Mortes Vitorianas:Corpos e luto no século XIX - Senac
Mortes Vitorianas:Corpos e luto no século XIX - Senac
Mortes Vitorianas:Corpos e luto no século XIX - Senac
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
Centro Universitário <strong>Senac</strong><br />
Juliana Luiza de Melo Schmitt<br />
<strong>Mortes</strong> <strong>Vitorianas</strong><br />
corpos e <strong>luto</strong> <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong><br />
São Paulo<br />
2008
Juliana Luiza de Melo Schmitt<br />
<strong>Mortes</strong> vitorianas: corpos e <strong>luto</strong> <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>.<br />
Dissertação apresentada ao Centro Universitário <strong>Senac</strong>,<br />
como exigência parcial para obtenção do grau<br />
de Mestre em Moda, Cultura e Arte.<br />
Orientadora: Profª Drª Eliane Robert Moraes<br />
Centro Universitário <strong>Senac</strong> – Campus Santo Amaro.<br />
São Paulo, março de 2008.
Juliana Luiza de Melo Schmitt<br />
<strong>Mortes</strong> vitorianas: corpos e <strong>luto</strong> <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>.<br />
Dissertação apresentada ao Centro Universitário <strong>Senac</strong>,<br />
como exigência parcial para obtenção do grau<br />
de Mestre em Moda, Cultura e Arte.<br />
Orientadora: Prof.ª Drª Eliane Robert Moraes<br />
A banca examinadora em sessão pública realizada em 28 de abril de 2008,<br />
considerou a candidata: Aprovada<br />
1- Examinadora: Profª Drª Marisa Werneck<br />
2- Examinadora: Profª Drª Maria Lúcia Bue<strong>no</strong><br />
3- Presidente: Profª Drª Eliane Robert Moraes
Resumo<br />
Propõe-se, neste trabalho, uma reflexão acerca do conceito de morte – em diferentes<br />
acepções – durante o período vitoria<strong>no</strong>. A morte da espontaneidade e dos instintos<br />
naturais, a morte das cores <strong>no</strong> vestuário e os sentimentos e atitudes diante do fim da<br />
vida são os temas centrais dessa mo<strong>no</strong>grafia.<br />
Palavras-chave<br />
História da moda; História do corpo; História da morte; Século <strong>XIX</strong>; Vestuário; Luto.
Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos<br />
Numa bela manhã radiante:<br />
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,<br />
Uma carniça repugnante.<br />
O céu olhava do alto a esplêndida carcaça<br />
Como uma flor a se entreabrir.<br />
O fedor era tal que sobre a relva escassa<br />
Chegaste quase a sucumbir.<br />
Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,<br />
Dali saíam negros bandos<br />
De larvas, a escorrer como um líquido grosso<br />
Por entre esses trapos nefandos.<br />
Charles Baudelaire. Uma carniça. 1857.
Sumário:<br />
Nota Introdutória<br />
<strong>Corpos</strong> e <strong>luto</strong> <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> ..................................................................................... 08<br />
Capítulo 1<br />
A morte de si .............................................................................................................. 12<br />
Capítulo 2<br />
Luto ............................................................................................................................ 50<br />
Capítulo 3<br />
A morte do outro ........................................................................................................ 99<br />
Bibliografia Geral ...................................................................................................... 139
Nota Introdutória<br />
<strong>Corpos</strong> e <strong>luto</strong> <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong><br />
Diante da morte, os homens reagem. Não apenas pelo fato biológico em si,<br />
verdade incontornável da natureza, mas do que ele representa: foi a percepção da<br />
finitude que levou o ser huma<strong>no</strong> a procurar compreender, com todos os meios possíveis,<br />
o sentido de sua existência. Em larga medida, as concepções de morte implicam<br />
concepções de vida.<br />
As atitudes e os comportamentos diante do óbito mudaram de acordo com as<br />
diferentes épocas e as diferentes sociedades. De maneira geral, em todas elas, diversas<br />
práticas rituais acompanham o evento, preenchendo-o de carga simbólica. E porque o<br />
conceito de morte é, portanto, histórico, transformando-se <strong>no</strong> decorrer do espaço-tempo<br />
e refletindo variadas visões de mundo em eras passadas, foi possível começar a produzir<br />
sua historiografia, ou seja, registros sobre a maneira como os grupos huma<strong>no</strong>s<br />
vivenciam a morte. Tais discursos, desde a década de 1970, passam a compreender um<br />
campo da, então recente, História das Mentalidades, que se convencio<strong>no</strong>u chamar de<br />
História da Morte.<br />
Chama a atenção, nesses estudos, que nas sociedades ocidentais exista uma<br />
espécie de ruptura nítida entre os comportamentos diante da morte em épocas pré-<br />
industriais e nas subseqüentes industriais urbanas. No primeiro caso, nas culturas<br />
campesinas e aldeãs, dedicadas a eco<strong>no</strong>mias agrícolas ou artesanais, o grupo é o<br />
principal alicerce de um sujeito, em todas as fases de sua vida. Fazia parte dessa<br />
mentalidade comunal que ninguém fosse abandonado na velhice nem na doença e,
quando ocorria um falecimento, a comunidade participava ativamente de todo o<br />
processo de perda. Nessas culturas, os homens apegavam-se à crença numa morte-<br />
passagem; percebiam-se integrados a uma coletividade terrena da qual todos eram parte,<br />
que de certo modo se repetia num nível outro, divi<strong>no</strong>. O “além” se torna uma projeção<br />
da vida cotidiana e se perpetua por intermédio de ideologias religiosas que garantem<br />
essa transmutação. Graças a essa solidariedade coletiva e aos diversos rituais que<br />
acompanhavam o <strong>luto</strong>, tornava-se possível mitigar a angústia, superar a dor e retomar a<br />
vida.<br />
O progresso do pensamento individualista não permitiu a permanência desse<br />
sistema mental. Os acontecimentos históricos que levam à substituição de um modelo<br />
feudal para as modernas sociedades capitalistas e urbanas, desapropriam a coletividade<br />
da função que assegura mútuo apoio entre os sujeitos. A importância crescente dos<br />
talentos pessoais – e a conseqüente competição entre os homens –, aliada ao<br />
enfraquecimento das doutrinas religiosas, desencadeia o desenvolvimento da concepção<br />
de indivíduo e, por extensão, a morte adquire <strong>no</strong>vos significados. Esse sujeito do<br />
período moder<strong>no</strong> dominava a natureza a sua volta, mas não a sua própria. Amedrontava-<br />
se frente ao que não conhecia e, por isso, afastava a morte de suas preocupações<br />
cotidianas. Paulatinamente, e em oposição ao que ocorria, o grupo passa a exigir que<br />
cada um resolva seus problemas e suas dores, reprimindo as manifestações emotivas e<br />
impondo, àquele que sofre, uma solução rápida e discreta.<br />
Essa transição encontra seu ápice <strong>no</strong> ultimo quartel do <strong>século</strong> XVIII e,<br />
<strong>no</strong>tadamente, durante o período vitoria<strong>no</strong>, momento em que se consolida o processo<br />
histórico do desenvolvimento do mundo industrial. Assim, talvez nunca na cultura<br />
ocidental, tenha se concebido a morte com tanto investimento sensível como ocorreu<br />
naquele momento. Nos corpos, na aparência e na relação com outrem, os vitoria<strong>no</strong>s
experimentaram a angústia de sua existência, a um só tempo afirmando e negando seu<br />
fim.<br />
Dessa relação ambígua, nasce uma espécie de melancolia constante que<br />
impregna os ares oitocentistas. O indivíduo, podado da necessidade de expressar seus<br />
sofrimentos – encerrados na intimidade dos lares burgueses – e, ao mesmo tempo,<br />
exposto à esfera pública da urbanidade moderna, dependia de um conjunto de códigos<br />
sociais que lhe indicava o que era prudente ou não de ser mostrado. Aprendia a aniquilar<br />
seus instintos, deixando de pensar e agir espontaneamente. Esse corpo vitoria<strong>no</strong>,<br />
docilizado e contido, foi submetido a rígida racionalização em prol de um autocontrole<br />
baseado em uma moral ascética e pudica. A primeira parte desse trabalho analisa o<br />
processo de construção de uma <strong>no</strong>va idéia de corpo “naturalmente racional”, através da<br />
morte de si.<br />
Conseqüência desse óbito foi a prevalência de um <strong>luto</strong> permanente na aparência.<br />
Se <strong>no</strong>s <strong>século</strong>s anteriores os homens contavam com uma etiqueta do vestuário bastante<br />
ampla, colorida e ornamentada, <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> eles têm de se acostumar a um leque de<br />
opções mais sóbrias e austeras, negando as cores em sua imagem pessoal. A partir da<br />
década de 1850, adotam em definitivo o preto cotidianamente, a cor da morte desde<br />
épocas medievais. É dessa grande mudança na indumentária masculina – e também na<br />
feminina, influenciada pelo <strong>luto</strong> da Rainha Vitória da Inglaterra – que tratará o Capítulo<br />
2.<br />
Por fim, é possível perceber <strong>no</strong> período estudado, uma verdadeira obsessão pela<br />
morte. O apego dramático a tudo que se relacionasse a um ente falecido levou a<br />
sociedade a práticas próprias de um culto aos mortos, como, por exemplo, a de visitar<br />
frequentemente o cadáver em sua <strong>no</strong>va casa-túmulo. Assim, os restos mortais das<br />
pessoas efetivamente indicavam sua presença, como uma multidão de mortos-vivos. Os
túmulos personalizados, os pertences restantes e os registros fotográficos post-mortem<br />
não permitiam que deixassem o convívio dos sobreviventes. O último capítulo<br />
contempla esse <strong>no</strong>vo fenôme<strong>no</strong> inaugurado pelo <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>: a negação da morte<br />
através da preservação do corpo sem vida.<br />
Repressão dos sentimentos, manifestações do <strong>luto</strong>, mudanças na percepção da<br />
morte: é em tor<strong>no</strong> desses temas que as páginas a seguir foram escritas. Pertencente ao<br />
campo da História, esta dissertação também contraiu dívidas profundas com autores da<br />
literatura, antropologia e sociologia, cujas vozes participam vivamente da construção<br />
das idéias aqui expostas. O texto de <strong>Mortes</strong> vitorianas está dividido em três partes: A<br />
morte de si, Luto e A morte do outro, que podem ser lidas auto<strong>no</strong>mamente – e, com esse<br />
objetivo, cada uma delas contém suas próprias <strong>no</strong>tas explicativas e bibliografia<br />
específica. A listagem completa das obras consultadas está disponível <strong>no</strong> final do<br />
trabalho.<br />
*<br />
No trajeto percorrido para o desenvolvimento desse trabalho, contei com a<br />
presença preciosa de algumas pessoas às quais não posso deixar de agradecer:<br />
Aos meus primeiros leitores: mãe, pai, Henrique e Lucas.<br />
Às professoras que participaram das bancas de qualificação e defesa, Maria<br />
Lúcia Bue<strong>no</strong> e Marisa Werneck, por sua leitura atenciosa, sugestões e comentários.<br />
Aos amigos Jéssica Oliveira, Silvana Holzmeister e Mauro Fiorani, que<br />
tornaram todo esse percurso muito mais divertido.<br />
Por fim, meu agradecimento especial à professora Eliane R. Moraes, pela<br />
orientação sempre motivante, aulas inspiradoras e pelo carinho que sempre dedicou a<br />
mim e a meus textos.
Catalogação na Fonte<br />
Schmitt, Juliana Luiza de Melo.<br />
S355m <strong>Mortes</strong> vitorianas: corpos e <strong>luto</strong> <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> / Schmitt, Juliana Luiza<br />
de Melo -- São Paulo, 2008.<br />
142 f. : il. color. ; 31 cm<br />
Orientador: Prof. Eliane Robert Moraes<br />
Dissertação (mestrado em Moda, Cultura e Arte) – Centro Universitário<br />
<strong>Senac</strong>, Campus Santo Amaro, São Paulo, 2008.<br />
1. História da Moda 2. História da Morte 3. História do Corpo<br />
4. Século <strong>XIX</strong> I. Eliane Robert Moraes (orient.) II. Título.<br />
CDD 391
Capítulo 1<br />
A morte de si<br />
<strong>Corpos</strong> dóceis e civilizados: a morte dos instintos. O modelo burguês do comportamento.<br />
A interiorização da contenção e o fim do homem espontâneo.<br />
12
Da mesma forma que a bondade estava estampada <strong>no</strong> rosto de um,<br />
o mal estava ampla e claramente inscrito <strong>no</strong> rosto do outro.<br />
O mal (que acredito ser o lado letal do homem)<br />
deixou naquele corpo uma marca de deformidade e decadência.<br />
E, <strong>no</strong> entanto, enquanto eu admirava <strong>no</strong> espelho aquele horrendo ídolo,<br />
percebi que sentia uma tendência a saudá-lo como bem-vindo,<br />
em vez de me repugnar. Esse também era eu.<br />
Robert Louis Stenvenson. O médico e o monstro. 1885.<br />
Tu venceste e eu me rendo.<br />
Mas de agora em diante, também estás morto... morto para o Mundo,<br />
para o Céu e para a Esperança!<br />
Em mim tu existias... e vê em minha morte, vê por esta imagem,<br />
que é a tua,<br />
como sumariamente assassinaste a ti mesmo.<br />
Edgar Allan Poe. William Wilson. 1840<br />
Que tristeza! – murmurou Dorian Gray, de olhos fixos na própria imagem.<br />
Que tristeza! Ficarei velho, horrível, medonho.<br />
Mas este retrato continuará sempre jovem.<br />
Ah, se pudesse dar-se o contrário! Se eu permanecesse moço e o retrato envelhecesse!<br />
Para isto... para isto... eu daria tudo.<br />
É verdade; não há <strong>no</strong> mundo o que eu não desse.<br />
Daria minha própria alma!<br />
Oscar Wilde. O retrato de Dorian Gray. 1890.<br />
13
Espelhos, sombras e sósias perseguem o imaginário do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. O sujeito<br />
cindido em réplica idêntica, re-produzido, perturba o indivíduo atomizado da era<br />
contemporânea. A construção histórica das identidades individuais, ou ainda, o<br />
desenvolvimento de uma consciência de si - processo iniciado em fins da Idade Média e<br />
consolidado nesse momento - não permite a existência de um Outro, a cópia semelhante<br />
de um ser que se entende único. Pois eis que na literatura oitocentista, o Duplo aparece<br />
como tema recorrente.<br />
Em larga medida, essa insistência na personagem dividida representa a angústia<br />
do homem oitocentista frente a uma existência exclusivamente material. O corpo após o<br />
Iluminismo, fora definido como máquina, composta de sistemas e controlada por<br />
necessidades físico-químicas. Deixava de ser dual, carne e alma, como era desde<br />
Descartes, para ser apenas autômato. A busca, desesperada, por uma resignificação do<br />
huma<strong>no</strong>, décadas antes da psicanálise, revelou as dores espirituais da sociedade<br />
vitoriana. A figura literária do Duplo é apenas um de seus reflexos.<br />
Ocorria, portanto, uma crise de identidade, tal como a crise na Arte, acusada de<br />
plagiar o mundo – tarefa cumprida com mais eficiência pelas fotografias. Essa multidão<br />
de duplicatas que invadiu o universo ico<strong>no</strong>gráfico de<strong>no</strong>ta essa emergencial busca de<br />
sentido <strong>no</strong> que a ciência não revela. Do encontro consigo mesmo, instância escondida<br />
do Eu projetada <strong>no</strong> Duplo, emerge a verdade trágica do desti<strong>no</strong> huma<strong>no</strong>: o mistério da<br />
vida, ou seja, a morte.<br />
Fim, este, inevitável do confronto com o Duplo. Deparar-se com essa<br />
personificação de seus conflitos interiores, fantasmas que assombram e amaldiçoam,<br />
rememorando a todo instante a miséria da condição humana, seus temores e<br />
inseguranças, impossibilita a continuidade tranqüila da vida. Todo recalque, tudo o que<br />
foi ocultado <strong>no</strong>s recônditos secretos do inconsciente, desejos incomunicáveis e atos<br />
14
inadmissíveis, é materializado nele e conviver com esse reflexo desprezado é<br />
insustentável. Aniquilar essa dissociação e tornar-se u<strong>no</strong> <strong>no</strong>vamente é destruir tudo o<br />
que está internalizado. Acabar com a existência desse antagonista de si mesmo é,<br />
portanto, pôr fim à própria existência. Morrer é a única solução.<br />
*<br />
A força geradora do Duplo é, destarte e paradoxalmente, o temor da degeneração<br />
do corpo e, em sua extensão, a morte. Esse é o caso do Duplo de Dorian Gray, seu<br />
retrato pintado por Basil Hallward. O rapaz deseja ardentemente a permanência de sua<br />
indubitável beleza física, reconhecida por todos a sua volta. É devido ao seu encanto<br />
exterior que Dorian consegue tudo o que quer e freqüenta a alta sociedade – tão apegada<br />
que era às aparências. Depois de trocar suas feições pelas da figura <strong>no</strong> quadro e se<br />
manter inexplicável e artificialmente gracioso, esta passa, então, a revelar a sua<br />
verdadeira natureza. Ao ver seu Duplo, Dorian é confrontado com o seu aspecto real,<br />
degradado e lívido, resultado de todos os seus desvios morais. O fazer artístico, capaz<br />
de desvendar a essência das coisas, alcança seu ápice <strong>no</strong> texto de Wilde, ao tornar a obra<br />
a verdadeira imagem do modelo.<br />
A autoconsciência de Dorian Gray nasce <strong>no</strong> instante em que avista o quadro pela<br />
primeira vez. Sua percepção da passagem do tempo, e com ele o desaparecimento de<br />
tudo o que realmente importa – a beleza, seu porto seguro, fonte de tudo que conquista<br />
– é mordaz, um golpe fatal em sua jovialidade i<strong>no</strong>cente: A realidade de sua própria<br />
beleza surgiu-lhe como uma revelação. Nunca sentira isso, até o presente. (...) Sim,<br />
chegaria o dia em que seu rosto se tornaria enrugado e murcho, os olhos fracos e<br />
desbotados, o corpo alquebrado e deformado. Dos lábios desapareceria o tom<br />
15
carmesim; adeus ao ouro dos cabelos! A vida que deveria animar-lhe a alma lhe<br />
estragaria o corpo. Tornar-se-ia hediondo, repulsivo grotesco.<br />
Amedrontado pelas mudanças do retrato - ao longo dos 18 a<strong>no</strong>s que a narrativa<br />
cobre, período <strong>no</strong> qual toda a graça de Dorian permanece intocada, enquanto sua réplica<br />
transforma-se grotescamente -, obriga-se a trancafiar a obra <strong>no</strong> porão, longe dos olhares<br />
de seus conhecidos e mesmo dos empregados. A possibilidade de escondê-la preserva o<br />
caráter fantástico da história, já que não há cúmplices à corrupção da imagem. Essa<br />
qualidade do Duplo, fantasmagórica, visível somente àquele que é diretamente afetado<br />
por sua existência, é ainda mais algoz <strong>no</strong> caso de William Wilson. Seu sósia, espécie de<br />
gêmeo espectral, que divide com o protagonista semelhanças inverossímeis (como o<br />
mesmo <strong>no</strong>me, data de nascimento e fenótipo) é, ao contrário do que ocorre com Dorian<br />
Gray, um tipo de consciência ética perdida por Wilson <strong>no</strong> decorrer das experiências<br />
mundanas em que se envolve.<br />
Golpista e manipulador, o personagem de Edgar Allan Poe é um dissimulado,<br />
que se esconde detrás de sua estirpe aristocrática para realizar suas vigarices. Seu<br />
antagonista personifica, para seu terror, sua própria culpa, que reconhece e rememora a<br />
todo instante sua decadência e miséria moral. Ao eliminá-la, ou seja, ao escolher ser<br />
exclusivamente o homem inescrupuloso e perverso, torna-se um condenado, sem<br />
salvação, morto para o Mundo, para o Céu e para a Esperança.<br />
Em algum momento esses personagens apercebem-se dos laços indissolúveis<br />
que os unem aos seus Duplos.“Este também era eu” disse Henry Jekyll sobre Edward<br />
Hyde. Durante toda sua vida, trancafiara o monstro na “prisão de sua índole” para ser,<br />
com muito esforço, apenas o amável e discreto médico. Ao libertar esse Duplo cruel e<br />
vil, gozava dos prazeres mais infames e crimi<strong>no</strong>sos sob a máscara do Outro. Pouco a<br />
pouco, eu estava perdendo o controle sobre meu original e melhor eu, e tornando-me o<br />
16
segundo e pior. Eu sentia que agora deveria escolher entre os dois. Eis o perigo de uma<br />
segunda existência irresponsável, porém altamente libertária.<br />
Quando publicou O médico e o monstro, Robert Louis Stevenson foi lido pelos<br />
homens de sua época. Alertava que todos os seres huma<strong>no</strong>s que encontramos são uma<br />
mistura de bom e mau, ainda que na aparência apresentem-se sempre como respeitáveis.<br />
O grande desafio era conter, esconder o “Hyde” que trazem dentro de si. O Eu<br />
predominante deve matar seu Duplo (“Je kill”), para conviver pacificamente em<br />
sociedade, antes que esse se apodere plenamente de sua personalidade.<br />
Nas três narrativas supracitadas, é possível perceber variações na apresentação<br />
do Duplo. Como imagem <strong>no</strong> caso de Dorian Gray, que o denuncia silenciosamente;<br />
personificado num Outro idêntico em William Wilson, como um homem-reflexo; e<br />
finalmente, o indivíduo que é, ele mesmo, as duas personagens: dividido mas consciente<br />
de suas duas naturezas rivais. No Ocidente do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, atribuía-se extrema<br />
importância à reputação e à maneira como cada sujeito se apresentava e se portava em<br />
público. Negar constantemente esse lado obscuro e hedonista era desejável; era, em<br />
verdade, fundamental. Entretanto, se pareceu mais apropriado assumir Jekyll, demandou<br />
ao homem longo e doloroso processo para reprimir Hyde.<br />
*<br />
17
O ator inglês Richard Mansfield ficou conhecido por interpretar o Doutor Jekill e o Senhor Hyde<br />
na primeira adaptação do texto de Stevenson para o teatro, apenas um a<strong>no</strong> após sua publicação, em 1886.<br />
A fotomontagem é de 1895.<br />
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Image:Jekyll-mansfield.jpg<br />
18
Essa fragmentação da consciência, capaz de emular um Duplo, foi reflexo de<br />
uma crise profunda na construção da mentalidade de indivíduo. O homem, cientifizado<br />
pelas Luzes e racionalizado pelas regras de civilidade, renega suas características<br />
instintivas e busca, sofregamente, um reencontro com sua essência humana.<br />
Esse processo de repressão de características naturais e inerentes ao ser huma<strong>no</strong><br />
não teve início <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> - na verdade, acompanha a própria história da civilização<br />
ocidental. Ao longo do percurso histórico, certas mudanças <strong>no</strong>s comportamentos<br />
mostraram-se capitais, em prol de um melhor convívio social – principalmente à medida<br />
que a sociedade se tornava mais complexa, e consequentemente a rede de<br />
relacionamentos entre os indivíduos segmentava-se ainda mais. 1<br />
Desde, pelo me<strong>no</strong>s, os <strong>século</strong>s XIII e XIV é possível perceber tais<br />
transformações, em especial dentro das cortes monárquicas, locais por excelência da<br />
<strong>no</strong>rmatização das maneiras. 2 Procurando se diferenciar do restante da sociedade,<br />
<strong>no</strong>tadamente da burguesia, as cortes tratavam de elaborar uma série de condutas<br />
particulares ao seu grupo. 3 A moderação dos afetos substituía a grande liberdade de<br />
ação de que gozara a <strong>no</strong>breza medieval salvaguardada por sua posição inquestionável <strong>no</strong><br />
mundo feudal. Quando passou a disputar hierarquias com a elite mercantilista, 4 mudou<br />
de hábitos: o controle dos sentimentos transformava-se em sig<strong>no</strong> de diferenciação, uma<br />
vez que se conformava como um tipo de refinamento exclusivo e excludente.<br />
Parte fundamental dessa cultura da corte, a courtoisie, foi o desenvolvimento<br />
de um gosto próprio ao grupo, que não somente a caracterizava, mas que devia ser<br />
constantemente demonstrado, através dos atos e sobretudo da aparência. A honra e a<br />
glória eram atributos que deveriam saltar aos olhos pela imagem: não dizem respeito<br />
exatamente a qualidades subjetivas, internas, mas aos títulos, ou melhor, à identidade<br />
pública. A maneira como um <strong>no</strong>bre se apresenta sinaliza o que ele é, como uma espécie<br />
19
de linguagem que fala sobre o indivíduo, submetido constantemente ao olhar e à<br />
opinião dos outros membros do grupo. Os meios de agir consistiam em ganhar a<br />
aprovação ou a inveja ou pelo me<strong>no</strong>s a tolerância da opinião graças ao parecer, quer<br />
dizer, à honra. Conservar ou defender a honra equivale a salvar as aparências. O<br />
indivíduo não era como era e sim como parecia, ou melhor, como conseguia parecer. 5<br />
Por isso a necessidade em se restringir o que se mostra com o uso consciente de um<br />
rígido autocontrole. O comportamento do indivíduo começava a ser dividido entre o que<br />
devia exibir e o que devia esconder, não só por polidez e sim por um princípio<br />
civilizatório que o obrigava a praticar certos atos em isolamento. A civilidade, qualidade<br />
exaltada pelas elites educadas, era, acima de tudo, uma arte, sempre controlada, da<br />
representação de si mesmo para os outros, um modo estritamente regulamentado de<br />
mostrar a identidade que se deseja ver reconhecida. 6<br />
*<br />
Um exemplo bastante eloqüente do refinamento das elites foi a importância cada<br />
vez maior da limpeza corporal, não pela preocupação sanitarista mas pelo simbolismo<br />
que o asseio adquire. Durante o período absolutista mantiveram-se as práticas medievais<br />
que não incluíam abluções com água – mesmo o rosto dificilmente era banhado, mas<br />
friccionado com pa<strong>no</strong>s levemente umedecidos em óleos perfumados ou águas-de-cheiro.<br />
Nas cortes tor<strong>no</strong>u-se praxe o costume de se ter os cabelos sempre muito escovados e<br />
empoados, para desengordurar os fios. Apesar de os castelos possuírem salões para<br />
banhos, sua finalidade era ostentatória e recreativa, funcionavam somente em ocasiões<br />
festivas e especiais. O banho com água, em si, não tinha outro valor senão de<br />
20
divertimento luxuoso e supérfluo - e, mesmo assim, estava muito longe de ser um<br />
hábito.<br />
Contraditoriamente, na mesma proporção em que desaparece o uso da água,<br />
cresceram as <strong>no</strong>rmas da aparência. Uma das mais importantes era o cuidado com a<br />
chamada “roupa branca”, a roupa de baixo. Trocá-la era o equivalente a limpar-se. Sua<br />
função era reter o suor do corpo e a sujeira proveniente do exterior, afastando os<br />
parasitas presentes na superfície da pele, como pulgas e piolhos. Era bastante apropriado<br />
que a prática de mudar esse traje íntimo diversas vezes fosse manifesta, pois conferia a<br />
evidência visual do asseio, sinônimo de dignidade. Os tratados de civilidade, inspirados<br />
justamente nas práticas da corte, repetirão do XVI ao XVII, e com insistência cada vez<br />
maior, essa analogia: o asseio da roupa de baixo é o de toda pessoa. Ele constitui o<br />
sinal do homem distinto. 7 Iniciou-se assim a tendência de se deixar à mostra golas e<br />
punhos lividamente brancos e ricamente adornados com rendas, babados e vazados. Ele<br />
[o branco] é uma testemunha do “por baixo”. É o oculto que se mostra. Ele revela o<br />
que o traje cobre. O branco, nesse caso, indica uma limpeza particular: a do interior. 8<br />
Por isso deve ficar visível – o tecido que está em contato direto com a pessoa revela em<br />
público o que ela é intimamente. Se o brancor da roupa era sinônimo da alvura da pele<br />
escondida, era altamente desejável que a pele exposta também fosse embranquecida, por<br />
isso a necessidade de maquiar o rosto e ao mesmo tempo ressaltar maçãs e lábios<br />
corados. A aparência saudável era fundamental, ainda que artificial. Luvas brancas<br />
corrigiam a cor das mãos. O empoamento dos cabelos era sua limpeza, mesmo que<br />
superficial; os perfumes corrigiam os odores do corpo, ainda que não os eliminassem.<br />
Ao contrário dos tecidos destinados ao olhar, a roupa de baixo, chamada também<br />
de camisa ou chemise, era de fazenda fina e cor clara, mais leve. Escondida, era<br />
representante da pele. Contrapunha-se à roupa visível, que a cobre. A ausência de<br />
21
acuidade referente às condições do corpo é exemplar da preocupação por sua essência<br />
(a alma), e por sua imagem - e não especificamente com sua limpeza (receio esse<br />
próprio da época contemporânea em que se descobre que a higiene pessoal evitava,<br />
diretamente, algumas doenças). Assim como fazer parte da corte tinha um fim em si,<br />
construir essa arquitetura corporal do artifício também. Era uma necessidade resultante<br />
desse pertencimento.<br />
*<br />
As cortes eram o ponto de apoio do poder monárquico e <strong>no</strong>s <strong>século</strong> moder<strong>no</strong>s<br />
foram os centros de referência de estilo, a fonte dos <strong>no</strong>vos modelos comportamentais a<br />
serem seguidos pelas ordens inferiores. Não se ocupavam com nenhuma atividade<br />
produtiva devido a sua própria condição social. Dedicavam-se ao ócio. Ou ainda, a todo<br />
tipo de superficialidade, nada que tivesse utilidade prática direta à vida cotidiana. Em<br />
especial aos talentos eruditos e artísticos e ao domínio de uma complexa etiqueta que<br />
lhes permitissem comportar-se de acordo com as rígidas <strong>no</strong>rmas do decoro exigidas por<br />
seu grupo. Tão importante quanto viver o ócio era torná-lo visível através desses<br />
peque<strong>no</strong>s e importantes refinamentos.<br />
Via de regra, o rendimento das famílias aristocráticas era revertido para a<br />
manutenção de seu status, já que não seguir o protocola equivalia à perda de prestígio. 9<br />
Consumir toda espécie de luxo era um pressuposto do pertencimento à corte e para<br />
tanto, recorria-se a todo tipo de tática financeira, como a venda de propriedades e a<br />
contração de grandes dívidas. Tornava-se impossível diminuir os gastos uma vez que<br />
não se desejava renunciar ao convívio entre palacia<strong>no</strong>s e monarcas. 10 A situação<br />
22
agravava-se <strong>no</strong> decorrer do <strong>século</strong> XVIII, <strong>no</strong> qual as cortes rivalizavam com a burguesia<br />
enriquecida e ressentida. 11<br />
Certamente para a realeza o controle tão severo dos modos era um poderoso<br />
instrumento de dominação, tanto daqueles que viviam ao seu redor quanto de seus<br />
súditos. Em nenhuma corte essas regras foram mais bem utilizadas quanto na de Luís<br />
XIV, o monarca francês que gover<strong>no</strong>u 1643 e 1715. Tal como a honra se manifesta pela<br />
aparência, também o poder do rei deveria ser visível em tudo que o circundava. O<br />
cerimonial real marcava a profunda distância que o separava da plebe, por isso era tão<br />
importante que o próprio rei seguisse a etiqueta que impunha aos outros. 12<br />
Luís XIV rei<strong>no</strong>u por intermédio de um rígido protocolo, <strong>no</strong> qual os rituais foram<br />
altamente teatralizados, ainda que fossem os eventos mais banais e cotidia<strong>no</strong>s,<br />
preenchendo-os de significados sociais e políticos. Todos deveriam testemunhar o<br />
fausto e a majestade que envolvia a corte; o prestígio do rei era reconhecido em cada<br />
palavra, em cada gesto. Outra tática foi instituir pequenas atitudes como sinônimas do<br />
seu afeto particular, aproximando ou afastando membros da corte quando necessário,<br />
mantendo as relações entre todos constantemente tensas, fazendo com que competissem<br />
por sua atenção, o que, consequentemente, aumentava a pressão sobre o autodomínio.<br />
Mesmo a instalação da corte em Versalhes foi parte de uma estratégia para<br />
fortalecer a imagem da monarquia e da corte. Afastava a <strong>no</strong>breza de Paris, a capital<br />
francesa, ou seja, a cidade de maior circulação monetária e com maior comércio:<br />
burguesa demais para o rei. Mostrava então aos burgueses, ávidos em copiar os modos<br />
e consumos cortesãos, seu devido lugar: distantes do palácio real. Luís XIV encerrava,<br />
assim, seus pares num mundo à parte, composto de pompa e circunstância, intrigas e<br />
superficialidades. Essa aversão ao que ocorria fora dos luxuosos jardins do palácio<br />
23
culminaria <strong>no</strong> trágico desfecho de Luís XVI, e de sua esposa Maria Antonieta, <strong>no</strong><br />
episódio revolucionário, um <strong>século</strong> mais tarde.<br />
*<br />
Para as classes urbanas e trabalhadoras, o período moder<strong>no</strong> foi o momento de<br />
desenvolver uma cultura própria, ainda que buscassem o ideal da vida aristocrática.<br />
Desde o <strong>século</strong> XVI, a popularização de textos impressos - antes limitados a uma<br />
mi<strong>no</strong>ria religiosa ou intelectual, agora tornados acessíveis à população letrada - fez com<br />
que uma admirável circulação de idéias, fossem políticas, filosóficas, humorísticas ou<br />
por<strong>no</strong>gráficas, ocorresse ao mesmo tempo em que aumentava a experiência de uma<br />
<strong>no</strong>va dinâmica urbana. Nos <strong>século</strong>s seguintes, pelo me<strong>no</strong>s nas grandes cidades da<br />
Europa Ocidental, mais populosas e com maior movimentação monetária, as antigas<br />
formas de sociabilidade tradicional, sustentadas pelos pilares da coletividade das<br />
corporações de ofício ou na estabilidade do campo, davam espaço a indivíduos livres e<br />
autô<strong>no</strong>mos. Cada um com sua vida própria, cada um com sua ocupação. Estabeleciam-<br />
se como mercadores, lojistas, viajantes, leitores de jornais, consumidores que tinham<br />
algum tempo livre a algum dinheiro extra; negociavam, debatiam e, ocasionalmente,<br />
conspiravam ou espionavam, ou faziam sexo com pessoas praticamente<br />
desconhecidas. 13 Aglomerados desordenadamente nesses cenários, podiam ser eleitores,<br />
atrizes, jornalistas, funcionários do parlamento inglês ou prostitutas francesas,<br />
vendedores portugueses de escravos africa<strong>no</strong>s, livreiros alemães e até investidores<br />
holandeses de açúcar brasileiro.<br />
Essa burguesia cada vez mais se apercebe como um setor importante da<br />
sociedade e é a partir dessa autoconsciência de classe que essas forças sociais puderam<br />
24
se opor decisivamente à <strong>no</strong>breza, a fim de substituí-la. Era inevitável que o confronto<br />
acontecesse uma vez que os interesses, mesmo que interdependentes em muitos<br />
momentos (como nas negociações entre os territórios), eram opostos em tantos outros<br />
(como na distribuição dos privilégios, exclusivos da <strong>no</strong>breza). A filosofia iluminista<br />
destitui o “direito divi<strong>no</strong>”, servindo de arcabouço ideológico para uma revolução social.<br />
O materialismo nivelou os homens. A tensão entre os dois grupos chegara em seu ápice<br />
ao fim do <strong>século</strong> XVIII.<br />
Com a ascensão das classes burguesas e seu expresso desprezo por tudo o que se<br />
relacionasse às antigas monarquias, a cortesia, tão aclamada e cultivada pela <strong>no</strong>breza,<br />
passa a ser sinônimo de artifício, máscara imposta pela vida na corte. A essas condutas<br />
falsas e dissimuladas, a burguesia opõe a virtude, autêntica, inata: a superficialidade das<br />
reações calculadas versus a personalidade naturalmente comedida.<br />
Assim, a burguesia do <strong>século</strong> XVIII configurou-se como a classe que conseguiu<br />
internalizar a contenção dos instintos que oprimia a corte. Esse controle fora tão<br />
absorvido que passa a funcionar mesmo quando o indivíduo encontrava-se sozinho,<br />
mesmo que não estivesse sendo observado. O constrangimento causado pelas ações<br />
mais espontâneas, e, em essência, animais - essência cientificamente comprovada pelo<br />
darwinismo -, fez o homem omitir seu sexo, ocultar seus excrementos, negando sua<br />
natureza obscena e rejeitando seu corpo natural. Festejava-se a vitória dessa<br />
