paulo, radicou-se no Rio por mais de duas
décadas e finalmente mudou-se para Niterói.
De 1969 a 1973 morou dois anos na Europa
e dois nos EE.UU, cursando mestrado em Literatura
Comparada e lecionou língua e literatura
brasileira no Colégio dos Graduados, Universidade
de Illinois.
Hoje, aos 61, mestranda em Literatura
Comparada, aposentada da Rádio MEC, onde
serviu 30 anos como criadora, tradutora, redatora,
produtora e coordenadora de programas litérários
e lítero-musicais, como Técnica em Assuntos
Culturais MEC/Demerg.
Inédita em livros, CAVE CARMEN será o
primeiro.”
Isto foi há 21 anos atrás, em
2000: CAVE CARMEN que até hoje não veio.
Não veio o livro reunindo essa obra de décadas
e atravessamentos. Mais adiante, no mesmo site,
ela nos conta de outras obras inéditas no baú:
“Publicações Literárias: inédita, aos 62, em
livro, tenho, contudo, a um passo do prelo: CA-
VE CARMEN (40 anos de poesia): poemas reunidos
desde a década de 60 até hoje, 2001)
Jogos Florais & Animais (poemas soltos, infantis)
A Flor que sofria de pensamento: uma estorinha
só em versos (idem)
O Delfim que não sabia morrer (idem)
O Sacristão e a Miss (idem)”
No entanto, seria exagero dizer que se trata
de uma obra absolutamente esquecida. Na
verdade, além de ter contribuído com revistas e
jornais impressos ao longo das décadas
(Invenção, nº 5; Ímã, nº 5; Poesia Para Todos, nº
2; Suplemento Literário do Minas Gerais, vários
números; Revista Dimensão; Correio do Sul;
ANE/Associação Nacional de Escritores; O Cataguases;
Pensaminto; Chicos, nº 56, etc.) também
se aventurou em colaborações na internet:
Blocosonline, Jornal de Poesia, Notívaga, O
Cisco Tonitruante, REBRA, Germina e por aí
vai.
E mais, Carminha já recebeu elogios efusivos de
nomes variados e importantes, tais como Décio
Pignatari, Augusto de Campos, Carlos Ávila,
Ronaldo Werneck, Ana Elisa Ribeiro, Fabrício
Marques, Alvaro A. Antunes, Ronaldo Cagiano,
Silvana Guimarães, Júlia Eléguida etcétera etcétera.
Ela é um caso que mostra como o livro ainda
é o instrumento fundamental de reconhecimento
simbólico (veja-se, por exemplo, como a
recepção dos poetas estritamente orais ou digitais
tende a ser lentíssima dentro do ambiente
da poesia tradicional). É uma obra vasta, dispersa,
que nos diz CAVE, “cuidado”, CARMEN,
“com o poema”, ou mais precisamente “com a
Carminha”; mas que poderia, num ato de destradução,
ser um “cuidem dos cantos de carminha”,
CURATE CARMINA, que é o que tento
modestamente fazer aqui com uma coleta dos
dispersos ainda acháveis. Agradeço a todos os
nomes acima citados, que me ajudaram muito a
encontrar caminhos, sobretudo Álvaro A. Antunes,
que me apresentou sua obra, Ronaldo Werneck
que generosamente me passou vários textos,
por meio de Ana Elisa Ribeiro, e Silvana
Guimarães, que finalmente me informou que
19
Chicos
Carminha passa bem, vive em Niterói, onde se
dedica a uma vida resguardada e agora dedicada
à religião católica. Cuidamos de Carminha, como
ela merece.
Segue abaixo a lista de sites onde encontrei informações
ainda disponíveis:
Elson Fróes;
Germina;
Jornal de Poesia;
Blocos Online;
Carlos Ávila sobre ela, na Dom Total
Chicos, 56, com um dossiê e coleta de Ronaldo
Werneck;
Suplemento Literário de Minas Gerais, também
organizado por Ronaldo Werneck;
Mulheres na poesia brasileira, organizada por
Maria Augusta da Nóbrega Cesarino;
Felipe Paros escreve sobre ela na revista Circuladô
, nº 11;
Gostaria ainda de lembrar que Carminha já
apresentou um trabalho refinado de tradução,
também dispersos, mas que está representado
também no site de Elson Fróes, com os seguintes
autores (devidamente linkados): Emily
Dickinson, Paul Éluard, Frederico García Lorca,
Alfonsina Storni e Pablo Neruda. Talvez este
também merecesse uma boa recolha ampliada,
com a devida análise crítica. Fica para outro
tempo.
O que apresento abaixo é uma modesta
reunião de poemas a partir do que já está disponível
online, mais umas poucas coisas que consegui
graças à gentileza e generosidade dessas
pessoas acima mencionadas, com o intuito de
apresentar Carminha a mais gente interessada.
Espero que uma nova união de parte do disperso
possa ser o gatilho para o passo tanto tempo
travado: o livro.
* * *
ESTADO RESIDUAL DA DOR
Aos quarenta e dois anos sou inédita
estrela decadente ao rés-do-chão.
Erra a maturidade entre as paredes
que ergui aos dezessete. E não ruirão.
Que diria eu de mim que fui vedete
plumas e prêmios em pés de pavão?
Espadanava o espírito nas redes
e eu peixe escorregava-me das mãos.
Pássaro cego dardejei parábolas
que se empalharam num museu de sons.
Tornei-me objeto. Abjeta. Prefixada
à guisa de artefato eu disse NÃO.
Palavras que eu mastigo em pensamento
são malas artes química que intento
como animal que urina para dentro:
gaveta/arquivo morto/armagedon.
Ah não me amei me armei me desmascaro
quero escapar de mim perder meu faro.
Adentrei-me demais no labirinto
e quanto mais me sinto mais me sinto
eu revolvida em livro de memórias
errática ficção fingida história
eu me arrancando páginas de medo
eu recolhida às pressas já no prelo
eu censurada imprópria intransmissível
eu bomba-H na hora-D eu míssil
em pânico de ser e estar comigo
eu me engolindo em seco em meu degredo
camelo cobra cabra capivara
catatônica ao toque da palavra
desertora de mim. Desativada.
A QUEM INTERESSAR POSSA
Uma pessoa
do sexo
feminino
38 anos
20
Chicos
1,65
66 kg
sem lar
sem filhos
sem família
sem negócios
sem esperança
com 108 contos
na poupança.
Garante que possui
matéria-prima
para literatura
teatro
baby-sitter
trabalhos manuais.
Gosta de música
Chega a tocar
de ouvido.
Conhece inglês
e línguas neolatinas.
É boa datilógrafa.
Cozinha o trivial.
Prefere a natureza
à vida na cidade.
Amor, quase não faz
porém se adapta sempre
ao item mencionado.
POR ISSO
oferece-se a quem
interessar possa
uma coisa
uma causa
uma pessoa
alguém
um problema social:
o caso dessa moça.
UM CARMA, UM CARME, UM CARMIM
Capineira capinei
meu caminho ora-pro-nobis.
Vassourinha vassourei
e me arranhei de reimosa
lenhosa lenhificada.
Quando fiquei flores alvas
deitei dormi sosseguei.
Caminheira caminhei
seguindo rutácea rota
sem lei nem grei rei nem roque
e em me plantando me dei
com os costados nos espinhos
e grinalda no cangote
de flores que laranjei.
Falta-lhe alma
um sopro que a reanime.
Se veleidades tem
é de sentir-se real.
Vive
por força
de viver
mas corre o risco
de se deixar morrer
sem que se dê
Netrodórea pubescente
em cataguá! me encantei.
Virei limoeiro-do-mato
hermafrodita ge(ra)niale
vegetei campos gerales
perseguida de esmeraldas
por turmalinos parentes.
Nasci princesa da mata.
Fui coroada. Coroei
de penas cabeça e pés
nas coitas de amor e catre.
21
Carmelina carmeei
coita por coito e fiquei
em penúria e mais coitada.
Minha avó, me desentronca
do fundo dessa masmorra.
Ruminei tanta esquivança
que tartamudo em desova.
Ui ui ui morro de medo
de dentro da minha cova.
Cataguá! me desencanta.
Que o meu avô não me ouça
farejando outras paisagens.
Vou segregando sementes
translucidaglandulares
que aferrolho de alto a baixo
em carmona hereditário
para semear noutras bandas.
Levo o meu fruto na cápsula
e cato outra cataguases.
Oi oi oi belo horizonte.
Perdi a esperança. E o bonde?
Vi meu noivo atrás dos montes
além muito além das serras
que ainda azulam no horizonte:
num tempo nunca-será.
Atravessei mar oceanos
de perdas lucros & danos
embrulhada em meu papel.
Avistei a torre eiffel
(cataguá! que desencanto)
desde o fel da babilônia.
Carmanhola carmanhola
quem me canta é quem me chora.
Embarquei nessa emboscada
dançando a canção da moda
vertiginosa parada.
Chicos
Meu reino pelo que eu era:
tudo por meia-pataca.
Cataguá! quebrou-se o encanto.
Quem volta atrás vira estátua.
Quem não, volta à estaca zero.
Na memória assento praça.
No vento assento as memórias.
Vida, noves fora, nada.
Amor: vida noves fora.
EMERGÊNCIAS
Quando eu tinha 10 anos
minha irmã casada
me chamou no quarto.
Tinha parido o seu primeiro filho
e, entre relaxada e displicente,
pediu que eu lhe pegasse
um vestido no armário.
Deu pra eu notar, de soslaio:
estava só de calça e sutiã.
Tinha uma pele branca e flácida,
barriga intumescida,
em nada a minha irmã
de fantasia de havaiana,
divina, entre os fiapos
das matinês dos filmes
de final de semana.
Um mal-estar só de alma
me invadiu por inteiro
e fui chorar na sala.
Depois outra irmã pariu,
e eu, já nos meus 12,
tomei o trem e fui,
entre vaidosa e grave,
ser madrinha no Rio.
Olhei meu afilhado
roxo e de tantas peles
que me assombrava o tato
22
Chicos
visual. Bem mal retive
aquele horrendo flash.
Fui chorar no banheiro.
Não quis saber de festas e retratos,
voltei as costas pra eles
e, só, no meu quintal de Cataguases,
nas grimpas da mangueira,
chorei e vomitei minha orfandade.
Aos dezessete, uma colega
do curso colegial
me ensinou fatos da vida.
O que meus pais tinham feito:
tremenda porcaria
pra que eu fosse parida.
Fiquei chocada.
Se nunca os vi de abraços, beijos,
e cada qual tinha o seu quarto…
Alguma coisa se quebrara em mim
como a cabeça do bebê de porcelana
que o meu primo Juquinha me trouxera
nos seus troféus da Itália
quando pracinha entre guerras.
Aprendi a fazer bruxas de pano
bolas de meia, petecas de folhas
de milho ou bananeira
e penas de aves.
Mesmo em Belo Horizonte pulei corda,
jogava amarelinha com cacos de telha,
e até os meus 19,
por fora, bela viola,
por dentro era uma moça retardada.
Não me casei, não pude
desfrutar de namoros mais ousados
até completar os 30,
já fora e longe de casa.
Nunca respostas para tais perguntas
que ainda me sufocam
neste sem tempo/espaço.
Jamais a ratificação do doce, terno,
baldado romantismo lido em livros
e telas
na pauta da memória
de alguma sinfonia inacabada.
AS LESBIANINHAS
Mancomunadas
conluiadinhas
mãozinhas dadas
maquiavelinhas
colaçam tretas
do arco-da-velha
roçando os arcos
das íris delas.
Lá vão as duas
uniduninhas
no bole-bole
de suas barquinhas
passeando embaixo
do arco-celeste
jurando laços
bem-casadinhos.
Priscas pupilas
saficazinhas
mesmando-se ilhas
de amor-perfeito
dentro de espelhos
em que se miram
no acende-aplaca
de suas pocinhas.
Cheios de dedos
seus segredinhos
se encarrapicham
quando se tocam
(liras? safiras?
pirilampejos?):
23
Chicos
pelos nos pelos e
olhos nos olhos.
Trilhões de dívidas-déficit
e eu sonego
ÀS MARGENS PLÁCIDAS
O mar desborda em minhas costas
e eu sentada.
O sol saltando das órbitas
e eu de costas.
Condomínios desagregam-se
e eu secreta.
Mulheres desovam povos
e eu apátrida.
Lá longe a lua acabala
mel & merda.
Serão na Casa da Moeda
e eu lunática.
