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processos de territorialização e identidades sociais - UFSCar

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PROCESSOS DE<br />

TERRITORIALIZAÇÃO E<br />

IDENTIDADES SOCIAIS<br />

(VOLUME II)<br />

RiMa EDUA<br />

2012


UNIVERSIDADE FEDERAL DO AMAZONAS – UFAM<br />

Reitora<br />

Márcia Perales Men<strong>de</strong>s Silva<br />

Vice-reitor<br />

Hedinaldo Narciso Lima<br />

Pró-Reitora <strong>de</strong> Ensino e Graduação<br />

Rosana Cristina Pereira Parente<br />

Pró-Reitora <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-Graduação<br />

Selma Suely Baçal <strong>de</strong> Oliveira<br />

Pró-Reitor <strong>de</strong> Extensão e Interiorização<br />

Luiz Fre<strong>de</strong>rico Men<strong>de</strong>s dos Reis Arruda<br />

Pró-Reitor para Assuntos Comunitários<br />

João Francisco Beckman<br />

Pró-Reitor <strong>de</strong> Planejamento e<br />

Desenvolvimento Insitucional<br />

Albertino <strong>de</strong> Souza Carvalho<br />

Pró-Reitor <strong>de</strong> Administração e Finanças<br />

Val<strong>de</strong>lário Farias Cor<strong>de</strong>iro<br />

Editora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas – EDUA<br />

DIRETORA<br />

Irail<strong>de</strong>s Caldas Torres<br />

CONSELHO EDITORIAL<br />

Arminda Rachel Botelho Mourão, David Lopes Neto,<br />

Francisco Antonino Bacelar <strong>de</strong> Souza,<br />

Gabriel Arcanjo dos Santos Albuquerque, Jaydiane Luiz<br />

Marcon, José Russo, Maria Sílvia <strong>de</strong> Mendonça Queiroz,<br />

Mauro Thury <strong>de</strong> Vieira Sá, Nilson Rodrigues Barreiro,<br />

Renan Freitas Pinto, Sidney Netto<br />

RIMA EDITORA<br />

COMISSÃO EDITORIAL<br />

Dirlene Ribeiro Martins<br />

Paulo <strong>de</strong> Tarso Martins<br />

Carlos Eduardo M. Bicudo (Instituto <strong>de</strong> Botânica- SP)<br />

Evaldo L. G. Espíndola (USP-SP)<br />

João Batista Martins (UEL-PR)<br />

José Eduardo dos Santos (<strong>UFSCar</strong>-SP)<br />

Michèle Sato (UFMT-MT)


PROCESSOS DE<br />

TERRITORIALIZAÇÃO E<br />

IDENTIDADES SOCIAIS<br />

(VOLUME II)<br />

MARILINA CONCEIÇÃO OLIVEIRA B. S. PINTO<br />

MARIA DE JESUS MORAIS<br />

JACOB CARLOS LIMA<br />

(ORGANIZADORES)<br />

RiMa EDUA<br />

2012


© 2012 dos autores<br />

Direitos reservados <strong>de</strong>sta edição<br />

RiMa Editora, EDUA<br />

Capa<br />

Desenho do AAFI José Sales Kaxinawa – Floresta e Manejo – CPI-Acre, 2002<br />

P963p<br />

Processos <strong>de</strong> <strong>territorialização</strong> e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>sociais</strong> – volume II<br />

/ organizado por Marilina Conceição Oliveira B. S. Pinto,<br />

Maria <strong>de</strong> Jesus Morais e Jacob Carlos Lima – São Carlos :<br />

RiMa Editora, EDUA, 2012.<br />

195 p. il.<br />

ISBN – 978-85-7656-266-5 – versão eletrônica<br />

1. Sociologia. 2. Territorialização. 3. I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social.<br />

I. Autor. II. Título.<br />

Rua Virgílio Pozzi, 213 – Santa Paula<br />

13564-040 – São Carlos, SP<br />

Fone/Fax: (16) 34111729<br />

CDD – 303.4<br />

Editora da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas<br />

Rua Cel. Sérgio Pessoa, 147 – Praça dos Remédios – Centro<br />

69005-030 – Manaus-AM<br />

Fones: (0xx92) 3231-1139/9128-5327


SUMÁRIO<br />

Apresentação ..........................................................................................VII<br />

Parte I<br />

Fronteira, Meio Ambiente e Povos Tradicionais<br />

Capítulo I – Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” –<br />

o que as fumaças ocultam e revelam? .................................................. 3<br />

El<strong>de</strong>r Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paula; Norma Valencio; Maria <strong>de</strong> Jesus Morais<br />

Capítulo II – Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias<br />

seringueiras na região fronteiriça do Acre, BR, Pando,<br />

BOL, e Madre <strong>de</strong> Dios, PE ................................................................. 23<br />

Maria <strong>de</strong> Jesus Morais; Diego Correia Silva; Alessandra Severino da Silva<br />

Manchinery; Mariette <strong>de</strong> Souza Espíndola (in memorian)<br />

Parte II<br />

Trabalho, Território e Conflitos Sociais<br />

Capítulo III – Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres,<br />

Rios e Mares: a luta entre os pescadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e os<br />

pescadores <strong>de</strong> fora ................................................................................... 53<br />

Antônio Carlos Witkoski; Norma Valencio; Pedro Rapozo; Ilunilson dos<br />

Santos Paquete Fernan<strong>de</strong>s<br />

Capítulo IV – A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />

Sustentável Zona Franca Ver<strong>de</strong> (PZFV) em Guajará, AM ................ 75<br />

José Júlio César do Nascimento Araújo; Maria <strong>de</strong> Jesus Morais<br />

Parte III<br />

Dimensões I<strong>de</strong>ntitárias e Religiosas do Mundo Vivido<br />

Capítulo VI – IFronteiras do Sagrado entre a Umbanda e a Barquinha .... 97<br />

Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto; André Ricardo <strong>de</strong> Souza<br />

Capítulo VI – O Uso do Calendário Astronômico Dessana<br />

na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável do Tupé, AM ............ 107<br />

Juliana Mitoso Belota; Lucas Jatobá do Lago; Marilina Conceição<br />

Oliveira Bessa Serra Pinto


Parte IV<br />

Expressões Espaciais da Violência na Produção<br />

Social do Mundo Urbano<br />

Capítulo VII – Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante<br />

dos grupos afetados .......................................................................... 125<br />

Norma Valencio; Regiani Cristina <strong>de</strong> Oliveira; Victor Marchezini; Mariana Siena<br />

Capítulo VIII – As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s<br />

Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus ...................................................... 147<br />

Marcio André Araújo <strong>de</strong> Oliveira; Maria Izabel <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Valle<br />

Capítulo IX –Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento,<br />

Globalização e Desenvolvimento Regional ...................................... 163<br />

Noval Benayon Mello; Márcia Cristina Pereira <strong>de</strong> Melo Fittipaldy;<br />

Bartolomeu Lima da Costa<br />

Sobre os Autores.................................................................................... 179


APRESENTAÇÃO<br />

O processo <strong>de</strong> expansão do capitalismo global tem resultado na integração constante<br />

e ressignificação <strong>de</strong> espaços e territórios. O primeiro, pela incorporação <strong>de</strong><br />

espaços na exploração <strong>de</strong> recursos naturais e ocupação por novos contingentes<br />

populacionais em busca <strong>de</strong> subsistência, expulsos <strong>de</strong> forma contínua pelo<br />

agronegócio e a gran<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> territorial voltada à exploração extensiva da<br />

pecuária e <strong>de</strong> recursos naturais. O segundo pela transformação <strong>de</strong>sses mesmos<br />

espaços em novos territórios marcados pela convivência conflituosa <strong>de</strong> populações<br />

tradicionais com os recém-chegados, que modificam substancialmente seus modos<br />

<strong>de</strong> vida, costumes e tradições com a imposição <strong>de</strong> uma mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> exclu<strong>de</strong>nte.<br />

Exclusão esta marcada pela invasão <strong>de</strong> terras comunais, <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong>s,<br />

pela expulsão para as periferias urbanas <strong>de</strong> seringueiros e povos indígenas cada<br />

vez mais proletarizados.<br />

A <strong>de</strong>struição das florestas, o fogo das queimadas, dá lugar à soja, à cana e à<br />

pecuária extensiva nas gran<strong>de</strong>s proprieda<strong>de</strong>s, lugares ressignificados, esvaziados em<br />

nome <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> fora seus principais atores. O<br />

agronegócio <strong>de</strong> exportação aparece como vencedor, seja em sua violenta expropriação<br />

na qual a fumaça torna-se sua marca registrada, seja em sua glorificação como<br />

forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e mo<strong>de</strong>rnização capitalista.<br />

Essa dinâmica extrapola fronteiras nacionais e cria limites on<strong>de</strong> estes eram<br />

fluídos. A circulação <strong>de</strong> populações tradicionais na Amazônia enfrenta agora a<br />

exploração da região em todas as direções, criando conflitos on<strong>de</strong> estes inexistiam<br />

ou eram pouco relevantes. Trabalhadores expulsos para a Bolívia em busca <strong>de</strong> terras<br />

são <strong>de</strong>sapropriados e <strong>de</strong>slocados em nome da segurança territorial. Seu retorno<br />

ao país torna-se difícil pela indisponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> terras on<strong>de</strong> estas parecem<br />

infindáveis. A migração e mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas populações torna-se uma busca permanente<br />

por um lugar para viver e trabalhar.<br />

A violência, o conflito esta presente nas pequenas e gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s da Amazônia<br />

em territórios marcados pela insegurança e risco. Manaus, Belém, Rio Branco,<br />

tornam-se, em certa medida tão violentas como São Paulo e Rio <strong>de</strong> Janeiro. Fenômenos<br />

naturais como chuvas e secas tornam-se <strong>de</strong>sastres contínuos afetando aquela população<br />

que Roberto Castel chamou <strong>de</strong> supranumerários, sobrantes na nova or<strong>de</strong>m<br />

mundial. O capitalismo, em tese triunfante, incorporou a Amazônia à sua lógica.<br />

Neste segundo volume <strong>de</strong> “Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais”<br />

resultante do PROCAD-CAPES entre as Universida<strong>de</strong>s Fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong> São<br />

Carlos, Acre e Amazonas, apresentamos um conjunto <strong>de</strong> trabalhos que examinam<br />

aspectos <strong>de</strong>ssa <strong>territorialização</strong> globalizada e exclu<strong>de</strong>nte da Amazônia Brasileira.


VIII Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

São textos que examinam, <strong>de</strong> forma interdisciplinar, aspectos <strong>sociais</strong>, culturais e<br />

políticos <strong>de</strong> uma ocupação econômica predatória em nome <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento<br />

que utiliza o ecossistema como commodities embora o utilize para justificar práticas<br />

consi<strong>de</strong>radas “ver<strong>de</strong>s” <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> recursos naturais, e das populações<br />

locais e adventícias, ambas expropriadas, e numa mobilida<strong>de</strong> forçada na luta pela<br />

subsistência.<br />

A primeira parte do livro é <strong>de</strong>dicada ao <strong>de</strong>bate sobre “Fronteira, Meio Ambiente<br />

e Povos Tradicionais”. No primeiro capítulo, Paula, Valêncio e Morais, discutem<br />

o significado da apologia do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável frente a fumaça que<br />

encobre a região ¼ do ano que camufla, através da manipulação, o <strong>de</strong>sastre<br />

ambiental promovido pelos diversos interesses econômicos. Discutem o uso simbólico<br />

do fogo para a humanida<strong>de</strong> como recurso tecnológico e <strong>de</strong> proteção, à sua<br />

utilização predatória na violência social e ambiental, o <strong>de</strong>sastre representado pelos<br />

incêndios, pelo <strong>de</strong>scontrole da temperatura, pelas consequências <strong>sociais</strong> em termos<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> humana. Destacam os focos <strong>de</strong> calor nas fronteiras oeste da Amazônia<br />

brasileira <strong>de</strong>nunciando um processo <strong>de</strong>strutivo que se espalha interfronteiras. As<br />

fumaças resultantes das queimadas na Amazônia são tratadas como “<strong>de</strong>sastres<br />

socioambientais” e as imagens vinculadas buscam os “culpados” pelas queimadas.<br />

A atuação do Estado, na indicação <strong>de</strong> “alternativas sustentáveis” a esses <strong>de</strong>sastres<br />

termina por se constituir em agente dos interesses econômicos, justificando a <strong>de</strong>struição<br />

“criativa” do capital em nome do <strong>de</strong>senvolvimento. O estado do Acre é típico<br />

<strong>de</strong>sse processo, visto como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”, do discurso<br />

florestânico, on<strong>de</strong> a fumaça vem sempre além <strong>de</strong> suas fronteiras. O po<strong>de</strong>r imagético<br />

e discursivo ocultando um <strong>de</strong>sastre em curso.<br />

No capítulo seguinte, Morais; Correia Silva; Manchinery e Espíndola, em<br />

“Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região<br />

da tríplice fronteira do Acre-BR, Pando-BOL e Madre <strong>de</strong> Dios-PE”, através <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> trabalhadores, discutem o avanço da fronteira econômica em região<br />

<strong>de</strong> fronteira e a mobilida<strong>de</strong> resultante. A expansão da agropecuária, das décadas<br />

<strong>de</strong> 1970 e 1980 no Brasil terminou por expulsar famílias seringueiras para as<br />

matas <strong>de</strong> Pando na Bolívia. A atual exploração ma<strong>de</strong>ireira, não apenas em Pando,<br />

mas também em Madre <strong>de</strong> Dios e Acre, tem resultado em um retorno <strong>de</strong>ssas famílias<br />

seringueiras para o Brasil e a “pressão da expropriação territorial das nações<br />

indígenas do Peru para o Brasil”. Essa mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>corre <strong>de</strong> conflitos entre índios<br />

e não-índios, entre proprietários e camponeses que refletem a tensão permanente<br />

<strong>de</strong> uma população que vive “entre lugares” com temporalida<strong>de</strong>s distintas.<br />

Na segunda parte, “Trabalho, Território e Conflitos Sociais”, Witkoski;<br />

Valencio; Raposo e Fernan<strong>de</strong>s, discutem em “Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes<br />

Lacustres, Rios e Mares: a luta entre os pescadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro e os pescadores <strong>de</strong> fora”,<br />

o trabalho da pesca nos rios, lagos e mares e os embates entre os pescadores das<br />

comunida<strong>de</strong>s e “os <strong>de</strong> fora” representados pela pesca comercial ou mesmo <strong>de</strong> ou-


Apresentação IX<br />

tras comunida<strong>de</strong>s em busca <strong>de</strong> recursos ictofaunísticos. O capítulo é dividido em<br />

três partes. Na primeira, esses conflitos têm como referência uma comunida<strong>de</strong> do<br />

Rio Solimões on<strong>de</strong> a diminuição <strong>de</strong> espécies com melhores preços no mercado<br />

agudizam os conflitos no uso comum dos “ambientes territorialmente constituídos”;<br />

assim como também a utilização <strong>de</strong> certos instrumentos/técnicas <strong>de</strong> pesca<br />

que acirram a disputa pelo controle <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados por ambientes <strong>de</strong> pesca. A<br />

segunda, enfoca os pescadores artesanais do Rio São Francisco no nor<strong>de</strong>ste brasileiros<br />

e seus conflitos com pescadores clan<strong>de</strong>stinos não formalizados; e a terceira<br />

analisa pescadores marítimos em São Tomé e Príncipe on<strong>de</strong> a pesca artesanal como<br />

uma das principais ativida<strong>de</strong>s econômicas do país sofre com a redução dos cardumes<br />

provocadas pela exploração comercial por embarcações européias que compromete<br />

as formas <strong>de</strong> existência das comunida<strong>de</strong>s pesqueiras. Em comum, nos três<br />

territórios, a <strong>de</strong>fesa dos pontos <strong>de</strong> pesca constitui em uma resistência <strong>de</strong> populações<br />

que têm na ativida<strong>de</strong> sua forma <strong>de</strong> subsistência, contra a ameaça <strong>de</strong> eliminação<br />

<strong>de</strong> formas tradicionais <strong>de</strong> organização social.<br />

No capítulo seguinte, Araújo e Morais discutem o “Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />

Sustentável Zona Franca Ver<strong>de</strong> (PZFV)” em Guajará, no Amazonas, buscando<br />

verificar as relações entre os <strong>processos</strong> <strong>sociais</strong> e ecológicos presentes na<br />

dinâmica produtiva e em que medida resultou em <strong>de</strong>senvolvimento sustentável.<br />

Afirmam que a lógica do PZFV se baseia na proposição que a sustentabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

políticas públicas po<strong>de</strong> ser conseguida com ações produtivas <strong>de</strong> cima para baixo<br />

sem a incorporação <strong>de</strong> novas técnicas ou a compreensão, interesse ou mesmo participação,<br />

por parte dos atores <strong>sociais</strong> envolvidos. Recuperam as políticas para a<br />

Amazônia nas últimas décadas e a importância das ONGs e entida<strong>de</strong>s preservacionistas<br />

nessas políticas. Destacam o Plano Amazônia Sustentável (PAS) como<br />

o gran<strong>de</strong> legado do Governo Lula, que objetivava i<strong>de</strong>ntificar alternativas <strong>de</strong><br />

sustentabilida<strong>de</strong> dos <strong>processos</strong> <strong>sociais</strong> e econômicos vigentes e novas propostas que<br />

se pretendia consolidar ou introduzir na região. Em seguida, apresentam a implantação<br />

do Programa em Guajará com as Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação que priorizaram<br />

uma economia florestal que não fortaleceu a economia local nem alterou os índices<br />

<strong>de</strong> pobreza. Essas unida<strong>de</strong>s privilegiaram o manejo ma<strong>de</strong>ireiro ou exploração<br />

<strong>de</strong> espécies silvestres, possibilitando a ação dos gran<strong>de</strong>s grupos industriais na região.<br />

Com isso, a melhoria das condições <strong>de</strong> vida da população como educação,<br />

saú<strong>de</strong>, saneamento ambiental, fortalecimento institucional, formação <strong>de</strong> recursos<br />

humanos para o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, gestão participativa, valorização do<br />

saber etnoecológico e outros, foram secundarizados. Concluem, por fim, que as<br />

ações do PZFV são insustentáveis, pois apenas focaram o <strong>de</strong>senvolvimento das<br />

ca<strong>de</strong>ias produtivas agropecuárias, que ameaçam a manutenção dos ecossistemas<br />

da forma como têm sido realizadas.<br />

A Parte III centra-se nas dimensões i<strong>de</strong>ntitárias do simbólico. O primeiro texto<br />

discute as fronteiras do sagrado, a influência da umbanda na “barquinha”, <strong>de</strong>finida<br />

como uma ramificação do uso ritual da ayahuasca das culturas ameríndias,


X Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

assimilada pelos migrantes nor<strong>de</strong>stinos que se <strong>de</strong>slocaram para a região. Pinto e<br />

Souza recuperam a dimensão sincrética presente na religiosida<strong>de</strong> nacional e suas<br />

distintas manifestações territoriais, produto <strong>de</strong> ressignificações <strong>de</strong> suas matrizes<br />

originárias. O capítulo apresenta os novos usos da ayahuasca, promovido pelo<br />

contato <strong>de</strong> uma população migrante com as populações tradicionais da região,<br />

seguida pela constituição da “barquinha” como seita sincrética surgida em contexto<br />

urbano na periferia da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Branco. Esse surgimento é confrontado<br />

com o surgimento da umbanda no su<strong>de</strong>ste e suas variações no nor<strong>de</strong>ste urbano.<br />

Concluem pelo espaço sincrético do encontro das religiões afro-brasileiras e suas<br />

manifestações regionais – Umbanda, Candomblé e suas variações: Xangô, Batuque<br />

e Tambor <strong>de</strong> Mina – e as religiões <strong>de</strong> tradição consi<strong>de</strong>rada indígena – Catimbó,<br />

Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha – que se encontram e se influenciam.<br />

Tais religiões fariam uma espécie <strong>de</strong> sacralização da natureza e mitificação <strong>de</strong> territórios,<br />

como a África e a Amazônia.<br />

Numa perspectiva mais voltada às tradições indígenas, Belota, Lago e Pinto,<br />

discutem o uso dos conhecimentos do calendário astronômico do povo <strong>de</strong>ssana,<br />

um conjunto <strong>de</strong> narrativas sobre os saberes tradicionais <strong>de</strong>ste povo. Através <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong>ssana oriunda da região do Alto Rio Negro e que<br />

vive na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável do Tupé, nas proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

Manaus, constatou-se que o grupo consegue preservar aspectos dos conhecimentos<br />

presentes no sistema do calendário em seu cotidiano, agora no contexto do<br />

etnoturismo ou do chamado turismo xamânico. A população da al<strong>de</strong>ia pesquisada<br />

vivenciou um período histórico <strong>de</strong> migração e êxodo, ruptura espacial e temporal,<br />

e o retorno ao seu calendário a partir das condições <strong>de</strong> vida e recursos naturais<br />

disponíveis em seu novo espaço vital.<br />

A Parte IV centra-se na produção social do mundo urbano amazônico: <strong>de</strong>sastres,<br />

trabalho precário na metrópole regional, finalizando com uma discussão sobre<br />

globalização, <strong>de</strong>senvolvimento e gestão do conhecimento.<br />

Valencio, Oliveira, Marchezini e Siena iniciam a discussão com o capítulo<br />

“Desastres e <strong>de</strong>samparo coletivo: o ente público diante dos grupos afetados”,<br />

objetivando explicitar o contexto socioambiental e os sujeitos envolvidos nos <strong>de</strong>sastres,<br />

<strong>de</strong>finido como um tipo específico <strong>de</strong> crise social. Os <strong>de</strong>sastres no meio<br />

urbano <strong>de</strong>correm da vulnerabilida<strong>de</strong> socioeconômica que se manifesta na ocupação<br />

<strong>de</strong>sigual do solo urbano pelos diferentes grupos <strong>sociais</strong> e, por conseguinte, se<br />

tornam os principais afetados pelos <strong>de</strong>sastres. O <strong>de</strong>satendimento ou mau atendimento<br />

público no pós-impacto é o que os torna, numa espiral ascen<strong>de</strong>nte, os mais<br />

vulneráveis diante da vinda <strong>de</strong> novas ameaças, ampliando o fosso entre os sujeitos<br />

na paisagem urbana. Manaus e Rio Branco ilustram esse processo, com as cheias<br />

que atingem uma população que tem o <strong>de</strong>sastre como futuro previsto e repetido, e<br />

on<strong>de</strong> o problema é percebido como culpa dos próprios atingidos, pelo Estado e pelas<br />

políticas públicas que os ignoram, ou atuam <strong>de</strong> forma autoritária na tentativa <strong>de</strong><br />

resolução da crise.


Apresentação XI<br />

A vulnerabilida<strong>de</strong> social assume várias configurações que configuram o risco<br />

permanente enfrentado por grupos <strong>sociais</strong>. Oliveira e Valle apresentam os trabalhadores<br />

informais do centro <strong>de</strong> Manaus e suas estratégias <strong>de</strong> permanecerem na<br />

ativida<strong>de</strong> enquanto camelôs. As re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvidas por esses<br />

trabalhadores se constituem em estratégias <strong>de</strong> sobrevivência daqueles que se encontram<br />

nas “margens” <strong>de</strong> um mercado <strong>de</strong> trabalho restrito e exclu<strong>de</strong>nte. Utilizando<br />

como referência as re<strong>de</strong>s <strong>sociais</strong> e a nova sociologia econômica, os autores<br />

reconstroem as tramas relacionais em torno da Praça <strong>de</strong> Matriz, na qual as regras<br />

<strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> substituem a racionalização burocrática dos contratos formais <strong>de</strong><br />

trabalho. A confiança se constitui em elemento fundamental nas relações <strong>de</strong> parentesco<br />

e amiza<strong>de</strong> marcadas pela reciprocida<strong>de</strong> no enfrentamento das condições<br />

<strong>de</strong> trabalho na rua, nas quais diversos atores se enfrentam e convivem. Baseado<br />

em trabalho etnográfico junto a esses trabalhadores, o capítulo discute o mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manaus, o processo migratório em sua constituição e<br />

configuração, e a informalida<strong>de</strong> nas ruas da cida<strong>de</strong>, reconstruindo os diversos nós<br />

relacionais entre os diversos atores e ativida<strong>de</strong>s que o constituem como camelôs,<br />

artistas, pregadores, carregadores, fiscais da prefeitura, agiotas e invasores.<br />

Finalizando a coletânea, Mello, Fittipaldy e Costa discutem teoricamente a<br />

gestão do conhecimento, globalização e <strong>de</strong>senvolvimento, recuperando, em certa<br />

medida, os <strong>de</strong>bates presentes na primeira parte, somados à questão da importância<br />

da inovação nas políticas públicas, numa perspectiva mais normativa para a<br />

implementação <strong>de</strong>ssas políticas. Para tanto, são recolocadas questões como territorialida<strong>de</strong>s,<br />

<strong>de</strong>senvolvimento regional e <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, e o progresso<br />

técnico científico como estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento local. A importância do<br />

capital social e re<strong>de</strong>s na cooperação e no facilitamento das transações econômicas<br />

manifesta-se na importância assumida pelas organizações locais no conhecimento<br />

das realida<strong>de</strong>s constituintes e, daí, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar suas especificida<strong>de</strong>s<br />

na elaboração <strong>de</strong> políticas.<br />

O conjunto <strong>de</strong> textos apresenta importante contribuição para o conhecimento<br />

da “questão amazônica” em suas múltiplas dimensões e especificida<strong>de</strong>s. A<br />

globalização incorpora territórios ressignificando-os, criando e recriando i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

<strong>sociais</strong> num processo conflitivo, no qual distintos atores estão envolvidos em um<br />

embate permanente <strong>de</strong> interesses, projetos e resistências. O <strong>de</strong>senvolvimento regional<br />

insere-se na globalização econômica on<strong>de</strong> velhos e novos atores se enfrentam<br />

na apropriação <strong>de</strong> novos espaços e territórios, nos quais a floresta aparece como<br />

uma commodity a ser explorada, como marketing político <strong>de</strong> políticas públicas variadas<br />

e nos quais trabalhadores rurais e urbanos e populações tradicionais continuam<br />

on<strong>de</strong> sempre estiveram, nas margens, excluídos e vulneráveis ao risco dos novos<br />

tempos do capitalismo global.<br />

São Carlos, outubro, 2011<br />

Jacob Carlos Lima


PARTE I<br />

FRONTEIRA, MEIO AMBIENTE E<br />

POVOS TRADICIONAIS


INTRODUÇÃO<br />

CAPÍTULO I<br />

FRONTEIRAS AMAZÔNICAS E OS<br />

“FOCOS DE CALOR”<br />

o que as fumaças ocultam e revelam?<br />

El<strong>de</strong>r Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paula<br />

Norma Valencio<br />

Maria <strong>de</strong> Jesus Morais<br />

A série <strong>de</strong> documentários intitulada A Década da Destruição, 1 realizada entre<br />

meados das décadas <strong>de</strong> 1980/90, mostrou em diversas partes do mundo chocantes<br />

e comoventes imagens da <strong>de</strong>vastação das florestas e extermínio sistemático dos<br />

povos indígenas na Amazônia brasileira. O uso <strong>de</strong>ssas imagens, além <strong>de</strong> registrar e<br />

<strong>de</strong>nunciar as mazelas ambientais e socioculturais imediatas provocadas pela expansão<br />

da fronteira capitalista na Amazônia, levada a cabo pela ditadura militar no<br />

pós-1964, inaugura uma nova fase em que o uso do “po<strong>de</strong>r da imagem” passa a<br />

prevalecer sobre a utilização da “imagem do po<strong>de</strong>r”.<br />

Nos umbrais da segunda década do século XXI temos nos <strong>de</strong>parado cada vez<br />

mais com o uso, também na Amazônia continental, <strong>de</strong>sse fabuloso recurso do “po<strong>de</strong>r<br />

da imagem”. A veiculação <strong>de</strong> imagens que fazem apologia ao “<strong>de</strong>senvolvimento<br />

1. Como bem sintetiza a matéria publicada no Portal Amazônia em 8 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2004, “a<br />

série A Década da Destruição, <strong>de</strong> Adrian Cowell, reúne quatro filmes e se tornou famosa por<br />

mostrar a Amazônia e seus problemas, principalmente no que diz respeito ao seu<br />

ecossistema, abalado pela <strong>de</strong>struição das florestas e a ameaça constante da sua<br />

biodiversida<strong>de</strong>, seja com a progressiva <strong>de</strong>vastação provocada pelas queimadas, como com<br />

a dizimação <strong>de</strong> culturas indígenas (...) um dos mais contun<strong>de</strong>ntes materiais na área <strong>de</strong><br />

audiovisual sobre a Amazônia. A série é composta <strong>de</strong> quatro filmes que tem a região como<br />

tema, apresentando situações limites sobre o conceito vulgar da palavra ‘<strong>de</strong>struição’ e apresenta<br />

personagens reais que posteriormente se tornariam referências na luta pela preservação<br />

da Amazônia, o que inclui Chico Men<strong>de</strong>s. Os filmes são: Montanha <strong>de</strong> Ouro, Chico<br />

Men<strong>de</strong>s – Eu Quero Viver; Nas Cinzas da Floresta e Na Trilha dos Uru-Eu-Wau-Wau. De acordo<br />

com Adrian Cowell, a série tem o título <strong>de</strong> A Década da Destruição por retratar um período<br />

– década <strong>de</strong> 1980 a 1990 – no qual a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> material orgânico que as<br />

queimadas provocaram na região amazônica foi imperativa para a crise ambiental e a criação<br />

– e posterior proteção – <strong>de</strong> várias ONG’s, assim como <strong>de</strong> outros organismos internacionais.<br />

Cowell disse que durante a década retratada por ele aconteceu, provavelmente, a<br />

maior <strong>de</strong>struição da história na região”. (Disponível em: http://portalamazonia.globo.com/<br />

new-structure/view/scripts/noticias/noticia.php?id=12649. Acesso em: jun. 2011.)


4 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

sustentável” na Amazônia brasileira ou ao “<strong>de</strong>sarrollo sostenible” na Amazônia<br />

peruana e boliviana, por parte <strong>de</strong> agências multilaterais, ONGs internacionais e<br />

locais como “antídoto” para as queimadas, parece ilustrar bem essa afirmativa.<br />

Recordando Debord (1997: 18), “quando o mundo real se transforma em simples<br />

imagens, as simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes <strong>de</strong> um<br />

comportamento hipnótico”.<br />

Em outras palavras, estamos querendo dizer que, enquanto as fumaças encobrem<br />

parte da Amazônia por aproximadamente ¼ do ano, as imagens manipuladas<br />

para satisfazer aos diferentes interesses <strong>de</strong> capitais atuantes na região o fazem<br />

durante o ano todo. A abordagem que fazemos neste capítulo, sobre o “<strong>de</strong>sastre”<br />

socioambiental provocado anualmente pela fumaça, procura situá-la nessa emaranhada<br />

trama que presi<strong>de</strong> o processo <strong>de</strong> re<strong>territorialização</strong> do capital em curso nos<br />

“mundos amazônicos”. Nas cinco seções que compõem o texto: “A ambivalente<br />

relação social com o fogo”, “A Amazônia em agonia”, “Os ‘focos <strong>de</strong> calor’: <strong>de</strong>sastres<br />

visíveis ou ocultos?”; “Fronteiras amazônicas sob fumaça” e “On<strong>de</strong> há fumaça<br />

não há fogo?”, seguidas das “Conclusões”, procuramos pontuar os elementos que<br />

consi<strong>de</strong>ramos mais relevantes para subsidiar a análise proposta.<br />

A AMBIVALENTE RELAÇÃO SOCIAL COM O FOGO<br />

O fogo é um elemento que se associa, no imaginário social, à ascensão e à<br />

queda do humano. De um lado, as transformações do mundo material, propiciadas<br />

pelo domínio <strong>de</strong>sse elemento, apontaram para uma auspiciosa intersecção da<br />

vida prática e dos termos simbólicos da existência social: o fogo converteu-se num<br />

instrumento que elevou significativamente a garantia <strong>de</strong> suprimento dos mínimos<br />

vitais e a extensão do tempo <strong>de</strong>dicado aos mínimos <strong>sociais</strong>. O controle do fogo e a<br />

sua utilização para fins <strong>de</strong> cocção <strong>de</strong> alimentos, <strong>de</strong> aquecimento e iluminação <strong>de</strong><br />

ambientes, <strong>de</strong> queima e transformação <strong>de</strong> materiais para composição <strong>de</strong> novos<br />

utensílios e ferramentas, <strong>de</strong> segurança do grupo frente a ameaças, <strong>de</strong>ntre outros,<br />

permitiu avanços civilizacionais importantes, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a ampliação do repertório<br />

cultural até o aumento da extensão territorial e do tempo <strong>de</strong>dicado ao aprimoramento<br />

na sociabilização. Um estudo recente, <strong>de</strong> Roebroeks & Villa (2011), indica<br />

que o fogo foi dominado e se tornou parte do repertório tecnológico dos ancestrais<br />

do homem mo<strong>de</strong>rno cerca <strong>de</strong> 300 a 400 mil anos atrás. O conhecimento<br />

pirotecnológico milenar <strong>de</strong> povos indígenas possibilitou a adoção da coivara como<br />

uma prática usual <strong>de</strong> limpeza <strong>de</strong> terreno para fins <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> clareiras e<br />

viabilização das práticas <strong>de</strong> plantio, os quais, não raro, são acusados injustamente<br />

<strong>de</strong> causarem os <strong>de</strong>sastres dos incêndios florestais (LEFF, 2003).<br />

Na cultura espiritual <strong>de</strong> vários povos, o fogo é o elemento que <strong>de</strong>nota a fé e<br />

invoca a proteção dos bons espíritos, bem como amaina aqueles que, se supõem,<br />

estejam em tormento. Velas acesas perante as imagens <strong>de</strong> santos e em memória<br />

aos mortos, nas práticas cristãs <strong>de</strong> <strong>de</strong>nominação católica, são partes constitutivas


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 5<br />

<strong>de</strong> práticas regulares no espaço público dos templos e no espaço privado das moradias<br />

dos fiéis. O povo indígena kaingang realiza um culto aos mortos através <strong>de</strong><br />

uma festa (kiki) em que a dança ao redor <strong>de</strong> fogueiras é uma das práticas centrais<br />

para reforçar sua <strong>de</strong>fesa psíquica em torno da vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> prolongar a vida, <strong>de</strong>sligando-os<br />

dos mortos e impedindo que os espíritos <strong>de</strong>stes queiram levá-los consigo<br />

(VEIGA, 2000). O uso do fogo em contexto ritual funerário, associado à i<strong>de</strong>ntificação,<br />

coleta e plantio <strong>de</strong> sementes que propiciavam boa lenha, é observado em<br />

fragmentos <strong>de</strong> carvão em sambaquis catarinenses, suscitando a hipótese <strong>de</strong> interferência<br />

humana pré-histórica na paisagem natural tal, como <strong>de</strong>monstram certos<br />

padrões vegetacionais da Floresta Amazônica, cujos estudos arqueológicos <strong>de</strong>sfazem<br />

o mito da ‘floresta virgem’ (BIANCHINI, 2008).<br />

De outra parte, o controle do fogo através <strong>de</strong> tecnologias aperfeiçoadas ao<br />

longo da Revolução Industrial foi aquilo que ensejou a extensão da clarida<strong>de</strong> e do<br />

tempo <strong>de</strong> trabalho nas fábricas, propiciando as jornadas noturnas. Matos (2008)<br />

consi<strong>de</strong>ra que, dos lampiões a gás à iluminação elétrica, houve processual intolerância<br />

perante as práticas <strong>de</strong> passivida<strong>de</strong> no tempo noturno. O repouso e a contemplação<br />

tornam-se <strong>de</strong>scartáveis em vista das exigências da acumulação, e o stress<br />

se torna um estado permanente da condição humana no contexto <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,<br />

afirma a autora. Nada mais parecido com o “inferno da terra”: as cobranças contínuas<br />

por produção e produtivida<strong>de</strong>, por inúmeros e simultâneos contatos, formais<br />

e informais, ambos impeditivos da preservação <strong>de</strong> um tempo interno, que<br />

respeite tanto o relógio biológico quanto as disposições reflexivas não alienantes.<br />

Nessa perspectiva, a estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> setores mo<strong>de</strong>rnizantes é fazer<br />

ar<strong>de</strong>r a Amazônia brasileira não apenas para subtrair os sistemas <strong>de</strong> objetos que,<br />

na forma como se apresentam, atrapalham a organização dos negócios. Trata-se<br />

<strong>de</strong> alterar o conteúdo das relações <strong>sociais</strong> ali estabelecidas, impondo, juntamente<br />

à nova configuração do espaço, uma nova normatização do tempo para os povos<br />

locais em que o <strong>de</strong>vaneio, o <strong>de</strong>scanso, as práticas rituais e <strong>de</strong>mais aspectos das<br />

interações correntes submetem-se aos ritmos da acumulação.<br />

A AMAZÔNIA EM AGONIA<br />

À racionalida<strong>de</strong> que teima em consi<strong>de</strong>rar a Amazônia brasileira como um<br />

espaço vazio subjaz um projeto <strong>de</strong> expansão econômica <strong>de</strong> setores bem estabelecidos<br />

no i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong>senvolvimentista, <strong>de</strong>stacadamente no trinômio construção civil/<br />

energia/agrobusiness, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>riva uma cabal <strong>de</strong>slegitimação da produção social<br />

local do território, entendida como atrasada. Assim, a materialização do intento<br />

<strong>de</strong> transformação do lugar, ajustando-o ao que é entendido pelas forças<br />

sociopolíticas exógenas como o mais apropriado à região, provoca a invisibilização<br />

dos modos <strong>de</strong> vida ali existentes e prece<strong>de</strong>ntes, anulando-os através da alteração<br />

da dinâmica ecossistêmica e da <strong>de</strong>stituição dos <strong>de</strong>mais meios materiais da reprodução<br />

social, como o direito a terra. Nesse intento, o fogo se apresenta como arma<br />

que, ao abrasar matas e florestas e inviabilizar a permanência dos povos que <strong>de</strong>la


6 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m, escon<strong>de</strong> circunstancialmente sob a fumaça os seus agentes, para <strong>de</strong>svelálos<br />

em seguida sob a égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma ocupação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> escala e predatória que, em<br />

vista <strong>de</strong> seus nexos com as estratégias macros<strong>sociais</strong> <strong>de</strong> crescimento econômico,<br />

não permite questionamentos pelas forças locais.<br />

À margem da lei, as armas <strong>de</strong> fogo <strong>de</strong> capangas e milícias servem para constranger<br />

as li<strong>de</strong>ranças locais que porventura se atrevam a contestar tal processo e<br />

que anseiem por fazer valer uma normativida<strong>de</strong> pluricultural. Disparos <strong>de</strong> arma<br />

<strong>de</strong> fogo levaram à morte as li<strong>de</strong>ranças no Acre, como a <strong>de</strong> Chico Men<strong>de</strong>s, ocorrida<br />

em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1988; no Pará, da freira Dorothy Stang, ocorrida em fevereiro <strong>de</strong><br />

2005, e do casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva,<br />

em maio <strong>de</strong> 2011; em Rondônia, <strong>de</strong> A<strong>de</strong>lino Ramos, em maio <strong>de</strong> 2011, <strong>de</strong>ntre<br />

outras. São práticas <strong>de</strong> barbárie transcen<strong>de</strong>ntes aos conflitos locais. A<strong>de</strong>ntram a<br />

dimensão macrossocial para revelar como o exercício do po<strong>de</strong>r se manifesta aos<br />

que questionam o projeto concentracionista da terra na Amazônia brasileira.<br />

Numa escala planetária, os <strong>de</strong>sastres relacionados aos incêndios florestais na<br />

Amazônia brasileira estão circunscritos à lógica do que Leff (2003) <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong><br />

economização do mundo, na qual o direito à vida e à terra se submete à racionalida<strong>de</strong><br />

econômica, cujo imediatismo na realização da acumulação acaba por exigir célere<br />

<strong>de</strong>scarte dos elementos naturais obstrutivos do espaço, para nele inserir os objetos<br />

traduzíveis em negócios. Isso implica a geração <strong>de</strong> externalida<strong>de</strong>s bem como a<br />

<strong>de</strong>snaturalização da complexida<strong>de</strong> socioecológica, continua o autor, e ambos se<br />

expressam tanto no aumento das emissões que <strong>de</strong>rivarão em contributos ao aquecimento<br />

global como numa objetivação do mundo que <strong>de</strong>stitui <strong>de</strong> sentido a convivência<br />

com povos tradicionais e singularida<strong>de</strong>s locais, cujo repertório cultural,<br />

sem valor verificável nos termos da acumulação, precisa ser <strong>de</strong>scartado. Disso <strong>de</strong>corre<br />

a força da i<strong>de</strong>ologia em torno da Amazônia brasileira como um ‘vazio a ser<br />

preenchido’, justificador da presença dos gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> investimento. A floresta<br />

<strong>de</strong>nsa é apresentada como ‘prova objetiva’ <strong>de</strong> <strong>de</strong>spovoamento e não da diversida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> vida coletiva. A invalidação das diferenças tem o intuito <strong>de</strong><br />

negar os conflitos, constrangendo os grupos invisibilizados e <strong>de</strong>sterritorializados<br />

a um rápido ajustamento aos requerimentos da mo<strong>de</strong>rnização em curso.<br />

Numa perspectiva transescalar, o fogo que abrasa a terra não apenas contribui<br />

com significativa emissão <strong>de</strong> gases <strong>de</strong> efeito estufa na atmosfera e consequente<br />

agravamento da saú<strong>de</strong> planetária (FEARNSIDE, 2002) como também modifica o<br />

conteúdo da paisagem, promovendo a cultura motorizada nos novos núcleos urbanos<br />

que vão surgindo. Vias públicas surgem nos assentamentos precários para<br />

enodoá-los marginalmente aos esparsos territórios locais <strong>de</strong> abundância e prosperida<strong>de</strong>,<br />

gerando vãs esperanças <strong>de</strong> justiça social. A infraestrutura sempre tão débil<br />

quanto o transporte coletivo incita que a aquisição e a utilização <strong>de</strong> veículos<br />

automotivos em caótico trânsito <strong>de</strong>ixem o contributo dos setores populares à poluição<br />

atmosférica. Vai-se, aos poucos, construindo uma <strong>de</strong>si<strong>de</strong>ntificação tal com


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 7<br />

as formas <strong>de</strong> conceber as rotinas conforme os modos <strong>de</strong> vida tradicionais, no que<br />

concerne ao conteúdo material das moradias, às formas <strong>de</strong> trafegar, às ocupações<br />

profissionais, que já não é possível aos grupos locais, assim ajustados, estabelecer<br />

uma nítida distinção entre si e o Outro, aquele que solapa a concepção <strong>de</strong> floresta<br />

como um lugar, isto é, como um sistema <strong>de</strong> objetos e <strong>de</strong> ações consistentes com a<br />

dinâmica ecossistêmica natural.<br />

OS “FOCOS DE CALOR”: DESASTRES VISÍVEIS OU OCULTOS?<br />

Em termos sociológicos, <strong>de</strong>sastre é uma crise na esfera social suscitada em<br />

vários recortes espaço-temporais. Embora o discurso midiático tenha por prática<br />

dar ênfase à cena <strong>de</strong>vastadora e aos sujeitos nela circunscritos, no impacto ou no<br />

imediato pós-impacto <strong>de</strong> um dado fator <strong>de</strong> ameaça, a tessitura <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sastre vai<br />

além. Ocorre <strong>de</strong> ali não se encontrarem presencialmente os grupos que <strong>de</strong>finem a<br />

lógica da configuração territorial. E, ainda, da aparência <strong>de</strong>soladora da paisagem,<br />

que abrange os elementos materiais <strong>de</strong>struídos ou danificados, não dar conta <strong>de</strong><br />

apresentar, por si mesma, a teia <strong>de</strong> variadas relações e significações que associam<br />

dimensões psicos<strong>sociais</strong> e sociopolíticas do trágico acontecimento.<br />

Os incêndios florestais são <strong>de</strong>sastres que, como a maioria dos ocorrentes no Brasil,<br />

têm sua origem em uma cronologia muito anterior do que a mera combustão da<br />

paisagem. Para a sociologia, os <strong>de</strong>sastres mantêm nexos sócio-históricos que transcen<strong>de</strong>m<br />

a tragédia local. No caso amazônico, as penúrias e privações infligidas aos grupos<br />

que vivem nos territórios impactados adquirem vieses <strong>de</strong> classe e étnicos e é precário<br />

o reequacionamento das suas rotinas. Quando há regularida<strong>de</strong> na ocorrência <strong>de</strong> um<br />

mesmo tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre numa mesma região, há indícios que as instituições públicas<br />

voltadas para as emergências naquele espaço não funcionam a<strong>de</strong>quadamente, sinalizando<br />

hiatos no cumprimento <strong>de</strong> sua missão institucional e fomentando um sentimento<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>sproteção do cidadão que ali vive (VALENCIO & VALENCIO, 2010).<br />

As queimadas provocam efeitos na saú<strong>de</strong> humana uma vez que geram mudanças<br />

macro e microclimáticas que po<strong>de</strong>m alterar a prevalência e disseminação<br />

<strong>de</strong> doenças infecciosas e aumentar os riscos <strong>de</strong> doenças cardiovasculares, sendo a<br />

maior exposição e inalação da fumaça e dos contaminantes aéreos um fator agravante<br />

(RIBEIRO & ASSUNÇÃO, 2002). Em comparação com o cerrado, a floresta<br />

tropical não tem uma boa <strong>de</strong>finição do material e gases provenientes da<br />

combustão, mas há a presença <strong>de</strong> uma alta concentração <strong>de</strong> carbono e compostos<br />

tóxicos (YAMASOE et al., 2000). Isso requer o atendimento <strong>de</strong> um maior volume<br />

<strong>de</strong> pessoas pelo sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> regional – particularmente <strong>de</strong> idosos e crianças,<br />

os grupos mais vulneráveis – o qual, no geral, não apresenta instalações, quadro<br />

humano e equipamentos compatíveis com a <strong>de</strong>manda. Tanto a contaminação humana<br />

e a propagação <strong>de</strong> doenças quanto à incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r aos grupos<br />

enfermos, revelam um <strong>de</strong>sastre silencioso.