racionalização dos desejos. Esse corpo pós-iluminismo, território do controle total e<br />
automático, passava a ser educado ainda na infância, compelido a suprimir vontades<br />
consideradas <strong>no</strong>civas, em direção a uma sociedade de adultos civilizados. Rapidamente<br />
resumia-se todo um longo processo social de coação dos instintos, que historicamente<br />
demorou <strong>século</strong>s para ser concluído, em apenas uma única etapa da vida. 14<br />
25
*<br />
O que nas cortes era o domínio dos impulsos naturais tornava-se, para os<br />
vitoria<strong>no</strong>s, a sublimação profunda dos instintos: Na passagem para a sociedade<br />
burguesa, a teia de ações passou a ser tão complexa e extensa, o esforço necessário<br />
para comportar-se corretamente dentro dela ficou tão grande que, além do<br />
autocontrole consciente do indivíduo, um cego aparelho automático de autocontrole foi<br />
firmemente estabelecido. 15 Esse mecanismo era formado por um conjunto de métodos<br />
de repressão que apareciam nas escolas, nas famílias, nas fábricas, <strong>no</strong>s manuais de<br />
etiqueta e, <strong>no</strong> limite, desencadeado por sentimentos íntimos de culpa e auto-punição.<br />
Violar os rígidos códigos do comportamento civilizado fazia do indivíduo o alvo do<br />
repúdio social ou, <strong>no</strong> mínimo, irrompia um intenso tormento pessoal.<br />
O que impressiona, afinal, é que esse tipo de prática anteriormente restrita a um<br />
grupo - as cortes e as elites burguesas em contato com elas – se transformou <strong>no</strong><br />
comportamento padrão. E mais: automatizado. A contenção, ação forçada e anti-<br />
natural, fora legitimada por essa sociedade, e transmitida a todos indiscriminadamente,<br />
independente de ofício, sexo ou idade.<br />
A doutrina utilitarista característica da sociedade contemporânea pressupunha a<br />
concepção do corpo que se modela e se manipula de acordo com necessidades<br />
funcionais. Para fazê-lo produzir mais, seria necessário submetê-lo à uma estrita<br />
disciplina, que o transforme e o aperfeiçoe, tornando-o um corpo adestrado: um corpo<br />
dócil. 16 Não se tratava somente de um cuidado exacerbado para com esse corpo, mas<br />
acima de tudo de seu comando, ou, ainda melhor, o seu profundo autocontrole.<br />
Essa disciplina passava a ser imposta tanto pelas instituições sociais através de<br />
políticas de coerção baseadas na manipulação calculada da anatomia e das funções<br />
26
orgânicas do corpo, quanto pela popularização e naturalização dessas práticas<br />
disciplinadoras, que geram uma espécie de submissão espontânea, na qual o indivíduo,<br />
mesmo sem ser diretamente coagido, segue as regras, porque já as absorveu. 17<br />
A disciplina fabrica indivíduos. 18 Adestra as massas, criando um ajuntamento<br />
obediente de células separadas, autô<strong>no</strong>mas e produtivas. Essas imposições são<br />
direcionadas por um lado para a saúde dos corpos e o aumento da força física e do<br />
vigor; por outro, para uma rigorosa conduta comportamental planejadamente limitada.<br />
O objetivo é que todos sejam igualmente úteis.<br />
Chega-se ao âmago da prática disciplinadora: a padronização dos indivíduos.<br />
Não torná-los multidão <strong>no</strong>vamente, mas ao contrário, agrupamentos de indivíduos<br />
sozinhos, porém, nivelados. São unidos por uma mesma ordem homogeneizante, ainda<br />
que continuem pessoas diferentes. Ao reprimir e censurar constantemente os indivíduos,<br />
também evita-se sua socialização – além de mantê-los em constante concorrência. Nas<br />
sociedades contemporâneas, aqueles que não se adaptam à total padronização são os que<br />
vivem à sua margem, sem voz ativa: crianças pequenas 19 , doentes mentais,<br />
delinqüentes, crimi<strong>no</strong>sos.<br />
*<br />
A obsessão pela disciplina das emoções visava, principalmente, o afastamento<br />
da sexualidade e a abolição da violência – e em seu prolongamento, a morte em espaço<br />
público - por serem instâncias humanas muito próximas dos instintos animais. No que<br />
tange a violência, o homem contemporâneo esforça-se em reprimir em si mesmo<br />
qualquer impulso em atacar fisicamente outrem e, na mesma proporção, espera estar<br />
livre dos ataques alheios.<br />
27
Nem sempre foi assim. Nas sociedades dos Antigos Regimes, a distribuição de<br />
poderes na elite aristocrática se dava por meio da posse de territórios, conquistados pela<br />
guerra; era uma política e uma eco<strong>no</strong>mia da violência. Ataques físicos eram constantes e<br />
legítimos, faziam parte da <strong>no</strong>rmalidade da vida, a expectativa de uma morte sangrenta<br />
era freqüente, altamente considerada. A presença da violência cotidiana permitia maior<br />
liberdade em dar vazão a sentimentos que se tornariam intoleráveis para a época<br />
contemporânea.<br />
O afastamento da morte corriqueira fez parte do processo civilizador. Instaurava-<br />
se uma espécie de ética cívica que impõe a paz civilizatória para o bem total da<br />
sociedade. O contrato social hobbesia<strong>no</strong> era o arcabouço ideológico para o fim da<br />
ameaça de violência nas relações entre todos. Se antes eram mais livres para exprimir<br />
rompantes de espontaneidade, em contrapartida, estavam à mercê de serem alvo da<br />
agressividade alheia. Duelos e ataques físicos ocorriam sem o controle ou a proibição de<br />
instituição alguma. Quando, na sociedade oitocentista, a violência punitiva vira<br />
território exclusivo de uma entidade representativa, como <strong>no</strong> caso de uma autoridade<br />
local (monárquica, estatal), ela lentamente se despersonaliza. Vantajosamente, esse<br />
processo reduz o temor que um homem sente por outro, <strong>no</strong> entanto, inibe qualquer<br />
possibilidade de auto-expressão agressiva. Dirigentes e seus mandatários – exército,<br />
polícia – mo<strong>no</strong>polizam a prática punitiva e possuem o aval oficial para a violência.<br />
Paradoxalmente, a vida tor<strong>no</strong>u-se me<strong>no</strong>s perigosa e mais segura, porém mais<br />
entediante. Sem válvula de escape alguma, o homem poda qualquer tipo de descarga<br />
emocional brusca e torna-se passivo. Os choques físicos, as guerras e as rixas<br />
diminuíram e tudo o que as lembrasse, até mesmo o trinchamento de animais mortos e<br />
o uso de faca à mesa, foi banido da vista ou pelo me<strong>no</strong>s submetido a regras sociais<br />
cada vez mais exatas. Às vezes, o indivíduo se habitua a tal ponto a inibir suas emoções<br />
28
(os sentimentos constantes de tédio ou solidão constituem bons exemplos disso) que não<br />
é mais capaz de qualquer forma de expressão sem medo das suas emoções modificadas,<br />
ou de satisfação direta de suas pulsões reprimidas. 20<br />
Mesmo o suicídio, a violação do próprio corpo - ou seja, em princípio um<br />
assunto privado, pessoal - aos olhos da sociedade se transforma em uma demonstração<br />
pública de fracasso. O suicida era o indivíduo inábil, fraco, que não triunfou de alguma<br />
maneira; seu malogro, uma questão moral e não de oportunidade. A tentação do auto-<br />
aniquilamento era decorrente da angústia de uma vida fadada à frustração. Instante<br />
ápice do individualismo, quando nada mais limita a ação e o sujeito se liberta, enfim, de<br />
tudo que rege sua vida. O suicídio é a solidão absoluta, local do máximo isolamento e<br />
da máxima auto<strong>no</strong>mia.<br />
*<br />
Segundo o sociólogo alemão Max Weber, contemporâneo ao vitorianismo, a<br />
internalização do controle de si teria sido facilitada, pelo me<strong>no</strong>s em uma parte da<br />
burguesia, pela prática de religiões cuja pedra de toque é o ascetismo. 21 Praticantes do<br />
protestantismo apresentariam uma tendência especial em desenvolver uma espécie de<br />
racionalismo econômico, um princípio de vida <strong>no</strong> qual homens que, de maneira geral,<br />
equilibravam as atividades do dia entre momentos de trabalhos, de lazer e de descanso,<br />
passam a não só dedicar mais horas ao trabalho como sacrificar os momentos de lazer<br />
para tal. Na mesma medida, os gastos antes direcionados para esse lazer são<br />
reinvestidos na produção. Essa capacidade de racionalizar o tempo e buscar mais<br />
retor<strong>no</strong> financeiro sacrificando todo o resto da vida implica numa mudança de espírito,<br />
que é, ela mesma, a origem do espírito capitalista.<br />
29
Esse elogio ao ascetismo agiria como um bloqueio ao consumo do supérfluo.<br />
Como tudo <strong>no</strong> universo capitalista gira em tor<strong>no</strong> do utilitarismo (das coisas, das ações,<br />
das virtudes), o consumo se restringiria ao necessário, em contraposição a purpurina e a<br />
ostentação da magnificência feudal que, repousando sobre bases econômicas doentias,<br />
preferia a suja elegância à sóbria simplicidade. 22 Contra a opulência cortesã, surgia<br />
uma ética econômica especificamente burguesa que permitia que se perseguisse um<br />
objetivo pecuniário qualquer, desde que dentro dos limites dos preceitos religiosos. Ao<br />
agir com moral e ética, “ser rico” era uma conseqüência natural e legitimada pela<br />
divindade.<br />
*<br />
Um estratagema altamente eficiente <strong>no</strong> controle dos corpos foi a da<br />
popularização de um discurso higienista. Contrapunha-se ao artifício aristocrático, falso<br />
e descartável como uma máscara. O corpo burguês, naturalmente civilizado e virtuoso,<br />
teria uma vitalidade própria proveniente dos vigores inter<strong>no</strong>s, que desqualificaria<br />
interferências externas e inapropriadas como o ador<strong>no</strong> e a aparência exagerada. Os<br />
banhos, então, instalam-se nas práticas cotidianas da elite burguesa, ainda que fossem<br />
parciais, sem a imersão completa na água; a limpeza não se limitava mais à troca da<br />
roupa branca, como era a concepção anterior de limpeza corporal. A higiene,<br />
significando, agora, o conjunto de práticas e saberes que favorecem a manutenção da<br />
saúde, vira palavra-chave para o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, em detrimento à profusão ornamental que<br />
escondia a sujeira cortesã.<br />
A necessidade de asseio pessoal foi acompanhada por justificativas médicas.<br />
Descobriu-se, enfim, que as doenças não eram conseqüência do desequilíbrio dos<br />
30
humores, castigos divi<strong>no</strong>s ou qualquer outra explicação não científica, mas são<br />
comprovadamente causadas por microorganismos imperceptíveis ao olho. A assepsia<br />
freqüente e cuidadosa torna-se fundamental: limpar-se é atuar sobre agentes invisíveis<br />
que podem desestabilizar o corpo. Logo, era necessário; útil.<br />
Entretanto, o maior inimigo da higiene <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> era, apesar dos apelos<br />
científicos, o pudor. Foi imperativo que, já na segunda metade do <strong>século</strong>, as casas<br />
apresentassem espaços privativos como banheiros, cômodos autô<strong>no</strong>mos destinados à<br />
limpeza íntima. Até então, as medidas higiênicas tinham espaço dentro dos quartos, <strong>no</strong>s<br />
chamados gabinetes de toalete. Nos <strong>no</strong>vos banheiros, entrava-se sozinho e não se<br />
solicitava qualquer ajuda. Constituiu-se, simplesmente uma relação mais exigente do<br />
indivíduo consigo mesmo. Talvez nunca essa exigência em relação a intimidade tenha<br />
se manifestado a tal ponto. 23<br />
*<br />
A idealização do tipo burguês 24 foi uma das chaves da transição social ocorrida<br />
entre os <strong>século</strong>s XVIII e <strong>XIX</strong>, caracterizando o período vitoria<strong>no</strong>. 25 As convicções<br />
próprias da classe trabalhadora passaram a ser o modelo esperado de comportamento.<br />
Assim, o homem burguês deveria ser, ou pelo me<strong>no</strong>s dizia ser, esposo devotado, pai<br />
prestimoso, sócio honesto <strong>no</strong>s negócios, moderado em política e <strong>no</strong> consumo de vinho,<br />
amigo de prazeres poucos dispendiosos. Sua aparência condizia com sua<br />
respeitabilidade e o <strong>no</strong>vo herói era um homem de capa simples, talvez calçando<br />
galochas, portando uma pasta de documentos e certamente um guarda-chuva, e que<br />
pensava em seus negócios e sua família. 26 Nunca na história ocidental foi tão<br />
importante vestir-se adequadamente. 27<br />
31
No caso das mulheres, limitavam-se a elas as capacidades restritas ao âmbito<br />
dos sentimentos: sensibilidade estética, solicitude, sabedoria materna, encantos sociais<br />
instintivos. Convenientemente, essa separação negava suas possibilidades de<br />
participação ativa e as mantinham distantes do direito do voto, do direito de freqüentar<br />
uma instituição de aprendizado superior ou possuir conta bancária independente, da<br />
igualdade <strong>no</strong>s processos de divórcio e de outros direitos considerados privativos dos<br />
homens. 28<br />
Na sociedade oitocentista triunfava uma moral do merecimento, na qual as<br />
biografias pessoais resumiam-se a uma sucessão de feitos, definidores do caráter de<br />
cada um. Aos homens, sua conduta em relação ao trabalho era <strong>no</strong>tadamente importante.<br />
Trabalhar para o burguês era um imperativo ético, um princípio ao qual deveria aderir<br />
como demonstração de seu caráter irrepreensível. Quanto mais trabalhasse, maior seria<br />
o reconhecimento de seu esforço.<br />
A família foi uma instituição altamente idealizada pelos vitoria<strong>no</strong>s. Na era dos<br />
talentos individuais, era o único grupo de interdependência legítima, considerado o<br />
motivo principal da busca de sucesso material. Diferentemente do espaço público, ali<br />
cada um tinha seus papéis pré-estabelecidos e não estava em concorrência com os<br />
outros. 29 A privacidade tornava-se um importante valor <strong>no</strong> Ocidente, 30 era a essencial<br />
separação entre a vida doméstica e o resto do mundo. O ambiente privado – o idílico e<br />
tranqüilo lar burguês - se constituiu como o local da máxima liberdade individual, e<br />
também da máxima solidão social.<br />
*<br />
32
O fracasso em resistir aos apelos da carne também foi considerado um autêntico<br />
reflexo de fraqueza moral. A força de vontade, em relação ao sexo, assim como a<br />
qualquer outro aspecto da vida, separava a sociedade entre aqueles que eram ou não<br />
bem-sucedidos. Resistir às pulsões naturais era alcançar o mais alto grau de civilidade<br />
pelo uso da razão e não ceder mesmo às tentações mais instintivas, ou seja, às realmente<br />
perigosas porque animalescas. A civilização, de forma geral, apoiava-se na repressão<br />
das urgências sexuais. 31 O indivíduo verdadeiramente respeitável mostrava a força de<br />
seu caráter ao não se deixar seduzir.<br />
A sexualidade racionalizada desenvolvia-se concomitantemente a um <strong>no</strong>vo<br />
modelo de casamento romântico, que substituía gradualmente o matrimônio arranjado,<br />
característico das relações aristocráticas. Por serem acertos de interesses e não laços<br />
sentimentais, essas alianças nas cortes absolutistas trazia em seu bojo um equivalente<br />
entre os papéis femini<strong>no</strong>s e masculi<strong>no</strong>s nessas sociedades. 32 Ainda que as elites<br />
mantivessem a prática das bodas negociadas pelos pais, a tendência da união por amor<br />
ia se tornando a regra. O casamento burguês definia-se então pela busca do par ideal: ao<br />
homem trabalhador, bem-sucedido, discreto e inteligente, seu correlato era a mulher<br />
dedicada, submissa e responsável pelo bom andamento da esfera familiar. Gerenciar o<br />
lar de classe média significava comprar as provisões, supervisionar os empregados,<br />
conservar-se prudentemente dentro do orçamento doméstico, assumir o papel principal<br />
na criação dos filhos, com os quais <strong>no</strong>rmalmente passavam mais tempo que os seus<br />
maridos, presidir com graça o que os contemporâneos costumavam chamar de<br />
“suplício doméstico” sempre dando a melhor impressão possível como anfitriã. 33<br />
Além de ser a metade decorativa do casal, bibelô protegidos <strong>no</strong> espaço privado, deveria<br />
ser a fiel colaboradora de seu esposo, apoiando-o nas decisões e <strong>no</strong>s fracassos.<br />
33
A idealização do núcleo familiar não permitia brechas para o desejo extra-<br />
conjugal. Paradoxalmente, a verdadeira obsessão com a qual a civilização burguesa<br />
insistia que a mulher era essencialmente um ser espiritual implicava que os homens não<br />
o eram 34 , ou seja, ao mesmo tempo em que se pregava o modelo femini<strong>no</strong> de<br />
subserviência, era convenientemente interessante aos homens manifestarem atração<br />
constante por mulheres e por sexo para evitar rumores de efeminados ou de pouco viris.<br />
A moralidade burguesa criava esse tipo de hipocrisia consciente em relação ao sexo, ao<br />
esperar que mulheres, teoricamente, não se interessassem por ele e que homens não o<br />
praticassem fora de suas casas. 35<br />
Esse temor da masculinidade desviada é bastante complexo uma vez que, na<br />
construção de uma sexualidade caracteristicamente burguesa, o gosto pelo mesmo sexo<br />
começava a ser concebido como uma doença. Um <strong>no</strong>vo padrão de relações sexuais<br />
admitia apenas o desejo sexual por mulheres, e era esse desejo que determinava a<br />
condição masculina. Portanto, aquilo que <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> de<strong>no</strong>mi<strong>no</strong>u-se de<br />
homossexualidade e heterossexualidade não são distinções presentes na natureza<br />
humana universal. 36 São concepções que surgiram principalmente devido à<br />
cientifização dos assuntos do sexo por parte da medicina. Diferentes das designações<br />
populares anteriormente utilizadas (como sodomitas, lésbicas, tríbades), essa<br />
medicalização da sexualidade privada propõe a linguagem que indica uma desordem na<br />
própria constituição do indivíduo. Um tipo de maniqueísmo que coloca de um lado o<br />
heterossexual, “<strong>no</strong>rmal” e bom – portanto saudável, e do outro o doente homossexual<br />
“a<strong>no</strong>rmal” e pervertido.<br />
*<br />
34
De fato, a Revolução burguesa do fim dos setecentos marcava também uma<br />
revolução sexual, pelo me<strong>no</strong>s <strong>no</strong>s discursos. Para o vitoria<strong>no</strong> ideal, antes de tudo, o<br />
casamento era o único local da sexualidade lícita; mas, mesmo nele, as relações<br />
deveriam ser moderadas. A polêmica historiográfica em tor<strong>no</strong> do assunto teria origem,<br />
em primeiro lugar, <strong>no</strong> exagero da propagação desse ideal que teria sido, em verdade,<br />
uma reação contra o estereótipo da aristocracia devassa e libertina. Em segundo lugar,<br />
<strong>no</strong> excesso de moralismo teórico que esconderia uma prática sexual satisfatória, e não<br />
abstêmia. Por último, <strong>no</strong>s comentários mordazes de críticos da burguesia, tanto <strong>no</strong><br />
<strong>século</strong> <strong>XIX</strong> como posteriormente, contra uma certa hipocrisia vitoriana. 37<br />
Criaram-se, assim, as duas caricaturas extremistas e opositoras: a do aristocrata<br />
inescrupuloso e degenerado (que tinha o alto clero como seu cúmplice – a figura do<br />
“bispo bonachão” é recorrente <strong>no</strong> imaginário liberti<strong>no</strong> 38 ) e o do burguês<br />
dissimuladamente purita<strong>no</strong>. Um exemplo do primeiro caso foi a grande circulação de<br />
panfletos de cunho por<strong>no</strong>gráfico, <strong>no</strong> período revolucionário, que acentuavam o caráter<br />
imoral da <strong>no</strong>breza, expondo os reis depostos, Maria Antonieta e Luís XVI, a primeira<br />
como uma devassa da mais alta estirpe e o segundo, obscenamente efeminado. Nesses<br />
panfletos, a degeneração sexual andava de mãos dadas com a corrupção política.<br />
Contrapondo-se – em geral implicitamente - aos aristocratas degenerados e aos<br />
padres sodomitas do Antigo Regime, havia o amor saudável dos <strong>no</strong>vos patriotas. 39 A<br />
libertinagem desvairada seria substituída pelo autocontrole higiênico: a por<strong>no</strong>grafia que<br />
degradava a <strong>no</strong>breza elevava o ascetismo burguês.<br />
Ao mesmo tempo, buscava-se uma sexualidade caracteristicamente burguesa que<br />
servisse de instrumento de afirmação de classe ao atribuir a si uma prática sexual<br />
específica – concomitantemente a uma <strong>no</strong>va concepção do corpo, da higiene, da<br />
imagem, do vestuário. Seria, antes de mais nada, uma transposição, sob outras formas,<br />
35
dos procedimentos utilizados pela <strong>no</strong>breza para marcar e manter sua distinção de<br />
casta; pois a aristocracia <strong>no</strong>biliárquica também afirmara a especificidade de seu<br />
próprio corpo. Mas era na forma de sangue, isto é, da antiguidade das ascendências e<br />
do valor das alianças; a burguesia, para assumir um corpo, olhou, ao contrário, para a<br />
sua descendência e da saúde do seu organismo. O “sangue” da burguesia foi seu<br />
próprio sexo. 40 Ao substituir a ordem aristocrática, o sangue azul, impôs um organismo<br />
são e uma sexualidade sadia, seguindo preceitos tipicamente burgueses e <strong>no</strong>vos – e por<br />
isso, talvez, tão intransigentemente criticados.<br />
Os discursos referentes à moralidade vitoriana dão a entender que o mundo<br />
burguês era perseguido pelo sexo, ou ainda, pela proibição do sexo. Certamente exigia-<br />
se a discrição sobre determinados assuntos e, mesmo concernente ao vestuário, nunca o<br />
corpo fora tão coberto <strong>no</strong> caso das mulheres, e pouco chamativo <strong>no</strong> caso dos homens,<br />
numa tentativa de dessexualizar a imagem pessoal. Porém, chamam a atenção as<br />
histórias fabulosas sobre um severíssimo decoro imposto pela etiqueta vitoriana que<br />
chegava ao ponto de obrigar que se escondesse os objetos que lembrassem partes do<br />
corpo huma<strong>no</strong>, como as pernas das mesas e dos pia<strong>no</strong>s, ou ainda que, ao comer,<br />
pedissem não o peito, mas o colo da galinha.<br />
Ainda que não seja possível afirmar veementemente que a vida sexual dos casais<br />
vitoria<strong>no</strong>s fosse lascivamente admirável, tampouco é possível concordar que a classe<br />
média era contra o sexo. É possível acreditar que, por muito que se falasse acerca do<br />
sexo (mesmo quando para se dizer de sua proibição), a profusão de discursos, antes de<br />
evitar o intercurso, promovia uma prática sexual mais consciente. Durante mais de um<br />
<strong>século</strong> os historiadores que desdenhavam os vitoria<strong>no</strong>s passaram adiante a calúnia de<br />
que os maridos burgueses daquela época se sentiam compelidos a recorrer a<br />
prostitutas para compensar a inescapável frustração sexual <strong>no</strong> lar. Evidentemente<br />
36
havia os que faziam isso. Todavia o remédio mais seguro era frequentemente mais e<br />
melhor sexo dentro do matrimonio. Mais e melhor, ainda que sempre moderadamente.<br />
A grande chave, talvez, seja entender que parte do treinamento moral para os<br />
burgueses respeitáveis deve ser a transformação do desejo inato e selvagem em<br />
satisfação civilizada e afável. 41 No limite entre o revelado e o oculto, a sexualidade<br />
vitoriana parece ter sido mais livre do que a literatura produzida insiste em afirmar.<br />
*<br />
Aos homens, a razão; às mulheres, o sentimento. Eco<strong>no</strong>micamente, esses<br />
binômios se manifestavam <strong>no</strong>s papéis sociais dos gêneros, <strong>no</strong>s quais o homem, chefe de<br />
família, se orgulha de seus negócios e de seus rendimentos e, especialmente, de poder<br />
arcar com o ócio de sua mulher. Porque a ocupação ideal da mulher burguesa é a<br />
dedicação ao lar e o cuidado com as tarefas domésticas, na esfera pública acabava se<br />
ocupando com todo tipo de amenidade social, demonstrando sua incapacidade de lidar<br />
com “assuntos sérios”. O <strong>no</strong>vo modelo de relações entre os sexos resulta numa<br />
sociedade que rejeita ao homem a prática do ócio, relegando à sua esposa essa matéria.<br />
Esse cenário ajustava-se perfeitamente às aspirações das elites, <strong>no</strong> entanto, a<br />
pequena burguesia passava por inúmeros percalços na manutenção de uma imagem de<br />
respeitabilidade. Aquilo que para as classes altas era considerado consumo corriqueiro<br />
transformava-se em um verdadeiro luxo: jantar num restaurante, comprar entrada para<br />
um concerto, passar férias fora de casa, mandar fazer um casaco <strong>no</strong>vo, adquirir móveis<br />
confortáveis. Os quadros em suas paredes, exceto talvez uma gravura religiosa, eram<br />
cortados de revistas; seus filhos entravam para a força de trabalho tão cedo quanto a<br />
lei permitisse. E, ainda assim, desdobravam-se em não aparentar situação pior do que a<br />
37
que se encontravam. Preocupavam-se e<strong>no</strong>rmemente em não descambar para o<br />
proletariado, razão pela qual insistiam quase comicamente em conservar modos<br />
burgueses formais e incutir <strong>no</strong>s filhos padrões éticos da burguesia. Poderiam permitir-<br />
se alguma extravagância <strong>no</strong> dia do pagamento, ou fazer arranjos domésticos que os<br />
bons burgueses desdenhariam, mas eram gente respeitável. Não eram proletários! 42<br />
E apesar das desigualdades, a penetração de padrões e valores da classe alta e<br />
média ocorreu amplamente <strong>no</strong> operariado. Todo um conjunto de preceitos que incluíam<br />
a respeitabilidade e a virtude, o recato e a discrição, infiltrou-se nas ordens mais<br />
humildes. Mesmo que não consumissem da mesma maneira, procuravam na medida do<br />
possível comportarem-se de acordo com a etiqueta burguesa e <strong>no</strong> vestuário dos<br />
trabalhadores fabris isso era bastante perceptível: usavam as mesmas modelagens e<br />
cores, em opções baratas. Ainda que não possuíssem bens materiais para dispor, trocar<br />
ou vender, contavam com uma propriedade primeira, seus corpos. E dispunham dele, de<br />
sua força física, para garantir sua sobrevivência. Em épocas utilitaristas, o corpo serve,<br />
inclusive, para manter a dignidade de um homem através do trabalho. A vadiagem, o<br />
desemprego ou o ócio masculi<strong>no</strong> eram inaceitáveis, eram imorais, visto que, em última<br />
instância qualquer pessoa tem seu corpo para servir ao mercado. Não trabalhar se<br />
tornava degradante agora.<br />
Tal mudança de concepção é bastante oportuna visto que a maior parte da<br />
população urbana efetivamente não contava com nada além do próprio corpo. Nas<br />
fábricas, a repetição contínua da mesma tarefa leva o operariado superexplorado por<br />
uma jornada de trabalho muito longa a viver subordinado a determinações que são<br />
exteriores a ele, não produzindo nada que realmente crie, invente ou deseje. Afastados<br />
de qualquer atividade do pensamento, são homens reduzidos a seres automatizados, mas<br />
não racionais. Porque se transforma nesse animal amorfo e domesticado, cansado e sem<br />
38
ânimo, vira apenas mais um, inserido <strong>no</strong> rebanho de centenas de outros com os quais<br />
convive e sequer se relaciona. Era, ironicamente, o homem-máquina tão festejado do<br />
<strong>século</strong> anterior.<br />
*<br />
Nos grandes centros urba<strong>no</strong>s do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, essas realidades conviviam lado a<br />
lado. A miséria e o luxo atravessam as mesmas ruas. Os diferentes ofícios se<br />
encontravam, homens e mulheres se esbarravam, sem jamais se conhecerem. Figuras<br />
tipicamente urbanas surgem para assistir o espetáculo da vida moderna, como o flanêur<br />
e o dândi. As principais capitais culturais eram Paris e Londres, mas também havia<br />
Viena e Berlim. A Inglaterra, país mais industrial, alcançava, em meados do <strong>século</strong>, a<br />
posição de primeiro a ter uma população majoritariamente urbana. Ainda assim, a<br />
Holanda era a sociedade mais urbanizada e instruída, e com a tolerância política e<br />
religiosa desde o fim dos setecentos. A Alemanha, a partir da segunda metade do<br />
<strong>século</strong>, investia pesado para se industrializar enquanto na França, os rumos da eco<strong>no</strong>mia<br />
caminhavam para uma abertura liberal-capitalista cada vez maior e, apesar das<br />
atividades rurais predominarem, lentamente se industrializou. Seus reis já eram, em<br />
larga medida, burgueses, assim como na Inglaterra, a Rainha Vitória. Próximo do fim<br />
do <strong>século</strong> – na transição do período vitoria<strong>no</strong> para o eduardia<strong>no</strong> – os valores morais da<br />
burguesia já estavam profundamente consolidados na Europa Ocidental e também <strong>no</strong>s<br />
Estados Unidos.<br />
Grande movimentação urbana e individualismo: eis a tônica da sociabilidade<br />
oitocentista. No meio do caos das cidades, sensações indefiníveis de ansiedade e<br />
nervosismo alternavam-se ao tédio e à mo<strong>no</strong>tonia. Esse estado de espírito, que<br />
39
chamavam mal do <strong>século</strong>, um misto de tristeza, cansaço e desorientação, abate a<br />
sociedade. Um dos causadores dessa enfermidade difusa era, certamente, a angústia<br />
gerada pelas longas jornadas de trabalho e sua conseqüência direta, a alienação.<br />
Também a excessiva repressão do autocontrole, assim como o apego desmesurado ao<br />
materialismo. Afundados em valores capitalistas, os indivíduos se viam obrigados a<br />
ganhar dinheiro e consumir compulsivamente, não pelo prazer obtido nessas<br />
realizações, mas como um fim em si mesmo. Histeria, neurastenia e neurose eram as<br />
doenças típicas do fim do <strong>século</strong>: moléstias da alma. O fim da espontaneidade<br />
demandou <strong>no</strong>vas válvulas de escape. Ao matar Hyde, o vitoria<strong>no</strong> viu, a si próprio, de<br />
<strong>luto</strong>.<br />
40
Bibliografia<br />
ARIES, Philippe e CHARTIER, Roger (orgs). História da vida privada 3: da<br />
Renascença ao Século das Luzes. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 1991.<br />
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar Ed., 1994. Volumes I e II.<br />
_____________. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001<br />
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução: Maria<br />
Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1984.<br />
_________________. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.<br />
GAY, Peter. O <strong>século</strong> de Schnitzler: A formação da cultura da classe média: 1815-<br />
1914. Tradução: S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.<br />
HOBSBAWM. Eric. A Era do Capital, 1848-1875. Tradução: Lucia<strong>no</strong> Costa Neto. Rio<br />
de Janeiro, Paz e Terra, 1996.<br />
HUNT, Lynn (org.) A invenção da por<strong>no</strong>grafia: obscenidades e origens da<br />
modernidade. Tradução: Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999.<br />
VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo. Uma história da higiene corporal. Tradução:<br />
Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução: Pietro<br />
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.<br />
41
Notas:<br />
1 É a esse processo que o sociólogo alemão Norbert Elias de<strong>no</strong>mina Processo Civilizador. Partindo do fim<br />
da Idade Média, Elias elenca uma série de comportamentos e suas respectivas mudanças até o fim do<br />
<strong>século</strong> XVIII, para mostrar o quanto condutas consideradas banais até os dias atuais, foram, na verdade,<br />
parte de um conjunto de transformações passadas para as gerações seguintes. Ou seja, mesmo o me<strong>no</strong>r<br />
dos atos, quando buscado em retrospecto, foi culturalmente construído para ser considerado, enfim,<br />
civilizado.<br />
2 O agrupamento do rei e seus familiares, juntamente de seus principais servidores e conselheiros e suas<br />
respectivas famílias formavam o que de<strong>no</strong>minamos corte. Dependendo do rei<strong>no</strong>, dividiam o mesmo<br />
espaço, o castelo do rei, centenas, às vezes milhares, de pessoas. Era a estrutura mais representativa dos<br />
Antigos Regimes, o <strong>no</strong>vo local de ação dos reis (antes reservado às guerras), que verdadeiramente<br />
influenciava toda a sociedade, apesar da crescente relevância econômica dos centros urba<strong>no</strong>s. Porque se<br />
tornava um <strong>no</strong>vo tipo de sociabilização, sem antecedentes na história, as cortes exigiam <strong>no</strong>vas regras de<br />
conduta, que proporcionassem a convivência possível entre a nata da aristocracia.<br />
3 Isto é, ainda que se diferenciassem em alguns aspectos, as cortes francesas, italianas e alemães seguiam<br />
basicamente as mesmas <strong>no</strong>rmas, o que pode ser percebido pelas análises que Norbert Elias faz dos<br />
códigos de boas maneiras dessas cortes, muito similares na maioria dos pontos. Um exemplo bastante<br />
esclarecedor é relativo às “boas maneiras à mesa”, todos eles sugerindo que se evitem barulhos<br />
desagradáveis ou que não se limpe orifício corporal algum enquanto as refeições são servidas. Enfim, são<br />
regras ainda muito rudimentares mas que exibem a preocupação nascente com o refinamento dos gestos.<br />
4 A partir dos <strong>século</strong>s da Renascença, era possível a compra de títulos pela elite burguesia, já bastante<br />
enriquecida. A chamada <strong>no</strong>breza de toga só pôde aparecer quando os atributos da força bélica foram<br />
substituídos pela riqueza.<br />
5 A citação, retirada de Philippe Aries, é altamente significativa em relação à importância das aparências a<br />
partir dos <strong>século</strong>s da Renascença. O historiador francês faz dela sinônimo de honra, e para manter a honra<br />
recorria-se a todo tipo de recurso que visasse a ostentação da imagem. (ARIES. História da vida privada.<br />
Página 9)<br />
6 A citação é do historiador francês Roger Chartier, conhecido por suas análises sobre História da Leitura.<br />
Chartier é um dos expoentes da chamada História Cultural, ramo da historiografia que se contrapõe aos<br />
modelos teóricos da historiografia tradicional, política e positivista, assim como da história marxista que<br />
limita o processo histórico às teorias econômicas e de lutas sociais. Juntamente de Phillippe Aries, outro<br />
importante historiador, já falecido, organizou o volume 3 da famosa série História da vida privada.<br />
(CHARTIER. Historia da vida privada. Página 166.)<br />
42
7 Uma história das práticas de higiene corporal, desde a Idade Média até o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, foi escrita pelo<br />
historiador francês Georges Vigarello, tendo como alicerce as transformações de uma cultura do corpo<br />
decorrente do processo civilizador teorizado por Norbert Elias. (VIGARELLO. O limpo e o sujo. Páginas<br />
45-67)<br />
8 Idem.<br />
9 A riqueza total da <strong>no</strong>breza parisiense cresceu mais de 700% entre 1700 e 1789. E era uma riqueza sem<br />
reinvestimento: destinada integralmente aos gastos da corte.<br />
Essa herança de fidalguia se tornava problemática quando não existia mais seu correspondente em<br />
riquezas. Cabia às famílias abrir mão de seus títulos ou, me<strong>no</strong>s indig<strong>no</strong>, contrair empréstimos até a<br />
bancarrota – o que de fato ocorria.<br />
10 O pertencimento a corte tinha valor em si mesmo pelo simples reconhecimento de superioridade que<br />
pressupunha. Por isso, qualquer sacrifício era valido para manter-se lá, o dinheiro gasto pouco importava<br />
enquanto valor monetário. Quando se nasce e se é educado numa sociedade que dá mais valor à<br />
aquisição de um título de <strong>no</strong>breza que à acumulação de riquezas através do trabalho, na qual ser<br />
membro da corte e, mais ainda, ter o privilégio de privar com o rei, são posições que abrem-se em<br />
