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Sapeca n° 38

Misto de sapo e perereca Nº 38 – Agosto/2022 Editor: Tonico Soares e-mail: ajaimesoares@hotmail.com

Misto de sapo e perereca Nº 38 – Agosto/2022
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Cidadão do mundo

Anchorage, Camberra, Dar es Salaam, Port Said... Ele lia no painel do rádio,

a indicar algumas cidades que se podia sintonizar. Mais tarde, ganhou um mapa

mundi e foi descobrindo: ficam no Alaska, Austrália, Tanzânia e Egito. Locais que

visitaria, um dia, enfiou na cabeça, cantarolando a marcha apropriada:

“Tem, tem, tem um amor em cada porto,

tem, tem, tem, tem mulher e tem conforto,

quando chega a Cuba, cai nos braços da cubana,

se vai pra Nova Iorque, beija logo a americana,

repete a cena, lá em Paris,

salve o marujo, ele é que é feliz”.

Marujo, palavra mágica, o cara que conhece aqueles rincões não menos envoltos

em magia. Tinha um primo no Rio que era motorneiro de bonde, um dia, o

procurou. Natural da Serra da Neblina, como o primo, às margens da nascente de

um ribeirão, lugar onde o município de Cataguases encosta no de Miraí e no de

Guidoval, em Minas Gerais. Lugar, em si, um tanto mágico, pela altitude, clima

semelhante ao da Serra de Petrópolis. Também, pela presença das nunca vistas

onças, assim como os jacarés de um açude. Conversa do povo, ou não.

No Rio, trabalhou como copeiro de um hotel, sonhando em ser garçom de

navio, e se preparou. Fez um curso básico no Senac, que o habilitou a servir refeições

e os requintes da profissão foi adquirindo aos poucos, na prática, enquanto

estudava inglês e francês. No que surgiu a oportunidade, desapareceu do mapa e

foi singrar mares dantes navegados apenas em sua fértil imaginação.

Décadas depois, voltou para o Rio, aposentado e poliglota. Foi morar no

Posto 6, em Copacabana, passando o dia a jogar baralho com outros aposentados,

ou de conversa com os pescadores que vendiam o produto do seu trabalho no entreposto.

À noite, boemia e mulheres. Ligeiramente ruivo, era conhecido como “o

gringo” e reforçava a lenda de que fora oficial da Marinha. Dava mais status.

Um dia, saiu a nado, devolvido morto pelo mar e o laudo médico foi ataque

cardíaco. Nos preparativos para o enterro, dois amigos, em companhia de um policial,

foram apanhar roupas e sapatos para vestir o cadáver, em seu apartamento

em cima da Galeria Alasca. Viram na parede, emoldurado, um velho e encardido

mapa mundi, sem o hífen e o acento que lhe foram impostos por mais uma reforma

ortográfica. Tiraram-no da moldura, enrolaram e levaram para cobrir o caixão, à

guisa de bandeira. “Um cidadão do mundo”, deu no jornal do bairro.

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