8 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

A Política Nacional <strong>de</strong> Defesa Civil <strong>de</strong>fine <strong>de</strong>sastre como sendo o “resultado <strong>de</strong><br />

eventos adversos, naturais ou provocados pelo homem, sobre um ecossistema vulnerável, causando<br />

danos humanos, materiais e ambientais e consequentes prejuízos econômicos e <strong>sociais</strong>”<br />

(BRASIL, 2000: IV-A-1). No que se refere aos incêndios florestais, a Secretaria<br />

Nacional <strong>de</strong> Defesa Civil do Ministério da Integração Nacional (SEDEC/MI) os<br />

<strong>de</strong>fine como a propagação do fogo em áreas florestais (e outras), cuja maior ocorrência<br />

estaria associada aos períodos <strong>de</strong> estiagem. As causas <strong>de</strong> tais incêndios <strong>de</strong>scritas<br />

pela SEDEC/MI são, a saber: a) naturais, como raios, reações fermentativas<br />

exotérmicas, concentração <strong>de</strong> raios solares por pedaços <strong>de</strong> quartzo ou cacos <strong>de</strong> vidros<br />

em forma <strong>de</strong> lente e outras causas; b) imprudência e <strong>de</strong>scuido <strong>de</strong> caçadores, mateiros<br />

ou pescadores, através da propagação <strong>de</strong> pequenas fogueiras, feitas em acampamentos;<br />

c) perda <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> queimadas, realizadas para “limpeza” <strong>de</strong> campos; d)<br />

incendiários ou piromaníacos (http:// www.<strong>de</strong>fesacivil.gov.br/<strong>de</strong>sastres/<br />

recomendacoes/incendio_florestal.asp).<br />

As causas supra remetem aos eventos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres relacionados aos incêndios<br />

florestais, tanto ao universo estrito dos fenômenos naturais quanto às condutas<br />

individuais impróprias vinculadas a transtornos mentais e, ainda, ao universo das<br />

práticas tradicionais, vistas como inconsequentes; enfim, tratar-se-ia <strong>de</strong> situações<br />

imprevisíveis provocadas pela natureza, ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontroles típicos dos sujeitos<br />

<strong>de</strong>sajustados, o que enseja o enquadramento <strong>de</strong>stes às soluções mo<strong>de</strong>rnizantes. Tal<br />

entendimento institucional obnubila o problema central da correlação dos incêndios<br />

com os <strong>processos</strong> fundiários concentracionistas e correspon<strong>de</strong>nte expansão<br />

dos agronegócios na Amazônia brasileira e, por <strong>de</strong>corrência, escamoteia-se o caráter<br />

sociopolítico da predação socioambiental na região. Apesar disso, o elenco <strong>de</strong> danos<br />

materiais, ambientais e humanos que a SEDEC/MI relaciona aos incêndios<br />

florestais reporta relevantes <strong>processos</strong> ecossistêmicos e aspectos <strong>sociais</strong> passíveis<br />

<strong>de</strong> prejuízo, tais como: <strong>de</strong>struição da flora, fauna e redução da biodiversida<strong>de</strong>; redução<br />

da fertilida<strong>de</strong> do solo, <strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong> hídrica e facilitação <strong>de</strong> <strong>processos</strong><br />

erosivos; redução da resistência das árvores ao ataque <strong>de</strong> pragas; perdas <strong>de</strong> vidas,<br />

traumatismos e ferimentos provocados pelo fogo; <strong>de</strong>sabrigados e <strong>de</strong>salojados; e<br />

redução das oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho relacionadas ao manejo florestal (http://<br />

www.<strong>de</strong>fesacivil.gov.br/<strong>de</strong>sastres/recomendacoes/incendio_florestal.asp).<br />

Há que distinguir duas dimensões dos eventos relacionados aos incêndios<br />

florestais: a ocorrência <strong>de</strong>sses fenômenos e a vulnerabilida<strong>de</strong> institucional para<br />

contê-los. O Centro <strong>de</strong> Previsão <strong>de</strong> Tempo e Estudos Climáticos do Instituto Nacional<br />

<strong>de</strong> Pesquisas Espaciais (CPTEC/INPE) i<strong>de</strong>ntificou 1.336 focos <strong>de</strong> queimadas<br />

na região amazônica nos últimos três anos (2008-2010), os quais têm repercussões<br />

não apenas no meio rural, mas também no meio urbano (Quadro 1). Incêndios florestais<br />

e <strong>de</strong>smatamento são termos associados. Ainda que aparentemente contraditórios,<br />

os <strong>processos</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>smatamento e pressão sobre a terra guardam relação direta<br />

com os projetos ditos <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável” relacionados às commodities<br />

agrícolas e minerais, que vão da soja ao minério <strong>de</strong> ferro, passando pela “carne ver-


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 9<br />

<strong>de</strong>”, ambos incidindo num amplo questionamento reforçado pelos meios <strong>de</strong> comunicação<br />

em torno dos territórios coletivos e dos direitos étnicos (ALMEIDA, 2010).<br />

Quadro 1 Focos <strong>de</strong> queimadas na região amazônica, acumulados anuais<br />

no período <strong>de</strong> 01/jan. a 18/mar., 2008-2010.<br />

Estado 2008 2009 2010<br />

Acre 3 10 1<br />

Amapá 3 6 3<br />

Amazonas 49 30 20<br />

Pará 95 117 328<br />

Rondônia 3 13 9<br />

Roraima 246 104 296<br />

TOTAL 399 280 657<br />

Fonte: CPTEC/INPE. Disponível em: http: // sigma.cptec.inpe.br/queimada /tabelas.padrao.<br />

logic?espacial=&satelite=todos&temporal=dia& pais=Brasil. Acesso em: 19 mar. 2011.<br />

Contudo, no mesmo período, o número <strong>de</strong> ocorrências relacionadas à intensa<br />

redução das precipitações hídricas registradas junto à SEDEC/MI e entendidas como<br />

<strong>de</strong>sastres pelos municípios da região amazônica – o que vai <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os eventos <strong>de</strong><br />

estiagens à queda da umida<strong>de</strong> relativa do ar e incêndios florestais – foi <strong>de</strong> três: duas<br />

no estado do Amazonas e uma no Pará; num passado recente, no período <strong>de</strong> 2003-<br />

2007, foram cinco ocorrências relacionadas a incêndios urbanos e rurais: dois no<br />

estado do Amazonas, dois no Amapá e um no estado do Pará. A <strong>de</strong>cretação municipal<br />

<strong>de</strong> situação <strong>de</strong> emergência (SE), ou estado <strong>de</strong> calamida<strong>de</strong> pública (ECP), no<br />

período 2008-2010, teve 59 ocorrências – sendo 50 no estado do Amazonas e 9 no<br />

estado <strong>de</strong> Roraima –, mas todas no ano <strong>de</strong> 2010 e relacionadas à severa estiagem<br />

ocorrida na região. Já no período anterior, 2003-2007, no que concerne especificamente<br />

aos incêndios florestais e <strong>de</strong>smatamento sem controle, foram onze ocorrências:<br />

<strong>de</strong>z no estado <strong>de</strong> Roraima e uma no estado do Amapá. A <strong>de</strong>cretação <strong>de</strong> SE ou<br />

ECP, com correspon<strong>de</strong>nte portaria <strong>de</strong> reconhecimento do <strong>de</strong>sastre pelo Ministério<br />

da Integração Nacional, equivale a um pedido <strong>de</strong> socorro; isto é, indica a limitada<br />

capacida<strong>de</strong> local para lidar com o fenômeno e a necessida<strong>de</strong> da autorida<strong>de</strong> local<br />

receber aporte externo (técnico ou financeiro, estadual e fe<strong>de</strong>ral) para mitigar os<br />

danos. Uma vez que tais atos administrativos não têm ocorrido com a mesma correspondência<br />

com que os eventos das queimadas se propagam pelos municípios, assim<br />

como são suprimidos no âmbito da interação do ente público local com a esfera<br />

superior <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil, encontramo-nos diante <strong>de</strong> uma situação ambígua. No melhor<br />

dos casos, a ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>cretação <strong>de</strong> SE ou ECP indica que há um progressivo<br />

controle institucional local da situação. Se assim for, fica em aberto a seguinte


10 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

indagação: por que o problema socioambiental crônico não é amainado? No pior<br />

dos casos, supomos que o meio sociopolítico jogue uma cortina <strong>de</strong> fumaça sobre os<br />

atores que promovem, através do mau uso do fogo, a <strong>de</strong>predação da Amazônia brasileira,<br />

banalizando a corrosão das estruturas, dinâmicas e rotinas dos povos locais.<br />

FRONTEIRAS AMAZÔNICAS SOB FUMAÇA<br />

As queimadas ocorrem todos os anos na Amazônia, afetando a qualida<strong>de</strong> do<br />

ar, a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> pessoas e o ecossistema em geral. O estado do Acre,<br />

propagan<strong>de</strong>ado como mo<strong>de</strong>lo exemplar <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável” na<br />

Amazônia brasileira, tem sido dramaticamente afetado pela fumaça, tendo nos anos<br />

<strong>de</strong> 2005 a 2010 registrado o ápice <strong>de</strong> uma situação consi<strong>de</strong>rada pelo Ministério<br />

Público como <strong>de</strong> “calamida<strong>de</strong> ambiental”. A fumaça que cobriu as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Rio<br />

Branco, Porto Velho, Manaus e Cobija (<strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> Pando/Bolívia) nos meses<br />

<strong>de</strong> julho a setembro fechou aeroportos e aumentou o número <strong>de</strong> internações<br />

por problemas respiratórios.<br />

Os <strong>de</strong>nominados “focos <strong>de</strong> calor”, em sua maioria, estão localizados às margens<br />

das estradas e dos gran<strong>de</strong>s empreendimentos econômicos. No Acre esses estão<br />

localizados ao longo das rodovias 317 e 364. No Mapa 1 observamos que a<br />

ocorrência das queimadas e a concentração <strong>de</strong> fumaça na atmosfera <strong>de</strong>las resultantes<br />

estão relacionadas com a expansão da pecuária, exploração ma<strong>de</strong>ireira e<br />

cultivo da soja (esta última nos estados <strong>de</strong> MT e RO). A coloração vermelha na<br />

imagem indica as maiores concentrações <strong>de</strong> fumaça na atmosfera. Segundo a OMS,<br />

a exposição às partículas PM 2.5 não po<strong>de</strong> ultrapassar o valor <strong>de</strong> 25 por mais <strong>de</strong><br />

três dias no ano e, como po<strong>de</strong>mos visualizar, a exposição à fumaça foi em quantida<strong>de</strong><br />

muito maior.<br />

Essa questão das queimadas no Acre e na Amazônia em geral é recorrente.<br />

No ano <strong>de</strong> 2005 foi registrada uma das maiores secas dos últimos 40 anos nessa<br />

região. O nível do Rio Acre registrou a cota mínima <strong>de</strong> 1,64 metro em Rio Branco,<br />

a mais baixa da sua história. Associado a isso, a baixa umida<strong>de</strong> relativa do ar, <strong>de</strong><br />

aproximadamente 30% (a média gira em torno <strong>de</strong> 80%), os ventos fortes, a alta<br />

temperatura e a ausência <strong>de</strong> chuvas contribuíram para que ocorressem vários incêndios<br />

no estado do Acre (BROWN, 2006).<br />

Em 2005, na Amazônia brasileira, peruana e boliviana e no Departamento<br />

<strong>de</strong> Santa Cruz ocorreu uma “catástrofe ambiental”, entre os meses <strong>de</strong> julho e meados<br />

<strong>de</strong> outubro. A seca prolongada e os incêndios resultaram em poluição por fumaça<br />

que afetou mais <strong>de</strong> 400 mil pessoas, danos em 300 mil hectares <strong>de</strong> floresta e mais<br />

<strong>de</strong> US$ 50 milhões <strong>de</strong> perdas econômicas diretas (BROWN, 2006). De acordo com<br />

Duarte (2007), a elevada concentração <strong>de</strong> fumaça na atmosfera (entre 400 e 800<br />

ugm -3 no Leste do Acre) teria produzido como resultado imediato um surto <strong>de</strong><br />

doenças respiratórias que afetaram, somente na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Branco, 30 mil pessoas,<br />

o equivalente a 10% <strong>de</strong> sua população.


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 11<br />

Mapa 1 Distribuição da fumaça em 24-9-2010. Fonte: BROWN, 2010.<br />

Em 2010 o quadro climático voltou a <strong>de</strong>senhar os mesmos traços <strong>de</strong> 2005.<br />

Os meses <strong>de</strong> agosto e setembro do corrente ano fizeram os acreanos recordarem o<br />

<strong>de</strong>sastre ambiental anterior. As queimadas vinham se prolongando a cada dia, sufocando<br />

os pulmões e impedindo até o pouso e <strong>de</strong>colagem <strong>de</strong> aeronaves nos aeroportos<br />

das principais cida<strong>de</strong>s do Estado, como Rio Branco e Cruzeiro do Sul. Em<br />

recomendação conjunta, o MPE e MPF exigiram a aplicação <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> precaução<br />

no tráfego aéreo e terrestre, principalmente no período noturno, no qual a<br />

visibilida<strong>de</strong> chegava às vezes a zero. Em agosto <strong>de</strong> 2010 foi <strong>de</strong>cretado o Estado <strong>de</strong><br />

Alerta Ambiental no Acre em razão <strong>de</strong> iminente possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong>corrente<br />

da incidência <strong>de</strong> incêndio em coberturas florestais e queimadas<br />

<strong>de</strong>scontroladas.<br />

Os focos <strong>de</strong> calor estão mais concentrados nos meses <strong>de</strong> agosto e setembro, como<br />

po<strong>de</strong>mos perceber nas Figuras 1, 2 e 3.


12 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Figura 1 Focos <strong>de</strong> calor no Peru no período <strong>de</strong> 1 a 24-9-2010. Fonte: BROWN, 2010.


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 13<br />

Figura 2 Focos <strong>de</strong> calor na Bolívia no período <strong>de</strong> 1 a 24-09-2010. Fonte: BROWN,<br />

2010.<br />

Figura 3 Focos <strong>de</strong> calor no Acre no período <strong>de</strong> 1 a 24-9-2010. Fonte: BROWN, 2010.


14 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

As queimadas estão entre os principais contribuintes para a emissão <strong>de</strong><br />

poluentes na atmosfera, como os gases do efeito estufa e os particulados. A exposição<br />

à maioria dos poluentes atmosféricos é causa potencial <strong>de</strong> problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>;<br />

segundo Souza (2008), as partículas com diâmetro aerodinâmico menor que<br />

2,5 µm têm a alta probabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>posição nas partes mais profundas do trato<br />

respiratório humano, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam uma série <strong>de</strong> efeitos negativos em virtu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua natureza física, química, toxicológica e carcinogênica.<br />

A presença <strong>de</strong> poluentes atmosféricos na Amazônia, segundo Duarte (2007: 44),<br />

tem dois componentes principais: as queimadas florestais <strong>de</strong> efeito local e regional e<br />

as queimadas urbanas. Nos dias <strong>de</strong> altas concentrações <strong>de</strong> fumaça no céu <strong>de</strong> Rio Branco,<br />

o sol é avermelhado (ver Foto 1) e a visibilida<strong>de</strong>, que nos meses <strong>de</strong> chuva possui valores<br />

característicos ≤ 0,1 km – com visibilida<strong>de</strong> em torno <strong>de</strong> 40 km –, alcançou em 2005<br />

e 2010 valores superiores a 2,5 km, com visibilida<strong>de</strong> abaixo <strong>de</strong> 1 km.<br />

Foto 1 BR 364 em frente à UFAC às 12 horas. Foto: M. J. Morais, em julho <strong>de</strong> 2010.<br />

A baixa umida<strong>de</strong> relativa do ar, combinada aos baixos índices pluviométricos,<br />

à relativa intensida<strong>de</strong> dos ventos e à alta concentração <strong>de</strong> poluentes, provoca o<br />

aumento <strong>de</strong> casos <strong>de</strong> complicações respiratórias. Para a saú<strong>de</strong> humana, os malefícios<br />

são facilmente observáveis cida<strong>de</strong> afora: uma multidão <strong>de</strong> pessoas apresentando<br />

sintomas como tosse seca, nariz entupido, rouquidão, irritação nos olhos, nariz e<br />

garganta, falta <strong>de</strong> ar, cansaço, vermelhidão e alergia na pele, conjuntivite, chiado,<br />

asma, bronquite e até doenças cardiovasculares. As crianças são as que mais se<br />

ressentem (SOUZA, 2008).<br />

A matéria jornalística intitulada “Fumaça dobra a <strong>de</strong>manda das doenças respiratórias<br />

nas UPAs”, veiculada na imprensa local em 18-08-2010, relatava que<br />

no mês <strong>de</strong> agosto os atendimentos médicos dobraram nas duas Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Pronto<br />

Atendimento (UPAs) <strong>de</strong> Rio Branco. “Enquanto em meses normais (sem fumaça)<br />

as UPAs registram, juntas, média <strong>de</strong> 400 atendimentos para problemas<br />

respiratórios por semana”, em agosto a <strong>de</strong>manda foi <strong>de</strong> 700 a 800 ocorrências


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 15<br />

semanais. Os maiores prejudicados pelas partículas sólidas/tóxicas das fuligens têm<br />

sido as crianças, seguidas dos idosos (www.ac.24horas.com).<br />

Na UPA do Tucumã, informa a reportagem, foram 349 casos <strong>de</strong> Infecções<br />

Respiratórias Agudas (IRAs) na 1ª semana <strong>de</strong> agosto, e 330 na semana <strong>de</strong> 8 a 14,<br />

somando 679 no mês. O Gráfico 1 reflete a relação entre a ocorrência <strong>de</strong> queimadas<br />

e <strong>de</strong> internações <strong>de</strong> crianças e idosos dos anos <strong>de</strong> 2000 a 2006, em que se po<strong>de</strong><br />

perceber a alta concentração no ano <strong>de</strong> 2005.<br />

350%<br />

300%<br />

250%<br />

200%<br />

150%<br />

100%<br />

50%<br />

0%<br />

– 50%<br />

– 100%<br />

– 150%<br />

2000/2001 2001/2002 2002/2003 2003/2004 2004/2005 2005/2006<br />

Focos 1 a 4 anos > 65 anos<br />

200%<br />

150%<br />

100%<br />

50%<br />

0%<br />

– 50%<br />

– 100%<br />

Gráfico 1 Rio Branco: média anual da ocorrência <strong>de</strong> focos <strong>de</strong> calor e internações<br />

por problemas respiratórios em crianças <strong>de</strong> 1 a 4 anos e circulatórios em idosos acima <strong>de</strong><br />

65 anos, no período <strong>de</strong> queimadas <strong>de</strong> 2000 a 2006. Fonte: SOUZA, 2008.<br />

Gráfico 2 Acre: atendimentos das doenças respiratórias no período <strong>de</strong><br />

25-2-2009 a 19-10-2010. Fonte: SEMA, 2010.


16 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Para o ano <strong>de</strong> 2010 po<strong>de</strong>mos visualizar o total <strong>de</strong> atendimento hospitalar na<br />

cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Branco. O período crítico mostrado no gráfico diz respeito às semanas<br />

<strong>de</strong> número 32, 33 e 34 que correspon<strong>de</strong>m ao período <strong>de</strong> 21 <strong>de</strong> julho a 4 <strong>de</strong> agosto.<br />

ONDE HÁ FUMAÇA NÃO HÁ FOGO?<br />

Contrariando o conhecido ditado popular “on<strong>de</strong> há fumaça há fogo”, os portavozes<br />

do governo do Acre 2 têm insistido em afirmar o contrário: “on<strong>de</strong> há fumaça<br />

não há fogo”. Isto é, segundo eles, a fumaça que encobre o Acre teria como origem<br />

principal as queimadas ocorridas em Rondônia e Bolívia, que em <strong>de</strong>corrência dos<br />

sentidos dos <strong>de</strong>slocamentos <strong>de</strong> correntes <strong>de</strong> ar se moveriam em direção ao Acre.<br />

Todavia, <strong>de</strong> acordo com os dados apresentados por Duarte (2007), a fumaça que<br />

encobre o Acre é gerada nas queimadas ocorridas nesse território. As correntes <strong>de</strong> ar<br />

po<strong>de</strong>m tanto trazer quanto levar fumaças para outros estados e países fronteiriços.<br />

Aqui vale abrir o seguinte parêntese: a postura dos governantes do Acre, <strong>de</strong><br />

culpabilizar os bolivianos pelas queimadas, reproduz em terras tupiniquins a mesma<br />

hipocrisia dos governantes do hegemon imperial em relação aos povos e governos<br />

da Amazônia como um todo. Enquanto esses últimos ocultam o fato <strong>de</strong> que a<br />

Amazônia está sendo “queimada e <strong>de</strong>struída” para mover o “moinho satânico” da<br />

acumulação capitalista comandada por gran<strong>de</strong>s corporações a eles vinculadas, os<br />

primeiros escon<strong>de</strong>m o fato <strong>de</strong> que boa parte do que está sendo <strong>de</strong>struído e queimado<br />

na Amazônia boliviana está relacionado com o expansionismo para além das<br />

fronteiras da Amazônia brasileira, <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> capitais sediados no Brasil (mormente,<br />

agro e hidronegócios, empresas <strong>de</strong> construção civil, mineração/metalurgia,<br />

petroleiras) que operam <strong>de</strong> acordo com essa lógica da acumulação em escala global.<br />

Fecha-se o parêntese.<br />

As intenções do “governo da frente popular” em fazer uma cortina <strong>de</strong> fumaça<br />

sobre a fumaça têm um objetivo evi<strong>de</strong>nte: ocultar a contradição entre o discurso<br />

oficial e os dados <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>. Isto é, enquanto o “discurso Florestânico” 3 procura,<br />

ancorado na i<strong>de</strong>ologia do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”, 4 afirmar que o Acre segue<br />

2. O governo da “Frente Popular do Acre” – coalizão que agrega mais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong><br />

partidos sob a li<strong>de</strong>rança do PT – já está no seu quarto mandato. Os dois primeiros,<br />

auto<strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> “Governo da Floresta”, foi do engenheiro florestal Jorge Viana<br />

(1999-2006), período caracterizado como o da criação <strong>de</strong> um consenso em torno da<br />

construção <strong>de</strong> “um novo Acre, forte e sustentável”; o terceiro foi <strong>de</strong> Binho Marques (2007-<br />

2010); e o quarto, iniciado em 2011, é do ex-senador Tião Viana, irmão <strong>de</strong> Jorge Viana.<br />

3. O termo “discurso Florestânico” foi cunhado por Souza (2005) para <strong>de</strong>signar as estratégias<br />

do governo da Frente Popular do Acre para criar um consenso em torno das políticas<br />

governamentais i<strong>de</strong>ntificadas com a i<strong>de</strong>ologia do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”.<br />

4. Paula (2005: 290-291) ressalta que, com o Governo da Floresta, houve a construção <strong>de</strong><br />

um consenso em torno do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”, o qual passou a ser<br />

“massificado i<strong>de</strong>ologicamente como a única alternativa viável” para o Acre. Isso tem se


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 17<br />

uma trajetória comprometida com as mudanças nos “paradigmas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento”,<br />

a realida<strong>de</strong> insiste em “mandar sinais <strong>de</strong> fumaça” anunciando o contrário: a<br />

“marcha do progresso” <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada pela ditadura militar no pós-1964 segue a todo<br />

vapor, emitindo cada vez mais fumaça...<br />

Depois <strong>de</strong> culpabilizar Bolívia e Rondônia, o governo do Acre passou a apontar<br />

outros vilões responsáveis pelas queimadas e emissão <strong>de</strong> fumaças: os camponeses.<br />

Um dos argumentos mobilizados é <strong>de</strong> que o aumento dos “focos <strong>de</strong> calor” estaria<br />

diretamente relacionado com a expansão da pequena proprieda<strong>de</strong>, resultante da<br />

política <strong>de</strong> assentamentos promovida pelo INCRA. Os mais ingênuos ou<br />

<strong>de</strong>savisados seriam levados a concluir que uma suposta “<strong>de</strong>mocratização do acesso<br />

à terra” teria resultado, na outra ponta, em um “problema ambiental”. Novamente,<br />

precisamos enxergar para além da “cortina <strong>de</strong> fumaça” que se faz sobre os<br />

<strong>de</strong>sastres das fumaças para compreen<strong>de</strong>rmos o que se passa <strong>de</strong> fato.<br />

Deteremo-nos em apenas três aspectos que consi<strong>de</strong>ramos essenciais para <strong>de</strong>sfazer<br />

essa imagem dos camponeses como vilões. Em primeiro lugar, é óbvio que, se<br />

tomarmos como dado o número <strong>de</strong> “focos <strong>de</strong> calor”, concluiremos que as ocorrências<br />

em áreas <strong>de</strong> assentamentos rurais (39% dos focos <strong>de</strong> calor em 2007, segundo o<br />

SIPAN) 5 são efetivamente expressivas, todavia, se adotarmos outro critério, o <strong>de</strong><br />

avaliar a extensão das áreas <strong>de</strong> queimadas que produzem esses “focos <strong>de</strong> calor”,<br />

concluiremos que as gran<strong>de</strong>s proprieda<strong>de</strong>s têm um peso <strong>de</strong>cisivo, uma vez que os<br />

“focos <strong>de</strong> calor” nelas produzidos têm maiores extensões <strong>de</strong> áreas queimadas. Em<br />

segundo lugar, o ritmo das queimadas é <strong>de</strong>terminado pela ativida<strong>de</strong> que comanda<br />

a “mo<strong>de</strong>rnização” no agronegócio acreano que é a pecuária extensiva <strong>de</strong> corte,<br />

nucleada na gran<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> fundiária e fortemente apoiada por incentivos<br />

governamentais, com ramificações crescentes nas áreas <strong>de</strong> produção camponesa<br />

(PAULA, 2005). Em terceiro lugar, ao contrário <strong>de</strong> uma suposta “<strong>de</strong>mocratização<br />

do acesso à terra”, está ocorrendo um processo que, por um lado, privatiza e solapa<br />

autonomia do campesinato e povos indígenas nas chamadas “unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação<br />

ambiental”, conforme mostram Paula & Silva (2008), e, por outro, um movimento<br />

<strong>de</strong> reconcentração da terra, como mostram dados <strong>de</strong> estudo concluído<br />

recentemente por Teixeira (2011). No estado do Acre, segundo o referido estudo,<br />

enquanto em 2003 a gran<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> ocupava 67,18% (2.787.398 ha) e a<br />

pequena proprieda<strong>de</strong> e minifúndios 27,1% (1.124.199 ha) da área total <strong>de</strong> imóveis<br />

cadastrados no INCRA, em 2010, a área ocupada pela gran<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

(continuação) revelado “bastante oportuno para concretizar um amplo pacto social no<br />

Estado”, pois: “uma das questões centrais dos <strong>de</strong>bates sobre o <strong>de</strong>senvolvimento no Acre<br />

nos anos <strong>de</strong> 1970 a 1980 (con<strong>de</strong>nação à concentração da proprieda<strong>de</strong> fundiária e <strong>de</strong><br />

rendas, bem como a exploração <strong>de</strong> classes) foi <strong>de</strong>slocada para os imperativos da natureza<br />

e do mercado”.<br />

5. Cf dados apresentados pela Ação Civil Pública, movida em 2009 no estado do Acre pelo<br />

Ministério Público Estadual e Fe<strong>de</strong>ral, citada por Cunha (2010: 103).


18 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

saltou para 78,9% (6.183.554 ha), enquanto a ocupada pela pequena proprieda<strong>de</strong><br />

e minifúndios foi reduzida em 17,1% (1.339.319 ha).<br />

Dada a “complacência” governamental frente à repetição anual dos “<strong>de</strong>sastres”<br />

produzidos pelas queimadas – às vezes com intensida<strong>de</strong>s que os qualificam<br />

como “calamida<strong>de</strong>s ambientais”, como ocorreu em 2005 e 2010 –, o Acre testemunhou<br />

um fato inédito: uma “Ação Civil Pública (ACP)” movida pelo Ministério<br />

Público Estadual e Fe<strong>de</strong>ral em 2009, <strong>de</strong>terminando a proibição do uso do fogo nas<br />

práticas produtivas da agropecuária no estado do Acre. Em um estudo <strong>de</strong>ssa ACP,<br />

com o sugestivo título <strong>de</strong> O apagar dos fogos? Uma análise da proibição das queimadas<br />

no Estado do Acre a partir da intervenção do Ministério Público, Cunha (2010) apresenta<br />

com riqueza <strong>de</strong> <strong>de</strong>talhes esse episódio. Valeremo-nos, a seguir, <strong>de</strong> algumas questões<br />

abordadas no referido estudo para problematizar essa ACP. Em primeiro lugar,<br />

é <strong>de</strong> se estranhar o fato <strong>de</strong> uma medida judicial <strong>de</strong>ssa natureza ter sido tomada<br />

pela primeira vez no estado do Acre e não ter havido nenhum “estranhamento”,<br />

nada que pu<strong>de</strong>sse abalar no país e no exterior a imagem do Acre como “mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”. Além <strong>de</strong> a ACP em si revelar que tal imagem <strong>de</strong>veria<br />

ser, no mínimo, reexaminada, as provas e argumentos presentes no seu conteúdo<br />

são <strong>de</strong>molidoras, como mostra Cunha (2010: 100, 101, 102, 105), com as<br />

seguintes transcrições textuais extraídas da referida ACP:<br />

“(...) as omissões dos po<strong>de</strong>res públicos (...) o po<strong>de</strong>r público tem se mostrado<br />

inerte na proteção do meio ambiente e no oferecimento aos cidadãos <strong>de</strong> instrumentos<br />

técnicos e matérias que possibilitem a substituição <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong><br />

queimadas (...) ausência <strong>de</strong> alternativas oferecidas pelo Estado aos pequenos<br />

produtores vulneráveis que buscam a subsistência <strong>de</strong> suas famílias (...) total<br />

complacência dos órgãos públicos fe<strong>de</strong>rais, estaduais e municipais com as<br />

queimadas (...) comecemos pelo IBAMA, a quem era <strong>de</strong>stinada antes a atribuição<br />

tanto para emitir autorizações quanto para punir infratores. Deveras,<br />

essa autarquia fe<strong>de</strong>ral, ao longo <strong>de</strong> sua história não efetivou a proteção<br />

ambiental (...) Por absoluta falta <strong>de</strong> estrutura e quiçá vonta<strong>de</strong> política, o<br />

ICMBIO não tem efetivado satisfatoriamente a sua função <strong>de</strong> executar as<br />

políticas <strong>de</strong> uso sustentável dos recursos naturais renováveis e <strong>de</strong> apoio ao<br />

extrativismo e às populações tradicionais nas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação fe<strong>de</strong>rais<br />

<strong>de</strong> usos sustentável (...) ao fato <strong>de</strong> o INCRA realizar assentamentos sem<br />

maiores cuidados com o meio ambiente e sem fornecer aos assentados instrumentos<br />

técnicos ao aproveitamento da terra <strong>de</strong> modo socioambientalmente a<strong>de</strong>quado<br />

(...) Ano após ano, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua criação, o IMAC tem contribuído para a<br />

consolidação da cultura das queimadas no Acre, com a ressalva <strong>de</strong> anos recentes<br />

em que o ente tem atendido às recomendações do Ministério Público e suspendido<br />

ou limitado a expedição <strong>de</strong> autorizações para queima” (grifos nossos).<br />

Curioso notar que a “emenda” supra, <strong>de</strong>stacada em negrito, soa pior do que<br />

o “soneto”. Isto é, as supostas mudanças <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>s adotadas pelo IMAC e mencionadas<br />

na ACP adviriam <strong>de</strong> recomendações emanadas do Ministério Público e


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 19<br />

não do governo <strong>de</strong> um estado tido como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”.<br />

A dramaticida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>sastres em 2010 que repetiram a “calamida<strong>de</strong> ambiental”<br />

<strong>de</strong> 2005, um ano, portanto, após a ACP ter sido movida, parece mostrar, entre outros,<br />

que o Ministério Público acabou também sendo “complacente” com o IMAC ao afirmar<br />

que o mesmo estaria aten<strong>de</strong>ndo às suas recomendações”.(on<strong>de</strong> abre as aspas?)<br />

Deve-se acrescentar, ainda <strong>de</strong> acordo com estudo <strong>de</strong> Cunha (op. cit.), que segundo<br />

o Ministério Público os recursos financeiros disponibilizados através <strong>de</strong> inúmeras<br />

fontes orçamentárias teriam sido suficientes para a “implementação efetiva pelo<br />

estado do Acre <strong>de</strong> política pública para substituição <strong>de</strong> queimada” e concluiu:<br />

“(i) em razão <strong>de</strong> recursos financeiros fe<strong>de</strong>rais repassados para o governo do<br />

Estado do Acre, mais aqueles executados por receitas próprias, já <strong>de</strong>veria<br />

ter sido feita em anos anteriores aos da presente ação; (ii) é compatível como<br />

o orçamento público do Acre; (iii) é necessária sob o ponto <strong>de</strong> vista<br />

humanístico (pois protege a vida, a saú<strong>de</strong>, o patrimônio, a segurança e até<br />

a moradia das pessoas); (iv) é financeiramente vantajosa, comparando-se o<br />

custo da política com os danos que serão evitados” (ACP, 2009: 25, apud,<br />

CUNHA, 2010: 108).<br />

Novamente, necessitamos ir além da “cortina <strong>de</strong> fumaça” para enten<strong>de</strong>r esse<br />

imbróglio dos <strong>de</strong>sastres produzidos pelas queimadas e fumaças. Se for pertinente<br />

a afirmativa contida na ACP – o problema residiria numa dimensão política, dado<br />

que existem os meios econômicos disponíveis para evitar as queimadas – caberia,<br />

então, fazer uma intrigante indagação: qual seria a natureza <strong>de</strong>sses “obstáculos<br />

políticos”, em se tratando <strong>de</strong> um estado como o Acre, em que todos os atores mais<br />

relevantes no cenário político, tanto na esfera da socieda<strong>de</strong> civil (organizações<br />

camponesas, fe<strong>de</strong>ração patronal da agricultura, organizações empresariais e comerciais,<br />

agencias multilaterais, ONGs internacionais e locais, governo estadual, etc.)<br />

quanto na da socieda<strong>de</strong> política, aparentemente, se i<strong>de</strong>ntificam com a i<strong>de</strong>ologia<br />

do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”?<br />

Respon<strong>de</strong>r a essa indagação nos remete obrigatoriamente a um <strong>de</strong>slocamento<br />

do foco do “po<strong>de</strong>r da imagem” para o da “imagem do po<strong>de</strong>r”. Ou seja, a “imagem<br />

do po<strong>de</strong>r” no Acre está fortemente ancorada na suposta convergência dos<br />

diferentes atores em torno da i<strong>de</strong>ologia do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável” supra<br />

mencionada. Essa imagem, tal como a fumaça, oculta três dados essenciais:<br />

1. As promessas <strong>de</strong> harmonizar capitalismo com a conservação ambiental,<br />

que fundamentam a i<strong>de</strong>ologia do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável”, parecem<br />

muito distantes <strong>de</strong> sua aproximação com o “mundo real”.<br />

2. Dado que nesse “mundo real” é a apropriação do território e seus recursos<br />

que movem os distintos interesses que a presi<strong>de</strong>m, as ações governamentais<br />

<strong>de</strong>vem ser interpretadas como tentativas <strong>de</strong> “apaziguar” os conflitos<br />

em torno <strong>de</strong>ssas disputas, a fim <strong>de</strong> assegurar a manutenção da or<strong>de</strong>m e<br />

satisfazer os interesses da classe dominante.


20 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

3. A “omissão do governo”, mencionada pela ACP, <strong>de</strong>ve ser interpretada, portanto,<br />

como uma das evidências do po<strong>de</strong>r político <strong>de</strong> imposição dos interesses<br />

<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> capitais (nacionais e transnacionais) ligados aos<br />

agronegócios da pecuária e ma<strong>de</strong>ira.<br />

Aos que ainda duvidam <strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r, recomendamos uma leitura mais atenta<br />

da tramitação das mudanças do Código Florestal brasileiro em curso no Congresso<br />

Nacional hoje (2011). Chamamos atenção especialmente para as “convergências”<br />

entre integrantes da bancada ruralista e seus novos aliados da esquerda governista<br />

(especialmente PC do B e maioria da bancada do PT), na <strong>de</strong>fesa dos interesses dos<br />

agronegócios.<br />

Outro dado relevante a ser <strong>de</strong>stacado na ACP é o fato <strong>de</strong> o Ministério Público<br />

trazer para si a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar “alternativas” ao uso do solo na<br />

Amazônia. Antigamente, diz Cunha (2010: 99-111), reportando-se ao texto da ACP,<br />

“até se po<strong>de</strong>ria falar da inexistência pretérita <strong>de</strong> meios alternativos da proprieda<strong>de</strong>,<br />

mas hoje já existem outras técnicas capazes <strong>de</strong> proporcionar resultados melhores<br />

que os gerados pelas queimadas” tanto nos aspectos econômicos como<br />

ambientais, arremata o texto. A<strong>de</strong>mais, o MP “<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a prática <strong>de</strong> queimadas<br />

‘<strong>de</strong>veria ser proscrita total e indiscriminadamente em toda a Amazônia sem<br />

exceções e sem concessões’”. Com uma “penada” inspirada nos imperativos da<br />

“racionalida<strong>de</strong> ambiental”, coloca-se, assim, no “mesmo saco”, como <strong>de</strong>predadores,<br />

povos indígenas, camponeses e agronegócios, lançando, como mostramos nas seções<br />

iniciais <strong>de</strong>ste capítulo, uma cortina <strong>de</strong> fumaça sobre os atores que promovem, através<br />

do mau uso do fogo, a <strong>de</strong>predação da Amazônia brasileira, banalizando a corrosão<br />

das estruturas, dinâmicas e rotinas dos povos locais.<br />

Enfim, essas recomendações do Ministério Público <strong>de</strong>vem ser interpretadas<br />

à luz da i<strong>de</strong>ologia do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável” que as orienta, assim interpretada<br />

na ACP (2009: 39, citada por CUNHA, 2010: 112).<br />

O princípio do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável visa promover progresso da<br />

ativida<strong>de</strong> econômica, em harmonia com a preservação do meio ambiente, <strong>de</strong> modo<br />

a proporcionar o acesso às riquezas naturais pelas presentes e futuras gerações.<br />

Assim, almeja-se que o progresso econômico não inviabilize o meio ambiente<br />

ecologicamente equilibrado e que este não impeça o <strong>de</strong>senvolvimento econômico,<br />

mas que esses dois institutos coexistam.<br />

CONCLUSÕES<br />

Esperamos ter apresentado, ao longo <strong>de</strong>ste capitulo, uma abordagem que<br />

escape ao “roteiro” dominante nesta matéria. Ao interpretarmos as fumaças provenientes<br />

das queimadas na Amazônia como “<strong>de</strong>sastres socioambientais” e buscarmos<br />

evi<strong>de</strong>nciar suas revelações e ocultamentos, tratamos <strong>de</strong> explorar questões<br />

que se projetam para além da dimensão técnico-científica que presi<strong>de</strong> esse <strong>de</strong>bate.


Cap. I Fronteiras Amazônicas e os “Focos <strong>de</strong> Calor” – o que as fumaças ocultam e revelam? 21<br />

Entre as revelações e ocultamentos, chamaríamos atenção para a crescente importância<br />

do po<strong>de</strong>r da imagem – tanto para focalizar “culpados” pelas queimadas<br />

quanto para apontar “alternativas sustentáveis” – na construção <strong>de</strong> consensos em<br />

torno da “<strong>de</strong>limitação” e enfrentamento do problema e para a entrada em cena <strong>de</strong><br />

outros agentes, como o Ministério Público, como propositores <strong>de</strong> “políticas alternativas”<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Chamamos atenção ainda para o fato <strong>de</strong> que os “<strong>de</strong>sastres ambientais” provocados<br />

pelas fumaças provenientes das queimadas ocorrem em um estado da<br />

Amazônia brasileira (estado do Acre) que figura como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável”. Nele, a “marcha do progresso” parece, até o momento, seguir o seu<br />

“curso convencional” em se tratando <strong>de</strong> “fronteira <strong>de</strong> recursos naturais”. Essa<br />

marcha <strong>de</strong>strutiva transborda para além da Amazônia brasileira. Em que pese a<br />

revolução em curso na Bolívia, o avanço <strong>de</strong>ssa marcha <strong>de</strong>strutiva também na<br />

Amazônia boliviana revela-nos a magnitu<strong>de</strong> do problema oculto sob as fumaças.<br />

Enfim, essas recomendações do Ministério Público <strong>de</strong>vem ser interpretadas<br />

à luz da i<strong>de</strong>ologia do “<strong>de</strong>senvolvimento sustentável” que as orienta, assim interpretada<br />

na ACP (2009, 39. Citada por CUNHA, 2010, 112),<br />

O princípio do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável visa promover progresso da<br />

ativida<strong>de</strong> econômica, em harmonia com a preservação do meio ambiente, <strong>de</strong><br />

modo a proporcionar o acesso às riquezas naturais pelas presentes e futuras<br />

gerações. Assim almeja-se que o progresso econômico não inviabilize o meio<br />

ambiente ecologicamente equilibrado e que este não impeça o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico, mas que esses dois institutos coexistam.<br />

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CAPÍTULO II<br />

FRONTEIRAS E MOBILIDADE TERRITORIAL:<br />

trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região da tríplice<br />

fronteira do Acre, BR, Pando, BOL, e Madre <strong>de</strong> Dios, PE<br />

INTRODUÇÃO<br />

Maria <strong>de</strong> Jesus Morais<br />

Diego Correia Silva<br />

Alessandra Severino da Silva Manchinery<br />

Mariette <strong>de</strong> Souza Espíndola (in memorian)<br />

As dinâmicas <strong>sociais</strong> na fronteira mostram que a mesma é um espaço <strong>de</strong><br />

múltiplas trocas, sejam econômicas ou culturais. É também um espaço <strong>de</strong> mútuos<br />

estranhamentos e <strong>de</strong> afirmação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, sejam nacionais ou étnicas. Nesse<br />

sentido, a realida<strong>de</strong> fronteiriça <strong>de</strong>ve ser compreendida como um lugar <strong>de</strong> conflito<br />

e alterida<strong>de</strong> entre “nós” e os “outros” e como um espaço <strong>de</strong> várias temporalida<strong>de</strong>s,<br />

como nos ensina Martins (1997). Este capítulo versará sobre o avanço da fronteira<br />

econômica em região transfronteiriça e a mobilida<strong>de</strong> territorial <strong>de</strong>corrente do<br />

avanço <strong>de</strong>ssa fronteira. As trajetórias por nós trabalhadas são expressões <strong>de</strong>ssas<br />

fronteiras econômicas e políticas, e suas histórias estão relacionadas à frente<br />

extrativa da borracha, a partir da segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, e à frente<br />

agropecuária das décadas <strong>de</strong> 1970 a 1980, que provocou o <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> muitas<br />

famílias seringueiras para as matas <strong>de</strong> Pando, na Bolívia. A exploração ma<strong>de</strong>ireira<br />

em curso no Pando, Madre <strong>de</strong> Dios e Acre provoca um novo <strong>de</strong>slocamento<br />

das famílias seringueiras para o Brasil e a pressão da expropriação territorial das<br />

nações indígenas do Peru para o Brasil.<br />

Em linhas gerais trabalha-se essa mobilida<strong>de</strong> geográfica tendo como eixo o<br />

processo <strong>de</strong> expropriação territorial em <strong>de</strong>corrência do avanço da fronteira<br />

econômica, documentado na história oral das famílias migrantes que contam as<br />

tensões do viver “entre-lugares”, contam sua condição <strong>de</strong> sujeito transterritorial,<br />

<strong>de</strong>slocado; com territorialida<strong>de</strong>s e territórios vivenciados entre o aqui e o lá, entre<br />

estar na Bolívia, no Peru e no Brasil, o que significa dizer que há uma diferenciação,<br />

do ponto <strong>de</strong> vista do território, entre estar do lado <strong>de</strong> cá e estar do lado <strong>de</strong> lá,<br />

entre o antes e o <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um território emigrado, entre o passado e o presente, entre<br />

a ausência e a presença. A chegada das fronteiras econômicas traz implícitos confrontos<br />

e conflitos, pois é o lugar da alterida<strong>de</strong> e, como diz Martins, o “lugar do


24 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

encontro dos que, por diferentes razões, são diferentes entre si, como os índios <strong>de</strong><br />

um lado e os civilizados <strong>de</strong> outro; como os gran<strong>de</strong>s proprietários <strong>de</strong> terras, <strong>de</strong> um<br />

lado, e os camponeses pobres, <strong>de</strong> outro”. Todavia, o conflito faz com que a fronteira<br />

seja essencialmente, a um só tempo, um “lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta do outro e <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sencontros”. Não só o <strong>de</strong>sencontro e o conflito <strong>de</strong>correntes das diferentes concepções<br />

<strong>de</strong> vida e visões <strong>de</strong> mundo, mas o <strong>de</strong>sencontro <strong>de</strong> “(...) temporalida<strong>de</strong>s<br />

históricas, pois cada um <strong>de</strong>sses grupos está situado diversamente no tempo da<br />

história” (MARTINS, 1997: 150-151).<br />

Nesse sentido <strong>de</strong>stacaremos as trajetórias <strong>de</strong> José Severino da Silva (Zé Urias<br />

Manchineri), índio Manchineri, filho <strong>de</strong> seringueiro Manchineri e mãe Piro 1 do<br />

Peru. Nasceu em 1942, no Seringal Petrópolis (Acre), e foi li<strong>de</strong>rança indígena<br />

durante 40 anos. No Acre foi cacique da Al<strong>de</strong>ia Extrema da Terra Indígena<br />

Mamoadate 2 por 19 anos. Em 1985 foi coor<strong>de</strong>nador da Organização Núcleo <strong>de</strong><br />

Cultura Indígena. Em Manaus, em 1992, trabalhou na Coor<strong>de</strong>nação das Organizações<br />

Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB). Em Brasília, em 1997, trabalhou<br />

no Conselho <strong>de</strong> Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Brasil<br />

(CAPOIB), on<strong>de</strong> prestou serviços durante cinco anos para a Saú<strong>de</strong> Indígena. Ainda<br />

em Brasília foi um dos coor<strong>de</strong>nadores, <strong>de</strong> 1998 a 2000, do evento: Brasil 500<br />

anos: nós queremos outros 500. Hoje é aposentado e vive no Amazonas, casado com<br />

uma indígena do Povo Kambeba. Aceitou o convite para morar no Amazonas a<br />

fim <strong>de</strong> ajudar na criação <strong>de</strong> uma terra indígena para o povo Kambeba, no Município<br />

<strong>de</strong> Manacapuru. A fala <strong>de</strong> Zé Urias nos ajuda a compreen<strong>de</strong>r a inserção do índio<br />

na empresa seringalista e as transformações ocorridas no processo <strong>de</strong> “branqueamento”<br />

da população indígena e, também, o processo <strong>de</strong> reconhecimento, por parte<br />

da FUNAI, <strong>de</strong> sua condição indígena. Dentre os indígenas Manchineri entrevistamos<br />

também Chola Manchineri (chefe <strong>de</strong> posto da FUNAI <strong>de</strong> Assis Brasil), Toya<br />

Manchineri (primeiro coor<strong>de</strong>nador da Organização Manchineri – MAPKAHA, e<br />

representante do Conselho Nacional <strong>de</strong> Políticas Indígenas no Acre – CNPI) e Jaime<br />

Sebastião Luhlu Prishico Manchineri (índio Piro que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1980<br />

vive na Mamoadate).<br />

As outras trajetórias são <strong>de</strong> seringueiros, como a <strong>de</strong> Francisco Pereira Sobrinho<br />

(Seu Pereira) e <strong>de</strong> Dona Maria das Graças, sua esposa. Seu Pereira é filho<br />

<strong>de</strong> cearense que migrou para o Acre, em 1944. Nasceu no município <strong>de</strong> Plácido<br />

<strong>de</strong> Castro, em 1952. No Acre sua família trabalhou em vários seringais e <strong>de</strong>pois<br />

migrou para a Bolívia, na década <strong>de</strong> 1970, em busca das “estradas <strong>de</strong> seringa”,<br />

que já estavam escassas no Acre. Hoje, Seu Pereira vive entre-lugares, em uma colocação<br />

às margens do Rio Abunã, no Departamento <strong>de</strong> Pando, na Bolívia, e na<br />

1. Povo indígena que vive no Departamento <strong>de</strong> Madre <strong>de</strong> Dios, no Peru.<br />

2. Terra indígena do povo Manchineri localizada no município <strong>de</strong> Assis Brasil, Acre, Brasil.


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 25<br />

cida<strong>de</strong> acreana <strong>de</strong> Plácido <strong>de</strong> Castro. Dona Maria Abreu e Seu Sebastião Vieira<br />

completam a lista <strong>de</strong> entrevistados; são acreanos que também migraram com a<br />

família para a Bolívia e hoje vivem o dilema <strong>de</strong> voltar ao Brasil ou permanecer<br />

nos seringais da Bolívia. 3<br />

O capítulo está organizado em três seções: a primeira faz uma caracterização<br />

geral sobre a formação da tríplice fronteira; a segunda discute a trajetória dos<br />

Manchineri e a terceira parte discute a trajetória das famílias seringueiras, seguida<br />

<strong>de</strong> algumas consi<strong>de</strong>rações.<br />

A FORMAÇÃO DA TRÍPLICE FRONTEIRA<br />

A região que hoje compreen<strong>de</strong> o estado do Acre/Brasil, o Departamento do<br />

Pando/Bolívia e o Departamento <strong>de</strong> Madre <strong>de</strong> Dios/Peru foi ‘alcançada’ pelas frentes<br />

<strong>de</strong> expansão extrativistas na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. A formação<br />

socioeconômica-territorial <strong>de</strong>ssa região, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, é marcada por conflitos, por<br />

lutas pelos recursos naturais: a borracha no passado e, hoje, a castanha e a ma<strong>de</strong>ira.<br />

A história <strong>de</strong>ssa exploração econômica é a história <strong>de</strong> expropriação territorial<br />

dos grupos indígenas e também a dos seringueiros trabalhadores das unida<strong>de</strong>s<br />

produtivas, os seringais.<br />

Antes da chegada dos migrantes nor<strong>de</strong>stinos, que foram responsáveis pelo<br />

corte do látex e pela “conquista do Acre”, os índios que viviam nas bacias<br />

hidrográficas dos altos rios Purus e Juruá eram <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 50 etnias e estavam<br />

territorializados ao longo dos rios. No Purus predominavam os grupos linguísticos<br />

Arawá e Aruak, e no Vale do Juruá, o grupo Pano (MORAIS, 2008).<br />

No alto curso do Rio Purus e no baixo Rio Acre viviam diversas tribos do<br />

tronco linguístico Aruak, como os Apurinãs, Manchineri*, 4 Kulina*, Canamari,<br />

Piros e Ashaninka*. Essas tribos se espalharam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a confluência dos rios Pauini<br />

e Purus até as encostas orientais dos An<strong>de</strong>s, e teriam “resistido à exploração das<br />

civilizações andinas antes <strong>de</strong> enfrentar o avanço dos brancos sobre suas terras na<br />

época da borracha”. Na região intermediária entre o médio curso do Purus e o Juruá<br />

habitavam os Katukinas*. Parte do médio e alto curso do Rio Juruá, bem como a<br />

3. As entrevistas com Zé Urias Manchineri foram realizadas por Alessandra Severino da<br />

Silva Manchinery, em outubro <strong>de</strong> 2010 e em janeiro, fevereiro e junho <strong>de</strong> 2011. As entrevistas<br />

com Chola Manchineri foram realizadas por Alessandra Severino da Silva<br />

Manchinery, em julho <strong>de</strong> 2010 e em 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2011. A entrevista com Toya<br />

Manchineri foi realizada por Alessandra Severino da Silva Manchinery em <strong>de</strong>zembro<br />

<strong>de</strong> 2010. A entrevista com Jaime Sebastião Luhlu Prishico Manchineri foi realizada por<br />

Alessandra Severino da Silva Manchinery em junho <strong>de</strong> 2011. A entrevista com Francisco<br />

Pereira Sobrinho e sua esposa Dona Maria das Graças foi realizada por Diego Correa<br />

em setembro <strong>de</strong> 2010. As entrevistas com Maria Abreu e com Sebastião Vieira foram<br />

realizadas por Mariette Espindola em junho <strong>de</strong> 2010.<br />

4. *Índios reconhecidos no Acre atualmente.


