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O Sonhador (2006) - Belas Palavras

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24<br />

na espécie – se abateu sobre minhas costas deixando o lanho de um canal<br />

disforme como os que aparecem nas fotografias da superfície de Marte, que<br />

tenho de carregar até hoje não sem certo orgulho. Desde então resolvi que<br />

truste nacional e internacional são irmãos, que o capitalista brasileiro não difere<br />

em canalhice dos outros, que o banqueiro é tão escroto aqui quanto na Suíça.<br />

Que afinal é quase impossível diferenciar as atuações criminosas das legais<br />

desde que a máfia da Sicília, os bicheiros de Madureira, los hermanos de<br />

Santa Comba, os reis da cocaína, os membros das câmaras de deputados,<br />

vereadores e o Congresso Nacional se igualaram entre si como sócios da<br />

empresa multinacional e fantasma que ninguém vê, mas que existe em cada<br />

canto sentado num banquinho ou nas poltronas do Congresso Nacional.<br />

DOMINGO (PÉ DE CACHIMBO)<br />

Foi num Domingo igual a este quando descobri maravilhado que poderia<br />

mesmo gastar todas as minhas energias nos braços das mulheres, nos copos<br />

de chope escuro, nas linhas e entrelinhas dos escritos poéticos e jornalísticos,<br />

na fumaça azul do charuto, no tabuleiro de xadrez, percorrer ruas suburbanas e<br />

sonhos igualitários sem compromisso algum, irresponsavelmente<br />

irresponsável. Ser campesino de meu próprio destino. Pode? Na verdade foi<br />

como relembrar os tempos de coroinha, as liturgias, os passos religiosos da<br />

Semana Santa na cidadezinha onde fui criado. Os lampadários das minhas<br />

utopias foram sendo apagados um a um pelos acontecimentos do dia a dia, o<br />

altar mergulhado na penumbra, o aroma almiscarado do incenso no ar, decorar<br />

santificadamente o auto de Natal, presépio como ribalta, cenário de bonecos,<br />

pano de folhas verdes de murta.<br />

2ª FEIRA (O DIA MARROM)<br />

Aos quinze anos de idade já sabia tocar órgão, acompanhar e ensaiar o<br />

coral, declamar toda a liturgia da missa em latim. E a Semana Santa era o<br />

auge, a suprema realização de todas elas. Cristo na cruz apareceu para mim<br />

pleno, grandioso, humano, muito mais próximo da nossa realidade e algumas<br />

vezes mais guerrilheiro que Mao Tse Tung e Che Guevara juntos. Foi o<br />

momento em que o Evangelho, o Diário de Sierra Maestra e o Livro Vermelho<br />

começaram a ser levados a sério fundidos mentalmente num só volume,<br />

expurgadas as sandices que todos os humanos escrevem nos tempos de<br />

alucinação – desde Moisés até hoje. Imaginei como pensavam errados aqueles<br />

sonhadores que largaram tudo, o estudo, a família, os amigos, a atividade<br />

política e, sem saber que o futuro estava em suas mãos, pegaram em armas e<br />

foram para o Araguaia brincar de guerrilheiros.<br />

3ª FEIRA (NA EXPOSIÇÃO DE PICASSO)<br />

Comecei a pensar o tanto de mal que Che Guevara fez por nossa<br />

geração mandando-a ao sacrifício das armas quando poderia estar<br />

caminhando para a direção nacional do país nas décadas vindouras vencendo<br />

a guerrilha não pela força, mas inteligência. Era tempo que o destino havia nos<br />

reservado para tomar as rédeas do país das mãos de Cabral – o invasor – e<br />

não sabíamos disso, simplesmente não sabíamos. Da mesma maneira –

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