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Padre Fábio: Sim, o tempo todo. A adesão que não contempla o
conhecimento é um campo fértil para a ignorância religiosa. E a customização é
um resultado do não comprometimento com as instituições religiosas. Cada um
vive ao seu modo, de acordo com o que lhe interessa.
Karnal: Eu acho que a crença das pessoas é, essencialmente, crença em si. É
um pouco duro dizer isso, mas nós vivemos a era de adoração a Narciso. Usando
uma ideia que é de Agostinho, quando afasto da Bíblia o que eu não quero e
seleciono o que quero, eu creio em mim e não na Bíblia.
Padre Fábio: Sim, é muito comum encontrar crentes assim.
Karnal: É muito curioso para voltar ao que discutimos: o Deus cotidiano,
humano, diluído nos seres humanos, o Deus das pequenas coisas, o Deus não
metafísico, o Deus de Abraão, o Deus que hesita, que manda Sara fazer pão; e
Sara ri – uma cena raríssima na Bíblia, alguém rindo. Jesus não riu. Nunca achei
um trecho que mostre Jesus rindo.
Padre Fábio: Mas não se esqueça de que o primeiro milagre que Ele fez foi
multiplicar o vinho, sinônimo de alegria. Não tenho dificuldades de imaginá-Lo
sorrindo. Há muitos trechos no Evangelho que me favorecem vê-Lo assim.
Karnal: O riso não aparece no Evangelho. Imaginamos Jesus rindo em
festas, mas não há descrição disso. Como as pessoas lidam com a dor e o
cotidiano, com o caráter opaco de quase tudo, padre?
Padre Fábio: Ninguém tem uma vida extraordinária. Todo mundo precisa
administrar um cotidiano absolutamente comum. Eu me recordo de que uma vez
perguntaram a Adélia Prado por que ela, sendo a grande escritora que é, vivia em
Divinópolis. Ela respondeu: “O que eu preciso para escrever é o que qualquer
outro lugar do mundo me daria, é meu cotidiano”. Transformar a experiência
cotidiana numa experiência prazerosa, frutuosa, é o desafio de todo discurso
religioso. Colocar alma no corpo, soprar alegria nas realidades, fortalecer o
espírito humano para dar conta da existência. Tudo isso pode ser resultado de
uma experiência religiosa fecunda. Na Sagrada Escritura há muitas passagens
em que o povo se fortalece a partir de teofanias, manifestações miraculosas de
Deus. É interessante pensar que o milagre é a quebra do cotidiano, o momento
em que a alma descansa da mesmice. Mas essa quebra também nos chega por
outros meios. A beleza, por exemplo. A alma humana é sensível, tem sede de
beleza. Nesse ponto a arte se torna grande aliada da religião. Por meio dela
chega-se ao deleite espiritual. E então nos fortalecemos para suportar o peso dos
dias.
Karnal: Mesmo um ateu?