26 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

maior parte <strong>de</strong> seus afluentes, como o Tarauacá, o Muru, o Envira e o Moa, eram<br />

locais dominados pelos índios da língua Pano: Kaxinawá*, Jaminawá*, Amahuaca,<br />

Arara*, Rununawá e Xixinawá (MORAIS, 2008: 131).<br />

Os contatos mais duradouros entre índios que habitavam essa região aconteceram,<br />

portanto, com a chegada dos nor<strong>de</strong>stinos que vieram em busca do “chamado<br />

ouro negro”, com a implantação da empresa seringalista. Segundo Aquino &<br />

Iglesias (2005), os primeiros “encontros” dos diferentes povos indígenas com<br />

caucheiros peruanos e exploradores <strong>de</strong> seringais, vindos do Nor<strong>de</strong>ste, foram marcados<br />

pelas ‘correrias’ – expedições armadas que resultaram em massacres –, pela<br />

introdução <strong>de</strong> doenças, pelo acirramento induzido <strong>de</strong> antigos conflitos intertribais,<br />

pela ocupação dos territórios tradicionais e pela dispersão <strong>de</strong> suas populações remanescentes<br />

pelas cabeceiras das bacias dos rios Juruá, Purus e Acre.<br />

O espaço que atualmente correspon<strong>de</strong> ao Departamento <strong>de</strong> Pando foi, durante<br />

séculos, um território <strong>de</strong>sconhecido, ignorado e inexplorado; da mesma forma, o<br />

espaço que correspon<strong>de</strong> ao atual estado do Acre e ao Departamento <strong>de</strong> Madre <strong>de</strong><br />

Dios foi, durante séculos, inexplorado por uma população não indígena (BOLÍVIA,<br />

2010: 13). O Departamento <strong>de</strong> Madre <strong>de</strong> Dios foi criado em 1912 e tem a sua<br />

origem associada também à extração da goma elástica. O processo <strong>de</strong> ocupação por<br />

uma população não indígena repete as mesmas características do Acre e da Bolívia:<br />

a dizimação das populações indígenas (VALCUENDE, 2009).<br />

Esse foi o início da ocupação da Amazônia Sul-Oci<strong>de</strong>ntal por uma população<br />

não indígena que a<strong>de</strong>ntrou nessas matas para extrair o “leite da seringueira”.<br />

Foi a exploração da goma que motivou a guerra <strong>de</strong>l Acre, conflito que <strong>de</strong>finiu a atual<br />

fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia na Amazônia (BÉLTRAN, 2001). Vale ressaltar<br />

que quando inicia a exploração gomífera, sob comando <strong>de</strong> seringalistas brasileiros,<br />

as terras exploradas por estes, <strong>de</strong> acordo com o Tradado <strong>de</strong> Ayacucho <strong>de</strong><br />

1967, pertenciam à Bolívia. E foi a disputa pelo domínio das “árvores <strong>de</strong> leite” que<br />

provocou a re<strong>de</strong>finição das fronteiras políticas entre Brasil, Bolívia e Peru na Amazônia<br />

Sul-Oci<strong>de</strong>ntal. O limite internacional dos três países, portanto, se consolidou<br />

sobre territórios ancestrais <strong>de</strong> diversos grupos indígenas. E a faixa da tríplice<br />

fronteira é habitada imemorialmente por diferentes povos indígenas e, apenas há<br />

pouco mais <strong>de</strong> um século, por seringueiros <strong>de</strong> origem nor<strong>de</strong>stina.<br />

Do lado boliviano, a goma “produjo la invasión <strong>de</strong> criollos y mestizos, barraqueros<br />

provenientes <strong>de</strong> Santa Cruz, Cochabamba y La Paz”, e também do Brasil e Peru. Em<br />

1899 estimava-se a existência <strong>de</strong> 60 mil brasileiros trabalhando na extração do látex<br />

em seringais do lado boliviano (CÉSPEDES, 2005). Vale ressaltar que a gran<strong>de</strong><br />

maioria <strong>de</strong>ssa população estava sob comando do barraquero 5 Nicolás Suárez Callaú,<br />

um dos maiores latifundiários da Amazônia boliviana na época. A mão <strong>de</strong> obra bra-<br />

5. Como eram <strong>de</strong>nominados os donos dos seringais na Bolívia.


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 27<br />

sileira que trabalhava nessas barracas era majoritariamente <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos que foram<br />

expulsos da concentração <strong>de</strong> terras nos seus estados <strong>de</strong> origem. Estes, ao chegaram<br />

à Amazônia, se transformaram em seringueiros, os extratores do látex, envoltos<br />

em uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> exploração, seja do lado brasileiro, peruano ou boliviano. A presença<br />

<strong>de</strong> brasileiros na Bolívia, portanto, antece<strong>de</strong> a anexação do Acre ao Brasil.<br />

Durante décadas, a fronteira formada entre esses três países pouco chamou<br />

a atenção dos respectivos governos centrais, e os seringueiros brasileiros viviam<br />

“pacificamente” em solo boliviano. Porém, na atualida<strong>de</strong>, vários eventos mostram<br />

sua importância estratégica e geográfica, entre eles, projetos públicos e privados<br />

<strong>de</strong> integração sul-americana.<br />

Essa pouca atenção para a faixa <strong>de</strong> fronteira resultou na construção <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong> fronteiriça. Para os “antigos” moradores, a fronteira é constitutiva da vida<br />

regional, isso significa dizer que as relações econômicas e afetivas se dão entre os<br />

habitantes da tríplice fronteira. Os moradores da região fronteiriça vivem fluxos e<br />

vínculos que ultrapassam as fronteiras nacionais. A fronteira no caso “tem um<br />

caráter transnacional e suas ações cotidianas negam, em muitas ocasiões, a sua<br />

própria existência”. Para os recém-chegados, a “fronteira e os referentes <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação<br />

passam a ser a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional” (VALCUENDE, 2009: 189).<br />

Na região fronteiriça, principalmente nas cida<strong>de</strong>s, convive-se com múltiplos<br />

referenciais nacionais e étnicos, que em alguns casos po<strong>de</strong>m ser exclu<strong>de</strong>ntes: índios<br />

x não índios, brasileiros x peruanos x bolivianos, pessoas antigas x pessoas chegadas<br />

há menos tempo (VALCUENDE, 2009). Os antigos moradores são amazônicos e<br />

seu mundo “foi criado em um sistema <strong>de</strong> articulação interfronteiriço” (p. 222).<br />

Os Manchineri vivem nos três países e movimentam-se com “certa” liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> um lado para o outro: essa mobilida<strong>de</strong> “é dada para a visitação <strong>de</strong> parentes<br />

que moram nesses países. A movimentação também é livre porque uns têm casa<br />

aqui, e têm casa lá” (Chola Manchineri). As relações familiares e <strong>de</strong> aliança<br />

transpassam as fronteiras. Politicamente, as fronteiras e as diferenças legais entre<br />

os três países tornam-se um recurso importante que muitas vezes é acionado. O<br />

Peru e a Bolívia possuem uma legislação que permite aos indígenas a exploração<br />

da ma<strong>de</strong>ira, o que é proibido no Brasil. Por outro lado, o Brasil tem melhor assistência<br />

à saú<strong>de</strong> e aposentadoria aos trabalhadores rurais, inclusive aos indígenas.<br />

Assim, a mobilida<strong>de</strong> fronteiriça obe<strong>de</strong>ce a estratégias e momentos <strong>de</strong> vida diferentes,<br />

nos quais os indivíduos instrumentalizam as i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> boliviano, peruano<br />

e brasileiro, juntamente com suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s indígenas (VALCUENDE, 2009).<br />

Para os indígenas, quando inseridos nas “socieda<strong>de</strong>s estatais é complicado afirmar<br />

que para eles não existem fronteiras”. Na fala <strong>de</strong> um indígena, “as fronteiras são<br />

uma invenção dos brancos, mas, uma vez inventadas, temos também que saber<br />

usá-las em nosso benefício” (p. 190).<br />

O “isolamento” <strong>de</strong>ssa região fronteiriça dos seus respectivos centros políticos<br />

constituiu-se em marca histórica na estruturação territorial da fronteira entre


28 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

os três países. Mas, atualmente, a região amazônica se configura como a última<br />

fronteira para a expansão do capitalismo transnacional. O que em século anterior<br />

foi consi<strong>de</strong>rada como região “inóspita”, como “vazio <strong>de</strong>mográfico”, como “reserva<br />

da biodiversida<strong>de</strong>” e como “reguladora do clima” do planeta, hoje aparece como<br />

objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s grupos econômicos <strong>de</strong> capitais sediados nos EUA e<br />

Europa. Na atualida<strong>de</strong> não é a borracha natural que está sendo disputada, mas<br />

outras fontes <strong>de</strong> matérias-primas existentes no subsolo e na biodiversida<strong>de</strong> da floresta<br />

tropical (PAULA, 2008).<br />

O POVO MANCHINERI DA TRÍPLICE FRONTEIRA:<br />

A TRAJETÓRIA DE ZÉ URIAS MANCHINERI<br />

O povo Manchineri é uma das 14 etnias reconhecidas no Acre como indígena.<br />

Os Manchineri são membros do grupo Aruak pré-andino, composto pelo Piro,<br />

Apurinã, Ashaninka, Manchiguenga e Yanaska. Os Manchineri e os Piro estão muito<br />

próximos linguística e culturalmente; ambos seriam <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes dos grupos:<br />

Kochitsineru (povo do pássaro pequeno), Hahamluneru (povo do baixo curso do<br />

rio), Hijwtatuneru (povo da boca do rio), Wenezeru Himnuneru (povo do sapo),<br />

Nastineru (povo faminto), Cocamolineru (povo pica-pau), Getuneru (povo serpente),<br />

Pleneru (povo arara) e Mayineru (povo da árvore Inharé) (VALCUENDE, 2009:<br />

113).<br />

Alguns autores 6 citados por Valcuen<strong>de</strong> (2009) atestam que os Piro também<br />

eram divididos nos mesmos grupos nominados dos quais provêm os Manchineri.<br />

Afirmam que os vários grupos “neru”, hoje chamados <strong>de</strong> Manchineri no Brasil e<br />

Piro no Peru, seriam parcialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> etnia que eles <strong>de</strong>nominam Yine,<br />

cujo significado seria “nós, o povo”. Os Manchineri seriam uma <strong>de</strong>rivação <strong>de</strong><br />

Maniteneru ou <strong>de</strong> outro <strong>de</strong>sses subgrupos, nomes que os “brancos” não conseguiam<br />

pronunciar corretamente. Já o nome Piro foi dado no “tempo dos barões da<br />

borracha” em suas várias tentativas <strong>de</strong> pronunciar Peru quando queriam se afirmar<br />

como peruanos (p. 114).<br />

Essas informações nos revelam que os povos indígenas reconhecidos como<br />

tais nessa região são <strong>de</strong>scendência dos sobreviventes da expropriação territorial e<br />

cultural a que foram submetidos, a partir da chegada das frentes extrativas no final<br />

do século XIX:<br />

“(...) esses subgrupos eram divisões cerimoniais num passado distante; outros<br />

afirmam que eram grupos que migraram <strong>de</strong> lugares diferentes e passaram a estabelecer<br />

alianças através <strong>de</strong> casamentos, na época em que os exploradores da<br />

borracha chegaram à região” (VALCUENDE, 2009: 114).<br />

6. Como Metraux (1948), Gow (2002) e Virtanen (2007).


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 29<br />

Das antigas ocupações territoriais, os Manchineri vivem, atualmente, na fronteira<br />

trinacional entre o Acre (Brasil), Pando (Bolívia) e Madre <strong>de</strong> Dios (Peru). No<br />

lado brasileiro vivem na terra indígena Mamoadate, que é partilhada com os índios<br />

Jaminawás, localizada nos municípios <strong>de</strong> Sena Madureira e Assis Brasil. Além<br />

<strong>de</strong>ssa terra habitam a terra indígena Manchineri do Seringal Guanabara, que se<br />

encontra em processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação, e na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Assis Brasil. No lado peruano<br />

e boliviano também vivem índios Manchineri em duas terras indígenas e nas<br />

cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Inapari e San Pedro <strong>de</strong> Bolpebra (ver Quadro 1).<br />

Quadro 1 Terras indígenas do povo Manchineri na zona da tríplice fronteira.<br />

Terra Indígena-Povo População Extensão Município-País Situação<br />

Mamoadate (Manchineri-<br />

Jaminawa)<br />

Seringal Guanabara<br />

(Manchineri)<br />

Comunida<strong>de</strong> Nativa Bélgica<br />

(Yiné-Piro-Manchinery)<br />

Terra Comunitária <strong>de</strong><br />

Origem Yaminahua<br />

(Jaminawa e Manchinery)<br />

Fonte: VALCUENDE, 2009.<br />

576 313.647<br />

Sena Madureira,<br />

Assis Brasil, BR<br />

Registrada<br />

92 – Assis Brasil, Brasil A i<strong>de</strong>ntificar<br />

90 53.300<br />

102 41.920<br />

Iñapari<br />

(Tahuamanu), Peru Regularizada<br />

Bolpebra (Pando),<br />

Bolívia<br />

Regularizada<br />

A história <strong>de</strong> contato dos índios do Acre com os não índios é narrada em<br />

diferentes “tempos históricos”, conforme proposição do antropólogo Txai Terri Valle<br />

<strong>de</strong> Aquino. O tempo mais remoto é <strong>de</strong>nominado como “<strong>de</strong> antigamente”, do tempo<br />

antes da chegada dos nor<strong>de</strong>stinos. No final do século XIX, com o início do<br />

extrativismo das heveas, se instala o “tempo das correrias”, o tempo que os índios<br />

foram alcançados por duas frentes extrativas. Do lado peruano vinha pela frente<br />

<strong>de</strong> extração da castilloa elastica, do caucho, e, do lado brasileiro, pela frente <strong>de</strong><br />

extração da hevea brasiliensis, da seringa. Desse contato resultou, além da redução<br />

<strong>de</strong>mográfica, a <strong>de</strong>sorganização sociocultural e a expropriação territorial (PICOLLI,<br />

2006). Concomitante a esse se inicia o “tempo do cativeiro”, o tempo no qual os<br />

índios trabalharam nos seringais, como seringueiros, agricultores, mateiros<br />

(AQUINO & IGLESIAS, 2005).<br />

Acossados, por um lado, pelos caucheiros peruanos e bolivianos e, por outro,<br />

pela frente extrativista <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos, restou aos Manchineri a a<strong>de</strong>são ao sistema<br />

<strong>de</strong> exploração da borracha. Em entrevista aos antropólogos Terri Aquino e Marcelo<br />

Piedrafitas, o sertanista Meireles <strong>de</strong>screveu esta situação:<br />

“(...) Lá havia uma gran<strong>de</strong> fazenda que era do Canízio Brasil e <strong>de</strong> seu irmão<br />

Antônio Brasil. O Canízio viajava mais para fazer compras para o seringal e o<br />

Antonio ficava mais permanente na se<strong>de</strong> do seringal. Logo acima da se<strong>de</strong> do


30 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Petrópolis moravam os missionários da Missão Novas Tribos. Numa das casas<br />

morava o Dimas, pastor brasileiro, e na outra vivia o Estevão, pastor norteamericano.<br />

Eles viviam ali on<strong>de</strong>, hoje em dia, é a al<strong>de</strong>ia Betel, logo <strong>de</strong>pois da<br />

pista <strong>de</strong> pouso, cerca <strong>de</strong> mil metros acima da se<strong>de</strong> do Petrópolis. Ao lado das<br />

casas dos missionários havia as casas dos Jaminawa. Pois bem, lá na se<strong>de</strong> da<br />

fazenda-seringal Petrópolis observei homens e jovens Jaminawa e Manchineri<br />

trabalhando na base da diária para os irmãos Brasil. Estes tinham quatro mil<br />

hectares <strong>de</strong> campo. Usavam os índios pra bater campo, <strong>de</strong>rrubar a mata e abrir<br />

novas pastagens para o gado <strong>de</strong>les. Os índios trabalhavam como peões, <strong>de</strong>rrubando<br />

as matas para fazer novos campos. Alguns <strong>de</strong>les trabalhavam também<br />

como caçadores e todo tipo <strong>de</strong> serviços braçais, mas o maior contingente indígena<br />

era usado para a manutenção e abertura <strong>de</strong> novas pastagens” (AQUINO<br />

& IGLESIAS, 2008).<br />

O trabalho <strong>de</strong> sertanistas contratados pela FUNAI para “achar” os índios do<br />

Acre e a ajuda das ONGs indigenistas na criação <strong>de</strong> cooperativas <strong>de</strong>ram fôlego para<br />

os índios saírem das mãos dos patrões <strong>de</strong> seringais. Esse movimento, segundo o<br />

sertanista Meireles, ajudou os índios a se mobilizar pela conquista <strong>de</strong> suas terras,<br />

“os índios começaram a sair dos fundos dos seringais. Vieram a Rio Branco e começaram<br />

a ir até Brasília para reivindicar o direito às suas terras <strong>de</strong>marcadas”<br />

(AQUINO & IGLESIAS, 2008). Nesse caso estamos falando do “tempo dos direitos”,<br />

tempo que está relacionado à “<strong>de</strong>scoberta” dos direitos indígenas, propiciados<br />

pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e pela conquista territorial, a<br />

partir da atuação da FUNAI no Acre. Já o “tempo da revitalização cultural”<br />

(concomitante ao anterior) são os anos recentes, do “resgate” das tradições e da<br />

implantação <strong>de</strong> uma “educação diferenciada” que fomenta a discussão cultural.<br />

Novamente recorremos a Meireles para enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> “<strong>de</strong>scoberta dos<br />

direitos”:<br />

“(...) vendo aquela situação dos índios, trabalhando como peões para os patrões<br />

da fazenda-seringal Petrópolis, comecei a conversar com eles que aquele<br />

negócio não ia dar futuro para eles, não. Que eles iriam morrer batendo campo<br />

a terçado, trabalhando a semana todinha para o Canízio e Antônio Brasil a<br />

troco <strong>de</strong> duas garrafas <strong>de</strong> cachaça, ou para comprar uma bobagem qualquer<br />

no barracão <strong>de</strong>les. Fui convencendo os índios <strong>de</strong>vagarzinho <strong>de</strong> que era melhor<br />

viver longe dali. Conheci o Zé Correia. Ele era bem novinho, mas já era um<br />

cabra falador e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança entre seu povo Jaminawa. Um cabra assim<br />

sempre tem futuro no meio <strong>de</strong> seus parentes, não é mesmo? Conheci o Zé Urias<br />

que também tinha gran<strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança entre seu povo Manchineri. E aí fui conversando<br />

com eles e outros índios, especialmente os velhos Jaminawa e<br />

Manchineri do Petrópolis. Sempre perguntando: ‘E aí como é que é? O que se<br />

<strong>de</strong>ve fazer pra sair do cativeiro dos patrões? Como é que se faz pra sair <strong>de</strong>ssa<br />

<strong>de</strong>pendência do barracão <strong>de</strong>les? Quais os limites das terras <strong>de</strong> vocês aqui nesse<br />

alto rio’. E assim por diante” (AQUINO & IGLESIAS, 2008).


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 31<br />

A história dos contatos é contada pelos próprios Manchineri em consonância<br />

com a proposta cronológica dos “Tempos” no qual se <strong>de</strong>staca o modo <strong>de</strong> vida<br />

indígena, vejamos:<br />

“Em nosso passado, fomos o povo mais guerreiro e caçador <strong>de</strong> nossa região.<br />

Segundo estimativas, em nosso passado, fomos mais ou menos 2.000 pessoas<br />

ocupando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o Alto Iaco, a partir do igarapé Abismo, até o seringal Nova<br />

Olinda e seringal Petrópolis, chegando até mesmo a (cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>) Sena Madureira<br />

e (<strong>de</strong>) Assis Brasil. Os Manchineri compartilham com os Piro, na Amazônia<br />

peruana, uma língua aruak (do ramo Maipure) e boa parte <strong>de</strong> seu sistema<br />

sociocosmológico, po<strong>de</strong>ndo ser consi<strong>de</strong>rados grupos que fazem ou já fizeram<br />

parte <strong>de</strong> um mesmo povo. Em território brasileiro, a maioria dos Manchineri<br />

habita na terra indígena Mamoadate, havendo ainda muitas famílias vivendo<br />

em seringais no Acre, sobretudo no interior da Reserva Extrativista Chico<br />

Men<strong>de</strong>s e Seringal Guanabara, hoje em processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação. Encontramse<br />

em menor número no São Francisco e no Macauã, bem como na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Assis Brasil.<br />

Nós, Manchineri, antes do contato e da exploração das frentes extrativistas e<br />

dos caucheiros peruanos, éramos vários grupos divididos e que formávamos<br />

os Yineri (gente) e Yine (nós), morando todos próximos e casando entre si. Só<br />

os antigos Piro que não viviam como um único povo, mas eram divididos em<br />

muitos grupos, ou seja, o neru. Cada grupo tinha um nome, como os Manxineru<br />

(povo da árvore Tamamuri, mãe lua ou mãe caiçuma), Koshichineru (povo<br />

pássaro pequeno), Nachineru (povo faminto), Getuneru (povo sapo) e<br />

Gimnuneru (povo cobra). Viajávamos acima e abaixo para confeccionarmos<br />

nossas vestimentas e outros acessórios. Além <strong>de</strong> praticar um pouco da<br />

comercialização com outros povos. O que nunca vendíamos nem trocávamos<br />

era nosso poncho.<br />

Contudo, nós, Manchineri, passamos a sofrer com as correrias por causa das<br />

duas frentes <strong>de</strong> pressão: do Peru para o Brasil, por caucheiros; e do Amazonas<br />

para a Bolívia, por extratores <strong>de</strong> borracha que se fixaram com suas famílias<br />

na região. No primeiro momento não formos incorporados como mão <strong>de</strong> obra<br />

extrativista. Só a partir da queda da borracha é que fomos obrigados a cortar<br />

caucho e seringa e até trabalhar para os patrões em suas casas e assim homens e<br />

mulheres até crianças, começaram a servir como mão <strong>de</strong> obra barata, fazendo<br />

serviços para os enriquecimentos dos patrões.<br />

Uma das estratégias para tentar controlar o povo Manchineri foi a <strong>de</strong>struição<br />

<strong>de</strong> nosso modo <strong>de</strong> vida, nossos costumes, nossas línguas, tradições e crenças<br />

que ainda hoje são preservadas. Os principais aspectos que levaram o povo<br />

Manchineri a servir <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra barata foram os gran<strong>de</strong>s conflitos grupais<br />

e intergrupais <strong>de</strong> Manchineri e outros povos do tronco linguístico Aruak, Pano<br />

e Arauá. Tal conflito gerou a extinção <strong>de</strong> alguns povos, assim como os Catianas<br />

que viviam no mesmo território que os Manchineri e eram menores em números.


32 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Após a exploração gumífera, que causou gran<strong>de</strong> perda territorial, cultural e um<br />

processo <strong>de</strong> dispersão <strong>de</strong> nosso povo, buscamos resgatar tudo aquilo que foi<br />

<strong>de</strong>struído. Para levar todo nosso conhecimento tradicional, cultural, social e<br />

econômico adiante, sem interferência e <strong>de</strong>struição em nosso meio. Mantendo<br />

nossos aspectos cosmológicos e toda nossa ancestralida<strong>de</strong> que preservamos até<br />

a atualida<strong>de</strong>, levando em consi<strong>de</strong>ração e valorizando todo o conhecimento <strong>de</strong><br />

nossos antigos caciques e pajés. E também preservar nosso atual território que<br />

hoje se encontra ameaçado” (Chola Manchineri e Toya Manchineri).<br />

As ameaças a que Chola e Toya se referem são em <strong>de</strong>corrência das políticas<br />

integracionistas em curso na tríplice fronteira, como a pavimentação da rodovia<br />

transoceânica e a concessão <strong>de</strong> florestas no Peru e Brasil.<br />

A mobilida<strong>de</strong> territorial está associada, não só ao avanço das frentes<br />

econômicas, mas também às re<strong>de</strong>s <strong>sociais</strong>: re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> contatos e vínculos <strong>de</strong> familiares,<br />

re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> que ajudam o migrante a se inserir no novo lugar e, por extensão,<br />

no novo mercado <strong>de</strong> trabalho. É através <strong>de</strong> uma complexa teia <strong>de</strong> relações<br />

<strong>sociais</strong> muldimensionais e multiterritoriais (econômicas, políticas e culturais) que<br />

as “portas” dos novos lugares se abrem para os migrantes (GOETTERT, 2008). Na<br />

fala <strong>de</strong> Jaime Manchineri po<strong>de</strong>mos perceber as re<strong>de</strong>s <strong>sociais</strong> que contribuem para<br />

o <strong>de</strong>slocamento para um ou outro lugar:<br />

“Eu vim do Rio Ucayali, duma comunida<strong>de</strong> indígena chamada Pampa Hermosa.<br />

Naquela época, o pai já era professor da alfabetização. Após o <strong>de</strong>correr do tempo,<br />

ele foi transferido para a região do Rio Urubamba para uma comunida<strong>de</strong><br />

chamada Bufeo Pozo. Quando eu tinha 6 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, a minha mãe faleceu<br />

<strong>de</strong> parto. Aos 10 anos, o pai se ajuntou com uma mulher que foi daqui do Brasil<br />

para o Peru. Ela é da família do pessoal do Seringal Guanabara. No ano <strong>de</strong> 1985,<br />

nos meus 22 anos, o pai planejou para vir fazer uma visita para a família <strong>de</strong><br />

sua esposa no Brasil. E eu fui convidado, pelo pai, para ser seu motorista fluvial.<br />

No mês <strong>de</strong> maio do ano presente, parto para Puerto Esperança e Rio Purus.<br />

Baixamos e chegamos à Sena Madureira em três pessoas: eu, pai e o João. No<br />

mesmo período chegamos à terra indígena Mamoadate, Al<strong>de</strong>ia Extrema. Naquela<br />

época, a li<strong>de</strong>rança geral do Povo Manchineri era o José Urias. Eu tinha<br />

apenas concluído o quinto ano do primário, portanto, tinha conhecimento <strong>de</strong><br />

leitura, escrita e matemática, e aqui o povo não tinha professor que ensinasse<br />

e pu<strong>de</strong>sse alfabetizar as crianças que existiam na al<strong>de</strong>ia. Porém, o cacique Zé<br />

me convidou para assumir esse cargo e eu concor<strong>de</strong>i; ao mesmo tempo me<br />

engracei <strong>de</strong> uma menina e fiquei me ajuntando com ela até hoje. Então, a minha<br />

saída <strong>de</strong> Urubamba foi assim. Se cacique não tivesse me convidado, era pra eu<br />

voltar” (Jaime Sebastião Luhlu Prishico Manchineri).<br />

As re<strong>de</strong>s <strong>sociais</strong> também são importantes para a sobrevivência indígena no<br />

mundo dos “brancos”, como nos revela Zé Urias Manchineri. O mesmo apren<strong>de</strong>u<br />

a calcular e a escrever com um parente do Peru:


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 33<br />

“O mais importante pra mim foi apren<strong>de</strong>r a ler e a calcular e consegui um estudo,<br />

e porque eu cortava seringa, eu aprendi quando eu cortava seringa e também<br />

eu fazia a contagem das borrachas, e quem me ensinou foi o Piro, mais<br />

ele primeiro me ensinou a ler e <strong>de</strong>pois a calcular em nosso idioma, e só <strong>de</strong>pois<br />

estudamos o português com professores brasileiros. Eu aprendi a ler com o João<br />

Piru, pai do Jaime. Isso no ano <strong>de</strong> 1957. E foi ele que me ensinou a ler e a<br />

calcular” (Zé Urias Manchineri).<br />

A trajetória do povo Manchineri em sua inserção no mercado <strong>de</strong> trabalho dos<br />

seringais e das fazendas aparece neste <strong>de</strong>poimento:<br />

“Eu, José Severino da Silva (Zé Urias Manchineri), da tribo Manchineri, nasci<br />

em 1942, no Seringal Petrópolis, na Colocação União. Mamãe era uma seringueira<br />

<strong>de</strong>sta colocação. Eu tinha nove anos quando meu pai morreu, no Seringal<br />

Petrópolis, na Colocação Maloquinho. Aí minha mãe (Pretonia Maimará<br />

Manchineri) assumiu todo o trabalho, cortando seringa, e como éramos dois<br />

irmãos, começamos a ajudar nossa mãe a cortar seringa. Em 1954 eu já tinha<br />

12 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> e já cortava seringa por conta, eu fui trabalhar no meio <strong>de</strong><br />

outros seringueiros “brancos”. Também fui ma<strong>de</strong>ireiro e empreiteiro para o<br />

patrão no Seringal Petrópolis. Fui caçador para os fazen<strong>de</strong>iros <strong>de</strong> 1951 até 1975.<br />

A vida <strong>de</strong> seringueiro era uma vida muito sofrida, a gente dava duas voltas na<br />

estrada para po<strong>de</strong>r dar conta. De manhã nós cortávamos as seringas; e à tar<strong>de</strong><br />

nós fazíamos a coleta. Assim era nossa vida nos seringais.<br />

O seringalista era Alfredo Vieira Lima, ele era nosso patrão. Ele movimentava<br />

quatro seringais: São Francisco, Icuriã, Petrópolis e Guanabara. Eu, como era<br />

bom seringueiro, durante um ano eu produzia 1.000 quilos <strong>de</strong> borracha; eu,<br />

além <strong>de</strong> seringueiro, era ma<strong>de</strong>ireiro do seringalista. E como eu era ma<strong>de</strong>ireiro<br />

e seringueiro do seringalista, eu ensinava os que vinha da cida<strong>de</strong> que não sabiam<br />

cortar seringa. Em 1957, quando Bechil Canizio Brasil comprou o movimento<br />

do seringal Petrópolis com todos os seringueiros que tinha no seringal,<br />

continuamos a cortar seringa. Então, eu somente mu<strong>de</strong>i <strong>de</strong> patrão, mas continuei<br />

morando no seringal com o mesmo trabalho <strong>de</strong> seringueiro no seringal.<br />

Eu também comprava mercadoria do Belchil Canizio Brasil, ele também tinha<br />

muita confiança em mim, porque eu sempre fui consi<strong>de</strong>rado bom seringueiro.<br />

Antes do Canizio eu cortei seringa no Seringal São Francisco, Icuriã e no Rio<br />

Iaco. Depois voltei para o Seringal Petrópolis, quando eu fui convidado pelo<br />

patrão porque eu tinha duas profissões, o <strong>de</strong> seringueiro e o <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ireiro.<br />

Muitas vezes eu tinha um saldo <strong>de</strong> 15.000 cruzeiros, mas isso o patrão me<br />

pagava em dinheiro. Quando não se produzia a quantida<strong>de</strong> que o patrão <strong>de</strong>sejava,<br />

não se vendia mercadoria <strong>de</strong> jeito nenhum para eles. Só se tivesse borracha<br />

no terreno e mostrasse para ele, aí se vendia para os Manchineri a<br />

quantida<strong>de</strong> mínima <strong>de</strong> mercadoria. Quando outros Manchineri que também<br />

eram seringueiros produziam pouca borracha, o patrão vendia pouca mercadoria<br />

para eles e era menos <strong>de</strong> 200 quilos <strong>de</strong> borracha.


34 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Quando eu parava <strong>de</strong> cortar seringa, eu ia trabalhar como ma<strong>de</strong>ireiro e ensinava<br />

os seringueiros que não sabiam cortar seringa. Esse era meu trabalho para<br />

os seringalistas, os patrões gostavam <strong>de</strong> meu trabalho, por isso, cortei seringa<br />

até 1975, quando chegou a FUNAI no seringal Petrópolis, aí fui convidado<br />

para i<strong>de</strong>ntificar a área Mamoadate como área indígena. A FUNAI fez várias<br />

reuniões com a comunida<strong>de</strong> indígena Manchineri para saber on<strong>de</strong> a comunida<strong>de</strong><br />

queria sua Terra, porque a FUNAI queria <strong>de</strong>limitar no Seringal Petrópolis,<br />

mas os Manchineri escolheram on<strong>de</strong> nós nunca tínhamos morado. Aí me mu<strong>de</strong>i<br />

para a área em 1976, e durante 19 anos fui li<strong>de</strong>rança na Al<strong>de</strong>ia Extrema. A<br />

Área Manchineri foi <strong>de</strong>marcada na minha administração.<br />

No final <strong>de</strong> 1985, meu companheiro Roberto César Kaxarari me convidou para<br />

coor<strong>de</strong>nar a Organização Núcleo <strong>de</strong> Cultura Indígena. Em 1992 trabalhei na<br />

COIAB – organização Indígena da Amazônia Brasileira. Em 1997 fui eleito para<br />

trabalhar no CAPOIB, que é uma organização indígena que fica em Brasília, e<br />

prestei serviço durante cinco anos para Saú<strong>de</strong> Indígena. Hoje sou aposentado<br />

e moro em Rio Branco” (Zé Urias Manchineri).<br />

Nesse <strong>de</strong>poimento percebemos a exploração a que foram submetidos os índios<br />

no Acre e o papel da FUNAI na regularização das terras indígenas.<br />

Os Manchineri da tríplice fronteira são vistos constantemente nas cida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> Inapari (Peru), San Pedro <strong>de</strong> Bolpebra (Bolívia) e Assis Brasil (Brasil), fazendo<br />

compras no comércio local, sentados em bancos da praça <strong>de</strong> Assis Brasil ou no abrigo<br />

do ponto <strong>de</strong> ônibus, locais em que os “brancos” não param quando lá estão os índios.<br />

Por vezes, grupos <strong>de</strong> jovens são vistos em discotecas em Iñapari ou em Assis Brasil.<br />

Famílias indígenas misturam-se ao público na festa anual da praia do Rio Acre,<br />

mas sempre sendo observados e percebidos como “os indígenas”, i<strong>de</strong>ntificação que<br />

estabelece certo distanciamento e <strong>de</strong>sconforto (VALCUENDE, 2009).<br />

A trajetória dos Manchineri relatada aqui não se diferencia da dos outros povos<br />

indígenas do Acre, como a inserção na empresa seringalista, a inserção como peões<br />

nas fazendas <strong>de</strong> gado e a luta pelo reconhecimento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que a FUNAI chegou<br />

ao Acre. Após quase 40 anos <strong>de</strong> atuação da FUNAI, hoje são 34 terras indígenas<br />

reconhecidas pelo governo fe<strong>de</strong>ral no Acre, com área total estimada em 2.659.068<br />

hectares (ver Mapa 1).<br />

Esse conjunto <strong>de</strong> terras correspon<strong>de</strong> a 16,1% da extensão atual do estado<br />

(16.519.263 hectares). Distribuídas em meta<strong>de</strong> dos 22 municípios acreanos, essas<br />

34 terras estão <strong>de</strong>stinadas a 14 povos indígenas, falantes <strong>de</strong> línguas Pano, Aruak<br />

e Arawá. Com uma população estimada em 16.573 índios, o que representa menos<br />

<strong>de</strong> 2% da população atual do estado (AQUINO & IGLESIAS, 2005).


Mapa 1 Terras indígenas no estado do Acre. 7 Fonte: AQUINO & IGLESIAS (2005).<br />

7. A terra indígena Jaminawa do Guajará ainda não está representada no mapa, pois encontra-se em processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação.<br />

Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 35


36 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

O AVANÇO DA FRONTEIRA ECONÔMICA E A TRAJETÓRIA DE SEU<br />

PEREIRA, DONA MARIA ABREU E SEBASTIÃO VIEIRA<br />

A formação do estado do Acre tem sua origem, como dito anteriormente, na<br />

frente migratória iniciada na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX, em busca do “leite<br />

da seringueira”. A partir <strong>de</strong> então levas <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos a<strong>de</strong>ntravam em territórios<br />

bolivianos. Durante a Segunda Guerra Mundial, novo fluxo <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos é<br />

direcionado para a Amazônia, e foi nessa leva que a família <strong>de</strong> Seu Pereira veio<br />

para o Acre.<br />

Os pais e avós <strong>de</strong> Seu Pereira eram agricultores originários do Ceará. Em 1931,<br />

seu pai, com apenas seis anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, veio pela primeira vez ao estado do Amazonas<br />

acompanhando seus familiares, porém, logo voltou ao Ceará. Em 1944, aos<br />

<strong>de</strong>zenove anos, semianalfabeto e <strong>de</strong>sempregado, foi atraído pelas histórias <strong>de</strong> enriquecimento<br />

através do “ouro negro” e resolveu emigrar para o Acre.<br />

Segundo Seu Pereira, seu pai veio “na influência da borracha que, naquele<br />

tempo, pagava bem pago”, em virtu<strong>de</strong> da alta <strong>de</strong>manda dos países que combatiam<br />

na Segunda Guerra Mundial. Relata ainda que, naquela época, durante a apresentação<br />

ao Exército, era feita a contagem para saber quem “queria ir com os Estados<br />

Unidos lutar contra a Alemanha, ou quem queria enfrentar o beribéri, o paludismo,<br />

o índio, a onça” na Amazônia. Nesse quadro, seu pai escolheu ser soldado da<br />

borracha e percorreu cida<strong>de</strong>s, como Manaus, Porto Velho, Rio Branco e, por fim,<br />

Plácido <strong>de</strong> Castro.<br />

Porém, com sauda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sua terra natal, o novo seringueiro resolveu retornar<br />

para o Ceará junto com a família, quando Seu Pereira estava em seu primeiro ano<br />

<strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Só retornaram ao Acre em 1959, ano em que nosso entrevistado era “ainda<br />

muito novinho”, com sete anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>.<br />

Nosso entrevistado esclareceu que antigamente não era possível trabalhar sem<br />

ter compromisso com um seringalista, o dono da fazenda <strong>de</strong> seringal. Assim que o<br />

migrante nor<strong>de</strong>stino chegava ao porto <strong>de</strong> Manaus, ou ao <strong>de</strong> Porto Velho, já era<br />

captado pelo futuro “patrão, (...) que o botava num hotel, pagava suas <strong>de</strong>spesas,<br />

colocava tudo num barco ou num carro ou caminhão e o levava”.<br />

Seu Pereira “acompanhou” a vida do pai e com ele apren<strong>de</strong>u todos os ofícios<br />

da seringa, dos quais faz questão <strong>de</strong> explicar: “a seringa está colocada no mato, sem<br />

caminho”, então é necessário alguém fazer o “caminho <strong>de</strong> uma para a outra. O<br />

mateiro vai à frente”, para i<strong>de</strong>ntificar as seringueiras e traçar o caminho. O toqueiro<br />

segue atrás, “pra limpar o caminho e fazer a estrada”. O gerente ou capataz era o<br />

administrador do seringal, cujo dono era conhecido “antigamente como patrão”. O<br />

comboeiro passava em todas as colocações, <strong>de</strong> “quinze em quinze dias, pra (re)tirar<br />

o látex recolhido e <strong>de</strong>ixar tudo o que precisava: arroz, feijão, óleo, tabaco”, conforme<br />

pedido feito ao gerente e o saldo que o trabalhador tinha no barracão.


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 37<br />

Contudo, essas funções foram <strong>de</strong>saparecendo quando o seringueiro se tornou<br />

autônomo, ven<strong>de</strong>ndo sua produção diretamente ao comprador, geralmente a Associação<br />

dos Seringueiros, controladora <strong>de</strong> subsídios governamentais. Para Seu<br />

Pereira, “aquele pessoal era do passado, [atualmente] não temos mais o patrão, o<br />

loteiro, o gerente, o comboeiro, só temos agora o seringueiro”.<br />

O seringueiro “é aquele que corta, que tira o látex, ou seja, o leite que faz a<br />

borracha”. É o que acorda todos os dias durante a madrugada, faz o <strong>de</strong>sjejum e<br />

segue sua rotina itinerante pelas estradas para aplicar os cortes na seringueira. “Por<br />

volta das <strong>de</strong>z, onze horas ele [retorna], come, volta ao meio-dia” para recolher o<br />

leite, volta para casa às três ou quatro horas e trabalha em seu roçado. Antigamente,<br />

também tinha <strong>de</strong> <strong>de</strong>fumar o leite para fabricar a borracha, porém, agora basta<br />

“botar o látex (n)a gameleira, pra coalhar”.<br />

No Acre, a família <strong>de</strong> Pereira morou no seringal Bagaça, <strong>de</strong>pois seguiu para o<br />

distrito <strong>de</strong> Campinas, passou alguns meses em Plácido <strong>de</strong> Castro e, por fim, a<strong>de</strong>ntrou<br />

o território boliviano, on<strong>de</strong> finalmente se fixou. A escolha por esse lugar se <strong>de</strong>veu<br />

à abundância <strong>de</strong> árvores <strong>de</strong> seringa da região, situação inversa da região sul do Acre,<br />

já <strong>de</strong>smatada pelo avanço da agropecuária. A família <strong>de</strong> Seu Pereira migrou para a<br />

Bolívia nas décadas <strong>de</strong> 1970 a 1980, mas antes, como apontamos anteriormente,<br />

já havia brasileiros do outro lado da fronteira.<br />

O primeiro gran<strong>de</strong> momento que <strong>de</strong>monstra a presença <strong>de</strong> seringueiros brasileiros<br />

do outro lado da fronteira, na Bolívia, foi quando estes cortavam seringa<br />

em suas barracas, no tempo áureo da borracha. Mas isso não significa que a diminuição<br />

dos “negócios da borracha” no mercado mundial tenha provocado a saída<br />

<strong>de</strong> brasileiros do território boliviano. Com a queda dos preços no mercado mundial<br />

houve um afrouxamento das relações <strong>de</strong> controle dos seringais, tanto no lado<br />

brasileiro quanto no boliviano. Nessa perspectiva, trabalhar na Bolívia era muito<br />

mais lucrativo, pois, além <strong>de</strong> sempre ter sido “boa <strong>de</strong> leite”, nos seringais bolivianos<br />

não se cobrava a renda pelas estradas <strong>de</strong> seringa e se podia ven<strong>de</strong>r a produção a<br />

quem bem enten<strong>de</strong>sse.<br />

Um segundo momento <strong>de</strong> fluxo migratório <strong>de</strong> seringueiros acreanos para o<br />

Pando foi o das décadas <strong>de</strong> 1970 a 1980, provocado pelas políticas públicas do<br />

regime militar (1964-1985). Nesse período é colocado em prática um programa<br />

<strong>de</strong> ocupação econômica da Amazônia, conhecida como ocupação dos “espaços vazios”,<br />

embora a região estivesse ocupada por povos indígenas e pela população camponesa<br />

“já presente na área <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o século XVIII” (MARTINS, 1997: 85-86). E<br />

falavam também da “mo<strong>de</strong>rnização das ativida<strong>de</strong>s econômicas”, gerando conflitos<br />

e tensões pelo reconhecimento da posse da terra.<br />

O conjunto das políticas e estratégias <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, levadas a cabo pelo<br />

regime militar, significou para os povos indígenas e populações camponesas a “chegada<br />

do novo” na forma <strong>de</strong> expropriação. Deles foi tirado o que se tinha <strong>de</strong> “vital


38 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

para sua sobrevivência: terra e territórios, meios e condições <strong>de</strong> existência material,<br />

social, cultural e política” (MARTINS, 1993: 63).<br />

A expansão da frente agropecuária no território acreano representou, entre<br />

outras coisas, a transferência da terra dos seringalistas para os novos fazen<strong>de</strong>iros,<br />

que não mais necessitavam da totalida<strong>de</strong> da força <strong>de</strong> trabalho camponesa. Nesse<br />

sentido, foram utilizados vários mecanismos para expulsão <strong>de</strong>ssa população e houve<br />

pelo menos três tipos <strong>de</strong> reações por parte dos seringueiros-posseiros e índios-posseiros:<br />

em um primeiro momento, gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>les, intimidada pelas pressões,<br />

abandonou suas colocações <strong>de</strong> seringa e migrou para os seringais da Bolívia, correndo<br />

“atrás das seringueiras, à semelhança dos seus antepassados nor<strong>de</strong>stinos, para<br />

os quais não existiam fronteiras entre o Acre (Brasil), a Bolívia e o Peru”<br />

(VARADOURO, maio <strong>de</strong> 1978). Partiram à procura <strong>de</strong> um “bom patrão”, porque<br />

já não tinham mais terra no Acre. Os seringueiros expulsos dos seringais do Acre,<br />

não obtendo outras colocações no estado, migraram para a Bolívia em busca <strong>de</strong><br />

trabalho ou <strong>de</strong> um pedaço <strong>de</strong> terra on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>ssem continuar com as ativida<strong>de</strong>s<br />

que já exerciam nas matas acreanas. Buscavam, nesses seringais, o espaço <strong>de</strong> manutenção<br />

<strong>de</strong> seus modos <strong>de</strong> vida, cortando seringa e coletando castanha, fazendo<br />

roçados, criando animais e realizando inúmeras outras ativida<strong>de</strong>s ligadas ao viver<br />

na floresta (DANTAS, 2009; MAIA, 2002). Outro contingente migrou para as<br />

periferias urbanas, principalmente para Rio Branco, e uma terceira parcela reagiu<br />

contra os “paulistas”, iniciando uma longa jornada <strong>de</strong> lutas <strong>de</strong> resistência pela posse<br />

da terra (PAULA, 1991).<br />

Seu Pereira, <strong>de</strong> 57 anos, mora na faixa <strong>de</strong> fronteira boliviana há cinquenta<br />

anos e é pai <strong>de</strong> quatro filhos, sendo um falecido. Nasceu em um seringal nos arredores<br />

do município <strong>de</strong> Plácido <strong>de</strong> Castro, no estado do Acre. No momento da entrevista,<br />

estava <strong>de</strong> passagem pelo município para fazer um tratamento médico, pois<br />

havia quebrado sua clavícula na Bolívia. Sua mulher, Maria das Graças, começou<br />

a morar na cida<strong>de</strong> para cuidar <strong>de</strong> sua mãe doente.<br />

Seu Pereira mora próximo ao rio Abunã, na divisa com o Acre. Segundo ele,<br />

todos que vivem na região são brasileiros, com exceção dos que moram na Vila Evo<br />

Morales. Acredita, ainda, que vivam por ali cerca <strong>de</strong> quinhentas pessoas:<br />

“Boliviano a gente só encontra ali, na vilinha <strong>de</strong>les. Entrou ali, é a mesma coisa<br />

que estivesse no Brasil. Você nem sabe que está na Bolívia, porque não tem<br />

boliviano. Não vai ter problema com a língua caso você topar com um boliviano,<br />

ele sabe português que é uma beleza. Ele não se enrola <strong>de</strong> jeito nenhum.<br />

Tem muito país que o cara entra, como o Paraguai, e só consegue falar na língua<br />

<strong>de</strong>les, mas aqui não. Você passou daquela vilinha ali, cruzou o rio Abunã,<br />

tudo é brasileiro, tudo, tudo, tudo. Não tem essa <strong>de</strong> entrar ali, não saber falar<br />

espanhol e ficar enrolado. Po<strong>de</strong> entrar <strong>de</strong>spreocupado, tudo é brasileiro.”<br />

A escassez <strong>de</strong> florestas no lado brasileiro e sua abundância no lado boliviano<br />

foi o principal motivo da migração para o país vizinho. A fixação por ali não pare-


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 39<br />

ceu difícil, bastou-lhe encontrar um lugar <strong>de</strong>sabitado e a autorização informal <strong>de</strong><br />

algumas autorida<strong>de</strong>s locais. Construiu sua casa, cortou a estrada da borracha e<br />

plantou o roçado, composto <strong>de</strong> macaxeira para fazer farinha e milho para alimentar<br />

os animais <strong>de</strong> criação, como porcos e galinhas. O lugar on<strong>de</strong> mora é consi<strong>de</strong>rado<br />

<strong>de</strong> paz:<br />

“Não tem essa ruinda<strong>de</strong> <strong>de</strong> gente que vive assaltando, matando, eles não vão<br />

para lá, fazer o quê? Dá até para dormir <strong>de</strong> porta aberta. [...] não tem esse<br />

aperreio <strong>de</strong> gente assaltando, <strong>de</strong> sequestro, não tem isso aí, <strong>de</strong> roubo, tudo isso<br />

sai, é uma tranquilida<strong>de</strong> total. Tirando o aperreio <strong>de</strong> uma onça no meio do<br />

mato, ou alguma cobra, daí é fácil. Se a cobra não subir as escadas... A gente já<br />

tá acostumado, toma cuidado. Se alguma coisa aparecer, mete fogo nela.”<br />

Com o passar do tempo, além da seringa, foi incorporando outras ativida<strong>de</strong>s<br />

ao seu cotidiano, como a coleta e quebra da castanha do Brasil (ou castanha-dopará),<br />

entre os meses <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro e março, no período <strong>de</strong> inverno. A colheita <strong>de</strong><br />

açaí acontece principalmente nos primeiros meses do ano. Seu Pereira <strong>de</strong>screve o<br />

seu dia a dia nos <strong>de</strong>mais meses do ano, quando é possível se <strong>de</strong>dicar à coleta do<br />

látex:<br />

“Você vem pelos caminhos, e vai cortando, tira aquele leite. Chega uma hora<br />

<strong>de</strong>ssas tem aquele leite que lota uma caixa <strong>de</strong> coalhar e pronto. Daí, vamos<br />

limpar a roça, limpar o milho, quebrar, fazer para dar para os bichos da casa.<br />

Quando a noite chega, tomamos um banho, comemos. Chega seis horas,<br />

estamos <strong>de</strong>itado, escutando o radinho <strong>de</strong> pilha, escutando a rádio daqui, nacional,<br />

as FMs <strong>de</strong> Rio Branco, da sul acreana. Lá não tem televisão, a gente fica<br />

escutando isso. Chega as nove horas, estamos dormindo. ‘Amadruga’ a gente<br />

acorda, e começa o trabalho tudo <strong>de</strong> novo.”<br />

Os poucos bens que Seu Pereira adquiriu, como uma pequena casa em Plácido<br />

<strong>de</strong> Castro e as benfeitorias <strong>de</strong> sua colocação na fronteira, foi a partir do seu<br />

trabalho na Bolívia e da venda realizada no lado brasileiro. O que produz é conduzido<br />

por meio <strong>de</strong> barco do Rio Abunã e igarapés adjacentes para o Brasil. Mais<br />

recentemente, com a abertura <strong>de</strong> estradas e ramais, está sendo possível o transporte<br />

por bicicleta.<br />

Além da venda dos seus produtos, Seu Pereira e a mulher atravessam a fronteira<br />

quando precisam fazer algum tratamento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, para passeios e momentos<br />

<strong>de</strong> lazer, para retirar os documentos necessários para registro na Bolívia, comprar<br />

utensílios <strong>de</strong> trabalho e mercadorias <strong>de</strong> subsistência. Pela carência em serviços <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> no lado boliviano, todos os filhos nasceram em território brasileiro, on<strong>de</strong><br />

também foram registrados.<br />

Na Bolívia, <strong>de</strong>ntro da faixa <strong>de</strong> fronteira com o Brasil, Seu Pereira viveu quase<br />

toda a vida. Como estrangeiro, é obrigado a pagar taxas e retirar documentos <strong>de</strong><br />

permanência (taxas <strong>de</strong> estrangeria). Para isso, é necessária a certificação <strong>de</strong> isen-


