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na espécie – se abateu sobre minhas costas deixando o lanho de um canal<br />
disforme como os que aparecem nas fotografias da superfície de Marte, que<br />
tenho de carregar até hoje não sem certo orgulho. Desde então resolvi que<br />
truste nacional e internacional são irmãos, que o capitalista brasileiro não difere<br />
em canalhice dos outros, que o banqueiro é tão escroto aqui quanto na Suíça.<br />
Que afinal é quase impossível diferenciar as atuações criminosas das legais<br />
desde que a máfia da Sicília, os bicheiros de Madureira, los hermanos de<br />
Santa Comba, os reis da cocaína, os membros das câmaras de deputados,<br />
vereadores e o Congresso Nacional se igualaram entre si como sócios da<br />
empresa multinacional e fantasma que ninguém vê, mas que existe em cada<br />
canto sentado num banquinho ou nas poltronas do Congresso Nacional.<br />
DOMINGO (PÉ DE CACHIMBO)<br />
Foi num Domingo igual a este quando descobri maravilhado que poderia<br />
mesmo gastar todas as minhas energias nos braços das mulheres, nos copos<br />
de chope escuro, nas linhas e entrelinhas dos escritos poéticos e jornalísticos,<br />
na fumaça azul do charuto, no tabuleiro de xadrez, percorrer ruas suburbanas e<br />
sonhos igualitários sem compromisso algum, irresponsavelmente<br />
irresponsável. Ser campesino de meu próprio destino. Pode? Na verdade foi<br />
como relembrar os tempos de coroinha, as liturgias, os passos religiosos da<br />
Semana Santa na cidadezinha onde fui criado. Os lampadários das minhas<br />
utopias foram sendo apagados um a um pelos acontecimentos do dia a dia, o<br />
altar mergulhado na penumbra, o aroma almiscarado do incenso no ar, decorar<br />
santificadamente o auto de Natal, presépio como ribalta, cenário de bonecos,<br />
pano de folhas verdes de murta.<br />
2ª FEIRA (O DIA MARROM)<br />
Aos quinze anos de idade já sabia tocar órgão, acompanhar e ensaiar o<br />
coral, declamar toda a liturgia da missa em latim. E a Semana Santa era o<br />
auge, a suprema realização de todas elas. Cristo na cruz apareceu para mim<br />
pleno, grandioso, humano, muito mais próximo da nossa realidade e algumas<br />
vezes mais guerrilheiro que Mao Tse Tung e Che Guevara juntos. Foi o<br />
momento em que o Evangelho, o Diário de Sierra Maestra e o Livro Vermelho<br />
começaram a ser levados a sério fundidos mentalmente num só volume,<br />
expurgadas as sandices que todos os humanos escrevem nos tempos de<br />
alucinação – desde Moisés até hoje. Imaginei como pensavam errados aqueles<br />
sonhadores que largaram tudo, o estudo, a família, os amigos, a atividade<br />
política e, sem saber que o futuro estava em suas mãos, pegaram em armas e<br />
foram para o Araguaia brincar de guerrilheiros.<br />
3ª FEIRA (NA EXPOSIÇÃO DE PICASSO)<br />
Comecei a pensar o tanto de mal que Che Guevara fez por nossa<br />
geração mandando-a ao sacrifício das armas quando poderia estar<br />
caminhando para a direção nacional do país nas décadas vindouras vencendo<br />
a guerrilha não pela força, mas inteligência. Era tempo que o destino havia nos<br />
reservado para tomar as rédeas do país das mãos de Cabral – o invasor – e<br />
não sabíamos disso, simplesmente não sabíamos. Da mesma maneira –