virtude das estruturas de poder – perspectivas sociais particularmente importantes para toda a vida, é<br />
difícil fugir à necessidade de adaptar ambições pessoais às <strong>no</strong>rmas e valores sociais em vigor ou perder<br />
o lugar na corrida do êxito, por me<strong>no</strong>s que a posição social da família e a capacidade individual ajudem<br />
à vitória. (ELIAS. A sociedade de corte. Página 50)<br />
11 Principalmente a corte francesa, já que as camadas sociais na França eram mais separadas e a etiqueta<br />
de corte mais rígida, o que a diferenciava bastante da burguesia. Na Inglaterra, desde o <strong>século</strong> XVI, as<br />
cortes já contavam com um número grande de burgueses e a própria monarquia inglesa era mais liberal<br />
em relação às demais <strong>no</strong> <strong>século</strong> XVIII. Na Alemanha, o absolutismo nunca teve um representante forte<br />
até esse período e a existência de diversas cortes tornava a courtoisie mais simples, ainda que imitassem a<br />
francesa.<br />
12 O ritual matinal de Luís XIV foi um dos exemplos mais explorados <strong>no</strong> tocante à teatralização do<br />
cerimonial real. Tanto Norbert Elias quanto o filósofo brasileiro Renato Janine Ribeiro debruçaram-se <strong>no</strong>s<br />
detalhes do evento. Desde seu despertar, o “rei-sol” era cercado por membros da corte, que lhe ajudavam<br />
em todas as etapas matinais. Participar do ritual era uma honra incomensurável: esse sentimento foi<br />
chamado por Elias de fetiche do prestígio, uma vez que indicava a posição hierárquica e, principalmente,<br />
a estima do rei para com os cortesãos escolhidos. (ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar Ed., 2001; RIBEIRO, Renato Janine. A etiqueta <strong>no</strong> Antigo Regime. São Paulo: Moderna,<br />
1999.)<br />
43
13 JACOB, Margaret. O mundo materialista da por<strong>no</strong>grafia. In: HUNT, Lynn. A invenção da por<strong>no</strong>grafia.<br />
Página 171.<br />
14 A personalidade da criança é tão modelada por medos que ela aprende a agir de acordo com o padrão<br />
predominante de comportamento, sejam esses medos gerados pela força física direta ou pela privação,<br />
pela restrição de alimentos ou prazeres. Os medos e a ansiedade criados pelo homem, sejam eles medos<br />
ao que vem de fora ou ao que está dentro de nós, finalmente mantêm em seu poder até mesmo o adulto. A<br />
vergonha, o medo da guerra, de Deus, o medo que o homem sente de si mesmo, de ser dominado pelos<br />
seus próprios impulsos afetivos, todos eles são direta ou indiretamente induzidos nele por outras pessoas.<br />
(ELIAS. O processo civilizador. Página 270.)<br />
15 ELIAS. O processo civilizador. Volume 1. Página 198.<br />
16 “Corpo dócil” é uma expressão cunhada pelo importante filósofo francês Michel Foucault <strong>no</strong> texto<br />
Vigiar e Punir, de 1975, que trata dos métodos coercitivos e punitivos <strong>no</strong> decorrer da história. Segundo o<br />
autor, as práticas disciplinadoras constituem uma espécie de Biopoder, cujo objetivo último é transformar<br />
o corpo huma<strong>no</strong> natural e instintivo num corpo dócil e útil, aproveitando ao máximo todas as suas<br />
potencialidades produtivas. A internalização dessas disciplinas teria alcançado seu ápice na sociedade<br />
contemporânea. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.)<br />
17 É esse o objetivo último do Panóptico, utilizado em escola, prisões, hospitais ou em qualquer<br />
instituição que evite a violência física mas que necessita de ordem pacífica entre os indivíduos. Estando<br />
ocupado ou não por um vigia, obriga a todos a seguirem estritamente as <strong>no</strong>rmas. Os indivíduos se<br />
acostumam de tal maneira a manterem uma conduta desejável que não mudam mesmo na hipótese da não<br />
estarem sendo observados. (FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 2003.)<br />
18 FOUCAULT. Vigiar e Punir. Página 143.<br />
19 Crianças não atingiram a idade da total submissão à disciplina tal como os adultos, por isso têm<br />
pequena participação social. Se freqüentam a escola, estão já sendo ensinadas a se adaptarem às regras.<br />
20 ELIAS. O processo civilizador. Volume 1. Página 204.<br />
21 O sociólogo alemão Max Weber foi o grande teórico dessa analogia entre o protestantismo e a<br />
formação do capitalismo. Afirma que os homens de negócios e do<strong>no</strong>s do capital, assim como os<br />
trabalhadores mais especializados e o pessoal mais habilitado técnica e comercialmente das modernas<br />
empresas é predominantemente protestante. (WEBER. Ética protestante e o espírito do capitalismo.<br />
Página 35.)<br />
22 WEBER. Ética protestante e o espírito do capitalismo. Página 123.<br />
44
23 VIGARELO. O limpo e o sujo. Página 238.<br />
Segundo o autor citado, existiam também algumas analogias entre o corpo e a máquina industrial que<br />
favorecia a promoção dos assuntos da higiene na sociedade eufórica com as máquinas. São exemplos: a<br />
propagação do uso do sabonete como uma “ferramenta” da limpeza assim como a descoberta de que o<br />
corpo transpira através da pele por conta da queima calórica - suor que seca porque se transforma em<br />
vapor, o mesmo procedimento das máquinas a vapor.<br />
24 Tomo emprestado a definição do homem burguês do célebre historiador naturalizado inglês, Eric<br />
Hobsbawm. Segundo ele, o burguês, eco<strong>no</strong>micamente, era um capitalista (isto é, o possuidor do capital,<br />
ou aquele que recebia renda derivada de tal fonte ou um empresário em busca de lucro, ou todas as<br />
coisas juntas) (...) Socialmente, as definições não eram tão claras, embora a “classe média” incluísse,<br />
desde que fossem abastados e bem estabelecidos: homens de negócios, proprietários, profissionais<br />
liberias e os escalões mais altos da administração, que eram um grupo numericamente bem peque<strong>no</strong> fora<br />
das capitais. A dificuldade está em definir os limites altos e baixos dessa camada dentro da hierarquia de<br />
status social (...) Uma das principais características da burguesia como classe era que consistia num<br />
corpo de pessoas com poder e influência, independentemente do poder e da influência derivados de<br />
nascimento ou status. Para pertencer a ela, um homem tinha que ser “alguém”; uma pessoa que contasse<br />
como indivíduo, por cause de sua riqueza, capacidade de comandar os outros, ou de influenciá-los. Para<br />
o autor, a principal característica do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, considerado por ele o período entre a Revolução<br />
Francesa e a Primeira Guerra Mundial, foi o triunfo e a transformação do capitalismo na forma<br />
historicamente específica de sociedade burguesa em sua versão liberal. (HOBSBAWM. Era do capital.<br />
Página 338.)<br />
25 O historiador alemão Peter Gay utiliza o termo vitorianismo de maneira mais ampla e abrangente e é<br />
assim que será empregado nesse trabalho. Segue sua definição: O uso costumeiro há muito define essa<br />
palavra como algo britânico e, mais precisamente, como algo que sugere os gostos, moralidade e modos<br />
ingleses. O sentido jamais ficou inteiramente confinado ao reinado da Rainha Vitória, pois em geral se<br />
reconhece a existência de vitoria<strong>no</strong>s antes de sua subida ao tro<strong>no</strong> em 1837 a após a sua morte em 1901.<br />
Em suma, o <strong>no</strong>me da soberana vem sendo aplicado de maneira ampla ao <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, isto é desde a<br />
derrota de Napoleão em 1814 até a eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914. Mas também havia<br />
vitoria<strong>no</strong>s fora do rei<strong>no</strong>. Nos a<strong>no</strong>s recentes, historiadores da cultura americana domesticaram o termo; e<br />
na minha opinião ele pode ser ainda mais generalizado. Não quero com isso dizer que os “vitoria<strong>no</strong>s”<br />
franceses, alemães ou italia<strong>no</strong>s fossem exatamente iguais a seus contemporâneos britânicos ... mas estou<br />
convencido de que existe uma grande semelhança de família entre os burgueses, em que pesem todos as<br />
diferenças. (GAY. O <strong>século</strong> de Schnitzler. Página 17.) Na série A experiência burguesa: da Rainha<br />
Vitória a Freud, o historiador simplifica ainda mais a questão, ao utilizar vitoria<strong>no</strong> como sinônimo de<br />
“<strong>século</strong> <strong>XIX</strong>”. Existiram “vitoria<strong>no</strong>s” antes e depois da rainha Vitória; o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> estendeu-se da<br />
derrota de Napoleão, em 1815, à eclosão da Primeira Guerra Mundial, em agosto de 1914. Além do<br />
45
mais, os traços que corretamente consideramos como característicos dos vitoria<strong>no</strong>s não estavam<br />
confinados à Grã-Bretanha. (GAY, Peter. A experiência burguesa da rainha Vitória a Freud. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 1988, Volume 3, Página 11)<br />
É possível também falar em uma moral vitoriana, em conformidade com esse momento histórico. Essa<br />
seria um conjunto de valores que se impõem na sociedade após o período das revoluções (Revolução<br />
Francesa à Primavera dos Povos). O período de paz e progresso econômico e tec<strong>no</strong>lógico é dominado por<br />
uma moral que supõe bons costumes, puritanismo, seriedade, retidão, discrição. Uma moral muito rígida<br />
e, por isso, frequentemente considerada hipócrita por seus críticos mais audazes.<br />
26 A formação de uma cultura própria da classe média burguesa <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> é o tema do texto de Peter<br />
Gay do qual essa citação foi retirada. O pa<strong>no</strong> de fundo para os comentários do historiador é a vida e os<br />
escritos do romancista vienense Arthur Schnitzler. (GAY. O <strong>século</strong> de Schnitzler. Página 54.)<br />
27 O traje faz o homem, dizia um ditado alemão, e nenhuma época seguiu mais à risca tal idéia do que a<br />
época em que a mobilidade social poderia de fato colocar numerosas pessoas dentro da situação<br />
histórica inteiramente <strong>no</strong>va de desempenhar papéis sociais <strong>no</strong>vos (e superiores), tendo que usar as<br />
roupas apropriadas. (HOBSBAWM. Era do Capital. Página 321.) O papel do vestuário na sociedade<br />
vitoriana será longamente analisado <strong>no</strong> Capítulo 2 deste trabalho.<br />
28 GAY. O <strong>século</strong> de Schnitzler. Página 68.<br />
29 O ponto crucial era o de que a estrutura da família burguesa estava em direta contradição com a<br />
sociedade burguesa. Dentro dela, a liberdade, a oportunidade, o nexo do dinheiro e a busca do lucro<br />
individual não eram a regra. (...) Mas também pode ser que a desigualdade essencial sobre a qual o<br />
capitalismo se apoiava encontrasse uma expressão necessária na família burguesa. Precisamente porque<br />
não era baseada em desigualdades coletivas, institucionalizadas e tradicionais, a dependência precisava<br />
ser uma relação individual. Já que a superioridade era algo tão incerto para o indivíduo, ela precisava<br />
tomar uma forma que fosse permanente e segura. (HOBSBAWM. Era do capital. Página 334.)<br />
30 A concepção medieval de coletividade, mantida na maior parte da população durante o período<br />
moder<strong>no</strong>, entendia o homem como um elemento de um todo maior e mais importante, não deixando<br />
espaço para a necessidade de uma vida privada.<br />
31 HOBSBAWM. Era do capital. Página 328.<br />
32 A desmilitarização das cortes contribuía para criar uma atmosfera um pouco mais pacífica. Como<br />
acontece em todas as ocasiões em que homens são obrigados a renunciar à violência física, aumentou a<br />
importância social das mulheres. (...) A riqueza das grandes cortes dava à mulher a possibilidade de<br />
preencher seu tempo de ócio e dedicar-se a interesses de luxo. E assim, foi em tor<strong>no</strong> de mulheres que se<br />
46
formaram os primeiros círculos de atividade intelectual pacífica. (ELIAS. O processo civilizador.<br />
Volume 1. Páginas 77-8.)<br />
33 GAY. O <strong>século</strong> de Schnitzler. Página 219.<br />
34 HOBSBAWM. Era do Capital. Página 327.<br />
35 A expressão “hipocrisia consciente” é emprestada de Eric Hobsbawm que afirma que, nas questões<br />
relativas ao sexo, a moralidade oficial burguesa batia de frente com as demandas da natureza humana:<br />
Aqui, as regras eram perfeitamente entendidas, incluindo a necessidade de uma certa discrição <strong>no</strong>s casos<br />
onde a estabilidade da família ou da propriedade burguesa pudesse ser ameaçada: paixão, como<br />
qualquer italia<strong>no</strong> da classe média ainda conhece, é uma coisa, “a mãe dos meus filhos” é outra bem<br />
diferente. (HOBSBAWM. Era do Capital. Página 325.)<br />
36 O historiador da homossexualidade Randolph Trumbach comenta que antes do <strong>século</strong> XVIII na Europa,<br />
o homem adulto tinha relações sexuais com mulheres e adolescentes do sexo masculi<strong>no</strong>. Apenas as<br />
relações matrimoniais com mulheres eram legais e aprovadas pela Igreja, mas os homens se envolviam<br />
em outros tipos de relacionamentos, da prostituição ao adultério e estupro, que eram ilegais na<br />
Inglaterra e certamente imorais em toda Europa. Esse comportamento podia, entretanto, ser honroso<br />
para os homens quando revelava o seu poder. As relações homossexuais também eram condenadas mas<br />
podiam ser honrosas quando afirmavam o poder do homem. Na maior parte da Europa, e certamente na<br />
Inglaterra., isso ocorria quando homens adultos penetravam em garotos adolescentes, que<br />
representavam um estado intermediário entre homem e mulher. Supostamente todos os homens eram<br />
capazes de praticar tais atos com garotos. (...) Essas praticas sexuais entre homens e garotos não<br />
implicavam – e esse é o ponto crucial – o estigma da efeminação ou do comportamento inadequado do<br />
homem. Essa idéia remonta ao XVIII e permaneceu. Depois de 1700 esse tradicional comportamento<br />
homossexual masculi<strong>no</strong> foi substituído por um <strong>no</strong>vo padrão de relações. (...) A prostituta e o sodomita<br />
revelavam os limites do comportamento que a sociedade considerava apropriado para homens e<br />
mulheres. Para essa maioria, as mulheres de verdade não eram prostitutas e os homens de verdade não<br />
eram sodomitas. Portanto, aquilo que <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> de<strong>no</strong>mi<strong>no</strong>u-se de homossexualidade e<br />
heterossexualidade não são distinções presentes na natureza humana universal. (TRUMBACH. Fantasia<br />
erótica e libertinagem masculina <strong>no</strong> iluminismo inglês. In: HUNT. A invenção da Por<strong>no</strong>grafia. Páginas<br />
275-278.)<br />
37 O discurso sobre a repressão do sexo <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> vigorou na historiografia até que Michel Foucault<br />
batesse de frente com essa verdade já consolidada. Era razoavelmente fácil manter uma postura teórica<br />
que sustentava que até o XVII, o sexo não era considerado um assunto a ser escondido sequer disfarçado,<br />
sendo frouxos os códigos da grosseria, da obscenidade, da decência, se comparados com os do<br />
vitorianismo. Esse, por sua vez, teria finalmente limitado a sexualidade ao âmbito doméstico, privado; o<br />
casamento sendo o único local da sexualidade lícita. O sexo comedido, discreto, heterossexual e dentro do<br />
47
matrimônio seria o único tipo aceito e praticado pela sociedade. Para os críticos da sociedade utilitarista e<br />
monetarista, um prato cheio para denunciar a hipocrisia dessa pregação.<br />
O autor dedica um capítulo de sua História da Sexualidade aos textos que passaram a censurar o sexo e<br />
ditar um comportamento adequado, próprio da burguesia, desde o <strong>século</strong> XVII. Ao promoverem debates<br />
acalorados acerca da conduta moral ideal, não estariam, na verdade, promovendo um assunto que<br />
justamente buscavam refrear, limitar?<br />
Se a hipótese geralmente aceita a respeito da sexualidade é a repressiva, Foucault, por sua vez, afirma que<br />
a partir do <strong>século</strong> XVI, a “colocação do sexo em discurso”, em vez de sofrer um processo de restrição<br />
foi, ao contrário, submetida a um mecanismo de crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas<br />
sobre o sexo não obedeceram a um princípio de seleção rigorosa mas, ao contrário, de disseminação e<br />
implantação das sexualidades polimorfas e que a vontade de saber não se detém diante de um tabu<br />
irrevogável, mas se obsti<strong>no</strong>u em constituir uma ciência da sexualidade. (FOUCAULT. História da<br />
Sexualidade. Página 17.)<br />
38 Nos 120 dias de Sodoma do Marquês de Sade, provavelmente o mais importante autor da literatura<br />
libertina, o grupo de liberti<strong>no</strong>s que se isola <strong>no</strong> castelo de Siling conta com um clérigo. Irmão do celerado<br />
Duque de Blangis, o Bispo de ... é definido da seguinte maneira: A negrura de sua alma era a mesma [de<br />
seu irmão] assim como o pendor para o crime, o desprezo pela religião, o ateísmo, a velhacaria, mas<br />
tinha o espírito mais flexível e mais destro, mais criatividade para causar a morte de suas vítimas (...)<br />
Idólatra da sodomia ativa e passiva, com uma clara preferência por essa última, passava a vida sendo<br />
enrabado e esse prazer, que nunca requer um grande desgaste de forças, combinava perfeitamente com<br />
seus recursos limitados. Incestuoso, sodomita, assassi<strong>no</strong>, ladrão, pedófilo: o “Bispo de ...” , justamente<br />
por não ser especificado, podia ser qualquer um. Ou todos. (SADE, Marques de. Os 120 de Sodoma ou A<br />
escola da libertinagem. Tradução de Alain François. São Paulo: Iluminuras, 2006, Página 24.)<br />
39 HUNT, Lynn. A por<strong>no</strong>grafia e a revolução francesa. In: A invenção da Por<strong>no</strong>grafia. Página 336.<br />
A invenção da por<strong>no</strong>grafia reúne artigos de diferentes historiadores a respeito da tradição de escritos de<br />
cunho erótico e sexual <strong>no</strong> Ocidente durante o período moder<strong>no</strong>. Sobre o assunto, a historiadora <strong>no</strong>rte-<br />
americana Lynn Hunt – organizadora da publicação – escreve que Por<strong>no</strong>grafia e revolução parecem<br />
parceiras involuntárias e constrangidas. Nos <strong>século</strong> XVI, XVII e XVIII, a por<strong>no</strong>grafia foi escrita quase<br />
exclusivamente por homens; em geral, ainda que nem sempre, para um público de leitores masculi<strong>no</strong>s de<br />
classe alta, supostamente liberti<strong>no</strong>s, tanto nas idéias quanto <strong>no</strong> comportamento. Os liberti<strong>no</strong>s<br />
aristocráticos são, presumivelmente, representantes da decadência da moralidade aristocrática, que os<br />
revolucionários franceses desejavam erradicar. Os revolucionários franceses são retratados como<br />
purita<strong>no</strong>s – Robespierre, evidentemente, é o principal exemplo -, e é difícil imaginar esses homens<br />
rígidos e ascéticos aprovando a por<strong>no</strong>grafia. A por<strong>no</strong>grafia de motivação política a provocar a<br />
revolução ao abalar a legitimidade do Antigo Regime como sistema social e político. (Página 336.)<br />
48
40 Foucault complementa: A valorização do corpo deve mesmo ser ligada ao processo de crescimento e<br />
de estabelecimento da hegemonia burguesa; mas não devido ao valor mercantil alcançado pela força de<br />
trabalho, e sim pelo que podia representar política, econômica e, também, historicamente, para o<br />
presente e para o futuro da burguesia, a “cultura” de seu próprio corpo. (...) Perdoem-me aqueles para<br />
quem a burguesia significa elisão do corpo e recalque da sexualidade, aqueles para quem luta de classes<br />
implica <strong>no</strong> combate para suprimir tal recalque. A “filosofia espontânea” da burguesia talvez não seja<br />
tão idealista e castradora, como se diz; uma de suas primeiras preocupações, em todo o caso, foi o de<br />
assumir um corpo e uma sexualidade – de garantir para si a força, a perenidade, a proliferação secular<br />
deste corpo através de um dispositivo da sexualidade. (FOUCAULT. História da Sexualidade. Páginas<br />
117-18.)<br />
41 GAY. O <strong>século</strong> de Schnitzler. Páginas 100-102.<br />
42 Idem. Página 47.<br />
49
Capítulo 2:<br />
Luto<br />
Preto: a cor da morte. A separação dos gêneros pela aparência.<br />
Os homens adotam o negro na vestimenta. O <strong>luto</strong> femini<strong>no</strong> e a influência da Rainha Vitória.<br />
50
O caráter da cor tem a ver com o caráter da pessoa.<br />
Homens cultivados têm aversão às cores.<br />
Isso se deve em parte à fraqueza do órgão da visão,<br />
em parte ao gosto inseguro, que prefere se refugiar na completa negação.<br />
As mulheres agora se vestem frequentemente de branco, e os homens, de preto.<br />
O traje do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> é detestável. Sombrio, deprimente.<br />
O pecado é realmente o único elemento que dá colorido à vida moderna.<br />
Oscar Wilde. Aforismos. 1890.<br />
Goethe. Doutrina das cores. 1840.<br />
Quando os homens de cultura passaram a ter aversão às cores, encontrava-se a<br />
sociedade ocidental <strong>no</strong>s primeiros a<strong>no</strong>s do período vitoria<strong>no</strong>. A seriedade e a moral<br />
rígida, características desse momento foram, em larga medida, expressas pela adoção<br />
irrestrita do preto na vestimenta – tanto masculinas quanto femininas. Todo o processo<br />
de aniquilamento do ser huma<strong>no</strong> instintivo e de comportamento natural culmi<strong>no</strong>u na<br />
morte da espontaneidade, que <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> alcançou seu ápice. Morreram também as<br />
cores na aparência desse indivíduo, sóbrio e autocontrolado tanto interna quanto<br />
externamente.<br />
Foi nesse período, mais do que em qualquer outro anterior, que os homens<br />
vestiram preto. Anulando seus desejos e contendo seus corpos, a sociedade vitoriana<br />
adotou o <strong>luto</strong> como vestimenta cotidiana. Em meados daquele <strong>século</strong>, o negro das<br />
roupas tor<strong>no</strong>u-se o uniforme tanto das elites, aristocratas ou industriais, quanto das<br />
classes médias, comerciantes e profissionais liberais, e do operariado. A moda do <strong>luto</strong><br />
foi, então, uma moda para todos.<br />
51
*<br />
Em ple<strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, Goethe defendeu que a cor era mais do que um fenôme<strong>no</strong><br />
físico provocado pela incidência da luz na superfície das coisas. Desde Newton,<br />
duzentos a<strong>no</strong>s antes, e por prolongamento durante as Luzes, aceitava-se amplamente a<br />
tese de que cor e luz eram indissociáveis, existindo uma como conseqüência da outra e o<br />
empirismo iluminista aceitava as provas observáveis na natureza e as reprodutíveis em<br />
laboratórios pela utilização de prismas e lentes como comprovação da tese.<br />
Pois que esses argumentos não eram suficientes para Goethe. O escritor alemão<br />
foi um apaixonado pelo estudo das cores a ponto de não se satisfazer com a teoria<br />
newtoniana, muito simplista em sua opinião. Para ele, ainda que se pretendesse estudar<br />
a luz, e consequentemente a existência das cores, somente como um fenôme<strong>no</strong> físico,<br />
era necessário aliar esse conhecimento mais factual a uma associação entre as cores e a<br />
construção de uma linguagem sensível-moral, que se estabelecia <strong>no</strong> contato com o<br />
homem, ou melhor, entre uma cor e o órgão da visão <strong>no</strong> momento exato de sua<br />
percepção. Porém, os olhos não eram simples instrumentos passivos tais como as lentes<br />
dos laboratórios: sendo partes vivas e ativas do organismo, não apenas refletem<br />
mecanicamente as cores, mas sobretudo, as interpretam.<br />
Tal como um indivíduo mostra à sociedade o que é por meio de suas ações e<br />
suas paixões, também a luz se mostra por meio das cores: suas ações e paixões. O<br />
caráter da cor despertaria reações à alma humana e por isso, antes de serem apenas<br />
efeitos da luz, elas pertenceriam aos homens, à sua visão, à sua capacidade de agir e<br />
reagir perante elas. Nenhuma cor seria, então, absolutamente neutra – mero fenôme<strong>no</strong><br />
físico - porque a visão não é absolutamente passiva: Cada olhar envolve uma<br />
52
observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese: ao olharmos<br />
atentamente para o mundo, já estamos teorizando. 1<br />
Cores são conceitos, concepções ordenadas e interpretadas <strong>no</strong> momento da<br />
recepção. Dessa maneira, branco não é somente luz, mas conceito de luz; preto não é a<br />
falta da luz, mas o conceito de escuridão. Por sua definição científica, o preto<br />
representaria somente a ausência da luz; metaforicamente concebe uma idéia de<br />
obscuridade e negação, porque anula as outras cores, impondo-se. Não excita a retina,<br />
não estimula os sentidos, mantém os olhos em estado de repouso: melancólica e<br />
cômoda, ideal ao gosto inseguro do homem vitoria<strong>no</strong>.<br />
Na esfera ideológica, a relação entre a cor preta e a escuridão aparece desde a<br />
Antiguidade. Segundo o poeta Hesíodo, a divindade Noite é a mãe do deus Morte. Filha<br />
do deus primordial Caos, é a representante das Trevas. Simboliza não apenas um<br />
estágio primeiro da origem do mundo, como também a ausência da luz e da vida. 2<br />
Sendo assim, a deusa da Escuridão gerou a Morte: e desde então, desde os mitos<br />
cosmogônicos da Antiguidade arcaica grega, a sociedade ocidental nunca mais deixou<br />
de representar a morte através do preto.<br />
*<br />
Durante o período medieval, homens e mulheres vestiam-se com diversas cores.<br />
Foi por volta do a<strong>no</strong> mil que a roupa na cor preta tor<strong>no</strong>u-se própria de um tipo<br />
específico de vestuário: o monástico. A cor que, não tendo cor, apagava e afastava o<br />
eu 3 , trazia em seu cerne o princípio da impessoalidade, buscada pelas ordens religiosas<br />
que pregavam a vida ascética, <strong>no</strong>tadamente a beneditina e, posteriormente, a<br />
dominicana e a franciscana <strong>no</strong> <strong>século</strong> XIII. Suas vestes, confeccionadas em tecidos<br />
53
grosseiros poderia ser também parda, em tons de marrom ou cores escuras específicas<br />
dos tecidos brutos como a lã, mas logo o uso do negro tor<strong>no</strong>u-se como que uma marca<br />
de identificação desses religiosos, cujas características incluíam abraçar a pobreza, o<br />
desapego material, praticar a peregrinação. O preto desde então já indicava a abnegação<br />
e a contenção dos desejos desses homens.<br />
Porque dentro da Igreja o preto aparece como a cor da ausência, logo foi<br />
assumida pelo clero secular como a roupa própria para o <strong>luto</strong>, não por acaso <strong>no</strong><br />
momento em que a instituição gradualmente se apropriava dos ofícios do <strong>luto</strong>, até então,<br />
laicos. A incorporação da morte ao cerimonial da Igreja ocorreu conjuntamente a outros<br />
vez eram também conduzidos sem sua participação, como os casamentos e os batizados.<br />
Durante o fim da Alta Idade Média, a Igreja se consolida como a mais forte instituição<br />
ideológica da medievalidade, muito por ter se inserido e, consequentemente,<br />
mo<strong>no</strong>polizado esses ritos sociais. Assim, se a celebração das missas era feita com trajes<br />
em cores, <strong>no</strong>s períodos de <strong>luto</strong>, o preto tor<strong>no</strong>u-se a roupa oficial de seus membros a<br />
partir do <strong>século</strong> XI.<br />
Não somente padres e monges vestiam o preto nessas ocasiões, mas também os<br />
demais envolvidos <strong>no</strong>s rituais. Por influências das vestes religiosas, ajudantes,<br />
coroinhas, carregadores de caixão, carpideiras, passam também a utilizar vestimentas<br />
simples e negras. 4 A cor indicava o respeito ao morto e gradativamente passou a ser<br />
adotada pelos indivíduos próximos ao defunto como familiares e amigos.<br />
Assim, apesar da relação existente entre a morte e o preto dentro da Igreja, foi<br />
somente <strong>no</strong> fim da Idade Média que a veste dessa cor passou ser característica do<br />
processo de enlutamento para os indivíduos comuns. Se antes a tristeza era manifesta<br />
pelo choro, lamentos e gestos dramáticos, <strong>no</strong>s <strong>século</strong>s XIII e XIV generalizou-se uma<br />
identificação de um óbito também pelo uso da roupa em cor preta. O evento era<br />
54
econhecível pela adoção de um vestuário característico, que não era utilizado<br />
cotidianamente pelas pessoas não pertencentes ao clero. A cor ganhava a co<strong>no</strong>tação do<br />
sofrimento: o preto passava a ser a aparência da dor. 5 Também <strong>no</strong> período posterior ao<br />
funeral, quando era apropriado demonstrar certo tipo de comportamento semelhante ao<br />
religioso, o negro transmitia explicitamente a contenção dos sentimentos de euforia, o<br />
recato e o resguardo sexual pelos quais passava o sujeito enlutado.<br />
*<br />
Durante o Renascimento, o preto entrou em moda por uma série de motivos que,<br />
inter-relacionados, tornaram-<strong>no</strong> uma voga momentânea, seguida somente por alguns<br />
grupos específicos da Europa Ocidental. O tingimento era ainda um procedimento<br />
bastante custoso pois necessitava a sobreposição de tinturas até que a fusão dos<br />
pigmentos resultasse <strong>no</strong> breu total. Os materiais ordinários e rústicos naturalmente<br />
escuros, como a lã preta, eram opções mais baratas; por outro lado, um pa<strong>no</strong> que fosse<br />
tingido, independente de sua qualidade, encarecia sobremaneira. No caso dos tecidos<br />
fi<strong>no</strong>s, seu acesso era impraticável aos pobres. Ou seja, o uso dessa cor era, em si<br />
mesmo, uma marca de distinção social. 6<br />
Os <strong>século</strong>s da Renascença são também os da Peste Negra e da Guerra dos Cem<br />
A<strong>no</strong>s 7 , momentos de certa obsessão pela morte e da presença constante de cadáveres<br />
pelas cidades, promovendo o uso de um <strong>luto</strong> carregado por grande parte da população<br />
dos países atingidos. Ao mesmo tempo em que vivenciava a <strong>no</strong>va dinâmica urbana do<br />
fim do período medieval, a época fora acometida por males constantemente<br />
interpretados como castigos divi<strong>no</strong>s contra os homens de pouca fé e ganância de sobra.<br />
55
O uso corriqueiro do preto expressava em seu gérmen o medo e a culpa pela vida em<br />
pecado e da incerteza diante de um momento de caos social e ideológico. 8<br />
Também por sua característica de <strong>luto</strong>, o preto foi amplamente utilizado pela<br />
corte de Borgonha, a mais poderosa do <strong>século</strong> XIV, devido a sua adoção por Felipe, o<br />
Bom; após a morte de seu pai, o rei João sem Medo. O impacto do uso do negro nesse<br />
espaço social dedicado ao exagero das cores redefiniu seu uso, relacionando-o a uma<br />
refinada sobriedade, adequada à <strong>no</strong>breza. A elite, na tentativa de se aproximar da<br />
aristocracia, copiava o uso do negro que se tornava, igualmente, a cor das classes<br />
urbanas; não por acaso, a riqueza daquela região dava-se por suas cidades mercantes,<br />
fazendo do território um pólo de atividades tipicamente burguesas. No <strong>século</strong> seguinte,<br />
outro Felipe, rei da Espanha, filho de Carlos V, também ditou a moda européia ao<br />
adotar o <strong>luto</strong> perpétuo. Sua influência foi proporcionalmente maior do que a do Felipe<br />
borgonhês visto que as conquistas territoriais espanholas faziam do país o mais rico e de<br />
maior atividade mercantil do período. 9<br />
De maneira geral, a alta burguesia européia buscava a aproximar-se da imagem<br />
de luxo das cortes, sobretudo copiando seu vestuário luxuoso e, via de regra,<br />
extravagantemente colorido. Contudo, cada vez mais fazia-se prudente vestir-se de<br />
outro modo, em especial a partir dos decretos de leis suntuárias 10 que visavam limitar o<br />
plágio. O oposto à opulência aristocrática veio na neutralidade do negro. Muito<br />
conveniente para uma “classe sem classe” que transitava dentro de uma sociedade ainda<br />
estamental. O preto era sóbrio, austero, dig<strong>no</strong>: qualidades apreciadas aos homens de<br />
negócios. Era também a cor da discrição – e assim permanecerá durante todo o período<br />
moder<strong>no</strong>. A burguesia – vestida de preto – enriqueceu e se fortaleceu paradoxalmente às<br />
cortes que, luxuosamente coloridas, faliam. Nas regiões onde o poder econômico<br />
sobrepunha-se ao hereditário, ou naqueles em que os monarcas eram já intimamente<br />
56
ligados à burguesia, o preto impôs-se: na Veneza mercante e na Espanha das grandes<br />
navegações <strong>no</strong> <strong>século</strong> XVI, na Holanda protestante do período seiscentista, na Inglaterra<br />
industrial desde fins dos setecentos.<br />
Provenientes da Reforma, as vertentes protestantes que professavam um ideal de<br />
frugalidade e severidade promoviam uma ode ao ascetismo material em contraposição<br />
aos excessos cortesãos. A consonância entre esse modelo de espiritualidade e a adoção<br />
do vestuário em preto era, então, inequívoca, tornando-se uma prática tão freqüente ao<br />
ponto de transformá-la <strong>no</strong> uniforme dessas religiões. O austero estilo negro de Lutero,<br />
assim como de muitos lutera<strong>no</strong>s, calvinistas, regentes holandeses e purita<strong>no</strong>s ingleses<br />
reflete a percepção do protestantismo. 11 E se a alma humana em essência já era<br />
marcada pelo pecado, a única opção era viver devotamente e com simplicidade:<br />
combinação ideal entre a necessária prosperidade de um grupo à margem - sem classe,<br />
desprezados pela aristocracia - e uma espiritualidade austeramente levada a sério.<br />
Unidos pela ocupação mercantil e artesã, pela religião e pela exclusão das cortes,<br />
esses homens buscam uma padronização solidária da aparência. Mesmo que os ricos<br />
usassem veludo e os pobres, fustão, ainda assim todos usavam o preto. O quadro mais<br />
discrepante em relação à aparência era a oposição entre holandeses - <strong>no</strong> auge da<br />
austeridade puritana do negro -, e franceses, <strong>no</strong> ápice do refinamento exibicionista e<br />
colorido da corte de Luís XIV, todos habitantes dos setecentos.<br />
*<br />
Nas cortes mais refinadas, <strong>no</strong>tadamente a francesa, o aspecto da indumentária<br />
que mais chama a atenção, antes mesmo da ornamentação e do luxo, é o do incômodo.<br />
O desconforto físico parecia ser compensado por uma espécie de consolo mental pela<br />
57
certeza da imagem de autodisciplina e honra. A rigidez das peças com todos seus<br />
peque<strong>no</strong>s detalhes e fechos complicados, amarrações e laços, toda a dificuldade<br />
obrigatoriamente necessária para manter-se constrito em tais artifícios serviam para<br />
expor à sociedade que eram poucos os homens e as mulheres privilegiados pelo sangue,<br />
altamente civilizados e separados da plebe por um treinamento árduo e<br />
responsabilidades complexas, diferente do povo, campesi<strong>no</strong>s e burgueses, com suas<br />
preocupações banais e prazeres prosaicos. 12 A corte de Luís XIV, regida pelo protocolo<br />
e pelo cerimonial foi, por certo, a mais exemplar nesse sentido.<br />
Em paralelo ao luxo francês, a corte da Inglaterra desprezava tais excessos e seu<br />
vestuário simplificava-se de forma gradual. No caso das roupas masculinas, um casaco<br />
simples, botas úteis, chapéu e roupa branca simples estavam se tornando sinais de um<br />
cavalheiro que possuía não apenas muitos acres e um cofre cheio, mas também uma<br />
mente sensível com um desdém maduro pelas instituições primitivas e seus badulaques<br />
