Sapeca nº 40
Nº 40 – Outubro/2022 – Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
Nº 40 – Outubro/2022 – Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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Misto de sapo e perereca
“Sou útil inda brincando” (Mestre Valentim)
Nº 40 – Outubro/2022 – Editor: Tonico Soares
e-mail: ajaimesoares@hotmail.com
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MUSA DESTA EDIÇÃO
Isadora Duncan (1877-1927) – Lenda viva no mundo da dança, dizia-se
bissexual, ateia e comunista, filha de banqueiro falido, morto em naufrágio. Não
assimilou o balé clássico e deixou os Estados Unidos, criando a própria dança,
inspirada em vasos gregos e painéis vistos no Museu Britânico, com ênfase no
movimento natural do corpo. Rodou a Europa com sucesso e em Berlim criou o
grupo das Isadoráveis, com seis dançarinas que deram continuidade às suas coreografias.
Fundou também escolas em Paris, Nova Iorque, até Moscou, tendo se
casado com o poeta Serguei Iessienin, entre outros, mas teve três filhos fora do
casamento. No Brasil, dançou ao ar livre para João do Rio e Oswald de Andrade
na Floresta da Tijuca e, para o segundo, ofereceu uma ceia íntima em um hotel
paulistano. Num passeio bem ao estilo Riviera francesa, em Nice, sua echarpe ficou
presa na roda do carro sem capota e foi atirada fora, quebrando o pescoço.
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Acima, diante de Getúlio Vargas, no Palácio do Catete, alguns cataguasenses
partidários de Pedro Dutra: Felicíssimo Gonçalves Vieira, José Condé, Sebastião
Figueiredo, Antônio Gama do Valle e Sebastião Fernandes. Dutra tinha cartaz na cúpula
do poder, cartaz que foi desbotando e uma das maquinações contra ele pode ser
lida abaixo. Lembre-se que havia uma cédula para cada candidato, que podia ser trocada
pelos mais espertos, até minha mãe fazia isso. E contava, rindo, uma farra.
Fraude eleitoral à moda antiga
(segundo o sindicalista José Rosa)
Os trabalhadores, na maioria eleitores de cabresto, não tinham outra opção senão
obedecer, contemplados com pão com salame e refrescos, nas barracas do curral.
“Em dia de eleição, os partidários da UDN (União Democrática Nacional)
atuavam com seu esquema organizado em seis equipes, cada uma com uma tarefa:
a dos espiões, a dos boateiros, a do curral eleitoral, a que escoltava os eleitores de
cabresto, a que trocava cédulas e a dos desordeiros, manadas de valentões armados
até os dentes, para provocar os pedristas, rasgar cartazes, queimar faixas, arrancar
alto-falantes e quebrar tabuletas de propaganda dos candidatos.
E, por ‘ouvir dizer’, juntavam-se os votos dos defuntos, dos menores, votos
repetidos e outras tantas sujeiras feitas por gente limpa, entre aspas. Surgiam brigas
de rua, vinham os pescoções, depois, tiros, facadas e, finalmente, a morte. Numa
dessas ocasiões, diante da Rádio Cataguases, os udenistas fizeram da Rua Coronel
Vieira em campo de batalha, um cerrado tiroteio, onde perdeu a vida um pobre
soldado, chefe de família e muitas pessoas saíram feridas por aquela mesquinharia
política: o bárbaro ataque à Rádio Cataguases, uma das conquistas políticas de
Pedro Dutra, que deve ter deixado os outros espumando de raiva.
O curral dos adversários do meu partido, PSD, era na Praça Rui Barbosa. O
eleitor de cabresto, apanhado de surpresa, em casa, ao amanhecer do dia de votação,
era trazido de carro e escoltado até o curral, onde era solto e entregue à equipe
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encarregada do trabalho, ou seja, revistar os bolsos dos encabrestados. As eleitoras
eram revistadas por mulheres. Caso encontrassem cédulas dos candidatos do PSD,
estas eram substituídas pelas dos candidatos da UDN (União Democrática Nacional).
Dali os eleitores eram escoltados até a seção onde colocavam a cédula na
urna, mesmo ali, espionados. Os eleitores também não podiam ser vistos conversando
com gente da oposição. Ser pedrista era considerado ser inimigo dos Peixoto,
os políticos fortes da cidade, de forma que somente os empregados estáveis
podiam demonstrar suas preferências sem perigo de perder emprego.
Para evitar que seus nomes constassem na lista negra, ou fossem enquadrados
na incompatibilidade patronal, muitos operários e suas famílias se submetiam
a votar nos candidatos indicados pelos cabos eleitorais da UDN. Os trabalhadores,
na maioria eleitores de cabresto, não tinham outra opção senão obedecer, contemplados
com pão com salame e refrescos, nas barracas do curral. A fórmula que
mais surtiu efeito eram os boatos alarmantes espalhados em todos os bairros e vilas,
dizendo a equipe dos boateiros que os patrões saberiam os nomes dos operários
que tivessem votado contra.
– Se nós perdermos estas eleições, vocês vão ver. Os patrões cerrarão as
portas das fábricas.
Esse clima de terror deixava os trabalhadores em pânico. Nas fábricas, éramos
visitados pelos candidatos dos patrões. As máquinas paravam para que pudéssemos
ouvir o sermão político, que vinha sempre acompanhado de promessas e
críticas aos candidatos do PSD. Achavam os patrões que a oposição não tinha direito
de pedir votos porque não possuía fábricas para empregar eleitores. Muito
cuidadosos no falar, não deixavam de fazer uma ameaça indireta:
– Votar contra é ser inimigo dos patrões, é votar contra seus próprios interesses,
contra seu próprio emprego – argumentavam.”