A enchente maior do século
e eu sem pressa
telefono impulsos-extra
& ordinários.
O país em chaga aberta
e eu coberta.
Mais perto ratos por labs
deca/p/tados.
Ao som & imagem de guerras
sob controle
remotamente tremores
terr/e/motos.
gastrites porque hoje é sábado
entre sábanas.
Metalúrgicos meninos
desemperram
parafusos de uso infusos
honorários.
Violência gera violência:
o orbe em greve.
A urbe em promiscuidade:
a par th aids.
Livre îvre o livro-árbitro
escorrega
do colo ao chão por sinais
testamentários.
O despertador dispara
e eu desperto.
A televisão matraca
e eu desligada.
Na cozinha a iogurteira
de olho aceso
apita que o leite fresco
agora é coalho.
do colo ao chão por sinais
testamentários.
O despertador dispara
e eu desperto.
24
Chicos
A televisão matraca
e eu desligada.
Na cozinha a iogurteira
de olho aceso
apita que o leite fresco
agora é coalho.
Do banheiro peças mudas
pregam à cesta
MERETRILHO
MICHELALÚMIA
PROTIBULUTA
GLANDULAMULA
JEREBAGLÚTEA
CLORIFURBANA
CLOACLORANTA
MARAFANCHONA
PLURALITANTA
EGUAERVOEIRA
CLEPSUICIDRA
PERONIAÔMIA
BISCAVOBISCA
MOSCAMENISCA
MENINGEPÚBIA
VAGIPENÍSOLA
CLITÓRISPUTA
25
Chicos
FAUNAFLORGESTA
te passo a vara na cara
te faço vará essa vera
mandágora
teu corpo
ágora
− Ara vem guiará essa intanha
marmotinha… Aracimbora!
agorafobia
meu corpo
agora
minhalmaexplora
magmamálgamas
ROCK RURAL
Ruminei o amor platônico
do cotovelo à omoplata.
Cavalguei nua em seu lombo
mas rocinei meu cavalo.
teucorpoaflora
minhanimalma
densa floresta
devororosa
fálica festa
em polvo’rosa
PEIXE FRITO: UM PRATO FEITO
(DO IDIOTISMO AO IDIOLEITO)
− Aracaroba praquaquerum
− Araka’tu quaquerora
cabiçudo xaréu branco
quando evém vem na desova
− Pra mim tu num prega história
pirada bruaca piranha
nem praísca tu num presta
− Carimbamba: :-Num provoca
− Minhoca de areia quente
roncador budum de bode
− Guaracema Guaracema
26
Emplaquei o amor idôneo
com selo e certificado.
Do cio ao ócio um patrono:
comi mais que o sal de um saco.
Do amor que não ousava nomes
ousei ódios e odes sáfaras:
pela índole, indo às fontes,
pelo síndrome, indo aos fatos,
toquei safira e sanfona
e escapuli dessa escápula.
Avaro, unha-de-fome,
toureei o amor, unha-e-carne.
Persegui o amor na planta
com foice e cabo de enxada.
Levei luas me embrenhando:
posseira, meeira, escrava,
dei com rocha e areia rocha
cavuquei mandioca brava
deitei calcanhar em ramas
(em maus lençóis desaguava).
Ah o amor… coronelando
sobre as patas, sob os cascos,
pisava de borra-botas
Chicos
meu chão sem raiz. Meu charco.
Afoguei o amor no fosso.
Por cima uma cruz de tábuas.
Adestrei-me égua-amazona.
Coração, sei-o apartado.
SEQÜÊNCIACONSEQÜÊNCIA
Vivos voco, mortuos plango.
Dormindo profundamente
ab aeterno, aeternum vale,
onde eram neves d´antanho
diadorins… dinamenes…
sub rosa (cum grano salis).
Dies irae, dies illa,
nada será como d´antes:
doravantesma só cinzas.
Vão-se os anéis, fincam os dedos
finos como lã de cágado
limpando as mãos à parede:
Revolve-se a poeira humana.
Por ínvios caminhos, roma.
Na cama, o lot das filhas.
um no papo, outro no saco,
por baixo, por trás dos panos
tutti son fatti marchesi.
A natureza se espanta
com o fogo que prometeu:
libertas quae sera tamen.
Litterae bellorophantis
entre amazonas, quimeras,
cumpro o destino a que vou:
Bárbaro belo horizonte,
haja sermão nas montanhas
quando ismália enlouqueceu.
res, non verba, hominem quaeso:
no me saques sin razón,
no me embaines sin honor.
Marcados com pedras brancas
vão-se os anéis aos diamantes
in albis…lento festina.
A césar o que é de césar:
rei da lídia ou rei da lécia,
questão de lana-caprina.
Olhai o lírio dos campos:
cui bono? Arcades ambo.
Teste dirceu cum marília.
Até aí morreu o neves:
que a terra lhe seja leve,
com o pão-de-açúcar por cima.
Lacrimosa dies illa,
chora bárbara heliodora
do norte estrela sem guia.
Vão-se os anéis de saturno
et campos ubi troya fuit:
cinzas do princípio ao fim.
Transidos de eterno sono
quem rogaturus patronum?
Tudo será cinza fria.
Revertere ad locum tuum.
Não compro mais ave alguma.
Perdi o tempo e o latim.
27
Chicos
Com suas rosas de malherbe,
com seus beijos-lamourette
e os seus anéis nibelungos,
Ante diem, sê benigno,
juiz do justo castigo
cui salvandos salvas gratis.
sicut umbra dies nostri:
ubi flores de retórica,
ibi cravos-de-defunto.
Ovelha negra inter oves,
correm comigo: eu, contíguo,
cost to cost & the day after.
Dia de todos os santos,
de quebradeira e quebranto,
dia miserere nobis:
num pass-a-nel delirante
entre um anão e um gigante
cavalo e valquíria explodem.
Um livro há de ser escrito
e o homem passado a limpo
bem no nariz do patrão:
quando o tumor vem a furo
de que servos dedos duros
os que se forem, assoarão?
Metendo a mão na cumbuca,
geme e estertora a criatura
numa sinuca de bico.
CONTRATUAL
os ciúmes que
palavrearam
AMOR
os cumes que
palavram
aMo
os umes que
param o
m
a contração
sexu
AO
AUTO-RETRATO
Em represália ante o trono,
ao som de tripas e trompas
todos pedindo penico.
Apocalíptico dia!
Dia do tombo, hecatombe,
ingemisco tanquam reus.
O que é do homem o bicho come:
vamos que zebra, ou que bode,
quem sabe o bicho que deu’s?
Nasci no rame-rame das abóboras.
Meu plano é horizontal. Vivo de cócoras.
Se me ergo, me espatifo. A gravidade
colou meu ser ao chão: cresço à vontade.
A crosta é dura. No corpo volumoso
a polpa é só fartura e paga o esforço
de rastejar como uma tartaruga
e refletir ao sol minha armadura.
28
Chicos
Uma fome objetiva me devora
como a dos porcos que não comem pérolas
ou a dos pobres que não comem porcos.
Com ou sem sal, metáfora ou pletora
viro alimento no momento justo.
Ao fogo brando e lento mais me aguço.
Não sinto a tentação das ramas altas:
maracujá, chuchu, nada me exalta.
Teu jardim não deu pousada
à fadiga com que vim.
Não havia entrada em teu horto.
Enlouquecida, exaltada,
já de ciúmes incendiada,
tomei distância. Escalei-te.
Transpus-te: não havia entrada.
Não havia entrada em teu corpo
alheio às minhas pegadas.
Nem mesmo a solidão das uvas verdes
quando o desdém dos homens as prescreve.
No ventre universal ocupo um espaço.
A vida faz-se em mim. Vegeto, e passo.
TORNA-VIAGEM
Não havia nem mesmo frestas.
Não havia sequer saída
em tua vida escancarada.
No espelho em que eu te mirava
nenhum reflexo havia.
Não havia, de resto, nada.
Muros altos do abandono.
Bati com punhos cerrados:
não havia entrada em teu sono.
Céu claro, turvo, que importa?
Não havia entrada em teus sonhos,
sonhando a portas fechadas.
Siderada de promessas,
de telefonemas, cartas,
busquei consolo em tua sombra.
Consolo, encontrei nas pedras.
Sofri desespero, raiva,
solidão, mágoa, suborno.
Vaguei sem mim uma década.
Ingenuamente esperava
que viesses em meu socorro.
TELECARLOS
Ao completar quarenta
num dia de são-tomé
véspera de são-nunca
de porre de coragem
e algum fogo nas ventas
telefonei pra você.
Você me disse: aguenta.
Aguentei como pude
desde os meus dezessete
com suas cartas na mesa
e um papel de bombom
(colomba adolescente)
nos porões da gaveta.
Eu tinha a língua presa
e você gaguejava
anedotas concretas.
Antenas de pestanas
29
Chicos
(ou era Pentecostes!)
acendiam mil velas
na soirée da Colombo.
Quem me viu, quem me crê.
Comi gatos por lebres
exilada do vale
haja ainda uvas verdes
nestes quarenta e sete.
De quem ouvirei?: aguenta,
que o tempo ainda é de fezes
alucinações maus poemas…
Te passo um encefalograma?
Te ausculto em fitas-kassete?
Uso o meu telecarlos?
Código morse ainda se usa?
Seus livros autografados
impassíveis na estante
remetem ao dicionário
de palavras gestantes
sob sua própria égide
de sonhos contrariados.
De carona em seu Halley
levo uma carraspana
no arremate de males.
De repente me vejo
(ainda vivo de vales)
indo a Copacabana
para um acerto de contas.
Esbarro em seu cheque-ouro
Banco por banco assento
a inesperada chance
(comprará Roupa Nova
ou fará em Pessoa
um amigo presente?).
Entre aids e apartheides
você me reconhece
água vai tir-te e guar-te
sem mais aviso prévio:
– Os mesmos olhos verdes!
Ando farta de carnes,
vigilante de peso.
30
Você, com tudo, é o mesmo
que visitei há séculos:
– O mesmo ardor modesto!
Seu perfume me agarra
na griffe desse abraço
sem tratamento, quase:
mineiro cem por cento,
gauche de lado a lado.
E falamos de nada
como se, como sempre.
Sem poesia sem piadas
vamos nos esfolando
na memória calçada
de outro tempo suspenso.
E de repente rimos
(no último andamento)
de amarelinhas sombras.
E já nos despedimos:
como um menino antigo
e uma menina tonta.
ANÚNCIO
Frias e frívolas pessoas…
Ando sedenta, faminta,
exausta a não ter mais como,
mas vocês acham
(me passam
num silêncio de abandono)
que isso não tem nada a ver.
Por sorte não me verão
no inverno, na primavera,
colhendo de grão em grão
o que outoneio na pressa
de lhes dar o que comer
além do pão com manteiga
ou com caviar,
depende
do paladar de vocês.
De mim nada vão saber.
Chicos
Nem dos bichos que alimento,
tirando da minha pena
e, muitas vezes, da boca
o indispensável sustento
que nem mesmo me faz falta,
pois vivo do pensamento
de lhes dar, caras pessoas,
o que em sua mesa transborda
mas carece ao coração:
amizade à toda prova,
fraternidade, igualdade
por uma existência nova
em que todos tenham à mesa
fartura do mesmo pão
cultural, por excelência,
voz e vez para os carentes
que são, de direito e fato,
seus consangüíneos irmãos:
nossos irmãos, com certeza,
ou vocês se acham melhores
por portarem pedigree?
Muitos dos meus
cães e gatos o
su’portam, e abandonados
por ex-enfarados donos…
mas como selva selvaggia,
de pedra, se me permitem
(a contrapelo) o sermão
da montanha, que fez Cristo
clamar bem-aventuranças
para os pobres em espírito.
Essa pobreza comporta,
em simples poça, um oceano
com toda sua fauna e flora
e arrecifes de corais!
Distintas, mas tão simplórias
pessoas que não se importam
com o que se passa à sua volta
e o que já ficou pra trás…
Além, muito além das serras
que ainda azulam no horizonte,
entre o céu, a terra
e a árdua
batalha de um dia-a-dia,
mais mistério há do que possam
sonhar suas vamps personas
de VIPs filosofias.
DIA DAS MÃES
Se aos animais me devoto,
como não me ocuparia
dos próprios seres hu’manos
que vejo batendo às portas
com fome, com sede, insones,
exaustos, como me encontro
(por outro tipo de banho)?
