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O Sonhador (2006) - Belas Palavras

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18<br />

Quando Ester se foi caiu um temporal daqueles, chuva de verão com<br />

granizo, ventos fortes e os olhos dela ficaram mais azuis. Toda vez que o<br />

tempo mudava, a cor dos olhos acompanhavam o serviço de meteorologia.<br />

Nunca erravam e naquele dia estavam azulzinhos, opacos como uma falsa<br />

Turmalina. E assim que Ester foi enterrada com os olhos mais azuis de toda a<br />

Terra. Estélio se portava como se não tivesse ocorrido nada. Respondia a<br />

todos, resignado, manso, como um carneiro deitado na grama.<br />

Com o passar do tempo, o lugar de Ester à mesa, vazio, se tornou um<br />

incômodo. Antes de sentar-se Estélio olhava para a mesa, posta com apenas<br />

um prato, fazia um gesto ameaçando reclamar. Mas nunca perguntou à<br />

empregada: – Cadê o prato de Ester? Nunca. E mais ainda: após tomar<br />

algumas cervejas e fumar meia dúzia de cigarros, se dava conta que Ester não<br />

viria mesmo. Aquilo lhe causava um desconforto, que o obrigava a mexer-se de<br />

um lado para outro. Ao se barbear conversava com o espelho: – Ester não está<br />

mais entre nós...<br />

O bar, a igreja, os lugares onde andava, tudo estava sem forma. Sem<br />

desesperar-se Estélio ficou cara a cara com o abismo. A face murchou de<br />

repente, um milhão de rugas formou sulcos desalinhados. Não havia separação<br />

entre a sombra e as trevas, a claridade e a escuridão, não havia mais de noite<br />

nem mais de dia. Como Deus, Estélio teria que recriar um mundo totalmente<br />

novo, se ainda tivesse forças. Sobre seus ombros, pendia do firmamento a<br />

imagem una e indivisível de Ester, enquanto esteio de um homem só. Quando<br />

ela foi deixou a casa sem cumeeira, a rede sem estendedouro, a mesa sem<br />

cadeiras.<br />

Para Estélio ainda havia tarde e manhã e nada disso era bom, nada.<br />

Como uma farsa, perguntavam por ela, os outros, aqueles que não se dão<br />

conta de lugares desocupados. E assim se fez. De nada precisava para<br />

mantimento, a não ser o retorno de Ester – enquanto impossível. Era outro que<br />

não carecia dos frutos da árvore do bem e do mal. Do conhecimento, nada<br />

cabia em si, nem a sabedoria de Deus. Para fazer justiça bastava-se a si<br />

mesmo. E havendo terminado o dia, Estélio desanimou. Não sabia viver de<br />

saudade, essa neblina insistente de tudo que havia feito na vida. Ficar, enfim, é<br />

chato.<br />

Estélio vive hoje de todas as lembranças íntimas, da felicidade de<br />

curtíssima vida, rompida violentamente, e isso o torna mais infeliz do que<br />

aqueles que já morreram. Descobrir o véu que cobre a infelicidade naqueles<br />

que se foram assim, leves, sem pecado, é importante para que ninguém negue<br />

a eles um lugar à mesa dos puros. Estélio se redimia copiando em cadernos as<br />

frases retiradas dos livros de pensamentos – dos Salmos às Lamentações de<br />

Jó – que julgava referir-se exclusivamente à sua vida. Recordações... Sob as<br />

goteiras, nas marquises, esperando a chuva diminuir, crescia escamas nas<br />

paredes. Nada mais de dias ensolarados e quentes. Uma lembrança de algum<br />

lugar mágico, perdido.<br />

Recordações levam-no diretamente a Ester. Era ela, mais do que<br />

ninguém, quem aproveitava os dias, mesmo se o tempo estava encoberto,

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