40 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

ção <strong>de</strong> antece<strong>de</strong>ntes criminais no Brasil, algo que lhe constrange, haja vista a necessida<strong>de</strong><br />

sistemática <strong>de</strong> “provar que não é bandido”. Além disso, para ter o direito<br />

<strong>de</strong> explorar e ven<strong>de</strong>r a borracha é preciso pagar outras taxas e fazer parte <strong>de</strong><br />

uma cooperativa boliviana. Ainda lembra que, caso o indivíduo não possua esses<br />

documentos, “eles pegam você amarrado, quando não joga na fronteira, te levam<br />

para Cobija, a cida<strong>de</strong> mais perto, e lá o senhor vai se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r no consulado, o consulado<br />

que irá te tirar <strong>de</strong> lá”.<br />

Sob a jurisdição boliviana, portanto, essa população fica submetida às normas<br />

vigentes e tensões <strong>de</strong>las <strong>de</strong>correntes, como a cobrança <strong>de</strong> taxas <strong>de</strong> “estrangeria<br />

e a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cobradores <strong>de</strong> rendas e impostos” (MAIA, 2002: 05). A população<br />

camponesa na Bolívia foi “incomodada” pelas autorida<strong>de</strong>s bolivianas, no<br />

sentido <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar a faixa <strong>de</strong> fronteira boliviana, em pelo menos dois momentos <strong>de</strong><br />

maiores tensões. Um foi na década <strong>de</strong> 1990, quando o governo boliviano pôs em<br />

curso um “Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento <strong>de</strong> Pando”, no qual previa o <strong>de</strong>slocamento<br />

<strong>de</strong> trabalhadores <strong>de</strong>sempregados para as “áreas <strong>de</strong>sertas” da Amazônia. O outro se<br />

inicia em 2008, quando o governo <strong>de</strong> Evo Morales tomou diversas iniciativas no<br />

sentido <strong>de</strong> “dinamizar o <strong>de</strong>senvolvimento” na região.<br />

Como ocorre frequentemente nesses <strong>processos</strong> <strong>de</strong> expansão interna <strong>de</strong> fronteiras<br />

econômicas, elas ten<strong>de</strong>m a provocar novos conflitos na região. Destacamos<br />

em particular duas <strong>de</strong>ssas medidas: 1) remoção dos brasileiros que vivem nas terras<br />

situadas na faixa <strong>de</strong> 50 km da fronteira para áreas <strong>de</strong> assentamento na parte<br />

central do Departamento; 2) assentamento <strong>de</strong> 4 mil famílias <strong>de</strong> camponeses oriundas<br />

dos altiplanos nas terras <strong>de</strong> Pando, sendo que cerca <strong>de</strong> 400 famílias já haviam<br />

sido <strong>de</strong>slocadas para esse Departamento no segundo semestre <strong>de</strong> 2009 (PAULA<br />

& MORAIS, 2010).<br />

O incômodo para a população seringueira nos dois momentos é o mesmo: “a<br />

retirada <strong>de</strong>ssa população para áreas fora da faixa <strong>de</strong> fronteira”, pois sair da faixa <strong>de</strong><br />

fronteira significa se distanciar do Brasil, pois atualmente existe todo um fluxo <strong>de</strong><br />

convívio, seja na venda <strong>de</strong> produtos, seja na re<strong>de</strong> familiar, seja no atendimento <strong>de</strong><br />

serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> do lado brasileiro.<br />

No caso das medidas do governo <strong>de</strong> Evo Morales, parte <strong>de</strong>las foi tomada com<br />

a “colaboração” do governo brasileiro, interessado em manter esses camponeses<br />

em território Bolíviano. Contudo, tais atitu<strong>de</strong>s parecem insuficientes para resolver<br />

o problema, dado que esses imigrantes se recusam a sair das áreas que ocupam<br />

para os assentamentos a serem criados em outras localida<strong>de</strong>s do Departamento <strong>de</strong><br />

Pando. É possível perceber, nas entrevistas <strong>de</strong>sses imigrantes publicadas em diversos<br />

meios <strong>de</strong> comunicação no Brasil, que essa resistência tem motivações diversas,<br />

sendo a mais importante aquela relacionada com a territorialida<strong>de</strong>. Isto é, na condição<br />

atual, além <strong>de</strong> permanecerem exercendo suas ativida<strong>de</strong>s ligadas ao<br />

extrativismo, asseguram a continuida<strong>de</strong> das relações sociopolíticas instituídas tanto<br />

do lado brasileiro quanto com o boliviano, e isso lhes proporciona maior seguran-


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 41<br />

ça. Em síntese, pelos seus cálculos, as perdas seriam maiores que os ganhos se aceitassem<br />

as remoções, por isso resistem (PAULA & MORAIS, 2010).<br />

Apesar <strong>de</strong> algumas arbitrarieda<strong>de</strong>s cometidas por autorida<strong>de</strong>s bolivianas, Seu<br />

Pereira diz que sempre esteve satisfeito com o lugar on<strong>de</strong> vive. A situação se alterou<br />

quando partilhou a ameaça <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento compulsório com outras 500<br />

famílias brasileiras, que hoje ocupam terras na faixa da fronteira boliviana, limítrofe<br />

com o estado do Acre. Uma situação <strong>de</strong> irregularida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>flagrou a partir da eleição<br />

<strong>de</strong> Evo Morales à Presidência da República, em 2006, e da aprovação da atual<br />

Constituição Política Boliviana, em 2007. A carta constitucional, promulgada no<br />

governo <strong>de</strong> Morales, ressaltou a proibição da aquisição ou posse <strong>de</strong> terras e o estabelecimento<br />

<strong>de</strong> cidadãos estrangeiros <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua franja fronteiriça, correspon<strong>de</strong>nte<br />

à área <strong>de</strong> 50 quilômetros a partir dos limites nacionais. Dessa forma, todos<br />

os ocupantes nessas condições foram intimados a se retirarem.<br />

A partir <strong>de</strong> então, todos os brasileiros instalados na fronteira receberam convites<br />

para reuniões promovidas pela Organização Internacional <strong>de</strong> Migração (OIM),<br />

para discutir a situação <strong>de</strong> ilegalida<strong>de</strong>. A intermediação da OIM apresentou duas<br />

alternativas, propostas pelas autorida<strong>de</strong>s dos países envolvidos: o <strong>de</strong>slocamento<br />

dos brasileiros para a porção interior do território boliviano, fora da faixa <strong>de</strong> fronteira,<br />

ou o retorno para o Brasil, e a promessa <strong>de</strong> assentamento em colônias pelo<br />

Instituto Nacional <strong>de</strong> Colonização e Reforma Agrária (INCRA). Em ambos os casos,<br />

não há direito à in<strong>de</strong>nização pelas benfeitorias que construíram.<br />

Entre as opções, Seu Pereira prefere voltar ao Brasil. A falta <strong>de</strong> infraestrutura<br />

no interior boliviano e o receio <strong>de</strong> outras intimidações no futuro favoreceram essa<br />

<strong>de</strong>cisão. Enquanto não são apresentados os assentamentos do INCRA, ele continua<br />

a morar na Bolívia, pois não tem perspectiva <strong>de</strong> trabalho e renda em seu país<br />

<strong>de</strong> origem. Acredita que, para arranjar emprego, teria <strong>de</strong> possuir “algum saber e<br />

<strong>de</strong>pois ter a simpatia <strong>de</strong> um empregador, na gíria, ter um pistolão”. Questiona ainda<br />

se “o cara que olhar a sua cabecinha branca vai lhe dar um emprego”.<br />

A partir das notificações, muitas coisas mudaram na vida do Seu Pereira e <strong>de</strong><br />

todos os brasileiros que resi<strong>de</strong>m na zona fronteiriça boliviana. A primeira alteração<br />

se <strong>de</strong>u na interação com os bolivianos, sobretudo as autorida<strong>de</strong>s policiais.<br />

Atualmente, há maior controle da entrada e saída <strong>de</strong> produtos e pessoas do país,<br />

além <strong>de</strong> aumento nas taxas e impostos. Dona Maria das Graças conta um episódio<br />

que a <strong>de</strong>ixou constrangida:<br />

“Esses dias mesmo, quando eu estava passando por lá, ficaram mangando com<br />

a minha cara. O meu filho foi me <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> moto e pediu para <strong>de</strong>ixar a gente<br />

passar. Eles não <strong>de</strong>ixaram não, eu tinha que pagar vinte reais para ir e voltar.<br />

Para tirar documento, só para ir lá e voltar. Para passar três meses, noventa dias,<br />

tinha que pagar cinquenta reais (...). A gente já ganha pouco, né? E o meu<br />

menino disse: ‘E agora, mãe, o que você vai fazer?’ Eu fiquei por lá, vou mes-


42 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

mo que seja a pé. Uns bolivianos entraram lá para <strong>de</strong>ntro e pediram para eu<br />

pagar <strong>de</strong>z reais. Eu paguei os <strong>de</strong>z reais. Mas é assim, pra passar, tem que pagar.<br />

Se você passar com produto <strong>de</strong> lá para cá, eles querem apreen<strong>de</strong>r, fazem uma<br />

confusão danada. (...) nos dias que uma equipe não é muito exigente, ainda<br />

passa bem, tem dia que eles reviram tudo, tudinho, ver o que tem <strong>de</strong>ntro.”<br />

Porém, as atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maior coação acontecem no momento da aferição das<br />

áreas on<strong>de</strong> moram. Embora o prazo <strong>de</strong> <strong>de</strong>socupação tenha se estendido, Seu Pereira<br />

conta que a terra foi examinada várias vezes e, no momento em que “me<strong>de</strong>m a<br />

proprieda<strong>de</strong>, dizem que a terra é <strong>de</strong>les, e que se quisermos ficar a gente tem que<br />

entrar cinquenta quilômetros”. A partir <strong>de</strong> então, parou <strong>de</strong> plantar, com receio <strong>de</strong><br />

per<strong>de</strong>r a colheita.<br />

A situação <strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong> aumenta em virtu<strong>de</strong> da lentidão das providências<br />

prometidas no Brasil. Des<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> 2007, foram entregues apenas onze<br />

casas e lotes <strong>de</strong> assentamento para um universo <strong>de</strong> 250 famílias cadastradas. Dona<br />

Maria das Graças <strong>de</strong>screve alguns passos <strong>de</strong>ssa situação:<br />

“Iam entregar no mês passado, não era? E até agora não entregaram nem nada.<br />

E nós estamos esperando ver se vai sair. Eu ainda estou com medo <strong>de</strong> que não<br />

vai sair. Que não vamos pegar (...). Quando eles falaram da primeira vez que<br />

tinha que tirar, tive que arrancar tudo, com galinha, porco... Ven<strong>de</strong>mos tudo,<br />

e até agora não recebemos. Vaca que ven<strong>de</strong>mos com cem quilos até agora o<br />

cara não pagou. Com uma porca com oitenta quilos aconteceu a mesma coisa.<br />

Tudo é prejuízo para a gente. A gente é pobre, né? Hoje eu tenho umas<br />

galinhazinhas aqui [na casa em Plácido <strong>de</strong> Castro]. Minha vizinha é boa, mas<br />

as galinhas não po<strong>de</strong>m passar para o quintal alheio. O pessoal diz: ‘ah, não<br />

po<strong>de</strong>, está acabando com as minhas plantas!’. Que eles estão plantando. Diferente<br />

da colônia, que a gente po<strong>de</strong> plantar e criar, né? Hoje eu estou velha,<br />

não tenho como arranjar emprego. Eu já fui à prefeitura procurar emprego com<br />

o Paulinho, o prefeito daqui, mas não consegui. Só ganha quem já é empregado,<br />

quem não tiver emprego não ganha, ainda mais velha como eu. [...] aí, estou<br />

esperando isso, mas estou com medo <strong>de</strong> não ganhar. Porque, lá no seringal, a<br />

gente botamo até um roçado lá, esse ano ainda. O ano passado, o pessoal só<br />

plantou milho, um pedaço <strong>de</strong> roça. Porque fica aquela confusão, você não sabe<br />

se vai sair, sem nada. Não tem mais o que comer. A gente não sabe se vai ter<br />

que sair, se vai sair as colônias, a gente fica com cara pra cima. Muito difícil.”<br />

Nesse ínterim, Seu Pereira sente que terá dificulda<strong>de</strong>s na adaptação caso<br />

consiga o assentamento pelo INCRA, pois nunca usou a agricultura para constituir<br />

renda, apenas para a subsistência <strong>de</strong> sua família. A terra do lado brasileiro (do<br />

lado <strong>de</strong> cá) lhe parece seca, pisada por cavalos e bois. Há restrição <strong>de</strong> água e já está<br />

dividida em hectares. Ao mesmo tempo, o clima é muito mais quente em Plácido<br />

<strong>de</strong> Castro, pois não há a proteção e a sombra das árvores da floresta. Para garantir


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 43<br />

a produção, será necessário obter financiamento junto a bancos e garantir a venda<br />

<strong>de</strong> produtos com os quais não está acostumado a lidar. Situação bastante diferente<br />

da Bolívia, como conta:<br />

“Chega lá no mato agora, <strong>de</strong>senterra e o solo vai estar molhado. Aqui vai estar<br />

enxuto, vai estar seca, a água vai estar embaixo. Lá não, perto tem um<br />

igarapezinho, a terra não seca <strong>de</strong> jeito nenhum. Vai lá e toma um banho que é<br />

uma beleza, porque é <strong>de</strong>ntro da mata. Lá não tem negócio <strong>de</strong> banheiro, po<strong>de</strong><br />

se embrenhar no meio do mato e você toma banho livre ali, é tudo família,<br />

quando vai um homem tomar banho lá, diz pra mulher não ir para lá, porque<br />

tem um homem ali tomando banho: ‘num vai não que fulano tá tomando banho<br />

lá’. (...) é viver com Deus, vivendo com a natureza. Aqui num tem isso, aqui é<br />

um calor danado, se você anda daqui uns cinco quilômetros para lá você sente<br />

diferença no clima, começa a esfriar. Se você for lá em casa, sem levar uma<br />

coberta, você não dorme pelo frio. E aqui não faz frio. Você tem que ter aqui<br />

um ventilador. São assim as nossas maneiras, é acordar todos os dias com os<br />

passarinhos.”<br />

A violência e a intranquilida<strong>de</strong> na cida<strong>de</strong> são outras preocupações <strong>de</strong>stacadas.<br />

Ao contrário da casa na Bolívia, on<strong>de</strong> o casal dorme com portas e janelas abertas,<br />

em Plácido <strong>de</strong> Castro se sentem inseguros:<br />

“Aqui a gente tem medo <strong>de</strong> um ladrão, <strong>de</strong> alguma coisa. Qualquer toada a gente<br />

fica nervoso, lá não. Fecha o quartinho e vai dormir. Acorda às quatro horas<br />

para tomar um café, senta lá na cozinha, bebe, toma, faz um prato <strong>de</strong> comida,<br />

come e vai trabalhar.”<br />

Outra questão que causa estranhamento é a falta <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> e a relação<br />

com a vizinhança. Maria das Graças acredita que não irá se costumar com o barulho<br />

dos vizinhos e das ruas. Ao mesmo tempo, sente-se sujeitada por não po<strong>de</strong>r<br />

criar os seus animais e compara com a realida<strong>de</strong> que tinha na Bolívia:<br />

“(...) não tem cerca <strong>de</strong> arame, divisão com vizinho, e a gente passa as estradas;<br />

<strong>de</strong> um lado passa a <strong>de</strong>le, do outro lado passa a minha, essa é a divisão, não<br />

essa briga, essa cerca <strong>de</strong> arame, e nem autorida<strong>de</strong> para dizer: ‘isso aqui é teu’.<br />

Lá mesmo nós medimos uns com os outros, sem problema nenhum, e assim a<br />

gente vai botando a nossa vida lá <strong>de</strong>ntro.”<br />

Diante do quadro relatado pelo Seu Pereira e sua mulher, somos apresentados<br />

a um duplo impasse. Ao mesmo tempo em que são ‘convidados’ a se retirarem<br />

do lugar on<strong>de</strong> vivem há décadas, não são apresentadas condições imediatas para a<br />

sua reinserção no Brasil, ou seja, é negada a territorialida<strong>de</strong> em ambos os países.<br />

A população brasileira camponesa na Bolívia, segundo o Censo realizado pela<br />

OIM (2009), é <strong>de</strong> 1.254 pessoas em um total <strong>de</strong> 347 famílias. Na Figura 1, os pontos<br />

pretos às margens dos rios representam as casas dos seringueiros brasileiros. Os


44 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

brasileiros que vivem na Bolívia, alvo do Censo da OIM, apresentaram os seguintes<br />

temores quanto ao reassentamento em terras bolivianas fora da faixa <strong>de</strong> fronteira:<br />

que não sejam criados mecanismos jurídicos para a legalização dos lotes<br />

entregues e que não se regularizem as posses do solo. Temem também que o Estado<br />

boliviano e o Estado brasileiro não assumam os compromissos estabelecidos nos<br />

acordos bilaterais e que sejam abandonados no novo assentamento.<br />

Figura 1 Localização das famílias seringueiras-brasileiras na faixa<br />

<strong>de</strong> fronteira boliviana. Fonte: OIM, 2009.<br />

Os <strong>de</strong>poimentos abaixo são <strong>de</strong> famílias seringueiras que vivem o impasse <strong>de</strong><br />

ser reassentadas no Pando e no Acre. A família <strong>de</strong> Maria Abreu foi morar na Bolívia<br />

por falta <strong>de</strong> terra para trabalhar no Brasil. Na Bolívia, eles encontraram “terra<br />

com fartura”, o que era escasso no Acre. E com a força do trabalho, baseado na<br />

produção extrativista e agricultura familiar, construíram moradia e criaram filhos<br />

e netos. Ela relatou que a i<strong>de</strong>ia era morar na Bolívia a vida toda, no entanto, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

janeiro <strong>de</strong> 2010, está morando na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Plácido <strong>de</strong> Castro, AC, e os frutos do<br />

trabalho ficaram em solo boliviano. Conseguiram ven<strong>de</strong>r somente o gado por um<br />

valor irrisório, o qual investiram em um pequeno casebre na periferia da cida<strong>de</strong>. A<br />

família fez o cadastro no Sindicato dos Trabalhadores Rurais visando ser beneficiada<br />

através da política <strong>de</strong> assentamento do INCRA e encontra-se à “mercê da sor-


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 45<br />

te”. Dona Maria Abreu nos relatou sobre a sua vida na Bolívia e as tensões <strong>de</strong> viver<br />

no outro lado da fronteira:<br />

“Meu pai me levou para Bolívia, eu tinha 2 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> (...) tenho 53 anos,<br />

casei lá, <strong>de</strong>pois vim para o Brasil, morei na beira da estrada 2 anos, <strong>de</strong>pois voltei<br />

para Bolívia (...) tenho 8 filhos (...). Nóis tava bem no Cumuru, meu marido<br />

tinha roçado, cortava seringa, quebrava castanha, tinha casa <strong>de</strong> farinha, paiol,<br />

criava gado, capote, pato, porco, meu marido não acostuma aqui [Plácido <strong>de</strong><br />

Castro], ele gostaria <strong>de</strong> voltar... o nosso gado nós ven<strong>de</strong>mo pro Fred, pra comprar<br />

uma casinha [Plácido <strong>de</strong> Castro]. Eu saí porque eu tava com medo <strong>de</strong> uma<br />

guerra, porque o pessoal tava dizendo que ia cortar a ponte (...) Toda semana<br />

passava um boliviano dizendo que tinha que fazer assentamento e passar os<br />

brasileiros para <strong>de</strong>ntro da Bolívia. Tem 30 famílias que vão pra <strong>de</strong>ntro da Bolívia,<br />

mas eu tomo medicamento controlado e não posso morar em lugar distante<br />

se não eu vou morrer logo.”<br />

Dona Maria Abreu, ao relatar momentos <strong>de</strong> sua vida, enfatizou todas as conquistas<br />

adquiridas com o fruto do trabalho <strong>de</strong> sua família, se emocionou e afirmou<br />

que não aceitou a<strong>de</strong>ntrar a Bolívia por sofrer <strong>de</strong> patologia crônica, portanto,<br />

necessita morar em local que possa ter acesso à saú<strong>de</strong>. Na fronteira, sempre que<br />

precisava, recorria à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Plácido <strong>de</strong> Castro. Como a i<strong>de</strong>ia do governo boliviano<br />

é que a fronteira seja habitada somente por bolivianos, muitos brasileiros temem<br />

penetrar a Amazônia boliviana e, assim, ficar mais longe do Brasil.<br />

A proposta do INCRA é evi<strong>de</strong>nciada através da matéria do site <strong>de</strong> notícias<br />

Agência Brasil, intitulada: “Incra no Acre elabora plano para assentar agricultores<br />

brasileiros da fronteira boliviana”, publicada no dia 15 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2007, que<br />

diz o seguinte:<br />

“[...] Como o quadro se aguçou antes <strong>de</strong> concluirmos qualquer <strong>de</strong>sapropriação<br />

e muitas famílias já estão acampadas em Brasileia, temos a opção<br />

emergencial <strong>de</strong> levá-las para o município <strong>de</strong> Lábrea, no sul do Amazonas, diz<br />

o superinten<strong>de</strong>nte do INCRA. Segundo ele, a área amazonense está em meio<br />

à floresta e é muito gran<strong>de</strong>, i<strong>de</strong>al para abrigar famílias que se <strong>de</strong>dicam<br />

ao extrativismo. A opção seria emergencial, por serem áreas griladas, po<strong>de</strong>riam<br />

ser mais rapidamente <strong>de</strong>sapropriadas. Outra alternativa, <strong>de</strong> acordo com<br />

Cardoso, seria obter terras no próprio Acre, o que <strong>de</strong>moraria mais” (O Estado<br />

do Acre, 22/10/2007, grifos nossos).<br />

Nessa reportagem nos chama atenção o <strong>de</strong>scompromisso do INCRA com a<br />

territorialida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa população camponesa, uma vez que fala <strong>de</strong> reassentá-los em<br />

Lábrea, AM. Essa população, como os dados da OIM revelam, teme exatamente<br />

isto: serem assentados em locais muito distantes e sem acesso à faixa <strong>de</strong> fronteira


46 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

do Acre. Em data mais recente, o INCRA tem falado em reassentar essas famílias<br />

nos projetos <strong>de</strong> assentamentos relacionados no Quadro 2.<br />

Quadro 2 Distribuição das famílias que serão assentadas.<br />

Município Projeto <strong>de</strong> Assentamento N o <strong>de</strong> Famílias<br />

Capixaba Campo Alegre e nas áreas I, II e III 180<br />

Bujari Canari 177<br />

Brasileia Porto Carlos 100<br />

Plácido <strong>de</strong> Castro Triunfo 86<br />

Xapuri PA 05<br />

Rio Branco Baixa Ver<strong>de</strong> 01<br />

Brasileia Santa Quitéria 01<br />

Total 550<br />

Fonte: Dados da entrevista com o INCRA e org. por Mariette Espíndola.<br />

Vejamos o relato <strong>de</strong> um produtor extrativista, morador da faixa <strong>de</strong> fronteira,<br />

quando se perguntou por que sua família foi morar na Bolívia:<br />

“Bom, fui pra Bolívia quando tinha acho que uns 4 a 5 anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>, meu pai<br />

me levou, (...) meu tempo é trabalhando <strong>de</strong>ntro da Bolívia, [<strong>de</strong>s<strong>de</strong>] a minha<br />

infância, (...) minha família me criou lá, eu me adaptei e hoje vivo lá ainda<br />

(...). Fui em 1970, hoje tenho 43 anos, moro na Bolívia na média <strong>de</strong> 38 anos.<br />

O motivo que levou meus pais morar na Bolívia é que aqui, nessa época, a<br />

produção que se via mais falar era borracha, né, e como na Bolívia tinha muito<br />

seringal bom que ainda hoje tem, mas tá tudo abandonado, e com a produção<br />

da borracha a gente permaneceu bem dizer até hoje (...) eu e minha esposa<br />

a gente se conheceu lá, morava no mesmo seringal e a gente se casou há 25<br />

anos (...). O que levou muito brasileiro pra Bolívia é porque o INCRA cortou<br />

as terras, acabou os seringais e não tinha sobrevivência aqui, e os brasileiros<br />

foram tudo entrando para Bolívia (...) meu pai foi para Bolívia através dum<br />

tio meu que já era dono <strong>de</strong> seringais lá <strong>de</strong>ntro. (...) Lá, eu tenho mais <strong>de</strong> dois<br />

mil hectares <strong>de</strong> terra, vivo da seringa, castanha, açaí, tenho um pequeno roçado<br />

e crio umas cabeças <strong>de</strong> gado” (Sebastião Vieira).<br />

Durante a pesquisa <strong>de</strong> campo, as famílias entrevistadas foram unânimes em<br />

afirmar que não gostariam <strong>de</strong> retornar ao Brasil, uma vez que foi na Bolívia que<br />

eles concretizaram o sonho da “terra farta”, on<strong>de</strong> muitos viram seus filhos nascerem<br />

e crescerem. Porém, mesmo tendo filhos nascidos em solo boliviano, não conseguiram<br />

permanecer nessa terra.


Cap. II Fronteiras e Mobilida<strong>de</strong> Territorial: trajetórias <strong>de</strong> famílias seringueiras na região... 47<br />

Cabe frisar que o camponês Sebastião ainda mora na Bolívia; foi um dos<br />

brasileiros que assistiu ao nascimento <strong>de</strong> seus filhos em solo boliviano e, mesmo<br />

tendo dois <strong>de</strong> seus cinco filhos registrados naquele país, não conseguiu a legalização<br />

da terra. Ele disse que não tem pressa <strong>de</strong> sair, vai aguardar o diálogo com a<br />

equipe da Organização Internacional para as Migrações (OIM), pois a quantida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> terra (em torno <strong>de</strong> 10 hectares) cogitada por família assentada no Brasil não<br />

lhe agradou. Segundo ele, o seringueiro “acostumado com a floresta, a trabalhar<br />

em gran<strong>de</strong>s lotes <strong>de</strong> terra, jamais vai se contentar ser plantador <strong>de</strong> verdura”.<br />

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES<br />

As migrações ten<strong>de</strong>m a seguir caminhos: <strong>de</strong> lugares que apresentam perspectivas<br />

<strong>de</strong> instabilida<strong>de</strong>, estagnação ou empobrecimento, para lugares que apresentam<br />

perspectivas <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, crescimento e melhores condições <strong>de</strong> vida.<br />

O estar em um lugar é um conjunto <strong>de</strong> condições <strong>sociais</strong> <strong>de</strong> sobrevivência,<br />

um conjunto social para que o indivíduo se sinta aceito. Em termos <strong>sociais</strong>, o estar<br />

passa a ser condição para ser social. Ora, se não há espaço geográfico que se viabilize<br />

enquanto espaço social para ele se exercitar, o que está em xeque é sua própria<br />

existência social. Dentro do contexto imposto, o extrativista acreano está fadado a<br />

não conseguir mais ser, pois não conseguirá estar em lugar nenhum´mais.<br />

Aliás, não é por acaso que Martins (1989) avalia que, ao contrário do trabalhador<br />

assalariado, para o camponês, o trabalho não aparece como trabalho abstrato,<br />

um exercício equivalente ao dinheiro, pois a esse grupo social o trabalho aparece<br />

como trabalho concreto, no usufruto da sua colheita, no laboro e na coesão da sua<br />

família, condição direta <strong>de</strong> sua existência. A expropriação, mesmo que dissimulada<br />

por mecanismos legais, aparece-lhe “como ato iníquo, visto que é sempre violento<br />

e compromete a sua sobrevivência. Porque o priva do que é seu – o seu<br />

trabalho, meio e instrumento <strong>de</strong> sua dignida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> pessoa”<br />

(MARTINS, 1989: 90).<br />

Ao mesmo tempo, cada processo <strong>de</strong>senraizador sugere consequências funcionais<br />

e psicos<strong>sociais</strong>, e viabiliza a retirada daquilo que Gid<strong>de</strong>ns (1991) <strong>de</strong>nomina<br />

como “segurança ontológica”, que se refere à crença que a maioria dos seres humanos<br />

tem na continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua autoi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e na constância dos ambientes <strong>de</strong><br />

ação social e material circundantes. Uma sensação da fi<strong>de</strong>dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas e<br />

coisas, tão central à noção <strong>de</strong> confiança, é básica nos sentimentos <strong>de</strong> segurança<br />

ontológica; daí os dois serem relacionados psicologicamente <strong>de</strong> forma íntima. A<br />

segurança ontológica tem a ver com “ser” ou, nos termos da fenomenologia, “serno-mundo”.<br />

Mas trata-se <strong>de</strong> um fenômeno emocional ao invés <strong>de</strong> cognitivo, e está<br />

enraizado no inconsciente (GIDDENS, 1991: 84). A segurança ontológica no mundo<br />

pré-mo<strong>de</strong>rno tem <strong>de</strong> ser compreendida em primeiro lugar em relação a contextos<br />

<strong>de</strong> confiança, e formas <strong>de</strong> risco ou perigo, fixos às circunstâncias do lugar. Devido


48 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

à sua conexão inerente com a ausência, a confiança está sempre vinculada a modos<br />

<strong>de</strong> organizar interações “fi<strong>de</strong>dignas” através do tempo-espaço (op. cit., p. 91).<br />

Nesse sentido, para a população seringueira, atravessar a fronteira do Acre<br />

com a Bolívia não foi a mais dolorosa vivência <strong>de</strong> tais grupos, em termos <strong>de</strong> sua<br />

afirmação i<strong>de</strong>ntitária no modo <strong>de</strong> vida extrativista, uma vez que o mesmo está confrontado<br />

com um <strong>de</strong>safio ainda maior, que é a expulsão dos brasileiros resi<strong>de</strong>ntes<br />

na fronteira como política <strong>de</strong> segurança nacional e afirmação <strong>de</strong> soberania por parte<br />

da Bolívia.<br />

O Programa <strong>de</strong> Reassentamento do Governo Boliviano tem por objetivo criar<br />

oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “reasentamiento económicamente sustentables y socialmente dignas<br />

en território boliviano, <strong>de</strong> los brasileros vulnerables que habitan tierras, en la<br />

franja <strong>de</strong> los 50 kilómetros <strong>de</strong> la frontera en el Departamento <strong>de</strong> Pando” (OIM, 2009:<br />

08), os quais se <strong>de</strong>dicam à ativida<strong>de</strong> florestal e/ou à pequena agricultura. No entanto,<br />

os brasileiros seringueiros vivem o dilema <strong>de</strong> permanecerem na Bolívia, o que<br />

significa mudar-se para áreas fora da faixa <strong>de</strong> fronteira e ter suas vidas nela refeitas<br />

ou regressar ao Brasil nas condições postas até o momento pelo governo brasileiro,<br />

cujo sentido é <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong> e <strong>de</strong> insegurida<strong>de</strong> daí <strong>de</strong>corrente.<br />

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ENTREVISTAS<br />

Chola Manchineri, Chefe <strong>de</strong> Posto da FUNAI <strong>de</strong> Assis Brasil, realizada por Alessandra<br />

Severino da Silva Manchinery em 2010 e em 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2011.<br />

Toya Manchineri, primeiro Coor<strong>de</strong>nador da Organização Manchineri – MAPKAHA, e<br />

representante do Conselho Nacional <strong>de</strong> Políticas Indígenas no Acre – CNPI, realizada por<br />

Alessandra Severino da Silva Manchinery em 2010.<br />

Jaime Sebastião Luhlu Prishico Manchineri, realizada por Alessandra Severino da Silva<br />

Manchinery, em 14 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2011.<br />

Zé Urias Manchineri, realizada por Alessandra Severino da Silva Manchinery, em 17/10/<br />

2010, em 11/01/2011, em 15/02/2011, em 26/02/2011 e em 04/06/2011.<br />

Francisco Pereira Sobrinho, realizada por Diego Correa em setembro <strong>de</strong> 2010.<br />

Maria das Graças, realizada por Diego Correa em setembro <strong>de</strong> 2010.<br />

Maria Abreu, realizada por Mariette Espindola em 16 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010.<br />

Sebastião Vieira, realizada por Mariette Espindola em 16 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010.


PARTE II<br />

TRABALHO, TERRITÓRIO E<br />

CONFLITOS SOCIAIS


CAPÍTULO III<br />

CONFLITOS SOCIAIS NA PESCA EM AMBIENTES<br />

LACUSTRES, RIOS E MARES:<br />

a luta entre os pescadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro<br />

INTRODUÇÃO<br />

e os pescadores <strong>de</strong> fora<br />

Antônio Carlos Witkoski<br />

Norma Valencio<br />

Pedro Rapozo<br />

Ilunilson dos Santos Paquete Fernan<strong>de</strong>s *<br />

Os conflitos <strong>sociais</strong> entre os indivíduos na instituição da socieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m<br />

ser compreendidos como fenômenos socialmente construídos. Na teoria sociológica<br />

clássica <strong>de</strong> Marx (2004), por exemplo, os conflitos <strong>sociais</strong> aparecem como<br />

aspectos fundamentais da luta socioeconômica e política entre os indivíduos <strong>de</strong><br />

classes <strong>sociais</strong> antagônicas articuladas (ou não) às frações <strong>de</strong> classes, configurando<br />

o próprio fundamento do po<strong>de</strong>r que assegura (ou <strong>de</strong>veria assegurar) a produção<br />

material e simbólica da vida.<br />

Na perspectiva <strong>de</strong> Weber (1991), os conflitos <strong>sociais</strong> aparecem como expressão<br />

máxima das relações circunscritas no âmago da socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna, isto é, como<br />

formas <strong>de</strong> luta social marcadas por intencionalida<strong>de</strong>s relacionadas às quatro formas<br />

clássicas <strong>de</strong> ação social. Para Weber (1991), a luta social integra as relações<br />

<strong>sociais</strong> entre os indivíduos, contendo múltiplos significados e formas, po<strong>de</strong>ndo<br />

envolver números ilimitados <strong>de</strong> indivíduos. A luta social ocorre por meio da ação<br />

social dos indivíduos que interagem, provocando tensões <strong>sociais</strong>, quando a natureza<br />

social da interação é marcada por antagonismos.<br />

Numa perspectiva sociológica próxima à <strong>de</strong> Weber, Simmel (1983) fundamentou<br />

<strong>de</strong> maneira inovadora a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o conflito social não contém apenas<br />

elementos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sagregação, mas também age positivamente na medida em que<br />

produz uma sociação entre os indivíduos, isto é, uma cooperação com forças<br />

unificadoras. Para ele, toda interação entre os indivíduos produz sociação, logo, o<br />

conflito <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rado uma sociação. Nas palavras do autor, “o conflito po<strong>de</strong><br />

* Apoio: FAPESP.


54 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

não só elevar a concentração <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> já existente, eliminando radicalmente<br />

todos os elementos que possam obscurecer a clareza <strong>de</strong> seus limites com o inimigo,<br />

como também po<strong>de</strong> aproximar pessoas e grupos, que <strong>de</strong> outra maneira não<br />

teriam qualquer relação entre si” (SIMMEL, 1983: 157). Os conflitos <strong>sociais</strong>, nessa<br />

perspectiva, ten<strong>de</strong>riam à missão <strong>de</strong> resolver divergências com relação à maneira <strong>de</strong><br />

reconstruir unida<strong>de</strong>s perdidas, ainda que pelo meio <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> uma das partes<br />

envolvidas.<br />

Com o <strong>de</strong>senvolvimento do processo civilizatório e das práticas<br />

socioeconômicas e político-culturais a ele correspon<strong>de</strong>ntes – e aqui não queremos<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar as reflexões clássicas –, embora os conflitos <strong>sociais</strong> estruturem o modo<br />

<strong>de</strong> vida civilizacional, eles passaram a ter centralida<strong>de</strong> relativa no mundo da vida,<br />

instituindo configurações <strong>sociais</strong> extremamente heterogêneas <strong>de</strong> práticas mundanas<br />

– o que será evi<strong>de</strong>nciado no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> nossa narrativa.<br />

Esta pesquisa propõe-se a investigar uma das modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conflitos <strong>sociais</strong>,<br />

isto é, aquelas que se <strong>de</strong>senvolvem no âmbito das relações dos homens entre<br />

si, e as formas <strong>de</strong> acesso/uso dos recursos naturais, fenômeno social que parece ser<br />

cada vez mais central/universal em razão dos <strong>processos</strong> socioprodutivos que não<br />

têm consi<strong>de</strong>rado o tempo <strong>de</strong> produção da própria natureza – aliás, o que tem comprometido<br />

a vida na Terra.<br />

“A superexploração dos recursos [naturais], a <strong>de</strong>gradação do ambiente e a expropriação<br />

das populações autóctones têm sido resultado da racionalida<strong>de</strong><br />

econômica que tem expulsado a natureza do campo da produção e<br />

<strong>de</strong>sterritorializado – marginalizado, quando não exterminado – as populações<br />

indígenas [ribeirinhas, quilombolas etc.]. A capitalização da natureza e a<br />

economicização do mundo vêm <strong>de</strong>struindo as bases ecológicas da produção e<br />

subjugando culturas. Daí surge o propósito <strong>de</strong> incorporar os valores e potenciais<br />

da natureza para gerar um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento [alternativo ao<br />

<strong>de</strong>senvolvimento hegemônico]” (LEFF, 2006: 463).<br />

Conforme Little (2004), os conflitos socioambientais po<strong>de</strong>m ser pensados/classificados<br />

a partir <strong>de</strong> três gran<strong>de</strong>s tipologias: (1) em torno do controle dos recursos<br />

naturais disponíveis; (2) com relação a impactos gerados pela ação humana, sendo<br />

estes <strong>sociais</strong> e/ou ambientais; por fim, (3) a partir <strong>de</strong> valores e modos <strong>de</strong> vida divergentes<br />

ou ainda <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias não consensuais. Para o autor, é interessante refletir<br />

sobre o que está em jogo nas mediações <strong>de</strong>sses conflitos, quando consi<strong>de</strong>ramos a<br />

i<strong>de</strong>ntificação e análise dos agentes <strong>sociais</strong> e dos interesses presentes na disputa.<br />

Quando um ou mais indivíduos utilizam-se dos mesmos ambientes – por<br />

exemplo, lagos, partes do rio e mares –, predispondo-se a usá-los dando-lhes significações<br />

singulares às suas formas <strong>de</strong> uso, isso implica a instituição <strong>de</strong> regras <strong>de</strong><br />

uso coletivo e, mais do que isso, a internalização das regras estabelecidas pelos<br />

agentes <strong>sociais</strong> envolvidos. Nas práticas <strong>sociais</strong> <strong>de</strong> sua utilização entram em jogo


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 55<br />

as formas pelas quais os ambientes são socialmente constituídos por meio <strong>de</strong> suas<br />

representações <strong>sociais</strong> (JODELET, 2001). Assim, as relações <strong>sociais</strong> estabelecidas<br />

em função da apropriação <strong>de</strong> ambientes <strong>de</strong> uso coletivo possibilitam a compreensão<br />

da interação dos indivíduos na constituição dos espaços <strong>sociais</strong>. Bourdieu<br />

(2003) nos ajuda a pensar esse contexto: os espaços <strong>sociais</strong> são produzidos a partir<br />

da posição relativa que <strong>de</strong>terminados agentes <strong>sociais</strong> ocupam perante outros<br />

agentes <strong>sociais</strong>, <strong>de</strong>finindo, <strong>de</strong>ssa forma, a exclusão mútua (ou a distinção) das<br />

posições que constituem a luta – isto é, a estrutura <strong>de</strong> justaposição e/ou <strong>de</strong> antagonismos<br />

das posições <strong>sociais</strong>. A estrutura do espaço social manifesta-se, assim, nos<br />

mais diversos contextos, sob a forma <strong>de</strong> oposições, funcionando o espaço apropriado<br />

como uma espécie <strong>de</strong> simbolização do espaço social.<br />

Neste estudo, a relação entre a estrutura espacial da distribuição dos agentes<br />

– os pescadores – e a distribuição dos recursos naturais a serem alcançados darse-á<br />

em função da luta pelo acesso e uso do estoque ictiofaunístico, isto é, do<br />

conjunto <strong>de</strong> peixes que vivem em certo ambiente ou região ecológica – no caso<br />

pesquisado, em ambientes lacustres, rio e mares. As divergências com relação às<br />

formas <strong>de</strong> acesso e uso dos ambientes aquáticos e seus frutos – o peixe – têm gerado<br />

conflitos <strong>sociais</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância sociológica. Bourdieu (2003) nos ajuda<br />

aqui, novamente na reflexão, quando argumenta que subjaz inscrito ao espaço social,<br />

ao mesmo tempo, as estruturas espaciais e as mentais. Para ele, por um lado, a síntese<br />

<strong>de</strong> ambas é o produto da incorporação das estruturas e, <strong>de</strong> outro, o espaço<br />

apresenta-se como lócus on<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r se afirma por meio <strong>de</strong> sua forma mais sutil<br />

<strong>de</strong> luta – isto é, através da violência simbólica como violência não percebida.<br />

Este trabalho objetiva subsidiar a reflexão sobre o tema a partir da <strong>de</strong>scrição<br />

e análise <strong>de</strong> três casos em que pescadores, no seu contexto <strong>de</strong> trabalho em<br />

ecossistemas aquáticos <strong>de</strong> lago, rio e mar, passam a se confrontar com outros sujeitos<br />

e racionalida<strong>de</strong>s que paulatinamente inviabilizam seu modo <strong>de</strong> vida. Os casos<br />

investigados estão espacialmente contextualizados em ambientes lacustres e no rio<br />

Solimões, no estado do Amazonas; no rio São Francisco, no estado <strong>de</strong> Minas Gerais;<br />

e em São Tomé e Príncipe, África.<br />

CONFLITOS SOCIAIS NA PESCA EM AMBIENTES LACUSTRES<br />

E NO RIO SOLIMÕES<br />

Na produção social <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>s da pesca <strong>de</strong> subsistência e comercial,<br />

nos lagos e no rio Solimões, a prática social convergente e/ou divergente do uso<br />

dos recursos ictiofaunísticos engendra, em muitos casos, conflitos <strong>sociais</strong>, principalmente<br />

quando os mecanismos <strong>de</strong> controle e regulação das pescarias não estão<br />

<strong>de</strong>vidamente internalizados pelos indivíduos que a praticam, logo, sujeito às sanções<br />

<strong>sociais</strong> do grupo.<br />

Em situações como as da diminuição <strong>de</strong> espécies que possuem um bom preço<br />

no mercado da pesca, acirram-se as contradições no uso comum dos ambientes


56 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

territorialmente constituídos; a opção <strong>de</strong> certos apetrechos em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> outros<br />

– por exemplo, malha<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> curto alcance versus arrastões <strong>de</strong> peixes <strong>de</strong> fundo;<br />

e as estratégias <strong>de</strong> captura do pescado tencionando as relações <strong>sociais</strong> entre os<br />

pescadores. Os conflitos <strong>sociais</strong> pelo acesso aos principais ambientes <strong>de</strong> pesca –<br />

tanto <strong>de</strong> subsistência quanto comercial – <strong>de</strong>monstram a natureza antagônica das<br />

relações <strong>sociais</strong> do trabalho na pesca e a disputa/controle <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados ambientes<br />

– o que não <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um indicativo relevante dos traços configurativos da<br />

dinâmica da pesca na região.<br />

Dimensões cruciais dos conflitos <strong>sociais</strong> po<strong>de</strong>m ser expressas por meio dos<br />

<strong>de</strong>poimentos obtidos dos pescadores da comunida<strong>de</strong> Nossa Senhora das Graças,<br />

quando se toma, por referência, os principais pontos <strong>de</strong> pesca 1 consi<strong>de</strong>rados pelos<br />

moradores locais. A disputa pelo acesso aos recursos pesqueiros evi<strong>de</strong>ncia as formas<br />

<strong>de</strong> organização dos espaços <strong>sociais</strong> da pesca, principalmente, embora não exclusivamente,<br />

pela apropriação dos recursos ictiofaunísticos para fins comerciais.<br />

A territorialida<strong>de</strong> produzida pela pesca comercial <strong>de</strong>monstra aspectos <strong>de</strong>cisivos<br />

or<strong>de</strong>nados pela compreensão dos grupos locais a respeito dos sistemas abertos e<br />

fechados <strong>de</strong> acesso e uso dos ambientes pesqueiros. Isso significa que os espaços<br />

<strong>de</strong> pesca constituídos socialmente, além <strong>de</strong> possuírem regras <strong>de</strong> acesso comuns aos<br />

agentes envolvidos, produzem e reproduzem representações <strong>sociais</strong> com relação à<br />

forma <strong>de</strong> acesso, uso e controle <strong>de</strong> acordo com a maneira pela qual os ambientes<br />

são apropriados.<br />

O lago, por exemplo, ten<strong>de</strong> a ser consi<strong>de</strong>rado um ambiente <strong>de</strong> apropriação<br />

endógena <strong>de</strong> uma ou mais comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acordo com sua dimensão socioespacial,<br />

o que <strong>de</strong>fine a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obtenção dos recursos ictiofaunísticos nele disponíveis<br />

e sua finalida<strong>de</strong>, geralmente para subsistência, representando, por excelência,<br />

o sistema fechado <strong>de</strong> uso, estando, portanto, muitíssimo mais restrito ao uso individual<br />

dos agentes <strong>sociais</strong> envolvidos.<br />

No caso dos rios, costas <strong>de</strong> rios e paranás – isto é, ambientes <strong>de</strong> pesca “públicos”<br />

–, a apropriação é resultado <strong>de</strong> modos particulares <strong>de</strong> organização social – tal<br />

como ocorre na pesca <strong>de</strong> vez –, 2 nas formas <strong>de</strong> acesso e uso dos recursos<br />

1. Os pontos <strong>de</strong> pesca são lugares socialmente <strong>de</strong>limitados on<strong>de</strong> a ativida<strong>de</strong> pesqueira ocorre,<br />

obe<strong>de</strong>cendo <strong>de</strong>terminadas regras instituídas por mecanismos <strong>de</strong> controle simbólico<br />

previamente estabelecidos para indicar, em geral, o tipo <strong>de</strong> pesca <strong>de</strong>senvolvida – pesca<br />

comercial e/ou pesca <strong>de</strong> subsistência – e as formas <strong>de</strong> captura permitidas dos recursos<br />

ictiofaunísticos.<br />

2. Conforme Rapozo (2010: 196-7), “a reor<strong>de</strong>nação do setor da pesca comercial [tem estimulado]<br />

também uma reconfiguração das relações <strong>de</strong> trabalho e apropriação social dos<br />

recursos pesqueiros, visando à internalização <strong>de</strong> regras <strong>de</strong> captura que viabilizassem um<br />

controle maior, prevendo uma sobrecarga dos recursos disponíveis. Da preocupação com<br />

o número crescente <strong>de</strong> embarcações e do número cada vez maior <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> arrasto nos


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 57<br />

ictiofaunísticos, o que representa ten<strong>de</strong>ncialmente os sistemas abertos <strong>de</strong> uso entre<br />

os pescadores envolvidos, prevalecendo, contudo, códigos previamente estabelecidos<br />

que normatizam suas práticas <strong>sociais</strong>, atribuindo sentidos a uma forma <strong>de</strong> apropriação<br />

comum singular, baseada em mecanismos <strong>de</strong> controle internalizados pelos<br />

agentes <strong>sociais</strong> envolvidos – o que será evi<strong>de</strong>nciado mais à frente, através dos <strong>de</strong>poimentos,<br />

por meio da pesca exercida nos rios e da pescaria praticada nos lagos.<br />

Ambos os espaços <strong>sociais</strong> revelam, porém, que a apropriação comum e/ou<br />

privada praticada por <strong>de</strong>terminados grupos <strong>sociais</strong>, envolvendo lugares percebidos<br />

como “harmônicos”, como no caso dos lagos, revela dimensões fundamentais da<br />

territorialida<strong>de</strong> na pesca – o que se expressa nas insurgências dos conflitos <strong>sociais</strong><br />

nos dois tipos <strong>de</strong> ambientes disputados. Contudo, a latência dos conflitos <strong>sociais</strong><br />

só se manifesta na medida em que os elementos estruturantes da or<strong>de</strong>m social que<br />

institui os mecanismos <strong>de</strong> controle do acesso e uso dos recursos ictiofaunísticos<br />

são <strong>de</strong>srespeitados – o que, aliás, tem ocorrido em razão da prática extensiva e<br />

intensiva da pesca comercial nos rios e nos lagos nesse contexto social.<br />

É sabido que os conflitos <strong>sociais</strong> pela disputa dos recursos pesqueiros nos rios<br />

e lagos da Amazônia brasileira têm se constituído como um fenômeno historicamente<br />

recorrente. Um exemplo mo<strong>de</strong>lar <strong>de</strong> conflitos <strong>sociais</strong> marcantes relacionados<br />

à pesca ocorreu no Amazonas, em 1973, entre pescadores dos municípios do<br />

Careiro e do Manaquiri – no lago Janauacá. Esse conflito, <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> a Guerra<br />

do peixe, 3 foi ocasionado pela prática extensiva e intensiva da pesca comercial, no<br />

(continuação)lanços, ocorrendo nas proximida<strong>de</strong>s das comunida<strong>de</strong>s [do rio Solimões], configura-se<br />

uma espécie <strong>de</strong> pesca que iria <strong>de</strong>limitar, pelo valor do tempo, o uso <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

apetrechos na captura comercial dos bagres vendidos ao mercado em Manacapuru –<br />

a pesca <strong>de</strong> vez. A pesca <strong>de</strong> vez é estruturada em lugares <strong>de</strong>limitados, geralmente espacializados<br />

entre uma comunida<strong>de</strong> e outra, consi<strong>de</strong>rando as margens do rio, sem que haja a invasão<br />

<strong>de</strong> pescadores não estabelecidos no perímetro <strong>de</strong>terminado. Esta relação induzida <strong>de</strong> apropriação<br />

contratual dos recursos pesqueiros em áreas <strong>de</strong>finidas pelos pescadores <strong>de</strong>corre,<br />

sobretudo, a partir do início dos anos 90, com a intensificação comercial [...], estabelecendo<br />

regras gerais quanto à forma <strong>de</strong> uso dos espaços aquáticos”.<br />

3. Conforme Cruz (2011), “[a Guerra do peixe] começou porque existia [e ainda existe]<br />

um ‘acordo <strong>de</strong> cavalheiro’ entre os moradores do lago Janauacá. A área daqui [Tilheiro]<br />

sempre foi <strong>de</strong> pesca e a <strong>de</strong> lá [Caapiranga, Rio Branco e Italiano] sempre foi <strong>de</strong> agricultura.<br />

Naquele tempo as pessoas respeitavam esse acordo. O Valdir [morador do Italiano<br />

e agricultor] também praticava a pesca comercial. Um belo dia, os moradores <strong>de</strong> lá do<br />

Italiano quebraram a caixa do Sr. Valdir e jogaram todo o peixe na água, o pessoal <strong>de</strong> lá<br />

se revoltaram e vieram para o Tilheiro. O pessoal se revoltou com o Sr. Valdir e foram<br />

para o Tilheiro. Ocorreu uma revolta, quando os <strong>de</strong> lá <strong>de</strong> cima [agricultores] chegaram<br />

armados e os daqui [Tilheiro] não estavam armados, aí teve alguém daqui que reagiu,<br />

era o primo do Sr. Al<strong>de</strong>nor, o Sr. Zeca. Nesse episódio morrem duas pessoas e quatro<br />

são baleadas. Temos a área dos agricultores e a área dos pescadores [início da ponta do<br />

Cândido]. Tem que enxergar a opinião, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início sempre ameaçavam, mas nunca<br />

vinham aqui. O começo foi por lá. O barco do Sr. Valdir era <strong>de</strong> lá mesmo, foi pescar no


58 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Janauacá, resultando na morte <strong>de</strong> vários moradores locais e <strong>de</strong> muitos pescadores<br />

profissionais embarcados. Embora se tenham inúmeros <strong>de</strong>poimentos e materiais<br />

jornalísticos, da época, que atestam a radicalida<strong>de</strong> da ocorrência, há ainda a necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> estudos sociológicos visando à reconstituição da memória do ocorrido<br />

para melhor compreendê-lo.<br />

Mais recentemente, a pesca comercial extensiva e intensiva, associada à<br />

implementação <strong>de</strong> apetrechos <strong>de</strong> alto po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> captura – por exemplo, as longas<br />

malha<strong>de</strong>iras e os arrastões <strong>de</strong> pesca <strong>de</strong> fundo, ambos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> alcance – <strong>de</strong>flagra<br />

acirrada disputa pelo acesso e uso dos recursos pesqueiros, não interessando aos<br />

pescadores <strong>de</strong> fora – aos outsi<strong>de</strong>rs – se os ambientes <strong>de</strong> pesca dos moradores da várzea<br />

(os pescadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, ou seja, os estabelecidos) 4 – os lagos e o rio – são ou não<br />

usados por eles, secularmente.<br />

As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesca no Lago do Tamanduá e na Costa do Laranjal – esta<br />

última nas águas abertas do Solimões – são exemplos que revelam o acesso e uso<br />

dos recursos pesqueiros e as relações antagônicas estabelecidas entre os agentes<br />

<strong>sociais</strong> envolvidos nos ambientes <strong>de</strong> pesca, instituídos por sistemas fechados (Lago<br />

do Tamanduá) e sistemas abertos (Costa do Laranjal). Encontramos claramente,<br />

nas narrativas dos pesquisados, a preocupação com um conjunto <strong>de</strong> problemas<br />

relacionados às ativida<strong>de</strong>s da pesca e sua importância para os moradores das comunida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> várzea.<br />

A preocupação com as relações <strong>sociais</strong> antagônicas estabelecidas no acesso e<br />

uso dos recursos ictiofaunísticos do Lago Tamanduá <strong>de</strong>monstra fragmentos da<br />

história dos conflitos <strong>sociais</strong>, muitas vezes através <strong>de</strong> agressão física, e, ao mesmo<br />

tempo, certa <strong>de</strong>scrença dos moradores com relação às possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mudanças,<br />

quando se consi<strong>de</strong>ra a diminuição dramática do estoque pesqueiro:<br />

“(...) há um estrago nos lagos hoje e, por causa disso, houve até ameaça <strong>de</strong> morte<br />

[ocorrida em 2005]. Nós reivindicava por causa <strong>de</strong>sse lago aí [Lago do<br />

Tamanduá] por causa da documentação <strong>de</strong>le (...). Eu juntei a turma e levei lá<br />

num dia que teve um problema, só que o cara lá tava com uma espingarda e<br />

queria atirar em nós (...). Des<strong>de</strong> esse dia pararam a intervenção do lago (...).<br />

(continuação) local, ele só <strong>de</strong>u um lance e quando estava terminando <strong>de</strong> encher a caixa, o<br />

pessoal <strong>de</strong> lá mesmo, quebraram a caixa e jogaram todo o peixe na água. O barco do Valdir<br />

não foi quebrado, só a caixa do barco [...]”. Todos os nomes contidos nos <strong>de</strong>poimentos<br />

são fictícios para preservar as respectivas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

4. Seguimos aqui a compreensão <strong>de</strong> Elias & Scotson, presentes em Os estabelecidos e os<br />

outsi<strong>de</strong>rs: sociologia das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r a partir <strong>de</strong> uma pequena comunida<strong>de</strong> (2000), em que<br />

a distinção entre estabelecidos – grupo que se percebe como a “boa socieda<strong>de</strong>” – e os<br />

outsir<strong>de</strong>s – os não membros da “boa socieda<strong>de</strong>” – po<strong>de</strong> nos ajudar a compreen<strong>de</strong>r as relações<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r entre os pescadores que vivem da/na comunida<strong>de</strong> versus os pescadores não<br />

pertencentes às comunida<strong>de</strong>s.