Havia duas revistas de cinema: Cinearte e A scena muda, e Eva foi capa das duas.
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Oswald–Peixoto, um encontro raro
Aí atrás, uma xará da Verde, voltada para outro ramo da cultura, mas vou falar
é da nossa velha conhecida, transcrevendo trecho de Luiz Ruffato na apresentação
de sua revista e ampliada edição sobre a dita cuja (A revista Verde, de Cataguases:
contribuição à história do Modernismo): “Francisco Inácio Peixoto, um dos principais
integrantes do grupo Verde, conta que, em encontro durante o I Congresso
Brasileiro de Escritores, em São Paulo, em janeiro de 1945, Oswald de Andrade
insistiu com ele sobre a importância de Cataguases para o grupo paulista: “Me
causou uma surpresa danada quando o Oswald [de Andrade] – que eu julgava inacessível
– me fez essa revelação do bem que nós tínhamos feito à turma de São
Paulo com a nossa adesão aqui. Eu ainda perguntei: – Você está brincando, Oswald.
– Não. Estou falando sério. Você não calcula o que representou para nós esse
movimento de Cataguases. E eu passei a acreditar”.
Em tempo: a quem interessar possa, a vossa Verde está disponível no Google,
assim como o filme O anunciador, de Paulo Martins. E tudo o que se quiser
saber, por exemplo, do Arquivo Nacional, onde o incansável Lúcio Couto, meu
sobrinho de Varginha, obteve até cópias de letras de músicas que escrevi lá por
1971, obrigatoriamente submetidas à censura. Algumas que foram liberadas, Maria
Alcina gravou. Outra coisa que Lúcio desenterrou e que pode interessar a um
número maior de pessoas é o boletim confidencial (contendo inúmeros erros, que
corrigi, como se datilografado por um bêbado) sobre as artes e manhas do tristemente
famoso delegado Lindolpho. Coisas bem “cabeludas” que todo mundo sabia,
mas não se podia falar, pra não pegar cadeia. Agora se sabe e se fala, embora
haja gente mal-intencionada que apregoe o “sigilo de cem anos”.
CONDUTA IRREGULAR DO DELEGADO DE POLÍCIA DE CATAGUASES/MG
Na noite do dia 24/25 Ano 1980, o Delegado de Polícia de Cataguases/MG, Dr.
Lindopho A. Campos, por volta das 20:30 apareceu na frente da Delegacia e, aos
gritos, correu para a Praça Rui Barbosa, onde passou a agredir os civis presentes,
até que o elemento conhecido como "Palito”, reagiu, entrando em luta corporal
com aquela autoridade. Contidos, foram levados para a Delegacia por policiais
ali presentes. Tendo em vista o fato acima, o Sr. Milton Carvalheira Peixoto,
Prefeito Municipal, entrou em ligação com o SSP/MG pedindo a substituição do
nominado, o que lhe foi prometido e, a título provisório, seria mandado alguém,
até a nomeação de outro delegado em caráter permanente e que, provavelmente,
seria o atual delegado da cidade de Barbacena. O DR. LINDOLPHO É VISTO
FREQUENTEMENTE EM VISÍVEL ESTADO DE EMBRIAGUEZ, FRE-
QUENTA LUGARES DE BAIXO MERETRÍCIO E ANDA ACOMPA-
NHADO DE MAUS ELEMENTOS, ALÉM DE SER PEDERASTA PASSIVO.
Uma noite, na Casa Branca, o editor deste Sapeca viu chegar o dito Lindolpho
acompanhado de uns caras, totalmente bêbado, derrubando mesas e cadeiras.
Um caso de polícia, não estivesse a própria ali envolvida até os fundilhos.
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Da DesciclopédiA*
Fernanda Lobo teve infância de gordinha aplicada em Cataguases Minas
Gerais. Indiferente aos bullyings que tanto a perseguiram por toda a sua juventude,
sempre foi a mais inteligente da sala e as outras meninas ficavam com inveja dela
e a excluíam. Teve um namoradinho burro que entendia só 20% das coisas que
Fernanda falava e tratava ela com indiferença. Não lhe dava muitos beijinhos, não
aparecia de surpresa na madrugada e não levava ela na sorveteria, com vergonha
dos amigos. Ela começou a maltratar seu namoradinho falando que ele é um viadinho
burro e bagunceiro, que não sabe nem fazer um jantar romântico e ela termina
o namoro. Anos mais tarde eles acabam se casando porque nem ele, que era
cearense analfabeto, e nem ela, gorda e barbuda, arrumaram alguma coisa melhor
e acabaram se aceitando e viveram um romance cômico.
A insaciável Rede Globo estava precisando de uma gorda para fazer um
papel de figurante na Rádio Pirata e Fernanda topou e descobriu seu grande talento
na telinha. Atuou nas novelas Felicidade Mulheres de Areia Fera Ferida Irmãos
Coragem O Fim do Mundo Flora Encantada Uga Uga Porto dos Milagres Chocolate
com Pimenta Senhora do Destino Cobras & Lagartos e Pé na Jaca. Cansada
de fazer papel de gorducha Fernanda resolveu fazer uma cirurgia para perder peso
e acabou batendo as botas e, verdade seja dita, sem a menor margem de erro, o
mundo nunca mais viu uma gordinha com tanto talento.
