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esse coração.
Karnal: Em parte, isso explica a sedução pelo aspecto benéfico profissional
do sacerdócio e pela fé em si que você está definindo muito humana. Não é uma
fé no estilo de Samuel na Bíblia, que ouve o chamado no meio da noite; [1] não é
uma visita extraordinária como a de Saulo a caminho de Damasco; [2] não é uma
fé como a iluminação de Lutero, que decide se tornar religioso quando um raio
cai aos seus pés e ele invoca Santa Ana. A sua fé parece muito encarnada nessa
humanidade mineira, cotidiana. Mas a sua mãe teve essa fé, certamente alguns
dos seus familiares também tiveram e não viraram padres ou freiras. Qual é o
diferencial que fez com que a sua crença se tornasse existencial a ponto de
mudar toda a sua vida? O que o levou ao sacerdócio?
Padre Fábio: Não sei dizer ao certo. Talvez tenha sido o fato de ter crescido
entre altares e andores. Minha rotina era alinhavada pelos ritos católicos. Sempre
levado por minha mãe. Novenas, missas e procissões. Tudo era tão intenso que
se desdobrava para minhas outras percepções do mundo. A religião era o filtro
por onde eu via e sentia a vida. Costumo dizer que a tristeza tem cheiro de
arruda e manjericão. Eram as ervas que adornavam as imagens de Nossa
Senhora das Dores e do Senhor dos Passos. A Semana Santa era o ponto alto do
ano. Vivíamos para esperá-la. Uma espera litúrgica que também era existencial.
A figura do padre era central nas nossas vidas. E desde menino eu me via ali,
parte daquele todo, mas sem nunca imaginar que a liturgia do tempo me
colocaria nos braços da liturgia das horas. A percepção foi natural. Foi aquilo
que pude ser em cada fase da minha vida. Não gosto de pensar no futuro. O que
eu quero ser, o que eu quero fazer. Eu vivi cada momento desse processo
religioso que me tornou padre no exercício de uma liberdade que me alforriava
de pensar muito sobre o futuro. Eu me realizava no que estava vivendo e
mergulhava profundamente, independentemente de qual seria o resultado. Fiquei
padre assim, vivendo um dia de cada vez, vencendo o desafio de cada hora, e a
satisfação de cada instante. Olho para o passado e me sinto reconciliado com ele.
Gostei do tempo em que eu vivi em Lavras, em Minas Gerais, do que
experimentei na dimensão intelectual e afetiva. Gostei dos amigos que fiz por lá,
do colégio onde estudei, dos padres que conviveram comigo. Saindo dali fui para
o postulantado, em Santa Catarina. De lá eu gostei um pouco menos, mas soube
viver com muita resiliência a mudança cultural de um mineiro morando no Sul,
onde tudo é muito mais frio, onde os afetos são menos naturais, e as pessoas
demoram a gostar de você. O que me sustentou naquela época foi um trecho da
carta que padre Mauricio Leão, nosso reitor em Lavras, me escreveu: “Urso-