desnecessários, não importa quão raros. Apesar da influência francesa em cores,<br />
perucas, laços e rostos empoados, Londres era vista como uma cidade sobriamente<br />
vestida 13 , residência de um número cada vez maior de intelectuais, escritores e<br />
negociantes. Nas cidades inglesas, bengalas e guarda-chuvas substituíam as espadas<br />
ricamente decoradas.<br />
O preto, que era a cor da classe burguesa desde o Renascimento, fosse na elite<br />
mercantil ou nas classes médias protestantes, começava a ser adotado pelas cortes dos<br />
países <strong>no</strong>s quais ascendia a potência política. O salto se deu <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> quando essa<br />
burguesia de preto subiu ao poder tornando-se, inversamente ao que ocorria até então, o<br />
grupo referência, responsável por irradiar <strong>no</strong>vas tendências. Durante <strong>século</strong>s acusados<br />
de copiadores das cortes e renegados a descrições pejorativas, são eles agora que ditam<br />
a moda. A simplificação da modelagem e o escurecimento dos tecidos foram mudanças<br />
58
urguesas preconizadas pelos dândis e sancionadas pelos românticos, adotadas pelos<br />
industriais e seguidas pela massa.<br />
*<br />
Durante a Renascença, a ênfase do vestuário masculi<strong>no</strong> era a força física,<br />
realçada pelo volume concentrado dos gibões acolchoados e aumentado ainda mais pelo<br />
uso de capas e peles <strong>no</strong>s ombros e nas costas. Outro foco era o da virilidade, acentuada<br />
por ceroulas e calções curtos usados com meias muito justas, e pelo uso da braguilha.<br />
No fim do <strong>século</strong> XVII essa silhueta começava a ser gradativamente alterada através do<br />
traje que priorizava a elegância e a delicadeza em detrimento da força e da virilidade.<br />
Destacava, então, a barriga e os quadris, estreitando o peito e os ombros, alongando o<br />
torso e encurtando as pernas. As peças diminuíam de volume e tornavam-se mais retas<br />
proporcionando uma melhor mobilidade – o que, na aristocracia, não significava em<br />
abso<strong>luto</strong> desafetação. Um primeiro momento <strong>no</strong> processo de simplificação acontecia<br />
aqui, na passagem entre os <strong>século</strong>s XVII e XVIII, quando a combinação de camisa,<br />
colete, casaca e calções aparece <strong>no</strong>s trajes de campo, mais informais, que aos poucos ia<br />
sendo adotado <strong>no</strong> meio urba<strong>no</strong> pelas classes médias. Já era nítido o distanciamento entre<br />
as peças masculinas, que diminuíam <strong>no</strong> volume e simplificavam na modelagem, e as<br />
femininas, absurdamente excêntricas e caprichosas. O comedimento tornava-se<br />
paulatinamente uma qualidade do guarda-roupa masculi<strong>no</strong>, tendo em vista a<br />
radicalidade dos excessos estilísticos das damas. Apesar das mudanças na silhueta, os<br />
trajes das cortes, tanto os masculi<strong>no</strong>s como os femini<strong>no</strong>s, eram ainda confeccionados<br />
em tecidos luxuosos e caros, com bordados, fitas, muitos ornamentos, excessos<br />
considerados adequados ao homem até o fim do XVIII.<br />
59
Trajes masculi<strong>no</strong>s e femini<strong>no</strong>s distanciavam-se cada vez mais. Esse fenôme<strong>no</strong><br />
talvez tenha sido influenciado pela formação das primeiras guildas francesas de<br />
costureiras mulheres, encarregadas a partir de então da confecção das roupas femininas,<br />
em 1675 por Luís XIV. Até então, costureiros homens produziam o vestuário dos dois<br />
gêneros, o que acarretou em propostas decorativas bastante semelhantes durante 400<br />
a<strong>no</strong>s. Apesar de diferentes nas formas, eram similares <strong>no</strong>s materiais, na artesania, <strong>no</strong>s<br />
ornamentos. Com a separação das guildas de alfaiates e modistas a diferença na<br />
maneira com que as roupas para os dois sexos eram concebidas e confeccionadas veio<br />
à luz pela primeira vez, uma divisão que afetou profundamente tanto o caráter como a<br />
reputação da moda <strong>no</strong>s dois <strong>século</strong>s seguintes. 14<br />
Era bastante claro que, de maneira geral, impunha-se uma forte tendência na<br />
separação definitiva entre os gêneros, ou seja, entre um universo de coisas propriamente<br />
femininas e outro de coisas exclusivamente masculinas. Esse afastamento se acentuou<br />
quando da ascensão da sociedade burguesa e foi <strong>no</strong> período vitoria<strong>no</strong> que mais se<br />
fortaleceu. Desde então, femini<strong>no</strong> e masculi<strong>no</strong> são considerados valores opostos. Surgia<br />
a convicção de que devem, inclusive, ocuparem-se e vestirem-se de maneiras adversas:<br />
as essências dos sexos passam a ser consideradas distintas.<br />
*<br />
Conseqüência da separação definitiva entre feminilidade e masculinidade <strong>no</strong><br />
<strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, a modelagem do vestuário dos homens deixa de insistir <strong>no</strong> corpo enquanto<br />
imagem, somente. Ao contrário do femini<strong>no</strong>, que sugeria cada vez mais exibicionismo e<br />
desconforto, o masculi<strong>no</strong> buscava cobri-lo harmonicamente. O fato de as mulheres<br />
manterem-se presas a uma proposta de silhueta artificial e rígida sugere uma espécie de<br />
60
conservadorismo em relação à indumentária proveniente do Antigo Regime. Nesse<br />
sentido, os homens teriam efetivamente i<strong>no</strong>vado ao despojarem-se do decorativismo<br />
aristocrático. A simplificação do traje dos homens – que seria parte do processo de<br />
desespetacularização do sujeito masculi<strong>no</strong> – ocorre de maneira inversamente<br />
proporcional ao exagero da indumentária feminina – a hiperespetacularização da<br />
mulher, que passa a concentrar um valor extremo de exibição. 15 Essa oposição era<br />
reflexo de seus papéis sociais e casava-se de forma muito apropriada com o desejo em<br />
se estabelecer <strong>no</strong>vos valores comportamentais para a sociedade oitocentista. Dentre eles,<br />
destacava-se a supervalorização da família. Na idealização do grupo doméstico, o<br />
homem fazia as vezes de chefe rigoroso, marido respeitável, grande provedor e protetor<br />
do lar; a esposa era a mãe dedicada e mulher virtuosa cujos filhos cumpriam o papel dos<br />
peque<strong>no</strong>s anjos domesticados e obedientes. A honestidade <strong>no</strong>s negócios, a fidelidade e<br />
a mo<strong>no</strong>gamia, o autocontrole <strong>no</strong>s gestos e <strong>no</strong>s gastos, a privacidade e o amor ao<br />
trabalho foram outros ideais caracteristicamente burgueses. 16<br />
*<br />
Na moda feminina, o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> começara sugerindo a simplicidade, sob<br />
influência das idéias iluministas rousseaunianas (referindo-se à busca pelo “homem<br />
natural”), da Revolução Francesa (<strong>no</strong> desprezo aos valores aristocráticos) e da estética<br />
neoclássica (contra o rebuscamento rococó e de referência à arte da Antiguidade). As<br />
mulheres vestiram-se de tecidos muito fi<strong>no</strong>s e vaporosos, de modelagem solta <strong>no</strong> corpo,<br />
atados somente abaixo do busto, como uma camisola – ou melhor, uma túnica grega.<br />
Adotaram corpetes curtos para sustentação do busto, em substituição ao espartilho. A<br />
61
cor predominante era o branco com detalhes em cores vivas, contrastando. Corpo livre,<br />
à mostra, sandálias sem saltos.<br />
Com a Restauração, essa liberdade da modelagem Império se perde e a silhueta<br />
muda radicalmente. Mangas bufantes, saias encurtadas na altura dos tor<strong>no</strong>zelos e<br />
anáguas para dar volume nas saias levaram a um inevitável esquecimento da fluidez das<br />
formas anteriores já na década de 1820. Nos dez a<strong>no</strong>s seguintes, as mangas foram<br />
ajustadas aos antebraços e amplamente abertas <strong>no</strong> punho, escondendo as mãos em<br />
delicadas rendas e abundantes babados. A moda convergia da simplicidade para a<br />
complexidade, do branco com detalhes coloridos pós-Revolução Francesa às cores<br />
pálidas com estampas delicadas do Romantismo. Passou-se a toda variedade de cores,<br />
estampas e padrões, incluindo-se o xadrez e o listrado em cores fortes contrastantes.<br />
O espartilho retornava ao uso cotidia<strong>no</strong> para compensar uma silhueta de ancas<br />
cada vez mais destacadas. Em meados da década, a cri<strong>no</strong>lina foi introduzida pela<br />
imperatriz francesa Eugenia e tor<strong>no</strong>u-se o principal símbolo da roupa feminina daquele<br />
<strong>século</strong>. Feita de aço flexível, seu triunfo era aliviar o peso das inúmeras anáguas e<br />
liberar o movimento das pernas. Na época, foi uma invenção recebida com grande<br />
entusiasmo. A chamada silhueta em X 17 foi o ícone da moda vitoriana, obtida com a<br />
divisão do corpo pelo estrangulamento da cintura, destacando os quadris e<strong>no</strong>rmemente<br />
aumentados pelo artifício metálico. Compunham o restante da composição as mangas<br />
muito justas, blusas fechadas para o dia ou muito decotadas para a <strong>no</strong>ite e saias muito<br />
longas, por vezes com caudas, que se mantiveram até o fim do <strong>século</strong>.<br />
*<br />
62
O ideal vitoria<strong>no</strong> valorizava atributos considerados tipicamente femini<strong>no</strong>s como<br />
a fragilidade, a delicadeza e a docilidade infantilóide. Fisicamente, essas qualidades<br />
eram personificadas na fraqueza, na magreza, na palidez. Força e vigor eram atributos<br />
exigidos apenas das mulheres operárias ou da classe média que deveriam ajudar <strong>no</strong>s<br />
negócios. A suposta fraqueza das damas era ainda mais realçada por seus trajes, que<br />
muitas vezes tornavam-na mais debilitada. Agourentamente, essas roupas garantiam a<br />
saúde deficiente, encantadora, vestindo a mulher com sapatilhas de sola fina e vestidos<br />
de mangas curtas e decotados, de musselina transparente. Para qualquer mulher, a<br />
felicidade e a segurança, inclusive financeira, eram possíveis somente através do<br />
casamento. Quanto mais inútil aparentasse, mais indicava sua posição na hierarquia<br />
social, mantida pelo esposo. A ociosidade aristocrática era vista como o modo de vida<br />
mais apropriado para mulheres da alta sociedade. As roupas femininas consideradas<br />
elegantes na época eram excepcionalmente restritivas e ornamentais.<br />
O espartilho, que deformava os órgãos inter<strong>no</strong>s e impossibilitava respirar<br />
profundamente, funcionava como um instrumento de vigilância e submissão. Servia<br />
para sustentação da frágil estrutura feminina: não apenas a física, sobretudo a moral. A<br />
mulher desde cedo deveria estar presa e ser contida. Consequentemente, a mulher<br />
vestida com elegância corava e desmaiava facilmente, sofrendo de falta de apetite e<br />
problemas digestivos, e se sentia fraca e exausta após qualquer esforço maior.<br />
Convenientemente, as mulheres eram mantidas em suas carapaças da moda: Em uma<br />
sociedade patriarcal, uma mulher impotente, tola e bela é objeto máximo de consumo<br />
conspícuo. 18<br />
Comparativamente aos períodos anteriores, <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> as mulheres<br />
desejavam possuir um vasto número de trajes. Roupas representavam a situação<br />
econômica e social de quem as vestia, eram dispendiosas e, portanto, possuí-las em<br />
63
quantidade era sinal de riqueza. Considerava-se bastante elegante trocar de trajes várias<br />
vezes <strong>no</strong> mesmo dia e de acordo com a ocasião.<br />
Enquanto para a roupa das classes médias e altas, <strong>no</strong>vos matizes eram gerados a<br />
partir da anilina, a mulher operária ou camponesa não podia ter grandes gastos e<br />
preferia cores escuras ou pretas, mais versáteis. Sequer possuíam a cri<strong>no</strong>lina, que era<br />
indispensável à elite em todos os períodos do dia. E poucas usavam o espartilho, peça<br />
bastante cara, pois era feita sob medida e artesanalmente – que, além do mais, impedia o<br />
esforço físico -; quando muito usavam corpete. A mulher da cidade, por sua vez,<br />
profissional liberal ou artesã, por manter contato constante com outras pessoas, investia<br />
mais em sua aparência.<br />
*<br />
Em sua análise sobre o nascimento de uma “classe ociosa”, de 1899, o<br />
sociólogo e eco<strong>no</strong>mista Thorstein Veblen comenta a intenção expressa com a<br />
hiperespetacularização da mulher pelo traje: O vestuário, portanto, a fim de servir<br />
eficazmente a seus propósitos, não deve apenas ser dispendioso, mas deve também<br />
tornar visível a todos os observadores que quem o usa não está ligado a qualquer<br />
espécie de labor produtivo. A análise de Veblen tor<strong>no</strong>u-se uma referência justamente<br />
por demonstrar, por meio de uma exposição histórica sobre o surgimento da sociedade<br />
de consumo, que o objetivo principal do dispêndio conspícuo é construir uma aparência<br />
que simbolize o que se possui, ou seja, uma imagem representativa da posição<br />
financeira do indivíduo. Sua finalidade seria conquistar simpatia e afeição ou – em<br />
última instância – causar a inveja. Esse espírito de competição, inerente e natural ao ser<br />
huma<strong>no</strong>, seria, nas sociedades modernas, extravasado através do consumo e praticado<br />
64
em um nível de posse: possuir mais, ou melhor, que seus semelhantes. E sem ter feito<br />
esforço para tanto, já que um exame detalhado daquilo que, na compreensão popular,<br />
passa por elegância <strong>no</strong> vestir mostrará que essa elegância é conseguida para dar a<br />
impressão de que a pessoa que a tem não costuma desenvolver qualquer esforço útil. O<br />
efeito agradável de vestuários elegantes e imaculados se deve principalmente – se não<br />
de todo – à sugestão do ócio que trazem. 19<br />
Nesse sentido, o vestuário femini<strong>no</strong> mostrou-se mais que eficaz. O corpo em<br />
forma de ampulheta, mangas amplas, saias volumosas e apertadíssimos espartilhos,<br />
sapatos de salto e cabelos longuíssimos arrumados em elaborados penteados que eram<br />
ainda complementados por rebuscados chapéus, as mãos decoradas por luvas<br />
delicadíssimas que seguram sombrinhas ou leques: esse conjunto causava exatamente o<br />
resultado esperado, a sensação de que essa mulher não se preocupava com mais nada<br />
além da própria aparência. Manter-se na moda era bastante custoso visto que os<br />
modelos começavam a mudar rapidamente a partir de meados do <strong>século</strong>. Os tecidos<br />
fi<strong>no</strong>s e importados usados aos metros, peças feitas sob medida, jóias refinadas e todo o<br />
restante de acessórios faziam da imagem pessoal um grande investimento em termos de<br />
dispêndio conspícuo.<br />
*<br />
Por volta de 1870, a cri<strong>no</strong>lina passava a ser levemente projetada para trás,<br />
tornando a frente da composição mais estreita e seca, a ênfase concentrando-se na parte<br />
traseira da figura. Em 1880, o surgimento e a popularização da anquinha, em<br />
substituição à cri<strong>no</strong>lina, reestruturam um <strong>no</strong>vo tipo de silhueta em formato de “S”,<br />
valorizando o colo do busto, alongado por espartilhos mais compridos e liberando o<br />
corpo do diâmetro exagerado na saia. Foi uma tênue simplificação do traje que<br />
65
acompanhou importantes mudanças comportamentais do universo femini<strong>no</strong> na transição<br />
entre os <strong>século</strong>s <strong>XIX</strong> e XX. Começar a trabalhar fora de casa, conquistar o direito ao<br />
divórcio, interessar-se pelas artes e pela intelectualidade eram processos representados<br />
<strong>no</strong> corpo pelo abando<strong>no</strong> de alguns artifícios extremamente tolhedores ou pela inserção<br />
de peças mais masculinas <strong>no</strong>s trajes, como saias mais secas e retas e camisas usadas<br />
com gravatas – como que simbolizando essa entrada das mulheres num universo, até<br />
então, exclusivamente masculi<strong>no</strong>.<br />
O advento dessa “<strong>no</strong>va mulher” 20 culminava com a recusa em ser<br />
exclusivamente mulher-espetáculo. Desejando transpor da extravagância desmesurada<br />
para a sobriedade das responsabilidades mundanas, as mulheres passaram não somente a<br />
se vestir de maneira mais simples como também a adotar cores mais escuras e neutras.<br />
Parece bastante significativo que essa mudança na conduta feminina coincida com a<br />
morte da Rainha Vitória e, consequentemente, com o fim do vitorianismo.<br />
*<br />
Para a mulher a beleza, para o homem o despojamento completo. 21 O paradoxo<br />
da roupa feminina era dado pelo traje masculi<strong>no</strong>. Essa diferença era <strong>no</strong>tável até mesmo<br />
<strong>no</strong> material empregado nas diferentes confecções: se até o fim dos setecentos não havia<br />
separação entre os tecidos para roupas masculinas e femininas, a partir de então, alguns<br />
seriam exclusividade das mulheres. As misturas linho-seda e lã-seda eram utilizadas <strong>no</strong>s<br />
trajes diur<strong>no</strong>s de rua; a musselina, o organdi, a seda, brocados, tafetás, cetim e outras<br />
fazendas requintadas eram apropriados para os trajes <strong>no</strong>tur<strong>no</strong>s: sugeriam a fragilidade e<br />
a inconstância feminina. Já os homens deveriam limitar-se ao uso entediante da lã e do<br />
linho, 22 sempre engomado e alinhado, sugerindo rigidez de caráter, retidão moral.<br />
66
O traje campestre inglês da segunda metade do <strong>século</strong> XVIII, - que incluía o uso<br />
de botas de solado baixo; mais confortáveis que os sapatos de salto das cortes, e o<br />
casaco de montaria, o riding coat, (ou redingote para os franceses) - passou a ser<br />
confeccionado pelas alfaiatarias londrinas na década de 1780, para uso urba<strong>no</strong>. A<br />
Inglaterra assumia, destarte, o papel de ditar a moda masculina, influenciando tanto<br />
França quanto Estados Unidos. Foi somado ao <strong>no</strong>vo traje o hábito da burguesia<br />
protestante, habitante das cidades, de utilizar desde muito, cores sóbrias e modelagens<br />
austeras. A revogação das antigas leis suntuárias e os decretos de proibição do vestuário<br />
aristocrático após a Revolução Francesa foram decisivos nesse processo, sendo o<br />
próprio sans-culottismo responsável pela extinção dos calções nas classes médias.<br />
Impunham a substituição da indumentária sensualista por uma racional e obrigavam o<br />
cidadão a manifestar publicamente seu desprezo pelo estilo cortesão. A moda masculina<br />
não se definiu de imediato com tanta clareza, mas a indumentária logo se transformou<br />
num sistema semiótico intensamente carregado. Os moderados e os aristocratas eram<br />
identificados por sua recusa em usarem a roseta [símbolo revolucionário]. A partir de<br />
1792, o barrete vermelho, o casaco estreito com várias filas de botões e as calças<br />
largas passam a definir o sans-culotte, isto é, o verdadeiro republica<strong>no</strong>. 23 Era inevitável<br />
que nas décadas não somente o vestuário se tornasse mais simples e solto como as cores<br />
fossem desaparecendo, peça por peça.<br />
A importância do vestuário enquanto imagem pública dos ideais pessoais era<br />
oportuna à sociedade que valorizava as qualidades individuais em contraposição aos<br />
privilégios do sangue. Entretanto, a aparência da respeitabilidade conquistada, e não<br />
genética, não foi uma invenção burguesa. Os dândis 24 , espécies de diletantes da vida<br />
moderna, foram os responsáveis por inaugurar um <strong>no</strong>vo estilo da indumentária<br />
masculina, <strong>no</strong>tadamente urba<strong>no</strong> e cuja ênfase dava-se na alfaiataria.<br />
67
Essas mudanças do início do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> partiram de homens como George<br />
Beau Brummel, Baudelaire e Barbey d’Aurevilly, personalidades ilustres pelo gosto<br />
requintado e freqüentadores das altas rodas. O dândi não se considerava um burguês<br />
visto que era, por definição, um ocioso; eram de fato críticos mordazes do modo de vida<br />
da burguesia. Ocupavam-se com assuntos da cultura, das artes, das elites.<br />
Demonstravam que, na <strong>no</strong>va sociedade, vestir-se como um aristocrata deixara de ser<br />
efetivamente elegante - quanto mais, perspicaz. Para eles, a perfeição do vestuário<br />
consistia na simplicidade absoluta. Visto às vezes como excentricidade, o fato é que o<br />
dandismo foi o último suspiro do “pavoneamento” masculi<strong>no</strong> antes do firme triunfo da<br />
sobriedade de classe-média burguesa que domi<strong>no</strong>u posteriormente o <strong>século</strong>.<br />
Privilegiando a elegância de formas simples, a alta qualidade dos tecidos e a<br />
excelência da modelagem e do corte, os dândis proclamavam a melhor maneira de se<br />
distinguir na sociabilidade urbana: pela sutileza dos detalhes e pela sofisticação<br />
minimalista. Preocupavam-se com acessórios e com uma toalete minuciosa.<br />
Paradoxalmente, apesar de renunciarem às cores brilhantes e ao exagero na<br />
ornamentação, alguns dândis mais afetados davam-se ao luxo de praticar o tight-lacing,<br />
adotando uma silhueta delicada quase feminina, trocaram os calções curtos pelas<br />
pantalonas justíssimas com enchimentos que realçavam pernas bem torneadas, e<br />
principalmente, engomar e ajeitar muito alto os suntuosos colarinhos, ornados de<br />
gravatas com muitas voltas e um complicado e primoroso nó.<br />
Ainda que o dandismo tivesse continuado como referência de estilo até meados<br />
do <strong>século</strong>, já <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 1830 começava a ser substituído por tendência do escurecimento<br />
das cores e da modelagem mais reta e funcional. A burguesia impunha uma moda<br />
confortável e prática. A roupa masculina se desvencilhava de cores, principalmente os<br />
trajes <strong>no</strong>tur<strong>no</strong>s, em especial o smoking que, até a década de 1820 podia ser usado em<br />
68
diversas tonalidades e após, a elegância dos eventos permitia somente o preto. Todas as<br />
outras cores passavam a ser consideradas deselegantes.<br />
*<br />
Assim, por volta de 1830, as casacas tornaram-se escuras, em tons de azul,<br />
verde, marrom e <strong>no</strong> preto. Era considerado adequado vestir-se em combinações de três<br />
cores: claras na parte de baixo, escuras para a casaca e vivas para os coletes e gravatas,<br />
que poderiam ser mesmo bordados e brilhantes. As pantalonas justíssimas, presas aos<br />
pés e usadas em cores claras, foram substituídas por calças, abertas nas barras, em tons<br />
escuros ou <strong>no</strong> preto. Coletes e gravatas, únicas peças que ainda permitiam cores,<br />
perdem-nas, passando a ser pretas, brancas ou escuras, nada de cores vivas. Depois de<br />
1840, a tendência segue em direção ao mo<strong>no</strong>cromatismo e efetivamente ocorre uma<br />
febre: a moda do preto. O homem decidia se cobrir de <strong>luto</strong> em todas as ocasiões.<br />
Durante a época vitoriana, a <strong>no</strong>va mudança na silhueta masculina se deu pela<br />
ênfase <strong>no</strong>s ombros e o corpo se esticou. Os trajes eram cortados de modo a sugerir uma<br />
anatomia que, partindo de ombros largos e um peito musculoso e forte, afina-se em um<br />
abdômen achatado e cintura estreita, flancos esguios e pernas espantosamente<br />
alongadas, cobertas desde o alto da cintura até os calcanhares com tecido escuro. As<br />
casacas, que <strong>no</strong> início do <strong>século</strong> eram compridas e com abas traseiras, encolheram<br />
drasticamente para priorizar o efeito do tórax e costas. O colete muitas vezes<br />
trespassado, para ajudar a disfarçar uma barriga arredondada, foi auxiliado por uma<br />
longa fileira de botões. As golas moles de antes endureceram em colarinhos removíveis<br />
altivos, passando a equilibrar os ombros aumentados, reforçando e enrijecendo o<br />
pescoço, sustentando uma cabeça que não mais possuía cabelos falsos e empoados mas<br />
69
uma respeitável cartola. O homem rococó com seus subterfúgios artificiais fora<br />
totalmente substituído por um homem naturalmente forte e sadio.<br />
A moda masculina permanecia quase a mesma <strong>no</strong> decorrer do <strong>século</strong>, enquanto<br />
as modas femininas sucediam-se umas às outras. Uma breve tentativa de mudança foi<br />
esboçada na década de 1880 e teve como seu principal e mais conhecido representante o<br />
escritor Oscar Wilde. Seu estilo impecavelmente arrumado, numa referência direta ao<br />
dandismo do início do <strong>século</strong>, incluía calças muito justas na altura dos joelhos – à moda<br />
do Antigo Regime – muitas peças em seda e veludo, complementado por seus cabelos<br />
compridos e seu comportamento um tanto polêmico para a época (tendo como auge o<br />
escândalo de sua prisão, acusado por seduzir um jovem filho de um barão), acabou por<br />
relacionar a tendência ao homossexualismo e consequentemente levando-a ao<br />
fracasso. 25 Qualquer possibilidade de mudança esbarrava nesse preconceito do homem<br />
efeminado e, assim, até o fim do <strong>século</strong> o guarda-roupa masculi<strong>no</strong> resumia-se,<br />
basicamente, em ter<strong>no</strong>s, casacos e smokings para ocasiões formais. A grande reviravolta<br />
só aconteceria décadas depois, com a voga da prática esportiva do início do <strong>século</strong> XX,<br />
que quebrava o mo<strong>no</strong>cromatismo e reintroduz cores claras e alegres às peças.<br />
*<br />
A mudança do tecido apropriado ao traje dos homens também foi uma espécie<br />
de reflexo das mudanças sociais pós-Revolução Francesa. Antes a seda e os brocados,<br />
autoritários, que enrugavam e amassavam facilmente, pressupunham um grande<br />
sacrifício em vesti-los – um refinamento. As superfícies decoradas dos tecidos eram a<br />
lapidação do corpo, não revelando sua verdadeira natureza, o que está por trás do pa<strong>no</strong>.<br />
Exigem conduta e postura, demonstram ser incômodas e exige que o indivíduo atue seu<br />
70
próprio conforto. No mundo dos negócios, os tecidos mais vestidos como a lã e o linho<br />
eram maleáveis, obedientes ao corpo e ao movimento. A beleza passava da superfície<br />
decorada para a forma. Não escondia nada; antes, realçava aquilo que era intrínseco ao<br />
homem: seu corpo e qualidades inatas como a honestidade e a dignidade. Também exige<br />
postura, mas não a artificial, fingida, e sim a naturalmente elegante, sem afetação. A<br />
honra aristocrata deu lugar à virtude burguesa <strong>no</strong> corte e <strong>no</strong> feitio das peças.<br />
Literalmente, afinal a aristocracia também passou a se vestir nas alfaiatarias de luxo<br />
londrinas.<br />
A partir da metade do <strong>século</strong>, o traje aproximava-se rapidamente do ter<strong>no</strong>, mais<br />
confortável, marcando me<strong>no</strong>s o corpo. A casaca, muito parecida com o paletó, cobria<br />
quase todo o quadril e a braguilha, descartando a virilidade óbvia e explícita – e a calça<br />
reta e solta era sua aliada nesse sentido. A estratégia de compensação dessa<br />
dessexualização da roupa foi a utilização de diversos acessórios “fálicos”, contrapostos<br />
ao despojamento: gravatas, bengalas, cartolas, charutos, são alguns exemplos.<br />
Paralelamente, era um tipo de indumentária democrática, que favorecia todos os tipos<br />
físicos e as mais diversas atividades. A sensação de uniformização cresceu<br />
demasiadamente a partir do momento em que a produção industrial do vestuário<br />
masculi<strong>no</strong> trazia não apenas peças de qualidade cada vez maior, mas também a<br />
padronização dos tamanhos, conseguida a partir do cálculo das proporções aproximadas<br />
dos indivíduos com medidas semelhantes. Criava-se um design universal do traje. A<br />
roupa pronta alcançou um nível de qualidade incomparável à dos períodos anteriores.<br />
Diferentemente da feminina, que, montada sobre o espartilho – confeccionado<br />
manualmente sob medida -, não deveria ser comprada pronta. Somente com a<br />
padronização dos corpetes, <strong>no</strong> fim do <strong>século</strong>, foi possível conceber roupas elegantes de<br />
qualidade para a produção fabril. A uniformidade <strong>no</strong> vestir trazia uma profunda<br />
71
similitude entre os homens, paradoxalmente à variedade, principalmente decorativa, do<br />
vestuário femini<strong>no</strong>.<br />
A estandardização do vestuário masculi<strong>no</strong> durante o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> aconteceu em<br />
todos os sentidos: na modelagem, mais seca e funcional, na padronização dos tamanhos<br />
e nas cores escuras. A diferenciação entre classes mantinha-se na qualidade dos tecidos<br />
e do corte, cujo caimento conferia uma estética mais ou me<strong>no</strong>s sofisticada. No caso das<br />
cores, o preto servia a todos. Poderia ser solene e prático, para trabalhadores liberais da<br />
classe média, como advogados, médicos, funcionários de escritório, ou ainda para o<br />
operariado: era durável, econômico, ocultava manchas de sujeira e de uso. Ao mesmo<br />
tempo, usado pelas elites burguesas e aristocráticas, era dramático e elegante. Seus<br />
trajes feitos em tecidos fi<strong>no</strong>s e de modelagem primorosa, sob medida, com recortes<br />
complexos e detalhes intrincados, tornavam-se altamente agradáveis e sofisticados em<br />
todo tipo de ocasião. O negro foi, portanto, o uniforme do mundo elegante e do mundo<br />
industrial, <strong>no</strong> campo, nas metrópoles ou nas pequenas cidades.<br />
*<br />
O ter<strong>no</strong> do fim do <strong>século</strong> era a versão popular do traje <strong>no</strong> qual a casaca, o colete<br />
e a calça eram confeccionados <strong>no</strong> mesmo tecido e na mesma cor, em escala industrial.<br />
Eram realmente informais e flexíveis, inicialmente usados só pelas classes inferiores ou<br />
pelas classes médias em ocasiões muito íntimas, nunca em sociedade. Porém, devido à<br />
sua praticidade popularizou-se <strong>no</strong> meio urba<strong>no</strong> e se tor<strong>no</strong>u apropriado para todas as<br />
ocasiões, desde que não fossem eventos elegantes e festivos. Sugere diplomacia,<br />
compromisso, civilidade e autocontrole físico. 26 Inexpressivo e obediente, ideal aos<br />
indivíduos das classes subordinadas. O <strong>no</strong>vo traje popularizou-se e igualmente<br />
72
dominava o gosto da população mais humilde, inclusive do operariado, que se<br />
uniformiza em seus ter<strong>no</strong>s pretos, como um grande exército fúnebre rumo às fábricas.<br />
A simplificação da indumentária resultou num afrouxamento da etiqueta<br />
masculina, não havendo mais a necessidade de diversas trocas durante o dia e nem a<br />
posse de inúmeros trajes mesmo para as elites. A pouca variação em termos de<br />
modelagens e cores tornava a composição mais prática e as peças combinavam entre si,<br />
pois, ainda que a produção industrial tivesse diminuído os custos e o preço final, obtê-<br />
las em quantidade era um luxo.<br />
O vestuário representava parte significativa das posses dos que tinham recursos<br />
limitados. As roupas constituíam, com freqüência, seu único bem de valor e a<br />
abundância de lojas de penhores <strong>no</strong>s centros urba<strong>no</strong>s provava com que freqüência eram<br />
procuradas por indivíduos que pouco mais tinham além, literalmente, da roupa do<br />
corpo. 27 Para os mais pobres, havia nitidamente dois tipos de trajes, feitos de diferentes<br />
materiais. Um de trabalho, confeccionadas em casa, e um de “classe média”, a chamada<br />
“roupa de domingo”, em melhor condição ou mais <strong>no</strong>va, para ser usada nas festas ou<br />
<strong>no</strong>s eventos religiosos e que, quando já surradas e velhas, eram usadas nas fábricas.<br />
Esse traje especial era composto de ter<strong>no</strong>, sobrecasaca, colete de seda, gravata de seda,<br />
cartola, sendo comprados prontos, mais baratos, ou feitos sob encomenda em alfaiates<br />
de segunda linha. Adquiriam-se ter<strong>no</strong>s e casacos <strong>no</strong>vos quando alguém se casava, e<br />
esses eram usados por décadas. A preferência era sempre pela cor preta: para serem<br />
usados também, quando necessário, como traje de <strong>luto</strong>. O mesmo ocorria para com as<br />
mulheres. 28<br />
*<br />
73
Pois que a sociedade vitoriana, baseada na igualdade democrática e aberta aos<br />
talentos individuais, valorizava mais as qualidades internas pessoais em contraposição<br />
aos sinais exter<strong>no</strong>s da aparência. Agora o que importa não é desaparecer dentro de uma<br />
carapaça fulgurante, sumir debaixo dos brocados, formando a roupa como um todo<br />
indissolúvel, mas destacar-se dela, reduzindo-a a um cenário discreto e amortecido <strong>no</strong><br />
qual se exibe o brilho ple<strong>no</strong> da personalidade. 29 Seria legítimo pensar em um desapego<br />
consciente da beleza por parte dos homens <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>?<br />
É possível considerar, por um lado, a uniformização da indumentária masculina<br />
como uma grande renúncia do belo em <strong>no</strong>me de outras prioridades como o conforto, a<br />
elegância, a praticidade. 30 Entretanto, por outro lado, apesar da pouca variação, o código<br />
vestimentar continuava a ser muito rígido e contava ainda com inúmeras possibilidades<br />
estéticas, mesmo dentro do limitado universo da sobriedade. 31 Casacos e trajes<br />
completos mudavam de estilo de acordo com as modas, <strong>no</strong> tipo do corte e <strong>no</strong> número de<br />
botões, por exemplo; determinados tipos de casaco e calça eram apropriados somente<br />
para atividades e períodos específicos do dia – e eram diferentes também <strong>no</strong> ambiente<br />
campestre ou urba<strong>no</strong>. Ainda que se tratasse de um tipo de vestuário mais simples, a<br />
apresentação num estilo elegante requeria tempo, bom gosto e dinheiro. Numerosos<br />
tipos de acessórios também eram usados como cartolas, gravatas de seda, coletes de<br />
seda e cetim, luvas, bengalas e relógios, elementos importantes na apresentação da<br />
classe média e alta. As classes baixas eram do mesmo modo preocupadas com a<br />
aparência e usavam versões mais baratas, por vezes industrializadas, desses itens.<br />
Portanto, se for possível considerar algum tipo de renúncia masculina, essa<br />
certamente se deu em relação às cores. Seu desaparecimento gradativo nas peças de<br />
roupa foi a primeira instância do processo de simplificação e austeridade <strong>no</strong>s trajes. Não<br />
por acaso combinava com o ambiente em que esses homens viviam: a fumaça cinza das<br />
74
fábricas <strong>no</strong>s céus das cidades que crescem em meio a prédios e asfalto. A morte das<br />
cores estava em todos os lugares <strong>no</strong> meio urba<strong>no</strong>. Necessita-se um tipo de roupa que<br />
além de não contrastar com a paisagem, não sujasse facilmente e fosse apropriado à<br />
dinâmica do homem de negócios, que deveria estar apresentável, discreto e dig<strong>no</strong> em<br />
qualquer hora do trabalho<br />
A imagem de civilidade aparecia não só pela rigidez do traje, mas na conduta<br />
baseada <strong>no</strong> autocontrole, na abstinência e na disciplina, provenientes tanto da ética<br />
protestante e da parcimônia burguesa quanto de um processo de adestramento pelo qual<br />
o homem moder<strong>no</strong> passou dentro das regras familiares, das escolas, das fábricas. Porque<br />
o progresso e o lucro passam a ser vistos como conseqüência da regularização e da<br />
repressão dos comportamentos e desejos naturais aos seres huma<strong>no</strong>s; o corpo passa por<br />