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 59<br />

Acho que os lagos tudo vão se acabar! O lago é importante <strong>de</strong>mais porque é<br />

<strong>de</strong>le que a gente sobrevive na época <strong>de</strong> seca, mas o pessoal faz ba<strong>de</strong>rna lá” (S.<br />

S., 54 anos, pescador e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

Os conflitos <strong>sociais</strong> apresentam, na maioria das vezes, os agentes <strong>sociais</strong> externos,<br />

os pescadores <strong>de</strong> fora, como a principal causa <strong>de</strong> disputa pelo acesso e uso<br />

dos recursos ictiofaunísticos. Em Nossa Senhora das Graças, a pesca no Lago<br />

Tamanduá, em <strong>de</strong>terminados períodos do ano, acirra os conflitos <strong>sociais</strong> em razão<br />

<strong>de</strong> sua singularida<strong>de</strong> – os membros da comunida<strong>de</strong> utilizam o lago para a obtenção<br />

<strong>de</strong> alimento nos períodos sazonais críticos, quando os peixes rareiam, como<br />

atesta o <strong>de</strong>poimento:<br />

“(...) O pessoal <strong>de</strong> lá do Manaquiri queria puxar pra eles a pesca <strong>de</strong>ssa área<br />

daqui. Ave Maria! Isso foi um conflito horrível aí, só que não conseguiram puxar<br />

porque, o certo mesmo, por uma parte isso aqui tinha que ser município <strong>de</strong><br />

Manaquiri, que é do outro lado do rio, né? Aí passa a ser município <strong>de</strong><br />

Manacapuru, mas se o Manaquiri não conseguiu não, que era mais pequeno...<br />

Aí a maioria também do pessoal viu a dificulda<strong>de</strong>, né? Que quando seca o<br />

Manaquiri fica todo seco, aí fica dificultoso pra pescar, mas o pessoal do<br />

Manaquiri ainda tenta várias vezes vim pra essa costa aqui do lago, já levaram<br />

até porrada” (R. N. N. R., 41 anos, pescador e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

“(...) Tem muito conflito aí pra <strong>de</strong>ntro do lago com o pessoal do Manaquiri,<br />

tem parte pro senhor saber que o lago tudo vira pesca <strong>de</strong>les lá do Manaquiri,<br />

muito na seca também. Aí pra trás, só é essa costa aqui daí pra cá que é nossa<br />

daqui da comunida<strong>de</strong>. O lago aí do Tamanduá faz parte daqui, né? Mas eles<br />

ainda entram em conflito puxando, querendo ser Manaquiri, bem aí o lago que<br />

vocês sempre vão lá, né? Aí eles... por isso que eles fazem isso, só porque é<br />

grudado no lago do Manaquiri aí” (L. S., 32 anos, pescador e morador da<br />

comunida<strong>de</strong> Nossa Senhora das Graças).<br />

O lago Tamanduá, pelo fato <strong>de</strong> ficar atrás da Comunida<strong>de</strong> Nossa Senhora<br />

das Graças, possibilita indiretamente que os pescadores <strong>de</strong> fora o acessem. Pescadores<br />

<strong>de</strong> outras comunida<strong>de</strong>s entram no lago sem autorização dos moradores <strong>de</strong> Nossa<br />

Senhora das Graças e realizam a pesca comercial com gigantescos arrastões. Essa<br />

prática revela, segundo <strong>de</strong>poimento dos moradores, preocupações com a própria<br />

legitimida<strong>de</strong> do acesso e uso do lago como território 5 <strong>de</strong> pesca, ao mesmo tempo<br />

5. “[Território] tem o significado <strong>de</strong> pertencimento – a terra pertence a alguém – não necessariamente<br />

como proprieda<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>vido ao caráter <strong>de</strong> apropriação, assim como a<br />

<strong>de</strong>sterritorialida<strong>de</strong> é entendida como ‘perda do território apropriado e vivido em razão<br />

<strong>de</strong> diferentes <strong>processos</strong> <strong>de</strong>rivados <strong>de</strong> contradições capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazerem o território’, e<br />

a reterritorialida<strong>de</strong> como a ‘criação <strong>de</strong> novos territórios, seja através da reconstrução<br />

parcial, in situ, <strong>de</strong> velhos territórios, seja por meio da recriação parcial, em outros lugares,<br />

<strong>de</strong> um território novo que contém, entretanto, parcela das características do velho<br />

território (...)’” (CORRÊA. In: SANTOS, 1996: 252).


60 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

em que caracteriza os <strong>de</strong> fora como agentes <strong>sociais</strong> do conflito nas apropriações dos<br />

recursos pesqueiros.<br />

“(...) O lago [referindo-se ao Lago do Tamanduá] tá faltando preservar, porque<br />

têm as crianças, né, elas precisam comer, tá faltando uma união muito<br />

gran<strong>de</strong>, tem gente daqui que levava os outros pescadores <strong>de</strong> outras comunida<strong>de</strong>s,<br />

do Manaquiri [município vizinho a Manacapuru] pra pegá peixe aqui (...).<br />

Existe muito problema <strong>de</strong> comida. E às vezes num tem peixe, e a gente não se<br />

une, nos lutava <strong>de</strong> primeiro, mas hoje não, tem mais <strong>de</strong> 8 anos atrás, antes era<br />

bom (...). Você pegava todo tipo <strong>de</strong> peixe, agora você vai lá no lago e só pega<br />

aqueles bodó magro (...). Deveria haver uma fiscalização melhor pra preservar<br />

os peixes pequenos, porque todo ano estraga” (R. A. P. S., 50 anos, pescador<br />

e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

“(...) Lá no lago é um problema, os pessoal do Manaquiri entram no Tamanduá<br />

pra pescar e o lago é pra <strong>de</strong>spensa, tem problema, eles acham que num po<strong>de</strong><br />

proibir, mas a gente qué porque é bom pra nós (...). Nós tem filho né? Eles<br />

precisa comer” (A. P. A., 39 anos, pescador e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

Os <strong>de</strong>poimentos dos moradores expressam, ainda, as particularida<strong>de</strong>s do uso<br />

do lago, mas explicita igualmente as relações <strong>sociais</strong> estabelecidas com o território<br />

<strong>de</strong> pesca pertencente aos membros <strong>de</strong> Nossa Senhora das Graças. Para os agentes<br />

<strong>sociais</strong> externos à comunida<strong>de</strong>, o lago significa precipuamente – e outra coisa parece<br />

não po<strong>de</strong>r significar – possibilida<strong>de</strong>s objetivas com fins comerciais. Para os seus<br />

moradores, entrementes, o lago representa história <strong>de</strong> vida associada à apropriação<br />

e transformação do espaço em lugar, em vida comunitária, ligado à produção<br />

e reprodução material e simbólica da vida instituída por elementos que transcen<strong>de</strong>m<br />

as necessida<strong>de</strong>s da comercialização, criando para si representações <strong>sociais</strong> do<br />

lugar como lócus da vida.<br />

Diferentemente do que ocorre no Lago Tamanduá, na Costa do Laranjal (isto<br />

é, nos sistemas abertos <strong>de</strong> uso do rio Solimões), a pesca é praticada sem aparente<br />

<strong>de</strong>limitação – consi<strong>de</strong>rando, é claro, a existência das comunida<strong>de</strong>s próximas que<br />

se i<strong>de</strong>ntificam com o lugar –, o que acaba por estabelecer conflitos <strong>sociais</strong> em função<br />

<strong>de</strong> as regras <strong>de</strong> uso e acesso apresentarem enorme plasticida<strong>de</strong> – o que, aliás,<br />

materializa-se no consenso em torno do chamado ponto <strong>de</strong> pesca.<br />

“(...) Olha, lá [na Costa do Laranjal] on<strong>de</strong> nós pesca tem muito conflito. Quando<br />

tá na época da seca todo mundo abate lá, e tem muito pescador que dá<br />

conflito <strong>de</strong>mais porque eles querem mandar lá na área, né? Mas vamos supor,<br />

tem conflito assim se tu caçar, conflito porque tu botar o arrastão na frente do<br />

outro, aí lá vai aquela confusão, mas eu tô com todo esse tempo <strong>de</strong> pesca, comigo<br />

nunca aconteceu lá. É porque eu sou uma pessoa assim que, vamos supor, chega<br />

uma pessoa ambiciosa e tenta botar na minha frente, aí eu fico com a minha<br />

re<strong>de</strong> na minha canoa e <strong>de</strong>ixo ele botar aí, <strong>de</strong>pois se tiver tempo <strong>de</strong> eu botar a


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 61<br />

minha eu boto, senão eu fico na minha. Porque o que é meu ele não pega, aí<br />

eles criam aquele olhão querendo expulsar nós, mas aí eles também <strong>de</strong> primeiro,<br />

quando nós começamos lá, eles quiseram embargar pra lá” (L. S., 32 anos,<br />

pescador e morador da comunida<strong>de</strong> Nossa Senhora das Graças).<br />

“(...) A pesca aqui na frente da comunida<strong>de</strong> num é muito boa não, mas pra<br />

outras áreas como lá no Laranjal é bom (...). Lá é bom <strong>de</strong> fera [<strong>de</strong> peixe liso]”<br />

(A. M. S., 23 anos, pescador e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

Nos <strong>de</strong>poimentos dos pescadores que se <strong>de</strong>slocam para a Costa do Laranjal,<br />

observamos representações <strong>sociais</strong> que apontam para a dilapidação dos estoques<br />

ictiofaunísticos associados aos conflitos e à i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> pescadores <strong>de</strong> outras<br />

comunida<strong>de</strong>s (outsi<strong>de</strong>rs). A presença institucional dos órgãos responsáveis pela fiscalização<br />

e controle da pesca – referimo-nos aqui ao Instituto Brasileiro do Meio<br />

Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) – reflete as possibilida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> mediações dos conflitos na medida em que os agentes <strong>sociais</strong> o reconhecem<br />

como importante na sua solução.<br />

“(...) O pessoal fala pra gente acabar com isso <strong>de</strong> pescar lá, só que é gente que<br />

não pertence nem <strong>de</strong> lá, é já no lado <strong>de</strong> longe do Laranjal. Mas eles se sentem<br />

dono <strong>de</strong>ssa área, eles querem botar moral, nas primeiras vezes eles queriam<br />

barrar, né? Aí foi aquele furdunço monstro, levaram IBAMA lá e tudo e aí eu<br />

ainda, naquela época, eu ainda via uma hora do IBAMA cancelar tudinho, né?<br />

Eles po<strong>de</strong>m porque eles têm o po<strong>de</strong>r pra ninguém pescar. Depois <strong>de</strong> novo o<br />

IBAMA teve por lá pra querer embargar <strong>de</strong> pescar aqueles que têm mais dinheiro<br />

lá, aí aqueles que se metem a ter mais dinheiro querem embargar a<br />

compra também, né? Se o pescador não fosse documentado mesmo, eles tinham<br />

embargado, né? Só que aí todo pescador eles têm documento, né? Aí o<br />

IBAMA não po<strong>de</strong> porque nós temos cadastro, tem carteira. Se é um pescador<br />

mesmo, aí o IBAMA não po<strong>de</strong> impedir <strong>de</strong> pescarem, em todo canto do rio nós<br />

po<strong>de</strong> pescar” (R. N. N. R., 41 anos, pescador e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

Nesse caso, a relação entre aqueles que possuem o acesso – os pescadores <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ntro – e os pescadores <strong>de</strong> fora que normalmente rompem com os mecanismos <strong>de</strong><br />

controle – principalmente aqueles relacionados com a organização da pesca comercial<br />

– impõe sanções, entrando os pescadores estabelecidos em litígio com os pescadores<br />

outsi<strong>de</strong>rs.<br />

“(...) Lá no Laranjal eu já vi mais <strong>de</strong> cem lanço, lá tinha conflito, uns três anos<br />

atrás, porque o pessoal do IBAMA foi lá com eles” (A. P. M., 51 anos, pescador<br />

e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

“(...) On<strong>de</strong> nós pesca sempre tem conflito com o pessoal da Comunida<strong>de</strong> do<br />

Pesqueiro aqui <strong>de</strong> perto, eles sempre querem impedir nós <strong>de</strong> pescar lá no Laranjal”<br />

(R. N. N. R., 41 anos, pescador e morador da comunida<strong>de</strong>).


62 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

As dimensões <strong>sociais</strong> dos conflitos revelam que a apropriação dos recursos<br />

pesqueiros, em razão da lógica da esfera da comercialização, apresenta-se, muitas<br />

vezes, <strong>de</strong> maneira muito acirrada, às vezes tolerável, segundo os pescadores moradores<br />

da comunida<strong>de</strong> Nossa Senhora das Graças. A correta compreensão <strong>de</strong>sse<br />

fenômeno não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> apontar para os interesses dos membros das comunida<strong>de</strong>s<br />

da área no acesso e uso dos recursos ictiofaunísticos, principalmente nos<br />

períodos <strong>de</strong> maior facilida<strong>de</strong> na captura do pescado – nos períodos da vazante/seca<br />

–, quando os peixes encontram-se represados principalmente nos lagos, o que aumenta<br />

<strong>de</strong> maneira dramática a capacida<strong>de</strong> do pescador <strong>de</strong> capturá-los numa unida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> tempo significativamente menor quando se compara com a pesca nos<br />

períodos da enchente/cheia.<br />

“(...) Rapaz, aqui não saia essas praias antes, <strong>de</strong>pois que saiu essas praias é que<br />

nós fomos pra lá [para a Costa do Laranjal], por causo que a praia dificulta a<br />

gente <strong>de</strong> pescar, mas nós não íamos pra lá não, todo tempo era aqui. Isso foi<br />

pra uma base do ano <strong>de</strong> noventa e pouco pro ano dois mil, <strong>de</strong> dois mil pra cá,<br />

foi quando essas praias baixaram, né? Que não tinha essas praias, mas <strong>de</strong> primeiro<br />

só era aqui a pescaria e nos lugares mais longe que tinha <strong>de</strong> passar dia<br />

como lá pro [rio] Purus. Aí aqui, <strong>de</strong>pois que fica tudo em terra, não tem como<br />

a gente pescar, então às vezes quando nós vamos pescar lá eles ainda dizem<br />

assim: ‘aqui não é lugar <strong>de</strong> vocês, vão pescar em cima da praia <strong>de</strong> vocês lá’. Aí<br />

como é que o cara vai pescar em cima <strong>de</strong> praia?” (A. C., 43 anos, pescador e<br />

morador da comunida<strong>de</strong> Nossa Senhora das Graças).<br />

“(...) Na época da seca, tem muita ambição, todos querem mandar, é que na<br />

seca num dá pra pescá aí na frente [da Comunida<strong>de</strong>] e tem que ir pra lá [Costa<br />

do Laranjal] e eles [os moradores e pescadores do local] ficam com raiva”<br />

(S. C. S., 36 anos, pescador e morador da comunida<strong>de</strong>).<br />

As formas <strong>de</strong> acesso e uso dos recursos ictiofaunísticos implicam uma diversida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> conhecimentos sobre as estratégias da pesca – o que requer consi<strong>de</strong>rar a<br />

percepção e o saber constituídos nas práticas da ativida<strong>de</strong> pesqueira. Os recursos<br />

ictiofaunísticos compartilhados nos espaços <strong>de</strong> uso comum indicam que os mecanismos<br />

<strong>de</strong> controle possibilitam a produção e a reprodução material e simbólica<br />

da vida dos membros das comunida<strong>de</strong>s locais muito mais do que se imagina.<br />

CONFLITOS SOCIAIS NA PESCA NO RIO SÃO FRANCISCO<br />

No trecho mineiro do rio São Francisco, a pesca profissional praticada em bases<br />

artesanais constitui o centro do modo <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> famílias ribeirinhas.<br />

A característica artesanal <strong>de</strong>sse trabalho se <strong>de</strong>fine por vários fatores, como: (1) a<br />

habilida<strong>de</strong> dos pescadores em confeccionar os meios <strong>de</strong> produção necessários à<br />

captura, tais como re<strong>de</strong>s, tarrafas e embarcações; (2) a aprendizagem comunitária<br />

<strong>de</strong> técnicas corporais peculiares no manejo dos petrechos <strong>de</strong> pesca específicos à(s)<br />

estratégia(s) <strong>de</strong> captura adotada(s); (3) a valorização dos saberes tradicionais rela-


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 63<br />

tivos à avaliação da condição atmosférica e do ecossistema aquático que interferem<br />

na pesca; (4) o respeito e reprodução intergeracional das regras comunitárias<br />

concernentes à <strong>territorialização</strong> da pesca, como os costumes em torno <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />

pontos <strong>de</strong> pesca; e (5) a esmerada observação individual e coletiva do comportamento<br />

dos cardumes <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> explotação, bem como dos recursos<br />

bióticos e abióticos dos quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> a reprodução dos estoques.<br />

O exercício da profissão da pesca artesanal diz respeito não apenas à<br />

formalização da ativida<strong>de</strong> diante da autorida<strong>de</strong> competente – cumprindo registrarse<br />

junto às colônias <strong>de</strong> pescadores, que o reportam ao Ministério da Pesca –, mas<br />

às tensões inerentes à necessida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntitária <strong>de</strong> aceitar as normas produzidas<br />

comunitariamente, por um lado, e aquelas que <strong>de</strong>rivam do ajustamento aos ditames<br />

<strong>de</strong> instituições mo<strong>de</strong>rnas, por outro. O rio São Francisco e seus afluentes têm<br />

sido paulatinamente <strong>de</strong>sconstruídos pelas autorida<strong>de</strong>s ambientais – sobretudo no<br />

nível estadual – como legítimos territórios <strong>de</strong> pesca artesanal, o que obstaculiza<br />

progressivamente a reprodução social do grupo <strong>de</strong>dicado a essa ocupação, assim<br />

como <strong>de</strong>sorganiza as <strong>de</strong>mais dimensões da vida referidas ao mundo ribeirinho. Na<br />

última década, a regulação ambiental contestou a <strong>territorialização</strong> da pesca por<br />

diversos meios legais, restringindo no espaço e no tempo várias possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

exercício do trabalho.<br />

Há <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar, ainda, na esfera da interlocução dos pescadores profissionais<br />

artesanais com os entes mo<strong>de</strong>rnos, a ambiguida<strong>de</strong> entre o discurso <strong>de</strong> valorização<br />

profissional, instituído pelo Ministério da Pesca, e o das autorida<strong>de</strong>s<br />

ambientais, como o IBAMA, em nível fe<strong>de</strong>ral, e o Instituto Estadual <strong>de</strong> Florestas<br />

(IEF), em nível estadual, que a sufocam. Convém, adicionalmente, consi<strong>de</strong>rar que<br />

o objeto <strong>de</strong> trabalho dos pescadores, os recursos ictiofaunísticos, encontram-se<br />

inseridos numa base física <strong>de</strong> domínio público, as águas doces fluviais, sem cujo<br />

acesso, <strong>de</strong>vidamente autorizado pelos órgãos competentes, os pescadores se veem<br />

impedidos <strong>de</strong> colocar suas técnicas ao <strong>de</strong>si<strong>de</strong>rato da captura. O acesso ao território<br />

aquático exige obediência a dadas normas que se sobrepõem às tradicionais; e<br />

outras ainda são adicionadas, dizendo respeito à pesca em si: o tamanho <strong>de</strong> malha<br />

apropriado, as espécies <strong>de</strong> peixe que po<strong>de</strong>m ser capturadas, <strong>de</strong>ntre outras.<br />

De outra parte, ainda que a legislação faça, na pesca, a distinção entre exercício<br />

profissional e subsistência, no rio São Francisco ambas se associam quando a<br />

extração para fins comerciais tornam exce<strong>de</strong>ntes os nãos comercializados <strong>de</strong>stinados<br />

ao provimento alimentar da família, sendo o peixe a principal fonte <strong>de</strong> proteína<br />

animal a que a mesma po<strong>de</strong> ter frequente acesso. O trabalho da pesca provê os<br />

mínimos vitais tanto indiretamente – quando as relações mercantis logram acesso<br />

à renda monetária através da venda do pescado – quanto diretamente, trazendo à<br />

mesa o peixe que o mercado, por motivos variados, rejeita. As crescentes restrições<br />

à pesca artesanal tornam-se, assim, obstáculos consi<strong>de</strong>ráveis à segurança alimentar<br />

do grupo. A legislação recente – que prevê que, em contexto <strong>de</strong> piracema, os


64 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

pescadores possam pescar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que se ajustem a certas técnicas e a uma quantida<strong>de</strong><br />

restrita para fins <strong>de</strong> subsistência – continua sendo insensível em relação aos<br />

hábitos alimentares e às práticas <strong>de</strong> captura comuns do grupo. A<strong>de</strong>mais, tal legislação,<br />

em suas versões passadas e recentes, ao vincular enfaticamente a proibição<br />

da pesca com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recomposição dos estoques ictiofaunísticos,<br />

<strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a importância dos <strong>de</strong>mais fatores socioambientais no comprometimento<br />

da vida silvestre no meio aquático do Alto-Médio rio São Francisco, como:<br />

a poluição hídrica, incluindo, a causada pelo <strong>de</strong>spejo irregular <strong>de</strong> metais pesados;<br />

o barramento <strong>de</strong> lagoas marginais, que são os berçários naturais <strong>de</strong> várias espécies;<br />

as barragens que comprometem a vazão e velocida<strong>de</strong> do ambiente lótico; os <strong>de</strong>mais<br />

tipos <strong>de</strong> pesca, como a clan<strong>de</strong>stina e a amadora; <strong>de</strong>ntre outros.<br />

A construção sócio-histórica da pesca artesanal nesse trecho do Velho Chico<br />

vem adquirindo peculiar dinamismo na última década em virtu<strong>de</strong> da reelaboração<br />

<strong>de</strong> sentidos produzida pelos novos agentes públicos e privados, estigmatizando-a<br />

como imagem do atraso no espaço social, cujo apelo ecológico serve precipuamente<br />

à indústria do turismo. Inapropriadamente, os meios <strong>de</strong> comunicação associam a<br />

morte do rio São Francisco, em termos da <strong>de</strong>gradação do ecossistema, à pesca<br />

artesanal, incitando a criminalização <strong>de</strong>sta. Promove-se uma <strong>de</strong>liberada equivalência<br />

entre a pesca artesanal – cujos trabalhadores estão umbilical e i<strong>de</strong>ntitariamente<br />

ligados ao <strong>de</strong>stino do rio – e a pesca clan<strong>de</strong>stina, esta última constituída por agentes<br />

<strong>de</strong> fora, produtores <strong>de</strong> práticas e representações diversas. O conflito entre as<br />

práticas laborais <strong>de</strong>sses distintos agentes, na disputa <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> pesca e <strong>de</strong> estoques<br />

pesqueiros, não é <strong>de</strong>vidamente repercutido junto à opinião pública, que toma<br />

ambas como sendo a mesma <strong>de</strong>letéria ação sobre um meio natural em agonia.<br />

Enquanto os pescadores profissionais artesanais registram-se e organizam-se<br />

em colônia <strong>de</strong> pesca da sua região <strong>de</strong> inserção, os pescadores clan<strong>de</strong>stinos exercitam<br />

a ativida<strong>de</strong> à margem dos registros oficiais, a fim <strong>de</strong> ocultar sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> no<br />

cometimento <strong>de</strong> transgressões, como a captura durante a piracema e o uso <strong>de</strong> tralhas<br />

proibidas, tais quais malhas em tamanho irregular e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> espera. Se, por<br />

um lado, o pescador clan<strong>de</strong>stino não conta com o amparo institucional da categoria<br />

para amainar os riscos do trabalho – como através do direito ao seguro-<strong>de</strong>feso<br />

–, por outro, tais riscos são assumidos calculadamente: a perda <strong>de</strong> petrechos po<strong>de</strong><br />

ser compensada com a aquisição <strong>de</strong> outros, po<strong>de</strong>-se migrar para outros pontos <strong>de</strong><br />

pesca <strong>de</strong> mais difícil observação e abordagem da fiscalização, além <strong>de</strong> ser possível<br />

acessar furtivamente pontos <strong>de</strong> pesca tradicionais, <strong>de</strong>struindo re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> espera e<br />

subtraindo pescado ali capturados. Também o trecho mineiro do São Francisco<br />

assiste a recorrentes episódios nos quais pescadores amadores utilizam irregularmente<br />

apetrechos <strong>de</strong> pescadores profissionais, não com finalida<strong>de</strong>s mercantis, como<br />

os clan<strong>de</strong>stinos, mas para tornar o seu lazer mais satisfatório, imitando um afazer<br />

típico da vida ribeirinha. Como a pesca amadora está atrelada à indústria do turismo,<br />

e seus agentes são diferenciados pelo viés <strong>de</strong> classe, a fiscalização lhes é mais<br />

con<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte. Isso é diferente do que ocorre ao pescador profissional, a quem


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 65<br />

práticas ilegais porventura levadas a cabo trazem sérios danos, como a perda da<br />

carteira <strong>de</strong> pesca, recolhimento das tralhas e pescado, além <strong>de</strong> pesada multa, ônus<br />

estes que, associados, muitas vezes inviabilizam o retorno a essa ativida<strong>de</strong>.<br />

Em relação aos pescadores do mar, Diegues (1998) observa que a construção<br />

social da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> ocorre, primeiro, pela alterida<strong>de</strong>, isto é, nas formas como reconhecem<br />

o outro; segundo, pelos rituais <strong>de</strong> reafirmação dos significados e sentidos<br />

partilhados por seu coletivo; e, terceiro, pela afirmação coletiva do sentido<br />

<strong>de</strong> pertencimento ao lugar. O mesmo é válido para outros pescadores artesanais,<br />

como do São Francisco, os quais, conforme os <strong>de</strong>poimentos abaixo, i<strong>de</strong>ntificam as<br />

práticas e os atores que, distintos aos seus, causam danos ambientais que repercutem<br />

negativamente nos recursos ictiofaunísticos disponíveis:<br />

“Tem havido agressões por <strong>de</strong>smatamentos. As lagoas marginais, que são o berçário<br />

do rio, não recebem água porque as barragens impe<strong>de</strong>m. As lagoas acabam<br />

criando peixe adulto, que <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> sair pro rio e <strong>de</strong> repovoar o rio. Por<br />

isso, o peixe vem diminuindo no rio. Os fazen<strong>de</strong>iros drenam as lagoas para o<br />

plantio <strong>de</strong> arroz e acabam também com elas. As cida<strong>de</strong>s ribeirinhas tão crescendo,<br />

os esgotos domésticos <strong>de</strong>scem para o rio. As indústrias também estão<br />

jogando a poluição pra <strong>de</strong>ntro da água” (Sr. N., pescador profissional artesanal,<br />

São Gonçalo do Abaeté, MG).<br />

“O fazen<strong>de</strong>iro cerca a água, não tem como o peixe navegar” (Sr. J., Colônia <strong>de</strong><br />

Januária).<br />

“A pesca amadora atrapalha bastante porque faz pressão pra fechar a pesca <strong>de</strong><br />

malha, profissional. Ele [o pescador amador] tem boas iscas, tem dinheiro. O<br />

pescador amador vem pra gastar com os equipamentos <strong>de</strong> captura, é esporte.<br />

Pra gente, é sobrevivência. Mas eles se colocam contra nós. Hoje, o peixe mal<br />

paga a feira da semana” (Sr. L., pescador profissional artesanal, Pirapora, MG).<br />

“Só tem represa pra cima (Três Marias) e represa pra baixo (Sobradinho), como<br />

é que vai prestar? O peixe fica trancado nas lagoas, sem cheia para trazer o<br />

peixe” (Sr. I., pescador profissional artesanal, Januária, MG).<br />

‘“Eu admiro <strong>de</strong>mais o pescador amador que quer fugir da cida<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> e se<br />

distrair. Antes a pessoa não queria sair da cida<strong>de</strong>, dizendo que aqui, no mato,<br />

tinha febre amarela, tinha mosquito, tinha onça. Hoje, a cida<strong>de</strong> virou um verda<strong>de</strong>iro<br />

inferno. Chega aqui, ele não consegue pegar o peixe, vê o profissional,<br />

que é um coitado, conseguindo, que quer ven<strong>de</strong>r pra ele. Então, ele fica contra<br />

a pesca profissional. Mas tem que ver que é para a sobrevivência <strong>de</strong>le. Ele não<br />

po<strong>de</strong> impor que o profissional pare porque o profissional não tem outra forma<br />

<strong>de</strong> viver” (Sr. N., pescador profissional artesanal, São Gonçalo do Abaeté, MG).<br />

A arte da pesca não obe<strong>de</strong>ce aos tempos da racionalida<strong>de</strong> mercantil nem se<br />

acomoda nos critérios <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> com os quais se lhe tentam impingir culpas<br />

em torno <strong>de</strong> sobre-exploração dos recursos ictiofaunísticos. Um pescador jogando<br />

tarrafa alu<strong>de</strong> à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> domínio do corpo e domínio do rio, ambos


66 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

inconstantes, porém, simultaneamente ajustáveis. A forma serpenteante do rio é a<br />

da ocultação, dos mistérios do peixe, a que o pescador <strong>de</strong>svela <strong>de</strong> pé, em sua canoa,<br />

fixo e móvel, isolado e exposto. O pescador tem na canoa a extensão do seu<br />

corpo para buscar um movimento oculto dos cardumes, a que a tarrafa surpreen<strong>de</strong>.<br />

O móvel cardume, então, se vê em embate com a força mecânica do homem,<br />

no controle da tarrafa e da canoa. Trata-se <strong>de</strong> uma labuta, mas também <strong>de</strong> um jogo,<br />

que incita a produção <strong>de</strong> uma narrativa própria, sempre beirando ao improvável: os<br />

“causos” da pesca. Todavia, a graciosida<strong>de</strong> do trabalho <strong>de</strong> jogar e puxar tarrafa e o<br />

bom <strong>de</strong>lineamento do corpo dos trabalhadores que regularmente o praticam <strong>de</strong>ixam<br />

suas marcas: as dores crônicas nas costas já na ida<strong>de</strong> adulta e na velhice. Trata-se <strong>de</strong><br />

um aspecto importante <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ocupacional ao lado das constantes gripes, artrites,<br />

artroses e verminoses, provocadas pelo contato contínuo com a água do rio e pelo<br />

consumo da mesma in natura durante o período embarcado ou acampado.<br />

Se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> também se elabora pelos sentidos partilhados, <strong>de</strong>staca-se nos<br />

pescadores artesanais a sobreposição das imagens do reino natural e da vida social.<br />

Bachelard (2002) indica a utilida<strong>de</strong> psicológica do espelho das águas e, no São<br />

Francisco, esse espelho não são as águas propriamente, mas os peixes, com o qual<br />

o pescador realiza um processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação simbiótica.<br />

“O peixe é igual a nós. A gente amanhece o dia, vai pro serviço, mas ao meiodia<br />

vem pra casa almoçar. Acabou <strong>de</strong> almoçar, fez ali o que tinha que fazer,<br />

torna a voltar. À noite, procura sua casa. Do mesmo jeitinho é o peixe, a morada<br />

<strong>de</strong>le é na pausada. Igualzinho a nós, o peixe viaja; amanhece o dia, ele<br />

arriba no mundo caçando isca; quando enche a barriga, volta pra cama, toma<br />

fôlego e volta a sair. Quando é noite ele vem dormir. Mas, hoje, o peixe não<br />

acha mais a sua casa, não acha lugar para aportar” (Sr. B., pescador profissional<br />

artesanal, Januária, MG).<br />

Por fim, esvai em sua i<strong>de</strong>ntificação a circunscrição como munícipe e, <strong>de</strong> outro<br />

lado, evi<strong>de</strong>ncia-se a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações pelo rio, como “gente do São Francisco”<br />

cuja coesão, pelo trabalho, articula povos <strong>de</strong> cinco estados brasileiros: Minas Gerais,<br />

Bahia, Pernambuco, Alagoas e Sergipe:<br />

“O sangue <strong>de</strong> todos os beira<strong>de</strong>iros é o mesmo. São cinco povos no São Francisco<br />

– mineiros, baianos, sergipanos, alagoanos e pernambucanos –, mas são<br />

as mesmas características na luta e no sofrimento” (Sr. N., pescador profissional<br />

artesanal, São Gonçalo do Abaeté, MG).<br />

O rio, assim, é uma produção imaginativa que habita o pescador artesanal.<br />

Envolto em águas imaginárias, seu trabalho concreto e sua sociabilida<strong>de</strong> perseveram<br />

para humanizar as práticas nas águas reais; e, no entanto, enfrenta melancolicamente<br />

a contínua pressão <strong>de</strong> atores mo<strong>de</strong>rnos para extirpá-lo, gera sofrimento<br />

e morte social. Daí, caber, no <strong>de</strong>stino trágico do São Francisco, as imagens tristes<br />

a que reporta Bachelard (2002):


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 67<br />

“O ser votado à água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa<br />

<strong>de</strong> sua substância <strong>de</strong>smorona constantemente. A morte cotidiana não é a morte<br />

exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas; a morte cotidiana é a<br />

morte da água. A água corre sempre, (...) cai sempre, acaba sempre em sua morte<br />

horizontal (...) o sofrimento da água é infinito.”<br />

CONFLITOS SOCIAIS NA PESCA EM SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE<br />

São Tomé e Príncipe é um Pequeno Estado Insular e tem, por característica,<br />

um nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento ainda frágil, com 53% da população abaixo da linha<br />

da pobreza. Situado a oeste da costa africana no Golfo da Guiné, o arquipélago é<br />

constituído por duas ilhas e ilhéus adjacentes e ocupa uma superfície total <strong>de</strong> 1001<br />

km². A ilha <strong>de</strong> São Tomé e o seus ilhéus perfazem 859 km 2 <strong>de</strong> superfície, enquanto<br />

a ilha <strong>de</strong> Príncipe e os seus ilhéus perfazem 142 km². As ilhas distam 300 km da<br />

costa oci<strong>de</strong>ntal do Gabão e situam-se entre os paralelos 1º45' Norte e 0º25' Sul, e<br />

os meridianos 6º26' Leste e 7º30' Oeste (REPÚBLICA DEMOCRÁTICA DE SÃO<br />

TOMÉ E PRÍNCIPE, 2007). O país cristalizou-se, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o período colonial, numa<br />

economia <strong>de</strong> monocultura <strong>de</strong> plantação, baseada em cana-<strong>de</strong>-açúcar, seguida do<br />

café e, <strong>de</strong>pois, o cacau. Segundo Menezes (2003), nesse período, o país já passava<br />

por <strong>de</strong>pendência do mercado externo em mais <strong>de</strong> 90%. A <strong>de</strong>pendência foi agravando-se<br />

cada vez mais, esten<strong>de</strong>ndo-se ao período pós-in<strong>de</strong>pendência e, hoje, é<br />

consi<strong>de</strong>rada estrutural, visto que passa por todas as esferas da dinâmica social,<br />

político e econômico.<br />

São Tomé e Príncipe sofreram, por mais <strong>de</strong> 500 anos, a exploração e a dominação<br />

do colonialismo português – <strong>de</strong> 1470 até 1975. Um dos legados <strong>de</strong>sse processo,<br />

no período pós-in<strong>de</strong>pendência, é a crença dos colonizadores <strong>de</strong> que aspirações<br />

coletivas dos nativos seriam iguais às dos colonizadores, na visão do mundo, na<br />

forma <strong>de</strong> ser e <strong>de</strong> estar, etc. Young (2005) caracteriza a colonização como máquinas<br />

violentas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sintegrar ou <strong>de</strong>sculturar territorialida<strong>de</strong>s nativas e reinscrever<br />

ou aculturar, segundo interesses do po<strong>de</strong>r colonial. Dito <strong>de</strong> outra forma, a colonização<br />

proporciona uma <strong>de</strong>scaracterização pela não valorização do pacto social<br />

baseado nas relações <strong>sociais</strong> espirituais nativas.<br />

Nesse quadro, Simão & Silva (2007) interpretam os programas e projetos <strong>de</strong><br />

cooperação internacional como forças atuantes na reconfiguração <strong>de</strong> estruturas<br />

políticas e <strong>sociais</strong>, por meio <strong>de</strong> projetos, geralmente, construídos além-mar que se<br />

sobrepõem às mais diferentes realida<strong>de</strong>s locais como constituintes <strong>de</strong> um vasto<br />

campo <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

A reconfiguração estrutural imposta ao país pelo FMI, por meio <strong>de</strong> políticas<br />

neoliberais (<strong>de</strong> 70 a 90), levou à transferência das pequenas infraestruturas estatais<br />

<strong>de</strong> comercialização, conservação e transporte do pescado para a gestão privada<br />

(DIEGUES, 2010). As infraestruturas <strong>de</strong> fabricação <strong>de</strong> gelo, da câmara <strong>de</strong><br />

congelamento, das pequenas embarcações, do transporte das comunida<strong>de</strong>s foram


68 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

transferidas mediante clientelismos políticos, ocasionando subsequente abandono<br />

e <strong>de</strong>terioração das mesmas. Daquele tempo até hoje, temos testemunhado a<br />

crescente <strong>de</strong>satenção dos sucessivos governos 6 para com o setor pesqueiro, não<br />

obstante, a relevância do referido setor para a segurança alimentar do povo<br />

santomense. Com o peixe, a banana, a fruta-pão, a mandioca e o azeite <strong>de</strong> palma<br />

compõem a dieta alimentar básica do povo local. Desatenção que o pescador<br />

artesanal <strong>de</strong> Pantufo 7 resume da seguinte maneira: “Como que um ‘pai’ que tem<br />

dois filhos po<strong>de</strong> dar atenção só para um e esquecer <strong>de</strong> outro. Tudo que ouve no<br />

radio e televisão só é para agricultura, e a pesca está sempre esquecida”.<br />

O setor pesqueiro está vinculado à Direcção Geral das Pescas e subordinado<br />

ao Ministério da Agricultura, Pesca e Desenvolvimento Rural. Não obstante a boa<br />

formação e capacida<strong>de</strong> profissional dos seus técnicos, a referida Direcção, ela também,<br />

passa por penúria no fazer cotidiano administrativo e operacional, lidando<br />

com privações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns salarial; <strong>de</strong> locomoção, transporte terrestre e marítimo<br />

(escassez <strong>de</strong> combustível); <strong>de</strong> equipamentos para escritório; <strong>de</strong>ntre outros. Do lado<br />

dos pescadores, as privações ten<strong>de</strong>m a ser mais agravantes pela ausência <strong>de</strong><br />

microcréditos, materiais <strong>de</strong> pesca, bússolas, sistema <strong>de</strong> previsão tempo, etc.<br />

Em São Tomé e Príncipe, a pesca é regulamentada pela Lei das Pescas e Recurso<br />

Haliêutico 9/2001, promulgada e publicada em 25 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2000. A<br />

referida lei aspira à exploração dos recursos pesqueiros respeitando os interesses<br />

nacionais presentes e vindouros. Operacionalmente, a lei não aponta para a criação<br />

– através da Direcção Geral das Pescas – <strong>de</strong> um plano nacional integrado <strong>de</strong><br />

gestão e conservação dos estoques pesqueiros e, muito menos, para os impactos<br />

dos eventos extremos relacionados à mudança do clima sobre os recursos pesqueiros.<br />

Versa sobremaneira pela conservação dos estoques, pela exploração e pela gestão<br />

do or<strong>de</strong>namento pesqueiro, com um elenco <strong>de</strong> proibições, infrações e afins, sem,<br />

contudo, fazer menção à construção <strong>de</strong> ações participativas, envolvendo os principais<br />

sujeitos da interação: pescadores e palaiês. O pescador Eduardo, da comunida<strong>de</strong><br />

pesqueira da praia Melão, se refere à ausência <strong>de</strong> participação da seguinte<br />

forma: “Gostaria que o governo <strong>de</strong>sse uma mão ao pescador, não só ao pescador<br />

mais palaiês, ajudava bastante”.<br />

A importância da pesca artesanal foi <strong>de</strong>vidamente ressaltada no Plano Nacional<br />

<strong>de</strong> Adaptação às Mudanças Climáticas (PANA), tanto em relação ao seu pa-<br />

6. De 1975 a 1990, 15 anos <strong>de</strong> governo monolítico dirigido por Manuel Pinto da Costa.<br />

Período <strong>de</strong>mocrático, <strong>de</strong> 1991 a 2001, o presi<strong>de</strong>nte Miguel dos Anjos Lisboa Trovoada<br />

empossou 7 chefes <strong>de</strong> governo, sendo que a constituição estipula 4 anos para cada<br />

mandato <strong>de</strong> Primeiro-Ministro. De 2001 a 2011, Presi<strong>de</strong>nte Fradique Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong><br />

Menezes empossou igualmente 7 governos constitucionais. Em 20 anos <strong>de</strong> instituição<br />

<strong>de</strong>mocrática foram empossados 14 governos.<br />

7. Pantufo é nome atribuído a uma comunida<strong>de</strong> pesqueira.


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 69<br />

pel na economia do país quanto à dieta alimentar. De acordo com o PANA (RE-<br />

PÚBLICA DEMOCRÁTICA DE SÃO TOMÉ E PRÍNCIPE, 2007), a dieta em<br />

peixe supre mais <strong>de</strong> 70% da proteína animal que a população santomense consome.<br />

E ressalta que a prática pesqueira está extremamente vulnerável aos impactos<br />

dos eventos extremos relacionados às mudanças do clima.<br />

Segundo Costa (2010), mais <strong>de</strong> 4.480 famílias estão envolvidas diretamente<br />

na pesca artesanal. A ativida<strong>de</strong> costumeiramente é praticada em pequenas canoas<br />

talhadas em árvores centenárias,, muitas <strong>de</strong>stas frutíferas. A maior parte das embarcações<br />

é a remo e a vela. Os pescadores artesanais <strong>de</strong>spontam ao mar às três da<br />

manhã – sozinhos ou em grupos <strong>de</strong> até cinco pessoas em cada embarcação – e voltam<br />

às quinze horas. Há, também, aqueles que <strong>de</strong>spontam ao mar às <strong>de</strong>zessete horas e<br />

retornam às cinco horas da manhã. Os pescadores chegam com pescado fresco à<br />

praia, caso haja sucesso na pescaria. Ao chegarem à praia, ven<strong>de</strong>m o pescado em<br />

unida<strong>de</strong> para as palaiês ou dão fiado.<br />

As palaiês, <strong>de</strong> gamela 8 e bacia <strong>de</strong> plástico na cabeça, vão andando, <strong>de</strong> uma<br />

zona à outra, ven<strong>de</strong>ndo o peixe. Outras vão <strong>de</strong> táxi ao mercado central em São<br />

Tomé e às zonas mais longínquas da praia. Percorrem, entre ida e volta, <strong>de</strong>pendo<br />

da zona, mais <strong>de</strong> 10 km, <strong>de</strong> porta em porta, anunciando a venda do peixe. As que<br />

<strong>de</strong>spontam para a venda pela manhã retornam às treze horas, e as que <strong>de</strong>spontam<br />

às quinze horas voltam às <strong>de</strong>zoito horas com todo o pescado vendido ou não. O<br />

restante do pescado, após todo percurso <strong>de</strong> venda, é salgado, um dos únicos meios<br />

<strong>de</strong> conservação existente. Na volta, compram banana, tomate, azeite <strong>de</strong> palma, arroz<br />

e afins para garantir a refeição do jantar.<br />

A redução <strong>de</strong> cardumes, provocada pela sobre-exploração dos mesmos por<br />

embarcações europeias no alto-mar no entorno <strong>de</strong> São Tomé, compromete o modo<br />

<strong>de</strong> vida <strong>de</strong> inúmeras comunida<strong>de</strong>s pesqueiras <strong>de</strong>sse pequeno Estado insular africano,<br />

seja porque impe<strong>de</strong> a obtenção da renda para aquisição <strong>de</strong> outros itens vitais,<br />

seja porque compromete o provimento direto <strong>de</strong> proteína animal. Assim expressam<br />

suas preocupações as palaiês santomenses, como Céu, Sotina e Sebastiana:<br />

“Palaiê não tem dinheiro pá comprá peixe, fia o peixe e vai ven<strong>de</strong>r, <strong>de</strong>pois entrega<br />

pescador dinheiro, há pescador não fica gosta (...)] <strong>de</strong>pois pá vê coisa pá<br />

compra fruta, sabão pá lavar roupa, não há dinheiro, vida tá difícil” (Céu, palaiê,<br />

São Tomé Príncipe).<br />

“Esses dia, palaiê e piscadó <strong>de</strong> praia Melão está muito mal. Não tem dinheiro pá<br />

compra comida pá criança, fica comer fruta só, não tem peixe, banana seco, não<br />

tem dinheiro pá comprar arroz, comprar leite pá criança, garroto não vai beber<br />

leite mais, São Tomé está muito mal” (Sotina, palaiê, São Tomé e Príncipe).<br />