Ainda sonho com cascatas
dentro dessa mata virgem
que, de bandeiras e entradas,
ou vice-versa, persiste
31
Meu pai era um sujeito estranho
encastoado
baixo moreno-tacho
filho de Vovó-Rita
índia de laços.
Tinha um temperamento instável
sujeito a chuvas e trovoadas.
Seus olhos miúdos
faiscavam chispas
de um limpador de para-brisa
sempre ligado.
Chicos
Quando xingava a gente era de
filhos da puta
seus miseráveis
corja de canalhas.
e brinquinhos de flor — resto de solda.
Furou minhas orelhas arredias
e tauxiou de lágrimas douradas
a sua cinderela por um dia.
Quando ficava alegre assoviava
valsas de antigamente
cantava em falsete
tocava flauta.
Uma vez me pôs sentada
na sua cadeira de dentista.
Disse filhota, olha o que eu fiz
e me confiou seu tesouro:
uma caneta-tinteiro
toda folheada
de mil cachinhos de uva
(papai era um artista!)
em filigranas de ouro.
Fiquei fora de mim
olhando aquilo. Papai
de costas
improvisava um anel de correinha
Então me ergueu ao colo e me chamou de Mimo.
Nesse momento herdei o seu destino
mais secreto
tantos anos depois:
um dicionário de rimas
alguns sonetos dispersos
e tudo o que podia não ter sido
e sempre foi.
Quando morreu eu estava na Inglaterra.
Soube por carta alcoviteira
tarde demais.
O ódio de suas fêmeas carpideiras
ainda hoje assoma açula assola
com sua matilha de cães
o amor que me impedia e sinto agora
que chora por meu pai
neste Dia das Mães.
Publicado originalmente em Escamandro - 19.04.2021
* Guilherme Gontijo Flores
Nasceu em Brasília DF, é poeta, tradutor e crítico Graduado em Letras pela
UFES, mestre em estudos literários pela UFMG, professor de Língua e Literatura
Latina na UFPR. Publicou traduções de As janelas, seguidas de Poemas em
Prosa Franceses, de Rainer Maria Rilke (em parceria com Bruno D'Abruzzo), e
de A Anatomia da Melancolia, de Robert Burton, em 4 volumes (Prêmio Jabuti
de tradução). Participa do blog coletivo escamandro, sobre poesia, tradução e
crítica. Seu livro de estreia, é brasa enganosa (São Paulo: Editora Patuá).
32
Chicos
Profetas da utopia
*Paulo José Cunha
(para Elisa Lucinda)
Sim, somos poetas.
Logo, somos ridículos,
vergonhosamente ridículos
como os amantes.
Sim, somos poetas.
E poucos sabem
que comemos,
vestimos,
calçamos sapatos.
Como não sabem
não nos pagam nada,
ou pagam um grão
como se a profissão do verso
não merecesse remuneração.
33
Chicos
“Pra que poeta quer dinheiro?
Pra gastar com besteira,
cachaça, maconha, folia?”
Por causa disso,
vivemos de brisa,
de um gole oferecido,
de um cigarro emprestado,
e de poesia.
Sim, somos poetas,
Profetas da utopia.
E somos de todos os naipes:
obsessivos, depressivos, suicidas.
românticos, céticos, crentes,
úmidos de paixão, secos de tesão.
Descrentes, trágicos, etéreos,
concretos, neo-concretos, delicados.
Brutos, sensuais, desesperados,
simbolistas, impressionistas,
comunistas, vigaristas,
ou vates consagrados.
34
Chicos
Amargos e acres, salgados e doces,
somos simultaneamente,
o fruto e a semente.
Há os que rimam,
e os que remam
contra a corrente
Outros não aguentam o tranco,
e recusam a vida,
num trago de gás,
ou gole de formicida,
num salto solto no espaço.
Retesam além do limite
a corda do arco
e pulam fora do barco.
Há os que riem e os que choram.
Há poetas de ocasião,
e os poetas oficiais,
que em vez de viver de brisa,
vivem de brasão.
35
Chicos
E há também os marginais,
os que adoram a contramão.
Comportados ou doidos varridos,
esfomeados ou bem nutridos,
lúcidos ou drogados,
alcoólicos anônimos
ou bêbados conhecidos,
somos estranhos
e botamos tudo na conta da poesia:
alguns de nós
— coisa mais louca —
nem tomamos banho
outros de nós
estamos na academia!
Poetas somos,
profetas da utopia.
Sem saber por quê,
dizem que somos necessários,
então, que diabo, por que não gostam
de pagar nossos salários?
36
Chicos
Pior é que quando nos pagam,
trocamos o restaurante pelo bar.
Com esse nosso jeito esquisito,
meio gente, meio bicho
bebemos e fumamos o salário,
depois jantamos... o lixo.
Não espalhem,
(senão vai faltar
para o do fumo ou o da sangria)
mas o principal pagamento do poeta
é mesmo a sua poesia.
Poetas somos,
Profetas da utopia.
Somos ingênuos, sonhadores,
desimportantes.
Dizem que não servimos pra nada
e sem nós, a vida seria mais correta
e o mundo, enfim,
em vez de curvas,
37
Chicos
pior é que quando nos pagam,
trocamos o restaurante pelo bar.
Com esse nosso jeito esquisito,
meio gente, meio bicho
bebemos e fumamos o salário,
depois jantamos... o lixo.
Não espalhem,
(senão vai faltar
para o do fumo ou o da sangria)
mas o principal pagamento do poeta
é mesmo a sua poesia.
Poetas somos,
Profetas da utopia.
Somos ingênuos, sonhadores,
desimportantes.
Dizem que não servimos pra nada
e sem nós, a vida seria mais correta
e o mundo, enfim,
em vez de curvas,
38
Chicos
seguiria mais feliz,
em linha reta.
Dizem que moramos na região dos sonhos
logo, somos inofensivos.
Mas ao primeiro sinal
de ameaça à ordem institucional,
vem a contraordem abjeta:
- Prendam todos, todos!
E comecem pelos poetas.
Mas não adianta,
é um mistério profundo:
quanto mais morrem poetas
mais poetas nascem no mundo.
Mal eles quebram um ovo,
surgem dez ovos no ninho.
E gostamos de provocar
o bom senso e o bom-mocismo:
nem percebemos a cauda do pavão
mas rimos do cu do passarinho.
E seguimos assim,
de mortalha ou parangolé
no fio da navalha,
39
Chicos
verso na mão, samba no pé,
levando a vida levemente,
entre a ilusão canalha e comovida
e a dor mais doida (e mais doída),
azedamos o chope dos contentes.
Vocês não veem, mas asseguro
Que no fundo do abismo há uma flor
que não é rosa, nem cravo, dália ou lírio
uma flor que só os poetas veem
porque têm olhos plenos de delírio.
Num porre de poesia,
oscilamos, perigosamente,
entre a melancolia mais demente
e a mais avassaladora alegria.
Poetas somos,
Profetas da utopia.
* Paulo José Cunha
Piauiense, mora em Brasília é jornalista, escritor, professor da Fac. de Comunicação da
UnB, critico e letrista com diversos parceiros musicais. Apresenta o programa literário
"Casa da Palavra", da TV Câmara.
40
Chicos
Poema 13
*Inez Andrade Paes
não te garanto
que a palavra
seja de translúcido cristal
mesmo que polida e arrumada
num lugar ao sol
se por ela
a rouquidão vence
e a abate como sal que me corta os pés
e a levo então
dependurada num cordel
V 27.10.2009
De: Paredes Abertas ao Céu
* Inez Andrade Paes
Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de O Mar que Toca em Ti
(Crônica de viagem - 2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011); Libreto
em três atos, constituindo a Cantoriana Marítima - Acto I Mar falante, Acto
II Transparente Luva de Água, Acto III Flores de Acanto em Marfileno Lençol
; D Estrada Vermelha (Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia 2015) : À
Margem de Todos os Rostos (2017). Coordena desde 2012 o Prêmio Literário
Glória de Sant”Anna.
41
Chicos
Pórtico
*Ronaldo Cagiano
Da janela
esquartejo a montanha
e não consigo
domar a angústia
do que está além
Debruçado
nessa geometria
nesse labirinto sem respostas
nem saídas,
sou ave
desidratada
pelo deserto que os olhos
contemplam
42
Chicos
Conversa com Adélia Prado
O trem
venha de onde vier
sempre vai pro passado
Renata Pallotini
Da janela
Esse trem que nos percorre
(em Divinópolis ou Cataguases)
penetra
a noite
a madrugada
os dias
dos nossos sentimentos
atravessa a vida
com seu comboio de enigmas
De: O Mundo Sem Explicação (2019)
* Ronaldo Cagiano
Nasceu em Cataguases (MG), mora atualmente em Portugal. Publicou, entre
outros, Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária
2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012) e
Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016).
43
Chicos
Tango
*Amelia Arellano
Para José del Carmen Pérez
com meu agradecimento
Vem, amor, abraça-me na vertigem do tango.
Trago tatuada em minha raça a fogueira daquele tango Sur.
Vem, amor, façamos a guerra do amor na Praça de Maio.
Toma-me qual anjo nu e desapiedado.
— Não há piedade para as tiranias, não —
Corpo a corpo, espinhos de trigais de vida.
Suave e firmemente. Com os olhos cerrados à noite.
Decifremos o santuário dos deuses.
Peremptórios.
Avancemos piafando liberdades. Cara a cara. Lua a lua.
De que nos serve esta cidade? Fome a fome.
Cara e seca.
Envolve tuas ramas em minha cintura de pensamentos negros.
Sente como incrusto meus peitos de expectante colostro.
Olha em redor. Já não há gritos, não há cânticos.
Só tango.
Avancemos. Implacáveis. Inclementes. Inflexíveis.
Não há castigo que baste para o dominio das sombras.
Cala, amor, quero jazer nos campos sonolentos do teu corpo.
“Em revolução os métodos hão de ser calados e os fins públicos”
Vem. Abraça-me assim na vertigem calada do tango.
44
Chicos
Herdade
Esta sou eu. Filha de passarinha mansa e beija-flor.
Não queria vir. Encolhida entre passadiços secretos.
Aferrei-me em minha pele, meu sangue e minha linhagem de fêmea.
Minha cabeça pendeu para um abismo. Uma fossa comum.
Meu precário e frágil esqueleto. Alheio e próprio.
Um silêncio letal. Três dolentes mulheres.
Um grito.
Um arranhão da fome pôde mais. E me segurei.
Medusa. Hera. Água má. Anjo caído.
Não sabia que a violação da lei se castiga.
Agora já sei, mas não me importa.
— De tanto comer sal a gente se acostuma —
Eu sorvia as lágrimas de teus peitos cheios.
E aqui estou, como naquele janeiro.
Recordando teu olhar de animal manietado.
E ele, o bem-amado, perdido em grânulos de tempo.
Como um deus de duas caras.
Moderno Jano. Tão jovem. Tão mistério.
Eu. Sem poder escapar do reino das herdades.
Tão só. Tão deserta. Tão erma.
Esperando os começos, acaso os finais.
45
Chicos
Morrer de amor e não de abismo
E outra vez a lua e o espelho.
Me fita, me arrulha, me deseja.
O sexo acaricia minhas costas.
Relâmpagos. Cerejeiras. O amado.
Meu cavalo negro que se afasta.
Cibele ou Reia ou a Pacha.
Cobrem a lua de crepons roxeados.
Os espectros caminham pela rua.
Filhos contingentes da fatalidade.
Há frio pela rua, muito frio.
Narciso se reflete na água estanque.
Uma mulher fraca abre as pernas.
O homem deambula em sua carne.
E se buscam, singulares, estranhos.
Se encontram, se lambem, se nostalgiam.
Se choram. Gemem. Morrem de amor e solidão.
O homem afunda a cara entre os peitos pendentes.
Sabe as uvas maduras, prenhez, mãe.
Entrega-se a mulher à adaga por completo.
Sabe a madeira de murtas, a ranço.
O homem cheira a desnudez de fêmea.
Há um odor de tomilho e de amora.
Emana a gruta e floresce o páramo.
É melhor morrer de pobreza e não de angústia.
46
Chicos
E cavalgam, arfantes, a utopia.
E outra vez a lua e o espelho.
Princípio de realidade, chamam-no.
Ou vergonha… temor… ou covardia.
Secretíssima dor. Me enlanguesce. Me prostra.
Entrego minhas moedas a Caronte.
E os meus olhos flutuam no lago.
Anjos caídos dançam em meu ventre.