uma racionalização refletida em <strong>no</strong>vos hábitos alimentares, na contenção do sexo, na<br />
eco<strong>no</strong>mia das finanças, deixando de ser o espaço do individualismo para ser<br />
socialmente construído. Toda a energia humana deveria ser canalizada para o trabalho, a<br />
conquista sexual revertendo-se em triunfos econômicos <strong>no</strong>s negócios e <strong>no</strong> comércio, a<br />
totalidade da vida passando a ser controlada pelo Estado.<br />
Durante o período vitoria<strong>no</strong>, a indumentária masculina tor<strong>no</strong>u-se austera, sóbria,<br />
e ao mesmo tempo prática, funcional, quase melancólica. O fato é que, ao mesmo tempo<br />
em que a sociedade comemorava o surgimento da democracia e do liberalismo, a<br />
explosão da produção industrial e a consolidação da burguesia e do capitalismo, seus<br />
homens cobriram-se de <strong>luto</strong>.<br />
*<br />
75
Em sua vida, o vitoria<strong>no</strong> frequentemente presenciava a morte. Considera-se que,<br />
<strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, a cada vinte crianças, três morriam antes de seu primeiro a<strong>no</strong> e a<br />
expectativa de vida era de somente 43 a<strong>no</strong>s. 32 As maneiras simples de prevenção de<br />
doenças, muitas delas baseadas <strong>no</strong> controle básico da higiene na preparação de<br />
alimentos ou <strong>no</strong>s partos não eram uma praxe, assim como a freqüente utilização de<br />
medicamentos duvidosos de origem caseira aumentavam as chances de falecimento<br />
prematuro. Não era nada incomum que se estendesse de um período de <strong>luto</strong> para outro,<br />
os indivíduos passavam um bom tempo de suas vidas cobertos de negro.<br />
Por ser uma sociedade altamente regida pelos códigos de etiqueta,<br />
consequentemente a morte foi também rigidamente regulamentada. Desrespeitar essas<br />
regras era considerado um verdadeiro escândalo, um ato de imoralidade. A aprovação<br />
de outrem governava o comportamento individual. 33<br />
Jornais de costumes e manuais de etiqueta, muito comuns à época, traziam todas<br />
as recomendações e dicas a serem seguidas nesses momentos e eram muito populares<br />
entre a classe média. O <strong>luto</strong> tor<strong>no</strong>u-se um cerimonial complexo, <strong>no</strong>rmatizado desde as<br />
cartas de condolências até a maneira de conversar com a viúva. Dentro das casas, as<br />
cortinas eram abaixadas e os relógios parados na hora do falecimento. Espelhos eram<br />
cobertos. 34 A família não se reunia para as refeições enquanto o cadáver estivesse<br />
presente. Era aconselhável que se preparassem funerais dispendiosos, erguessem<br />
túmulos artisticamente preparados com monumentos ao morto. Todos os detalhes eram<br />
observados e mesmo os cavalos que levavam o carro com o caixão deveriam ser pretos<br />
e decorados em preto. A determinação em assegurar um funeral decente para os<br />
membros da família foi característica seguida por todas as classes na sociedade<br />
vitoriana, mesmo quando os gastos colocassem em risco a sobrevivência dos que<br />
ficavam. Ninguém queria enterrar seus entes em túmulos medíocres.<br />
76
*<br />
O <strong>luto</strong> vitoria<strong>no</strong> tinha dois estágios: fechado e meio-<strong>luto</strong>, cada um contando com<br />
suas próprias regras. 35 De fato, as mais importantes e rígidas referiam-se ao vestuário.<br />
Era através dele que se mostrava imediatamente a tristeza e se exigia distância das<br />
mundanidades. Sua cor oficial era o preto, reconhecidamente a cor da ausência. Porém,<br />
não era a única. Mesmo <strong>no</strong> <strong>luto</strong> fechado, o branco poderia ser utilizado em punhos e<br />
colarinhos. Os tecidos deveriam ser discretos como os de algodão ou a lã, nunca<br />
brilhantes ou chamativos como o cetim, a seda e o veludo.<br />
Para os homens o vestuário era muito mais fácil de ser providenciado: eles<br />
apenas usavam o seu traje preto tradicional combinado com luvas pretas. Às crianças, o<br />
<strong>luto</strong> não era obrigatório, mas poderia ser adotado fosse com essa cor ou com outras,<br />
neutras, como o cinza ou o branco. Já o <strong>luto</strong> femini<strong>no</strong> era muito mais severo, exigia que<br />
as mulheres tivessem um guarda-roupa completamente negro, incluindo acessórios<br />
como sombrinhas, bolsas e lenços na mesma cor e sem ornamentos. Notadamente <strong>no</strong><br />
caso das viúvas, deveria ser um sinal de afeição eterna e não segui-lo corretamente era<br />
interpretado como desprezo ao marido, uma ofensa imperdoável numa sociedade em<br />
que homens valiam mais que mulheres e eram responsáveis por sua posição social.<br />
O <strong>luto</strong> fechado de viúvas deveria durar cerca de dois a<strong>no</strong>s, período <strong>no</strong> qual além<br />
do vestuário preto, sem jóias, usava um véu cobrindo o rosto ao sair de casa e não era<br />
apropriado que arrumasse os cabelos ou usasse perfume. Nesses meses, suas atividades<br />
sociais deveriam ser as mínimas possíveis, idealmente restritas aos serviços da igreja.<br />
Ao fim do <strong>luto</strong> profundo, se a viúva não tivesse meios para se sustentar e ainda tivesse<br />
filhos peque<strong>no</strong>s, era permitido e aconselhável que se casasse <strong>no</strong>vamente. Nenhum <strong>luto</strong><br />
77
era mais longo do que o da esposa já qualquer outro membro da família, supostamente,<br />
sofreria me<strong>no</strong>s do que ela. Viúvos mantinham seu vestuário habitual e cotidia<strong>no</strong>, e<br />
poderiam continuar trabalhando; era de bom-tom que evitassem eventos sociais <strong>no</strong>s<br />
primeiros dois a<strong>no</strong>s após o falecimento. No caso de pais que perdessem um filho ou do<br />
filho que perdesse um dos pais, o <strong>luto</strong> fechado era de dez meses a um a<strong>no</strong>, por outros<br />
membros da família variavam de seis meses a quatro semanas. De maneira geral, essa<br />
duração dependia muito da relação que se tivesse com o falecido, especialmente com<br />
aqueles com que não houvesse parentesco. Esperava-se que o <strong>luto</strong> representasse a<br />
extensão do pesar pela qual o sujeito passava, podendo ser, então, bastante variável.<br />
No meio-<strong>luto</strong>, era aceitável usar matizes como o cinza, malva, roxo, lavanda,<br />
lilás e também o branco combinado com essas cores. Também o vermelho, em seus tons<br />
mais escuros, era adequado. Ao suavizar o negro, o uso de jóias também era liberado,<br />
porém limitadas e discretíssimas. Em tons sóbrios ou ainda em formato de camafeus,<br />
<strong>no</strong>s quais se colocavam mementos mori como mechas de cabelo ou fotos do morto. O<br />
meio-<strong>luto</strong> também era variável, adotado após o <strong>luto</strong> profundo e durava alguns meses.<br />
Após <strong>no</strong> máximo um a<strong>no</strong>, era então possível voltar a vestir todas as cores. Entretanto,<br />
algumas mulheres decidiam seguir o exemplo da rainha inglesa, Vitória, e adotavam o<br />
meio-<strong>luto</strong> pelo resto de suas vidas.<br />
O vestuário de <strong>luto</strong> passou a ser vestuário de moda, seguindo todas as suas<br />
tendências e <strong>no</strong>vidades. Nas classes médias e baixas, apesar dos gastos, faziam o<br />
possível para vesti-lo pelo maior tempo. Roupas eram artigos caros e o comércio do<br />
<strong>luto</strong> passou a ser bastante lucrativo, visto que as mulheres, usavam-<strong>no</strong> cada vez mais<br />
por tempo maior.<br />
Portanto, curiosamente, o <strong>luto</strong> era a maneira mais perfeita de mostrar a riqueza e<br />
a respeitabilidade de uma mulher. No caso dos homens, o fato curioso vem a ser a<br />
78
espeito da roupa do defunto. Para a morta, o mais indicado era o branco ou cores<br />
suaves, como as usadas em vida. O mesmo procedimento era indicado às crianças que<br />
usavam tecidos claros ou estampados mesmo <strong>no</strong> túmulo. Porém, se o cadáver fosse<br />
masculi<strong>no</strong>, o traje mortuário ideal era o mesmo do cotidia<strong>no</strong>, o mesmo das festas e<br />
ocasiões formais, o mesmo do <strong>luto</strong>: o traje completo em preto. O homem vitoria<strong>no</strong> se<br />
vestia exatamente da mesma maneira na vida e na morte.<br />
*<br />
A grande responsável por tamanha importância da imagem do <strong>luto</strong> femini<strong>no</strong><br />
fora, indubitavelmente a rainha da Inglaterra. Seus 64 a<strong>no</strong>s de reinado foram marcados<br />
por sua conduta rígida enquanto governante e pela tragédia pessoal que passou com a<br />
morte de seu marido e primo, Albert. Entronada em 1837, Alexandrina Victoria<br />
conduziu a política inglesa numa época em que os interesses industriais e imperialistas<br />
da nação mais poderosa do mundo contrastavam com um território ainda<br />
prioritariamente rural. Mesmo com esses paroxismos, a monarca conseguiu manter a<br />
paz social e recuperar o prestígio da realeza, agindo em sentido oposto de seus<br />
predecessores. 36<br />
Não foi à toa que seu <strong>no</strong>me desig<strong>no</strong>u o <strong>século</strong> da construção de um modelo<br />
burguês. Em primeiro lugar, Vitória trabalhava como um homem de seu tempo;<br />
autoritária, gostava de acompanhar de perto tudo o que acontecia em seu Parlamento<br />
assim como de participar das decisões de seus ministros. Acordava cedo e passava horas<br />
em seu escritório, revendo contratos e assinando papéis. A imagem de dama vitoriana,<br />
sempre estendida em seu canapé, não vem da rainha. 37<br />
79
Por conta desse compromisso com o labor, era querida pelo povo;<br />
paradoxalmente, jamais foi a aristocrata típica, mergulhada em luxos e preocupada<br />
exclusivamente com roupas e festas, pelo contrário. Apreciava-lhe ser<br />
reconhecidamente mais próximas das classes médias do que da elite dispendiciosa: “As<br />
classes elevadas”, escrevia ela à sua filha “e particularmente a aristocracia<br />
(evidentemente com algumas exceções honrosas) são tão frívolas, tão apegadas aos<br />
seus prazeres, tão pouco compassivas, tão egoístas imorais e folgazãs que evocam [...]<br />
os dias que precederam a Revolução Francesa. Os jovens são tão mimados, as<br />
mulheres jovens tão emancipadas, tão frívolas, tão imprudentes que o perigo é<br />
realmente muito grande. É preciso adverti-los. As classes inferiores estão se tornando<br />
tão bem informadas, tão inteligentes e ganham seu pão e suas riquezas tão<br />
honestamente que não podem e não devem ser mantidas atrás para o prazer de tristes<br />
indivíduos ig<strong>no</strong>rantes e bem-nascidos, que vivem apenas para matar o tempo.” 38 É<br />
possível afirmar ainda que o amor desmesurado de Vitória por seu marido fosse o mais<br />
robusto alicerce de seu carisma popular. Ao personificar o ideal da mulher oitocentista,<br />
assumidamente apaixonada e companheira irrestrita de seu parceiro, a rainha criava um<br />
vínculo de afinidade com seus súditos, sem precedentes. A afirmação do casamento<br />
como o principal evento da vida, origem da família – o porto-seguro da burguesia,<br />
talvez seja sua maior contribuição social aos seus contemporâneos. 39<br />
Em 1861, morre seu querido Albert, vítima da tifo. Sua dor foi profunda e sem<br />
fim. Até sua própria morte, em 1901, a rainha viveu e gover<strong>no</strong>u abalada pela angústia<br />
dessa perda e pela responsabilidade de ser mulher, chefe de estado e modelo de<br />
reputação. Inconformada, não havia para ela desgosto maior que o seu. Nunca se<br />
chorava o bastante e, ao mesmo tempo, nunca se devia tentar superar a rainha em<br />
infortúnio. Sempre foi extremamente difícil para a rainha admitir que uma desgraça<br />
80
pudesse ser comparada à sua. Quando sua filha perdeu um filho, consolou-a<br />
escrevendo-lhe: “Pensa <strong>no</strong> que é a perda de um filho em comparação à de um<br />
marido”. 40<br />
Viúva, Vitória adotou o <strong>luto</strong> pelo resto da vida. Por não ter se casado <strong>no</strong>vamente,<br />
ter vivido desde essa perda em reclusão e não ser vista divertindo-se, sua imagem<br />
sempre severamente séria em negro, fiel ao marido até o fim, a Rainha transformou o<br />
<strong>luto</strong> em sinônimo de virtude. Sinal da esposa que não encontra mais alegria após a<br />
morte de seu companheiro. Vestiu o <strong>luto</strong> profundo por mais de três a<strong>no</strong>s e o meio-<strong>luto</strong><br />
por quarenta. Seguindo seu exemplo, mantê-lo durante o máximo de tempo possível<br />
garantia reputação altamente respeitável a qualquer viúva. Era uma expressão de<br />
isolamento e resguardo. A rainha foi também responsável pela adoção do <strong>luto</strong> por parte<br />
da corte e com isso influenciou mulheres que exigiam que seus empregados assim se<br />
vestissem na morte de seus senhores.<br />
Sua dor, despótica, se estendia ao espaço público – em detrimento de ser um<br />
sentimento privado. O corpo eternamente lutuoso da rainha era a representação de um<br />
Estado em <strong>luto</strong>. Sua casa mergulhou <strong>no</strong> <strong>luto</strong> mais estrito. Nada de festas, nada de<br />
música. O dia da morte de Albert tor<strong>no</strong>u-se sagrado, assim como de seu nascimento, de<br />
seu <strong>no</strong>ivado, de seu casamento. Em cada uma de suas moradas, o quarto de Albert era<br />
conservado intacto: a cama feita, os trajes do dia prontos para serem vestidos, as<br />
escovas e as navalhas dispostas como de hábito. Trinta a<strong>no</strong>s depois, Gladstone<br />
queixava-se de que um criado, trazendo água quente para o fantasma de Albert,<br />
interrompesse regularmente as conversações do fim do dia com a rainha. Ninguém de<br />
seu círculo tinha a audácia de sugerir-lhe pôr um fim nessa comédia fúnebre. 41<br />
rainha.<br />
Típica do período vitoria<strong>no</strong>, essa idolatria pelos mortos não foi exclusividade da<br />
81
*<br />
Assim, a profusão de cores deu lugar a corpos cobertos de breu. Algo de<br />
ideologicamente <strong>no</strong>vo refletiu-se <strong>no</strong>s vestuários. O preto foi o símbolo da praticidade –<br />
a roupa do homem de negócios e do trabalhador urba<strong>no</strong>, apropriada ao ambiente<br />
citadi<strong>no</strong> e à respeitabilidade burguesa –, da reação à ornamentação exagerada de<br />
aristocratas. Era, sobretudo, um emblema democrático: a cor neutra e a modelagem<br />
simplificada, aliadas à padronização industrial dos tamanhos serviram para uniformizar<br />
a sociedade. A roupa passa a ser um nivelador, indicando a igualdade política entre os<br />
homens e, por extensão, a anulação da individualidade: em última instância ocorre,<br />
mais do que essa democratização do vestuário, uma morte do sujeito, a quem se proíbe<br />
destacar-se dos outros pela aparência. E a morte exige o <strong>luto</strong>. A imagem da<br />
impessoalidade indica a aniquilação do próprio indivíduo enlutado. Ao vestir o corpo<br />
ascético e civilizado de preto, a modernidade encena um funeral elegante e discreto <strong>no</strong><br />
qual os mortos são todos. Cobertos de negro, esses homens apegam-se à materialidade e<br />
indicam uma <strong>no</strong>va relação com a morte. 42 Tornam-se iguais: como são todos os<br />
cadáveres.<br />
O <strong>luto</strong> femini<strong>no</strong> era a memória direta da dor da morte. O vestuário vitoria<strong>no</strong> que<br />
não permitia a semelhança entre mulheres de diferentes classes, visto que a roupa<br />
pronta, considerada deselegante, era somente utilizada pelas ordens inferiores, não<br />
permitia uma indumentária passível de democratização. Contudo, assemelhavam-se <strong>no</strong>s<br />
momentos de morte, em que se enlutavam – e <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> o período de <strong>luto</strong> fora<br />
prolongado como nunca dantes. Desenrolava-se com uma ostentação além do usual 43 :<br />
foi a época dos funerais histéricos <strong>no</strong>s quais já não se aceitava a morte do outro. 44 O<br />
82
apego ao corpo que se desenvolveu naquele <strong>século</strong> pressupôs um culto ao sofrimento,<br />
longo e carregado, <strong>no</strong> qual vestir o <strong>luto</strong> era morrer um pouco, junto daquele que se<br />
enterrava.<br />
O exagero do preto <strong>no</strong> vestuário oitocentista transitava entre os paradigmas da<br />
afirmação de classe, como o uniforme da <strong>no</strong>va sociedade burguesa, industrial e<br />
capitalista; da neutralidade na cor prática e funcional, aconselhável para todas as<br />
situações; e da negação de uma identidade pessoal <strong>no</strong> vestir. A contenção de cores era<br />
um prolongamento do fim da auto-expressão. Enlutar-se em vida era sinal da falta de<br />
sentido na própria existência. A perpetuação do <strong>luto</strong> era manifestação de algo que se<br />
perdeu e do pesar interminável por essa perda.<br />
83
Retrato de uma família americana em <strong>luto</strong>, tirada por volta de 1894.<br />
Vestidos elegante e apropriadamente, fazem questão da presença do parente morto:<br />
sobre a cadeirinha infantil decorada de flores, repousa a foto do bebê ainda vivo <strong>no</strong> colo da mãe.<br />
Fonte: http://en.wikipedia.org/wiki/Image:WCB-family-lompoc.jpg<br />
84
Todos de <strong>luto</strong>? Difícil afirmar; pelo vestuário mantêm-se a dúvida.<br />
A foto da família de Henry Whitlockfoi tirada <strong>no</strong> Natal de 1885, em Birmingham, na Inglaterra.<br />
Mesmo felizes, posam contraidamente para o registro.<br />
Fonte: http://www.cartes.freeuk.com/visitors/whit.htm<br />
85
Bibliografia<br />
MUHLSTEIN, Anka. Vitória: retrato da rainha como moça triste, esposa satisfeita,<br />
soberana triunfante, mãe castradora, viúva lastimosa, velha dama misantropa e avó da<br />
Europa. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo. Companhia das Letras, 1999.<br />
CRANE, Diana. A moda e seu papel social. Classe, gênero e identidade das roupas.<br />
São Paulo: <strong>Senac</strong>, 2006.<br />
FLUGEL, J.C. A psicologia das roupas. Tradução: Antonio Cardoso. São Paulo: Mestre<br />
Jou, 1966.<br />
GOETHE, J.W. Doutrina das Cores. Tradução: Marco Gian<strong>no</strong>tti. São Paulo: Nova<br />
Alexandria, 1993.<br />
HARVEY, John. Homens de preto. Tradução: Fernanda Veríssimo. São Paulo: Unesp,<br />
2003.<br />
HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas. A evolução do traje moder<strong>no</strong>. Tradução de<br />
Alexandre Tort. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.<br />
LURIE, Alison. A linguagem das roupas. Tradução: Ana Luiza Dantas Borges. Rio de<br />
Janeiro: Rocco, 1997.<br />
MELLO e SOUZA, Gilda. O espírito das roupas. A moda <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2001.<br />
PERROT, Michelle (org.) História da vida privada 4: da Revolução Francesa à<br />
Primeira Guerra. Tradução: Denise Bottman e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1991.<br />
STALLYBRASS, Peter. O casaco da Marx. Roupas, memória, dor. Tradução: Tomás<br />
Tadeu da Silva. São Paulo: Unesp, 2003.<br />
86
VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições.<br />
Tradução: Olívia Krahenbuhl. São Paulo: Nova Cultural, 1987, Coleção Os<br />
Eco<strong>no</strong>mistas.<br />
WILSON, Elizabeth. Enfeitada de sonhos: moda e modernidade. Lisboa: Edições 70,<br />
1986.<br />
Sites<br />
http://www.victoriana.com/library/harpers/funeral.html<br />
http://www.deathonline.net/remembering/mourning/victorian.cfm<br />
http://www.morbidoutlook.com/fashion/historical/2001_03_victorianmourn.html<br />
Notas<br />
1 Para Goethe, deve-se levar em conta a luz enquanto aspecto da Natureza que se expõe aos homens<br />
através do sentido da visão (tal como outros aspectos apresentam-se aos outros sentidos, como os sons<br />
dos animais e o gosto das frutas): as cores, antes de serem fenôme<strong>no</strong>s físicos existentes a priori, são<br />
concebidas articuladas à ação dos olhos – e não anteriores a ela. Conectado à alma, o olho huma<strong>no</strong><br />
percebe as diferentes cores que, por sua vez, proporcionam diferentes estados de ânimo. (GOETHE.<br />
Doutrina das cores. Páginas 37 e 129.)<br />
2 Hesíodo foi o poeta cujos versos trouxeram os primeiros relatos sobre a mitologia grega e a origem dos<br />
deuses do panteão grego. Teria vivido <strong>no</strong> <strong>século</strong> VIII a.C. Do texto original de sua Teogonia, sabe-se que<br />
os <strong>no</strong>mes da Noite e de Morte são, respectivamente, Nix e Thanatos e que viviam <strong>no</strong> Tártaro, um dos<br />
locais do Infer<strong>no</strong>. (HESÍODO. Teogonia. A origem dos deuses. Tradução de J.A.A. Torra<strong>no</strong>. São Paulo:<br />
Iluminuras, 1991.) Seguem os versos que introduzem esses personagens:<br />
Vasto abismo,<br />
nem ao termo de um a<strong>no</strong> atingiria o solo quem por suas portas entrasse<br />
mas de cá para lá o levaria tufão após tufão torturante,<br />
terrível até para os deuses imortais este prodígio.<br />
A casa da terrível Noite trevosa eleva-se aí oculta por nuvens escuras.<br />
(...)<br />
E lá os filhos da Noite sombria têm morada,<br />
So<strong>no</strong> e Morte, terríveis deuses,<br />
nunca o Sol fulgente olha-os com seus raios ao subir ao céu nem ao descer o céu.<br />
87
Um deles, tranqüilo e doce aos homens, percorre a terra e o largo dorso do mar,<br />
o outro, de coração de ferro e alma de bronze, impiedoso <strong>no</strong> peito,<br />
retém dentre os homens aquele que agarra,<br />
odioso até aos deuses mortais.<br />
3 O historiador inglês John Harvey analisa em sua obra Homens de preto os significados do uso do preto<br />
<strong>no</strong> vestuário entre a Idade Média e a contemporaneidade. Já na Introdução, lembra que “a conexão entre<br />
negro e morte não é jamais deixada pra trás. Apesar de o preto ter desenvolvido usos ordinários e<br />
insípidos, e também elegantes, sempre houve um elemento sinistro recorrente <strong>no</strong> uso que os homens<br />
fazem do preto.” A respeito do preto monacal, segue citação completa: O preto parece ter sido a cor com<br />
a qual se enterrava a si mesmo – a cor que, não tendo cor, apagava e afastava o eu; a cor do que há de<br />
mais aterrador na escuridão, das divindades infernais, de um poder terrível vindo das trevas. Foi o<br />
primeiro desses valores que deu início ao uso do preto na Igreja cristã. Os sacerdotes da Antiguidade<br />
não usavam o preto. (HARVEY. Homens de preto. Página 58.)<br />
4 Na França, os profissionais do <strong>luto</strong> eram os padres, os monges e os pobres que acompanhavam o<br />
cortejo e carregavam o corpo, primeiro numa liteira – ou ataúde -, mais tarde em um esquife ou caixão<br />
de madeira. O sentimento de <strong>luto</strong> era expresso não mais por gritos ou gestos, mas por uma cor. A cor é o<br />
negro, que se generaliza <strong>no</strong> <strong>século</strong> XVI. (ARIES, Philippe. História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Página 130.)<br />
5 John Harvey diz que essa dor se desdobrava em diversas situações de perda que não eram<br />
necessariamente relativas à morte efetivamente, mas a uma morte figurada, metafórica: a dor do amor não<br />
correspondido ou proibido, a dor da humilhação pela expulsão de um cavaleiro de sua ordem, por ex, a<br />
dor da penitência. (HARVEY. Homens de preto. Páginas 68-70.)<br />
6 A manufatura de tecidos pretos era ainda àquela altura, difícil e cara, tornando o pa<strong>no</strong> negro<br />
impraticável para os pobres e, consequentemente, uma marca de distinção social. Se não fossem usados<br />
materiais originalmente pretos, como a lã negra, o processo consistia em sobrepor cores até que não<br />
houvesse mais cor. (HARVEY. Homens de preto. Página 73.)<br />
7 Peste Negra é o <strong>no</strong>me pela qual ficou conhecida a epidemia de peste bubônica que dizimou um terço da<br />
população européia (mais de 25 milhões de pessoas) em meados do <strong>século</strong> XIV.<br />
A Guerra dos Cem A<strong>no</strong>s foi o conflito travado entre França e Inglaterra, iniciado em meados do <strong>século</strong><br />
XIV e findado em meados do <strong>século</strong> XV.<br />
8 Os temores dos homens do fim da idade Média foram <strong>no</strong>tadamente retratados por Hieronymus Bosh,<br />
pintor holandês que viveu entre os <strong>século</strong>s XV e XVI. Os pecados, o Juízo Final, Morte, Purgatório e<br />
Infer<strong>no</strong> são temas recorrentes de suas pinturas. Seus personagens não possuem a beleza física<br />
renascentistas, mas a fragilidade do corpo pecador e corruptível. As imagens caóticas impressionam pela<br />
riqueza de cenas e detalhes perturbadores, revelando muito do imaginário da época. Destaco,<br />
88
pessoalmente, os óleos Os sete pecados capitais, de 1480-1500 - <strong>no</strong> qual o centro do quadro, em formato<br />
de olho, contém um Cristo e a inscrição Cuidado, cuidado, Deus está vendo! -, e Miséria e Morte (A<br />
morte do avarento) de 1485-90, <strong>no</strong> qual um homem comum está em seus últimos momentos de vida. A<br />
morte já está em sua porta e ele deve se decidir se seguirá com o anjo à sua direita ou com um ser<br />
demoníaco à sua esquerda, que lhe oferece um saco de dinheiro. Imagens disponíveis, respectivamente,<br />
em: http://museoprado.mcu.es (Site do Museo del Prado em Madri, onde a obra Os sete pecados capitais<br />
encontra-se exposta) e http://www.nga.gov (Site da National Gallery of Art em Washington, onde Miséria<br />
e Morte encontra-se exposta.)<br />
9 O impacto do preto na corte é destacado por John Harvey: No início do <strong>século</strong> XV o preto era pouco<br />
usado pelos príncipes. Pode-se imaginar então o grande efeito alcançado nesse mundo colorido por um<br />
monarca que escolhesse vestir preto como fez Felipe, o Bom, duque de Borgonha. Felipe vestiu preto<br />
pela primeira vez quando seu pai, João sem Medo, foi assassinado pelos franceses em 1419; e sua<br />
decisão de estar sempre de preto, a partir de então, tinha, sem dúvida, um caráter <strong>no</strong>bremente<br />
ameaçador: era um sinal aos franceses de que ele não havia esquecido. A Borgonha era poderosa<br />
durante o reinado de Felipe, e sua corte e aristocracia influenciavam a moda em toda a Europa. A moda<br />
da Borgonha era conhecida pelo uso do preto nas roupas tanto masculinas quanto femininas.<br />
(HARVEY. Homens de preto. Páginas 71-3.)<br />
Depois de Felipe, outro monarca que fica conhecido pelo uso de preto foi Felipe I rei da Espanha entre<br />
1556 e 1598I, filho de Carlos V. Sobre ele, Harvey diz: na companhia de monarcas que vestem tecidos<br />
dourados e arminho, Felipe se mantém sóbrio, vestido com roupas simples e negras. Como a sociedade<br />
espanhola se dividia claramente entre o mundo feudal da corte e o mundo mercantil das cidades, talvez<br />
fosse bem pensado da parte de Felipe vestir-se num estilo negro que o associasse – ele, o supremo<br />
aristocrata – a seus cidadãos urba<strong>no</strong>s que, de certa forma, se sentiam ameaçados. Mas as roupas negras<br />
de Felipe não eram originalmente mercantis ou urbanas. Eram, na verdade, extensão do <strong>luto</strong> por sua<br />
segunda esposa, cuja morte o afetou realmente (...) Mas assim como fez Felipe, o Bom, ele também<br />
continuou a usar o negro passado o período de <strong>luto</strong>, e a cor lhe parecia adequada por outras razões além<br />
da dor. O preto tor<strong>no</strong>u-se uniforme dos oficiais e homens de poder em todas as possessões de Felipe. O<br />
estilo já quase todo negro da Borgonha foi ao mesmo tempo eclipsado e consumado <strong>no</strong> <strong>no</strong>vo negro da<br />
extensa administração de Felipe. A Espanha era a nação mais poderosa do mundo e não é surpresa que<br />
ditasse a moda internacional. (HARVEY. Homens de preto. Páginas 94-99.)<br />
10 As leis suntuárias foram criadas para limitar o uso de determinados itens – do vestuário, de luxo, da<br />
alimentação – a determinadas classes. Em vigor desde o fim da Idade Média e durante todo o período<br />
moder<strong>no</strong>, passaram muitas vezes por letra morta, mas são muito representativas da necessidade em<br />
identificar o grupo social a que se pertence cada indivíduo através da aparência já naquele período. Além<br />
de evidenciarem o quanto os grupos copiavam uns aos outros, na tentativa, ou <strong>no</strong> sonho, de serem<br />
confundidos com indivíduos hierarquicamente superiores, numa espécie de realização do conto de<br />
Cinderela. Esse momento da medievalidade marca o início da formação de uma proto-burguesia, que <strong>no</strong>s<br />
89
<strong>século</strong>s seguintes cresceu e se fortaleceu. Os decretos serviam, principalmente, para erguer as fronteiras<br />
sociais entre aristocracia e burguesia, a segunda sempre buscando se apresentar como a primeira, numa<br />
dialética da cópia, sobretudo do vestuário, que irritava os membros das cortes.<br />
11 A respeito da relação entre o vestuário negro e o protestantismo, John Harvey comenta que “Vestir-se<br />
de preto tor<strong>no</strong>u-se uma prática protestante tão freqüente, tanto <strong>no</strong> púlpito quanto fora dele, que não seria<br />
errado considerar a consonância entre a roupa preta dos “purita<strong>no</strong>s” e o seu modelo de<br />
espiritualidade.” Em larga medida, essa aproximação entre o preto e o ascetismo protestante tor<strong>no</strong>u a cor<br />
um emblema da classe que lidava com dinheiro obtido por seu próprio esforço e eco<strong>no</strong>mia. Era a cor da<br />
restrição: dos gastos, dos luxos. (HARVEY. Homens de preto. Página 111.)<br />
12 A pesquisadora <strong>no</strong>rte-americana Anne Hollander buscou na história do vestuário a simplificação da<br />
roupa masculina ao que de<strong>no</strong>mina traje, uma espécie de prelúdio do ter<strong>no</strong>, ou seja, a composição de 4<br />
peças, a saber: a casaca – depois tornada paletó -, a camisa, o colete e as calças. Sobre o vestuário do<br />
Antigo Regime, segue citação da autora: A rigidez, a ponderabilidade, a constrição e os fechos<br />
problemáticos, assim como todos os ornamentos precários e todas as dificuldades similares <strong>no</strong> vestuário,<br />
lembravam constantemente a homens e mulheres privilegiados que eles eram seres altamente civilizados<br />
e separados por um treinamento árduo, educação elaborada e responsabilidades complexas dos meros<br />
peões com seus prazeres, afazeres e deveres simples. (HOLLANDER. O sexo e as roupas. Páginas 69-<br />
70.)<br />
13 Sobre o início da simplificação do traje masculi<strong>no</strong>, Harvey diz q “a própria Inglaterra, ao longo do<br />
XVIII vinha buscando um estilo simples, apesar de toda a influência das cores e laços franceses, e<br />
Londres era vista como uma cidade sobriamente vestida. Se o <strong>século</strong> XVIII na Inglaterra era um<br />
espetáculo de perucas e laços e de grandes e negros sinais <strong>no</strong>s rostos empoados dos homens (...) ele<br />
também apresentava um grande número de negociantes e de estudiosos, de inventores e daqueles que<br />
investiram em suas invenções, todos eles racionais, industriais e distintamente sóbrios.” (HARVEY.<br />
Homens de preto. Páginas 165-6.)<br />
14 Da diferença entre alfaiates e costureiras, Anne Hollander comenta: As mulheres nunca eram alfaiates,<br />
ou treinadas para criar estilo, corte e acabamento – nunca haviam sido mestres-alfaiates, mas eram<br />
reconhecidamente especialistas <strong>no</strong> trabalho de costura fina. A idéia era de que as mulheres eram<br />
caprichosas, diligentes e hábeis com as mãos, mas não essencialmente criativas (...) Com o surgimento<br />
das guildas de costureiras, responsáveis a partir de então pela confecção de roupas femininas, os alfaiates<br />
especializaram-se somente nas masculinas: Durante as duas centenas de a<strong>no</strong>s anteriores ao surgimento<br />
dessa divisão, armações e barbatanas feitas de metal, madeira ou ossos de baleia haviam sido costuras<br />
diretamente nas roupas femininas para dar-lhes formas, e armações similares haviam sido costuradas<br />
<strong>no</strong>s gibões masculi<strong>no</strong>s e na bainha de seus casacos. Porém com o surgimento do corpete femini<strong>no</strong>, por<br />
volta de 1700, ou seja de peça estruturada já contendo as armações, não havia necessidade em se i<strong>no</strong>var<br />
na modelagem, apenas utilizar o suporte pronto do corpete: Isso significava que o <strong>no</strong>vo ofício de<br />
90
costureira na verdade consistia na utilização simples do tecido, muitas vezes em dobras, e com poucos<br />
cortes, para ajustá-la a um corpo já moldado, permitindo que boa parte se transformasse em saia,<br />
adicionando-lhe depois as mangas. Para esse tipo de vestido não eram necessários um corte e uma<br />
confecção criativa. Ocupavam-se, basicamente, com decorativismos. (HOLLANDER. O sexo e as<br />
roupas. Página 90.)<br />
15 Tomo emprestado esses termos, de maneira enviesada, da historiadora de arte Tamar Garb. A própria<br />
pesquisadora apropria-se desses termos do texto de Kaja Silverman, The acoustic mirror (SILVERMAN,<br />
K. The Acoustic Mirror : the Female Voice in Psychoanalysis and Cinema. Bloomington: Indiana<br />
University Press, 1988.) para empregá-los em relação à arte. A autora analisa a apresentação de sujeitos<br />
masculi<strong>no</strong>s e femini<strong>no</strong>s em obras do período vitoria<strong>no</strong>, destacando que a mulher é sempre sexualmente<br />
mais detalhada e por isso mais evidente <strong>no</strong>s quadros. Segue citação completa: Podemos ver a rígida<br />
separação que a estrutura do quadro impõe como demonstração de uma ansiedade que está <strong>no</strong> cerne da<br />
manutenção das diferenças sexuais na cultura burguesa moderna. Poderíamos ser levados a perguntar:<br />
por que a idéia do homem funcionando explicitamente como objeto de exibição seria tão ameaçadora que<br />
devesse ser absolutamente descartada de um quadro como este? Por que na moderna eco<strong>no</strong>mia sexual, a<br />
“hiperespetacularização” (extrema concentração <strong>no</strong> valor de exibição) do sujeito femini<strong>no</strong> é dependente<br />
da “desespetacularização” (ausência total de valor de exibição) do sujeito masculi<strong>no</strong> heterossexual<br />
<strong>no</strong>rmativo? (GARB, Tamar. “Gênero e Representação”. In FRASCINA (et allii). Modernidade e<br />
modenismo. A pintura francesa <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, Página 226.) Por<br />
considerar esses termos muito eficientes sobre a relação entre gêneros <strong>no</strong> vitorianismo, adotei-os ainda<br />
que sem a possibilidade de me remeter à sua fonte original.<br />
16 Max Weber, filósofo alemão do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, via as atitudes burguesas pelo viés do utilitarismo. Em seu<br />
texto Ética protestante e o espírito do capitalismo, analisada <strong>no</strong> Capítulo 1 deste trabalho, o autor entende<br />
que viver e consumir equilibradamente e sem desperdício era uma idéia incutida pelo protestantismo,<br />
responsável pela consolidação de grupos burgueses contrários a pratica do dispêndio conspícuo. A<br />
ostentação e a opulência deveriam ser não só evitadas como repugnadas e as atitudes pensadas sempre<br />
pela ótica do utilitarismo; as virtudes vistas como niveladores úteis nas relações sociais e comerciais: A<br />
honestidade é útil, pois assegura o crédito, e assim é com a pontualidade, com a industriosidade, com a<br />
frugalidade (...) Tais virtudes, assim como as demais, só são virtudes à medida que são úteis aos<br />
indivíduos. (...) O tipo ideal de empreendedor capitalista evita a ostentação e gastos desnecessários,<br />
assim como o regozijo consciente do próprio poder, e fica embaraçado com as manifestações externas do<br />
reconhecimento social que recebe. (WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São<br />