*Espécie de Wikipedia paralela, criada nos Estados Unidos, pautada pela sátira
sem compromisso com a verdade, na linha “samba do crioulo doido”.
Motel Nossa Senhora da Conceição, em Guarapari. “Muito mais motel”,
diz a propaganda, num tempo em que vale tudo por dinheiro. Interessante observar
que conceição é sinônimo de concepção, sendo esta a última coisa que
uma mulher gostaria que lhe acontecesse, em tais circunstâncias.
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Peguei essa praça assim: o poste em metal “trabalhado”, sobre pedestal de
cimento não menos elegante. Praça hoje entupida com um jardim de cerca-viva
que nega espaço ao pedestre e sem a Casa Carcacena, à esquerda, além de outros
imóveis, substituídos por caixotes de concreto. Uma noite, coube ali uma multidão
para assistir ao comício de Jânio Quadros, ele portando uma vassoura, símbolo de
sua campanha, prometendo varrer a sujeira que assolava o país, o que ainda não
foi possível, 62 anos depois. E foi varrido do cargo, com apenas sete meses de
mandato. Quanto à cerca de arbusto podado, ficaria melhor na Chácara Dona Catarina,
a fim de proteger o gramado do pisa-pisa da população que ali se aglomera,
sobretudo em horários de pico, em torno do segundo ponto de ônibus.
Também peguei essa praça aí, já sem as lojas com portais em arcos e adornos,
portas de madeira “trabalhada” substituídas por outras, de aço, antes do hotel. À
direita, como se vê, um jardim que deu lugar a duas lanchonetes e o espaço que
sobrou foi cimentado com orientação do Iphan, bancos feitos de dormentes da linha
férrea que já estão a apodrecer. Antes de tombar, deveriam recuperar o aspecto
original e esse trecho era bonito pra chuchu: o gramado, como disse em outra ocasião,
era de um capim fora do comum, que só vi igual na Puerta del Sol, em Madri,
o que não é pouca coisa. À beira-linha do trem havia uma pequena barraca com
um descascador de laranja e maçãs argentinas que cheiravam de longe, coisas também
extintas: ninguém mais chupa laranja na rua e maçã, pera e congêneres parecem
feitas de plástico. Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, disse Camões,
mas o ambiente não precisa mudar. E sempre para pior.
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Estribo usado para montar a cavalo
Marcílio
Boaventura
Vieira
Abritta
Esta história tem uns 50 anos. As minhas histórias, assim como eu, estão
ficando velhas. Ocorreu em meados de 1962, ou começo de 63, durante as férias
escolares. Não me recordo se chovia dezembros ou fazia frios de julho. Eu sei é
que o Cine Guidoval, do Severino Occhi, apresentou o show do maior sucesso
infantil, à época, no país. O cantor-mirim era o filho mais velho do Tio Lalade e
Tia Lili, o primo Marcílio Boaventura Vieira Abritta.
E eu estava lá. Vaidoso, feliz, todo orgulhoso com o sucesso dele, que imitava
com perfeição um menino espanhol, ator e cantor conhecido como Joselito.
Os filmes emocionavam crianças e adultos no mundo inteiro. Guardo para mim
esta noite inesquecível, dessas para ficar dependurada no varal da memória.
Marcílio se apresentava em programas de TV em São Paulo, Minas Gerais
e Rio de Janeiro como o “Joselito brasileiro”. Não sei detalhes de como foi descoberto
o seu talento musical. Sei que a acompanhá-lo a todos os lugares estava o
Padre José (González Raposo?), uma espécie de preceptor, guarda-costas, empresário
e guia espiritual.
O missionário Padre José pertencia ao Seminário Claret, da cidade de Rio
Claro, em São Paulo. Neste educandário, Marcílio ingressou em 1961. Naquele
tempo, dar instrução aos filhos era um privilégio de ricos. As famílias mais humildes
só conseguiam mandando-os para seminários mantidos por padres ou colégios
técnicos subsidiados pelo governo.
Acredito que não foi por vocação do Marcílio ou promessa e devoção dos
pais Osveraldo Abritta (Lalade) e Maria Vieira Abritta (Lili) que ele entrou para o
seminário. Foi a vontade e a necessidade de aprender, progredir e vencer na vida.
Foi um ato de sabedoria e coragem, desprendimento com sofrimento dos seus pais
ao se privarem da companhia do primogênito. Nesse seminário Marcílio estudou
o ginasial e quase todo o colegial.
Revivendo estes fatos, me vem uma boa saudade dos bons momentos que
passei em Cataguases. As brincadeiras com os primos Cláudio, Júlio, Fernando e
Marcílio. As primas Inês e Isabel, bem mais novas e, por serem meninas, brincavam
com as suas bonecas. E íamos, moleques, percorrer ruas do bairro Granjaria,
pular córregos, invadir as dependências do Colégio Cataguases, adentrando pelo
buraco aberto na cerca devassável. Participar das “peladas” no campo de futebol.
Penetrar as dependências do colégio, admirar as belezas do projeto de Oscar Niemeyer,
jardins de Burle Marx e painel de Portinari.
Um dia, sozinho, com a inconsequência dos meus oito ou nove anos, perambulando
pelas ruas desse bairro me perdi lá pras bandas da Praça de Esportes.
