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O SONHADOR<br />
De repente estou chorando e Anália se levanta pacientemente e vem até<br />
minha cama:<br />
– Seu Carlos, seu Carlos...<br />
– O que é?<br />
– Pesadelo... acorda...<br />
É que choro dormindo. E grito. Ela não sabe que não é pesadelo. São os<br />
sonhos que me afligem depois que iniciei o tratamento contra depressão. Na<br />
verdade uma pilulazinha cor de rosa de nada. Mas que produz o grande efeito<br />
de nos fazer temporariamente feliz.<br />
É impressionante: fiquei desempregado, ganho quase nada, dependente<br />
muito dos outros parentes, de alguns amigos, tudo enfim que pudesse anunciar<br />
dias negros e promover suicídios, mas algumas palavras de um médico, uns<br />
comprimidos, um banho quente e tudo passa a ser secundário. Não importa a<br />
circunstância se no fim das contas fico feliz.<br />
Não sonho pesadelos, recebo visitas. As pesoas que freqüentam ou<br />
freqüentaram a minha vida de repente saem de seus lugares e vêm me visitar.<br />
Essa confusão que eles fazem é que não consigo entender. Mortos e vivos se<br />
reúnem em torno de mim, enchem a minha sala e se põem a conversar, tantos<br />
assuntos quantos forem chamados à tona.<br />
E quando todos partem e me sinto sozinho, a mulher de banco vem me<br />
fazer companhia. Na verdade não a vejo, vejo sua sombra abraçada a mim,<br />
sinto suas carícias e ouço as palavras que vão me acalmar. Uma vez chegada<br />
e a bagunça se torna mais compreensível.<br />
O que mais me surpreende é que começo a ver realizadas coisas que<br />
deixei de fazer e outras tantas das quais me arrependo de não tê-las feito. E<br />
pior, o sonho – ou pesadelo – como minha filha prefere, não se limita a uma<br />
noite só, mas segue em minha reta dias e mais dias, como uma série de<br />
televisão.<br />
Antigamente sonhava sonhos que esquecia no primeiro instante.<br />
Ficavam na noite. Costumava responder aos que me perguntava que sequer<br />
sonhava. Alguns se misturavam com o cotidiano e, até descobrir que tinha sido<br />
sonho, permaneciam como coisa real. Sonhava que cavava buracos nos<br />
terrenos enlodados, as mãos ficavam pretas sujas da terra molhada, para no<br />
fim alcançar algumas moedas antigas, como as que meu pai colecionava.<br />
Outro sonho que se repetia amiúde era o que eu chamava estrada de<br />
ferro. Sempre surgia já caminhando por extensos trilhos, pulando de dormente<br />
em dormente até chegar numa ponte sobre um rio. Em algum momento um