A morte amamenta as lesmas.
Um leproso me acaricia a boca.
E os sátiros. Ah, os sátiros.
Me entalham. Me reesculpem.
Me cinzelam.
Me mordem os mamilos.
Possuem-me, seduzem-me, enfeitiçam-me.
Morrer de amor e não de abismo.
Tradução de Anderson Braga Horta
Nota: Seu amigo o poeta e ensaísta venezuelano
José Pérez referiu, em recente artigo
dedicado a Amelia Arellano, que em sua poesia
a autora extrai “dessa energia e pulsão seu sentido
de claridade política, de claridade social,
de formação sem fissuras, para cantar suas verdades,
para desfraldar suas bandeiras de luta,
para além dos movimentos de gêneros, com os
movimentos reivindicativos do bem-estar humano,
a justiça, o bem e a paz. Sua voz é bastião
e exemplo de persistência, de entrega e demanda
dos valores essenciais da vida: o amor,
o respeito, a equidade, a solidariedade, o pão e
o trabalho” (en www.crearensalamanca.com,
25 Feb. 2021).
* Amelia Arellano
Nasceu em San Luis, Argentina, como outras destacadas poetas de seu
país, Alfonsina Storni, Alejandra Pizarnik, Suzana Theno, Olga Orozco,
Amelia Biagioni e Irma Cuña, sua obra abarca múltiplas referências do ser
feminino, do sentir de mulher e dessa valente entrega en versos de seus
universos mais íntimos. Publicou, entre outros, Exorcismos de la hoja
(2012), Teorema de Pitágoras (2015) e Desvelos de Triángulos (2020; prêmio
Provincia San Luis)
47
Chicos
Sete-sangrias
* Leonardo Campos
Os passos perderam
o fio
da marcha
e o desfile
regrediu ao
grito de independência:
bifurcação de
acordos
e
resistência
* Leonardo Campos
Leonardo de Paula Campos, nasceu em Cataguases MG é poeta e professor.
Além de participar de várias publicações literárias. Publicou o livro Alma de
brinquedo (poesia) em 2010
48
Chicos
Bandeide
*Flausina Márcia
Sorrir ao azul do céu
Só na rua
Sol nas mãos em viseira
Só na rua
Suspiro ao brilho das flores
Só na rua
Lamento a janela
Não é porta pra rua
Lamento esta casa
Não saio dela pra rua
Rua
Meu andar, meu passar
Entreolhar, entranhar
Semelhança e destino
Máscara
Meu salvoconduto
Carametade, orelha em pé
Meu trem de doido
49
Chicos
Meu medo de morrer
Meu
Nosso, ancestral
Não deliberado
Íntimo das almas
Inimigo de valentias
Aceita um café
Cerveja, um chá
Um pedaço de bolo
Uma bala de nata?
Agosto/21
* Flausina Márcia
Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo Horizonte (MG) onde trabalhou
na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou, entre outros, Vagalume
(2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014).
50
Chicos
*Fernando Abritta
Talvez não entenda
a lenda silenciosa em mim
(Em mim, Luiz Ruffato)
9 – O navio negreiro em São Luiz
Barco negreiro – tumbeiro de brasileiros desliza no oceano Atlântico como em casa.
Dentro leva muitos escravizados e uma rainha esposa do poderoso rei Agonglô que
morreu deixando dois sucessores: Adandozan, o regente, para reinar até quando Guezo, o rei
bebê filho de Nã Agotimé, estivesse pronto. Do alto de seu trono Adandozan determinou e
entregou aos brancos negreiros mãe de rei infante para que nunca ninguém mais a visse e
nem lembrasse da ordem dada por Guezo. Fez Nã Agotimé rodar tronco da árvore que rouba
memórias, a árvore do esquecimento. Fez dela escrava de brancos que a levaram para que sumisse
no outro lado das águas em terras desconhecidas.
A tempestade passou. O barco sofreu um pouco, mas resistiu. O veleiro segue o rumo
decidido por Exu e orixás.
Dentro o capitão continua dando ordens aos gritos na ilusão de comando.
─ Reduzir velas, marujos. Piloto, já sabe onde estamos? Veja aquele veleiro que passa ao
largo. Parece uma charrua. Sinalize e pergunte a ele. Mais ali, distante, uma vela de jangada.
Sim, confirme se estamos próximos da costa.
51
Chicos
Os escravizados rezam baixinho orikis para Oyá num cantochão murmurado:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá mulher caçadora,
Oyá, a charmosa,
Oyá é grande o bastante
para carregar o chifre do búfalo,
Oyá possui marido poderoso,
eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Imediato, junte uma equipe, prepare o iole, esse barco mais rápido, vá até a terra buscar
mais informações. Aproveite pra encher os galões de água fresca. Sendo o porto mais próximo
o de São Luiz, iremos pra lá refazer a despensa. Temos que repor nosso estoque de tabaco,
comprar alguma fruta para reanimar nossa carga antes de chegar ao mercado.
Os escravizados rezam baixinho orikis para Oyá:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa,
Oyá, mulher de coragem,
onde está Oyá, pega fogo,
eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Imediato, selecione umas dez peças pra colocar à venda em São Luiz. Assim a gente garante
o pagamento das taxas do porto. Bom pra sentir o mercado e ver o que podemos ganhar
com esse desvio de rota. Fique atento pra não falar demais. Evite o seleiro real, que ele vai
querer propina. Dessa carga, a metade dessa negrada vem de contrabando.
Os escravizados murmuram orikis para Oyá:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa,
Oyá vista por seus inimigos
e eles, assustados, fugiram,
atirando bagagens ao mato.
Eeepa Oyà, que tem nove filhos, eu te saúdo.
52
Chicos
─ Cozinheiro, uma ração extra pra esse lote que vai desembarcar. O resto continua com meia
ração até cruzarmos a ponta de Natal. Lá vamos rever essa distribuição, fazer um balanço da
despensa e ver o quanto poderemos gastar e recuperar essas peças, melhorar aparência da
mercadoria.
Os escravizados:
Eeepa! He! Oh, Oyá!
És a única pessoa que temo,
vendaval da morte,
eeepa! He! Oh, Oyá!
És a única pessoa que temo,
vendaval da morte
eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Atenção, marujada. Nossa carga não pode saber que estamos perto da costa. Cuidado pra
não dar a eles falsas esperanças. Vai que se revoltam mesmo nesse estado de fraqueza. Isso
seria uma desgraça. Seria nossa morte ou a morte deles. De todo jeito, é nosso o prejuízo.
Muito cuidado. Vontade de liberdade é força poderosa. Cuidado, muito cuidado, que não queremos
perder nossas cabeças. Estamos muito perto pra morrer na praia.
Os escravizados rezam para Oyá:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa,
a mulher guerreira
que carrega sua arma de fogo.
Para Oyá, respeito e submissão!
Eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Marujada do convés, preparem os baldes de água salgada, a caneca de vinagre, o óleo de
palma que o lote está subindo do porão. Cuidado com a segurança. Joguem um pouco de isca
pra atrair os tubarões mais pra perto do barco. Assim esses animais se borram de medo.
Os escravizados rezam:
Ela arruma suas coisas sem demora,
rapidamente Oyá faz suas coisas,
53
Chicos
ela vagueia com elegância,
como se fosse nômade fulani.
Quando anda, sua vitalidade é
que nem a do cavalo que trota.
Eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Marujada, na sequência: primeiro o banho com água salgada pra tirar o bodum, depois um
gole de vinagre pra limpar a boca, depois um gole de água doce pra reanimar e terminem
com o óleo de palma. Façam que eles espalhem o óleo pelo corpo todo pra que fiquem brilhando
e bonitos. Se for possível a um negro ficar bonito.
Os escravizados rezam:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa,
Oyá, mulher corajosa que empunha um sabre.
Oyá, mulher de Xangô,
Oyá, do marido vermelho,
eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Imediato, confira as peças: duas mulheres de boa aparência, dois molecões espertos de 13
anos, quatro boas peças em bom estado e duas peças mais fracas que, se você não vender,
ficam pra pagar a vintena da Ordem de Cristo. Isso deve dar pras despesas e sobrar alguns
réis.
Os escravizados:
Oyá, que embeleza seus pés com pó vermelho,
Oyá, que morre corajosamente com seu marido,
Oyá, vento da morte,
Oyá, ventania que balança folhas
de todas as árvores.
Oyá, a única que pode
segurar os chifres de um búfalo,
eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
54
Chicos
─ Atenção, piloto. Queremos estar no abrigo do porto, mas longe da fiscalização do Império.
Mantenha nosso navio a uma distância segura do cais. Marujada, preparem os botes pro desembarque
das peças. Muita atenção na vigilância pra essa aproximação dos nativos. Não deixe
que eles entrem no porão e vejam nossa carga.
Os escravizados rezam baixinho orikis para Oyá num cantochão murmurado:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa.
Oyá é grande o bastante
pra carregar o chifre do búfalo.
Oyá possui marido poderoso,
eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Vamos, marujos, amarrem as mãos desses negros. Cuidado, muito cuidado. Não machuquem
as peças, nem se deixem machucar. Preparem as juntas. Amarrem as juntas pelos pescoços.
Essas duas mais velhas formam uma parelha bem vistosa. Juntem os molecões. Façam
a carga descer ao mar. Devagar com esse lote. Quero ninguém afogado logo aqui na frente da
alfândega.
Os escravizados rezam baixinho para Oyá:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa,
Oyá, mulher de coragem,
onde está Oyá, pega fogo,
eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Vai lá, minha gente. Faturem muitas patacas, réis, cruzados, que minhas dívidas estão só
crescendo, meus créditos, cada dia menores, os débitos cada vez maiores, somando juros e
despesas. Nem sei mais quantas letras de câmbio circulam por aí nesse mundo de Deus e do
comércio. Faturem que não quero morrer apodrecendo na cadeia por causa das dívidas.
Os escravizados rezam baixinho:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa.
55
Chicos
Oyá vista por seus inimigos
e eles, assustados, fugiram,
atirando bagagens ao mato.
atirando bagagens ao mato.
Eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Pior dessa profissão é ter que curvar a coluna pra todo nobre limpinho e cheiroso. Sempre
aparece um querendo extorquir mais do nosso trabalho. Ter que cultivar a estima dos investidores,
ganhar a confiança deles, conquistar o seu respeito é outra parte difícil desse negócio.
Fica-se sonhando na desregulamentação do mercado de escravos, garantindo nossa liberdade
de vender e comprar negros.
Os escravizados rezam:
Ela arruma suas coisas sem demora,
rapidamente Oyá faz suas coisas,
ela vagueia com elegância,
como se fosse nômade fulani.
Quando anda, sua vitalidade é
que nem a do cavalo que trota.
Eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Não é de hoje que o sangue do Império, a seiva que irriga essa América nova, é esse ouro
negro que carregamos no porão. Ouro preto que carrega os senhores nas costas, planta, colhe,
fabrica o açúcar, retira da terra o ouro escondido. Ouro preto são esses que seguem acorrentados.
Os escravizados rezam baixinho para Oyá:
Ela arruma suas coisas sem demora,
rapidamente Oyá faz suas coisas,
ela vagueia com elegância,
como se fosse nômade fulani.
Quando anda, sua vitalidade é
que nem a do cavalo que trota.
Eeepa Oyá, que tem nove filhos, eu te saúdo!
56
Chicos
─ Faz tempo que se vende e se compra gente. José do Egito, filho de Jacó, foi escravo do faraó.
Romanos antigos vendiam suas presas de guerra. Também os germânicos e os árabes.
Até portugueses foram escravizados por espanhóis na guerra que separou Portugal de Espanha.
Também, os portugueses escravizaram os espanhóis aprisionados. Liberdade é isso? Tirar
a liberdade do outro?
Os escravizados rezam:
Oyá, mulher guerreira,
Oyá, mulher caçadora,
Oyá, a charmosa,
Oyá, mulher corajosa que empunha um sabre,
Oyá, mulher de Xangô,
Oyá, do marido vermelho,
Eeepa Oyà, que tem nove filhos, eu te saúdo!
─ Manda um grumete ao meu camarote acender uma vela ao Nosso Senhor do Bonfim pra
que o imediato encontre logo um comerciante sério que arremate logo aquele lote de escravos.
Vender peça por peça toma tempo e tempo não é nosso aliado. Ele que vá distribuir essas
peças pelos engenhos do interior.
Os escravizados rezam baixinho orikis para Oyá num cantochão murmurado:
Oyá, que embeleza seus pés com pó vermelho.