Paulo: Martin Claret, 2001, páginas 59 a 124.)<br />
17 Essa simbologia das silhuetas em X e S para mulheres e em H para homens do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, em<br />
referência ao desenho do corpo construído pela roupa, foi apresentada pela socióloga brasileira Gilda de<br />
Melo e Souza, reconhecidamente uma das primeiras pesquisadoras do país a se debruçar sobre o tema da<br />
moda. Seu ponto de partida foi, justamente, o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> e em sua dissertação de mestrado, da década de<br />
91
1950, publicada na década de 1980, intitulada O espírito das roupas. Trata, principalmente, da relação<br />
nascida naquele <strong>século</strong> entre homens e mulheres com seu vestuário, pelos vieses da luta de classes, da<br />
roupa enquanto expressão da alma feminina e da dinâmica urbana como responsável pelo nascimento do<br />
fenôme<strong>no</strong> Moda.<br />
18 Alisson Lurie, pesquisadora <strong>no</strong>rte-americana, estudou os tipos de mensagens possíveis de serem<br />
produzidas pelas associações de peças de roupas em seu texto A linguagem das roupas. Entende o<br />
vestuário como uma espécie de língua, com seus diversos elementos de formação de sentido, tais como as<br />
línguas faladas. Sobre o vestuário femini<strong>no</strong> do vitorianismo, segue a citação completa: Agourentamente,<br />
essas roupas garantiam a saúde deficiente, encantadora, vestindo a mulher com sapatilhas de sola fina e<br />
vestidos de mangas curtas e decotados, de musselina transparente. Quando usadas <strong>no</strong>s salões de baile<br />
com correntes de ar e nas alamedas geladas e lamacentas de um inver<strong>no</strong> inglês ou <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>,<br />
essas roupas eram quase uma garantia de resfriados com febre e gargantas doendo (...) se olharmos os<br />
retratos dessa época, não admira que a tuberculose fosse a doença mais terrível. (...) O espartilho<br />
também deformava os órgãos inter<strong>no</strong>s e impossibilitava respirar profundamente. Consequentemente, a<br />
mulher vestida com elegância corava e desmaiava facilmente, sofrendo de falta de apetite e problemas<br />
digestivos, e se sentia fraca e exausta após qualquer esforço maior. Para destacar ainda mais essa<br />
situação de fragilidade, as mulheres vestiam-se frequentemente de branco: Na vida secular, o branco<br />
sempre representou a pureza e a i<strong>no</strong>cência. Por se sujar, física e simbolicamente, com tanta facilidade, o<br />
branco sempre foi popular entre aqueles que desejam demonstrar riqueza e status através do consumo<br />
conspícuo de sabão ou liberdade conspícua de mão-de-obra. (LURIE. A Linguagem das roupas. Páginas<br />
198, 229-30.)<br />
19 Em sua análise sobre o nascimento de uma “classe ociosa”, de 1899, o sociólogo e eco<strong>no</strong>mista<br />
Thorstein Veblen comenta a intenção por trás dessa maneira de se vestir: O vestuário, portanto, a fim de<br />
servir eficazmente a seus propósitos, não deve apenas ser dispendioso, mas deve também tornar visível a<br />
todos os observadores que quem o usa não está ligado a qualquer espécie de labor produtivo. Um exame<br />
detalhado daquilo que, na compreensão popular, passa por elegância <strong>no</strong> vestir mostrará que essa<br />
elegância é conseguida para dar a impressão de que a pessoa que a tem não costuma desenvolver<br />
qualquer esforço útil. O efeito agradável de vestuários elegantes e imaculados se deve principalmente –<br />
se não de todo – à sugestão do ócio que trazem. (VEBLEN. A teoria da classe ociosa. Página 48.)<br />
A análise de Veblen tor<strong>no</strong>u-se uma referência justamente por demonstrar, por meio de uma exposição<br />
histórica sobre o surgimento da sociedade de consumo, que o objetivo principal do dispêndio conspícuo é<br />
construir uma aparência que demonstre aos outros o que se possui, ou seja, uma imagem que represente a<br />
posição financeira do indivíduo e cuja finalidade é conquistar simpatia e afeição ou – em última instância<br />
– causar a inveja. Esse espírito de competição, inerente e natural ao ser huma<strong>no</strong>, seria, nas sociedades<br />
modernas, extravasado através do consumo e praticado em um nível de posse: possuir mais, ou melhor,<br />
que seus semelhantes.<br />
92
Nesse sentido, as análises de Thorstein Veblen e de Max Weber permitem que se reflita sobre essa<br />
diferença entre o consumo conspícuo de cortesãos e burgueses. Essa será dada por uma consciência moral<br />
que permite aos segundos o acesso a itens supérfluos na medida em que – teoricamente - se utilizam dos<br />
frutos de seu próprio trabalho, enquanto os primeiros se apropriam indiscriminadamente dos frutos do<br />
trabalho alheio. Outro ponto de correlação entre os textos seria em relação ao consumo conspícuo em si,<br />
já que Weber assinala que, pela ética protestante, não se consome nada além do prático e necessário. Pois<br />
que, a partir de Veblen, vimos como a definição de necessário se torna fluida na medida em que<br />
necessário se torna proporcional ao estilo de vida que se conquista. São idéias complementares e não<br />
contraditórias.<br />
20 O fenôme<strong>no</strong> da “<strong>no</strong>va mulher” é reconhecido pela historiografia por conta dos <strong>no</strong>vos grupos femini<strong>no</strong>s<br />
que, na transição entre os <strong>século</strong>s <strong>XIX</strong> e XX, passam a efetivamente participar da sociabilidade urbana<br />
através de atividades antes restritas aos homens. Ao aceitarem as <strong>no</strong>vas profissões e liberdades, as<br />
mulheres reinvidicam mais fortemente o direito de trabalhar, viajar, amar. Expressão coletiva de<br />
aspirações muito mais difusas, o feminismo intermitente do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, frequentemente infiltrado nas<br />
brechas do poder, torna-se então um movimento constante; através de jornais, grupos e congressos,<br />
reclama a igualdade de direitos civis e políticos, apoiando-se em uma dupla argumentação: a do papel<br />
social e maternal das mulheres, mas também a da lógica dos direitos naturais; se as mulheres são<br />
indivíduos porque tratá-las como me<strong>no</strong>res de idade? A “<strong>no</strong>va mulher”, celebrada às vezes<br />
ambiguamente por muitos homens desejosos de viverem de outra maneira a relação de casal, é uma<br />
figura largamente européia. (PERROT. História da vida privada. Página 613.)<br />
21 Eis em traços rápidos um apanhado da evolução da moda <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. Mais do que em épocas<br />
anteriores, ela afastou o grupo masculi<strong>no</strong> do femini<strong>no</strong>, conferindo a cada um uma forma diferente, um<br />
conjunto diverso de tecidos e de cores, restrito para o homem, abundante para a mulher, exilando o<br />
primeiro numa existência sombria onde a beleza está ausente, enquanto afoga a segunda em fofos e<br />
laçarotes. (MELO e SOUZA. O espírito das roupas. Página 72.)<br />
22 Ao homem cabe apenas as fazendas ásperas, pois à medida que o <strong>século</strong> avança vai renunciando às<br />
sedas, aos cetins, aos brocados, que aliás há muito vinha empregando somente <strong>no</strong>s acessórios, como <strong>no</strong><br />
colete, e escondendo debaixo da austeridade do traje. Ao terminar o <strong>século</strong> está acomodado à monótona<br />
existência do linho e da lã. (MELLO e SOUZA. O espírito das roupas. Páginas 70-1.)<br />
23 A historiadora Michelle Perrot, uma das organizadoras da célebre série História da vida privada fala da<br />
importância do vestuário <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s que se seguiram à Revolução Francesa. Era através dele que o<br />
indivíduo tornavam público seus ideais políticos, de preferência em conformidade com os princípios<br />
revolucionários. Afinal, como seria possível chegar à igualdade festejada pelo lema revolucionário de os<br />
homens ainda se vestissem de maneiras diferentes, manifestando suas diferenças sociais? Um dos<br />
exemplos mais claros da invasão do público <strong>no</strong> espaço privado é a preocupação constante com o<br />
vestuário. Desde a abertura dos Estados Gerais, em 1789, a roupa possui um significado político.<br />
93
Michelet [historiador francês do <strong>século</strong> XVIII, entusiasta da Revolução] descreveu a diferença entre a<br />
sobriedade dos deputados do Terceiro Estado, á frente da procissão de abertura – “uma massa de<br />
homens, vestidos de negro com trajes modestos” -, e “o peque<strong>no</strong> grupo refulgente dos deputados da<br />
<strong>no</strong>breza com seus chapéus de plumas, suas rendas, seus paramentos de ouro”. A moda masculina não se<br />
definiu de imediato com tanta clareza, mas a indumentária logo se transformou num sistema semiótico<br />
intensamente carregado. Ela revelava o significado público do homem privado. Os moderados e os<br />
aristocratas eram identificados por sua recusa em usarem a roseta. A partir de 1792, o barrete vermelho,<br />
o casaco estreito com várias filas de botões e as calças largas passam a definir o sans-culotte, isto é, o<br />
verdadeiro republica<strong>no</strong>. A roupa é investida de tal significado que a Convenção em outubro de 1793, vê-<br />
se obrigada a reafirmar a “liberdade do vestuário” Apesar do aparente apoio da Convenção ao direito<br />
de se vestir à vontade, o Estado desempenhou um papel crescente nesse campo. A partir de 5 de julho de<br />
1792, todos os homens passaram a ser obrigados por lei a usar a roseta tricolor; a partir de 3 de abril de<br />
1793, todos os franceses, sem distinção de sexo, ficaram submetidos a esse decreto. Em maio de 1794, a<br />
Convenção solicitou ao pintor-deputado David que apresentasse projetos e sugestões para melhorar o<br />
traje nacional. A indumentária civil criada por David nunca foi usada. No entanto, a simples idéia de um<br />
uniforme civil mostra que havia quem desejasse o fim da fronteira entre o público e o privado. Mesmo<br />
depois de abandonado o grandioso projeto de reformar e uniformizar a indumentária masculina, as<br />
roupas não perderam seu significado político. De modo geral, a Revolução contribui para diminuir o<br />
número de peças de roupa e deixar a indumentária mais solta. (PERROT. Revolução Francesa e vida<br />
privada. In: História da vida privada. Páginas21-8.)<br />
24 Segue a definição de Michelle Perrot: O dandismo representa uma forma ainda mais consciente e<br />
elaborada de recusa da vida burguesa. De origem britância e essência aristocrática, o dandismo toma a<br />
distinção como o próprio princípio de seu funcionamento. A boêmia se inclina para a esquerda, o<br />
dandismo se inclina para a direita. Antiigualitário, ele gostaria de recriar uma aristocracia que<br />
certamente não seria a do dinheiro ou a da linhagem, mas a de um temperamento – “nasce-se” dândi – e<br />
de um estilo. Homem público, o dândi, ator do teatro urba<strong>no</strong>, protege sua individualidde por trás da<br />
máscara de uma aparência que eel tenta tornar indecifrável. Ele alimenta o gosto da ilusão e do disfarce,<br />
tem um agudo senso dos detalhes e dos acessórios (luvas, gravatas, bengalas, echarpes, chapéus...). Tudo<br />
isso supõe uma vida de lazer e rendas suficientes que dispensam o trabalho. Certamente mais abonados<br />
que os boêmios, os dândis, porém não eram muito abastados. O desprezo do dinheiro como objetivo, o<br />
gosto pelo jogo e pela ostentação do luxo, mas também a aceitação do risco e de uma eventual ascese<br />
fazem parte da moral dândi, anticapitalista e antiburguesa.. O dandismo é uma ética, uma concepção de<br />
vida que eleva o celibato e a vagabundagem ao nível de uma resistência consciente. (PERROT. À<br />
margem: solteiros e solitários. In: História da vida privada. Páginas 296-98.)<br />
25 Tal tendência não passou despercebida a Veblen: Há, naturalmente, homens livres, e não poucos, que<br />
transgridem a linha teórica entre o vestuário masculi<strong>no</strong> e femini<strong>no</strong>, até o ponto de se vestirem em trajes<br />
obviamente planejados para torturar o seu corpo mortal; mas todo mundo reconhece, sem sombra de<br />
94
dúvida, que esses trajes masculi<strong>no</strong>s se afastam visivelmente da <strong>no</strong>rmalidade. Temos o hábito de<br />
qualificar tais trajes de “efeminados”. (VEBLEN. A teoria da classe ociosa. Página 84.)<br />
26 HOLLANDER. O sexo e as roupas. Página 144.<br />
27 O historiador inglês Peter Stallybrass relembra que até mesmo Karl Marx precisou recorrer inúmeras<br />
vezes às lojas de penhores, onde frequentemente o objeto da penhora era seu casaco de inver<strong>no</strong> e o<br />
dinheiro arrecadado convertia-se não só em alimentos para a família como em papéis e tinta para seus<br />
textos. E enquanto não reavia a peça, sequer podia sair de casa por não ter mais o que vestir. Em carta<br />
enviada ao amigo Friederich Engels, Marx queixava-se que havia uma semana que não podia sair por<br />
falta dos casacos que estavam penhorados. Naqueles a<strong>no</strong>s de 1850 e 1860, seus casacos estavam<br />
condenados a irem e voltarem diligentemente das lojas de penhores. (STALLYBRASS, Peter. O casaco<br />
da Marx. Roupas, memória, dor. São Paulo: Unesp, 2003.)<br />
Um dos problemas maiores de Marx era o fato de não poder freqüentar o Museu Britânico devido à falta<br />
dos casacos, não só pelo motivo óbvio de não se proteger do frio, mas porque o salão de leitura não<br />
aceitava simplesmente qualquer um que chegasse a partir das ruas; e um homem sem um casaco, mesmo<br />
que tivesse um passe de entrada, era simplesmente qualquer um. Sem seu casaco, Marx não estava, em<br />
uma expressão cuja força é difícil de reproduzir, “vestido em condições que pudesse ser visto”.<br />
(STALLYBRASS. O casaco de Marx. Página 65.)<br />
Veblen, contemporâneo de Marx, comentava que a maior parte do dispêndio em que incorrem todas as<br />
classes em questão de vestuário é principalmente devida ao interesse pela aparência respeitável, não<br />
pela proteção da própria pessoa. E, provavelmente, em nenhum outro ponto é a sensação de sordidez tão<br />
agudamente sentida como numa decadência do padrão estabelecido pelos usos sociais em matéria de<br />
vestuário. (VEBLEN. A teoria da classe ociosa. Página 77.)<br />
28 É possível averiguar esse dado em fotos da época: é muito comum as mulheres estarem vestindo preto,<br />
tal como os homens. Provavelmente todos seus poucos vestidos formais eram preto - ou ainda porque<br />
estavam efetivamente de <strong>luto</strong>.<br />
29 Segundo Gilda de Melo e Souza, O homem só se desinteressou da vestimenta quando esta, devido à<br />
mudança profunda <strong>no</strong> curso da história, deixou de ter importância excessiva na competição social. A<br />
Revolução Francesa, consagrando a passagem de uma sociedade estamental a uma sociedade de classes,<br />
e estabelecendo a igualdade política entre os homens, fez com que as distinções não se expressassem<br />
mais pelos sinais exteriores da roupa, mas através das qualidades pessoais de cada um. A carreira<br />
estava aberta ao talento. (MELO e SOUZA. O espírito das roupas. Página 80.)<br />
30 Essa primeira corrente de pesquisadores seria liderada pelo psicólogo J.C. Flugel, que na década de<br />
1930 escreve uma Psicologia das roupas, texto <strong>no</strong> qual cunha e expressão “Grande Renúncia Masculina”,<br />
95
eferente a essa perda da beleza na roupa masculina <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>: Pode-se dizer que os homens<br />
sofreram grande derrota na súbita redução dos ador<strong>no</strong>s na vestimenta masculina, que se efetuou <strong>no</strong> final<br />
do <strong>século</strong> XVIII. Por volta dessa época, ocorreu um dos mais <strong>no</strong>táveis acontecimentos em toda a história<br />
do vestuário. Um evento sob cuja influência ainda vivemos e que tem recebido muito me<strong>no</strong>s atenção do<br />
que merece (...): os homens abdicaram de seu direito às formas mais claras, mais alegres, mais<br />
elaboradas e mais variadas de ornamentação, deixando-as inteiramente para uso das mulheres, tornando<br />
assim o seu corte de roupa a mais austera e ascética de todas as artes. Em termos de moda, esse<br />
acontecimento certamente deve ser considerado “A Grande Renúncia Masculina”. O homem abando<strong>no</strong>u<br />
sua reivindicação de ser considerado belo. Objetivou, assim, ser considerado somente útil. Se as roupas<br />
permaneceram importantes para ele, seu maior empenho ficou <strong>no</strong> sentido de estar “corretamente”<br />
trajado, não de estar elegante ou elaboradamente vestido. (FLUGEL Psicologia das roupas. Página<br />
100.). Gilda de Melo e Souza parece seguir essa linhagem inaugurada por Flugel, ao afirmar que o<br />
princípio da atração e da sedução estão ausentes na roupa masculina do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. O grupo masculi<strong>no</strong><br />
teria abandonado o ador<strong>no</strong>, substituindo-o por símbolos de dignidade e competência. (MELLO e<br />
SOUZA. O espírito das roupas. Página 80.) Já a socióloga Elizabeth Wilson destaca que a grande<br />
renúncia masculina se tor<strong>no</strong>u um clichê infundado da historiografia de moda, porém não vai mais adiante<br />
em sua análise: O que é certamente uma realidade é que a coincidência da revolução industrial com os<br />
ideais políticos revolucionários e com o credo do romantismo resultaram numa mudança fundamental <strong>no</strong><br />
aparato masculi<strong>no</strong>. A isto se tem chamado “grande renúncia masculina” e muitos historiadores da moda<br />
concordam com o ponto de vista de que, a partir desse momento, os homens abandonaram todas as<br />
pretensões de beleza e só as mulheres continuaram a utilizar a roupa como forma de exibição. Este<br />
clichê da história da moda esconde uma realidade mais complexa. Ou ainda: As primeiras modas<br />
masculinas urbanas adotaram a sobriedade escura dos dandies e do linho branco limpo. Eles vestiam<br />
este “uniforme” até à <strong>no</strong>ite, momento em que as suas mulheres se vestiam elegantemente. Na base deste<br />
contraste desenvolveu-se o mito de que a moda, depois da revolução industrial, passou a ser uma questão<br />
inteiramente feminina. (WILSON. Enfeitada de sonhos. Páginas 45 e 50.)<br />
31 Na segunda linhagem de pesquisadores, mais recente, destaca-se o inglês John Harvey e a <strong>no</strong>rte-<br />
americana Diana Crane. O primeiro autor afirma que o vestuário preto é sexualmente muito atraente e<br />
esse aspecto não passou despercebido pelos vitoria<strong>no</strong>s: Salientei a sobriedade, como o faziam os<br />
comentaristas da época, mas um outro lado da questão, muito relevante para os dândis, diz respeito à<br />
atração sexual do preto. Quem veste preto parece mais magro, realça o rosto, talvez sugira intensidade.<br />
A elegância glamurosa e vistosa de muitos homens de preto – o ar de correção absoluta de uns, o langor<br />
longilíneo e elegante de outros – é aparente em inúmeras pinturas de bailes ou de passeios do <strong>século</strong><br />
<strong>XIX</strong>. (HARVEY. Homens de preto. Página 45.) Já para Diana Crane, é insensato falar de renúncia estética<br />
visto que as modas para homens continuavam sucedendo umas às outras, refletindo a preocupação pela<br />
aparência: Os historiadores da moda com freqüência afirmam que ao homens do <strong>século</strong> xix evitavam a<br />
moda em favor de uma aparência propositalmente insípida e conservadora. Na realidade, as modas<br />
masculi<strong>no</strong>s mudavam regularmente e havia numerosos tipos de casacos, calças, plastrões, gravatas e<br />
96
chapéus que ofereciam material abundante para afirmar ou manter o status social. (CRANE. A moda e<br />
seu papel social. Página50.)<br />
32 De acordo com Michelle Perrot, em 1801 a expectativa de vida era de 30 a<strong>no</strong>s. Em meados do <strong>século</strong><br />
passou para 38 a<strong>no</strong>s para os homens e 41 para as mulheres. (PERROT. Os ritos da vida privada. In:<br />
História da vida privada. Página 255.) Segundo o historiador inlgês Eric Hobsbawm, a esperança de vida<br />
média <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 1880 nas principais regiões desenvolvidas - Bélgica, Grã-Bretanha, França<br />
Massachussets, Holanda e Suíça - era de apenas 43-5 a<strong>no</strong>s e me<strong>no</strong>s de 40 na Alemanha. (HOBSBAWM,<br />
Eric. Era dos Impérios. 1875-1914. São Paulo: Paz e Terra, 2006, Página 50.)<br />
33 De maneira geral, o <strong>luto</strong> na Europa Ocidental era muito mais severo do que o <strong>luto</strong> na América ou na<br />
Austrália, apesar de seguirem também a etiqueta vitoriana. O item que mais se aproximava era o<br />
vestuário: Na América, vestia-se preto durante um a<strong>no</strong> após a morte de genitores e filhos e durante seis<br />
meses após a perda de avós e outros parentes. Até mesmo as crianças pequenas tinham que usar batas<br />
pretas. Uma viúva ou um viúvo devia vestir <strong>luto</strong> fechado por dois a<strong>no</strong>s, podendo optar – como a Rainha<br />
Vitória – por usá-lo permanentemente. Para os homens, cujo vestuário cotidia<strong>no</strong> era de tonalidade<br />
sombria, o traje de <strong>luto</strong> não requeria muita alteração de seu guarda-roupa. Mas para mulheres, dava-se<br />
uma modificação complexa e cara. (LURIE. A linguagem das roupas. Página 203.)<br />
34 A prática justificava-se por uma superstição da época, na qual a alma do defunto poderia se deter diante<br />
de sua imagem refletida e não ascender.<br />
35 As informações a respeito dos estágios do <strong>luto</strong> vitoria<strong>no</strong> foram feitas a partir das leituras de PERROT,<br />
ARIES, GAY e dos sites mencionados ao fim do capítulo. Apesar de algumas diferenças entre esses<br />
textos, busquei mencionar os dados que não estivessem em contradição nas referidas fontes.<br />
36 Os predecessores de Vitória se haviam distinguido fosse por seus caprichos e suas loucuras, fosse por<br />
seu desinteresse pela coisa pública, ao passo que ela, desde sua subida ao tro<strong>no</strong>, compreendeu seus<br />
direitos e seus deveres. Graças às suas qualidades pessoais, contribuiu para definir um <strong>no</strong>vo tipo de<br />
monarca, cujo modelo transmitiu a seus sucessores. Sua seriedade levou-a a usar ativamente seu direito<br />
à informação e à prevenção; seu bom senso lhe permitiu evitar o impasse <strong>no</strong>s casos em que não estava de<br />
acordo com seus ministros e seu gosto pela calma e pala intimidade mudou radicalmente a imagem<br />
popular da família real. Assim como essa, as próximas citações foram retiradas da biografia da Rainha<br />
Vitória escrita por Anka Muhlstein. (MULHSTEIN. Vitória. Página 10-11.)<br />
37 Idem, página 41.<br />
38 Ibidem, página 139.<br />
97
39 A grande contribuição social da Rainha Vitória foi a afirmação da família em termos que <strong>no</strong>s são<br />
acessíveis. Vitória deu títulos de <strong>no</strong>breza a sentimentos que até então haviam florescido somente nas<br />
classes médias. Por isso, as alianças e a passagem do privado ao público adquirem com ela um sabor<br />
<strong>no</strong>vo. (Ibidem, página 11)<br />
40 Ibidem, página 99.<br />
41 Idem.<br />
42 A <strong>no</strong>va relação com a morte será analisada <strong>no</strong> segundo capítulo deste trabalho.<br />
43 Segundo John Harvey, o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> realmente tinha seu culto à morte, um culto ao longo e carregado<br />
pesar, aos funerais elaboradamente decorados e ao uso do <strong>luto</strong> por um longo período de tempo. Ou seja,<br />
o <strong>luto</strong> se desenvolve aí com uma ostentação jamais vista anteriormente, e nunca mais repetida<br />
posteriormente, até a atualidade. (HARVEY. Homens de preto. Página 170.)<br />
44 Também esse aspecto da relação com a morte <strong>no</strong> período vitoria<strong>no</strong> é assunto do capítulo seguinte e nele<br />
será amplamente discutido.<br />
98
Capítulo 3<br />
A morte do outro<br />
História da morte e consciência de si. O apego ao corpo. Obsessão pelos restos mortais.<br />
O cadáver como herança. Negação da morte pela preservação do morto.<br />
99
Venha teu pranto agora, ou nunca mais!<br />
Vês! No rude esquife jaz teu amor, Le<strong>no</strong>re!<br />
Leiam-se os ritos funerários e o último canto se ouça,<br />
um hi<strong>no</strong> à rainha dentre as mortas, a que morreu mais moça.<br />
E duplamente ela morreu, por que morreu tão moça!<br />
Edgar Allan Poe. Le<strong>no</strong>re. 1831.<br />
É a sorte comum: espera-se<br />
A morte e depois o juízo.<br />
O único remédio é ainda<br />
Lavar-se completamente,<br />
Sem tardar, arrependendo-se<br />
Do que causa remorsos.<br />
Quem não o faz antes da morte,<br />
Lamentar-se-á muito tarde e sem razão,<br />
Quando vier o castigo.<br />
Hélinand de Froidmont. Os versos da Morte. ca 1194.<br />
A sociedade vitoriana concebeu a presentificação da morte na vida. Não<br />
somente pelos hábitos sociais, cada vez mais artificiais, que indicavam o fim do homem<br />
naturalmente espontâneo, ou pela adoção do <strong>luto</strong> como traje cotidia<strong>no</strong>. Também o<br />
<strong>século</strong> <strong>XIX</strong> presenciou a morte-tabu, indesejada e, <strong>no</strong> extremo, negada – como se fosse<br />
possível evitá-la. Paralelamente, apegou-se a uma supervalorização do morto,<br />
mantendo-o ao mundo dos vivos, numa melancólica afirmação da efemeridade do viver.<br />
Talvez nunca na história ocidental, a morte tenha sido tão dramatizada, tão<br />
apaixonadamente sofrida. A intolerável perda da presença humana evidencia-se nas<br />
mais desesperadas manifestações sentimentais diante da morte do outro: um ente<br />
100
querido, a pessoa amada. O homem apegou-se como nunca aos seus próximos, ainda<br />
que só lhe restasse corpos sem vida. O cadáver tor<strong>no</strong>u-se objeto de culto; dedicar-se aos<br />
finados foi a resposta vitoriana à perda de sentido de uma vida cada vez mais<br />
materialista e mundana. Desde fins do <strong>século</strong> XVIII é possível <strong>no</strong>tar essa <strong>no</strong>va<br />
sensibilidade que modificou sobremaneira a relação dos indivíduos com a morte, a<br />
própria e a dos outros.<br />
Entretanto, durante um longo período histórico, o ser huma<strong>no</strong> lidou com o<br />
desaparecimento eter<strong>no</strong> de forma sensivelmente diferente. Houve um tempo em que<br />
vida e morte eram conceitos tão indissociáveis que não se concebia um sem se<br />
considerar o outro. O modo como se vivia era pré-condição para os acontecimentos do<br />
fim. Nessas sociedades nas quais acreditava-se que morrer era, antes de tudo, uma<br />
transição, uma passagem para uma outra esfera, faltavam motivos para transformar o<br />
óbito em assunto-tabu. Ao contrário: Quando ninguém duvida da existência de um outro<br />
mundo, a morte é uma passagem que deve ser celebrada em cerimônia, entre parentes e<br />
vizinhos. O homem da Idade Média tem a convicção de não desaparecer completamente<br />
esperando a ressurreição. Mais do que a morte, <strong>no</strong>ssos ancestrais temiam o Juízo<br />
Final, a punição do Além e os suplícios do infer<strong>no</strong>. 1 Antes de efetivamente temerem a<br />
morte em si, os medievos temiam desconhecer seus desdobramentos. Em vida,<br />
preparavam-se para morrer e ocupavam-se com o pós-vida.<br />
Assim, a morte, tal como a dor física, contava pouco. A crença na<br />
sobrevivência, ainda que não corpórea, fazia me<strong>no</strong>s aterrorizantes os suplícios do<br />
mundo. Além disso, era um evento muito corriqueiro - a expectativa de vida era<br />
pequena se comparada com épocas atuais, os homens não dispunham de <strong>no</strong>ções básicas<br />
higiene ou de controle sanitário de doenças - fazendo parte do cotidia<strong>no</strong> de todos,<br />
independente da hierarquia social e mesmo da idade.<br />
101
Era, sobretudo, um acontecimento solidário, compartilhado pelo grupo. O<br />
sujeito nunca era abandonado e portanto não se percebia sozinho nem <strong>no</strong> momento<br />
derradeiro: nascia e expirava sabendo ser parte de um todo. A travessia era realizada em<br />
conjunto: As sociedades medievais eram sociedades de solidariedade; as pessoas<br />
terminavam sua vida <strong>no</strong> interior de um grupo, <strong>no</strong> seio da família. 2 Mesmo a velhice era<br />
doméstica, uma responsabilidade familiar: Nas sociedades pré-industriais, em que a<br />
maioria da população vive em vilarejos e se ocupa do cultivo da terra e da criação do<br />
gado, ou seja, em que camponeses e lavradores formam o maior grupo ocupacional,<br />
quem lida com os que vão envelhecendo e com os moribundos é a família. [até o <strong>século</strong><br />
<strong>XIX</strong>] a maioria das pessoas morria na presença de outras apenas porque estavam<br />
me<strong>no</strong>s acostumadas a viver e estar sós. Não havia cômodos onde uma pessoa pudesse<br />
ficar só. Os moribundos e os mortos não eram tão flagrantemente isolados da vida<br />
comunitária. 3<br />
Todos se reuniam em tor<strong>no</strong> daquele que perecia. Família, serviçais. A casa era<br />
aberta a visitações da comunidade, fazendo da morte um evento público, ainda que<br />
doméstico. A coletividade se fazia presente, sobretudo nas fases que antecedem o óbito.<br />
Na presença de seus pares, o moribundo cumpria uma série de obrigações, devendo<br />
despojar-se, distribuir entre os que ele ama todos os objetos que lhe pertenceram.<br />
Também aconselhava os mais <strong>no</strong>vos, pedia perdão aos conhecidos e confessava-se.<br />
Após essas etapas, realizadas com maior ou me<strong>no</strong>r pressa dependendo do caso,<br />
esperava. De preferência na posição típica de uma morte que é esperada: deitado, <strong>no</strong><br />
leito, tranquilamente.<br />
Resignados e esperançosos pela recompensa pós-vida, os medievos entregava-se<br />
à sorte do desti<strong>no</strong> comunal. O ideal de uma morte aceita e esperada, se contrapunha à<br />
possibilidade do óbito súbito, a pior maneira de expirar. Lê-se os seguintes versos de<br />
102
um famoso poema medieval: “É preciso que se pague / Enquanto se pode, aquilo que<br />
se deve. / Cada um tenha, pois, piedade de si / E siga logo esta via / Para evitar a morte<br />
súbita.” 4<br />
A experiência medieval sobre o fim da vida pressupunha, sobretudo, a idéia de<br />
uma morte domada. 5 Ou ainda, uma morte-passagem que, por pressupor uma transição,<br />
delineava-se como um evento esperançosamente necessário. O óbito era mais<br />
tranquilamente aceito e seus rituais cumpridos com certa naturalidade e simplicidade.<br />
De maneira cerimoniosa e emotiva, mas sem o caráter dramático ou gestos de<br />
desespero. Admitia-se o falecimento com tranqüilidade, sem tentativas em retardar<br />
nenhuma de suas etapas, as quais eram cumpridas com lucidez: era o desti<strong>no</strong> natural de<br />
todos os homens. Ilustra essa idéia a ico<strong>no</strong>grafia das chamadas Danças Macabras, na<br />
qual a Morte, representada pelo esqueleto, pela caveira, ou por um corpo morto seco,<br />
tratava de levar consigo todo tipo de pessoa, do mais rico ao mais pobre, do príncipe ao<br />
moleiro, do cavaleiro ao monge. As danças macabras punham em cena o invencível<br />
esqueleto que arrasta à força para sua ronda fúnebre pessoas de qualquer idade e de<br />
qualquer condição. 6 A Morte derrubava a fronteira entre os estamentos, dissolvia as<br />
hierarquias e denunciava a crise do poder monárquico, extremamente segmentado,<br />
durante a medievalidade.<br />
Os medievos compartilhavam uma percepção do corpo intrinsecamente ligada à<br />
esfera religiosa. Criação divina, a matéria corpórea servia para proteger a essência<br />
humana, a substância que distinguia o homem das outras criaturas, o sopro de deus: o<br />
corpo era habitado por uma alma que, sem ser subjetividade, era um princípio de vida,<br />
comprobatório da própria existência da divindade – ainda que não fosse a do<br />
cristianismo. Por isso o corpo, apesar de ser artesanato de deus, era pouco importante:<br />
sua função era apenas servir de abrigo para a intervenção sobrenatural mais preciosa, o<br />
103
espírito. Ambos eram partes do mesmo projeto divi<strong>no</strong>: o ser huma<strong>no</strong> era a fusão de<br />
corpo e alma, construídos por um deus. Por esse motivo entende-se porque as<br />
representações imagéticas do morto traziam sua alma com as características físicas do<br />
corpo. Ainda assim, a parcela abstrata, mística, prevalecia sobre a material.<br />
Sem possuir uma subjetividade própria, sendo sua alma uma designação divina,<br />
esse homem se submetia ao ethos coletivo característico do feudalismo medieval,<br />
inclusive à rede social baseada <strong>no</strong>s juramentos de fidelidade. Fiel a deus, à Igreja e aos<br />
senhores de terras, aceitava sua condição mundana de subordinação, a qual partilhava<br />
com todos os seus comuns. Não só na vida, mas também perante a morte.<br />
*<br />
A subserviência ao senhor da terra era análoga àquela para com o “Senhor”.<br />
Nada se fazia efetivamente para si, mas para eles. O fim da existência terrestre não<br />
significava, portanto, a perda de algo que realmente lhes pertencesse. Por isso a morte<br />
não era sentida como a perda, fim abso<strong>luto</strong>, já que essa consciência de si não ocorria.<br />
Esse tipo de comportamento caracterizou a maior parte da população ocidental por<br />
muitos <strong>século</strong>s, e mesmo após a Idade Média, durante todo o período moder<strong>no</strong>. 7<br />
Essa compreensão passiva era somada a uma confiança irrestrita na doutrina<br />
cristã da imortalidade da alma. Segundo a Igreja, o momento do falecimento era<br />
também o da radical separação entre corpo e alma, que não era então aniquilada, mas<br />
pelo contrário, salva. Notadamente, sua aceitação relacionava-se com a concepção do<br />
desti<strong>no</strong> comum. Na sociedade estamental, que se pensava enquanto grupo e não como<br />
sujeito particular, um homem não era nada sem a teia de relações na qual estava<br />
inserido. Os sentimentos de amizade, característico da cavalaria; e lealdade, pressuposto<br />
104
dos laços de vassalagem, davam coesão aos grupos. Os homens, portanto, simplesmente<br />
abandonavam-se diante de um fato que sabia ser coletivo, sendo a vida terrestre nada<br />
mais do que um prelúdio da verdadeira vida, a “vida eterna”. Por isso a familiaridade<br />
com a morte e com os mortos: não se buscava afastar-se deles assim como não se<br />
evitava o próprio fim. 8 Versos escritos <strong>no</strong> <strong>século</strong> XII diziam: “A vida sempre tem um<br />
fim / Querer prolongá-la é inútil / Porque a morte a encurtará.” 9<br />
Era em tor<strong>no</strong> do tema da morte que a doutrina cristã determinava seus dogmas.<br />
Todas as restrições impostas vinham acompanhadas do castigo fatal se burladas. A<br />
própria condição mortal da humanidade era, em si, a pena para o pecado original, da<br />
qual ninguém escapa: quem nasce já está condenado. A culpabilidade cristã perseguia<br />
todo homem e mulher não somente porque eram frutos do ato pecami<strong>no</strong>so por<br />
excelência como também por serem todos, linhagem – e por isso, herdeiros – dos<br />
primeiros pecadores. Toda uma tendência anti-sexual vai se expandir com o<br />
cristianismo; pregando a abstinência e o celibato, ele traduzirá o desejo obscuro de<br />
talvez voltar ao período pré-sexual da vida, <strong>no</strong> qual a morte não existe. 10<br />
Se já estava condenado ao castigo da mortalidade, deveria ao me<strong>no</strong>s lutar por<br />
sua redenção. Não negar a morte, mas usar o tempo da vida para ser salvo <strong>no</strong> Além: o<br />
sofrimento na terra justificaria a felicidade eterna (não por acaso, o cristianismo se<br />