Atrevi-me a atravessar a linha férrea, cruzar a Avenida Astolfo Dutra. Depois foi
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uma proeza para encontrar o caminho de volta. Retornar ao latifúndio dos tios Lalade
e Lili, situado entre a Avenida João Inácio Peixoto e Avenida Cel. Artur Cruz.
Foi uma manhã de susto e medo, perdido entre ruas arborizadas na terra da revista
Verde e Rosário Fusco.
Numa dessas férias fomos a Cataguarino. No final do século 19, esse pequeno
lugarejo acolheu o casal Joseph Abritta e Angela Salerno, avós do Tio Osveraldo.
E lá a família multiplicou-se. Hoje temos Abritta e Abrita espalhados por
todos os cantos, povoando esse mundaréu. Ficamos hospedados na casa de um
parente do Tio Lalade que possuía um armazém. Um dos comerciantes só andava
de camisolão. Sofria de incontinência urinária. Esta imagem inusitada ficou guardada
para sempre na minha cabeça.
Adornando uma mesinha na sala havia um pequeno escudo do Flamengo
feito de pano, no formato de um coração. Creio que recheado de algodão ou outro
material para fazer o enchimento. Era menor que o tamanho de um punho. Na
mesma sala enfeitando a parede um estribo, modelo sapato, de bronze.
Assim como o meu pai Zizinho o do Marcílio, o Tio Lalade torcia pelo
Vasco da Gama desde antes do “Expresso da Vitória”. E permaneceu fiel ao time
de coração até a eternidade. Ao ver o brasão rubro-negro, maior adversário do seu
clube, ouriçou-lhe os pelos, mexeu com os seus brios. Tio Lalade teve uma ideia,
propôs ao sobrinho, nesse caso, eu, a seguinte estripulia: “Vamos esconder o coração
do Flamengo dentro desse sapato-estribo”. Topei na hora. Toda criança gosta
de um malfeito. E nessa ocasião eu ainda não estava contaminado pelo “flamenguismo”,
doença que depois que nos pega, jamais nos abandona.
Colocamos o plano em prática. Tio e sobrinho, cúmplices, sorrateiros, esconderam
o emblema do time da Gávea no interior do sapato de bronze. Não sei
por quanto tempo ficou sumido o distintivo do mengo. Sei que a travessura persiste
na minha memória.
E nessa Pasárgada encravada ao pé da Serra da Onça, éramos amigos do rei,
nesse caso a Família Abritta. E mesmo sob a cerrada vigilância do Padre José,
guarda-costas do Marcílio, aprontamos as nossas bagunças. Nadamos no córrego.
Apoderamos da quase centenária Igreja do Divino Espírito Santo do Empoçado.
Tivemos acesso ao sistema de som. Colocamos na vitrola discos de 78 rpm. Sonorizamos
a dorminhoca Cataguarino com melodias e chiados.
Na sacristia encontramos uma vasilha repleta de hóstias. Com a autorização
eclesial do primo Marcílio comemos muitas delas. Eu, que fizera a Primeira Comunhão
havia pouco tempo achei, a princípio, uma heresia comer hóstias. Acontece
que o argumento do primo mais velho e seminarista continha fundamento.
Sem a consagração, a hóstia seria apenas uma massa de pão ázimo. Não pecamos.
Hoje não tem mais a velha igreja. Os doidos, sempre de plantão, desmancharamna
em 1965. Não sei se antes ou depois desse passeio a Cataguarino pegamos uma
carona no almoço oferecido pelo Monsenhor da Igreja Santa Rita de Cássia ao
Padre José e Marcílio. Uma ceia, um banquete.
Em meados da década de 60 fervilhava o mundo musical. Era assim na
Meia-Pataca do poeta Joaquim Branco e no antigo Sapé de Ubá, na Barbearia do
Sô Nilo onde se reuniam os bambambãs da música de Guidoval. Em 1965, os Beatles
contagiam com Help de Lennon/McCartney, Roberto Carlos ataca de Quero
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que Vá Tudo pro Inferno e os Rolling Stones de Mick Jagger eletrizaram a juventude
com (I Can't Get No) Satisfaction. Contrapondo-se ao rock'n'roll, no Brasil
apelidado de iê-iê-iê ou Jovem Guarda, a Bossa Nova consagrava-se na trilogia de
João Gilberto (com Chega de Saudade – 1959, O Amor, o Sorriso e a Flor – 1960
e João Gilberto – 1961. Isto, sem contar as canções românticas de Carlos Lyra e
Vinicius de Moraes, como Minha namorada e Primavera; além dos disputadíssimos
festivais de música da TV Excelsior e Record.
Elis Regina interpretando Arrastão, de Edu Lobo-Vinicius, Nara Leão cantando
a A banda, de Chico Buarque e Jair Rodrigues arrebatando o público com a
Disparada de Theo de Barros e Geraldo Vandré. E caminhando “sem lenço e sem
documento” pelas ruas, praças e avenidas na terra dos Peixoto discutíamos as nossas
preferências musicais. Os irmãos Fernando e Marcílio, fãs ardorosos do
rock/iê-iê-iê; eu e o primo Nivaldinho, filho da Tia Zizi e Tio Nivaldo Abritta,
defensores da Bossa Nova e da boa Música Popular Brasileira (MPB). Tolas discussões
que não levam a nada, como todas as discussões.
