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18<br />
Quando Ester se foi caiu um temporal daqueles, chuva de verão com<br />
granizo, ventos fortes e os olhos dela ficaram mais azuis. Toda vez que o<br />
tempo mudava, a cor dos olhos acompanhavam o serviço de meteorologia.<br />
Nunca erravam e naquele dia estavam azulzinhos, opacos como uma falsa<br />
Turmalina. E assim que Ester foi enterrada com os olhos mais azuis de toda a<br />
Terra. Estélio se portava como se não tivesse ocorrido nada. Respondia a<br />
todos, resignado, manso, como um carneiro deitado na grama.<br />
Com o passar do tempo, o lugar de Ester à mesa, vazio, se tornou um<br />
incômodo. Antes de sentar-se Estélio olhava para a mesa, posta com apenas<br />
um prato, fazia um gesto ameaçando reclamar. Mas nunca perguntou à<br />
empregada: – Cadê o prato de Ester? Nunca. E mais ainda: após tomar<br />
algumas cervejas e fumar meia dúzia de cigarros, se dava conta que Ester não<br />
viria mesmo. Aquilo lhe causava um desconforto, que o obrigava a mexer-se de<br />
um lado para outro. Ao se barbear conversava com o espelho: – Ester não está<br />
mais entre nós...<br />
O bar, a igreja, os lugares onde andava, tudo estava sem forma. Sem<br />
desesperar-se Estélio ficou cara a cara com o abismo. A face murchou de<br />
repente, um milhão de rugas formou sulcos desalinhados. Não havia separação<br />
entre a sombra e as trevas, a claridade e a escuridão, não havia mais de noite<br />
nem mais de dia. Como Deus, Estélio teria que recriar um mundo totalmente<br />
novo, se ainda tivesse forças. Sobre seus ombros, pendia do firmamento a<br />
imagem una e indivisível de Ester, enquanto esteio de um homem só. Quando<br />
ela foi deixou a casa sem cumeeira, a rede sem estendedouro, a mesa sem<br />
cadeiras.<br />
Para Estélio ainda havia tarde e manhã e nada disso era bom, nada.<br />
Como uma farsa, perguntavam por ela, os outros, aqueles que não se dão<br />
conta de lugares desocupados. E assim se fez. De nada precisava para<br />
mantimento, a não ser o retorno de Ester – enquanto impossível. Era outro que<br />
não carecia dos frutos da árvore do bem e do mal. Do conhecimento, nada<br />
cabia em si, nem a sabedoria de Deus. Para fazer justiça bastava-se a si<br />
mesmo. E havendo terminado o dia, Estélio desanimou. Não sabia viver de<br />
saudade, essa neblina insistente de tudo que havia feito na vida. Ficar, enfim, é<br />
chato.<br />
Estélio vive hoje de todas as lembranças íntimas, da felicidade de<br />
curtíssima vida, rompida violentamente, e isso o torna mais infeliz do que<br />
aqueles que já morreram. Descobrir o véu que cobre a infelicidade naqueles<br />
que se foram assim, leves, sem pecado, é importante para que ninguém negue<br />
a eles um lugar à mesa dos puros. Estélio se redimia copiando em cadernos as<br />
frases retiradas dos livros de pensamentos – dos Salmos às Lamentações de<br />
Jó – que julgava referir-se exclusivamente à sua vida. Recordações... Sob as<br />
goteiras, nas marquises, esperando a chuva diminuir, crescia escamas nas<br />
paredes. Nada mais de dias ensolarados e quentes. Uma lembrança de algum<br />
lugar mágico, perdido.<br />
Recordações levam-no diretamente a Ester. Era ela, mais do que<br />
ninguém, quem aproveitava os dias, mesmo se o tempo estava encoberto,