configurou como uma poderosa arma ideológica de controle do campesinato ao ser<br />
adotado como religião oficial das monarquias absolutistas dos <strong>século</strong>s moder<strong>no</strong>s). O<br />
medo da morte na medievalidade se traduziria, antes, como um temor da dúvida em não<br />
se saber merecedor da recompensa do que pelo pavor do óbito propriamente dito.<br />
*<br />
105
O quarto do agonizante aberto à visitação e os rituais do cortejo fúnebre e do<br />
sepultamento, acessíveis a qualquer um independente de quem fosse o morto, faziam a<br />
morte próxima de todos e cotidiana. Mesmo para as crianças, que não eram em nenhum<br />
momento alienadas dos eventos. Eram etapas realizadas, para a grande maioria da<br />
população, de maneira muito simples, além de serem ainda cerimônias laicas.<br />
Curiosamente, apesar dessa intimidade, o homem medieval temia o morto. Não<br />
o corpo sem vida, o cadáver, mas certa reapresentação do defunto que se manifestava<br />
espiritualmente, com as características do corpo. Uma espécie de duplo morto-vivo. A<br />
alma, apesar do caráter espectral, possuía a fisio<strong>no</strong>mia do morto e, se a morte em si não<br />
indicava o fim abso<strong>luto</strong>, a presença dos espíritos <strong>no</strong> imaginário medieval tornava a<br />
fronteira entre vida e morte bastante oscilante. Era preciso temer os mortos que são<br />
muito mais poderosos que os vivos: eles detém o grande mistério da existência, o saber<br />
do pós-morte. A crença nas almas, cuja presença era inquestionavelmente efetiva,<br />
acabou sendo incorporada pelo cristianismo, o que acarretou na disseminação da prática<br />
da oração para as almas. Porque o defunto permanecia dessa maneira ainda presente, o<br />
fantasma poderia querer voltar aos lugares de sua existência material, para resolver<br />
assuntos pendentes ou simplesmente assombrar os vivos. 11 Essa coexistência entre<br />
vivos e mortos <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> terrestre justificaria o temor pelas almas em danação, que<br />
voltam ao invés de viverem na paz eterna, assim como o medo de não se cumprir todas<br />
as etapas do pré-morte e se tornar o próprio espírito atormentado. O terror pela alma<br />
condenada – penada, aquela que pena – e que poderia querer retornar, legitima a<br />
preocupação em sempre lembrar-se dos que se forma nas orações e nas missas, de<br />
preferência, honrado-se suas memórias, para que não se zangassem.<br />
Se a grande preocupação do morrer é a salvação metafísica, o resíduo corporal<br />
não tinha importância depois que o espírito o abandonasse. Meros invólucros que<br />
106
continham a alma, seriam descartados <strong>no</strong> momento da passagem para um outro pla<strong>no</strong>,<br />
aquele que realmente interessava. Não causa espanto que os cemitérios - não só na<br />
Idade Média, mas durante o período moder<strong>no</strong> -, localizados <strong>no</strong>s terre<strong>no</strong>s ao redor das<br />
Igrejas, fossem constituídos de inúmeras fossas coletivas, largas e profundas, destinadas<br />
a receberem os corpos das gentes simples, camponesas, envoltos em humildes sudários.<br />
Quando uma delas se enchia, abria-se outra mais antiga, retiravam-se os ossos e<br />
reutilizava-se o espaço. Somente os membros da elite clerical e cavalheiresca ou<br />
poderosos senhores de terras, dispunham do espaço inter<strong>no</strong> das Igrejas e eram<br />
enterrados sob as lajes. Contudo, de fato o desti<strong>no</strong> e a localização dos corpos não<br />
importavam, mas sim que ficassem o mais próximo possível dos locais santos. Santos e,<br />
certamente, públicos. A morte continuava presente na vida medieval, pública e<br />
comunal, tanto <strong>no</strong> espaço fechado do templo quanto nas fossas que recebiam os<br />
amontoados de corpos.<br />
*<br />
Enquanto o imaginário popular continuaria impregnado pela doutrina cristão da<br />
imortalidade da alma durante os <strong>século</strong>s seguintes, na etapa final da Idade Média algo<br />
de qualitativamente <strong>no</strong>vo começava a ocorrer. Pelo me<strong>no</strong>s numa pequena parcela da<br />
população formada por homens letrados e cultos das classes superiores, que, por não<br />
mais se adequarem à vida estática ou a laços de fidelidade senhorial, passavam a<br />
conduzir suas próprias decisões. Foram esses os responsáveis por desenvolver um tipo<br />
ainda simples e inicial, mas extremamente importante, de consciência individualista.<br />
Ocupavam-se com a cultura e as ciências e, durante os <strong>século</strong>s da Renascença, esses<br />
homens seriam os condutores do salto técnico e artístico ocorrido <strong>no</strong> período. A grande<br />
107
circulação de mercadorias entre as grandes cidades comerciais trazia consigo uma<br />
incrível circulação de idéias, das quais foram esses sujeitos os principais porta-vozes.<br />
Influenciaram ideologicamente toda uma proto-burguesia que se formava nas cidades<br />
desde a Baixa Idade Média, essa <strong>no</strong>va classe de trabalhadores livres, ou seja, sem<br />
vínculos com a terra, cujo sustento vinha de seu próprio esforço e que encontrava-se<br />
fora dos padrões fixados pela hierarquia social ligada ao campo, baseada na servidão. A<br />
dinâmica, o movimento – de idéias, de discussões, de artigos – rompia gradualmente a<br />
estabilidade dos estamentos. É altamente significativa a constatação de que a<br />
personificação da Morte, que se transforma numa personagem esquelética, carregando<br />
uma foice, e deixa de ser somente um evento para ser alguém, date desses mesmos<br />
<strong>século</strong>s XII e XIII, período do início do processo de construção da consciência de si. 12<br />
A concepção de indivíduo apresenta essa possibilidade de se pensar como ser<br />
único, responsável pelo próprio desti<strong>no</strong> e não mais cegamente submisso a uma esfera<br />
metafísica abstrata ou ao pertencimento rígido à uma coletividade, qualquer seja ela. O<br />
mundo material separa-se da divindade <strong>no</strong> momento em que esse homem iniciou um<br />
processo de autoconsciência de si. Paradoxalmente, seria possível pensar <strong>no</strong> conceito de<br />
indivíduo como o ser huma<strong>no</strong> em divisão, 13 cindido ao se dar conta da dualidade do ser,<br />
como matéria corpórea separada do espírito. O Renascimento não descartou a presença<br />
da alma, considerada ainda inexplicável em sua totalidade ou mesmo divina, porém já<br />
com uma essência racional, caracteristicamente humana. 14<br />
A conseqüência direta da tomada de consciência da subjetividade foi uma<br />
crescente preocupação com o próprio aniquilamento. Se para esses homens a sociedade<br />
não mais se dividia em ordens rígidas e estáveis na qual os grupos compartilham dos<br />
mesmos desti<strong>no</strong>s, morrer deixa de ser considerado parte desse desti<strong>no</strong> comum e se<br />
transforma em um evento particular, pertencente a cada indivíduo. Passam a temer não<br />
108
o fim da vida em si, mas um processo de morte: o que se perde e se deixa, como<br />
ocorrerá e o que virá após. 15 Esses homens, de fé próspera nas ciências e nas técnicas,<br />
cada vez mais questionavam os dogmas da cristandade. 16<br />
Os eventos pós-óbito são também perturbadores não apenas pelas dúvidas<br />
espirituais, mas também pelo desti<strong>no</strong> do corpo sem vida. Esse resíduo, que continha a<br />
existência propriamente dita, inevitavelmente seria desprezado pelos vivos: enterrado,<br />
entraria em irreversível destruição. Considerava-se a podridão a miséria do corpo, a<br />
corrupção derradeira. A morte possui esse lado que inviabilizava uma sua concepção<br />
plenamente positiva: a imagem do corpo putrefato, <strong>no</strong>jento e detestável. Isso talvez<br />
explique a proibição por parte da Igreja em se abrirem os cadáveres: a não-visão da<br />
putrescência era, em larga medida, a manutenção do modelo de “morte desejada”. O<br />
enterro evitava o apodrecimento aparente e também, até como conseqüência disso,<br />
sustentava a crença da ressurreição da alma. É muito significativo que nesses <strong>século</strong>s da<br />
Renascença apareçam nas artes tantas representações da morte como o corpo em<br />
decomposição. Não é o homem em vias de morrer que atrai a criação das imagens do<br />
<strong>século</strong> XV. O caráter original comum a todas as suas manifestações, ico<strong>no</strong>gráficas e<br />
literárias, sendo, portanto, a decomposição. Isso significa que se quer mostrar o que<br />
não se vê, o que se passa debaixo da terra e que é, na maioria das vezes, escondido dos<br />
vivos. 17<br />
*<br />
Não por acaso, a devastação causada pelas grandes epidemias entrava <strong>no</strong><br />
imaginário coletivo pungentemente. O fenôme<strong>no</strong> endêmico que ficou conhecido como<br />
Peste Negra incluiu a peste bubônica e outras epidemias que a seguiram e foi, antes de<br />
109
mais nada, um episódio de pânico coletivo. Seu surto inicial ocorreu em 1348 e entre<br />
junho e setembro desse a<strong>no</strong>, dizimou 1/3 da população européia. 18 . Não é uma<br />
coincidência que a ico<strong>no</strong>clastia das Danças Macabras tenha surgido exatamente nesse<br />
período e tenha se mantido recorrente <strong>no</strong>s <strong>século</strong>s seguintes, paralelamente aos refluxos<br />
das epidemias, que duraram até meados do <strong>século</strong> XVIII.<br />
Uma profunda mudança <strong>no</strong>s sentimentos da morte ocorre em decorrência da<br />
Peste Negra. As cidades atacadas não absorviam seus mortos, os cadáveres<br />
amontoavam-se por todos os lados e não havia mais onde enterrá-los. Durante as<br />
grandes contaminações, nada mais distinguia o fim dos homens do dos animais. (...)<br />
abandonados em sua agonia, os contagiados de qualquer cidade da Europa entre os<br />
<strong>século</strong>s XIV e XVIII, uma vez mortos, eram acumulados desordenadamente, como cães<br />
ou carneiros, em fossas imediatamente recobertas de cal viva. Para os vivos, é uma<br />
tragédia o abando<strong>no</strong> dos ritos apaziguadores que em tempo <strong>no</strong>rmal acompanham a<br />
partida desse mundo. 19<br />
Nas populações atingidas, propagavam-se as imagens trágicas e mantinha-se um<br />
estado permanente de medo que acometia todas as ordens sociais – justamente o tema<br />
central das Danças. A morte, que fora até então vivenciada em grupo, mudava<br />
radicalmente de perspectiva: Em períodos de epidemia, ao contrário, os próximos se<br />
afastam, os médicos não tocam os contagiosos ou fazem-<strong>no</strong> o me<strong>no</strong>s possível ou com<br />
uma varinha; os cirurgiões só operam com luvas (...) os padres dão absolvição de longe<br />
(...) desse modo, as relações humanas são totalmente conturbadas: é <strong>no</strong> momento em<br />
que a necessidade dos outros se faz mais imperiosa – e em que, de hábito, eles se<br />
encarregavam dos cuidados – que agora abandonam os doentes. O tempo da peste é o<br />
da solidão forçada. 20<br />
110
Testemunha do início da mortífera pestilência em Florença, Giovanni Bocaccio<br />
destacou esse súbito deslocamento dos eventos fúnebres <strong>no</strong> início de seu Decameron,<br />
escrito em 1350: Costumava-se reunirem-se as mulheres, parentes e vizinhas na<br />
residência do que morria. Ali, em companhia das mulheres mais aparentadas do<br />
defunto, elas choravam. De outro lado, diante da casa do morto, vizinhos e inúmeros<br />
cidadãos reuniam-se com seus achegados; de acordo com a categoria do morto,<br />
apresentava-se o padre. Desse modo, o falecido era conduzido à igreja que escolhera<br />
momentos antes de morrer. Os seus pares levavam-<strong>no</strong> aos ombros, com pompa fúnebre,<br />
de velas e cantos. Tais cerimônias quase se extinguiram, <strong>no</strong> todo ou parcialmente,<br />
quando principiou a crescer o furor da peste. No caso das classes médias e pobres, a<br />
situação era muito mais precária: Tal gente era retida em suas casas (...) ficando<br />
próximos dos doentes e dos mortos, os que sobreviviam ficavam doentes aos milhares,<br />
por dia, como não eram medicados nem recebiam ajuda de espécie alguma, morriam<br />
todos quase sem redenção. Muitos eram os que findavam seus dias na rua, de dia ou de<br />
<strong>no</strong>ite. De pessoas assim que faleciam em todas as partes, as casas estavam cheias. 21<br />
O abando<strong>no</strong> dos ritos coletivos e a solidão involuntária do doente terminal<br />
configuravam uma <strong>no</strong>va e terrível experiência de morte. A presença dos corpos<br />
pútridos, manchados de púrpura e mal-cheirosos piorava ainda mais a ante-visão de<br />
óbito repugnante. A descrição de Bocaccio fornece o quadro abjeto: apareciam, <strong>no</strong><br />
começo, tanto em homens como nas mulheres, ou na virilha ou nas axilas, algumas<br />
inchações. Algumas destas cresciam como maçãs; outras, como um ovo; cresciam umas<br />
mais, outras me<strong>no</strong>s; chamava-as o populacho de bubões. Dessas duas partes do corpo<br />
logo o tal tumor mortal passava a repontar e a surgir em toda parte. Em seguida, o<br />
aspecto da doença começa a alterar-se e colocar manchas de cor negra ou lívidas <strong>no</strong>s<br />
enfermos. Tais manchas estavam <strong>no</strong>s braços, nas coxas e em outro lugares do<br />
111
corpo.(...) quase todos, após o terceiro dia do surgimento dos sinais, faleciam. Era<br />
como se todo o ar estivesse tomado e infectado pelo odor nauseabundo dos corpos<br />
mortos, das doenças e dos remédios. 22<br />
O defunto, até então cerimoniosamente velado, tornava-se um estorvo grotesco e<br />
nauseante, que deve ser apressadamente despachado, às vezes por desconhecidos: um<br />
único modo de proceder era praticado pelos vizinhos (...) retiravam das residências os<br />
cadáveres, colocavam os corpos à frente da porta da casa, onde, sobretudo na parte da<br />
manhã, eram vistos em quantidade inumerável pelos que perambulavam pela cidade e<br />
que, vendo-os, adotavam medidas para o preparo e remessa dos caixões. No Triunfo<br />
da morte (1562), de Brueghel, esqueletos – espécie de exército da Morte – retiram os<br />
corpos desordenadamente espalhados pelo chão da cidade. O caos da passagem<br />
arrasadora da doença é mostrado de maneira estupefante na obra: mortos e vivos<br />
confundem-se <strong>no</strong> mar de gente consumida pela Peste. Escasseavam-se os caixões, as<br />
valas transbordavam, os cães devoram os cadaveres: A tal estado chegou a coisa que<br />
não se tratava, quanto aos homens que morriam, com mais carinho do que se trata as<br />
cabras. 23 O espetáculo do terror era próximo a qualquer homem, do camponês ao<br />
<strong>no</strong>bre. Quando a morte é a esse ponto desmascarada, “indecente”, dessacralizada, a<br />
esse ponto coletiva, anônima e repulsiva, uma população inteira corre o risco do<br />
desespero ou da loucura, sendo subitamente privada das liturgias seculares que até ali<br />
lhe conferiam nas provações dignidade, segurança e identidade. 24<br />
*<br />
O fato dos homens dos quinhentos ou seiscentos preocuparem-se cada vez mais<br />
com o fim de seus corpos explicita o início de um processo de identificação desses<br />
112
indivíduos com sua matéria. Causava horror a decomposição da carne - era a<br />
comprovação da fragilidade da condição humana. A importância do corpo material<br />
começa a aparecer nesse momento. Essa relação pode ser apontada pela adoção da<br />
prática da presença do cadáver <strong>no</strong> altar da Igreja para as primeiras missas do <strong>luto</strong> –<br />
quando se tratava da morte de alguma figura ilustre, logicamente. Quer dizer, existe aí o<br />
início de um sentimento de presença do indivíduo através de seu corpo, ainda que<br />
morto.<br />
No início do período moder<strong>no</strong>, difundiu-se a prática das inscrições funerárias,<br />
que além de conservar a identidade do enterrado propunham uma <strong>no</strong>va idéia a respeito<br />
do a<strong>no</strong>nimato das fossas comunais. Elas continuaram sendo usadas até o <strong>século</strong> XVIII,<br />
mas nas paredes das Igrejas tor<strong>no</strong>u-se comum a aplicação de pequenas plaquetas<br />
contendo informações simples sobre cada defunto – <strong>no</strong>me, data de falecimento e às<br />
vezes seu ofício. À elite, clerical, política e econômica, eram reservadas sepulturas<br />
visíveis e inscrições detalhadas sobre suas vidas, dentro das Igrejas ou em terre<strong>no</strong>s<br />
pertencentes a ela. Essas inscrições funerárias tinham, sobretudo, o objetivo de<br />
preservar de alguma maneira a memória do morto, mas não o local do enterro. 25 Essas<br />
diferenças entre pobres e ricos eram também presentes <strong>no</strong>s cortejos e <strong>no</strong>s<br />
sepultamentos, os quais podiam ser cumpridos em total indigência ou com toda a<br />
pompa, dependendo da condição social do morto, pertencente a uma sociedade ainda<br />
altamente hierarquizada. Contudo, essas práticas que visavam evitar o a<strong>no</strong>nimato<br />
demonstram uma gradual, mas crescente, valorização do corpo enquanto um traço do<br />
indivíduo, que deixa de ser representado somente por sua alma. O corpo da<br />
medievalidade, desprezado e desimportante, tor<strong>no</strong>u-se, em larga medida, a presença do<br />
morto.<br />
113
*<br />
Dessa imagem do sujeito identificado pelo seu corpo, mesmo morto, floresce o<br />
reconhecimento da fragilidade da condição humana, condenada à carne que se<br />
decompõe. O homem, antes de temer seu fim, passa a temer a efemeridade da vida. A<br />
conseqüência natural dessa corporificação da morte – antes relativa ao espírito, imortal<br />
– foi um profundo apego às coisas è as pessoas, ou seja, ao que experimentamos e<br />
conhecemos concretamente. No momento histórico em que foram lançadas as bases da<br />
civilização moderna, um sentimento cada vez maior do homem em relação a sua própria<br />
existência tor<strong>no</strong>u a morte um evento pessoal, retirando-a de seu caráter comunal. Dar-se<br />
conta do próprio fim confundiu-se com o medo em ser esquecido, o que se traduziu<br />
nessa afeição por tudo que fez parte de sua vida. Porque a morte mudou sua essência –<br />
de desti<strong>no</strong> de todos para evento particular – tor<strong>no</strong>u-se mais dramática para cada<br />
indivíduo.<br />
E, portanto, ao rever sua vida, o sujeito se apercebe de seus erros e fracassos,<br />
que são, como todas suas decisões, pessoais. A impossibilidade da reversibilidade<br />
traduz-se em sentimento de fracasso perante a vida, que não é inerente à condição<br />
humana: não existia até a Baixa Idade Média. Morrer não causava medo, mas se tornava<br />
um acontecimento traumático pelas perdas que pressupunha. Trazia à tona fracassos<br />
individuais dos homens que cada vez mais dependiam somente de si mesmos. A morte-<br />
passagem, cuja essência era a esperança de imortalidade, dava lugar gradativamente<br />
para uma morte-fim, mais absoluta, objetiva, e por isso, mais intolerável.<br />
*<br />
114
A sociedade do período moder<strong>no</strong> foi aquela cujas crenças transitaram entre as<br />
doutrinas cristãs (ainda muito marcantes na mentalidade popular) e as descobertas<br />
científicas e técnicas de seu tempo. Por um lado, a população simples dos campos e das<br />
cidades assiste aos cerimoniais fúnebres do período barroco, caracterizadas por uma<br />
incrível mobilização cuja ênfase era as manifestações exteriores da fé. A morte<br />
barroca 26 era a da paixão pelo protocolo, do apego ao evento da morte. As longas<br />
procissões, elementos gloriosos como cavalos, flores, carruagens, carpideiras, multidões<br />
extenuadas, conferiam a pompa proporcional ao prestígio do morto. Esses rituais<br />
faustosos, realizados quando do óbito de reis e membros da corte, objetivavam<br />
imortalizar esses indivíduos enquanto imagem – afinal, os <strong>século</strong>s moder<strong>no</strong>s foram o da<br />
extrema importância da aparência. Se glória era um atributo que deveria ser<br />
constantemente mostrado, o princípio mantinha-se <strong>no</strong> espetáculo dos funerais. O Além<br />
era organizado como a estrutura absolutista, marcando a distancia entre as cortes e o<br />
povo; essas formalidades elitistas na morte legitimavam as desigualdades sociais na<br />
vida.<br />
Entretanto, outra vertente ideológica caminhava na direção oposta aos rituais<br />
cristãos e aristocráticos da morte. O Humanismo renascentista promoveu a<br />
dessacralização do corpo, percebido como pura matéria e não mais como criação divina<br />
- somente ao espírito era promulgado, mesmo que parcialmente, uma essência<br />
sobrenatural. E foi nesse corpo vulgarizado, tornado pura materialidade, que se<br />
debruçaram as ciências durante o período moder<strong>no</strong>. Esmiuçaram o corpo numa<br />
verdadeira devassa, a fim de descobrirem suas partes e seu funcionamento. Entre os<br />
<strong>século</strong>s XVII e XVIII, o cadáver virou alvo principal da curiosidade médica, um e<strong>no</strong>rme<br />
fascínio pelo funcionamento da vida se converte numa obsessão científica pelo corpo<br />
morto. 27 Ao encerrarem a morte na esfera médico-científica, puseram fim sua<br />
115
familiaridade aos homens comuns e esvaziaram-na de seus significados espirituais,<br />
atentando somente à matéria. Racionalizando a morte, libertavam a todos das mentiras<br />
religiosas, do terror da morte-castigo e de toda a rede exploratória da Igreja – como a<br />
venda de indulgências e de missas para as almas, os dízimos - e por extensão, das<br />
monarquias, que tinham <strong>no</strong> discurso divi<strong>no</strong> seu alicerce hierárquico. Para os filósofos<br />
das Luzes, o tempo do medo, do fanatismo e da superstição estava encerrado. O so<strong>no</strong><br />
da razão, como dizia a célebre gravura de Goya, gera monstros. Basta acordar a razão<br />
e os monstros do medo e do pavor da morte se dissiparão. 28<br />
Se a alma identificava a subjetividade, os corpos eram meros objetos de estudo -<br />
não pessoas. Não foi à toa, portanto, que o imaginário artístico moder<strong>no</strong> foi<br />
profundamente invadido por inúmeras aulas de anatomia. Possivelmente a mais famosa<br />
delas seja a Aula de anatomia do Doutor Nicolas Tulp de Rembrandt, de 1632. A<br />
composição impressiona não apenas pelo interesse ávido de um grupo de homens sobre<br />
um cadáver, mas pela disposição dos personagens, cada um com suas particularidades,<br />
feições e olhares. Não apenas o corpo morto e sem alma, mas também o conceito de<br />
indivíduo encontra-se ali em sua plenitude. 29<br />
Aberto o cadáver, separada a pele e os órgãos, músculos e fluídos, tendões e<br />
ossos: o que se têm nada mais é do que uma série de componentes de matéria orgânica.<br />
Todas as peças reunidas, colocadas em ordem produzem um corpo vivo. O<br />
desenvolvimento das técnicas mecânicas e de autômatos ofereceram a metáfora<br />
imediata à esse corpo desmontado, fragmentado: o homem passou a ser concebido como<br />
máquina.<br />
A grande revolução na concepção dos corpos veio então <strong>no</strong> Iluminismo. La<br />
Mettrie, ao expressar o modelo do homem-máquina, radicaliza Descartes 30 afirmando<br />
que também o pensamento funciona mecanicamente, logo, não existe um espírito<br />
116
misteriosamente metafísico, apenas o automatismo huma<strong>no</strong> da capacidade de raciocínio.<br />
O corpo então passa a ser a pedra de toque da experiência humana e o centro das<br />
preocupações científicas. Por um lado, a linhagem rousseauniana pressupunha a ação<br />
humana como influenciada pelo meio, por outro, La Mettrie propõe o corpo como<br />
centro do debate médico e social, já que é ele o responsável por tudo o que se faz e se<br />
deseja. Se o Renascimento dessacralizou o corpo, o Iluminismo dessacraliza<br />
irreversivelmente o homem em sua totalidade existencial, pela negação do divi<strong>no</strong> e<br />
exaltação da racionalidade. Passou-se da idéia do corpo-invólucro da alma para a do<br />
corpo que é pura matéria e cujo funcionamento é pura mecânica, incluindo-se aí a<br />
capacidade de pensar. A idéia de alma, com todas as suas implicações sobrenaturais,<br />
seria substituída pela razão, resultante ela mesma, de processos físico-químicos. A<br />
morte, cientificizada, invade o imaginário coletivo, tanto na sensibilidade literária que<br />
pensa o corpo-máquina 31 quanto na filosofia erótica, na qual o desejo é pulsão humana,<br />
devendo ser satisfeito em <strong>no</strong>me na liberdade e da felicidade egoísta do corpo. 32<br />
*<br />
Era extremamente emergencial pensar a existência humana após dois <strong>século</strong>s de<br />
corpos vasculhados e despedaçados. O Iluminismo tenta entender o homem – em suas<br />
relações sociais, com o meio e consigo mesmo. O <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> inicia-se então pela<br />
consciência do corpo material como única realidade humana – a razão, efeito da<br />
mecânica física, se tor<strong>no</strong>u o atributo huma<strong>no</strong> mais importante já que controlava o corpo:<br />
seus instintos, comportamentos e desejos são todos manipulados e limitados pela<br />
racionalidade.<br />
117
Esse momento seguinte às Luzes foi o de uma verdadeira crise desse indivíduo<br />
sem alma nem unidade, mecânico, autômato. Essa sensação de fragmentação fora<br />
aprofundada pela visão pública dos guilhotinados do Terror revolucionário, que não só<br />
trouxe o cadáver cotidianamente à vista como movimentou todo um <strong>no</strong>vo imaginário<br />
popular do corpo cindido pela perda da cabeça.<br />
Objeto e sujeito de análise, o homem do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> não sabe mais o que é. Por<br />
um lado, observa-se a exaltação da medicina como a grande ciência do corpo,<br />
promovida a <strong>no</strong>va divindade. O saber relativo à saúde referia-se, sobretudo, à<br />
possibilidade de se alcançar a felicidade que, numa sociedade materialista, vem por<br />
intermédio do corpo, da matéria. O bem-estar físico era garantia de uma vida<br />
promissora já que o corpo passara a ser o instrumentalizado e mercantilizado.<br />
Considerava-se a doença uma alteração da máquina, um defeito, necessários reparos e<br />
consertos. O corpo era então, o mais precioso bem, o patrimônio material primeiro de<br />
toda pessoa. Assim, ao mesmo tempo em que ocorre uma supervalorização do corpo (na<br />
saúde, na higiene), paradoxalmente acontece sua banalização (<strong>no</strong> mercado, <strong>no</strong> trabalho<br />
industrial). Doente, esse corpo deve ser consertado para continuar útil. Morto, torna-se<br />
coisa i<strong>no</strong>perante. Porém, com a perda da alma pela dessacralização do homem, esse<br />
corpo morto é tudo o que resta de um indivíduo. Sendo seu bem maior, é tornado<br />
herança aos vivos – sem utilidade produtiva, mas com toda a carga projetiva daquele<br />
que se foi. 33<br />
*<br />
A ascensão da burguesia impõe a mentalidade da classe que preserva o corpo,<br />
pois dele retira os frutos de seu trabalho. É por ele que expressa sua virtude, através de<br />
118
feitos, só possíveis em vida, obviamente. Contrapunha-se à honra aristocrática,<br />
reconhecida pela reputação, que se mantém depois da morte, e sem a qual não valia a<br />
pena viver. A honra era atributo de quem arrisca a própria vida - e a burguesia não o faz.<br />
Porque conserva e cuida do corpo, desenvolvendo ainda mais uma consciência<br />
individual, cujo auge atinge <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>, o homem também muda seu olhar em<br />
relação ao corpo morto. A total racionalização do corpo e do modo de pensar faz com<br />
que, pela primeira vez na sociedade ocidental, a morte seja entendida como uma<br />
ruptura.<br />
Não mais passagem para a vida eterna, não mais possibilidades de além vida: a<br />
morte é um fim. Além de intensificar a angústia do homem diante de seu próprio fim,<br />
essa <strong>no</strong>va percepção traz à baila um <strong>no</strong>vo protagonista dos ritos da morte: o<br />
sobrevivente, aquele que fica e chora o morto. O período anterior à expiração deixa de<br />
ter qualquer caráter tranqüilo vindo a ser palco de intensa dramatização, da dor e do<br />
sofrimento mais profundo. Não mais familiar ou cotidiana, a morte se torna o grande<br />
evento da vida.<br />
A tragicidade expressa pelas súplicas dos sobreviventes reflete não apenas a<br />
comoção da perda do ente querido, mas principalmente a e<strong>no</strong>rme intolerância com a<br />
morte em si. Mudou o foco: o drama vitoria<strong>no</strong> passa a ser a morte do outro, negada,<br />
incorfomada. O medo pelo desaparecimento de outrem foi o estopim do fenôme<strong>no</strong><br />
contemporâneo do culto ao morto 34 , cujas representações mais patentes eram a<br />
preocupação com a sepultura e a freqüência ao cemitério.<br />
Se na Idade Média os mortos eram simplesmente abandonados nas fossas<br />
comunais a<strong>no</strong>nimamente e, mesmo <strong>no</strong>s <strong>século</strong>s seguinte, uma das poucas mudanças<br />
nesse quadro foi a adoção das inscrições fúnebres – com o objetivo de salvaguardar a<br />
memória do morto e não seu local de sepultamento, a partir do final do <strong>século</strong> XVIII a<br />
119
fixação de um local específico para o enterro do corpo tor<strong>no</strong>u-se prática <strong>no</strong>rmativa. E de<br />
fato, o principal motivo para essa <strong>no</strong>va atitude foi possibilitar a visitação ao morto, ato<br />
desconhecido até então. Os cemitérios do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> deixavam de ser extensões dos<br />
terre<strong>no</strong>s da Igreja para se tornarem um espaço distinto, divididos em lotes, projetados<br />
por arquitetos para que fossem locais de passeio e visita. As necrópoles ocupam locais<br />
acessíveis dentro das cidades, nas quais desde então coabitam vivos e mortos.<br />
O túmulo tornava-se o sig<strong>no</strong> da presença do indivíduo que, contudo, estava<br />
morto. Esse tipo de mentalidade em nada pressupunha a idéia da imortalidade<br />
dogmática do cristianismo, não se referia em abso<strong>luto</strong> a almas. Era, sobremaneira, uma<br />
incapacidade dos sobreviventes em aceitarem a perda concreta do defunto: apegavam-se<br />
aos restos mortais. Tor<strong>no</strong>u-se essencial essa possibilidade do morto não ser totalmente<br />
retirado do convívio de sua família, que tanto sofre. Na irrealização do enterro <strong>no</strong><br />
terre<strong>no</strong> da casa familiar – que seria o ideal e prática da elite, que fosse conservado em<br />
uma <strong>no</strong>va casa, só sua, propriedade privada da familiar que por extensão, seria seu lar:<br />
sua fossa particular <strong>no</strong> cemitério. Desde então a concessão do terre<strong>no</strong> do cemitério<br />
tor<strong>no</strong>u-se um tipo de patrimônio de compra, garantido por lei, o que foi uma grande<br />
i<strong>no</strong>vação na época. 35 Visitava-se o morto como se visita um parente ou um amigo,<br />
conduta que conferia uma espécie de presença ao defunto, uma sobrevida e, em larga<br />
medida, sua imortalidade.<br />
*<br />
O apego ao corpo morto se deu durante o <strong>século</strong> mais racionalista e materialista<br />
da história até então. Popularizou-se o ag<strong>no</strong>sticismo e a consciência – <strong>no</strong> período<br />
moder<strong>no</strong> limitada aos homens esclarecidos – de que não havia pós-morte, logo os<br />
120
homens apegavam-se ao que se têm e ao que se é: o próprio corpo material. Preservar o<br />
que resta do ente amado é tentar apreender essa essência fugidia que <strong>no</strong>s mantêm vivos.<br />
E porque o corpo passa a ser a instância total da vida, o resto mortal indicaria ainda uma<br />
existência: a presença do indivíduo mesmo que na ausência da vida. O protagonista da<br />
dor era agora aquele que ficava e não mais o que agonizava. Prolongar a existência ao<br />
máximo possível, sofrer junto ao moribundo, às vezes sofrer mais que ele, eram as<br />
missões desse <strong>no</strong>vo personagem do drama da morte. Aos poucos, apoderava-se do<br />
evento do outro, alienando o doente de seu próprio fim: já na segunda metade do <strong>século</strong><br />
<strong>XIX</strong> tor<strong>no</strong>u-se recorrente a prática de se ocultar ao moribundo a gravidade de sua<br />
doença. Os parentes poupavam o indivíduo da verdade para que não entregasse os<br />
pontos e não se fosse mais rápido; sentiam o aniquilamento do outro para que esse<br />
continuasse desejando viver. Toda a devoção para com o doente transferia-se para o<br />
corpo morto quando a inevitabilidade da morte acometia. Negava-se, então, a morte,<br />
mesmo que ela já fosse fato.<br />
Esse comovente e exaltado culto aos mortos não tem origem cristã, pois essa se<br />
referia totalmente à salvação da alma. Sua origem foi influência das ciências do<br />
positivismo racionalista e empiricista, que retiram qualquer instância metafísica da<br />
realidade: sem mais valores espirituais, o homem se apegava ao que lhe restava: a<br />
materialidade corpórea. E como num ato de negação da própria morte – com a qual<br />
perderá o controle sobre seu corpo – se apossava do corpo do outro. A <strong>no</strong>ção<br />
oitocentista, burguesa e capitalista, do corpo como o bem mais valioso do homem<br />
atribui a esse apego o caráter do bem material: o corpo do morto valendo-se de herança<br />
para os que ficam. Essa posse ocorria de maneira direta através do vínculo com o resto<br />
corpóreo, mas também por intermédio de uma prática altamente eloqüente nesse<br />
sentido, e popular somente <strong>no</strong> período vitoria<strong>no</strong>: a fotografia post-mortem.<br />
121
Foto tirada em 1888, por fotógrafo de <strong>no</strong>me Robson, na cidade de Petrolia, Canadá. Os pais posam com a<br />
filha morta ao centro. A pose foi conseguida graças ao suporte que a segura, visível por detrás de seus<br />
122
pés. Apesar da suposta vivacidade da foto, seu estado é denunciado pela posição artificial das mãos e<br />
pelos olhos pintados nas pálpebras fechadas. Fonte: http://www.petroliaheritage.com/people.html<br />
Todas as informações que se têm dessa fotografia são as que contam em sua moldura. Apesar de já estar<br />
há 9 dias morta, a filha da senhora Jeanette Glockmeyer foi posicionada de maneira muito realista, com<br />
um vestuário muito elegante, postura ereta e livro nas mãos. Inscrições <strong>no</strong> papel fotográfico eram bastante<br />
comuns, indicando o tempo de falecimento e contendo algum tipo de despedida ao morto. Fonte:<br />
http://ame2.asu.edu/projects/haunted/ISA%20index/book%20of%20the%20dead/book%20of%20the%20<br />
dead%20photos.htm<br />
123
A maior parte das fotografias post-mortem disponíveis para pesquisa não possuem informações sobre os<br />
fotografados. É possível somente analisar a imagem em si, que aqui apresenta uma família em estúdio,<br />
pais e filhos. Interessante <strong>no</strong>tar que o evento da morte não era escondido ou afastado das crianças, que<br />
posam de maneira aparentemente tranqüila ao lado dos gêmeos mortos. Esse tipo de imagem do morto já<br />
<strong>no</strong> caixão é muito freqüente, principalmente depois que o serviço funerário se populariza e se encarrega<br />
de arrumar o morto, melhorando a sua aparência. Fonte: http://billblanton.com/pm.htm<br />
124
Devido ao rigor mortis, muitas vezes o corpo não pode ser recolocado em postura viva. Ainda assim,<br />
procura-se dar a impressão de que o morto, na verdade, somente repousa tranquilamente. Fonte:<br />
http://www.101room.net/wordpress/wp-content/themes/sculpt/print.php?p=118<br />
125
A pequena Pearl foi fotografada em seu leito, e pela imagem quase seria possível dizer que dorme. Essa<br />