8. Ma<strong>de</strong>ira talhada em circunferência que facilita o transporte do peixe.


70 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

“Eu tá com criança sem pai, não tem ajuda. Eu tou aqui, não tem dinheiro pá<br />

fazer negocio. Eu saí praia, ganhei <strong>de</strong>z conto, só Dbs 10.000,00 [0,50 USD].<br />

Dez conto faz quê? Não faz nada. Eu tá com três crianças sem pai, sem ajuda”<br />

(Sebastiana, palaiê, São Tomé e Príncipe).<br />

A falta <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> previsão do tempo e <strong>de</strong> alerta sobre os riscos <strong>de</strong><br />

navegação surpreen<strong>de</strong> muitos pescadores artesanais em mar, ceifando-lhes a vida.<br />

A morte do pescador, sobretudo quando chefe <strong>de</strong> família, <strong>de</strong>sestrutura o tecido<br />

familiar. O filho mais velho passa ao mar com menos experiência e assumindo mais<br />

riscos à vida diante das intempéries.<br />

Enquanto isso, os acordos <strong>de</strong> pesca <strong>de</strong> São Tomé e Príncipe com a União<br />

Europeia (UE), referentes ao acesso às águas jurisdicionais locais, ten<strong>de</strong>m a ser<br />

<strong>de</strong>siguais e injustos para a parte africana. Na prática, há restrições para fiscalizar a<br />

frota estrangeira (observador <strong>de</strong> bordo), esta faz uso <strong>de</strong> técnicas <strong>de</strong> pesca predatória<br />

e impe<strong>de</strong> a aproximação da pesca artesanal. Mais uma vez, trazemos o <strong>de</strong>poimento<br />

do <strong>de</strong>salentado pescador Eduardo, da comunida<strong>de</strong> pesqueira da praia Melão:<br />

“(...) eles [barcos europeus] passam a pescar 80 km fora e assim matam mais<br />

peixe que entra na baía (...). E assim peixe não está entrar baía mais pá essa<br />

canoas pequeninas. Ha barcos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> muitos países que fazem pesca aqui,<br />

nós encontramos, sei que própria a capitania tem conhecimento <strong>de</strong>sses barcos<br />

que fazem pesca aqui. Eles têm re<strong>de</strong> <strong>de</strong> arrastão, que eles fazem cerca com ele<br />

e mata mais peixe (...). Peixe está a enfraquecer mesmo <strong>de</strong>vido essas pesca que<br />

eles estão a fazer.”<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Como já argumentava Diegues (1998), o trabalho da pesca, no geral, <strong>de</strong>fine<br />

certas práticas <strong>sociais</strong> que não po<strong>de</strong>m ser replicadas em qualquer lugar. As representações<br />

<strong>sociais</strong> dos territórios da pesca, como elementos constitutivos do mundo<br />

ordinário, são conservadas/superadas cotidianamente através das estruturas<br />

estruturadas e estruturantes do habitus dos membros da comunida<strong>de</strong>, dando sentido<br />

ao modo <strong>de</strong> vida que impulsiona sua vida coletiva.<br />

A construção social dos territórios da pesca, ou dos pontos <strong>de</strong> pesca, relaciona-se<br />

não só com as condições ecológicas e biológicas da produção e reprodução<br />

da ictiofauna, mas, sobretudo, com as condições históricas e <strong>sociais</strong> que instituíram<br />

tais práticas <strong>sociais</strong> como centro <strong>de</strong> um modo <strong>de</strong> vida particular, o qual sofre<br />

crescentes riscos e pressões em virtu<strong>de</strong> da ação predatória dos pescadores <strong>de</strong> fora,<br />

movidos por outras racionalida<strong>de</strong>s – racionalida<strong>de</strong> que, em razão dos seus fundamentos,<br />

não compreen<strong>de</strong> e muito menos sente os vínculos <strong>de</strong> pertencimento dos pescadores<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro com o território, tal como compreendido por Guattari & Rolnik (1986:<br />

323): (...) os seres existentes se organizam segundo territórios que os <strong>de</strong>limitam e<br />

os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território po<strong>de</strong> ser relativo<br />

tanto a um espaço vivido quanto a um espaço sistema percebido no seio da


Cap. III Conflitos Sociais na Pesca em Ambientes Lacustres, Rios e Mares: a luta... 71<br />

qual um sujeito se sente “em casa”. Ele é o conjunto <strong>de</strong> projetos e representações<br />

nos quais vai <strong>de</strong>sembocar, pragmaticamente, toda uma série <strong>de</strong> comportamentos,<br />

<strong>de</strong> investimentos, nos tempos e nos espaços <strong>sociais</strong>, culturais, estéticos, cognitivos.<br />

Percebe-se, em razão dos resultados da pesquisa apresentada, que a <strong>de</strong>fesa<br />

dos territórios da pesca, ou dos pontos <strong>de</strong> pesca, nos três casos analisados, implica<br />

uma luta social contra a <strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong> <strong>de</strong> sujeitos <strong>sociais</strong> ancestrais que vivem<br />

da pesca – tanto para sua subsistência quanto para eventual comercialização,<br />

visando monetarizar sua economia. Os três casos investigados indicam igualmente<br />

que a luta social contra a <strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong> dos diferentes pescadores tem relação<br />

direta com o processo civilizatório, no qual estamos imersos, que tem se<br />

efetivado à custa da <strong>de</strong>struição dos saberes da sociodiversida<strong>de</strong> do mundo... O<br />

processo avassalador <strong>de</strong>strutivo das mais diferentes etnias, mundo afora – noutras<br />

palavras, <strong>de</strong> sua sociodiversida<strong>de</strong> –, logo, e inexoravelmente, das mais diferentes<br />

formas <strong>de</strong> pensar/fazer, resultou e tem resultado naquilo que Boaventura <strong>de</strong> Souza<br />

Santos (2001) classificou corretamente <strong>de</strong> o <strong>de</strong>sperdício da experiência. A luta<br />

contra o <strong>de</strong>sperdício das experiências da sociodiversida<strong>de</strong> do mundo não significa<br />

a <strong>de</strong>fesa do raciocínio reacionário a favor do congelamento no tempo/espaço do<br />

modo <strong>de</strong> vida das “populações tradicionais”. Significa, pelo contrário, reconhecer<br />

que a razão e a racionalida<strong>de</strong> que acompanham intrinsecamente o modo <strong>de</strong> produção<br />

capitalista não têm conseguido – e certamente não conseguirão face às suas<br />

contradições estruturantes internas – incluir os homens da Terra no seu projeto<br />

civilizatório.<br />

Além disso, a compreensão sociológica dos conflitos <strong>sociais</strong> nos casos investigados<br />

– a pesca praticada em ambientes lacustres e nas águas do rio Solimões (no<br />

estado do Amazonas), as pescarias no rio São Francisco (no estado <strong>de</strong> Minas Gerais)<br />

e a ativida<strong>de</strong> pesqueira em São Tomé e Príncipe (na África) –, que envolvem<br />

tipos <strong>de</strong> pescadores e formas <strong>de</strong> acesso/uso aos recursos ictiofaunísticos nos ambientes<br />

aquáticos, indica claramente, sem sofismas, o reconhecimento <strong>de</strong> aspectos<br />

transversais a eles comuns: (1) a organização social do trabalho; (2) as implicações<br />

nas relações <strong>sociais</strong> internas <strong>de</strong> certos grupos <strong>de</strong> trabalhadores da pesca; (3)<br />

as racionalida<strong>de</strong>s subjacentes às formas <strong>de</strong> apropriação social dos recursos naturais;<br />

(4) as representações <strong>sociais</strong> que permeiam a ativida<strong>de</strong> da pesca; (5) a relação<br />

entre a pesca e o mercado da pesca inserido no modo <strong>de</strong> produção capitalista; (6)<br />

as tecnologias utilizadas em pequena escala e em escala industrial; e, por fim, (7)<br />

os projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento adotados nas condições históricas dos envolvidos.<br />

Os conflitos relativos ao acesso/uso aos recursos ictiofaunísticos <strong>de</strong>scortinam distinções<br />

relevantes no mundo do trabalho, o qual amolda as práticas dos agentes<br />

<strong>sociais</strong> em disputa, bem como <strong>de</strong>monstram a contínua – mas não pacífica – construção<br />

social da legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um dado domínio territorial. Trata-se <strong>de</strong> lutas na<br />

<strong>de</strong>marcação e consolidação <strong>de</strong> espaços <strong>sociais</strong>, visando garantir ganhos econômicos<br />

em diferentes escalas e com diferentes significados.


72 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Os mecanismos <strong>de</strong> apropriação dos ambientes <strong>de</strong> pesca são dispostos <strong>de</strong> acordo<br />

com um reconhecimento social mútuo entre os agentes <strong>sociais</strong> que os legitimam.<br />

Reconhecer os <strong>de</strong> fora ou os <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro entre aqueles que se utilizam dos recursos<br />

pesqueiros, em seus diferentes ambientes, requer não <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o sentimento<br />

<strong>de</strong> pertença dos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro, em que, para eles, o mundo material/simbólico<br />

forma uma unida<strong>de</strong> indivisa. Nesse sentido, a pesca representa muito mais do que<br />

uma ativida<strong>de</strong> que garante a reprodução material da vida. Ela emerge como representação<br />

social da própria vida.<br />

Por fim, mas não menos importante, os casos investigados nos estimulam a<br />

pensar três conceitos emergentes – ecorregião, ecotecnologia e eco<strong>de</strong>senvolvimento<br />

– que ainda precisam ser aprimorados no âmbito da construção <strong>de</strong> uma<br />

racionalida<strong>de</strong> alternativa à racionalida<strong>de</strong> hegemônica – que, aliás, se alimenta da<br />

concepção mimética <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento como sendo algo sinônimo ao crescimento<br />

econômico: a racionalida<strong>de</strong> ambiental. Não é mais possível, no âmbito do atual processo<br />

civilizatório, imaginar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> os países in<strong>de</strong>vidamente classificados<br />

<strong>de</strong> sub<strong>de</strong>senvolvidos, em <strong>de</strong>senvolvimento, emergentes, etc., adotarem a mesma<br />

racionalida<strong>de</strong> produtiva dos países “<strong>de</strong>senvolvidos”. Para a adoção <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento – tão bem representado pela civilização do automóvel –, precisaríamos<br />

<strong>de</strong>, pelo menos, três Terras. Não temos três Terras.<br />

Em razão disso, não nos resta outra alternativa histórica a não ser a <strong>de</strong> diversificar<br />

nossa concepção <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, superando a perspectiva mimética<br />

apontada, levando em consi<strong>de</strong>ração o conceito <strong>de</strong> ecorregião – o que, no caso brasileiro,<br />

implica necessariamente o reconhecimento dos diversos biomas que configuram<br />

o seu suporte <strong>de</strong> natureza: a floresta amazônica, a caatinga, os campos, o<br />

cerrado, as matas dos pinhais (ou das araucárias), a mata atlântica, a mata dos<br />

cocais, o pantanal e o extenso e diverso litoral. Na medida em que consigamos<br />

reconhecer a diversida<strong>de</strong> ecorregional brasileira, por exemplo, esse reconhecimento<br />

“impõe” – quase como um imperativo categórico – que pensemos em<br />

ecotecnologias a elas a<strong>de</strong>quadas, não po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar em seus fundamentos<br />

os princípios socioeconômicos, político-culturais e ecológicos do<br />

eco<strong>de</strong>senvolvimento.<br />

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CAPÍTULO IV<br />

A FARSA E A TRAGÉDIA DO PROGRAMA DE<br />

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL ZONA FRANCA<br />

VERDE (PZFV) EM GUAJARÁ, AM<br />

INTRODUÇÃO<br />

José Júlio César do Nascimento Araújo<br />

Maria <strong>de</strong> Jesus Morais<br />

O enfoque <strong>de</strong>ste capítulo está centrado no estudo das relações entre os <strong>processos</strong><br />

<strong>sociais</strong> e ecológicos que permeiam a dinâmica produtiva implantada pelo<br />

Programa Zona Franca Ver<strong>de</strong> no município <strong>de</strong> Guajará, no estado do Amazonas.<br />

O objetivo é compreen<strong>de</strong>r se as políticas planejadas no âmbito do Programa Zona<br />

Franca Ver<strong>de</strong> (PZFV) se consolidaram em um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável<br />

para o município <strong>de</strong> Guajará.<br />

O planejamento <strong>de</strong> políticas ambientais para o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável,<br />

baseado no manejo integrado dos recursos naturais, tecnológicos e culturais <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong>, conduz à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r as inter-relações que se estabelecem<br />

entre <strong>processos</strong> históricos, econômicos, ecológicos e culturais no <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> forças produtivas da socieda<strong>de</strong> (LEFF, 2001).<br />

A lógica do PZFV se apoia em uma i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a sustentabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> políticas<br />

públicas po<strong>de</strong> ser conseguida com ações produtivas <strong>de</strong> cima para baixo. Não se<br />

nota que a incorporação <strong>de</strong> novas técnicas ou novos modos <strong>de</strong> vida por parte das<br />

populações tradicionais, sejam elas produtivas ou conservacionistas, está ligada<br />

diretamente à autonomia política das populações envolvidas. Além disso, implantar<br />

uma “nova racionalida<strong>de</strong> ambiental” <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da disposição dos grupos envolvidos<br />

e também da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes em absorver conhecimentos científicos e<br />

técnicas mo<strong>de</strong>rnas. Isso revela que o sucesso do PZFV <strong>de</strong>pendia também da compreensão,<br />

interesse e participação dos grupos <strong>sociais</strong>.<br />

A presente discussão está dividida em três seções. Na primeira apresentamos<br />

o PZFV e suas estratégias e ações. Na segunda apresentamos as ações que foram<br />

realizadas em Guajará e sua importância. Na última discutimos os resultados e<br />

apontamos as conclusões do estudo.<br />

O texto apresenta os resultados da pesquisa <strong>de</strong> mestrado em Desenvolvimento Regional da<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre.


76 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL NO CERNE<br />

DA POLÍTICA BRASILEIRA<br />

A Amazônia tornou-se um vasto espaço para implantação <strong>de</strong> programas,<br />

projetos e pesquisas voltados para a conservação da natureza e experiências sustentáveis<br />

na ótica <strong>de</strong> ações, como o Programa Nacional <strong>de</strong> Meio Ambiente, o Programa<br />

Experimento <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong> Escala Biosfera-Atmosfera, o Fundo para o Meio<br />

Ambiente Global e o PPG-7. Tais programas foram implementados com o objetivo<br />

<strong>de</strong> promover o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável da região, alocando recursos humanos<br />

e tecnológicos, através do envolvimento <strong>de</strong> universida<strong>de</strong>s nacionais e instituições<br />

científicas e ambientais internacionais. Relata Silva (2003: 7) que:<br />

“O programa PPG-7 surge como caso emblemático <strong>de</strong> inserção da Amazônia num<br />

esforço <strong>de</strong> governança global, processo orientado por uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atores,<br />

coalizões e estratégias. Foi <strong>de</strong> fundamental importância a mobilização das entida<strong>de</strong>s<br />

na fase <strong>de</strong> negociação do programa, com <strong>de</strong>staque para o Grupo <strong>de</strong> Trabalho<br />

Amazônico – GTA, grupo que reúne as ONG’s da Amazônia, hoje congregando<br />

mais <strong>de</strong> 500 organizações sócio-ambientalistas. A articulação do GTA e <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s<br />

nacionais com os movimentos ativistas transnacionais, notadamente Friends<br />

of the Earth (Amigos da Terra), entre outros, teve papel fundamental em termos <strong>de</strong><br />

pressão para colocar a idéia do programa piloto na agenda da reunião <strong>de</strong> cúpula<br />

dos sete países mais ricos do mundo, em Houston” (SILVA, 2003: 7).<br />

No governo <strong>de</strong> Luiz Inácio Lula da Silva, as organizações não governamentais<br />

assumiram um papel importante. De um lado, algumas ONGs ainda alimentam<br />

o <strong>de</strong>bate sobre a internacionalização da Amazônia, provocando inci<strong>de</strong>ntes<br />

diplomáticos. Outras (na outra ponta ou na mesma) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o uso sustentável<br />

como projeto para a Amazônia. A agenda brasileira, especialmente no Ministério<br />

do Meio Ambiente e no Ministério das Relações Exteriores, soma negociações sobre<br />

esses temas, envolvendo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o uso <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras até o acesso a recursos genéticos<br />

e repartição <strong>de</strong> benefícios e pagamento por serviços ambientais. Nos últimos anos<br />

se tornou notória a força das ONGs que atuam na Amazônia, principalmente, nos<br />

episódios como a Convenção da Diversida<strong>de</strong> Biológica (COP-8), Moratória da Soja,<br />

o embargo da carne bovina produzida na Amazônia e o Relatório do Painel Internacional<br />

sobre Mudança – IPCC.<br />

Além disso, ONGs e empresas criaram o Fórum Amazônia Sustentável e selaram<br />

o Pacto Nacional pela Valorização da Floresta e pelo fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>smatamento<br />

na Amazônia. No final da década <strong>de</strong> 1980 ocorreu o II Encontro dos Povos das<br />

Florestas, que resultou na reivindicação <strong>de</strong> reconhecimento e participação estratégica<br />

dos amazônidas nas soluções dos problemas. Entretanto, ONGs transnacionais<br />

criticaram as estratégias para a redução <strong>de</strong> <strong>de</strong>smatamento, fortalecendo atores<br />

<strong>sociais</strong> distintos na <strong>de</strong>fesa da soberania brasileira.<br />

No campo legislativo houve uma abertura para a concessão <strong>de</strong> terras e florestas<br />

públicas para o uso e exploração do mercado por meio da Lei nº 11.284, que


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 77<br />

dispõe sobre a Gestão <strong>de</strong> Florestas Públicas. A lei permite o uso múltiplo da floresta.<br />

É um dos resultados práticos da política ambiental do governo Lula. Foi<br />

implementada em caráter piloto por <strong>de</strong>z anos. Nesse período, segundo as projeções<br />

do Ministério do Meio Ambiente, será possível licitar 13 milhões <strong>de</strong> hectares na<br />

Amazônia, o que representa 3% das florestas públicas na região.<br />

Mas o maior legado da política ambiental <strong>de</strong> Lula para a Amazônia é o Plano<br />

Amazônia Sustentável (PAS). Marina Silva (2010), ex-ministra do Meio Ambiente<br />

do Governo Lula, <strong>de</strong>staca que o PAS visa i<strong>de</strong>ntificar alternativas que possam,<br />

simultaneamente, atribuir sustentabilida<strong>de</strong> aos <strong>processos</strong> <strong>sociais</strong> e econômicos<br />

vigentes e aos novos que se preten<strong>de</strong> consolidar ou introduzir na região.<br />

O PAS, como esforço governamental, procura também dinamizar o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

regional da Amazônia, tendo por foco o estabelecimento <strong>de</strong> uma política<br />

<strong>de</strong> serviços ambientais. Nesse sentido, o PAS pressupõe enxergar as<br />

especificida<strong>de</strong>s da região, mas também perceber as inter-relações que subsistem entre<br />

elas. Destaca-se ainda que o PAS é formado por um conjunto <strong>de</strong> diretrizes que<br />

po<strong>de</strong>m ser divididas em duas categorias: as estratégias <strong>de</strong> promoção da<br />

sustentabilida<strong>de</strong> socioambiental e as estratégias <strong>de</strong> incentivo ao <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico. Por isso, é necessário que essas estratégias, quando saírem do papel,<br />

sejam implantadas <strong>de</strong> forma intergovernamental e intragovernamental com efetiva<br />

participação social.<br />

A Amazônia brasileira, como uma das maiores reservas da biodiversida<strong>de</strong><br />

mundial, passou por um período <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento predatório sem prece<strong>de</strong>ntes<br />

que gerou diversos problemas econômicos, conflitos <strong>sociais</strong> e <strong>de</strong>gradação ambiental.<br />

No atual período, a região passa a representar, na lógica das agências internacionais,<br />

uma importante ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> luta conservacionista e palco <strong>de</strong> experiências<br />

sustentáveis (via manejo). De um prisma socioeconômico, as transformações<br />

inseridas significam uma mudança <strong>de</strong> estratégia em que o capital visa “criar uma<br />

situação <strong>de</strong> fato que os levem à maximização da exploração dos recursos naturais<br />

regionais e influir na administração do controle ambiental da região” (OLIVEIRA<br />

& GUIDOTTI, 2000: 68).<br />

A estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento é vista <strong>de</strong> duas formas. Becker (2009), na<br />

obra Um projeto para a Amazônia no século 21: <strong>de</strong>safios e contribuições, analisa que são<br />

visíveis gran<strong>de</strong>s dualida<strong>de</strong>s na compreensão da Amazônia, porém, um caminho<br />

possível <strong>de</strong> ser trilhado seria uma nova lógica <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento com base científico-tecnológica<br />

capaz <strong>de</strong> imprimir novas expectativas para as populações locais:<br />

“A dualida<strong>de</strong> entre o coração florestal – a floresta ombrófila <strong>de</strong>nsa, pouco afetada<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os tempos do <strong>de</strong>scobrimento, a não ser pela porção nor<strong>de</strong>ste do Estado<br />

do Pará, próximo a Belém e as <strong>de</strong>mais áreas já <strong>de</strong>gradadas ou sob pressão<br />

antrópica atual, passa a ser a chave <strong>de</strong> uma proposição estratégica para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

da Amazônia. Recomendam-se, para a primeira área, os conhecimentos<br />

necessários à implantação <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> produção bioindustriais,


78 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

orientadas para a fabricação <strong>de</strong> biocosméticos, fitoterápicos, nutracêuticos,<br />

produtos alimentares, bebidas, etc. Para a segunda, aqueles <strong>de</strong>dicados ao<br />

a<strong>de</strong>nsamento técnico-científico <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s, como a extração da ma<strong>de</strong>ira e<br />

setores relacionados, à silvicultura e o manejo florestal, à agroenergia, entre<br />

outras. Permeiam ambos os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sugeridos a construção<br />

<strong>de</strong> nexos que permitam, em âmbito internacional, forjar um espaço real<br />

<strong>de</strong> valoração dos serviços ambientais. Manaus estaria convocada a exercer uma<br />

li<strong>de</strong>rança enquanto modo das re<strong>de</strong>s globais que animam relações e circuitos<br />

financeiros aptos a sustentar essa ativida<strong>de</strong> inovadora para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

regional. Assumir outra perspectiva <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento importa em mudança<br />

<strong>de</strong> padrões produtivos e comerciais, em maior agregação <strong>de</strong> valor<br />

intra-regional, em maior capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retenção <strong>de</strong> riqueza na Região. O ‘Norte’<br />

não é mais apenas um celeiro <strong>de</strong> matérias-primas, à disposição dos aventureiros<br />

<strong>de</strong> plantão. Tampouco está <strong>de</strong>sprovido <strong>de</strong> uma população altiva, cheia <strong>de</strong><br />

anseios, ciente <strong>de</strong> suas prerrogativas, num concerto <strong>de</strong>mocrático que se vem<br />

aprofundando pouco a pouco. Desejos são criados e recriados a cada nova<br />

mensagem veiculada e replicada no imaginário nacional e global e, traduzidos<br />

para o contexto regional, ganham novas formas e conteúdos. Abrem novas<br />

expectativas para as populações nas diversas realida<strong>de</strong>s vivenciadas, urbana,<br />

comunitária, ribeirinha, indígena, etc.” (BECKER, 2009: 8).<br />

Nesse contexto se insere o Programa Zona Franca Ver<strong>de</strong>. Antes <strong>de</strong> tratarmos<br />

<strong>de</strong>sse Programa faremos uma caracterização do município <strong>de</strong> Guajará.<br />

O município <strong>de</strong> Guajará tem uma população <strong>de</strong> 12.031 habitantes. Segundo<br />

dados do IBGE (2010), a <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mográfica é <strong>de</strong> 1,9 hab./km². Possui 48<br />

escolas municipais e três estaduais. No município funcionam dois cursos superiores,<br />

em caráter modular, como projetos especiais <strong>de</strong> extensão da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

do Amazonas e da Universida<strong>de</strong> do Estado do Amazonas, respectivamente,<br />

Educação Física e Educação Indígena.<br />

No interior do município há 52 comunida<strong>de</strong>s espalhadas nas barrancas dos<br />

rios: Juruá, Pixuna, Boa Fé, Lagoinha e Campinas. Quase a meta<strong>de</strong> da população<br />

vive, nessas comunida<strong>de</strong>s, da agricultura e da pesca. Em nenhuma <strong>de</strong>las há postos<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Não há unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação e projetos <strong>de</strong> assentamentos.<br />

A renda média da população <strong>de</strong> Guajará é <strong>de</strong> R$ 56,29 (AMAZONAS, 2010).<br />

O município tem a pior renda do Estado do Amazonas e a 8ª pior do Brasil. Guajará<br />

tem o pior índice <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pobreza, 12º, em relação ao país e o 1º em<br />

relação ao Estado. Estes colocam o município como o 25º pior IDH-M do país e o<br />

3º pior do Estado. Em Guajará se registram os gran<strong>de</strong>s índices <strong>de</strong> <strong>de</strong>smatamento e<br />

queimadas do estado, grilagem <strong>de</strong> terras e baixa proporção da superfície do estado<br />

regularizada em termos fundiários com gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> seringais <strong>de</strong>sativados.<br />

Além disso, há diversos condicionantes <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política, como: a ausência do po<strong>de</strong>r<br />

público (com atribuição fe<strong>de</strong>ral em gran<strong>de</strong>s áreas), escassez <strong>de</strong> órgãos estaduais e<br />

falta <strong>de</strong> regularização fundiária.


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 79<br />

O PROGRAMA ZONA FRANCA VERDE EM GUAJARÁ<br />

A partir <strong>de</strong> 2003, com a eleição <strong>de</strong> Eduardo Braga para Governo do Estado,<br />

inicia-se uma nova forma <strong>de</strong> gerir a política pública voltada ao meio ambiente. O<br />

governo cria o Programa Zona Franca Ver<strong>de</strong> (PZFV) com a estratégia <strong>de</strong> interiorizar<br />

o crescimento da economia, com base nas potencialida<strong>de</strong>s regionais, para gerar<br />

emprego e renda, juntamente com o setor industrial <strong>de</strong> Manaus, objetivando:<br />

“(...) promover o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável do Estado do Amazonas a partir<br />

<strong>de</strong> sistemas <strong>de</strong> produção agropecuários, pesqueiros e florestais ecologicamente<br />

saudáveis amparados por políticas púbicas integradas, aliados a proteção<br />

ambiental e ao manejo sustentável <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação e terras indígenas”<br />

(AMAZONAS, 2004: 5).<br />

A tese proposta pelo Programa Zona Franca Ver<strong>de</strong> (PZFV) é que a floresta<br />

vale mais em pé que no chão. Assim, temos, a partir <strong>de</strong> 2004, a criação <strong>de</strong> 41<br />

unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação sob jurisdição do po<strong>de</strong>r público fe<strong>de</strong>ral e estadual, cobrindo<br />

uma área <strong>de</strong> 53,70% da superfície total do Estado.<br />

Porém, em análise empreendida pela Comissão Econômica para América<br />

Latina e Caribe (CEPAL, 2007), das estratégias adotadas para dinamizar a economia<br />

no estado pelo PZFV, observou-se que um conjunto <strong>de</strong>las sequer começou a<br />

ser implantado após cinco anos <strong>de</strong> execução do programa, época em que a CEPAL<br />

finalizou a Análise Ambiental e da Sustentabilida<strong>de</strong> do Estado do Amazonas.<br />

Diante <strong>de</strong>sse quadro, salvo ações pontuais, as ações do PZFV têm priorizado a<br />

indução <strong>de</strong> uma economia florestal que não tem fortalecido a economia do interior<br />

nem melhorado seus índices <strong>de</strong> pobreza. Isso tem gerado várias críticas ao programa,<br />

calcadas no sistema <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação e no <strong>de</strong>safio <strong>de</strong><br />

aumentar a escala <strong>de</strong> aproveitamento econômico da biodiversida<strong>de</strong> e dos serviços<br />

ambientais à dinamização da economia no interior do estado.<br />

Analisando os pilares do programa que consistem em sistemas <strong>de</strong> produção<br />

agropecuários, pesqueiros e florestais, conforme expresso no seu objetivo, é possível<br />

traçar um quadro consistente do que foi realizado em oito anos. Segundo análise<br />

da CEPAL (2007):<br />

“No que respeita às políticas <strong>sociais</strong> tradicionais, vale ressaltar que os investimentos<br />

nos setores <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, habitação, saneamento e educação, apesar<br />

<strong>de</strong> serem priorida<strong>de</strong> na aplicação do orçamento estadual, ainda estão longe<br />

<strong>de</strong> encontrar soluções para melhorar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida da população,<br />

principalmente no interior do estado. Com exceção da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manaus,<br />

a população ainda enfrenta sérios problemas <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> água potável,<br />

saneamento básico e coleta, tratamento e disposição a<strong>de</strong>quada do lixo, fato<br />

que tem impacto direto não só na situação habitacional, mas também no estado<br />

<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e nas condições sanitárias da população afetada” (CEPAL, 2007:<br />

29, grifo nosso).


80 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Por outro lado, o PZFV enten<strong>de</strong> sistema florestal e criação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

conservação como instrumento necessário ao manejo ma<strong>de</strong>ireiro e não ma<strong>de</strong>ireiro<br />

ou exploração <strong>de</strong> espécies silvestres, por isso o governo criou uma série <strong>de</strong> leis e<br />

<strong>de</strong>cretos que possibilitam a ação dos gran<strong>de</strong>s grupos industriais no mercado<br />

amazonense.<br />

Uma <strong>de</strong>ssas mudanças foi a criação da Lei 2.826/03, que regulamenta a nova<br />

Política Estadual <strong>de</strong> Incentivos Fiscais e Extrafiscais aprovada pelo Decreto 23.994/<br />

03. Dessa forma, produtos <strong>de</strong> origem florestal e matérias-primas produzidas no<br />

interior oriundas da flora e fauna regionais e o pescado industrializado passam a<br />

ter o mesmo incentivo fiscal da Zona Franca <strong>de</strong> Manaus.<br />

Isso permitiu a entrada no mercado amazonense <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> alguns conglomerados<br />

indústrias transnacionais como: a Cikel Brasil Ver<strong>de</strong> S.A. (com se<strong>de</strong><br />

em Londres), a Gethal Amazonas S.A. (do milionário sueco Johan Eliasch), Mil<br />

Ma<strong>de</strong>iras Itacoatiara S.A (empreendimento brasileiro da Gethal S.A.), a Floream<br />

(Florestas Renováveis da Amazônia Ltda., com se<strong>de</strong> em Caxias do Sul, RS, que<br />

tem como sócios a Brazil Forestry Fund Investiment, com se<strong>de</strong> nos Estados Unidos,<br />

e a empresa Nilory Sociedad Anonima, com se<strong>de</strong> no Uruguai). Com isso, o<br />

volume <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras retiradas aumentou 67%, segundo dados do IBGE (2006, apud<br />

CEPAL, 2007: 152).<br />

Nesta perspectiva, refletindo sobre as políticas do PZVF e o uso das unida<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> conservação como instrumento <strong>de</strong> política <strong>de</strong>senvolvimentista e agrária para<br />

o Amazonas, percebe-se que este necessita ser repensado. A forma <strong>de</strong> regularização<br />

fundiária do Amazonas a partir <strong>de</strong> Reservas <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável<br />

(RDS) 1 interfere diretamente na vida, na organização social e territorial do ribeirinho<br />

e do produtor rural estabelecidos no interior dos municípios, em meio à floresta,<br />

nos distantes ramais e seringais. Dutra & Faria (2009), discutindo os <strong>de</strong>safios<br />

do <strong>de</strong>senvolvimento rural por meio <strong>de</strong> RDS, salientam que:<br />

“As reservas têm atribuído gran<strong>de</strong> importância para o <strong>de</strong>senvolvimento das comunida<strong>de</strong>s<br />

locais no meio rural do estado, principalmente no que se refere a imbuir<br />

os sujeitos do lugar <strong>de</strong> novos significados e significância na gestão do território a<br />

partir dos conselhos <strong>de</strong>liberativos da unida<strong>de</strong>, e ações <strong>de</strong> fiscalização como os<br />

agentes voluntários. No entanto, acreditamos que se têm muito mais <strong>de</strong>mandas e<br />

<strong>de</strong>safios a suprir, com essa política <strong>de</strong> or<strong>de</strong>namento territorial, que realmente casos<br />

com êxitos, afinal, poucas são as unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação criadas pelo atual<br />

1. A Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável (RDS) é <strong>de</strong> domínio público, sendo que as<br />

áreas particulares incluídas em seus limites <strong>de</strong>vem ser, quando necessário, <strong>de</strong>sapropriadas,<br />

<strong>de</strong> acordo com o que dispõe a lei. Esta tem por objetivo preservar a natureza<br />

e, ao mesmo tempo, assegurar as condições e os meios necessários para a<br />

reprodução e a melhoria dos modos e da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e exploração dos recursos<br />

naturais das populações tradicionais, bem como valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento<br />

e as técnicas <strong>de</strong> manejo do ambiente, <strong>de</strong>senvolvido por estas populações.


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 81<br />

governo que se encontram em processo <strong>de</strong> implementação por falta <strong>de</strong> recursos<br />

para investimentos e interesses políticos locais (DUTRA & FARIA, 2009: 13).<br />

Olhando pelo princípio da regularização fundiária e sua efetivação, Torquato<br />

& Freire (2007) criticam o processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> RDS, pois estas não envolvem<br />

suas populações e não trazem melhorias à qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Soares & Anjos (2007)<br />

também compreen<strong>de</strong>m que essa proposta <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> RDS no estado, como forma<br />

<strong>de</strong> pautar uma legalida<strong>de</strong> na regularização fundiária, não funciona e não se<br />

efetivará em longo prazo porque a falta <strong>de</strong> regulamentação legal do Programa Zona<br />

Franca Ver<strong>de</strong> torna-o limitado numa perspectiva temporal.<br />

AS AÇÕES DO PROGRAMA ZONA FRANCA VERDE EM GUAJARÁ<br />

Nesta seção discutiremos as ações implantadas pelo Programa Zona Franca<br />

Ver<strong>de</strong> em Guajará. Estará centrada naquilo que foi efetivamente realizado e que<br />

contemplava ou não as estratégias e objetivos do PZFV. Nesta primeira parte apresentamos<br />

os resultados das ações e na seção posterior discutiremos os caminhos<br />

assumidos por essas ações, os erros, as incoerências e também a compreensão da<br />

população afetada ou beneficiada pelo PZFV em Guajará.<br />

A MELHORIA NA EDUCAÇÃO<br />

Durante a execução do PZFV, o governo colocou em prática o Projeto <strong>de</strong><br />

Letramento Reescrevendo o Futuro, em 2005, com a meta <strong>de</strong> reduzir os índices <strong>de</strong><br />

analfabetismo <strong>de</strong> adultos em todo o estado e oferecendo aos matriculados uma bolsa<br />

<strong>de</strong> alimentação <strong>de</strong> R$ 30,00 (trinta reais) para que passassem o sábado estudando.<br />

Além disso, o governo ofereceu aos professores interessados em alfabetizar<br />

adultos uma bolsa <strong>de</strong> R$ 240,00 (duzentos e quarenta reais).<br />

Segundo o Programa Reescrevendo o Futuro (UEA, 2007), responsável pela<br />

alfabetização <strong>de</strong> jovens e adultos no estado, no período <strong>de</strong> 2002 a 2007, o atendimento<br />

no município cresceu 111,3% em relação ao Censo <strong>de</strong> 2000. Essa evolução<br />

é percebida na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolas rurais do município, que cresceu 30%. Esse<br />

programa provocou uma “revolução” no município <strong>de</strong> Guajará e conseguiu alfabetizar,<br />

em dois anos, 632 adultos, oferecendo vagas em algumas comunida<strong>de</strong>s rurais.<br />

Além disso, os dados do INEP (2008) mostram que hoje o índice <strong>de</strong> crianças<br />

em ida<strong>de</strong> escolar fora da escola é zero e que houve uma redução do índice <strong>de</strong> analfabetismo<br />

entre jovens e adultos.<br />

Além disso, a Universida<strong>de</strong> do Estado do Amazonas, em parceria com o PZFV,<br />

implantou no município o Programa <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Professores (PROFORMAR),<br />

conseguindo formar, no período <strong>de</strong> 2002 a 2006, 48 professores no curso <strong>de</strong> Licenciatura<br />

Normal Superior. No período <strong>de</strong> 2006 a 2009, o programa formou 98<br />

professores com a mesma titulação. E, ainda, o PZFV em parceria com a SEDUC<br />

reformou e construiu escolas.


82 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

INFRAESTRUTURA<br />

Os projetos <strong>de</strong> infraestrutura, durante o Zona Franca Ver<strong>de</strong>, se restringiram<br />

à abertura <strong>de</strong> ramais. A melhoria das estradas vicinais consistiu apenas na limpeza,<br />

faltaram pontes, bueiros e melhoria dos acessos aos terrenos e sítios.<br />

Os gastos do Programa <strong>de</strong> Vicinais no município <strong>de</strong> Guajará atingiram o valor<br />

<strong>de</strong> R$ 378.000 (trezentos e setenta e oito mil reais). Com esse recurso foram limpos<br />

e recuperados parcialmente ramais. Porém, a obra, que <strong>de</strong>veria seguir, parou<br />

nos entraves burocráticos. Mas essa limpeza <strong>de</strong> ramais não resolveu o problema,<br />

como atestam as falas dos produtores entrevistados:<br />

“Aqui é muito difícil (pausa), além <strong>de</strong> não ter transporte da prefeitura, quando<br />

a gente que tirar um boi, uma farinha, um doente tem que ser <strong>de</strong> carroça <strong>de</strong><br />

boi. Todo ano é essa luta. Esse é o ramal mais velho, e aqui ninguém faz nada.<br />

Não tem água, prometeram um poço tem mais <strong>de</strong> quatro ano, vem um e fala,<br />

vem outro e nada. O ramal tá aí do jeito que você viu, só passa moto e se não<br />

chover” (Francisco Gaspar do Espirito Santo, entrevista).<br />

As condições <strong>de</strong> saneamento no município ainda são precárias. Em Guajará<br />

somente a comunida<strong>de</strong> do Gama tem água encanada <strong>de</strong> um poço semiartesiano,<br />

com profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 38 m. Nas outras comunida<strong>de</strong>s não há água potável. A água<br />

é captada diretamente do rio ou <strong>de</strong> igarapés próximos às residências.<br />

Sobre o acesso a bens e serviços, o percentual <strong>de</strong> pessoas com acesso à energia<br />

elétrica e gela<strong>de</strong>ira era <strong>de</strong> 6,86% em 1991 e saltou para 30,87% em 2000. Em<br />

2009, o percentual é <strong>de</strong> 68% da população com acesso a quatro tipos <strong>de</strong> bens:<br />

energia elétrica, televisão, gela<strong>de</strong>ira e rádio (SEPLAN, 2009).<br />

PRODUÇÃO AGRÍCOLA, AGROPECUÁRIA E CRÉDITO<br />

O crédito rural do PZFV vem dos recursos do Fundo <strong>de</strong> Apoio às Micro e<br />

Pequenas Empresas e ao Desenvolvimento Social do Estado do Amazonas<br />

(FMPES); estes são <strong>de</strong>stinados à AFEAM, que administra a política <strong>de</strong> crédito no<br />

estado. Em Guajará, a política <strong>de</strong> crédito atrelada à AFEAM financiou, para produção<br />

<strong>de</strong> farinha <strong>de</strong> mandioca, um montante <strong>de</strong> R$ 321.327,14 no período <strong>de</strong> 2006<br />

a 2009. Para a pesca, que consistia <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a construção <strong>de</strong> pequenas embarcações<br />

à compra <strong>de</strong> insumos produtivos, o crédito foi <strong>de</strong> R$ 233.159,23; para a pecuária<br />

o investimento foi <strong>de</strong> R$ 106.556,11 no mesmo período. Para a compra <strong>de</strong> máquinas<br />

e equipamentos foram <strong>de</strong>spendidos R$ 9.235,54, e para a plantação <strong>de</strong> cana<strong>de</strong>-açúcar,<br />

R$ 29.365,30. A produção <strong>de</strong> milho, arroz e feijão recebeu incentivo <strong>de</strong><br />

R$ 280.000,00.<br />

O sistema agropecuário respon<strong>de</strong>u aos incentivos do PZFV com aumento <strong>de</strong><br />

sua produtivida<strong>de</strong>. O arroz registrou aumento <strong>de</strong> 88 toneladas, e a farinha <strong>de</strong>


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 83<br />

mandioca um aumento <strong>de</strong> mais 1000 toneladas no período <strong>de</strong> cinco anos. A<br />

bovinocultura, a piscicultura e a pesca também mostraram resultados bastante<br />

satisfatórios no período.<br />

Como é possível observar no Gráfico 1, o efetivo do rebanho <strong>de</strong> bovinos aumentou<br />

70% entre 2001 e 2009. Isso mostra que o PZFV não está promovendo uma nova<br />

dinâmica do uso dos recursos naturais <strong>de</strong> forma a evitar o <strong>de</strong>smatamento e o avanço<br />

predatório sobre os recursos naturais do estado. Porém, o aumento das queimadas e<br />

do <strong>de</strong>smatamento no sul do estado dá provas <strong>de</strong> que o programa não cumpriu sua<br />

finalida<strong>de</strong> no estado todo. Analisando apenas o aumento da pecuária em Guajará, vemos<br />

o avanço do capital privado sobre as pequenas proprieda<strong>de</strong>s campesinas. No sul e no<br />

sudoeste do estado, esse fato é difícil <strong>de</strong> ser resolvido pelo PZFV.<br />

Gráfico 1 Crescimento da população boví<strong>de</strong>a em Guajará no<br />

período <strong>de</strong> 2001-2009.<br />

Fonte: Dados do CODESAV (2010) e SIDRA (2009).<br />

O sudoeste e o sul do estado do Amazonas possuem quase 40% <strong>de</strong> sua área<br />

<strong>de</strong>smatada, conforme dados do SIPAM feitos por meio <strong>de</strong> imagens do satélite Landsat<br />

5 e divulgados pelo Instituto Plant-Ar em 2005, como se observa na Figura 1.<br />

A grilagem <strong>de</strong> terras em Guajará e as vastas áreas <strong>de</strong> terras <strong>de</strong>volutas ocupadas<br />

pelos seringais dão margem à retirada <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ilegal em larga escala e à<br />

formação <strong>de</strong> pastagens por empresários acreanos ao longo da Rodovia 194, BR 364<br />

e BR 307. Além disso, contribui para o <strong>de</strong>smatamento, pois, como os agricultores<br />

não têm condições <strong>de</strong> inserir tecnologia em seus modos <strong>de</strong> produção, as comunida<strong>de</strong>s<br />

acabam investindo contra novas áreas <strong>de</strong> florestas em suas proprieda<strong>de</strong>s.<br />

Como é possível notar na fala dos moradores:


Figura 1 Desmatamento na região sul e sudoeste do Amazonas. Fonte: http://www.dpi.inpe.br/pro<strong>de</strong>smunicipal.php.<br />

84 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 85<br />

“Toda vez que a gente vai fazer roçado, principalmente pró arroz, tem que <strong>de</strong>rrubar<br />

(pausa) não tem oto meio, né (pausa, movimentando a cabeça). Tem que<br />

<strong>de</strong>rrubar aquela quadrinha, duas, prámo<strong>de</strong> plantar um pouco <strong>de</strong> mandioca e<br />

arroz” (José da Silva Gomes, entrevista).<br />

Porém, o que se observa na fala dos gestores do programa é que a contenção<br />

do <strong>de</strong>smatamento tem sido a meta das ações setoriais das secretarias. Foi notório,<br />

durante a pesquisa <strong>de</strong> campo, que os órgãos responsáveis pela fiscalização, Secretaria<br />

<strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável (SDS), CEUC e IPAAM, nunca se fizeram<br />

presentes no município, o que torna o discurso dos técnicos impreciso. Quando<br />

perguntados: O que tem sido feito para evitar o <strong>de</strong>smatamento <strong>de</strong> novas áreas para agricultura?,<br />

as respostas falam das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação criadas, do ICMS ver<strong>de</strong>,<br />

<strong>de</strong>ntre outras ações. Como po<strong>de</strong>mos ver abaixo:<br />

“Compete aos órgãos ambientais interferir nesta questão. No entanto, o IDAM<br />

vem fazendo o trabalho educativo <strong>de</strong> praxe, orientando, e tem sido parceiro<br />

<strong>de</strong>stes órgãos na contenção do <strong>de</strong>smatamento, como na criação <strong>de</strong> UC, no<br />

ICMS ver<strong>de</strong>, no gasoduto” (Hugo Estênio Gama dos Santos, entrevista).<br />

“Para conter o <strong>de</strong>smatamento temos levado esclarecimento da legislação, divulgação<br />

e aplicação <strong>de</strong> metodologias <strong>de</strong> ATER para a maximização da área<br />

explorada sem originar <strong>de</strong>smatamento” (Airton José Schnei<strong>de</strong>r, entrevista).<br />

A prevenção e o controle do <strong>de</strong>smatamento no Amazonas não serão efetivados<br />

apenas com a repressão e a fiscalização, disso estamos convictos. Eles se farão também<br />

com o fomento às ativida<strong>de</strong>s produtivas sustentáveis, invertendo a lógica<br />

econômica que hoje sustenta as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>vastação da floresta amazônica.<br />

Assim, verifica-se que o PZFV muito fez na questão da contenção do <strong>de</strong>smatamento<br />

em outras áreas, <strong>de</strong>ixando ainda <strong>de</strong>sprovido o sudoeste, principalmente Guajará,<br />

que ainda não foi sequer inserido nessa questão.<br />

INCENTIVO AO EXTRATIVISMO<br />

O município <strong>de</strong> Guajará tem 16 associações <strong>de</strong> trabalhadores: cinco <strong>de</strong>ssas<br />

entida<strong>de</strong>s são <strong>de</strong> extrativistas e trabalham na coleta <strong>de</strong> coco <strong>de</strong> murmuru para<br />

produção <strong>de</strong> óleos. “Estão envolvidas hoje 1.030 pessoas na coleta <strong>de</strong> coco <strong>de</strong><br />

murmuru, buriti, açaí e patoá” e, em “2005, 389 famílias coletaram 45 mil quilos<br />

<strong>de</strong> murmuru” (entrevista com representante do STR, 2010).<br />

Hoje, o trabalho também envolve óleo do patoá, abacaba, buriti e andiroba.<br />

Toda a produção é comercializada diretamente com a indústria <strong>de</strong> Cosméticos<br />

Tawaya S.A. e Juruá Sabonetes, que pagam R$ 18,50 (<strong>de</strong>zoito reais e cinquenta<br />

centavos) por 50 quilos <strong>de</strong> coco <strong>de</strong> murmuru in natura. O valor do litro <strong>de</strong> óleo <strong>de</strong><br />

açaí, buriti, patoá e abacaba in natura é <strong>de</strong> R$ 5,00 e o <strong>de</strong> andiroba e copaíba está<br />

cotado em R$ 20,00. A Foto 1 mostra a compra <strong>de</strong> Murmuru, no rio Juruá, na<br />

comunida<strong>de</strong> Boa Fé.