Oyá, que morre corajosamente com seu marido.
Oyá, vento da morte.
Oyá, ventania que balança folhas
de todas as árvores.
Oyá, a única que pode
segurar os chifres de um búfalo,
eeeepa Oyà, que tem nove filhos, eu te saúdo!
Continua...
* Fernando Abritta
Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino, distrito de Cataguases (MG). Mora em
Juiz de Fora (MG) Publicou, entre outros, umÁrvore, O Caso da Menina Que
Perdeu a Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma Verde História, além
de um ebook, Relâmpago.
57
Chicos
Eu e a Flip
*Antônio Jaime Soares
Exercito-me em verso há 48 anos, portanto,
sem pressa de “ser poeta”. Em média, três
trabalhos por ano. Quando moço, li num livro
que perguntaram a um escritor quando ele fazia
poesia, e respondeu: “Quando a poesia quer”.
Achei uma saída meio “lusitana”, hoje, concordo.
Comigo, o poema é que se escreve, faz suas
exigências, fica dodói no trecho em que eu relaxo,
isso leva tempo.
Uma reunião deles com elogios generosos
de Francisco Marcelo Cabral e um empurrãozinho
de Luiz Ruffato não logrou ser aprovada pela
Lei Ascânio Lopes. Uma das razões é que o secretário
de Cultura da época me disse claramente,
por duas vezes, que odeia livros, prefere performances.
Não obstante, dois textículos meus
foram notados fora daqui: Entre pedras, segundo
lugar numa antologia da Editora Trevo, de São
Paulo, publicado neste Chicos (número 63) e Língua
pétrea, sexto entre os poemas premiados pela
Flip (Festa Literária Internacional de Parati),
edição 2021.
Ambos têm “pedra” no título, mera coincidência,
explico, antes que me atirem a própria.
Sem motivo para foguetório (afinal, foram prêmios
secundários), me encorajaram a publicar
uma edição “dubolso”, à maneira de Sebastião
Nunes, quando setembro vier. Até lá, vou burilando.
Mesmo o que enviei à Flip (os direitos dela
cessam pós-evento) foi retocado, depois. Do
jeito que está, condiz mais com a minha intenção,
pelo menos por enquanto. O certo é que,
como observou Paul Valéry, uma obra nunca é
concluída, mas abandonada.
Língua pétrea
1
Em ângulo reto, meio-dia,
João Cabral de Melo Neto
ara área árida, imprópria
e estéril, pelas leis da lira.
Árida, no sentido obstáculo:
sem verdes mares, alencares
58
Chicos
e seu linguajar de salões
que tolhe a função da fala.
Nenhuma Olinda barroca,
mais vida vibra no mangue
e seus homens-caranguejos,
nas fezes que o barro podre;
Ao melado da cana, seu caule
de louça que, quando cortado,
é capaz de faca, furar, ferir
– a folha, em si, já navalha.
2
Na Europa, o Mediterrâneo
que há é o litoral abrupto,
pasto de cabra, em terreno
“árido”, rude, de Espanha.
O toureiro hirto, só vértebra,
em perigo, a bailadora
59
Chicos
e seu espichar-se em espiga,
seu empertigar-se, égua,
dão ideia de como opera
o autor: nada por acaso,
a esmo, tudo estudo, estado
de vigília, atenção plena.
Verso magro de ver-se o osso,
ofício de quem pensa, pinça
a palavra que mais coisas diz,
a que condiz, conduz ao topo.
* Antônio Jaime Soares
Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais
mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um
longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.
Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que
não quebra (2011)
60
Chicos
Cães de Pavlov
*José Antonio Pereira
...
Cada ferida — perfeita —,
fecha-se numa minúscula imperceptível
pétala,
causando dor.
....
Robert Creeley
Advogado, que o álcool corroeu a alma,
mas exacerbou as dores do fígado, aquelas
que mantêm o ódio sempre aceso. Braguinha
entra no bar da esquina e pede um café com
conhaque. Seu inseparável amigo Doutor Oeiras,
se formaram em direito juntos, chega e
pede uma média de café com leite e um pão
de queijo. ─ Braguinha, hoje tenho uma audiência
naquele processo do espólio do seu avô
contra o Riazã. Termina a frase com um sorriso
irônico. Braguinha, que já mal amanhece
cheirando bagaço de cana, tabaco e água de
colônia, ─ Se fosse só aquele cão? Era assim
que se referia ao empregado da fazenda,
─ Aquele negro é muito ladino. Frequenta terreiro
de macumba, dizem até que é filho de
Oxóssi. Nem meu pai conseguiu dobrá-lo.
─ Até hoje não entendo porque você chama o
Teodoro de Riazã.
─ Já contei sobre a mulatinha mais bonita
do mundo que tinha lá na fazenda? ─ Já.
Aquela que morreu em trabalho de parto. Você
dizia na faculdade que foi sua primeira paixão.
Só que ela te rejeitava. ─ Pois é. Numas
férias de fim de ano, das poucas que não
fiquei de segunda época lá no colégio, fui para
a fazenda. Voltava do alambique e a vi tomando
banho num corguinho que ficava escondido
pelas ingazeiras. Do meio do canavial
fiquei olhando-a completamente nua e brincando
na água. O desejo subiu para a cabeça.
Ali mesmo me masturbei, quando me dei conta
ela sumira. Um dia a peguei de jeito num
barranco atrás do milharal. Ela resistiu e eu
insisti. Quando eu já tinha dominado a potranca,
me aparece aquele cachorro e crava os
dentes no braço. Ela escapa e foge, O cão corre
pelo milharal. Braguinha puxa a manga da
camisa e mostra a marca da mordida no braço.
Oeiras sente o ódio nos olhos do amigo,
não sabia daquilo. Braguinha toma mais um
gole do seu café com conhaque, acende um
cigarro e dá uma profunda tragada e retoma a
conversa. ─ Meu pai falava que no trato
61
Chicos
com os empregados da fazenda, depois da
abolição da escravatura tiveram que ser mais
discretos com a negrada. Passou-se a usar o
método do condicionamento do Pavlov. Aposentou-se
a chibata, mudou-se a forma do reflexo
condicionado. Mas, de alguma forma
tem que doer. É assim que eles aprendem, é
assim que os submetemos. Eles aceitam e salivam
como os cães de Pavlov. ─ Braguinha,
isso é crueldade!
─ Você não queria saber
porque chamo o negro de Riazã? Riazã é onde
nasceu Pavlov. Nossa sociedade é punitivista.
Educa-se, corrige-se pela submissão à violência.
Quantas vezes na sala dos juízes, você ouviu
um deles falando sobre as infrações comuns.
Tem que doer, tem que doer no bolso!
É pela dor Oeiras. Pela dor...
Oeiras, que não concordava com nada
daquilo, decide ali mesmo a não patrocinar
mais a defesa do amigo. Mas acha que não é
o momento de fazê-lo. Tem certeza que Braguinha
quer ir às últimas consequências para
prejudicar o desafeto. ─ Braguinha, posso
propor um acordo ao Teodoro? – Ficou louco!
Enquanto eu for vivo eu quero é ferrá-lo. Sabe
que o nome do cão significa Presente de
Deus. É dor até na alma. Oeiras pede a conta,
─ Suas dores de alma são incuráveis. Preciso
ir, tenho muito trabalho a fazer. Deixe que
pago tudo. Paga, despede-se do amigo e sai.
O telefone toca no escritório de Oeiras.
─ Doutor Augusto Oeiras, seu filho-da-puta,
você perdeu a audiência? Que merda você fez.
─ Braguinha, ontem, conversando com o advogado
da parte, resolvi me desconstituir da
procuração que me destes, pedi ao juiz para
remarcar a audiência, você é advogado. Está
na hora de você encarar seus demônios. Ele
me disse que você só chama a irmã do Teodoro
de potranca alazã e o natimorto é seu filho.
Está na hora de você encarar seus demônios.
Desliga o telefone.
Mulata e pássaros - Di Cavalcanti
* José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
62
Chicos
O sonho
*José Vecchi de Carvalho
comê-lo. “Viu o que você fez?”, berrou o menino
que podia comprar sonhos, culpando o outro
de ter feito o sonho cair no chão de tanto olhar
para ele. O menino pobre, vivendo então um
pesadelo, correu o mais que pôde temendo o
infortúnio dos gritos ameaçadores, como se, na
velocidade, pudesse romper a membrana grossa
do seu pesadelo e voar, voar, voar até penetrar
na doce vitrine da padaria. Voltou para casa sem
comer o sonho, mas tinha-o ainda guardado na
vitrine de sua memória, pairando no ar, boiando
à sua frente, antes de cair e se despedaçar no
chão indiferente da rua.
O menino pobre pôs seus olhos de sonhos
no sonho da padaria. Passou o dia pra lá e pra
cá buscando em vão formas de possuir a guloseima
arredondada, com o recheio escapando
pelas fendas da borda, lembrando lábios carnudos
que o menino mordiscava à distância, olhando
fixamente para o seu sonho guardado na vitrine.
Lambeu os dedos em pensamento sonhando-se
lambuzado de sonho. Porém, um menino
que podia comprar sonhos entrou na padaria e
comprou o maior e mais bonito de todos. O menino
pobre engoliu em seco e fitou o sonho dançando
em mãos alheias sem poder fazer nada a
não ser olhar com um desejo incomensurável de
Publicado na coletânea Prêmio Off Flip 2021 - Conto
Selo Off Flip
* José Vecchi de Carvalho
Nasceu em Cataguases (MG), morou em Viçosa (MG) e vive atualmente
em Paula Candido (MG). Coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes (contos 2018), Contradança
(contos 2020) e Cada gota de silêncio (contos 2021).
63
Manacá
Chicos
*Raquel Naveira
Moro numa pequena casa, atrás de um
pé de manacá. Essa flor dos barrancos é um
pouco louca, pois muda de cor. Nasce branca,
depois vai passando para o rosa, o lilás até chegar
ao roxo macerado. Extravasa um aroma delicado,
de mel sugado por pássaros.
A palavra “manacá”, de lirismo popular,
logo nos traz à memória versos rimados em
“a”, como naquele poema do ultrarromântico
poeta Fagundes Varela (1841-1875): “Pelo jasmim,
pelo goivo/ Pelo agreste manacá/ Pelas
gotas do sereno/ Nas folhas de gravatá/ Pela
coroa de espinhos/ Da flor do maracujá.”
Atravessando a Serra do Mar, em direção
à sua fazenda de café em Santos, a pintora Tarsila
do Amaral (1886-1973), deve ter visto muitos
arbustos de manacá eclodindo suas copas
como capelas pelas encostas. Representou a árvore
num quadro intitulado “Manacá”, de 1927.
São formas estranhas, livres, impossíveis de encontrar
na natureza. Um tufo de pétalas desiguais,
roxas e róseas; montanhas cor de lavanda
ao fundo; uma base compacta de cactos verdes
e rombudos. Há uma fina sensualidade nessas
tonalidades místicas. E a mais pura brasilidade.
O poeta Mário de Andrade (1893-1945),
figura central da vanguarda de São Paulo, compôs
letra e música do “Hino do grupo do gambá”,
cantada pelos modernistas no início de
suas reuniões. Esse hino foi depois gravado por
Marcelo Tápia e o grupo Colher de Pau, em
2009. Mário chama os homens de “gambás”:
“Guilherme de Almeida (1890-1969) é gambá”,
“Sérgio Milliet da Costa e Silva (1898-1966) é
gambá”, “Oswald de Andrade (1890-1954) é
gambá” e as mulheres, por sua vez, são
“manacá”: “Tarsila do Amaral é manacá”,
“Olívia Penteado (1872-1934) é manacá” e, excluída,
mas sempre lembrada, a pintora Anita
Malfatti (1889-1964), também seria “manacá”.
Imagino uma reunião desse grupo fascinante
na casa da colina de Guilherme de Almeida.
Todos recostados nos sofás de palhinha cobertos
de almofadas coloridas, entre objetos orientais
e copos de cristal. O piano aberto com suas
teclas pretas e brancas, pronto para ser tocado.
A bela Tarsila do Amaral, de cabelos puxados e
longos brincos, comenta sobre a antropofagia
nas artes plásticas, sobre a necessidade de digerir
as influências estrangeiras como no ritual
canibal em que se devora o inimigo com a crença
de poder absorver suas qualidades. O poeta
Oswald de Andrade, seu companheiro à época,
detalha como dera o nome de Abaporu, que
significa em tupi “homem que come carne humana”
ao intrigante quadro de Tarsila. Mário de
Andrade, rindo-se do casal “tarsiwald”, lê alguns
poemas de seu polêmico Pauliceia Desvairada.