Em 1968 eu estudava na Escola Agrícola de Rio Pomba. No dormitório,
cada quarto contava com 18 camas, nove de cada lado. A cama ao meu lado era do
amigo juiz-forano Mauro Callado. Um dia ele chegou com um violão que passou
a morar entre as nossas camas. Notando a minha curiosidade pelo instrumento, ele
se dispôs a me ensinar os três primeiros acordes. Com eles tocava todo meu minguado
repertório. Todos os acordes feitos no primeiro traste (Lá maior, Ré maior,
Mi sétima). Um fiasco.
De novo veraneando por Cataguases, usufruindo da hospitalidade e o carinho
da Tia Lili e Tio Lalade, encontro o Marcílio Boaventura dedilhando um violão.
Aproveito para lhe revelar que eu estava tentando apreender a tocar este instrumento.
E tô tentando até hoje. O Marcílio tocava num conjunto da cidade, realizava
bailes na região. Dominava guitarra e baixo. Em poucos minutos me deu
uma aula sobre o braço do violão. Os intervalos das notas, tom, semitom, bemóis
e sustenidos. E a tacada de mestre, o acorde feito no primeiro traste, se repetido
com pestana, ao longo do braço do violão, ia se modificando como numa escala
musical. De repente aprendi um dicionário de acordes. Simples, fantástico, inacreditável.
Uma lição para o resto da vida.
Agora me bateu uma dúvida. Não sei se antes ou depois de tocar nesse conjunto
musical, o Marcílio teve um programa numa rádio de Cataguases. Formou
uma dupla com a cantora Maria Alcina. A dupla MM. E no turbilhão da roda-viva
cada primo foi para um lado. Eu andei por Rio Pomba, São João Del Rei, Lavras
e me fixei em BH. O Júlio rumou para o Mato Grosso. O Fernando andou por BH
e estabeleceu-se em Juiz de Fora. O Cláudio, inteligente, não saiu da Granjaria. O
Nivaldinho “gauchou” lá pras bandas de Rio Grande, próximo ao Chuí. O Marcílio
Boaventura andou por Leopoldina e lá trabalhou até aposentar-se no IBGE. Fiel às
suas raízes, não abandonou Cataguases. Constituiu família, tem filhos. Nas horas
de folga, planta taiobas.
Como hoje é dia do aniversário do Marcílio, deixo aqui os meus parabéns,
felicidades e votos de muita Saúde, Sorte e Sucesso!
Escrito por Ildefonso Dé Vieira em 11/12/2012
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Farmacêutico de Miraí. Homens de bem não dispensavam terno e gravata, nesse
caso, seria mais prático usar jaleco. A pança era o símbolo da prosperidade e na
foto, ele deve estar pensando no desconto que pode oferecer ao gentil freguês.
Quirino – O espetaqueiro de Miraí
Por volta de 1950 apareceu em Miraí um negro de sorriso
largo, bigode, fala fina e alta, de nome Quirino.
Sempre com um porrete, como era de costume, ia de
um lado para outro, de cidade em cidade, sumia por
uns tempos, mas sempre voltava ao pequenino Miraí.
Pelas ruas, quando algum moleque gritava “Quirino
espetaqueiro, bate a bunda!”, outros faziam coro e ele
saía correndo atrás. Ao sentir que não conseguiria alcançá-los,
caía no chão e ficava feito morto, de ódio.
Aí a molecada fazia algazarra e aparecia alguma alma
piedosa para socorrer a vítima, jogando água no rosto,
dando um copo da mesma ou uma xicara de café. Depois
que se recuperava, um prato de comida. E ele saía
todo alegre. Um dia, pediu boia na casa do Aniceto Pita, que falou: “Vô arrumar,
mas ocê tem de rachar aquela pilha de lenha antes de comer”. E pegou um machado.
O pedinte foi se afastando devagar e disparou a correr: odiava qualquer tipo
de trabalho. Por sorte, aquele dia dona Prudência (esposa de Aniceto) se compadeceu
e gritou para ele voltar, que lhe daria o de comer. Risadas da vizinhança.
Quirino vestia roupas usadas e dormia de favor nos quintais das casas, junto com
os cães. Viveu 101 anos e comentavam que a razão daqueles ataques era uma mulher,
seja com for, uma das táticas dos moleques para vê-lo dar “espetáculo” era
falar baixinho ao seu ouvido: “Buceta”.
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Guaraciaba e o Palácio Amarelo, sua residência de verão, em Petrópolis.
BARÃO NEGRO DO BRASIL IMPÉRIO,
SENHOR DE MIL ESCRAVOS
Marcus Lopes (resumido)
Próspero fazendeiro e banqueiro do Brasil Império, dono de imensas fazendas
de café, centenas de escravos, empresas, palácios, estradas de ferro, usina hidrelétrica
e, para completar a cereja do bolo, de um título de barão concedido pela própria
princesa Isabel. A biografia do empresário mineiro Francisco Paulo de Almeida,
o barão de Guaraciaba, não seria muito diferente de outros nobres da época
não fosse um detalhe importante: ele era negro em um país de escravos.
Empreendedor de mão cheia e com grande visão de negócios, teve uma trajetória
que lembra a de outro barão empreendedor, este bem mais famoso: o barão
de Mauá. Com um patrimônio acumulado de 700 mil contos de réis, que garantia
ao dono status de bilionário na época em que viveu, Almeida nasceu em Lagoa
Dourada, então um arraial próximo a São João Del Rei, no interior de Minas Gerais,
em 1826, filho de um modesto comerciante e de uma escrava.
