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O Sonhador (2006) - Belas Palavras

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44<br />

O SONHADOR<br />

De repente estou chorando e Anália se levanta pacientemente e vem até<br />

minha cama:<br />

– Seu Carlos, seu Carlos...<br />

– O que é?<br />

– Pesadelo... acorda...<br />

É que choro dormindo. E grito. Ela não sabe que não é pesadelo. São os<br />

sonhos que me afligem depois que iniciei o tratamento contra depressão. Na<br />

verdade uma pilulazinha cor de rosa de nada. Mas que produz o grande efeito<br />

de nos fazer temporariamente feliz.<br />

É impressionante: fiquei desempregado, ganho quase nada, dependente<br />

muito dos outros parentes, de alguns amigos, tudo enfim que pudesse anunciar<br />

dias negros e promover suicídios, mas algumas palavras de um médico, uns<br />

comprimidos, um banho quente e tudo passa a ser secundário. Não importa a<br />

circunstância se no fim das contas fico feliz.<br />

Não sonho pesadelos, recebo visitas. As pesoas que freqüentam ou<br />

freqüentaram a minha vida de repente saem de seus lugares e vêm me visitar.<br />

Essa confusão que eles fazem é que não consigo entender. Mortos e vivos se<br />

reúnem em torno de mim, enchem a minha sala e se põem a conversar, tantos<br />

assuntos quantos forem chamados à tona.<br />

E quando todos partem e me sinto sozinho, a mulher de banco vem me<br />

fazer companhia. Na verdade não a vejo, vejo sua sombra abraçada a mim,<br />

sinto suas carícias e ouço as palavras que vão me acalmar. Uma vez chegada<br />

e a bagunça se torna mais compreensível.<br />

O que mais me surpreende é que começo a ver realizadas coisas que<br />

deixei de fazer e outras tantas das quais me arrependo de não tê-las feito. E<br />

pior, o sonho – ou pesadelo – como minha filha prefere, não se limita a uma<br />

noite só, mas segue em minha reta dias e mais dias, como uma série de<br />

televisão.<br />

Antigamente sonhava sonhos que esquecia no primeiro instante.<br />

Ficavam na noite. Costumava responder aos que me perguntava que sequer<br />

sonhava. Alguns se misturavam com o cotidiano e, até descobrir que tinha sido<br />

sonho, permaneciam como coisa real. Sonhava que cavava buracos nos<br />

terrenos enlodados, as mãos ficavam pretas sujas da terra molhada, para no<br />

fim alcançar algumas moedas antigas, como as que meu pai colecionava.<br />

Outro sonho que se repetia amiúde era o que eu chamava estrada de<br />

ferro. Sempre surgia já caminhando por extensos trilhos, pulando de dormente<br />

em dormente até chegar numa ponte sobre um rio. Em algum momento um

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