Guilherme de Almeida, compenetrado,
ajuda a mulher, Baby, a servir licor aos convivas.
Mostra um número da revista Klaxon e defende
a liberdade de ritmo no sentir, no pensar,
no dizer.
Aponta um anúncio do chocolate Lacta, afir-
64
Chicos
mando que a publicidade utiliza a linguagem da
poesia e os grafismos para seduzir o consumidor.
O pintor e crítico de arte, Sérgio Milliet,
fala um português arrastado, com sotaque francês,
pois residira tantos anos na neutra Suíça,
fugindo das agruras da Primeira Guerra Mundial.
Sérgio é o homem-ponte entre a cultura sedimentada
da Europa e a busca de uma identidade
brasileira e única. É preciso contar ao grupo
sobre o valor de versos descontínuos, independentes,
sobre os cubistas, os futuristas e as
fases da pintura do genial Picasso. Dona Olívia
Penteado, elegante, chega com novidades sobre
um grande projeto: a criação de um Salão de
Arte Moderna. Ela conseguirá os recursos. Quer
os quadros de sua amiga Anita Malfatti em destaque:
o “Homem Amarelo”, “O Farol”, “A Estudante
Russa”, juntos, numa ala nobre do salão.
Todos aplaudem. Há que se apoiar Anita,
que está deprimida e triste, depois de duramente
criticada por Monteiro Lobato, no artigo
“Paranoia ou Mistificação”. O grupo se une, se
aproxima, se confraterniza, enquanto fotografo
a cena em minhas retinas.
Dá para compreender. O gambá é uma
espécie de rato solitário, noturno, crepuscular.
Temido e dramático. Faz-se de morto quando as
coisas se tornam perigosas. O manacá é planta
de cerrado, de terra árida, de beleza primitiva.
O grupo modernista é refinado e caipira; verde,
amarelo-mamão e roxo.
Moro distante, numa pequena casa no sul
de Mato Grosso. Daqui, relembro dos amigos
de São Paulo, vivos e mortos, enquanto a noite
desce com suas estrelas sobre o pé de manacá.
Manacá - 1927 Tarsila do Amaral
* Raquel Naveira
Nasceu em Campo Grande MS, formada em Direito e Letras, doutoranda em
Literatura Portuguesa na USP, é escritora e publicou, entre outros, Abadia
(1996), Casa de tecla (1999) indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia
65
Memória e Folia
Chicos
*Emerson Teixeira Cardoso
Em matéria de boa memória, acho que
ninguém supera ou mesmo poderia ombrear
com o jornalista, biógrafo, repórter, editor,
colunista, (trapezista?), Ruy Castro.
Lendo um de seus livros fico sabendo,
por exemplo, que a defesa do Canto do Rio
em 1955 era: Celso, Charuto e Arnóbio, Roberto,
Moreira e Dico. E que a linha do Bonsucesso,
era formada neste mesmo ano por:
Barbosinha, Soca, Alemão, Décio e Benê. Os
textos de A Palavra Mágica nós fazem voltar
ao tempo em que tínhamos que tomar Óleo de
Fígado de Bacalhau de cara boa. Um tempo
em que os remédios eram identificados pelos
nomes de seus fabricantes: Pílulas de Vida do
Dr Rossi (pequeninas, mas resolvem), Vinho
Reconstituinte Silva Araújo (o tônico que vale
saúde.) E colírio era chamado de Lavolho.
A exemplo de Ivan Lessa, seu colega no
Pasquim, que do autoexílio em Nova York,
acompanhava tudo que se passava por aqui,
no Brasil de sua memória o fazia lembrar de
todos os bairros, firmas comerciais, linhas de
bondes, times de futebol, enfim, todo o luxo e
lixo que afinal, faz a vida valer a pena de ser
vivida.
Suponho que entre tantas habilidades o
conhecido escritor tenha sido também repórter
esportivo, senão como poderia ter tanta informação
assim? Soma se a isso todo o cabedal
que registrou ao longo dos anos, que o capacitou
a elencar dezenas de centenas, quiçá, milhares
de títulos e fichas técnicas de inimagináveis
filmes do passado e letras de marchinhas
de carnaval?
Quem mais poderia saber (eu, particularmente,
o soube agora), que as tão comentadas
duas polegadas a mais que tiraram de Marta
Rocha o título de Miss Universo, foram uma
invenção do repórter João Martins, enviado a
Long Beach pela revista O Cruzeiro porque ao
concurso interessava a conquista do público
americano, como foi revelado pelo próprio,
em 1979 a revista Manchete. Fato confirmado
pelo próprio Aciolly Neto, ex-diretor de O
Cruzeiro.
66
Chicos
Que Preguinho, ídolo do Fluminense nos
anos 20 era na sua época mais festejado que
Coelho Neto, seu pai, cuja casa ficava situada
em frente do estádio do Fluminense. E que
Mano, seu irmão, em uma partida, jogando
pelo São Cristóvão, sofreu séria contusão, mas
não quis sair de campo. O Fluminense venceu
por 2x1, (mas a que preço,) o traumatismo
que sofreu, com infecção generalizada o levou
a óbito. No dia seguinte a seleção do Brasil
empatou com o Uruguai pelo campeonato Sul
Americano, em homenagem a Mano, o Brasil
jogou com uma tarja negra.
querida Portela da Vila Leonardo na Passarela
do Samba Expedito Liberato. O enredo do
compositor Bento tinha um apelo social e o
seu refrão assim dizia:
"Oh, meu senhor, tem pena dos inocentes,
Bota bomba no morro, manda água pra gente."
O desfile acabou não acontecendo e a
estreia de nossa Portela foi adiada para o ano
seguinte porque, ironia do destino, quem mandou
água foi São Pedro inundando a Passarela
do Samba e dando literalmente um banho de
água fria as minhas pretensões de passista
Entre tantos fatos lembrados destaco o
da nota de mil cruzeiros, a "abobrinha", que
tinha a efigie de Cabral que dos anos 60 aos
noventa, como frisou, foi do Cruzeiro ao Cruzeiro
Novo e retornou ao Cruzeiro e Cruzado
até que se transformou em Real o que permanece
até hoje.
Eu também, apesar da minha pequenez
tenho recorrido as antigas lembranças como a
da primeira vez que veria desfilar a minha
Arlequins - Carnaval - Joan Miró
* Emerson Teixeira Cardoso
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa
da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas
Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967),
mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul
(1997).
67
Chicos
SeRurBanO de Jorge Lenzi
*Fernando Abritta
Quarta feira fui à casa do Jorge Lenzi buscar
poesia. Pandemia preparando maré cheia,
nos encontramos à sua porta (dele). Pequeno
corpo do poeta projetando sombra pela cidade
metros abaixo.
Falamos de história, de fachadas e moradas,
esquinas e vivências.
Nós temos em comum início de vida profissional
desenhando. Enquanto eu inventava
usos para o durex descartado que fixava folhas
de papel na prancheta, ele alimentava aranhas
com mosquitos distraídos que vinham rodear seu
posto de trabalho.
Prancheta de desenhista: objeto subsumido
na tela luminosa dos computadores onde programas
de CAD substituíram as canetas tira-linhas
de nanquim.
...
Iniciando a leitura.
Parei a primeira leitura na página 68.
Haverá um dia,
eu sei que haverá,
que em algum lugar
tudo em mim descansará.
Fui ate a página 83.
E, se não há mais
amor pra dar.
Voltei à página 82/83 para rever o poema
visual colhido nos Rabiscos de um muro q um
ser humano desvê olhando para o lado.
Resolvi fazer segunda leitura depois de terminar
esta.
...
Laptop/facebook/look/botox/up grade são
palavras que aparecem numa apropriação de estrangeirismos
de uso coloquial para dentro do
discurso poético (págs. 18, 19, 21, 23) quebrando
amarras.
Isto é uma das novidades deste livro bem
desenhado, primoroso trabalho de Fernanda Lima,
Eliane Leal e do próprio autor. Não esqueçamos
as fotografias de Antônio Alvarenga que
comentam os poemas.
Um belo objeto este SeRurBanO.
...
O discurso poético de Jorge Lenzi passa por
uma crítica ao modo de vida atual – Vivemos
todos / vivemos tolos (pág. 25) – explicitando
isto como contradição na página 28:
Tinha
vida pequena
não
alçava voos.
Ausência de pontuação abre leituras antagônicas
(vida pequena não, alçava voos). Esta
dúvida paralisante – e oferecia o pescoço / à guilhotina
do tempo – Lenzi a leva à redenção na
poesia. Na página 59 a definição se mostra poeta(sim),
poeta(não), paet(anão).
Eu sou assim,
esse poetanão.
68
Chicos
E se despe na pág. 55 quando Durmo com
teus versos/ sob o travesseiro/ para me perdoar
dos meus. Seria um diálogo com Drummond ou
com Vinicius de Moraes ou com todos os grandes
e consagrados da literatura nacional?
Pouco importa, pois o tema da finitude
aparece na página 68, relacionado à ausência da
poesia:
Haverá um dia
esse, sem poesia
em que Ela virá
Nesta obra os temas solidão, caverna, lobo,
tempo, morte, caminho estarão sempre dançando
com a poesia, este estado de espírito libertador.
Sofro poesia
A confissão na página 87, não solução,
mesmo com poesia, a vida é
Sonho sem fantasia
...
Era época de poema processo, pósconcretismo,
anos setenta. Um dia, numa aula
de algoritmos, às escondidas, coloquei num terminal
remoto o IBM da empresa pra concatenar
palavras. Saiu nenhuma poesia.
Há quem use algoritmos para fazer romances,
com certeza novelas e filmes usem. Máquinas
de gerar sentimentos em humanos. Alguém
pode estar fazendo haicais com essas ferramentas?
Lenzi nos lembra que poesia é algo mais.
...
Lanço/ olhares alhures/ e pergunto. Isto na
página 141 e não importa a questão nem a resposta,
olhar alhures, em outros lugares e perguntar
é tudo que necessitamos nestes tempos de
certezas inegociáveis. A pressa do nosso tempo
(o dinheiro/capital é um bit que voa na velocidade
da internet que à velocidade da eletricidade
empurra tudo) não permite perguntas sem respostas,
dúvidas.
...
Nas pranchetas a gente desenhava letras a
nanquim com uma ferramenta chamada aranha.
(Uma caneta numa ponta, noutra uma agulha no
sulco de uma taboinha com o alfabeto em baixo
relevo. Dedos desavisados sofriam dolorosos furos
por esta agulha donde a aranha vir com o
adjetivo de venenosa.) Paciente, a mão direita
contornava as letras num ritmo suficiente para
cobrir de tinta o papel sem perder o sulco, evitando
deformar o traço. O movimento gostoso
do o, contrastava com a dificuldade do m. O
tempo escorria, o movimento mecânico até liberava
o cérebro pra outros pensamentos, algumas
perguntas talvez.
Hoje não mais (pág. 75)
Nesta casa
tudo que cantava
e era vida
hoje silencia.
...
Em O Homem e a cadeira na página 151,
o poeta se entrega.
Passou por mim
E senti inverno
Em sua alma também.
Conheci Lenzi quando li um texto dele no
jornal do nosso sindicato, histórico Bodinho q
abrigou iniciantes como o chargista músico analista
político Aroeira e outros. O dia que o
leão visitou o circo balançou as estruturas quase
calcificadas da estatal e fez um furor tão
grande que o autor amargou um ano de desemprego,
só sendo reconduzido após muitas negociações
entre a direção do sindicato e a da empresa
(um filho de general era presidente, óbvio,
eram tempos de ditadura).
69
Chicos
...
Parei no penúltimo verso do livro, pág. 197,
E mais uma segunda-feira perdida
entre os (dês)utensílios desse lar.
Seria mesmo perdido este SeRurBanO ?
Convivi com este poeta, o sabendo poeta
e escritor, trabalhando lado a lado normal 8 horas
por dia, às vezes 10, ao mais. Nada de poesias,
nem prosas, só traços retas curvas no papel
vegetal, depois no monitor do computador construindo
cidades, ruas casas postes virtuais. Mas
havia momentos que a vida se impunha e levantava
nossa voz.
Certa vez, a direção da empresa resolveu
destruir o sindicato, lançando uma carta denuncia
chamando os “funcionários” para a desfiliação.
