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Crer ou nao Crer - Leandro Karnal

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de morte, fiquei curioso se eu apelaria a uma oração, como numa aterrissagem

forçada na África. Não aconteceu. Quando vi meu pai num caixão, também

imaginei que seria um momento no qual a fé poderia tentar voltar, como

memória daquele homem tão católico que eu amava. Não rezei e tive a certeza

de que ali se acabava tudo. Meu pai existiria apenas em fotos e na lembrança do

bem que fez. Mas, insisto, não foram pessoas ou atos que me afastaram da ideia

de um Deus criador. Todo o sistema teológico e explicativo da religião foi

parecendo ofensivo à razão e incapaz de se sustentar. No trabalho de historiador,

a Igreja continuava fascinante para mim. Temos em comum esse processo, Padre

Fábio: assim como sua vocação não foi uma epifania de um momento, meu

ateísmo não foi um fato ou uma decepção, mas um processo muito natural.

Padre Fábio: Claro.

Karnal: Na Igreja, há papas melhores e piores, há teólogos melhores e

piores, há pessoas variadas, mas não foi isso que me afastou. Eu continuo muito

clerical, mesmo não acreditando. Fé é uma entrega. Para muitas pessoas é um

hábito: sempre foram à igreja. Para outras é um conforto. Para alguns é uma

profissão. Porém, fé é entrega e, para a entrega, deve existir uma disposição

interior que eu não tenho mais.

Padre Fábio: Sua honestidade está me fazendo pensar sobre o perigo de ser

católico sem ser cristão. São realidades distintas, você tem razão. Sobretudo na

sua abordagem. O ser católico a que você se refere diz respeito à prática dos

rituais e ao conhecimento da catequese. E isso você tinha. Mas faltava a você o

cristianismo. Podemos ficar numa das instâncias sem nunca chegar à outra. E

compreendo seu desencanto. Ao reconhecer-se excessivamente católico, mas não

cristão, você tocou a descrença que nunca é flagrada pelo outro. As roupagens

católicas poderiam até escondê-lo dos outros, mas não de si. É assim que

também experimento. Se não percebo uma coerência entre os rituais que celebro

e a mentalidade que me move, é natural que eu perca o encantamento.

Acredito que muitos padres e líderes religiosos vivem o mesmo conflito que

você viveu, mas não o encaram com a honestidade com que você o enfrentou,

porque eles não deixam de ser católicos, celebram missas, realizam os

sacramentos... E também muitas pessoas que são fiéis às igrejas que pertencem

honram as regras institucionais, participam dos ritos, mas há muito deixaram de

ser cristãs. Só que não se encorajam para poder dizer isso a si e aos outros.

Karnal: E não tem nenhum milagre de Lanciano, quer dizer, não para eles...

Em Lanciano, na Itália, no século VII, um padre duvidou da presença de Cristo na

Eucaristia e a hóstia se transformou em carne, carne do coração, e o vinho em

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