Ainda na adolescência, Almeida começou a vida como ourives fabricando botões
e abotoaduras em sua terra, na região aurífera de Minas. Nos intervalos, tocava
violino em enterros, quando recebia algumas moedas como pagamento e os tocos
das velas que sobravam do funeral, que utilizava para estudar à noite. Por volta dos
15 anos, tornou-se tropeiro entre Minas e a Corte, no Rio de Janeiro.
Nessas idas e vindas, ganhou dinheiro comprando e vendendo gado, conheceu
muitos fazendeiros e negociantes nos caminhos das tropas e começou a adquirir
terras na região de Valença, no interior fluminense, para plantar café. Casou-se
com Brasília Eugênia de Almeida, com quem teve 16 filhos. Após a morte do sogro,
assumiu todos os negócios e sua fortuna disparou: comprou sete fazendas de
café espalhadas pelo Vale do Paraíba fluminense e interior de Minas. Apenas na
fazenda Veneza, em Valença, que depois pertenceu a Lily Marinho, possuía mais
de 400 mil pés de café e 200 escravos. Levando-se em consideração que tinha
outras áreas produtoras de café, o barão pode ter tido até mil servos. “Não se trata
de uma contradição ele ter sido negro e dono de escravos, pois tinha consciência
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do período em que vivia e precisava de mão de obra para tocar suas fazendas. E a
mão de obra disponível era a escrava", diz seu biógrafo. "Ainda que nos cause
repúdio hoje em dia, o contexto de escravidão era uma coisa normal e era a mão
de obra que existia naquele tempo", completa Mônica de Souza Destro, trineta do
barão, que prepara uma biografia do seu ancestral.
Em sociedade com outros empreendedores com quem mantinha contato, Guaraciaba
fundou dois bancos: o Mercantil e o de Crédito Real de Minas Gerais, que
prosperaram e chegaram aos meados do século XX. A diversificação empresarial
não parou por aí. Num período em que as ferrovias começavam a rasgar o país,
participou da construção da Estrada de Ferro Santa Isabel do Rio Preto (depois
Rede Mineira de Viação), cujos trilhos passavam por suas propriedades.
A ferrovia, que ligava Valença a Barra do Piraí e se tornou importante para
escoar o café, foi inaugurada por Dom Pedro 2º em 1883. Teriam começado aí as
boas relações entre Guaraciaba e a família real, que culminariam na concessão do
título de barão pela princesa Isabel, regente na ausência do pai, em 1887.
Sempre atento às oportunidades de negócios que chegavam com o progresso,
foi sócio fundador da primeira usina hidrelétrica do país, inaugurada em 1889, em
Juiz de Fora. A Companhia Mineira de Eletricidade, que construiu a usina, também
foi responsável pela iluminação pública elétrica em JF. O barão, claro, foi um dos
financiadores da modernidade que aumentou o conforto da população.
Dono de um estilo de vida condizente com a nobreza imperial, o Barão de
Guaraciaba possuía uma confortável residência na Tijuca, no Rio de Janeiro, e outra
em Petrópolis, destino de veraneio preferido dos ricos e da nobreza. Na cidade
serrana construiu uma mansão que posteriormente foi chamada de Palácio Amarelo
e que hoje abriga a Câmara Municipal. Também fazia diversas viagens à Europa,
principalmente a Paris, para onde mandou seus filhos para estudar.
Segundo a historiadora Mary Del Priore, Almeida fazia parte de um pequeno
grupo de mestiços de origem africana que conseguiram ascender econômica e socialmente.
O racismo, porém, permanecia arraigado na sociedade, independentemente
da posição financeira, diz Priore. Alguns desses empreendedores, a exemplo
do Barão de Guaraciaba, conquistaram ou compraram seus títulos de nobreza junto
ao Império, sendo por isso chamados na época de "barões de chocolate", em alusão
ao tom da pele. "O sangue negro corria nas melhores famílias.
Não faltavam casamentos de 'barões de chocolate' com brancas", completa
Mary Del Priore, que resgata a história do Barão de Guaraciaba em seu livro Histórias
da Gente Brasileira. Após a proclamação da República, ele começou a se
desfazer dos seus bens, sem abrir mão da vida luxuosa, na casa de uma das filhas,
no Rio, em 1901, aos 75 anos. Seus herdeiros, inclusive alguns ex-escravos agraciados
pelo dono e que permaneceram com o patrão após a alforria, receberam
dinheiro e propriedades, e se espalharam pelos estados do Rio e de Minas.
O título foi concedido por "merecimento e dignidade", em especial pela dedicação
de Guaraciaba à Santa Casa de Valença, onde foi provedor. Mas entrar
para a nobreza tinha um custo fixo e tabelado: 750 mil réis. "Ele foi um grande
empreendedor que acabou banqueiro, homem de negócios, fazendeiro e senhor de
escravos. É preciso empenho e coragem dos historiadores para estudar esses símbolos
bem-sucedidos de mestiçagem", diz Mary del Priore.
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OUTRO GRANDE BRASILEIRO:
CARLOS ZÉFIRO
Deparei há pouco com a notícia atrasada da morte de Ota (Otacílio d’Assunção),
cartunista e desenhista de histórias em quadrinhos que me dedicou (“Faça
bom proveito”) seu livro sobre Carlos Zéfiro. Nas décadas de 1950/70 Zéfiro incendiou
a imaginação de jovens e adultos com revistinhas vendidas na moita, os
"catecismos" que chegavam a 30 mil exemplares por edição, 500 histórias, ao todo.