Isto numa terça-feira, 10 horas da manhã, e
cresceu, virando onda. A direção do sindicato
chamou da base um grupo de quarenta trabalhadores
– talvez mais, talvez menos - para construir
uma resposta. Dezoito horas, 19 horas começaram
a chegar construindo uma roda humana e
as palavras foram sendo ditas colhidas escritas,
frases sendo concatenadas entre pontos e parágrafos.
20 horas. Aqueles duros e doídos corpos
já gastos do trabalho diário continuaram tirando
colocando adjetivos substantivos. 22 horas. Não
havia celulares ainda, esposas e esposos na certa
preocupados. 23 horas. E o povo lá negociando.
Esta palavra só entra se for substantivo, como
adjetivo ela destrói o sentido, empobrece o texto,
dizia um. 24 horas texto fechado. Decidido
quem revisar, quem levar à gráfica, quem distribuir.
No outro dia, 7 horas, rostos cansados chegam
batendo ponto. A carta está na mão de todos.
8 horas, rodas de conversa surgem discutindo
baixo. 9 horas, começa o café e o assunto é
só a carta, as cartas. Meio dia e as cartas de desfiliação
são retiradas. As palavras acertaram, encaminharam
os corpos para decisão.
Não, Palavras têm força e muita. Não tem
segunda-feira perdida como não foi perdido o
tempo em que li O dia em que o leão visitou o
circo. Estes dois exemplos de textos que mudam
realidades.
...
Este SeRurBanO tem esta pegada.
Pega mesmo
* Fernando Abritta
Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino, distrito de Cataguases (MG). Mora
em Juiz de Fora (MG) Publicou, entre outros, umÁrvore, O Caso da
Menina Que Perdeu a Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma
Verde História, além de um ebook, Relâmpago.
70
Chicos
A poesia de Dheyne de Souza não deixa que o
olhar envelheça
*Salomão Sousa
Deve ser descartada a sintaxe que ordena o
material para que pensamento consiga interpretar
numa percepção ligeira, mas exigidas intervenções
que venham inserir outras linhagens de
compreensão, onde a visibilidade não ocorra em
fórmulas e recortes uniformes. É confortável
eleger uma ordem e depois se sujeitar a ela e a
ela se habituar, vindo a desaguar na desistência
de buscas de novos ângulos de visibilidade. Só
as novas visibilidades permitem novos trânsitos e
novos textos.
Dheyne de Souza denuncia: “a ponte cega
o verbo”, pois a ponte não estimula outras passagens,
sujeitando o passageiro às mesmas paisagens
e aos mesmos territórios. Dentro de uma
zona de domínio, de conforto, deixa de ser discernível
a individuação. Quando todos mantêm o
mesmo ritmo, num mesmo propósito, num mesmo
discurso, encontramo-nos num enxame, num
formigueiro ou numa multidão. O enxame – define
Byung-Chul Han – conforma-se com o mesmo
resultado.
A ordem é traiçoeira, se o seu desejo impõe
a repetição para retomar o espasmo já experimentado.
Quando se aprende a curva, reproduz
-se a curva. Quando se encontra a forma de sustentação,
cria-se o molde da trave. É necessário
destravar − e isso só pode ser obtido com a partição
do puzzle para abrir possibilidades de outras
montagens do discurso e de outros encaixes
na interpretação. Até na imprensa o conforto
passou a ser buscado em sua prática − otimiza-se
a multiplicação do discurso a partir da cópia da
postagem inicial. É mais confortável, econômico
e sem risco trabalhar com o que já está pronto,
posto e acolhido. Vamos perdendo para o lixo
raras possibilidades que os materiais contêm.
Todo sacrário tem sua chave e determina que
não será aberta admissão a nenhuma outra divindade.
Não quero meu pensamento numa divinização
monoteísta e uniformista. Prefiro admitir o
pensamento propenso à estranheza a ser máquina
de portabilidade de significados exigidos em
requerimentos protocolados nos guichês do conformismo.
Aproximo-me de uma experiência para
que o espasmo deixe de repetir a baba e os
esgares. Atraem-me os poetas que partem de
alguma impossibilidade, que reconhecem que a
composição não surge com a dicção do prazer
de dizer a confissão pessoal, mas da infiltração
de alguma incompreensão para tornar explícito
que o incompreensível deve ser abordado. Dheyne
de Souza afia suas lâminas para traçar ranhuras
na sintaxe para experimentar se ainda há
possibilidade de sangrar e de escapar da subjugação
dos mesmos canais de expressão.
71
Chicos
Tive oportunidade de estar junto com
Dheyne de Souza em Goiânia por duas vezes.
Participamos de debates e leituras. Ela sempre
de lenço (ou cachecol? ou numa alternância de
lenço e cachecol?) ao pescoço, construindo uma
imagem muito circunspecta, com diálogos muito
cautelosos nas conversas. Eu temia que a poesia
dela se enfraquecesse nessas apresentações públicas,
nas quais já era acolhida com merecido
aplauso, pois os expectadores de recitais se contentam
(e até exigem) comunicação verbal e expressão
corporal e não exigência de composição
que evada das facilidades do real. No entanto,
essa capacidade de construir a imagem pessoal
contribuiu para que ela não cedesse ao desbunde
fácil da rua, pois usou a concentração corporal
para respeitar o poema com exigentes etiquetas
muito próprias, respeitando a construção dos
poemas com policiamento e polida circunspecção.
Dheyne de Souza é uma tocantinense que
morou em Goiânia, onde participou de muitos
eventos (muitos recitais) literários, com rico material
de aprendizagem de poesia em redes sociais
e sites pessoais. Depois parte para São Paulo
para seu doutorado em Literatura Brasileira. Portanto,
a sua trajetória vem permitindo a ela alcançar
consciência de visibilidades de novos territórios
com derrubada da cegueira imposta pelas
facilidades apresentadas pelas pontes prontas
e já inflexíveis em seus materiais.
Em Lâminas, seu segundo livro − ricamente
editado pela Martelo Casa Editorial, com design
invejável de Helô Sanvoy, e tiragem extra de 50
exemplares em edição de luxo − sobressai uma
poesia madura, onde se intercalam poemas rápidos,
bem pedras portuguesas em elaborados mosaicos,
bem como poemas com estruturas mais
longas, na maioria prosoemas (seu terceiro livro,
conforme anunciado pela mesma editora, composto
só de prosoemas terá o título enquanto
caio). A indefinição pela escolha de uma forma
específica não chegue a ser prejudicial ao livro;
talvez atenda o interesse do expectador desse
tempo atual em não se fixar num mesmo formato,
de total negação daquilo que se mostra na
tela no mesmo enquadramento.
O livro já mereceu duas resenhas
(disponíveis em sítios da internet), destacando a
do poeta Wilton Cardoso, que, junto com Jamesson
Buarque, integra o círculo responsável pela
definição de novos parâmetros para a poesia goiana.
E nesse círculo transita Dheyne de Souza. O
importante é que o livro sobressai sobre as publicações
de poesia atuais e consolida mais uma
passagem rumo à definição de uma dicção personalíssima
para a poesia de Dheyne de Souza.
É um livro que chega inquestionável, sem lacunas,
mergulhando a construção dentro das ocorrências
pessoais e políticas. Também sobressai a
busca de domínio da forma, ajustando a fluidez
da escritura virtual a uma sintaxe, às vezes elíptica,
às vezes de ruptura com as imposições virtuais.
Alcança resultado, como já se disse, inquestionável.
Logo no preâmbulo, Dheyne de Souza sinaliza
que não há uniformidade no real ou na
prática construtiva de seus poemas (quebrados
de rua/bebidos de pressa/ladrilhos sem linha).
Esses três versos, em suas dezessete sílabas, bem
se enquadram nas exigências elípticas da poesia
japonesa. Um haicai enigmático? O importante é
que o poema sinaliza a composição que será
adotada no livro, bem como o terreno que irá ser
desbravado.
Há um poema que irá mostrar a necessidade
da exploração da sintaxe (da linguagem) para
escapar do conforto daquilo que se vê da ponte
e do conforto do território a ser encontrado com
a travessia. A ponte impede o mergulho, o afogamento,
o aproveitamento do inconsciente, do
que está no fundo de si mesmo. Na experimentação
da sintaxe, sem nenhuma expressão óbvia,
72
Chicos
não se desliga em momento algum dos efeitos
internos que indica que um poema é um poema
desde que o mundo é mundo (nomeiam, nadadeiras,
seio, espreita, anseio). E, nesse embate
com a validação da sintaxe, em outro texto relembra
que há, às vezes, “um verbo cansado de
ar”, pois o percurso para desbravamento de terrenos
novos nem sempre ocorre com respiração
segura.
tem um lado do lago que esconde a língua
das margens que nomeiam as entranhas,
foz em que dormem os pequenos medos,
com suas nadadeiras arredias
vez ou outra atiçando um verbo
vez ou outra maldizendo um seio
à espreita-bolha de um espeto
na suspensão que é respirar escama,
em silêncio – brejo em mar,
no subterrâneo consoante
das vogais do anseio.
Quando se manipula uma lâmina, há uma
ação de estrangulamento, de sangramento, de
eliminação, de possibilidade de arranjos novos
com o despojamento ou realocação de elementos.
Dheyne de Souza usa suas Lâminas para
despojar. Resta à sintaxe indicar, mostrar que o
lugar comum está exaurido, pois está sendo executado
pelo enxame. Ela deseja correr fora do
enxame, não atravessar a mesma trilha, mas derrubar
pontes. Poderia ter dito “lago que esconde
as beiras”, o que seria o discurso óbvio. Poderia
ter construído com o enxame o verso “suspensão
que é respirar amor”. Poeisa se faz com o domínio
da linguagem, com martelamento dos materiais,
com fuga da significação explícita. Se uma
lâmina desmonta uma árvore, resta um monte de
uma árvore ou a dispersão de uma árvore. Se
uma centena de pessoas atravessa uma rua ou se
aglomera, temos uma multidão. Mas qual ordem
pode ser dada a esta multidão? A poesia tem de
reunir todas as pessoas por cores de suas roupas,
ou intercala-las? A sintaxe existe para atender os
questionamentos do poeta. Uma centena de pessoas
ordenadas deixa de ser uma multidão. As
palavras que atendem ao propósito do chamamento
de uma sintaxe pessoal se transformam
num texto de leitura factível, em que pese a
compreensão não ser factível para todos.
Entra ainda outro questionamento quando
há ocorrência da perda da ordem. O caos quebra
a possibilidade do heroísmo e de deflação da
maldade. A incompreensão gera a maldade, mas
só é possível compreender tentando entrar na
sintaxe dos discursos do tempo da maldade.
Uma multidão só é de aceitável propósito quando
é possível ler em seu chamamento alguma
razoabilidade que levou ao agrupamento. Quando
não há razoabilidade na escritura, há a perda
da individuação (ou de autoria).
Com as suas Lâminas, Dheyne de Souza
pode remontar o poema em diversas possibilidades
no momento da construção, com razoabilidade
de propósito, pois de ruptura para novas
passagens/mensagens. Com ruptura e recortes
provocados por lâminas afiadas, talvez o ar se
desloque para novos ângulos exigidos pela respiração.
Todo bom livro tem de ter versos/frases
que chegam para alimentar a consciência dos
nervos e que serão repetidos e reproduzidos séculos
após a ocorrência de sua escritura. Necessário
o verso "Quero lembrar como se faz para
ser bom de novo". Este verso merece ser descoberto
por Gonçalo M. Tavares para construção
de um de seus divertidos textos. Ser bom de novo
em que? Produção de poesia, de moral, criar
ordem política, social, econômica? O homem só
é bom quando não diverge, retoma uma ordem
73
Chicos
firmada com carimbo, seja do poder, da irmandade,
do dogma?
Conformamo-nos, na leitura, a exigir que
se diga no contexto de nossa compreensão, na
forma estabelecida para enquadramento de todos
os discursos. Quero lembrar como se faz para
ser bom de novo. Quando é que uma forma
envelhece e passa a ser uma mentira? Talvez
quando ela subjuga nosso olhar e nosso movimento.
Posso ser “bom de novo” com nova sintaxe,
em nova espacialidade ou só quando aceito
a uniformidade da travessia da ponte, gado direcionado
(ao matadouro ou à invernia?).
nesses tempos
um ato legislativo do Governo; “milhares de minutos
de silêncio” é um engasgo pela morte de
Marielle; “80 tiros” repercutem os disparos que
continuam a espocar nas comunidades. O poema
“memória” – “essa lâmina que não vem só com
corte mas o cheiro dos móveis o vapor do olhar
a temperatura do dolo”. Dheyne de Souza traz
alento para que nosso olhar não envelheça.