86 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Foto 1 Compra <strong>de</strong> Murmuru. Fonte: Tawaya, 2008.<br />

O trabalho é feito sem nenhuma assistência técnica e organizacional. Visivelmente,<br />

as principais dificulda<strong>de</strong>s para efetivação da economia extrativa no<br />

município são: a falta <strong>de</strong> infraestrutura <strong>de</strong> secagem, transporte e armazenamento<br />

nas comunida<strong>de</strong>s; e as poucas opções <strong>de</strong> mercados, pois somente a Tawaya S.A.<br />

faz compras periódicas. Com a extração dos óleos, as famílias produtoras faturam,<br />

em média, R$ 360,00 por mês <strong>de</strong> safra, que dura <strong>de</strong> março a junho. Esse sucesso<br />

do extrativismo se <strong>de</strong>ve à iniciativa privada, pois nenhuma ação do PZFV foi implantada<br />

na região para essa ca<strong>de</strong>ia produtiva.<br />

Além disso, a proximida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Cruzeiro do Sul, AC, como cida<strong>de</strong> re<strong>de</strong>, facilita<br />

o acesso ao ponto <strong>de</strong> comercialização. Por outro lado, a comercialização dos<br />

produtos <strong>de</strong> origem florestal em Guajará ocorre sem fiscalização e sem nenhum<br />

entrave, tendo em vista que não são frutos <strong>de</strong> manejo e não provêm <strong>de</strong> reservas<br />

<strong>de</strong>marcadas, o que facilita a compra da empresa.<br />

O PROGRAMA ZONA FRANCA VERDE NAS VOZES<br />

DOS SUJEITOS DE GUAJARÁ<br />

Observamos que para as populações tradicionais, o PZFV, pensado e formulado<br />

<strong>de</strong> cima para baixo, acabou não sendo compreendido, e suas ações, mesmo<br />

quando ocorreram, acabaram não sendo entendidas como ações do programa. Isso<br />

foi <strong>de</strong>tectado nas diversas falas dos entrevistados. Segundo Manoel Minevino,<br />

produtor rural da comunida<strong>de</strong> Gama:


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 87<br />

“Eu não conheço o programa Zona Franca Ver<strong>de</strong>. Não participei <strong>de</strong> nada do<br />

Zona Franca Ver<strong>de</strong>. Aqui aparece os caras lá do IDAM para olhar a farinha,<br />

para conversar (pausa). Mas no roçado nunca foram. Vêm apenas quando tem<br />

financiamento. (pausa) O maior problema aqui é transporte. Nós já tivemos<br />

transporte, mas hoje o barco esculhambou, não tem mais carro, tá assim. (pausa)<br />

Hoje os produtos a gente ven<strong>de</strong> aqui mesmo. Uns tiram num bote pequeno<br />

vinte saca <strong>de</strong> farinha, trinta, e leva pra Cruzeiro. Aqui a gente ven<strong>de</strong> a farinha<br />

<strong>de</strong> 40, 45 a saca pro Surubim ou pra outros que aqui aparece” (Manoel<br />

Minevino, entrevista).<br />

Na fala do produtor <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>-se que ele não sabe o que é nem do que se<br />

trata o programa, mesmo que a entrevista tenha sido realizada oito anos <strong>de</strong>pois do<br />

lançamento do PZFV. As ativida<strong>de</strong>s do PZFV são realizadas na comunida<strong>de</strong>, seja<br />

pela visita técnica dos funcionários da unida<strong>de</strong> local do IDAM, seja pela divulgação<br />

das ações <strong>de</strong> crédito e financiamento da produção. Na fala dos gerentes do PZFV,<br />

a comercialização é feita “através da i<strong>de</strong>ntificação do perfil da comunida<strong>de</strong>, mercado,<br />

preço ofertado e meios <strong>de</strong> consumo” (entrevista com Airton Schnei<strong>de</strong>r, em<br />

junho 2010). Porém, percebe-se que o discurso oficial passa longe da realida<strong>de</strong><br />

observada em campo e ratificada pelas organizações civis <strong>de</strong> produtores.<br />

Em 2009, por meio do subprograma Renda com Dignida<strong>de</strong>, vinculado ao PZFV,<br />

os produtores receberam 120 kits para casa <strong>de</strong> farinha, constituídos <strong>de</strong> um motor<br />

Honda 5 HP, uma “bola” e um forno; foram entregues dois por comunida<strong>de</strong>. As<br />

condições da casa <strong>de</strong> farinha não eram as melhores. Uma casa <strong>de</strong> palha quase caindo<br />

e o processo <strong>de</strong> fabricação ainda era rudimentar. Em todas as casas <strong>de</strong> farinha<br />

que visitamos, sejam elas as novas ou as mais velhas, a situação era muito parecida.<br />

Como atesta a fala do produtor:<br />

“As casas <strong>de</strong> farinha são cobertas <strong>de</strong> palha e feita com pau roliço, e a gente impressa<br />

a massa em sacos. É duas pra todas as pessoas da comunida<strong>de</strong> e pra usar<br />

tem que pagar a renda. Água prá lavar a macaxeira é longe, mais tem que ser lá<br />

mesmo” (Manoel Clemente dos Santos, entrevista).<br />

O problema é que não adianta o PZFV doar apenas os implementos para a<br />

casa <strong>de</strong> farinha se não oferecer capacitação para os produtores ou infraestrutura<br />

para uma casa <strong>de</strong> farinha com bons padrões <strong>de</strong> higiene.<br />

A pesca no município <strong>de</strong>veria ser organizada pela colônia <strong>de</strong> pescadores Z-<br />

43. Contudo, em entrevista com o presi<strong>de</strong>nte atual, Francisco das Chagas (Nau),<br />

que é ex-vereador do município, ficou claro que o trabalho da colônia se reduz ao<br />

cadastramento <strong>de</strong> pescadores para a aquisição do seguro-<strong>de</strong>feso. Com os associados<br />

foi possível verificar certo direcionamento político nas ações da colônia, ou<br />

seja, até quem não é pescador acaba adquirindo carteiras e recebendo o seguro pago<br />

pelo governo fe<strong>de</strong>ral. Vejamos uma síntese dos problemas mencionados pela Colônia<br />

Z-43:


88 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

“Aqui a gente pesca como apren<strong>de</strong>u. O peixe já tá diminuindo a quantida<strong>de</strong>. O<br />

peixe tá cada vez mais longe e não é boa a qualida<strong>de</strong> das embarcações. Além disso,<br />

o IBAMA do Acre atua nos nossos rios. mais é apenas no período <strong>de</strong> <strong>de</strong>feso. Não<br />

temos fabrica <strong>de</strong> gelo nem câmara frigorifica para estocagem <strong>de</strong> pescado. Não temos<br />

balcão frigorifico no mercado para expor o pescado. Ainda não ven<strong>de</strong>mos<br />

peixe cortado no mercado, só inteiro, os pescadores do Acre vêm comprar pescado<br />

nos nosso lagos. Falta peixe em nossa cida<strong>de</strong>, a maior parte do peixe que aparece é<br />

pequeno, porque os peixes gran<strong>de</strong>s são levados para ven<strong>de</strong>r em Cruzeiro do Sul”<br />

(Colônia Z-43, reunião com 16 sócios, realizada em 29/08/2010).<br />

No discurso da colônia <strong>de</strong> pescadores é possível verificar os problemas enfrentados<br />

e que não foram resolvidos pelo PZFV. Em síntese, não há or<strong>de</strong>namento<br />

nem infraestrutura, falta pescado e há invasão constante <strong>de</strong> pescadores acreanos.<br />

No entanto, é necessário observar que a gestão <strong>de</strong> recursos pesqueiros envolve ações<br />

como o manejo <strong>de</strong> pesca, a qualida<strong>de</strong> da produção do pescado, organização social,<br />

gestão participativa e monitoramento dos recursos nas reservas pesqueiras das<br />

comunida<strong>de</strong>s.<br />

Portanto, o PZFV <strong>de</strong>veria ter observado que, para organizar uma ca<strong>de</strong>ia produtiva,<br />

seja ela agrária, agropecuária, pesqueira ou florestal, se <strong>de</strong>ve partir do entendimento<br />

que esta precisa ser tratada do ponto <strong>de</strong> vista conceitual como o<br />

conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas que se articulam progressivamente, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o<br />

início da elaboração <strong>de</strong> um produto até sua elaboração final, que se materializa no<br />

consumo (GUIMARÃES, 2006). Isso inclui um processo que parte das matériasprimas,<br />

passa pela mecanização ou incorporação <strong>de</strong> tecnologias, pela incorporação<br />

<strong>de</strong> produtos intermediários até o produto final, direcionando pela mais vasta<br />

re<strong>de</strong> possível <strong>de</strong> comercialização. Sem esses elos qualquer ca<strong>de</strong>ia fica fraturada ou<br />

à mercê da sorte, como ocorreu em Guajará.<br />

DISCUSSÕES E CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O contexto em que se insere a iniciativa Programa Zona Franca Ver<strong>de</strong> é a<br />

tentativa <strong>de</strong> imprimir uma nova racionalida<strong>de</strong> que reclama ser reconhecida como<br />

verda<strong>de</strong>. Esta tanto orienta a produção do discurso quanto reflete escolhas, caminhos<br />

que se confrontam e se conformam com os discursos dos mais diversos agentes<br />

<strong>sociais</strong>, políticos e econômicos.<br />

Analisando a lógica do PZFV, percebeu-se que ele tenta respon<strong>de</strong>r à necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> aumentar o Índice <strong>de</strong> Desenvolvimento Humano (IDH) nos municípios do<br />

interior e reduzir assim o êxodo rural para a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manaus. Isso é relevante para<br />

Guajará, uma vez que o município e outros trinta apresentam IDH abaixo <strong>de</strong> 0,59.<br />

Além disso, economicamente, o PZFV atrai a comunida<strong>de</strong> internacional para<br />

financiar a manutenção da floresta do Amazonas, justificando-se pelos serviços<br />

ambientais prestados para o planeta, e faz isso com apoio do Group <strong>de</strong> Recherche


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 89<br />

Echanges Technoligiques – GRET (Franca), da Coca-Cola, do Bra<strong>de</strong>sco S.A., do<br />

Banco Mundial e do BIRD.<br />

O PZFV aposta numa mudança <strong>de</strong> paradigma tanto da socieda<strong>de</strong> civil como<br />

das elites governamentais do estado, tentando mostrar a incompetência financeira<br />

e institucional do po<strong>de</strong>r público em promover o <strong>de</strong>senvolvimento sem agredir o<br />

meio ambiente. Ao mesmo tempo, no jogo i<strong>de</strong>ológico propõe uma aliança entre<br />

iniciativa privada, terceiro setor, populações tradicionais do interior e cooperação<br />

internacional (como a GTZ e a Fundação Moore) para conservar a floresta e estabelecer<br />

formas <strong>de</strong> compensação ambiental como no mo<strong>de</strong>lo Bolsa Floresta.<br />

Assim, o programa <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que é possível usar a floresta em pé, por meio <strong>de</strong><br />

técnicas <strong>de</strong> manejo dos recursos naturais, e ainda gerar e distribuir rendas e empregos.<br />

Tal possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sperta nas populações interioranas gran<strong>de</strong>s expectativas<br />

<strong>de</strong> melhorar suas condições <strong>de</strong> vida.<br />

É nessa conjuntura que se insere o PZFV, em que conceitos ambientais po<strong>de</strong>rosamente<br />

massificadores, como <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, participação comunitária,<br />

serviços ambientais e manejo sustentável, são incorporados para justificar,<br />

reclamar e solicitar novas posturas e para a intervenção <strong>de</strong> agentes externos no<br />

controle dos recursos naturais e na vida das populações originárias dos mais remotos<br />

recônditos.<br />

Por isso, na interface do PZFV estão previstos investimentos produtivos no<br />

setor agropecuário, pesqueiro e florestal. Além disso, educação, saú<strong>de</strong>, saneamento<br />

ambiental, fortalecimento institucional, formação <strong>de</strong> recursos humanos para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento sustentável, gestão participativa, valorização do saber<br />

etnoecológico dos povos indígenas e populações tradicionais, <strong>de</strong>senvolvimento<br />

científico e tecnológico, valorização da floresta para fins <strong>de</strong> conservação da<br />

biodiversida<strong>de</strong>, manejo florestal <strong>de</strong> produtos ma<strong>de</strong>ireiros e não ma<strong>de</strong>ireiros e a<br />

prestação <strong>de</strong> serviços ambientais, incentivos para a melhor utilização <strong>de</strong> áreas já<br />

<strong>de</strong>smatadas em bases sustentáveis, or<strong>de</strong>namento territorial e regularização<br />

fundiária, redução do acesso livre aos recursos naturais, aprimoramento dos instrumentos<br />

<strong>de</strong> monitoramento, licenciamento e fiscalização. Porém, ao tentar resolver<br />

quase todos os problemas em todas as partes do estado, o programa assina<br />

seu possível fracasso.<br />

Em <strong>de</strong>corrência disso, o PZFV não conseguiu efetivar todas as <strong>de</strong>mandas dos<br />

municípios e acabou repetindo, em parte, os programas anteriores <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Ou seja, ao tentar pensar uma política única para o estado fraquejou no<br />

planejamento e na execução. Além disso, a interferência política acabou privilegiando<br />

algumas áreas do estado enquanto muitos municípios receberam ações pontuais.<br />

O Programa Zona Franca Ver<strong>de</strong> ignora que as populações da Amazônia também<br />

se organizam socioespacialmente, traduzindo culturalmente o espaço sobre o<br />

qual estes <strong>de</strong>finem o direito <strong>de</strong> uso, a exploração, a i<strong>de</strong>ntificação com o lugar. Cabe


90 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

ainda <strong>de</strong>stacar que a ocupação da Amazônia por suas populações tradicionais pautase<br />

pela relação íntima com o ambiente. As práticas <strong>de</strong> uso e ocupação <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s<br />

tradicionais encontram-se completamente ligadas aos diversos tipos <strong>de</strong> usos<br />

dos recursos naturais nos locais on<strong>de</strong> elas vivem.<br />

Nesse sentido, as políticas ditas conservacionistas do PZVF com o uso das<br />

reservas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável para instrumentalizar uma patética política<br />

<strong>de</strong>senvolvimentista e agrária para o Amazonas precisam ser repensadas. Primeiro<br />

porque a forma <strong>de</strong> regularização fundiária do Amazonas a partir <strong>de</strong> Reservas<br />

<strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável (RDS) interfere diretamente na vida, na organização<br />

social e territorial do ribeirinho e do produtor rural estabelecidos no interior<br />

dos municípios, em meio à floresta, nos distantes ramais e seringais. Por outro<br />

lado, esse modo <strong>de</strong> realizar regularização fundiária através <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação, por ato<br />

político, <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação não tem envolvido as populações tradicionais<br />

e, em parte, repetido o erro <strong>de</strong> pensar que se faz conservação <strong>de</strong> espaços sem<br />

a parceria das pessoas.<br />

A estratégia conservacionista do PZFV busca apenas obter fundos financeiros,<br />

sejam nacionais ou internacionais, para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ações<br />

<strong>de</strong>senvolvimentistas que não se sustentam no longo prazo. O próprio PZFV não<br />

possui nenhuma garantia <strong>de</strong> regulamentação legal. Mesmo tendo <strong>de</strong>stinado recursos<br />

do FMPES e do FIT para ações ligadas ao programa, não está especificado<br />

diretamente que esses recursos manterão esse projeto.<br />

O PZFV também tenta se consolidar como pensamento hegemônico ao buscar<br />

incutir um i<strong>de</strong>ário conservacionista através <strong>de</strong> atuação nas instâncias simbólicas,<br />

discursivas, políticas, econômicas, <strong>sociais</strong> e culturais.<br />

Em Guajará, o programa agiu sempre <strong>de</strong> cima para baixo, não ouviu as populações<br />

e tampouco se preocupou se estava fazendo certo ou errado. Assim, também,<br />

não se observaram as “reais” necessida<strong>de</strong>s da região, e com isso se formulou<br />

uma ação política <strong>de</strong> cima para baixo, gerando incompreensão por parte dos agentes<br />

<strong>sociais</strong> para os quais as políticas foram pensadas, e houve equívocos entre o<br />

planejado e a necessida<strong>de</strong> ou vocação dos grupos.<br />

Para exemplificar, nenhum dos recursos minerais e gás, dos 24 disponíveis<br />

no estado, alguns em quantida<strong>de</strong>s incalculáveis, passou a fazer parte da política <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento do Zona Franca Ver<strong>de</strong>. Alguns <strong>de</strong>sses produtos teriam papel fundamental<br />

no <strong>de</strong>senvolvimento das microrregiões, como, por exemplo, a província<br />

<strong>de</strong> gás <strong>de</strong> Carauari, <strong>de</strong>scoberta em 1978, para o <strong>de</strong>senvolvimento da microrregião<br />

do Juruá, on<strong>de</strong> se encontra Guajará. Explicando melhor, o gás é hoje responsável<br />

por 10% da matriz energética nacional. A província <strong>de</strong> Gás <strong>de</strong> Urucu e Carauari<br />

são as únicas na região norte com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exploração em escala comercial.<br />

Além disso, pela capilarida<strong>de</strong> que a indústria <strong>de</strong> gás po<strong>de</strong> ter com serviços, exploração<br />

e logística po<strong>de</strong>ria oferecer um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> empregos para a região do<br />

Juruá, ainda muito <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos empregos públicos.


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 91<br />

No entanto, com todos esses problemas citados, o PZFV contribuiu com algumas<br />

ações para o <strong>de</strong>senvolvimento econômico <strong>de</strong> Guajará. As principias contribuições<br />

do programa para o município foram:<br />

progresso significativo na educação com melhorias <strong>de</strong> escolas e aumento<br />

do número <strong>de</strong> vagas;<br />

comprovada redução no índice <strong>de</strong> analfabetos adultos com a alfabetização<br />

<strong>de</strong> 632 adultos pelo programa Reescrevendo o Futuro;<br />

melhoria na infraestrutura das escolas da re<strong>de</strong> estadual;<br />

qualificação <strong>de</strong> professores da re<strong>de</strong> municipal e estadual por meio da Universida<strong>de</strong><br />

do Estado do Amazonas (sistema EAD presencial);<br />

avanço na infraestrutura do município em parceria com o PAC para a<br />

eletrificação rural;<br />

doação <strong>de</strong> implementos agrícolas e motores para o <strong>de</strong>slocamento nas comunida<strong>de</strong>s<br />

do interior do município.<br />

A melhoria do acesso à educação é a que apresentará no longo prazo resultados<br />

mais consistentes com a formação <strong>de</strong> professores e redução dos índices <strong>de</strong><br />

analfabetismo total. Mesmo assim, ensinar a escrever o próprio nome e frases simples,<br />

como fez o Reescrevendo o Futuro, não garante o rompimento do analfabetismo<br />

funcional. Além disso, a não continuida<strong>de</strong> do programa e a ausência <strong>de</strong> cursos<br />

superiores no município <strong>de</strong>ixam um gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> jovens sem acesso à universida<strong>de</strong>.<br />

O crédito agrícola quase não ren<strong>de</strong>u em produtivida<strong>de</strong> e, com exceção da<br />

pecuária, tem altos índices <strong>de</strong> inadimplência. Esta ocorre porque os agricultores<br />

ou pescadores que recebem crédito não investem em sua produção, como ficou claro<br />

durante as entrevistas da pesquisa <strong>de</strong> campo. Porém, a doação <strong>de</strong> implementos<br />

agrícolas (como motores) é necessária, mas a forma como é feita é politiqueira e<br />

sem controle. Ouvimos casos <strong>de</strong> pessoas que ven<strong>de</strong>m os motores logo após receberem<br />

por R$ 300,00, enquanto no comércio eles custam R$ 1.200,00 em média.<br />

Por outro lado, as ações do programa em estudo não implicaram a melhoria<br />

da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das populações do interior do município <strong>de</strong> Guajará. Estas<br />

ainda vivem em moradias arcaicas sem energia elétrica e água encanada, o que<br />

garantiriam o mínimo <strong>de</strong> dignida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.<br />

As comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Guajará ainda usam métodos ultrapassados em seus cultivares<br />

e não possuem acesso a ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, não têm acesso às séries finais do<br />

ensino fundamental e médio. Além disso, 48% da população do município que<br />

resi<strong>de</strong> no interior, salvo as comunida<strong>de</strong>s Ba<strong>de</strong>jo <strong>de</strong> Cima, <strong>de</strong> Baixo e do Meio e<br />

Gama, não possui os títulos <strong>de</strong> suas terras e vive como posseiros em seringais <strong>de</strong><br />

terceiros, sendo constantemente ameaçada.


92 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

A respeito das ca<strong>de</strong>ias produtivas em Guajará, verificamos que estas não foram<br />

<strong>de</strong>senvolvidas como o programa preconizava. Faltou investimento,<br />

planejamento e ações efetivas. A pesca não teve a organização <strong>de</strong> sua ca<strong>de</strong>ia, o<br />

or<strong>de</strong>namento da ativida<strong>de</strong>, o investimento em uma fábrica <strong>de</strong> gelo (que ainda é<br />

comprado em Cruzeiro do Sul a R$ 0,20 o quilo), a reestruturação do frigorífico,<br />

a limpeza dos lagos e o financiamento <strong>de</strong> novas embarcações.<br />

No or<strong>de</strong>namento territorial e regularização fundiária que faziam parte das<br />

estratégias do PZFV, verificou-se que em Guajará não ocorreu nenhuma ação do<br />

ITERAM ligada ao PZFV para i<strong>de</strong>ntificação, <strong>de</strong>marcação e regularização das terras<br />

camponesas. Não é possível sustentabilida<strong>de</strong> produtiva com justiça social se as<br />

terras ocupadas pelas populações tradicionais pertencem ao gran<strong>de</strong> latifúndio seringalista.<br />

Salientamos que a grilagem <strong>de</strong> terras em Guajará e as vastas áreas <strong>de</strong> terras<br />

<strong>de</strong>volutas ocupadas pelos seringais dão margem à retirada ilegal <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira em larga<br />

escala e à formação <strong>de</strong> pastagens dos empresários acreanos ao longo da Rodovia<br />

AM 194, BR 364 e BR 307.<br />

A abertura da estrada Cruzeiro do Sul, AC (Brasil), até Pucalpa, Lima (Peru),<br />

através do PAC e da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-<br />

Americana (IIRSA), com vistas a garantir o acesso aos mercados asiáticos via Pacífico,<br />

colocará novos <strong>de</strong>safios às populações tradicionais e criará nova frente <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>smatamento. É este “novo cenário” que se coloca e se colocará na fronteira sudoeste<br />

e criará a infraestrutura necessária para garantir a exploração dos bens naturais<br />

e das populações através <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> interligação com o Pacífico.<br />

Porém, ao re<strong>de</strong>senhar novas fronteiras para assegurar a mobilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> capitais<br />

e mercadorias, se intensificarão os conflitos com a espacialização do capital<br />

privado e sua <strong>territorialização</strong> será feita com usos das pequenas proprieda<strong>de</strong>s e<br />

seringais ocupados pelas populações ribeirinhas.<br />

É necessário lembrar que um dos princípios para atingir o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável é a integração, conservação da natureza e <strong>de</strong>senvolvimento com equida<strong>de</strong>.<br />

Em Guajará, os dados mostram uma gritante vulnerabilida<strong>de</strong> social, pois o<br />

percentual <strong>de</strong> pobres no município é <strong>de</strong> 46,7%. Além do mais, o percentual das<br />

pessoas com menos <strong>de</strong> quatro anos <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> e maiores <strong>de</strong> 15 anos é <strong>de</strong> 36%,<br />

o que <strong>de</strong>monstra a alarmante <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social.<br />

Igualmente, na vasta região do baixo Juruá não foi criada nenhuma unida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> conservação, assentamento rural ou qualquer modalida<strong>de</strong> que pu<strong>de</strong>sse integrar<br />

a conservação da natureza e o <strong>de</strong>senvolvimento. Isso ocorreu porque o programa<br />

cometeu vários erros, como verificados em Guajará.<br />

A ca<strong>de</strong>ia do extrativismo: verificada em todas as comunida<strong>de</strong>s, às margens<br />

do rio Juruá, da maneira que está sendo feita impõe riscos e limites. A<br />

exploração feita pelo capital privado, como se verificou na atuação da


Cap. IV A Farsa e a Tragédia do Programa <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável.... 93<br />

Tawaya S.A., em Guajará, não tem controle (e talvez não se preocupe com<br />

isso) sobre as formas e condições <strong>de</strong> coleta e retirada <strong>de</strong> sementes, óleos e<br />

resinas.<br />

Faltam incentivos para a produção <strong>de</strong> produtos para os quais o município<br />

tem vocação, como: frutas, hortaliças, hortigranjeiros, melancia (que apresentou<br />

uma produção <strong>de</strong> 30 toneladas em 2009), jerimum e fumo.<br />

Por não consultar a população, não foram construídos no município armazéns<br />

para estocar grãos (permanecendo apenas um na zona urbana e<br />

<strong>de</strong>sativado) nem se reestruturou o flutuante frigorífico doado pela Suframa<br />

em 1998, que possui câmara frigorífica com capacida<strong>de</strong> para 280 toneladas<br />

<strong>de</strong> peixe.<br />

É preciso sempre lembrar que o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável<br />

contempla a busca <strong>de</strong> uma eficácia econômica, social e ambiental para satisfazer<br />

as necessida<strong>de</strong>s atuais e também as futuras. As principais características do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável incluem valorização dos recursos naturais com geração <strong>de</strong><br />

emprego, respeito da diversida<strong>de</strong> cultural, participação das populações nas <strong>de</strong>cisões<br />

e gestão dos recursos e valorização do etnossaber.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento sustentável do PZFV que direcionou as ações em Guajará<br />

se consolidou em poucos incentivos produtivos, e seu retrato <strong>de</strong> insucesso é percebido<br />

em Guajará nos antiquados regatões comprando produtos extrativos na margem<br />

do rio. Nas margens dos rios que cortam Guajará e em seus ramais, as famílias<br />

vivem em casas <strong>de</strong> um único cômodo, cobertas <strong>de</strong> palhas, sem energia elétrica, saú<strong>de</strong>,<br />

educação, em suma, sem o mínimo <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.<br />

Nossa constatação é a <strong>de</strong> que são insustentáveis as ações do PZFV em Guajará.<br />

Suas ações apenas visualizaram o <strong>de</strong>senvolvimento das ca<strong>de</strong>ias produtivas, restrito<br />

à agricultura e à pecuária, ativida<strong>de</strong>s que impõem risco à manutenção dos<br />

ecossistemas se forem realizadas sem prudência ecológica e tecnologia, como se viu<br />

em Guajará.<br />

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O Futuro/2007”. Disponível em: www.1.uea.edu.br/progrrescre2. Acesso em: mar. 2009.<br />

ENTREVISTAS<br />

Airton José Schnei<strong>de</strong>r, chefe do Departamento <strong>de</strong> Operações Técnicas do IDAM, há 14 anos<br />

trabalha no órgão, entrevistado por José Júlio César do Nascimento Araújo, em 22/06/2010.<br />

Francisco Gaspar do Espirito Santo, 32 anos, presi<strong>de</strong>nte da Associação do Passo Fundo,<br />

comunida<strong>de</strong> São Luiz, entrevistado por José Júlio César do Nascimento Araújo, em 10/06/<br />

2010.<br />

Hugo Estênio Gama dos Santos, gerente do IDAM, há 21 anos trabalha no órgão, entrevistado<br />

por José Júlio César do Nascimento Araújo, em 24/06/2010.<br />

José da Silva Gomes, 40 anos, Comunida<strong>de</strong> Boa Fé, entrevistado por José Júlio César do<br />

Nascimento Araújo, em 15/06/2010.<br />

Manoel Clemente dos Santos, 54 anos, pescador e agricultor, comunida<strong>de</strong> Gama, entrevistado<br />

por José Júlio César do Nascimento Araújo, em junho <strong>de</strong> 2010.<br />

Manoel Minevino, 59 anos, produtor da comunida<strong>de</strong> Gama, entrevistado por José Júlio César<br />

do Nascimento Araújo, em junho <strong>de</strong> 2010.


PARTE III<br />

DIMENSÕES IDENTITÁRIAS E<br />

RELIGIOSAS DO MUNDO VIVIDO


INTRODUÇÃO<br />

CAPÍTULO V<br />

FRONTEIRAS DO SAGRADO ENTRE A<br />

UMBANDA E A BARQUINHA<br />

Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto<br />

André Ricardo <strong>de</strong> Souza<br />

Este texto faz uma aproximação entre duas religiões nascidas no Brasil, a<br />

Umbanda e a Barquinha, ambas resultantes do sincretismo que caracteriza as diversas<br />

formas <strong>de</strong> relação com o sagrado em nosso espaço territorial. O enfoque se<br />

concentra na discussão sobre as religiões que aqui se formaram, ressignificando suas<br />

matrizes <strong>de</strong> origem e passando a fazer parte do nosso patrimônio simbólico em<br />

contextos materiais e territoriais distintos.<br />

No caso da Umbanda, trata-se do maior culto afro-brasileiro, seguido pelo<br />

Candomblé. É uma religião essencialmente urbana, com origem histórica no Rio<br />

<strong>de</strong> Janeiro das duas primeiras décadas do século XX, então capital fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong> on<strong>de</strong><br />

os terreiros do chamado baixo espiritismo ou macumba não tardaram a se espalhar<br />

pelas cida<strong>de</strong>s brasileiras, sobretudo nas emergentes áreas metropolitanas. Cresceu<br />

conquistando a<strong>de</strong>ptos do catolicismo popular e do espiritismo kar<strong>de</strong>cista das classes<br />

médias. O avanço umbandista <strong>de</strong>stacou-se em São Paulo, on<strong>de</strong> em 1960 os<br />

terreiros já tinham invertido a proporção <strong>de</strong> 1 para 10 em relação aos originários<br />

centros espíritas (CONCONE & NEGRÃO, 1987).<br />

Quanto à Barquinha, trata-se <strong>de</strong> uma ramificação do uso ritual da ayahuasca,<br />

bebida psicoativa que tradicionalmente vem sendo consumida na floresta amazônica<br />

<strong>de</strong>ntro dos rituais xamânicos da cultura ameríndia e que teve seu uso divulgado e<br />

prolongado por um grupo <strong>de</strong> nor<strong>de</strong>stinos que migraram para a Amazônia, atraídos<br />

pela extração da borracha na segunda meta<strong>de</strong> do século XIX. Traços da<br />

Umbanda, nascida e crescida no Su<strong>de</strong>ste, se encontram na amazônica Barquinha,<br />

bem como em outras religiões mediúnicas espalhadas pelo país. Vejamos como uma<br />

e outra tradição religiosa se configuram, bem como se entrelaçam e apresentam<br />

pontos convergentes.<br />

NOVOS USOS RITUAIS DA AYAHUASCA<br />

O consumo <strong>de</strong> plantas com <strong>de</strong>rivados psicoativos faz parte <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong><br />

conhecimentos válidos, resultante <strong>de</strong> convívio milenar <strong>de</strong> cada grupo com o seu<br />

meio. Usuárias autênticas das “plantas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r”, tal como são conhecidas, as


98 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

socieda<strong>de</strong>s indígenas associam seu consumo à organização <strong>de</strong> ricos sistemas<br />

cosmológicos, à promoção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social e ao conhecimento do meio ambiente,<br />

aumentando ainda mais o arcabouço cognitivo <strong>de</strong>ssas populações sobre a<br />

natureza. O termo ayahuasca é proveniente do vocabulário quéchua, composto<br />

pelos vocábulos aya, que significa persona, alma, morto, e wasca, que completa o<br />

sentido ao significar corda, liame. Assim, a bebida é conhecida como “corda dos<br />

mortos”, em função <strong>de</strong> um dos seus efeitos, que é abrir um canal <strong>de</strong> comunicação<br />

com outras dimensões e espécies não humanas. Seu preparo consiste na combinação<br />

<strong>de</strong> duas plantas, o caule do caapi (Banisteriopsis caapi) e as folhas da chacrona<br />

(Psycotria viridis), que são cozidos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um processo ritual e resulta em um<br />

chá consi<strong>de</strong>rado sagrado e que recebe também outras <strong>de</strong>nominações, tais como:<br />

auasca, daime, iagê, mariri e uasca.<br />

De acordo com as pesquisas <strong>de</strong>senvolvidas a partir da década <strong>de</strong> 1960, sobre<br />

o mundo do xamanismo e dos conhecimentos tradicionais, as Américas po<strong>de</strong>m<br />

ser hoje consi<strong>de</strong>radas como o maior celeiro mundial <strong>de</strong> plantas psicoativas. Huautla,<br />

por exemplo, no México, tornou-se “centro <strong>de</strong> peregrinação” dos norte-americanos<br />

pelo uso que ali se fazia dos cogumelos, herança da cultura mazateca; observa-se<br />

ainda, entre os grupos andinos da Colômbia e do Peru, o estabelecimento <strong>de</strong><br />

re<strong>de</strong>s xamânicas <strong>de</strong> intercâmbio <strong>de</strong> substâncias e práticas religiosas. O nor<strong>de</strong>ste da<br />

Amazônia tornou-se também rota do turismo xamânico, que tem atraído interessados<br />

em busca <strong>de</strong> experiências com os enteógenos, termo pelo qual são tratadas<br />

tais substâncias na literatura atual.<br />

O uso dos enteógenos nos cultos religiosos faz parte, hoje, <strong>de</strong> tendências <strong>sociais</strong><br />

novas. O retorno à cultura arcaica e o renascimento das práticas xamânicas, em<br />

outros contextos culturais, talvez estejam refletindo os anseios do movimento dito<br />

pós-mo<strong>de</strong>rno que trouxe em seu bojo o questionamento da objetivida<strong>de</strong> da ciência<br />

e atribui um novo valor à experiência vivida. Em vez do <strong>de</strong>clínio da religião no<br />

Brasil e no mundo, assistimos, no final do século XX, ao fortalecimento <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s<br />

e da pauta <strong>de</strong> assuntos religiosos que migraram para o centro da vida social,<br />

política e econômica e que se constituem em foco <strong>de</strong> tensões e conflitos globais no<br />

início do século XXI.<br />

Uma série <strong>de</strong> grupos, cuja origem remonta ao início do século passado na<br />

Amazônia, se organizou no Brasil em torno do consumo da ayahuasca. Tais grupos<br />

são constituídos pela socieda<strong>de</strong> mestiça que se transferiu para a região em busca<br />

<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho. A partir do contato com as socieda<strong>de</strong>s indígenas<br />

que transmitiram as técnicas do feitio e do consumo do chá, os mesmos promoveram<br />

novas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> culto ao misturarem as influências do catolicismo, dos<br />

cultos afro-brasileiros, do espiritismo kar<strong>de</strong>cista e <strong>de</strong> correntes esotéricas <strong>de</strong> origem<br />

europeia. Apesar das várias dissidências e da proliferação <strong>de</strong> inúmeras igrejas<br />

e <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> cura e oração, é possível, <strong>de</strong>ntro do campo das religiões<br />

ayahuasqueiras brasileiras, citar três gran<strong>de</strong>s correntes que estabelecem tanto con-


Cap. V Fronteiras do Sagrado entre a Umbanda e a Barquinha 99<br />

tinuida<strong>de</strong>s como conflitos quanto ao uso do chá e das prescrições que permeiam a<br />

conduta religiosa dos seus consumidores. São elas: o Santo Daime, a União do<br />

Vegetal e a Barquinha.<br />

A BARQUINHA<br />

A Barquinha é uma religião ayahuasqueira surgida em contexto urbano, na<br />

periferia <strong>de</strong> Rio Branco, capital do Acre, pelas mãos <strong>de</strong> Daniel Pereira <strong>de</strong> Matos, o<br />

mestre Daniel. Isso ocorreu, mais precisamente, em 1945, quando o Sr. Daniel<br />

conheceu a ingestão do chá sagrado a convite do seringueiro Raimundo Irineu Serra,<br />

fundador do Santo Daime, no início dos anos 30. Ambos os mestres eram nor<strong>de</strong>stinos,<br />

proce<strong>de</strong>ntes do estado do Maranhão, e migraram para a Amazônia em busca<br />

<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> trabalho. Segundo relatos dos fiéis da Barquinha, mestre<br />

Daniel frequentou o Daime por cerca <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos e <strong>de</strong>pois resolveu seguir seu<br />

próprio caminho porque se consi<strong>de</strong>rava portador <strong>de</strong> uma missão religiosa que lhe<br />

foi revelada por meio <strong>de</strong> visões. Nelas, dois anjos lhe entregavam um livro azul, e<br />

esse sinal foi interpretado como sendo o início dos trabalhos <strong>de</strong> cura e <strong>de</strong> carida<strong>de</strong><br />

que ele <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>senvolver junto à comunida<strong>de</strong> que passou a formar.<br />

Mestre Daniel começou os trabalhos espirituais com o uso da ayahuasca em<br />

um seringal chamado Santa Cecília, que pertencia ao amigo Manoel Julião <strong>de</strong> Souza<br />

(ARAÚJO, 1997). Ele atendia inicialmente um número reduzido <strong>de</strong> pessoas humil<strong>de</strong>s<br />

com problemas <strong>de</strong> alcoolismo, do qual o mestre também fora vítima, ou com<br />

outros problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Culto <strong>de</strong> Oração Casa <strong>de</strong> Jesus Fonte <strong>de</strong> Luz foi o nome<br />

dado à nova congregação <strong>de</strong> fiéis que começavam a procura pelos trabalhos <strong>de</strong> cura<br />

nessa irmanda<strong>de</strong>. O nome popular Barquinha está associado a um dos ofícios que<br />

Daniel exercera no passado, pois, além <strong>de</strong> seringueiro, fora também piloto fluvial.<br />

O local <strong>de</strong> fundação da Barquinha, nos seus primórdios, era <strong>de</strong>signado como<br />

“capelinha” pelo Mestre Daniel. Tratava-se <strong>de</strong> uma casinha muito simples feita <strong>de</strong><br />

taipa e <strong>de</strong> paus roliços, conhecida por “Capelinha <strong>de</strong> São Francisco”, pelo fato <strong>de</strong><br />

São Francisco ser um dos principais mentores da casa (ARAÚJO, 1997). Tal fato<br />

<strong>de</strong>monstra o sincretismo religioso que mistura as tradições xamânicas com as<br />

europeias, como a <strong>de</strong>voção aos santos do catolicismo popular. Além <strong>de</strong> São Francisco,<br />

São Sebastião e São José (parte do calendário litúrgico <strong>de</strong>ssa religião expressa<br />

homenagem a esses três santos) constituem-se como alguns dos elementos<br />

cristãos que se unem ao uso ritual do chá, proveniente do xamanismo praticado<br />

pelos indígenas e que juntos compõem a ritualística da Barquinha. Ressalte-se ainda<br />

que, em relação às influências da Igreja Católica, elas já estavam presentes no ritual<br />

<strong>de</strong> ingestão da bebida, na sua primeira vertente fundada pelo mestre Irineu, pois<br />

o mesmo criou um centro que foi registrado e oficializado como CICLU (Centro<br />

<strong>de</strong> Iluminação Cristã Luz Universal), cuja religião ficou conhecida popularmente<br />

como Santo Daime.


100 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Do encontro das duas tradições citadas, o culto incorporou também a tradição<br />

africana, por meio da crença em entida<strong>de</strong>s espirituais pertencentes a outros<br />

planos que frequentemente se incorporam nos fiéis e entram em contato com a<br />

comunida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> técnicas variadas <strong>de</strong> transes e possessões. Tais entida<strong>de</strong>s<br />

são as mesmas que povoam o imaginário religioso dos centros <strong>de</strong> Umbanda: caboclos,<br />

pretos velhos, exus, indígenas, espíritos infantis e outros. Assim, a prece, a<br />

“miração” (visão provocada pela ingestão do chá) e as incorporações dos espíritos<br />

se constituem como os canais <strong>de</strong> contato com a dimensão do sagrado na performance<br />

ritual da Barquinha. No que diz respeito a esta herança afro-simbólica, não po<strong>de</strong>mos<br />

nos esquecer da origem maranhense do mestre Daniel e das influências negras<br />

levadas pelos escravos para a costa brasileira, cujo contingente <strong>de</strong>mográfico<br />

foi bastante elevado no período da colonização. As experiências <strong>de</strong> transe, trazidas<br />

pelos negros africanos, se amalgamaram com as dos indígenas, compondo o mosaico<br />

mediúnico do qual Umbanda e Barquinha fazem parte. Provavelmente, a<br />

inclusão <strong>de</strong>sses elementos foi também um dos fatores <strong>de</strong>terminantes para o<br />

surgimento da Barquinha como grupo in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da matriz daimista, pois havia,<br />

em meados do século passado, certo receio por parte das li<strong>de</strong>ranças do Santo<br />

Daime <strong>de</strong> que a doutrina fosse tachada ou mesmo confundida com categorias como<br />

“feitiçaria” e “macumba”.<br />

Segundo Araújo, a ligação <strong>de</strong> mestre Daniel com o mar fez com que tais elementos<br />

fossem agregados ao ritual e gerassem uma intensa circulação <strong>de</strong> símbolos<br />

e cultos ligados a entida<strong>de</strong>s marinhas. A concepção cosmológica da Barquinha<br />

divi<strong>de</strong> o mundo em três planos: o astral, maior e superior aos outros; o terrestre,<br />

<strong>de</strong>stacado pela linha do mestre Irineu, dos índios, dos caboclos e das matas; e o<br />

plano do mar, com seus “encantados”, como os botos, as sereias, as cobras-d’água.<br />

Esses seres aquáticos, assim como as entida<strong>de</strong>s pertencentes ao astral e à terra,<br />

convivem com os crentes, que na Barquinha são <strong>de</strong>nominados <strong>de</strong> marinheiros e<br />

como tais frequentam a igreja, que nesta concepção é tomada como uma embarcação<br />

a navegar pelas águas do mar da vida. Metaforicamente, a água também<br />

está associada ao próprio chá:<br />

“O daime é um dos meios <strong>de</strong> conexão com o sagrado, um dos elementos condutores<br />

da troca vertical entre os homens e os seres divinos, portanto, ele é mar,<br />

ao mesmo tempo que é luz, algo que afasta as trevas e ilumina o espírito. Consi<strong>de</strong>rado<br />

um professor, ele se torna veículo <strong>de</strong> comunicação entre a vida material<br />

e a vida espiritual. Neste sentido, contribui para que o participante do ritual<br />

tenha contato com seres divinos <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s sagradas, ele traz revelações <strong>de</strong><br />

entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> luz, entida<strong>de</strong>s santificadas. Logo, a escola <strong>de</strong> Daniel acaba se<br />

tornando uma escola que está sempre ensinando ‘mistérios’ aos que <strong>de</strong>la participam”<br />

(ARAÚJO, 1997: 12).<br />

No plano astral, algumas entida<strong>de</strong>s que são consi<strong>de</strong>radas iluminadas acabam<br />

por assumir o papel <strong>de</strong> oficiais, chefes do pelotão, como é o caso <strong>de</strong> Dom Simeão,


Cap. V Fronteiras do Sagrado entre a Umbanda e a Barquinha 101<br />

que na Barquinha conduz parte dos trabalhos das Obras <strong>de</strong> Carida<strong>de</strong>, e Juramidam,<br />

que é como ficou conhecido o mestre Irineu no Santo Daime, quando partiu para<br />

o plano espiritual. Desse plano superior é que emergem as or<strong>de</strong>ns divinas chamadas<br />

<strong>de</strong> instruções, concebidas por meio <strong>de</strong> revelações feitas aos a<strong>de</strong>ptos quando<br />

estão no processo <strong>de</strong> “miração” e proferidas musicalmente com o canto dos hinários<br />

no ritual. Livro que nunca está completo, pois do astral não param <strong>de</strong> chegar<br />

instruções divinas como forma <strong>de</strong> ensinamentos.<br />

A partir do falecimento do mestre Daniel, em 1958, a Barquinha viveu um<br />

processo <strong>de</strong> intensas cisões que resultaram na formação <strong>de</strong> grupos distintos, todos<br />

situados na região Norte (Rio Branco e em Ji-Paraná), com exceção <strong>de</strong> um que fica<br />

no Su<strong>de</strong>ste, no município <strong>de</strong> Magé (Rio <strong>de</strong> Janeiro). Das três linhas que compõem<br />

o campo religioso ayahuasqueiro no Brasil, a Barquinha é a que mais conserva um<br />

caráter regional, não tendo se expandido para o resto do país (GOULART, 2005).<br />

A UMBANDA<br />

Entre a mesa branca e o culto aos <strong>de</strong>uses africanos, a Umbanda se constituiu<br />

como uma multifacetada opção religiosa. Abrangendo o “contínum mediúnico”,<br />

por um lado, próxima à magia ritual e, por outro, à palavra como preceito <strong>de</strong> orientação<br />

moral (CAMARGO, 1961), essa religião, tida como brasileira por excelência,<br />

oferece uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elementos simbólicos (discursivos e litúrgicos) que<br />

vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a tradicional origem negra à recente onda espiritualista da new age. Trata-se<br />

<strong>de</strong> um bricolage, tanto mais versátil ao que teorizara Roger Basti<strong>de</strong> (1975)<br />

quanto mais rico em possibilida<strong>de</strong>s se tornou o campo religioso contemporâneo.<br />

Embora venha <strong>de</strong>crescendo <strong>de</strong>mograficamente, 1 a Umbanda aten<strong>de</strong> aos anseios das<br />

camadas mais pobres, cujo i<strong>de</strong>ário mágico quanto à busca da solução <strong>de</strong> problemas,<br />

sobremaneira <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m material, a torna contraponto do pentecostalismo<br />

(FRY, 1975). Adapta-se também às classes médias escolarizadas, <strong>de</strong>mandantes <strong>de</strong><br />

mensagens racionalizadas e <strong>de</strong> terapias para o corpo e a alma, que são sensíveis ao<br />

apelo esotérico (MAGNANI, 1996).<br />

Muito já foi dito sobre a brasilida<strong>de</strong> da Umbanda, pela síntese das culturas<br />

(negro-africana, indígena-ameríndia e branca-europeia) que lhe é atribuída, numa<br />

afirmação até ufanista do caráter i<strong>de</strong>ntitário nacional. Ela parece ser mais brasileira,<br />

entretanto, pela contradição moral que encerra, o que a torna um reflexo da<br />

socieda<strong>de</strong> abrangente. Do familiar e carinhoso preto velho ao trickster e arruaceiro<br />

Exu, muitas entida<strong>de</strong>s espirituais se apresentam e são reconhecidas como “paizinhos”<br />

ou “compadres”. Há uma i<strong>de</strong>ntificação generalizada com vários personagens<br />

1. Em 1991, 541.518 brasileiros se <strong>de</strong>claravam umbandistas, enquanto em 2000 foram<br />

432.001 (perda <strong>de</strong> 21%), conforme o censo <strong>de</strong>mográfico do Instituto Brasileiro <strong>de</strong><br />

Geografia e Estatística (IBGE). Tal diminuição se <strong>de</strong>ve, sobretudo, ao avanço proselitista<br />

pentecostal.


102 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

da vida cotidiana do país. Através da religião se constrói um palco on<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong><br />

brasileira faz sua autodramatização, vindo a apresentar, sob o rótulo<br />

“quimbanda”, as faces que não confessaria <strong>de</strong> outro modo (PRANDI, 1996). Por<br />

tudo isso, essa religião é <strong>de</strong>finida, sincrética e contraditoriamente, entre a <strong>de</strong>manda<br />

e a carida<strong>de</strong>, entre o bem (direita) e o mal (esquerda), ou, como afirma Negrão<br />

(1996), “entre a cruz e a encruzilhada”.<br />

Converter-se à Umbanda significa aceitar a possessão, isto é, a comunicação<br />

com os eguns ou encantados, espíritos <strong>de</strong> origens míticas que se colocam a serviço<br />

dos humanos necessitados. É, portanto, um rompimento com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> controle<br />

absoluto da consciência, gran<strong>de</strong> valor da socieda<strong>de</strong> racional oci<strong>de</strong>ntal (BIRMAN,<br />

1982). Ser umbandista, bem como a<strong>de</strong>pto das <strong>de</strong>mais religiões afro-brasileiras, é<br />

conceber uma benéfica multiplicação do eu, através da manifestação <strong>de</strong> diferentes<br />

personalida<strong>de</strong>s espirituais, os “santos da cabeça do médium” (PRANDI, 1991).<br />

Essa a<strong>de</strong>são religiosa implica a superação do obstáculo imposto pela<br />

moralida<strong>de</strong> cristã, tão arraigada ainda e que relaciona as ativida<strong>de</strong>s mediúnicas ao<br />

pecado. A con<strong>de</strong>nação religiosa e as acusações cientificistas, etnocêntricas, <strong>de</strong> distúrbio<br />

mental foram suporte para a repressão do Estado aos cultos <strong>de</strong> origem africana,<br />

tratados como “caso <strong>de</strong> polícia” até os anos 50 do século passado. Por outro<br />

lado, a aceitação do transe foi facilitada pela concepção popular <strong>de</strong> reencarnação,<br />

além das noções <strong>de</strong> contato com o sobrenatural, tão difundidas, na cultura brasileira.<br />

A Umbanda beneficiou-se <strong>de</strong>sse trunfo cultural e se aproximou do seu lado<br />

kar<strong>de</strong>cista, organizando fe<strong>de</strong>rações para fins <strong>de</strong> proteção jurídica e praticando a<br />

carida<strong>de</strong> para obter legitimida<strong>de</strong> moral. Enfim, em <strong>de</strong>trimento da magia <strong>de</strong> origem<br />

negra, ela racionalizou-se à moda branca (ORTIZ, 1990; PRANDI, 1999).<br />

Um misto <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong>, medo e fascínio, além da busca <strong>de</strong> solução <strong>de</strong> algum<br />

infortúnio, na base do “quem sabe dá certo”, faz as pessoas irem a uma gira<br />

<strong>de</strong> Umbanda. 2 Um convite <strong>de</strong> amigo, evi<strong>de</strong>ntemente, tem maior força quando a<br />

pessoa está vivendo alguma dificulda<strong>de</strong> significativa. Quando o problema íntimo<br />

é dito (ainda que <strong>de</strong> uma forma genérica) pela boca da “própria entida<strong>de</strong> espiritual”,<br />

tem-se aí uma surpresa e <strong>de</strong> imediato a relativização do preconceito inicial.<br />

O contato inicial com a religião, em que o guia ou entida<strong>de</strong> espiritual fala,<br />

ainda que indiretamente, do problema que aflige a pessoa, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado o<br />

primeiro passo <strong>de</strong> uma eventual conversão. Depois, seguindo os conselhos e as<br />

prescrições <strong>de</strong> banho rituais ou alguma outra “obrigação” (oferenda, <strong>de</strong>spacho)<br />

recomendados pelo guia, muitos consulentes sentem ter alcançado a ajuda procurada,<br />

tendo para si a prova da eficácia religiosa. Daí para tornar-se um membro da<br />

assistência é um passo, que po<strong>de</strong> em seguida resultar em mais um “filho da casa”.<br />

Nesse processo é relevante a acolhida dos cambonos, que são os assistentes dos<br />

2. Gira é o culto em que as entida<strong>de</strong>s do seu panteão - como caboclos, preto-velhos,<br />

boia<strong>de</strong>iros, ciganos - se manifestam e aten<strong>de</strong>m os consulentes no templo umbandista.