Já que muitos leitores pegavam emprestado e em geral faziam uso do produto inúmeras
vezes, imagine-se o número de punhetas que inspiraram.
Carlos Zéfiro era pseudônimo de Alcides Aguiar Caminha (1921-92), tirado
de um autor mexicano de fotonovelas. Casado com Monserat, teve cinco filhos e
sempre escondeu sua atividade paralela, aposentando-se como funcionário público
do setor de Imigração do Ministério do Trabalho. Sua identidade só veio à tona
quando saiu a reportagem de Juca Kfouri na revista Playboy em 1991, um ano
antes de sua morte. Revelada antes, ele poderia ser demitido por "incontinência
pública escandalosa", o que seria um escândalo, ao pé da letra.
Em 1970, durante a ditadura militar, foi realizada em Brasília uma investigação
para descobrir o autor daquelas obras pornográficas. Chegou-se a prender
por três dias o editor Hélio Brandão, amigo do artista, mas a investigação terminou
inconclusa. Além de seus trabalhos como ilustrador, Alcides Caminha foi compositor,
inscrito na Ordem dos Músicos do Brasil e parceiro de Guilherme de Brito e
Nelson Cavaquinho, com quem compôs quatro sambas de fina estampa, entre eles
os sucessos Notícia, gravado por Roberto Silva, e A Flor e o Espinho, esta, gravada
por muita gente e virou o carro-chefe do repertório de Nelson.
Saindo da clandestinidade
Em 1991, ele participou da I Bienal de Quadrinhos e em 1992 recebeu o
Troféu HQ Mix, pela importância de sua obra. O jornalista Geraldo Galvão Ferraz
(segundo marido de Pagu) foi um dos primeiros a escrever um artigo sobre Carlos
Zéfiro, que hoje tem trânsito livre até no meio universitário e em Anchieta, o bairro
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em que Zéfiro morava, foi inaugurada a Lona Cultural Carlos Zéfiro, com show
da Velha Guarda da Portela e Marisa Monte, patronos da lona.
Em 2005, a arquiteta Christianne Gomes defendeu como trabalho final de
graduação de Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal Fluminense, o
projeto Centro Erótico Carlos Zéfiro, com vistas à criação de um espaço na zona
portuária carioca onde as mais diferentes formas de sexo poderiam ser discutidas
e/ou experimentadas. O projeto previa a criação de um museu erótico, vilas de
prostituição, motel, cafés, cinemas, salas de exposições, um centro de tratamento
de DSTs, um posto da delegacia de crimes sexuais e clínicas de psicologia avançada,
recebido (não sei se arquivado) em 2006 pela Prefeitura do Rio.
Em janeiro de 2011, os trabalhos de Zéfiro foram expostos ao lado de outros
quadrinhos eróticos do resto mundo no Museu do Sexo, em Nova York. Em março
de 2011, Zéfiro foi tema da peça de teatro Os catecismos segundo Carlos Zéfiro,
escrita e dirigida por Paulo Biscaia Filho. Em 2021 saiu o filme Em busca de Carlos
Zéfiro, de Sílvio Tendler, com depoimentos de experts no assunto.
A princípio, publicados de forma independente (e constantemente pirateados),
a partir da década de 1980 os quadrinhos de Zéfiro passaram a ter reimpressões
pelas editoras Record e Maciota, esta, do Ota. Nos anos 2000, a editora Cena
Muda publicou o primeiro quadrinho erótico de Zéfiro, Sara, de 1949. Uma preciosidade.
A receita era sempre a mesma: começava a contar uma história que parecia
séria e logo começava a fudelança. E sai de baixo, que vem baixaria.
P. S.: emprestei meu exemplar dedicado pelo Ota a um amigo e fiquei na saudade,
porque ele agora mora no cemitério. O que justifica o ditado: livro... bobo é
quem empresta e mais bobo quem devolve. Coisa bem Brasil, um país mau caráter.
E um menino bem vestidinho me pediu dois reais. Não se deve dar dinheiro a criança
que não se conhece, pois é. E ele: “Me aguarde”, querendo dizer: “Eu vou
crescer, vou comprar um revólver e tu vai te fuder, seu filho da puta”.
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Poesia é o que se ganha na tradução
(Nelson Ascher)
Traduzir poesia é considerado impossível. Como refazer o equilíbrio miraculoso
de um soneto de Dante em inglês, a sucessão elegantemente cadenciada das
oitavas reais de Camões em francês, a grandiloquência rebuscada de um monólogo
shakespeariano em espanhol ou a simplicidade enganadora dos versos de Púchkin
em português?
E aqui ainda estamos não apenas dentro dos limites da mesma família linguística,
a indo-europeia, como também no âmbito da mesma cultura ocidental.
No interior desses dois círculos quase coincidentes (se deixarmos de lado a metade
oriental da família), as línguas se influenciaram mutuamente, intercambiando palavras,
sons, elementos gramaticais, e tanto as convenções como as tradições literárias
são mais ou menos comuns há milênios.
O amigo de um amigo (são sempre assim essas histórias) teve de fugir do
Brasil durante a ditadura por estar ligado a algum grupo clandestino de esquerda e
acabou parando na Polônia. Quem já ouviu as nobres cadências da língua de Czeslaw
Milosz (TCHÊS-uav MÍ-uoch) sabe que esta se compõe de um emaranhado
impossível de consoantes intercaladas às vezes por sons como "nhem" ou "nhom".