tentativa de fazer o morto se passar por vivo dormindo é muito comum, principalmente <strong>no</strong> caso dos<br />
bebês. Aliás, a maior parte das fotografias post-mortem disponíveis são de crianças ainda muito <strong>no</strong>vas, o<br />
que indica não só que a mortalidade <strong>no</strong>s primeiros meses de vida possivelmente era bastante alta como<br />
também mostra que a família fazia questão do registro do falecimento, às vezes o único que teriam do<br />
bebê que não vingou. Por conter as datas de nascimento e falecimento, é possível que a foto de Pearl<br />
tenha sido produzida como um memento mori, ou seja, uma lembrança do morto. Nesse caso, a foto pode<br />
ter sido distribuída aos parentes e amigos que, eventualmente, sequer tiveram tempo hábil de conhecer a<br />
bebê. Fonte: http://billblanton.com/pm.htm<br />
126
Essa pequena já não teve a mesma sorte de Pearl, que faleceu com a aparência tranqüila do bebê que<br />
dorme. Possivelmente essa foto não foi tirada imediatamente após o falecimento, visto que já é<br />
perceptível alguns primeiros sinais da decomposição do corpo. Mesmo assim, a posição realista, sentada,<br />
“segurando” um peque<strong>no</strong> objeto na mão direita, foi tentativa de tornar a foto mais agradável, assim como<br />
a coloração aplicada a posteriori. Fonte:<br />
http://ame2.asu.edu/projects/haunted/ISA%20index/book%20of%20the%20dead/book%20of%20the%20<br />
dead%20photos%20page2.htm<br />
127
Nas décadas seguintes ao seu aparecimento, em 1839, a fotografia se<br />
popularizou rapidamente. 36 Com o barateamento da técnica fotográfica, mesmo a classe<br />
média e operária buscava em algum momento da vida o registro de sua imagem.<br />
Tor<strong>no</strong>u-se comum o retrato individual ou de família, ou ainda de algum acontecimento<br />
importante. A morte, ao se tornar um acontecimento marcante <strong>no</strong> núcleo familiar, e<br />
ainda ser próxima e domiciliar, passou também a ser registrada. A fotografia post-<br />
mortem foi uma prática comum do período vitoria<strong>no</strong>, alimentada pelo apego ao morto e<br />
o desejo de registrar seu último momento de convívio – a derradeira imagem do<br />
indivíduo <strong>no</strong> mundo.<br />
Em seus primeiros a<strong>no</strong>s de existência, a fotografia requeria certo tempo para a<br />
captação da imagem, fazendo com que os fotografados permanecessem imóveis durante<br />
alguns segundos. O resultado, muitas vezes, eram poses tesas, posturas incômodas,<br />
rostos graves e sérios. Esse momento de rigidez era enfim capturado e eternizado.<br />
Estáticos, como cadáveres, eram alvos vivos da ação fotográfica. Momentaneamente<br />
embalsamado, desapropriado de si mesmo, o sujeito torna-se objeto da foto: pura<br />
imagem. Assim sendo, fotografar alguém é, em larga medida, cometer um homicídio<br />
<strong>no</strong> qual, <strong>no</strong> extremo da metáfora, a câmara pode assassinar – o disparo (shot), é o<br />
segundo fatal da realização da foto.<br />
Essa transmutação do indivíduo em imagem, em espectro, faz, então, do instante<br />
fotográfico uma microexperiência de morte. 37 Ao mesmo tempo em que eterniza um<br />
momento fugidio, algo que já foi, a foto faz da imagem um prolongamento do sujeito:<br />
esse é, possivelmente, seu atributo mais instigante. Fotografar é apropriar-se da coisa<br />
fotografada 38 e, <strong>no</strong> caso dos indivíduos tornados registros, transforma-os em pseudo-<br />
presenças: memórias materiais da transitoriedade da vida, tentativas de amenizar o<br />
sofrimento causado com a futura ausência, cabalmente vindoura pelo curso da história.<br />
128
Apesar de construir um vínculo entre passado e presente, a foto é por definição o<br />
registro de um instante que nunca mais se repetirá existencialmente. Se o momento da<br />
fotografia é um momento de morte, a câmera proporciona uma realidade manipulável –<br />
possibilidade de negar a continuidade do tempo.<br />
Se a fotografia torna morto o vivo – agora um espectro, fantasma de si mesmo,<br />
desapropriado de sua imagem – ocorre o oposto ao se retratar um defunto. O registro<br />
post-mortem era feito <strong>no</strong>s primeiros dias do <strong>luto</strong>, preferencialmente o mais rápido<br />
possível, para que os sinais iniciais de decomposição não se tornassem visíveis. Era<br />
feito em casa ou em estúdio. Seu aspecto mais intrigante era a constante tentativa em se<br />
obter uma imagem viva do finado. Para tal, era ajeitado de maneira realista, em pose<br />
sentada, às vezes mesmo em pé, com objetos em mãos. Vestia-se e maquiava-se o<br />
cadáver para que tivesse uma aparência agradável e realista. Quando o rigor mortis ou a<br />
causa mortis tornavam impossíveis esses estratagemas, deitava-se placidamente o<br />
corpo, arranjando-o tal que parecesse descansar ou dormir.<br />
Assim, de certa maneira, a fotografia certifica que o cadáver está vivo enquanto<br />
cadáver: é a imagem viva de uma coisa morta. Anima o morto, fazendo-o forçosamente<br />
posar – como vivo. Na foto, a presença de um objeto registrado é assim como a vida de<br />
um indivíduo que foi retratado: jamais é metafórica, salvo quando se fotografam<br />
cadáveres. 39 Se a foto do vivo busca a permanência do fugidio (a própria vida), com o<br />
morto acontece o contrário: ela ressuscita fugazmente aquilo que é permanentemente<br />
morto. Esse é o grande paradoxo – e simultaneamente o grande fascínio – que se têm<br />
diante do retrato post-mortem. A imagem do corpo amado é eternizada e ele é tornado<br />
imortal, porque eter<strong>no</strong>, mesmo já morto. Em essência, a fotografia post-mortem não<br />
seria, então, uma lembrança do falecido, mas antes a negação de sua morte. Sua<br />
129
mensagem não é mostrar o morto, mas provar que esteve vivo até aquele momento. Por<br />
isso a necessidade em dar vida à pose.<br />
O advento da fotografia e sua popularização estão intimamente relacionados à<br />
consciência individual e à crise da morte <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. No período <strong>no</strong> qual o ser<br />
baseava-se <strong>no</strong> ter, incluiu-se nessa idéia a própria existência: ter um corpo resulta em<br />
ser vivo. Assim, reter o corpo morto, possuir sua imagem fotográfica é manter o<br />
indivíduo morto, vivo. Ao vincular o passado com o presente, os que se foram nunca se<br />
vão de fato. Permanecem como ico<strong>no</strong>grafia utopicamente animada: mumificados, como<br />
um duplo vivo de um original morto. Projeções silenciosas de ausências, falsificações<br />
da verdade.<br />
O retratismo post-mortem revela a angústia do homem vitoria<strong>no</strong> diante do fim. É<br />
sua tentativa desesperada de imobilizar o tempo e não permitir sua passagem: burlar a<br />
seqüência histórica reapresentando um momento de vida forjado. Na sociedade que<br />
afasta a esfera mítica, morrer deixa de ter qualquer explicação ou significado maior e a<br />
vida, qualquer sentido. Depara-se então, com o horror trágico do óbito: a evidência de<br />
que é, simplesmente, fato. Intransponível, inefável. Busca-se dramaticamente fugir da<br />
platitude da vida apegando-se apaixonadamente ao pouco que resta: ao corpo, à sua<br />
imagem derradeira ainda que na morte. Imortalizar o morto é sua última negação.<br />
130
Bibliografia<br />
ARIÈS, Phillipe. História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Da Idade Média aos <strong>no</strong>ssos dias.<br />
Tradução: Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.<br />
BARTHES, Roland. A câmara clara: <strong>no</strong>tas sobre a fotografia. Tradução: Julio<br />
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />
BOCACCIO, Giovanni. Decamerão. Tradução: Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora<br />
Abril, 1971, Col. Os Imortais da Literatura Universal.<br />
DELUMEAU, Jean. História do medo <strong>no</strong> Ocidente. 1300-1800: uma cidade sitiada.<br />
Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução: J. Guisnburg e Bento Prado<br />
Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1987, Coleção Os Pensadores.<br />
DUBY, Georges. A<strong>no</strong> 1000, a<strong>no</strong> 2000: na pista de <strong>no</strong>ssos medos. Tradução: Eugenio<br />
Sila e Maria Regina Osório. São Paulo: Editora Unesp e Imprensa Oficial do Estado de<br />
São Paulo, 1999.<br />
ELIAS, Norbert. A solidão dos moribundos/Envelhecer e morrer. Tradução: Plínio<br />
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.<br />
FROIDMONT, Hálinand. Os versos da morte. Tradução: Heitor Megale. São Paulo: Ed.<br />
Imaginário, 1996.<br />
MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade. Ensaios sobre a felicidade libertina. São<br />
Paulo: Iluminuras, 2006.<br />
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Tradução: Cleone Rodrigues. Rio de Janeiro:<br />
Imago, 1997.<br />
131
NOVAES, Adauto (org). O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo:<br />
companhia das Letras, 2003.<br />
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2004.<br />
VOVELLE, Michel. A história dos homens <strong>no</strong> espelho da morte. In: BRAET, Herman e<br />
VERBEKE, Werner (orgs.). A morte na Idade Média. São Paulo: Ed.USP, 1996.<br />
Sites:<br />
http://www.ztg.tu-berlin.de/fixingid/mementomori.pdf<br />
http://xroads.virginia.edu/~ma04/hess/Emmeline/opening.html<br />
http://www.anamorfose.be/postmortem.htm<br />
http://ame2.asu.edu/projects/haunted/<br />
http://www.petroliaheritage.com/people.html<br />
http://www.101room.net/wordpress/wp-content/themes/sculpt/print.php?p=118<br />
Notas<br />
1 A citação é de Georges Duby, medievalista francês. Duby é herdeiro direto da chamada Escola dos<br />
Annales, que, em contraposição à historiografia tradicional que limita seus estudos à registros oficiais e<br />
dados factuais prioriza o estudo de sistemas de valores e suas mudanças <strong>no</strong> decorrer do tempo e das<br />
diferentes regiões.Para essa corrente, que ficou conhecida como História das mentalidades, idéias e<br />
estruturas sociais fazem, juntas, em igual importância, o amálgama da História. (DUBY. A<strong>no</strong> 1000, a<strong>no</strong><br />
2000. Página 122.)<br />
2 Idem, página 74.<br />
3 ELIAS. Envelhecer e morrer. Páginas 84-7.<br />
4 Os versos foram retirados de um poema do <strong>século</strong> XII, do monge francês Helinánd de Froidmont. A<br />
esse texto é atribuída a primeira imagem da Morte personificada. Segundo Heitor Megale, responsável<br />
pela Apresentação da tradução em português, é em Os versos da morte que, pela primeira vez na<br />
literatura, a morte toma a aparência da estranha personagem armada ora com uma clava, ora com uma<br />
132
foice. Essa representação, em suas múltiplas variações, invadiu o imaginário coletivo entre 1150 e 1250.<br />
(FROIDMONT, Hélinand. Os versos da Morte. Página 44.)<br />
5 É do célebre historiador francês Phillipe Áries o conceito da morte domada da medievalidade. Seu livro<br />
A História da morte <strong>no</strong> Ocidente foi texto fundamental para esse capítulo, ao qual devo as informações<br />
mais pontuais sobre as práticas que envolviam a morte desde a Idade Média até o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. O autor vai<br />
além, chegando à analise da morte até a contemporaneidade. Áries ficou muito conhecido <strong>no</strong>s meios<br />
acadêmicos pelas coleções A história social dos jovens e principalmente A história da vida privada, da<br />
qual foi um dos idealizadores e para a qual escreveu e organizou até o a<strong>no</strong> de sua morte, 1984.<br />
6 O historiador francês Jean Delumeau toma como objeto de estudo o medo e suas diversas manifestações<br />
na cultura ocidental dos <strong>século</strong>s XIV ao XVIII – o medo da Peste sendo uma delas e o estopim para a<br />
imagética das Danças Macabras. (DELUMEAU. História do medo <strong>no</strong> Ocidente. Página 85.)<br />
7 Fosse um grande cavaleiro como Guilherme Marechal, fosse o simples (e ao mesmo tempo complexo)<br />
moleiro Me<strong>no</strong>cchio, as mortes se davam de maneira similar <strong>no</strong> que diz respeito à resignação perante um<br />
fato da vida. A história de Guilherme, conde londri<strong>no</strong> que nasceu em 1145 e viveu até 1219, foi contada<br />
pelo medievalista francês George Duby. Sua morte é a do tipo “clássica” do período: ele pressente seu<br />
fim, doa todos os seus bens, despede-se dos filhos e amigos, entra para uma Ordem Religiosa para<br />
assegurar seu desti<strong>no</strong> eter<strong>no</strong>. Aceita a morte e espera. Suas últimas palavras, ditas à família e aos<br />
companheiros da cavalaria: “Estou morrendo. Confio-vos todos a Deus. Não posso mais permanecer<br />
convosco. Não posso me defender da morte.” E expira em seguida. (DUBY, Georges. Guilherme<br />
Marechal ou o melhor cavaleiro do mundo. Tradução de Renato Janine Ribeiro. Rio de Janeiro: Edições<br />
Graal, 1987.)<br />
Domenico Scandella, o “Me<strong>no</strong>cchio”, nascido em 1532 e morto em 1601, teve sua peculiar história<br />
contada por Carlo Guinzburg, historiador italia<strong>no</strong>. Morador do Friuli, foi um moleiro diferente de todos<br />
os outros, diferente de qualquer morador comum dos vilarejos italia<strong>no</strong>s durante a Renascença. Me<strong>no</strong>cchio<br />
sabia ler e escrever e teve contado com textos que revolucionaram seu modo de pensar cristão. Foi<br />
denunciado ao Santo Ofício sob acusação de heresia, pois tentava disseminar suas idéia na vila em que<br />
morava. Após quatro audiências, foi condenado pela Inquisição. Executado em decorrência de suas idéias,<br />
Me<strong>no</strong>cchio chega a pedir perdão pelas suas pregações, mas de fato nunca muda seu original pensamento.<br />
Não concorda com a instituição Igreja, rica e corrupta, e acredita que o Infer<strong>no</strong> era somente uma de suas<br />
mentiras. Lamentava-se apenas de trazer a vergonha para sua família, e passou a desejar a morte após ser<br />
submetido às torturas. (GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes. O cotidia<strong>no</strong> e as idéias de um moleiro<br />
perseguido pela Inquisição. Tradução: Betânia Amoroso. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.)<br />
8 O único momento em que eram permitidas as manifestações excessivas de emoção era o período do<br />
<strong>luto</strong>, após a morte do moribundo, quando seus próximos exprimiam toda a dor da perda: Os assistentes<br />
rasgavam suas roupas, arrancavam a barba e o cabelo, esfolavam as faces, beijavam apaixonadamente o<br />
133
cadáver, caíam desmaiados e, <strong>no</strong> intervalo de seus transes, teciam elogios aos defuntos, o que é um das<br />
origens da oração fúnebre. (ARIÈS, História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Página 109.)<br />
9 FROIDMONT, Hélinand. Os versos da Morte. Página 54.<br />
10 Segue a citação completa, do antropólogo francês Edgar Morin: Toda uma tendência anti-sexual vai se<br />
expandir com o cristianismo; ele traduzirá o desejo obscuro, não somente de limitar o desastre da<br />
sexualidade, não somente de merecer a imortalidade através da assexualidade mas talvez também de<br />
voltar ao período pré-sexual da vida <strong>no</strong> qual a morte não existe. (MORIN. O homem e a morte. Página<br />
213.) O texto de Morin, O homem e a morte, seu primeiro livro, publicado em 1951, é um dos mais<br />
famosos estudos acerca das representações do imaginário da morte <strong>no</strong>s diferentes períodos e povos. É<br />
uma referência na área de História da morte, em detrimento de ser uma análise antropológica.<br />
11 Nessas sociedades, os defuntos são vivos de um gênero particular, com quem é preciso contar e compor<br />
e, se possível, ter relações de boa vizinhança. Eles não são imortais, mas amortais durante um certo<br />
tempo. Essa amortalidade é o prolongamento da vida por um período indefinido, mas não<br />
necessariamente eter<strong>no</strong>. Em outros termos, a morte não é identificada como algo pontual, mas sim<br />
progressivo. (DELUMEAU. História do medo <strong>no</strong> Ocidente. Página 91.)<br />
12 Considera-se o texto do poeta francês Hélinand de Froidmont, Os versos da Morte, feito entre 1194 e<br />
1197 o primeiro a apresentar essa ico<strong>no</strong>grafia de morte que invadiu o imaginário coletivo dos <strong>século</strong>s<br />
seguintes – e em larga medida perdura ainda hoje.<br />
13 Tomo emprestado do arquiteto e historiador de artes e arquitetura Carlos Antonio Leite Brandão essa<br />
possibilidade em se pensar o paradoxo do individuo como o homem em divisão. Em seu capítulo “O<br />
corpo do Renascimento” presente na coletânea de textos O homem-máquina, organizada por Adauto<br />
NOVAES, Brandão comenta a respeito da arte renascentista e de sua imagética do corpo: [<strong>no</strong><br />
Renascimento] emergirá o claro-escuro de Da Vinci, a situar o homem sob a luz da natureza mais do que<br />
da história; emergirá a subjetividade de Michelangelo, expressa sob a luz artificial da ribalta moderna<br />
em que o fulgor infinito da alma luta para vazar a opacidade finita do corpo; emergirá, enfim, o<br />
“indivíduo” moder<strong>no</strong>, individuos, ser “em-divisão”. Divisão essa que primeiro fratura a alma e a<br />
subjetividade para depois cindir radicalmente a res cogitans do espírito e a res extensa do corpo.<br />
(BRANDÃO In: O corpo máquina. Página 291.)<br />
14 É proveniente de René Descartes a formulação de uma concepção do corpo separado da alma, que<br />
influenciou todo o pensamento moder<strong>no</strong>, e sobreviveu para além do período. No Discurso do método, o<br />
pensador francês do <strong>século</strong> XVII teoriza acerca do corpo, que de<strong>no</strong>mina res extensa, como matéria<br />
orgânica de funcionamento autô<strong>no</strong>mo ao espírito, que chama de res cogitans. Essa é responsável pela<br />
dúvida metódica, o princípio de análise científica baseada <strong>no</strong> questionamento de tudo o que existe, seja<br />
real ou metafísico. A capacidade de duvidar e buscar respostas às dúvidas são os fatores que <strong>no</strong>s definem<br />
134
como seres huma<strong>no</strong>s, daí a sugestão da máxima cartesiana do cogito ergo sum: Notando que esta<br />
verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as mais extravagantes suposições dos<br />
céticos não seriam capazes de abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulos, como o primeiro<br />
princípio da Filosofia que procurava. (...) compreendi por aí que eu era uma substância cuja essência ou<br />
natureza consiste apenas <strong>no</strong> pensar e que, para ser, não necessita de nenhum lugar nem depende de<br />
qualquer coisa material. De sorte que, esse eu, isto é, a alma, pela qual sou o que sou, é inteiramente<br />
distinta do corpo (...) (DESCARTES, Discurso do método. Páginas 46-7.)<br />
15 O imaginário cristão, de maneira geral, começa, na Baixa Idade Média, a ser povoado pelas imagens do<br />
Juízo Final, do Infer<strong>no</strong> e do paraíso – e também do Purgatório, invenção da Igreja do <strong>século</strong> XII – ou seja:<br />
imagens de eventos pós-morte que são conseqüências das decisões tomadas em vida. Se até então a morte<br />
era aceita porque pressupunha uma outra vida, eterna, essas <strong>no</strong>vas instâncias do pós-morte submetem a<br />
vida individual a um reexame.<br />
16 Pelo fim da Idade Média, alguns fiéis substituíram a leitura individual ou a prece coletiva por uma<br />
leitura individual, baixa, interiorizada, meditativa: fenôme<strong>no</strong> que certamente caracteriza uma maior<br />
individualização das idéias e das crenças e a diminuição do sentido comunal da sociedade. (BARTHES, A<br />
câmara clara. Página 145.)<br />
17 ARIÈS. História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Página 140.<br />
18 A Peste entrou na Europa em 1348, proveniente da Ásia, pela chamada “rota da seda”, por Gê<strong>no</strong>va e<br />
Florença, e avança à França <strong>no</strong> mesmo a<strong>no</strong>. Teve seus piores eventos <strong>no</strong> decorrer dos 2 a<strong>no</strong>s seguintes e<br />
durou até 1720, com intervalos e em lugares diferentes em toda a Europa Ocidental, <strong>no</strong>rmalmente com<br />
refluxos de 4 ou 5 a<strong>no</strong>s.<br />
19 DELUMEAU. História do medo <strong>no</strong> Ocidente. Página 125.<br />
20 Idem, página 123.<br />
21 BOCACCIO. Decameron. Página 17.<br />
22 Idem, página 14.<br />
23 Idem.<br />
24 Op. Cit.<br />
25 Segundo Philippe Ariès, a prática que melhor comprova a preocupação em manter a memória do morto<br />
foi a abundante produção de testamentos, feitos pelos homens de todos os estratos sociais. Neles, era<br />
comum que o indivíduo cobrasse termos de compromisso aos que ficavam como encomendar missas e<br />
orações à sua alma. Também cobravam a manutenção de suas placas funerárias nas igrejas. O que<br />
importava era a evocação da identidade do defunto e não o reconhecimento do lugar exato da colocação<br />
do corpo. (ARIÈS, História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Página 62.)<br />
135
26 Conceito desenvolvido pelo historiador francês Michel Vovelle. Assim como as obras de Morin e de<br />
Áries sobre a Morte, o peque<strong>no</strong> artigo de Vovelle, A história dos homens <strong>no</strong> espelho da morte, é também<br />
uma grande referência para esse ramo da historiografia. Além do conceito de morte barroca, Vovelle<br />
desenvolve um pensamento contrário ao de Áries sobre a morte domada medieval, uma espécie de bastião<br />
difícil de ser derrubado. Faz eco à Vovelle o texto de Elias sobre a morte nas sociedades ocidentais, A<br />
solidão do moribundo / Envelhecer e morrer.<br />
27 As representações imagéticas do corpo morto nesse período deixam de ser as do corpo em<br />
decomposição, predominantes desde a Renascença, quando milhares foram acometidos pelas mortes da<br />
Guerra dos Cem A<strong>no</strong>s, da Peste Negra e da fome, que deixavam o cadáver transfigurado, pútrido, em<br />
carnes que se desfaziam em vermes e líquidos sórdidos às vistas de todas. Toma seu lugar a imagem do<br />
esqueleto e do crânio com osso, mais fria e seca, mais científica, racional.<br />
28 VOVELLE. A história dos homens <strong>no</strong> espelho da morte. Página 22.<br />
29 O mesmo Rembrandt produziu outras obras de mesmo tema, como A aula de anatomia do Professor<br />
Deyman, de 1656. As aulas de anatomia continuaram sendo retratadas pictoricamente, até a invenção da<br />
fotografia que substitui aos poucos as pinturas. Ainda durante o <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> era possível encontrar artistas<br />
como Thomas Eakins que tratou do tema nas décadas de 1860 a 1890.<br />
30 La Mettrie substituíra o dualismo cartesia<strong>no</strong> por um monismo materialista, segundo o qual só havia <strong>no</strong><br />
homem uma substância, e a alma nada mais era que uma função da matéria organizada. Destacamos<br />
entre os efeitos positivos desse movimento a valorização do corpo. Mas de outro ponto de vista, o corpo<br />
foi profanado, já que deixou de ser visto como um sacrário que continha uma coisa infinitamente<br />
preciosa, a alma. O comentário é do cientista político Sergio Paulo Rouanet <strong>no</strong> capítulo “O homem-<br />
máquina hoje”, escrito ao livro O homem-máquina, organizado por Adauto NOVAES. (ROUANET In O<br />
homem-máquina. Página 53.)<br />
31 Esse <strong>no</strong>vo corpo da ciência foi também pensado pelas fabulações literárias do <strong>século</strong> <strong>XIX</strong> que<br />
problematizavam o relacionamento entre homens e máquinas. Em O homem de areia, de E.T.A.<br />
Hoffman, publicado em 1817, Olímpia, o autômato construído pelo professor Spalanzani, é (literalmente)<br />
o objeto do amor de Natanael, apesar de todas as suas características mecânicas. O conto não só<br />
estabelece o problema da similitude do autômato, mas, principalmente, da definição inexata da condição<br />
de “huma<strong>no</strong>”. É a confusão gerada quando o ser orgânico e o objeto mecânico se misturam e os limites de<br />
um são questionados pelo outro. Esse questionamento é ainda mais efetivo em outro conto emblemático<br />
sobre a relação homem-máquina, O teatro de marionetes de Heinrich von Kleist, publicado em 1811. Ao<br />
refletir sobre a atuação perfeita das réplicas ao dançarem, o bailari<strong>no</strong> proclama sua superioridade diante<br />
da imperfeição de homens que falham. Se para o Natanael de Hoffmann a boneca Olímpia representa o<br />
ideal justamente porque não fala e não se expressa com paixão ou sentimentalismo (ou seja, por parecer<br />
humana mas agir como máquina), em Kleist os autômatos superam os huma<strong>no</strong>s por agirem sem a razão,<br />
136
de forma espontânea. Enquanto as marionetes deixam-se abandonar à música, a falha do bailari<strong>no</strong> é<br />
exatamente não se “deixar levar”, não abandonar a razão e o pensamento: acaba por dançar com afetação.<br />
Os dois textos são apenas exemplos do profundo impacto que a aproximação entre a natureza humana e a<br />
racionalidade mecânica provocou na sensibilidade literária do período. (HOFFMAN, E.T.A. O homem de<br />
areia. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. KLEIST, H. Sobre o teatro de marionetes. Tradução: Pedro<br />
Sussekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.)<br />
32 A filosofia libertina pregava a busca da felicidade enquanto estado físico e não espiritual. O homem<br />
plenamente feliz era aquele que satisfazia todos os seus desejos em busca do prazer físico do corpo, que<br />
afinal, é a única realidade humana. Para se alcançar esse hedonismo ilimitado, o homem devia ser livre,<br />
autô<strong>no</strong>mo. Como não possui alma, ou seja, não é criação divina, não deveria se submeter a regras<br />
religiosas, sendo então o do<strong>no</strong> do próprio desti<strong>no</strong>. O liberti<strong>no</strong> do <strong>século</strong> XVIII era o filósofo dos prazeres,<br />
sem culpas, sem preconceitos ou repressão, extremamente individualista, e por isso inescrupuloso, em<br />
seus desejos sensuais. Diz a filósofa e crítica literária Eliane Robert Moraes a respeito do Marquês de<br />
Sade, o principal autor da filosofia libertina: Não esqueçamos que o princípio fundamental do sistema de<br />
Sade é o egoísmo: o isolamento define a situação original do homem <strong>no</strong> mundo, e só a libertinagem tem o<br />
poder de devolvê-lo a esse estado natural de solidão que é, por essência, cruel. (MORAES. Lições de<br />
Sade. Página 136.)<br />
33 Por outro lado, a sensibilidade romântica traz à baila um homem em crise diante da materialidade do<br />
mundo. Os temas do Romantismo explicitam a preocupação em reencontrar a esfera mística e idealista do<br />
homem, perdida na ciência materialista.<br />
34 O culto contemporâneo ao morto nada tem a ver com o culto pré-cristão aos mortos pré-cristãos,<br />
segundo Philippe Ariès. Houvera uma grande ruptura entre as atitudes mentais diante dos mortos da<br />
Antiguidade e da Idade Média. (ARIÈS. História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Página 73.)<br />
35 ARIÈS. História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Página 75.<br />
36 O inventário [fotográfico] teve início em 1839 e, desde então praticamente tudo foi fotografado diria<br />
Susan Sontag. A intelectual americana, além de ativista política, romancista e crítica prolífica, publicou,<br />
em 1976, uma importante coletânea de ensaios sobre a atividade fotográfica, contemplando seus aspectos<br />
sociais e huma<strong>no</strong>s. A curiosidade mais empolgante sobre a autora, para esse trabalho, vem do fato de ela<br />
mesma ter sido fotografada morta, na funerária, por sua companheira, a fotógrafa Annie Leibovitz, em<br />
2004, após ter falecido vítima de leucemia aos 71 a<strong>no</strong>s.<br />
37 A fotografia representa esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um<br />
sujeito nem um objeto, mas antes, um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma<br />
microexperiência da morte: tor<strong>no</strong>-me verdadeiramente espectro. O depoimento é do filósofo francês<br />
Roland Barthes, de seu texto A câmara clara, o último antes de sua morte, publicado em 1980. Barthes<br />
137
de<strong>no</strong>mina Spectrum todo referente fotográfico: o alvo, aquilo que é fotografado: Porque essa palavra<br />
mantém uma relação com o espetáculo e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda<br />
fotografia: o retor<strong>no</strong> do morto. Para o autor a natureza da fotografia é a Morte: o que encaro na foto que<br />
tiram de mim é a Morte: a Morte é o eidos dessa foto. (BARTHES. A câmara clara. Páginas 29 e 68.)<br />
A proximidade entre a Morte e a Fotografia foi também pensada por Susan Sontag. Para a autora, fotos<br />
são como vestígios espectrais pois equivalem à presença simbólica do fotografado. A transformação do<br />
indivíduo em objeto, coisa inanimada, é para a autora tal como para Barthes: necessidade de negar os<br />
efeitos do tempo da própria vida, transformando em mortos os fotografados e mantendo-os co<strong>no</strong>sco, em<br />
volumosos álbuns de família. Sontag vai além, ao afirmar que todas as fotos são memento mori: Tirar<br />
uma foto é participar da mortalidade, da vulnerabilidade e da mutabilidade de outra pessoa (ou coisa).<br />
Justamente por cortar uma fatia desse momento e congelá-lo, toda foto testemunha a dissolução<br />
implacável do tempo. (SONTAG. Sobre a fotografia. Página 26.)<br />
Interessante <strong>no</strong>tar como os termos utilizados por Barthes e Sontag se complementam: o primeiro<br />
transforma o fotografado em alvo, que logo se torna espectro. A segunda se refere à câmera fotográfica<br />
como arma fatal, aquele que é carregada, tem uma mira precisa e dispara na direção do alvo apontado. A<br />
metáfora do assassinato <strong>no</strong> momento do shot, utilizada nesse capítulo, foi emprestada de Sontag.<br />
38 SONTAG. Sobre a fotografia. Página 14.<br />
39 Segue a citação completa, de Barthes: Na fotografia, a presença da coisa (em certo momento do<br />
passado) jamais é metafórica, quanto aos seres animados, o mesmo ocorre com a sua vida, salvo quando<br />
se fotografam cadáveres, e ainda: se a fotografia se torna então horrível, é porque ela certifica, se assim<br />
podemos dizer, que o cadáver está vivo, enquanto cadáver: é a imagem viva de uma coisa morta.<br />
O termo animar é extremamente feliz ao considerarmos a fotografia post-mortem, bastando aproximá-lo à<br />
sua relação com o cinema de animação, que nada mais é do que a possibilidade de dar vida (animar) a<br />
bonecos inanimados por intermédio de uma seqüência fotográfica.<br />
138
Bibliografia Geral:<br />
ARIES, Phillipe. História da morte <strong>no</strong> Ocidente. Da Idade Média aos <strong>no</strong>ssos dias.<br />
Tradução: Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Ediouro, 2003.<br />
ARIES, Philippe e CHARTIER, Roger (orgs). História da vida privada 3: da<br />
Renascença ao Século das Luzes. Tradução: Hildegard Feist. São Paulo: Companhia das<br />
Letras, 1991.<br />
BARTHES, Roland. A câmara clara: <strong>no</strong>tas sobre a fotografia. Tradução: Julio<br />
Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />
BOCACCIO, Giovanni. Decamerão. Tradução: Torrieri Guimarães. São Paulo: Editora<br />
Abril, 1971, Col. Os Imortais da Literatura Universal.<br />
CRANE, Diana. A moda e seu papel social. Classe, gênero e identidade das roupas.<br />
São Paulo: <strong>Senac</strong>, 2006.<br />
DELUMEAU, Jean. História do medo <strong>no</strong> Ocidente. 1300-1800: uma cidade sitiada.<br />
Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.<br />
DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução: J. Guisnburg e Bento Prado<br />
Junior. São Paulo: Nova Cultural, 1987, Coleção Os Pensadores.<br />
DUBY, Georges. A<strong>no</strong> 1000, a<strong>no</strong> 2000: na pista de <strong>no</strong>ssos medos. Tradução: Eugenio<br />
Sila e Maria Regina Osório. São Paulo: Editora Unesp e Imprensa Oficial do Estado de<br />
São Paulo, 1999.<br />
ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Tradução: Ruy Jungmann. Rio de Janeiro:<br />
Jorge Zahar Ed., 1994. Volumes I e II.<br />
_____________. A sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001<br />
139
_____________. A solidão dos moribundos/Envelhecer e morrer. Tradução: Plínio<br />
Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.<br />
FLUGEL, J.C. A psicologia das roupas. Tradução: Antonio Cardoso. São Paulo: Mestre<br />
Jou, 1966.<br />
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: a vontade de saber. Tradução: Maria<br />
Thereza da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1984.<br />
_________________. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1998.<br />
FROIDMONT, Hálinand. Os versos da morte. Tradução: Heitor Megale. São Paulo: Ed.<br />
Imaginário, 1996.<br />
GAY, Peter. O <strong>século</strong> de Schnitzler: A formação da cultura da classe média: 1815-<br />
1914. Tradução: S. Duarte. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.<br />
GOETHE, J.W. Doutrina das Cores. Tradução: Marco Gian<strong>no</strong>tti. São Paulo: Nova<br />
Alexandria, 1993.<br />
HARVEY, John. Homens de preto. Tradução: Fernanda Veríssimo. São Paulo: Unesp,<br />
2003.<br />
HOBSBAWM. Eric. A Era do Capital, 1848-1875. Tradução: Lucia<strong>no</strong> Costa Neto. Rio<br />
de Janeiro, Paz e Terra, 1996.<br />
HOLLANDER, Anne. O sexo e as roupas. A evolução do traje moder<strong>no</strong>. Tradução de<br />
Alexandre Tort. Rio de Janeiro: Rocco, 2003.<br />
HUNT, Lynn (org.) A invenção da por<strong>no</strong>grafia: obscenidades e origens da<br />
modernidade. Tradução: Carlos Szlak. São Paulo: Hedra, 1999.<br />
LURIE, Alison. A linguagem das roupas. Tradução: Ana Luiza Dantas Borges. Rio de<br />
Janeiro: Rocco, 1997.<br />
140
MELLO e SOUZA, Gilda. O espírito das roupas. A moda <strong>no</strong> <strong>século</strong> <strong>XIX</strong>. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2001.<br />
MORAES, Eliane Robert. Lições de Sade. Ensaios sobre a felicidade libertina. São<br />
Paulo: Iluminuras, 2006.<br />
MORIN, Edgar. O homem e a morte. Tradução: Cleone Rodrigues. Rio de Janeiro:<br />
Imago, 1997.<br />
MUHLSTEIN, Anka. Vitória: retrato da rainha como moça triste, esposa satisfeita,<br />
soberana triunfante, mãe castradora, viúva lastimosa, velha dama misantropa e avó da<br />
Europa. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo. Companhia das Letras, 1999.<br />
NOVAES, Adauto (org). O homem-máquina. A ciência manipula o corpo. São Paulo:<br />
companhia das Letras, 2003.<br />
PERROT, Michelle (org.) História da vida privada 4: da Revolução Francesa à<br />
Primeira Guerra. Tradução: Denise Bottman e Bernardo Joffily. São Paulo: Companhia<br />
das Letras, 1991.<br />
SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução: Rubens Figueiredo. São Paulo:<br />
Companhia das Letras, 2004.<br />
STALLYBRASS, Peter. O casaco da Marx. Roupas, memória, dor. Tradução: Tomás<br />
Tadeu da Silva. São Paulo: Unesp, 2003.<br />
VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa: um estudo econômico das instituições.<br />
Tradução: Olívia Krahenbuhl. São Paulo: Nova Cultural, 1987, Coleção Os<br />
Eco<strong>no</strong>mistas.<br />
VIGARELLO, Georges. O limpo e o sujo. Uma história da higiene corporal. Tradução:<br />
Mônica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2002.<br />
141
VOVELLE, Michel. A história dos homens <strong>no</strong> espelho da morte. In: BRAET, Herman e<br />
VERBEKE, Werner (orgs.). A morte na Idade Média. São Paulo: Ed.USP, 1996.<br />
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução: Pietro<br />
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2001.<br />
WILSON, Elizabeth. Enfeitada de sonhos: moda e modernidade. Lisboa: Edições 70,<br />
1986.<br />
142