Depois de uma das muitas leituras de Lâminas,
de Dheyne de Souza, andei pelas cercanias
de minha quadra para olhar quais vizinhos
estavam despertos e para olhar se a poesia interfere
na consciência coletiva. Os besouros estavam
com a mesa posta a se alimentarem de folhas
de hibisco.
algo vai enfraquecendo
a direção do olhar
E Dheyne de Souza tem esta sabedoria de
não fugir, de resistir, pois o verso perderia muito
se não remetesse à necessidade de o Homem
recuperar a consciência de ser/ser civilizado, de
não enfraque/cer o olhar. No ato de olhar correto,
a decisão não sai envilecida. Alguns poemas
fortalecem a presença ativa da poesia: “MP
870” tem seu sentido histórico, pois até os pássaros
“amanhecem alarmados” com adoção de
* Salomão Sousa
Nasceu em Silvânia GO, é poeta, jornalista e aposentado do Poder Executivo
Federal. Reside em Brasília. Estreou em 1979 com A moenda dos dias, ao qual
se seguiu uma dezena de títulos. Sua bibliografia inclui livros de poesia, de crítica
e organização e participação de antologias.
74
Chicos
Lendo os Clássicos
*Luiz Ruffato
Memórias de Mama Blanca (1929)
A narradora utiliza um recurso técnico que,
quando bem usado, é uma ferramenta excepcional
para provocar verossimilhança: a de
emprestar a voz a outrem. No caso, a narradora,
na Advertência, explica que conviveu, menina
ainda, com Mama Blanca, que lhe legou
um "manuscrito misterioso", cujo volume que
temos em mãos equivale às suas "primeiras
cem páginas" (p. 24), correspondente à infância
de Mama Blanca vivida numa fazenda de
cana-de-açúcar e café nas imediações de Caracas,
no século XIX. Filha de uma família aristocrática,
cujo "casamento luxuoso" foi oficiado
por um arcebispo e teve como um dos padrinhos
um Presidente da República (p. 90),
Blanca Nieves era uma das seis filhas em escadinha
do fazendeiro Juan Manuel e da romântica
Misia Carmen Maria, que formavam "um
rebanho de açucareiros ou de compoteiras invertidas"
(p. 39), criadas soltas na Pedra Azul,
seguindo à risca os preceitos do pai: "As meninas
(...) devem estar sempre ao ar livre, não
importa que tomem sol; sob nenhum pretexto
devem ir à Caracas, nem a qualquer outro lugar
povoado, onde possam pegar sarampo,
coqueluche, difteria ou catapora; devem tomar
banho de água fria e corrente; não devem usar
muita roupa; devem se levantar o mais cedo
possível e ir o quanto antes tomar um copo de
leite ao pé da vaca" (p. 137). Assim, com seu
"dom precioso de evocar o passado contando
histórias", com "sua alma desordenada e panteísta"
(p. 18), Mama Blanca vai anotando suas
lembranças daqueles tempos remotos,
aquela época "perdida para sempre, na qual
era tão doce viver" (p. 159). Além da mãe,
uma personagem saída das páginas dos romances
românticos, mas traçada com tal precisão,
que surge em carne e osso à nossa frente,
e o pai, homem que padece em sua humana
contradição, Mama Blanca traça três perfis
que se agigantam e tomam conta do romance:
o pobre, eloquente e inadaptado Primo Juancho,
o sábio e desprezado Pedro Cochocho e
o encantador de vacas Daniel.
75
Chicos
A autora possui um poder de evocação de
mundos mortos raras vezes encontrado na literatura
- e vale mesmo um paralelo com Fogo
morto, a obra-prima de José Lins do Rego. Em
um e outro romances, ambos sobre fazendas
de cana-de-açúcar, mais ou menos da mesma
época, há uma melancolia comedida, um lamento
pela coisa perdida - aliás, é impressionante
como o Primo Juancho se parece com o
coronel Lula de Holanda, ambos personagens
tragicamente pícaros. Aqui, a Autora, num
rasgo genial, pinta, por meio de uma narrativa
aparentemente ingênua, um grande painel onde
são expostas as grandes fissuras das sociedades
latino-americanas - no caso, mais especificamente,
venezuelana -, com suas imensas
desigualdades sociais, a mulher relegada a papel
subalterno, o humano submetido ao econômico.
Enfim, um livro excepcional.
Memórias de Mama Blanca (1929)
Teresa de la Parra (1889-1936) - VENEZUELA
Tradução: Lizandra Magon Almeida
Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021, 168 páginas
Entre aspas:
"(...) não ser esnobe me desprestigiou muitíssimo na consideração das pessoas, as
quais só buscam e exaltam quem saiba esmagá-las sob o peso de uma vaidade espetacular
e estéril" - (pág. 95-96)
Avaliação: Muito bom
* Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua autoria
destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu
APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de
Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido no
país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do romance
Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005, composto
por cinco livros sobre o operariado brasileiro.
76
Chicos
Clips
Terra dividida
Eltânia André
Editora Alfarroba
ano de edição: 2021
www.laranjaoriginal.com.br
Manhãs de sabre
Luiz Ruffato
Editora: Faria e Silva
ano de edição: 2021
www.fariaesilva.com.br
Manhãs de sabre reúne alguns poemas recuperados
de Cotidiano do medo (Alfenas: Mandi,
1984) e os publicados em As máscaras singulares
(São Paulo: Boitempo, 2002), Paráguas verdes
(São Paulo: Ateliê Acaia, 2011, com xilogravuras
de Xiloceasa, edição não comercial de
250 exemplares numerados) e O amor encontrado
(São Paulo: Edição do Autor, 2013, ilustrações
de Tadeu Costa, edição não comercial
de 10 exemplares numerados), além de inéditos.
Óbvio, claro, indubitável que o texto de Eltânia
André fala por si só sobre o talento inegável da
autora. Mas custa nada palpitar aqui nesta página
externa deste inquietante-criativo Terra Dividida.
Eltânia é mestra em frustrar o inacessível, o acaso,
decodificando o insondável, desbastando os limites
da imaginação; consegue descoser laços intrincados
do cotidiano tirando proveito das miúdas existências
de Naira e Eneida e Basílio e Nena e Almeidinha,
assim por diante; há inevitável camaradagem
entre ela, escritora, e a palavra: ambas se
enrodilham em afagos mútuos; sensação de que
Eltânia André vai montando suas histórias à semelhança
de restaurador ceramista que junta os cacos
de botija até que ela fique pronta-prontinha para
acolher a mais borbulhante e cristalina de
todas as águas do rio-rítmico — sim: com Eltânia
cântaro canta. Sua voz literária única, arado que
procura sempre rasgar chão ainda não cultivado,
vai aqui, neste encantador livro, aos poucos, soltando
lascas de certa encantatória árvore genealógica
do encanto absoluto
77
.Evandro Affonso Ferreira
Chicos
Todos os desertos: e depois?
Ronaldo Cagiano
Editora: Patuá
ano de edição: 2021
www.editorapatua.com.br
Esconder-se na greta da madeira dos próprios pecados;
viver na dependência dos acontecimentos hepáticos;
medir tudo com os olhos, numa procura
inquieta. Ronaldo Cagiano sabe, à semelhança de
Nietzsche, que escrever bem também significa pensar
bem. Ronaldo é desses raros escritores que vivem
o tempo todo excitados diante da imaginação,
sempre incitados pela reflexão. Suas frases, seus
parágrafos são frases-trincheiras preparadas para se
defender dos obuses-do-lugar-comum; suas personagens
sabem piratear a verdade, e ministrar a
morte homeopaticamente – além de fazer costumeiras
revisões das próprias falhas individuais.
Todos os desertos: e depois? É um livro de contos,
pequenos-magistrais contos nos quais os clangores
não imploram silêncios: são altissonantes; onde as
sutilezas verbais não carecem de apalpamentos;
onde a sintaxe consegue escalar degrau a degrau os
caminhos alvissareiros. Ronaldo Cagiano sabe, como
poucos, da necessidade de o escritor refugiar-se
no inalcançável, no imperceptível – sem deixar que
a realidade se descambe de vez para a obliquidade.
Mesmo assim, consegue, imaginoso, surpreender a
todo instante o leitor lançando mão da arte de desvendar
os meandros esperançosos que se camuflam
no subsolo da Utopia. Resumo da ópera: estamos
diante de belíssimo escritor, cujas palavras sabem
angariar Plenitudes.
Evandro Affonso Ferreira
O Município de Cataguases
Esboço Histórico
Organizador: Joaquim Branco
Arthur Vieira de Resende e Silva
Colaboração de: Astolpho Vieira de Rezende
Edicão: Parceria Joaquim Branco e Instituto
Francisca de Souza Peixoto
ano de edição: 2021
É a segunda edição de uma obra já publicada, no
ano de 1908, por Arthur Vieira de Rezende e Silva
e com a colaboração de Astolpho Vieira de
Rezende. Um dos documentos mais importantes
sobre a história de Cataguases é agora relançado,
organizado por Joaquim Branco.
A história contada na obra começa pelos povoados
indígenas, passa pela fundação da cidade e
chega até a data da publicação original, em
1908. Além de textos e fotos, o livro conta também
com quadros estatísticos sobre a época.
São abordados pontos como se fizeram as antigas
ruas, praças e casas, o comércio e indústrias
e como se davam as disputas políticas no município,
além de outros aspectos.
Além de organizar a segunda edição de "O Município
de Cataguases", coube a Joaquim Branco
a editoração do livro, que compreende a concepção
da obra, redação das notas explicativas, atualização
ortográfica, tradução de frases estrangeiras,
estabelecimento do texto definitivo, revisão
total e final.
78
Chicos
Cataguases século XX/ antes & depois
Autor: Ronaldo Werneck
Editora Tipografia Musical
ano de edição: 2021
www.tipografiamusical.com.br
[...] o que Ronaldo Werneck nos conta neste livro
é sua relação visceral com Cataguases, onde nasceu
e se formou para a vida. A tal ponto a cidade
o marcou que ele se viu obrigado a nos dar um
histórico desse relacionamento. Sem pretender ser
exaustivo, ele remonta à fundação do primitivo
arraial, o surgimento de seu comércio e principais
indústrias, em torno dos quais se reuniram gentes
que o influenciaram. Poeta que é, Ronaldo procurou
desde cedo os iguais que o precederam. E Cataguases
sempre foi fértil nesse item, com o aparecimento,
ainda nos anos 20 do século passado,
dos literatos da revista Verde e do cinema de
Humberto Mauro e Pedro Comello. Ronaldo Werneck
nos fala de tudo isso. Quando necessário,
pede ajuda a outros grandes nomes que, como
ele, foram formados por Cataguases. E nos apresenta
um painel fabuloso, a partir de seu caso de
amor com essa cidade especialíssima de Minas
Gerais, do Brasil."
Paulo Augusto Gomes
Cada gota de silêncio
José Vecchi de Carvalho
Editora Ipêamarelo
ano de edição: 2021
www.editoraipeamarelo.com.br/
O escritor mineiro Jose Vecchi de Carvalho lançou,
no início de abril, o livro de contos “Cada
gota de silêncio”, pela Editora Ipêamarelo, de
Santa Catarina.
Nos dezenove contos que compõem este que é o
terceiro livro de contos do autor, o silêncio surge
como indício da comunicação que falha por
omissão, por comodismo, por covardia ou por
medo. As personagens esbarram-se nos becos de
suas misérias e, alijadas do diálogo, são incapazes
de encontrar a saída.
Assim, o mendigo morre clamando pela ajuda
que não vem, um jovem trabalhador se mata sem
causar alarde, um casal se desfaz, um grevista
desaparece, a sede de justiça se transmuta em
vingança e após desfechos surpreendentes – pelo
que têm de inédito ou de óbvio – intuímos que
há algo de familiar em cada história: na prosa
limpa e direta de José Vecchi de Carvalho quem
cala está matando ou morrendo.
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Chicos
POESIA EXPERIMENTAL PORTUGUESA
Curadoria: BRUNA CALLEGARI e OMAR KHOURI
Ana Hatherly, "O homem invisível", n.d.
18.09.2021 – 14.11.2021
Centro Cultural São Paulo
São Paulo, Brasil
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