Nem os outros eslavos acham fácil sua fonética, e os russos, em especial, recomendam
a quem deseje pronunciá-la corretamente que o faça com uma batata quente
na boca.
Bom, quando se deu conta de que sua temporada polonesa se prolongaria,
o amigo do amigo resolveu aprender a falar com os nativos. Enquanto ele e seus
colegas do curso de polonês para estrangeiros ainda praticavam o "bom dia, senhora,
meu nome é", o único aluno não-ocidental, um chinês que também começara
do zero, já se mostrava capaz de vender enciclopédias em Varsóvia. Indagado
sobre seu talento superlativo, o chinês meio que se desculpou modestamente: "É
que eu já falava inglês e, para mim, todas essas línguas indo-europeias são iguais".
De fato, quando é dia em Beijing, ainda é noite na Europa, onde todo gato, "cat",
"chat", "katz", "kot" é pardo.
Se as dificuldades tradutórias parecem intransponíveis no seio de uma família
incestuosa, ou seja, se é complicado converter um soneto tcheco em um soneto
holandês, quão mais impossível não deve ser o transplante de um "kavya",
uma elegia "shih" ou um "tanka" (composições líricas breves) escritos em sânscrito
(sim, indo-europeu, mas da metade oriental) por Amaru, em chinês por Tu Fu ou
em japonês por Saiguio para uma língua ocidental?
Por outro lado, se a distância geográfica acrescenta problemas, a temporal
os multiplica. Escrever um soneto no século 13, quando esta era um forma nova,
de vanguarda mesmo, tinha um significado cultural distinto daquele que tem fazêlo
hoje em dia, quando muitos veriam nisso um gesto retrógrado e esteticamente
reacionário. E, no entanto, traduz-se. Cada vez mais. Como e por quê?
O porquê tem a ver com o fato de que, desde pelo menos o princípio da
modernidade, quase ninguém considera sua cultura local ou nacional como algo
completo, autossuficiente. O afã de viajar, conhecer outros povos e países, existe
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igualmente na poesia, com a vantagem de que esta nos oferece, de resto, um túnel
do tempo.
Eis a razão que está na raiz, mas não faltam outras. Vários povos europeus
no século 19, além de amargarem o domínio de suas terras por estrangeiros, ainda
tinham de se calar quando esses se referiam à própria língua e literatura como, de
algum modo, superiores, mais civilizadas. Assim, tchecos e catalães, húngaros e
poloneses resolveram mostrar aos seus senhores que o que falavam não eram dialetos
de camponeses analfabetos, mas línguas cultivadas o suficiente para acolher
A Divina Comédia e Macbeth, a Ilíada e a Eneida.
Quanto ao como, não há um. Há, isto sim, muitos. Convém, contudo, pôr
de lado duas noções que distorcem a discussão. Primeiro, traduzir poesia não é
uma questão de fidelidade, pois, dado que o tradutor não cometa erros na compreensão
do original, sua tarefa consiste em elaborar algo que está entre a equivalência
e a resposta. Um poema traduzido relaciona-se de um modo que não é simples com
aquele que, por assim dizer, o inspirou, respondendo aos problemas que ele apresenta
com os recursos de uma língua distinta e, geralmente, com convenções de
uma outra época.
Em segundo lugar, não pode haver tradução perfeita, pois tampouco há original
perfeito. A perfeição é, na melhor das hipóteses, apanágio da divindade e, no
caso da poesia, maneira perifrástica de enfatizar uma obviedade: a da precedência
cronológica. De acordo com o neurocientista Steven Pinker, o cérebro trabalha
com uma linguagem específica, chamada por ele de mentalês, da qual cada idioma
falado nada mais é que manifestação parcial. Nenhuma das línguas naturais expressa
plenamente o mentalês.
Caso ele tenha razão, o poema que se supõe o original é, a rigor, a primeira
tradução de um texto inalcançável que se encontra ou se encontrava entre os neurônios
do autor. Com as pistas fornecidas nessa primeira versão, outros tentarão se
aproximar desse original, mas, por definição, ninguém o alcançará. Acontece que
o poema composto em mentalês, por ser inatingível e irreprodutível, não importa.
Ele é somente um ponto de partida.
O que conta são os realmente existentes. Qual deles? Todos. Embora o poeta
americano Robert Frost dissesse que poesia é o que se perde na tradução, o original
de um poema não é tanto a primeira versão singular que está no passado, quanto o
conjunto, que está no futuro, de todas as suas traduções que foram, estão sendo ou
ainda serão feitas.
• • •
Sapeca comenta – Há milhares de poemas traduzidos em centenas de línguas e
dezenas de versões no mesmo idioma, caso da célebre rã, do japonês Bashô (1644-94).
Ele percorreu todo o seu país e foi aprovado nos círculos literários pelo estilo simples e
natural, o que o conduziu ao círculo íntimo da profissão haikai, obtendo ensinamentos
secretos de Kitamura Kigin (para se ter uma ideia do culto à poesia no Oriente). Abaixo,
traduções da “rã” por Cecília Meireles, Oldegar Vieira e Estrela (filha de) Leminski.
Velho tanque.
Uma rã mergulha.
Barulho da água.
Ploc! Uma rã pula
No silêncio da lagoa
E o silêncjo ondula
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chuá, chuá
coach, coach
tchibum!