Cap. V Fronteiras do Sagrado entre a Umbanda e a Barquinha 103<br />

guias, mas o <strong>de</strong>cisivo é o atendimento dos pretos velhos, caboclos e outras entida<strong>de</strong>s<br />

espirituais, <strong>de</strong> quem o consulente logo se torna amigo até íntimo. Observa-se<br />

gran<strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> do consulente em relação a seu guia predileto, com o qual em<br />

cada sessão busca conversar bastante.<br />

Como uma religião afro-brasileira, a Umbanda requer tempo <strong>de</strong> aprendizado<br />

dos mistérios do panteão, do ritual, do receituário mágico. O iniciante umbandista<br />

<strong>de</strong>ve passar por um “aprimoramento mediúnico”. Feito isso estará apto a ser “cavalo”<br />

para um guia se manifestar e dar consulta.<br />

A Umbanda caracterizou-se por cultuar figuras nacionais associadas à natureza,<br />

à marginalida<strong>de</strong> e à condição subalterna em relação ao padrão branco oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Suas entida<strong>de</strong>s espirituais são organizadas em falanges, conduzidas pelos<br />

orixás africanos, com <strong>de</strong>staque para Ogum, Iemanjá e Xangô. As figuras centrais<br />

<strong>de</strong>ssa religião são, por um lado, o caboclo e o preto velho e, por outro, o Exu e a<br />

Pombajira, a matreira prostituta. Essas entida<strong>de</strong>s espirituais são recuperadas <strong>de</strong><br />

matrizes e estereótipos presentes na formação do povo brasileiro, fazendo aparecer,<br />

no centro do culto, tipos <strong>sociais</strong>, tradicionais ou contemporâneos, que po<strong>de</strong>m<br />

ser pensados como pertencentes a categorias socioculturais “inferiores” e “subalternas”,<br />

o que é distintivo <strong>de</strong>sta religião em relação ao kar<strong>de</strong>cismo, que prefere o<br />

contato com os espíritos consi<strong>de</strong>rados evoluídos, cultos e escolarizados, como filósofos<br />

e médicos.<br />

No <strong>de</strong>senvolvimento da Umbanda, associado às transformações <strong>de</strong> seu meio<br />

social nos gran<strong>de</strong>s centros urbanos, outros personagens foram surgindo, como o<br />

boia<strong>de</strong>iro, o marinheiro, o cigano, o baiano, entre outros (CONCONE, 1988). Os<br />

boia<strong>de</strong>iros po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados um tipo <strong>de</strong> caboclo, associado ao sertanejo, ao<br />

trabalhador rural que vive da lida com o gado no sertão, em condições duras que<br />

requerem muito esforço e <strong>de</strong>terminação. Há, portanto, proximida<strong>de</strong> entre o<br />

boia<strong>de</strong>iro e o baiano, sendo este, no entanto, o nor<strong>de</strong>stino do meio urbano, além<br />

<strong>de</strong> um elemento <strong>de</strong> síntese que se tornou bastante popular nas últimas décadas.<br />

Em termos <strong>de</strong> mestiçagem, o boia<strong>de</strong>iro remete ao mundo do caboclo indígena,<br />

enquanto o baiano remete ao negro africano. Em outro plano, enquanto o boia<strong>de</strong>iro<br />

representa o trabalho e a sisu<strong>de</strong>z do sertanejo, o baiano é a festa, a alegria e a<br />

malandragem do negro litorâneo (SOUZA, 2001).<br />

A Umbanda assimilou a lógica da oferta <strong>de</strong> bens simbólicos para a busca <strong>de</strong><br />

espaço no campo religioso contemporâneo, marcado pelo pluralismo cultural e pela<br />

competição por a<strong>de</strong>ptos. Para tanto, ela mantém os antigos traços do catolicismo<br />

popular, do ritualismo mágico, do atendimento direto às aflições das camadas<br />

populares. Aí o terreiro é referência no bairro pobre e tem um caráter <strong>de</strong> agregação<br />

comunitária. Os guias são reconhecidos como benzedores, “milagreiros”, <strong>de</strong>fensores<br />

por “quebrar <strong>de</strong>mandas e abrir caminhos”, enfim, agentes solucionadores <strong>de</strong><br />

problemas diversos da população local.


104 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Num outro contexto, porém, a religião associa a racional ênfase na palavra<br />

com traços atuais <strong>de</strong> espiritualismo da chamada nova era. A Umbanda aproveita<br />

elementos esotéricos presentes nos hábitos <strong>de</strong> consumo e se mostra “atualizada”.<br />

Aí o templo é uma casa <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços, que acentua o anonimato da vida<br />

na gran<strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. A religião assume um caráter terapêutico, constituindo-se em<br />

mais uma opção para o indivíduo na socieda<strong>de</strong> urbana secularizada. Essa religião<br />

tem um pé na magia afro-indígena e outro na racionalida<strong>de</strong> cristã, procurando<br />

combinar a orientação moral <strong>de</strong> conduta à mágica manipulação do mundo.<br />

SINCRETISMO AFRO-INDÍGENA-BRASILEIRO<br />

As religiões afro-brasileiras (Umbanda, Candomblé e suas variações: Xangô,<br />

Batuque e Tambor <strong>de</strong> Mina) e as religiões ditas <strong>de</strong> tradição indígena (Catimbó,<br />

Santo Daime, União do Vegetal e Barquinha) são formas <strong>de</strong> culto efetivamente<br />

nascidas em território nacional que, vez ou outra, se encontram e se influenciam<br />

mutuamente (GUIMARÃES, 1994). Tipicamente brasileiras e sincréticas, elas<br />

sintetizam elementos católicos, indígenas e africanos. Tais religiões têm caráter <strong>de</strong><br />

“experimentação” <strong>de</strong> uma religiosida<strong>de</strong> bastante manifesta no corpo físico. Com<br />

alguns elementos <strong>de</strong> contracultura, elas fazem uma espécie <strong>de</strong> sacralização da<br />

natureza, bem como mitificação <strong>de</strong> alguns territórios, especialmente a África e a<br />

Amazônia.<br />

Há uma crença comum e central na reencarnação e na comunicação com espíritos,<br />

através da mediunida<strong>de</strong>. Tal comunicação, muitas vezes, ocorre com vistas à<br />

obtenção <strong>de</strong> cura <strong>de</strong> males físicos e psicológicos, algo que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da fé e do merecimento<br />

individual, bem como da força espiritual dos guias. Entre estes, se <strong>de</strong>stacam<br />

os caboclos, os indígenas conhecedores do po<strong>de</strong>r das ervas, especialmente da<br />

ayahuasca, que juntos compõem um complexo <strong>de</strong> crenças conhecidas também como<br />

curan<strong>de</strong>irismo amazônico, o qual é reelaborado num processo <strong>de</strong> adaptação às transformações<br />

que ocorrem no mundo rural (LUNA, 1986, apud GOULART, 2005).<br />

Em seu aspecto formativo, essas religiões envolvem também, embora em<br />

menor grau, lí<strong>de</strong>res e a<strong>de</strong>ptos que vieram do mundo rural após uma série <strong>de</strong> movimentos<br />

migratórios, parecendo implicar um processo <strong>de</strong> mediação entre o mundo<br />

da floresta e o mundo da cida<strong>de</strong>. Surgem num contexto <strong>de</strong> intensa transformação<br />

do cenário rural brasileiro e, particularmente do meio amazônico, no caso das religiões<br />

ayahuasqueiras. Embora ganhem maior projeção nas cida<strong>de</strong>s, ressalte-se que<br />

é sempre nas periferias <strong>de</strong> capitais e estados amazônicos que elas se organizam (Rio<br />

Branco e Porto Velho).<br />

Assim como a Umbanda, o sentimento <strong>de</strong> pertencimento a uma <strong>de</strong>ssas irmanda<strong>de</strong>s<br />

significa obter o amparo que foi negado pelo Estado em toda a trajetória da<br />

diáspora <strong>de</strong>ssas populações que migraram para a Amazônia em busca <strong>de</strong> melhores<br />

condições <strong>de</strong> vida. Cumpre ainda observar que, no tocante ao mundo do trabalho


Cap. V Fronteiras do Sagrado entre a Umbanda e a Barquinha 105<br />

amazônico, a relação espacial entre centro e periferia é inversa à do contexto urbano,<br />

pois o seu local <strong>de</strong> trabalho, sobretudo, se for na floresta, na qual o seringal é<br />

um exemplo clássico, passa a ser consi<strong>de</strong>rado o “centro.” Pois é nele que se concentram<br />

os acontecimentos mais importantes, fonte <strong>de</strong> subsistência e da extração<br />

<strong>de</strong> matérias-primas, é lá que o indivíduo passa a maior parte do dia.<br />

Quanto à originalida<strong>de</strong> do campo religioso brasileiro, po<strong>de</strong>-se afirmar, <strong>de</strong>ssas<br />

religiões, que as mesmas reelaboraram em um quadro espacial e temporal, relativamente<br />

curto, um conjunto significativo <strong>de</strong> elementos simbólicos pertencentes<br />

às três principais vertentes culturais que <strong>de</strong>ram origem ao Brasil. Se a Umbanda<br />

aproximou a magia e o ritual da espiritualida<strong>de</strong> africana do kar<strong>de</strong>cismo europeu,<br />

conquistando no mercado <strong>de</strong> bens simbólicos a simpatia daqueles que buscam a<br />

cura para as mazelas do corpo e do espírito, com as religiões ayahuasqueiras não<br />

foi diferente, pois as mesmas se encarregaram <strong>de</strong> divulgar, pela primeira vez, o uso<br />

<strong>de</strong>ssa substância no meio urbano, embora seu consumo nas Américas venha <strong>de</strong> uma<br />

longa tradição. A Amazônia passa a ser representada nesse campo como um lócus<br />

privilegiado do saber xamânico (LABATE, 2004).<br />

Segundo Labate, o consumo contemporâneo <strong>de</strong>ssa substância relaciona-se a<br />

fenômenos que vêm ocorrendo globalmente e que estão ligados à incorporação<br />

reflexiva dos psicoativos na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>; à midiatização e consumo da cultura do<br />

outro e da natureza; e, por último, à formação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s transnacionais <strong>de</strong> psicoativos<br />

com o fluxo <strong>de</strong> sujeitos, substâncias, conhecimentos e capitais entre essas re<strong>de</strong>s.<br />

Esses novos personagens estão, por sua vez, ligados a questões centrais da vida<br />

contemporânea e retematizam o problema do tradicional e do mo<strong>de</strong>rno.<br />

Outra substância consumida nos rituais, que também funciona como<br />

marcador e que aproxima a Umbanda e a Barquinha, é o tabaco, utilizado pelas<br />

entida<strong>de</strong>s que visitam os centros (pretos velhos). O tabaco é um elemento que<br />

constrói e marca espaços simbólicos, seja entre grupos diferentes ou no interior do<br />

mesmo grupo. Cumpre <strong>de</strong>stacar que seu uso ritual também faz parte das práticas<br />

<strong>de</strong> cura do xamanismo amazônico.<br />

Outra vertente saída da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo da ayahuasca que se formou no<br />

campo religioso brasileiro é a “Umbandaime”. Existente na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, a<br />

Umbandaime foi fundada pela chamada madrinha Maria Natalina, mãe <strong>de</strong> santo<br />

e pertencente a uma família <strong>de</strong> umbandistas, que conheceu o Santo Daime aos <strong>de</strong>z<br />

anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> no Centro Céu <strong>de</strong> Maria, no Acre, por intermédio do padrinho Sebastião<br />

Mota <strong>de</strong> Melo, discípulo e continuador do trabalho do mestre Raimundo<br />

Irineu Serra. A partir <strong>de</strong>sse contato, dona Natalina teria recebido um recado da<br />

rainha do mar, Iemanjá, enquanto “mirava”, dizendo que o fim do mundo estava<br />

próximo e que seria necessário praticar a carida<strong>de</strong>, conselho que a partir <strong>de</strong> então<br />

foi seguido pela mãe <strong>de</strong> santo, que recebe em seu terreiro em São Paulo, <strong>de</strong>nominado<br />

<strong>de</strong> Templo Sagrado Jesus <strong>de</strong> Nazaré – São João Batista, todos os sábados,<br />

pessoas interessadas em trabalhos <strong>de</strong> <strong>de</strong>sobsessão e cura com o daime. Há contro-


106 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

vérsias a respeito da fundação <strong>de</strong>ssa linha, pois alguns <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que foi o próprio<br />

padrinho Sebastião que criou a Umbandaime.<br />

O fato é que todos esses personagens <strong>sociais</strong> nos revelam uma face nova sobre<br />

a construção das i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s religiosas contemporâneas. A expansão urbana<br />

intensificou a hibridação cultural que está presente em zonas <strong>de</strong> interculturalida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>nsas, nas quais o global e o local se misturam (LABATE, 2004). Vê-se quão<br />

sincrético e dinâmico é o universo religioso brasileiro.<br />

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

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em: http://www.scribd.com. Acesso em: 20 jan. 2011.<br />

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brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Pallas, 2001.<br />

SOUZA, M. Pretos velhos: oráculos, crença e magia entre os cariocas. 2006. Tese (Doutorado)<br />

– Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, UFRJ, Rio <strong>de</strong> Janeiro.


CAPÍTULO VI<br />

O USO DO CALENDÁRIO ASTRONÔMICO DESÂNA<br />

NA RESERVA DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL<br />

DO TUPÉ, AM<br />

INTRODUÇÃO<br />

Juliana Mitoso Belota<br />

Lucas Jatobá do Lago<br />

Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto<br />

O trabalho preten<strong>de</strong> discutir o uso dos conhecimentos contidos no calendário<br />

astronômico do povo Desâna e analisar sua função social no cotidiano <strong>de</strong> uma<br />

comunida<strong>de</strong> pertencente a este grupo. Trata-se, neste caso, <strong>de</strong> um conjunto sistematizado<br />

<strong>de</strong> narrativas sobre os saberes tradicionais <strong>de</strong>ste povo e que se tornaram<br />

conhecidos no ano <strong>de</strong> 2006, por meio <strong>de</strong> uma publicação <strong>de</strong>nominada Bueri Kãdiri<br />

Maririye – Os ensinamentos que não se esquecem, que integra o 4 o volume da Coleção<br />

Narradores Indígenas do Rio Negro, iniciativa da Fe<strong>de</strong>ração das Organizações<br />

Indígenas do Rio Negro – FOIRN; da União das Nações Indígenas do Rio Tiquié<br />

(Santo Antônio) – UNIRT; e do Instituto Socioambiental – ISA. O sujeito da pesquisa<br />

é um grupo familiar Desâna, que migrou da região do alto rio Negro e<br />

atualmente habita a Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé,<br />

próxima ao entorno da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manaus. Observamos que mesmo em uma situação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong>, este grupo consegue preservar alguns conhecimentos<br />

presentes no sistema do calendário na sua vivência cotidiana. Ao longo <strong>de</strong> 30 anos<br />

<strong>de</strong> migração no rio Negro, fora da casa <strong>de</strong> reza, <strong>de</strong>senvolvendo ativida<strong>de</strong>s como<br />

comércio, lavoura e garimpo, o povo Desâna atualmente, às margens do baixo rio<br />

Negro, na RDS do Tupé, retoma “parte” <strong>de</strong> sua tradição, através do reavivamento<br />

<strong>de</strong> seu calendário ritual, no contexto do etnoturismo ou do turismo xamânico,<br />

<strong>de</strong>ntro da casa <strong>de</strong> reza.<br />

OS DESÂNA<br />

Os Desâna são habitantes da região do alto rio Negro, localizada a Noroeste<br />

do Estado do Amazonas, tendo por limites geográficos: ao Norte, a Venezuela; ao<br />

Sul, o rio Curicariari; a Leste, o rio Negro; e a Oeste, a Colômbia. Os povos que<br />

vivem nesta região pertencem a três famílias linguísticas: Tukâno Oriental, que reúne<br />

as etnias Tukâno, Desâna, Kubeo, Wanâna, Pira-Tapuya, Miriti-Tapuya, Arapaso,


108 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Carapanã, Bará, Siriâno, Makuna, Tatuyo*, Yuruti*, Barasâna*, Taiwâno. Essas<br />

etnias habitam principalmente os rios Ualpés, Tiquié, Papuri e Querare e a região<br />

<strong>de</strong> Pirá-Paraná e Apaporis; Arawak, que reúne as etnias Wakuénai (rios Içana e<br />

Guainia), Baniwa (Alto Guainia e Atapabo), Kuripaco, Piapoco, Baré, Tariâna, e<br />

Werekena. Estas etnias ocupam principalmente os rios Içana, Aiari, Cuiari e Xié;<br />

Os makú, que reúnem as etnias Hupda, Yuhup<strong>de</strong>, Döw, Nadob, Kakwa*, e Nukaki*.<br />

Estas etnias habitam o interior das florestas, interflúvio entre Ualpés, Jurubari e<br />

Japurá. Há uma re<strong>de</strong> compartilhada entre as etnias do alto rio Negro, na qual se<br />

verifica a troca <strong>de</strong> benzimentos, histórias, cerimônias, e diversas similarida<strong>de</strong>s entre<br />

procedimentos rituais e cotidianos e formas <strong>de</strong> expressar sua visão <strong>de</strong> mundo<br />

(FRANCO DE SÁ, 2011).<br />

Oriundos mais especificamente da região conhecida como “cabeça do cachorro”,<br />

fronteira com a Colômbia, os Desâna estão espalhados em comunida<strong>de</strong>s pelos<br />

rios Tiquié e Papuri, afluentes do rio Uaupés, em número aproximado <strong>de</strong> 50 comunida<strong>de</strong>s,<br />

estimando-se esta população em 2.200 indivíduos. Divi<strong>de</strong>m a região<br />

com diversas etnias, interagindo apenas com aquelas que partilham do mesmo<br />

tronco linguístico, o Tukâno Oriental. 1 Com relação à organização social, os mesmos<br />

se relacionam a partir do cruzamento <strong>de</strong> clãs patrilineares e exógamos. Dentro<br />

dos clãs todos os indivíduos possuem um ancestral comum, além <strong>de</strong> parentes<br />

<strong>de</strong> outras etnias ou clãs. Estas relações <strong>de</strong> parentesco se dão a partir do “Sistema<br />

Social do Uaupés/Pira-Paraná.” Trata-se <strong>de</strong> um complexo sistema <strong>de</strong> relações matrimoniais,<br />

trocas <strong>de</strong> artigos, informações e rituais <strong>de</strong> celebrações entre os grupos<br />

pertencentes ao mesmo tronco linguístico e que formam as comunida<strong>de</strong>s do alto<br />

rio Negro. A partir <strong>de</strong>stas práticas matrimoniais, o vínculo entre as etnias da região<br />

é constantemente reafirmado, fator importante para fomentar o processo <strong>de</strong><br />

troca <strong>de</strong> artigos produzidos por cada grupo, criando entre eles uma relação <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>pendência. Periodicamente estas etnias se reúnem para festejar os ciclos produtivos<br />

nas chamadas festas <strong>de</strong> dabucuri. Nelas reforçam as relações familiares, além<br />

<strong>de</strong> rememorarem os costumes e as tradições dos antigos e <strong>de</strong> marcar as etapas da<br />

vida da criança até a ida<strong>de</strong> adulta. Os dabucuri constituem, também, uma espécie<br />

<strong>de</strong> treinamento para o diálogo entre os cunhados, no qual buscam afirmar sua<br />

ancestralida<strong>de</strong> e seus direitos sobre o território tradicional (Buchillet, 2006).<br />

In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do tipo <strong>de</strong> dabucuri que é celebrado, ele sempre ocorre quando<br />

um grupo tem algo a oferecer a outro, informa-se, então, a realização da festa às<br />

<strong>de</strong>mais comunida<strong>de</strong>s sempre com antecedência <strong>de</strong> um mês. Além dos dabucuri, há<br />

também os kaapiwaiá, 2 nos quais se comemoram as mudanças das estações, <strong>de</strong>terminadas<br />

a partir do movimento dos astros e também do amadurecimento das frutas.<br />

1. Informação retirada do site do Instituto Socio Ambiental – ISA. Dsei/FOIRN, 2005.<br />

Acesso em 29/05/2011. htpp://pib.socioambiental.org.<br />

2. O termo Desâna kaapiwayá refere-se aos cantos e as danças tradicionais que acompanham<br />

a tomada da bebida enteógena Kahpí (Banisteriopsis sp.) (FERNANDES, 2006).


Cap. VI O Uso do Calendário Astronômico Desâna na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento... 109<br />

Segundo os Desâna, o ano possui 22 estações, cada uma anunciada por alguma alteração<br />

específica no céu. Em cada estação é realizada uma festa <strong>de</strong> kaapiwaiá, e nelas<br />

há sempre aspectos rituais específicos e diferenciados. Segundo os Desâna, as constelações<br />

marcam o tempo e rememoram narrativas que ditam a temporalida<strong>de</strong> que<br />

será vivida pela comunida<strong>de</strong>, ou seja, a cosmologia e a vida da comunida<strong>de</strong> se relacionam<br />

diretamente com as narrativas representadas pelas constelações.<br />

A publicação do livro Bueri Kãdiri Maririye – Os ensinamentos que não se esquecem,<br />

no qual está contido o calendário astronômico Desâna, teve como narrador<br />

Américo Castro Fernan<strong>de</strong>s, Diakuru. O autor ocupa o posto <strong>de</strong> tuxaua (chefe) na<br />

comunida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong> e teve como intérprete Durvalino Moura Fernan<strong>de</strong>s, Kisibi.<br />

Pai e filho pertencem ao antigo grupo Wahari Diputiro Porã e moram atualmente<br />

na comunida<strong>de</strong> Cucura, no igarapé que recebe o mesmo nome. Wahari Diputiro era<br />

o chefe dos wi’seri kumuã, ou seja, dos avôs ou rezadores <strong>de</strong> Boreka, o ancestral maior<br />

dos Desâna.<br />

O CALENDÁRIO ASTRONÔMICO DESÂNA<br />

A Astronomia talvez seja a ciência mais antiga da humanida<strong>de</strong>, pois a observação<br />

do céu diurno ou noturno forma um espetáculo único que sempre foi objeto<br />

<strong>de</strong> atenção dos povos mais arcaicos. Ao longo do tempo, foi percebida a presença<br />

<strong>de</strong> padrões no movimento da esfera celeste que foram utilizados para i<strong>de</strong>ntificar<br />

as mudanças sazonais e quantificar o tempo. A presença <strong>de</strong> constelações facilitava<br />

a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong>sses ciclos anuais <strong>de</strong> movimentação realizados pelas estrelas.<br />

Entretanto, no curso da história da ciência, a Astronomia adquiriu outro status,<br />

além <strong>de</strong> ser simplesmente o <strong>de</strong> sistema <strong>de</strong> orientação e quantificação.<br />

Entre as populações indígenas, e com os Desâna não po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong> outra<br />

forma, há uma relação com os astros profundamente ligada aos mitos, uma vez<br />

que estes povos encontraram na esfera celeste padrões cíclicos que usaram ou usam<br />

para contar a passagem do tempo, além <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar constelações e relacioná-las<br />

aos seus mitos. Deste modo, tal processo serviu para registrar as diversas histórias<br />

<strong>de</strong> sua mitologia no livro aberto do firmamento.<br />

Os mitos que dão origem às constelações do calendário astronômico Desâna<br />

são narrados na obra acima citada e revelam a ocasião e os motivos <strong>de</strong> cada uma<br />

das 22 constelações no céu, segundo suas observações. É por meio das mesmas que<br />

os Wahari Dipuhtiro Porã acompanham as estações do ano e o tempo <strong>de</strong> amadurecimento<br />

das frutas. O ano inicia sempre no mês <strong>de</strong> agosto com a enchente da garça,<br />

seguido das outras, a saber: Yahi puiro (enchente da garça), Ihãmurã weri bohori<br />

(verão <strong>de</strong> lagartas), Aña dupuru puiro (enchente da cabeça da jararaca), Aña opamu<br />

puiro (enchente do corpo da jararaca), Aña diaba puiro (enchente dos ovos da<br />

jararaca), Aña bohotari bohori (verão do intervalo da jararaca), Pomo goãm duka puiro<br />

(enchente do pedaço <strong>de</strong> osso do tatu), Pomo opamu puiro (enchente do corpo do


110 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

~<br />

tatu), Mere weri bohori (verão da ingá), Nasikamu puiro (enchente <strong>de</strong> camarão), Muha<br />

~<br />

puiro (enchente <strong>de</strong> jacundá), Uri weri bohori (verão <strong>de</strong> pupunha), Ye disika poari puiro<br />

(enchente da barba <strong>de</strong> onça), Ye opamu Puiro (enchente do corpo da onça), Mu weri<br />

bohori (verão <strong>de</strong> umari), Nekaturu puiro (enchente sete-estrelas),Yohoka dupu puiro<br />

(enchente do cabo <strong>de</strong> enxó), Wai kaya puiro (enchente do jirau <strong>de</strong> pesca), Diayoá<br />

puiro (enchente <strong>de</strong> lontras), Ñamia puiro (enchente da formiga <strong>de</strong> fogo), Pu puiro<br />

(enchente da folha), Pu weri bohori (verão <strong>de</strong> folha).<br />

Tais constelações, que este grupo acompanha e que indicam as mudanças <strong>de</strong><br />

estação, realizam um movimento que vai do nascente ao poente:<br />

~<br />

Quando uma constelação entra no poente, na boca da noite, sempre acontece<br />

uma enchente ou inverno (puiro). No final da enchente, forma-se um pequeno<br />

verão (bohori) <strong>de</strong> alguns dias ou uma semana. Antes <strong>de</strong> cada lua nova, sempre<br />

cai também uma pequena chuva (Fernan<strong>de</strong>s, 2006).<br />

Diákara (Jaime Moura Fernan<strong>de</strong>s). Adaptação: Germano Afonso.<br />

Representação das constelações e da cosmologia Desâna. 3<br />

3. As referências para construção da Roda <strong>de</strong> Constelações Desâna foram retiradas do li-<br />

~<br />

vro Bueri Kãdiri Maririye: os ensinamentos que não se esquecem. (CASTRO FERNAN-<br />

DES & MOURA FERNANDES, 2006). No centro, a lança ritual faz a ligação do céu<br />

com o submundo e a superfície da terra, criada a partir da forquilha que representa os<br />

aspectos masculino e feminino da energia vital do universo, sendo a forquilha relacionada<br />

ao aspecto feminino e o cigarro <strong>de</strong> tabaco, ao aspecto masculino. As medicinas do<br />

tabaco, do kahpí e do Ipadú são os alimentos da criação, no banco dos criadores, na Casa<br />

da Terra. (Séribhi, Gabriel Gentil, 2000).


Cap. VI O Uso do Calendário Astronômico Desâna na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento... 111<br />

As estações são marcadas, portanto, por dois fenômenos recorrentes, as enchentes<br />

(ou invernos) e os verões. São pequenos intervalos <strong>de</strong> tempo anunciados<br />

conforme a constelação referente à estação que chega ao seu poente celeste.<br />

As constelações, no entanto, não permanecem sempre estáticas na mesma<br />

posição na esfera celeste (com exceção <strong>de</strong> algumas), elas ficam no céu durante algum<br />

tempo no ano e sua progressão po<strong>de</strong> ser acompanhada conforme passam as<br />

noites, quando chegam ao poente celeste elas reaparecerão na mesma época no ano<br />

seguinte, seguindo um ciclo anual.<br />

As estações segundo os Desâna são anunciadas conforme estas constelações<br />

chegam ao poente, por exemplo: a primeira estação do ano, Yahi puiro (enchente da<br />

garça), é uma enchente (ou inverno) anunciada pela chegada da constelação da garça<br />

no seu poente celeste. Desta forma, observamos que os Desâna possuem um sistema<br />

altamente eficiente <strong>de</strong> percepção do tempo, que marca períodos e fenômenos<br />

muito específicos. Configura-se como um sistema com origem, resultado <strong>de</strong> centenas<br />

<strong>de</strong> anos <strong>de</strong> observação passados <strong>de</strong> geração a geração através da oralida<strong>de</strong>. Esse<br />

sistema, no entanto, não se limita apenas à observação das constelações no céu, a<br />

própria mitologia por trás das constelações <strong>de</strong>nota aspectos importantes do tempo<br />

que será vivido pela comunida<strong>de</strong>, logo a transmissão do conhecimento torna-se essencial<br />

para o entendimento do grupo sobre o momento a ser vivido. Portanto, a vida<br />

dos Desâna é organizada por esses fatores, suas festas e ativida<strong>de</strong>s ao longo do ano<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m das narrativas míticas que ditam a dinâmica da cultura material.<br />

ASPECTOS SOCIOCULTURAIS RELACIONADOS À MITOLOGIA<br />

Para exemplificar a relação entre a mitologia, o céu e a vida cotidiana dos<br />

Desâna, mostraremos como as narrativas, por trás <strong>de</strong> uma constelação observada,<br />

influenciam no entendimento do momento que será vivido pela comunida<strong>de</strong> na<br />

estação anunciada por aquela constelação. A constelação da onça, por exemplo,<br />

anuncia um longo inverno (enchente) que é longo em <strong>de</strong>corrência da dimensão da<br />

constelação. É durante este período que tem fim a piracema, que se constitui como<br />

o movimento migratório dos peixes rumo às nascentes dos rios para fins <strong>de</strong> repro-<br />

~<br />

dução e <strong>de</strong>sova. A história da constelação da onça remete ao tempo em que os Umuri<br />

Masá (os Desâna) procuravam por <strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> animais para confecção <strong>de</strong> enfeites <strong>de</strong><br />

dança para festas <strong>de</strong> kaapiwaiá. De acordo com a narrativa procuraram uma onça,<br />

caçaram-na, mataram e tiraram <strong>de</strong>la seus pelos e <strong>de</strong>ntes, escon<strong>de</strong>ram o corpo para<br />

que ninguém soubesse o que fizeram, porém, as outras onças <strong>de</strong>scobriram e <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

então se tornaram inimigas dos Desâna. Segundo eles, é nesse período que termina<br />

a piracema dos peixes que é comemorada com o uso dos enfeites cerimoniais que<br />

foram criados durante este período. A incidência <strong>de</strong> chuvas neste período é explicada<br />

pela saliva e sangue da onça que foi morta e que foi parar no céu, portanto, da mitologia<br />

acerca da constelação da onça, se tira a explicação para o fenômeno da piracema


112 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

e das fortes chuvas que acontecem no período <strong>de</strong> enchente que a formação celeste<br />

anuncia nas últimas semanas <strong>de</strong> março e primeira quinzena <strong>de</strong> abril.<br />

Cabe aqui ressaltar que os povos indígenas tukâno orientais, neles incluídos os<br />

Desâna, têm uma relação especial com os peixes (Cabalzar, 2005). Além <strong>de</strong> constituir<br />

o item principal da sua dieta, <strong>de</strong>pois da mandioca, eles representam um significado<br />

especial na cosmologia <strong>de</strong>stes povos, uma vez que segundo a narrativa<br />

cosmogônica, a humanida<strong>de</strong> era Gente-Peixe (Wai Masá). Uma parte se transformou<br />

na humanida<strong>de</strong> atual e outra parte permaneceu na camada das águas, iniciando uma<br />

relação <strong>de</strong> hostilida<strong>de</strong> com a humanida<strong>de</strong>. Neste sentido, as narrativas mitológicas<br />

são a base para a formulação das rezas, para transformar a maloca em espaço ritual,<br />

síntese do cosmos, e para pensar as relações da humanida<strong>de</strong> com outros seres. Os<br />

peixes ocupam um lugar central para o entendimento da visão <strong>de</strong> mundo <strong>de</strong>sses povos<br />

porque se encontram associados à própria origem da humanida<strong>de</strong>.<br />

Dentro <strong>de</strong> um universo disposto em camadas permeáveis, <strong>de</strong> acordo com o<br />

mito, os peixes habitam a camada <strong>de</strong> águas, rios, lagos e poços. Divi<strong>de</strong>m esse ambiente<br />

com as cobras gran<strong>de</strong>s, com quem mantêm relações estreitas porque elas<br />

ocupam a função <strong>de</strong> mediadoras entre os homens e os peixes, associadas a capacida<strong>de</strong>s<br />

reprodutivas e transformadoras, e como tal, tem uma natureza tensa, entre<br />

fertilida<strong>de</strong> e predação. Nos rituais on<strong>de</strong> se ingere o Kahpí, elas são vistas como fonte<br />

<strong>de</strong> vida (Cabalzar, 2005) e no calendário astronômico Desâna, a cobra gran<strong>de</strong> é<br />

representada pela jararaca em quatro estações. O que <strong>de</strong>nota um aspecto interessante<br />

da representação dos Desâna é que uma só constelação po<strong>de</strong> marcar mais <strong>de</strong><br />

uma estação do ano, como po<strong>de</strong> se notar pela constelação da jararaca. As estações,<br />

neste caso, se marcam conforme segmentos da constelação que chegam ao poente,<br />

portanto, a partir da jararaca se <strong>de</strong>terminam três estações do ano, sendo a quarta<br />

<strong>de</strong>finida pelo intervalo <strong>de</strong> tempo entre o sumiço da jararaca (verão do intervalo da<br />

jararaca) e a chegada da próxima constelação ao seu poente (constelação do tatu).<br />

São três os segmentos observados da constelação referida: a cabeça (enchente<br />

da cabeça da jararaca), o corpo (enchente do corpo da jararaca) e os ovos (enchente<br />

dos ovos da jararaca). O aspecto mais interessante, porém, <strong>de</strong>sta constelação<br />

é que, segundo os Desâna, o tempo em que ela se encontra no poente não é tempo<br />

propício para a pesca, e a explicação <strong>de</strong>ste fenômeno tem origem na mitologia acerca<br />

<strong>de</strong>ssa constelação. Segundo eles, a constelação foi criada no tempo <strong>de</strong> Deyubari<br />

Gõãmu 4 que teve sua esposa engolida por um matapi (armadilha para pegar os peixes),<br />

por culpa <strong>de</strong> seus cunhados, enquanto ela colhia peixes. Ao saber disso, querendo<br />

vingar-se, criou o corpo da jararaca a partir <strong>de</strong> uma corda feita com pelos <strong>de</strong><br />

onças e macacos que estavam presos ao seu cabelo. Em seguida, com um enfeite <strong>de</strong><br />

4. Entida<strong>de</strong> mitológica, Deyubary Gõãmu é, na gênese Desâna, o segundo irmão da criação,<br />

dono da caça e da pesca, inventor dos instrumentos <strong>de</strong> caça e <strong>de</strong> pesca para que as<br />

futuras gerações se alimentem. (FERNANDES, 1996).


Cap. VI O Uso do Calendário Astronômico Desâna na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento... 113<br />

canela, criou a cabeça da cobra e seu <strong>de</strong>nte com um pedaço <strong>de</strong> fio <strong>de</strong> tucum. Depois,<br />

enrolou-a em seu cetro e fez com que picassem os responsáveis pelo<br />

engolimento <strong>de</strong> sua esposa. Dos três que tentou matar, um não morreu e vingouse<br />

matando a esposa <strong>de</strong> Deyubari Gõãmu, que em uma tentativa <strong>de</strong> salvá-la, correu<br />

para a maloca on<strong>de</strong> ela estava, arremessando para longe a cobra que carregava em<br />

suas costas. Deyubari Gõãmu ficou viúvo e amaldiçoou a humanida<strong>de</strong> escon<strong>de</strong>ndo<br />

os peixes no “cu” da jararaca.<br />

A história <strong>de</strong>ssa constelação nos apresenta dois aspectos importantes do período<br />

que ela anuncia no céu: por Deyubari Gõãmu tê-la arremessado longe, a enchente<br />

(inverno) da jararaca se tornou um longo período e, por ter escondido os<br />

peixes na constelação, durante o período em que ela se encontra no céu, a pesca<br />

não apresenta muitos resultados.<br />

UM CALENDÁRIO AMAZÔNICO: VIVÊNCIAS DESÂNA NO<br />

BAIXO RIO NEGRO, NA RDS DO TUPÉ<br />

O campo no qual está sendo observado o uso do calendário <strong>de</strong> ritos Desâna,<br />

por uma família <strong>de</strong>sal<strong>de</strong>ada, é uma comunida<strong>de</strong> Desâna, recém-instalada, a partir<br />

dos anos 2000, na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Tupé. 5 A<br />

ocupação atual <strong>de</strong>sta localida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>u a partir da chegada da extensa família do<br />

casal anfitrião, o Kisibi-Kumu, Raimundo Veloso Vaz (Ser humano do dia, filho do<br />

Sol) e Yuparkó, Aurora Fontes Vaz (filha da Lua, Tukâna), vindos originariamente<br />

5. Criada por <strong>de</strong>creto municipal n. 8.044, <strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2005, a RDS do Tupé é localizada<br />

na Bacia do Rio Negro. Consi<strong>de</strong>rando o Código Ambiental da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manaus,<br />

que regulamenta o Plano Diretor Urbano e Ambiental, a área é regida pela Lei 9.985 <strong>de</strong><br />

18 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2000, que versa sobre o Sistema Nacional <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação<br />

(SNUC), o qual consi<strong>de</strong>ra a Reserva, área <strong>de</strong> conectivida<strong>de</strong> com o Corredor Central da<br />

Amazônia (CCA/UNESCO), sendo este um dos instrumentos <strong>de</strong> proteção em larga escala<br />

para a região. A RDS do Tupé está inserida no Corredor Central da Amazônia (CCA)<br />

que está sobreposto à Reserva da Biosfera da Amazônia Central (RBAC). O Projeto Corredores<br />

Ecológicos apoiou a implementação da mesma. Os doadores do projeto são o Banco<br />

Mundial, KFW e União Européia; Com áreas sobrepostas, a Reserva da Biosfera da Amazônia<br />

Central e o Corredor Central da Amazônia, encerram a área <strong>de</strong> atuação do Projeto<br />

Corredores Ecológicos no Bioma Amazônia - a maior área <strong>de</strong> proteção ambiental contínua<br />

do mundo. Seu objetivo estratégico é o <strong>de</strong> garantir a conectivida<strong>de</strong> entre as áreas<br />

protegidas (Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação e Terras Indígenas) e áreas interstícias, através <strong>de</strong><br />

ações que visem à manutenção e aplicação <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> conservação, além <strong>de</strong> apoio a políticas<br />

e estratégias para o uso sustentável dos recursos naturais. Po<strong>de</strong>r público, instituições<br />

não-governamentais e socieda<strong>de</strong> civil trabalham <strong>de</strong> forma integrada para implementar a<br />

RBAC.O Brasil possui sete reservas da biosfera em vários biomas. Mata Atlântica, o<br />

Cinturão Ver<strong>de</strong> da Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, Cerrado, Caatinga, Pantanal, Amazônia Central<br />

e Serra do Espinhaço, que formam a Re<strong>de</strong> Brasileira <strong>de</strong> Reservas da Biosfera, que se encontra<br />

regulamentada no âmbito do Sistema Nacional <strong>de</strong> Áreas Protegidas, Lei n. 9.985<br />

<strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2000. (Fonte: http://www.ibama.org.br.)


114 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

do Igarapé Urucu, afluente do rio Papuri, que <strong>de</strong>ságua no rio Tiquié, afluente do<br />

Uaupés, no Noroeste Amazônico. A história <strong>de</strong>sta família perpassa a realida<strong>de</strong><br />

transcrita por Curt Nimuendaju (1927), quando veio à Amazônia e presenciou a<br />

ocupação paulatina do alto rio Negro pelos brancos, fato que iniciou o processo <strong>de</strong><br />

migração daquelas comunida<strong>de</strong>s indígenas para outras localida<strong>de</strong>s.<br />

A família do Sr. Raimundo Vaz serve <strong>de</strong> exemplo do êxodo dos povos indígenas<br />

do Rio Negro ao longo do século XX. Des<strong>de</strong> sua saída do alto rio Negro, tais<br />

atores <strong>sociais</strong> vêm ocupando diversas localida<strong>de</strong>s às margens <strong>de</strong>ste rio, ao longo<br />

dos últimos 30 anos. Transmigrados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 80, eles fazem parte do grupo<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>scendência Wahari Diputiro Põrã - os filhos <strong>de</strong> Cabeça Chata. Pertencem ao<br />

mesmo grupo <strong>de</strong> avôs que narrou e interpretou o calendário astronômico publicado<br />

pelo Instituto Socioambiental (ISA), em 2006.<br />

A observação feita na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável do Tupé visou,<br />

entre outros aspectos, abordar o retorno do grupo a um tempo <strong>de</strong> vivência<br />

ritual do calendário Desâna, no contexto do ecoturismo indígena, relacionando os<br />

elementos constantes nessa nova configuração ritual, ao calendário astronômico.<br />

Apesar <strong>de</strong> ser um calendário <strong>de</strong> ritos sintetizado, voltado para o turismo, neles se<br />

realizam performances musicais, corporais, o grafismo e o trabalho artesanal do<br />

grupo. Os instrumentos Desâna são relacionados os mitos <strong>de</strong> origem. Na atualida<strong>de</strong>,<br />

os Desâna, no Tupé, não realizam o calendário ritual focado nos ciclos econômicos<br />

produtivos relacionados às constelações propriamente ditas, mas numa memória<br />

(continuação) Reconhecida em 2001, a RBAC abrange uma área total <strong>de</strong> 208.600 km²,<br />

localizada no Estado do Amazonas. Em seu território encontra-se um conjunto <strong>de</strong> Áreas<br />

Protegidas <strong>de</strong> diferentes categorias <strong>de</strong> gerenciamentos, bem como espaços locais <strong>de</strong>signados<br />

a Sítios do Patrimônio Mundial da Humanida<strong>de</strong>. A Reserva da Biosfera da<br />

Amazônia Central possui como elemento estrutural <strong>de</strong> seu território o conjunto <strong>de</strong> áreas<br />

protegidas formado pela Reserva Biológica Uatumã, Parque Nacional <strong>de</strong> Anavilhanas,<br />

Parque Nacional do Jaú, pelas Áreas <strong>de</strong> Proteção Ambiental e Parque Estadual do Rio<br />

Negro, Reservas <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável Mamirauá e Anamã, Estação Ecológicas<br />

do Javari-Solimões e Juami-Japurá e Floresta nacional <strong>de</strong> Tefé, entre muitas outras<br />

áreas protegidas criadas após o seu reconhecimento, além <strong>de</strong> inúmeras Terras Indígenas<br />

que completam a vasta área protegida da reserva. (Fonte: http://www.rbma.org.br). Reservas<br />

Mundiais da Biosfera são porções <strong>de</strong> ecossistemas terrestres ou costeiros on<strong>de</strong> se<br />

procuram meios <strong>de</strong> reconciliar a conservação da biodiversida<strong>de</strong> com o seu uso sustentável.<br />

São propostas pelos países-membros da UNESCO e, quando preenchem os critérios,<br />

são reconhecidas internacionalmente. Em 2007 eram 529 sítios distribuídos por 105<br />

países. A origem das Reservas Mundiais da Biosfera esteve na “Conferência sobre a<br />

Biosfera” organizada pela UNESCO em 1968, que foi a primeira reunião intergovernamental<br />

a tentar reconciliar a conservação e o uso dos recursos naturais, fundando o<br />

conceito presente <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável. A UNESCO lançou, em 1970, o<br />

“Programa Homem e Biosfera”, com o objectivo <strong>de</strong> organizar uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> áreas protegidas,<br />

<strong>de</strong>signadas Reservas da Biosfera, que representam os diferentes ecossistemas do<br />

globo e cujos países proponentes se responsabilizam em manter e <strong>de</strong>senvolver. (www.<br />

http://pt.wikipedia.org/wiki/Reserva_da_Biosfera). (Fonte: http://www.rbma.org.br.)


Cap. VI O Uso do Calendário Astronômico Desâna na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento... 115<br />

dos aspectos rituais, nos elementos que guardam sua (re) significação e “recuperação”.<br />

Elementos que eles mantiveram tradicionalmente ou tem capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

manter agora, <strong>de</strong> um modo contemporâneo. A investigação pautou-se, sobretudo,<br />

nas perguntas: O que eles ainda sabem? Que fatos revelam na atualida<strong>de</strong> seu conhecimento<br />

do tempo antigo? Como e <strong>de</strong> que maneira se correspon<strong>de</strong>m com estes tempos? Os mitos, a<br />

memória da família confirma os fatos narrados na bibliografia publicada? Há mudanças?<br />

Quais as perspectivas futuras <strong>de</strong>ssa nova forma <strong>de</strong> reorganização num outro “tempo” e “espaço”<br />

<strong>de</strong> mobilida<strong>de</strong> no mesmo rio Negro, mas numa nova localida<strong>de</strong>, mais abaixo, no entorno<br />

da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manaus?<br />

A SAGA DA FAMÍLIA: DO IGARAPÉ URUCU AO TUPÉ NA<br />

CASA DE FARINHA, NA RDS DO TUPÉ<br />

Deslocados <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1980, para Pari-Cachoeira, lugar para on<strong>de</strong> foram após<br />

saírem do rio Papuri, a família do casal anfitrião, atualmente resi<strong>de</strong>nte na al<strong>de</strong>ia<br />

do Tupé, relata que sentiu os efeitos da escassez <strong>de</strong> alimentos e recursos da floresta,<br />

tendo sido atraídos para sobreviver das ativida<strong>de</strong>s do garimpo e do comércio.<br />

Viveram em Pari-Cachoeira até 1995, quando, então, partiram para Carvoeiro, em<br />

Barcelos, em busca <strong>de</strong> melhorias. Voltando-se para uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> subsistência<br />

mais próxima dos ciclos <strong>de</strong> conhecimento da terra, passaram a <strong>de</strong>senvolver a lavoura<br />

(roça) e o turismo, através da Associação Indígena <strong>de</strong> Barcelos (ASSIBA), a<br />

qual o Sr. Raimundo Vaz montou e presidiu por alguns anos, promovendo discussões,<br />

seminários e reuniões com os povos indígenas. Segundo sua filha, Umusi, Gisele<br />

Vaz, surgiu daí o estímulo <strong>de</strong> organizar um lugar para receber os turistas no Tupé.<br />

Fonte: Acervo Raimundo Vaz. Ralando mandioca para fazer farinha.


116 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

O turismo, na RDS do Tupé, segundo Kisibi-Kumu, Raimundo Vaz, começou<br />

pela <strong>de</strong>manda dos hotéis <strong>de</strong> selva, que propuseram um calendário <strong>de</strong>monstrativo<br />

<strong>de</strong> rituais. A dificulda<strong>de</strong> com a língua, o português, até então, não dominado pelo<br />

Sr. Raimundo Vaz, fez a união com seu irmão acontecer, quando foi liberada a<br />

~<br />

construção da Maloca Umuri Dihro Mahsã (Maloca dos Seres Humanos do Dia) e<br />

o trabalho com o turismo, na comunida<strong>de</strong> Colônia Central. (Umusi, conversa pessoal,<br />

2010). Atualmente, na comunida<strong>de</strong> São João do Tupé, os dois seguem <strong>de</strong><br />

maneira in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, cada um com sua maloca. Nosso trabalho se <strong>de</strong>terá ao grupo<br />

do Sr. Raimundo Vaz, com o qual mantemos relação há mais tempo, tendo<br />

participado conjuntamente em diversos encontros científicos e xamânicos, além<br />

<strong>de</strong> realizar estudos sobre calendário <strong>de</strong> ritos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004.<br />

O turismo <strong>de</strong>senvolvido atualmente pelo Kisibi-Kumu, Raimundo Vaz é voltado<br />

para o etnoturismo e/ou ecoturismo indígena, incluindo o turismo xamânico<br />

em suas práticas. As relações entre a comunida<strong>de</strong> e os turistas são intermediadas<br />

por guias e agências. Não há atualmente regulamentação ou fiscalização das<br />

ativida<strong>de</strong>s, o trabalho vem crescendo regulado pela <strong>de</strong>manda e pelo mercado.<br />

~<br />

UMURI DIHRÓ MAHSÃ (MALOCA DOS SERES HUMANOS<br />

DO DIA): ESPAÇO E TEMPO NO TUPÉ<br />

A comunida<strong>de</strong> Desâna inserida no contexto da RDS do Tupé, <strong>de</strong>senvolve um<br />

~<br />

calendário ritual focado na casa <strong>de</strong> reza Umuri Dihró Mahsã (Maloca dos Seres<br />

Humanos do Dia), e na síntese ritual dos principais elementos da cosmogonia<br />

Desâna. A al<strong>de</strong>ia concentra <strong>de</strong>z famílias representantes das etnias Desâna, Tatuyo,<br />

Barasâna, Wanâno, Karapanã e Tukâno. Baseada em uma intensa relação com a<br />

natureza, sua vida é voltada para o rio, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> provém o uso <strong>de</strong> toda a água que<br />

consomem; e para a casa <strong>de</strong> reza, espaço <strong>de</strong> trabalho por excelência, na RDS, on<strong>de</strong><br />

realizam o grafismo corporal, o feitio <strong>de</strong> instrumentos, cantos, danças, e a produção<br />

do artesanato. Além do espaço ocupado com suas moradias, o espaço externo<br />

só é ocupado com pequenos jardins e pomares nos quintais das casas, o jardim <strong>de</strong><br />

medicina, do lado Oeste da maloca, projeto já iniciado, em fase <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong><br />

mudas, e com as trilhas <strong>de</strong> caminhadas que levam às poucas roças atualmente<br />

<strong>de</strong>senvolvidas pelos indígenas, às cachoeiras e às outras comunida<strong>de</strong>s da RDS. A<br />

agricultura tradicional Desâna, intimamente relacionada aos ciclos produtivos do<br />

calendário astronômico que, originalmente, <strong>de</strong>terminam o calendário ritual como<br />

ativida<strong>de</strong>-base da organização social e espaço-temporal da etnia, tem sido pouco<br />

valorizada e mesmo penalizada por vários fatores, <strong>de</strong>ntre eles, as normas <strong>de</strong> restrições<br />

<strong>de</strong> uso <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong>ntro da reserva. A agricultura tradicional, como praticada<br />

milenarmente pelos povos amazônicos, é consi<strong>de</strong>rada um mo<strong>de</strong>lo atrasado,<br />

primitivo, antieconômico e até <strong>de</strong>strutivo das florestas (CARDOSO, 2010). A roça,<br />

como principal espaço da agricultura tradicional, nasce <strong>de</strong> um distúrbio (o corte e<br />

queima da floresta), e visa à segurança alimentar <strong>de</strong> uma família <strong>de</strong> uma comuni-


Cap. VI O Uso do Calendário Astronômico Desâna na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento... 117<br />

da<strong>de</strong> local ou <strong>de</strong> uma região. Esse distúrbio é criticado por setores do ambientalismo<br />

e por planejadores do <strong>de</strong>senvolvimento, que vêem nessa prática, respectivamente,<br />

a <strong>de</strong>struição das florestas tropicais e a improdutivida<strong>de</strong> perante o mercado. (CAR-<br />

DOSO, 2010:p17).<br />

Esta é uma das razões pelas quais o turismo, entre as ativida<strong>de</strong>s produtivas<br />

<strong>de</strong>senvolvidas pela população indígena no Tupé, no âmbito da RDS, ocupa lugar<br />

central. De face capitalista, a ativida<strong>de</strong> do turismo, além <strong>de</strong> ter um viés i<strong>de</strong>ológico<br />

é apontada como uma ativida<strong>de</strong> que permite uma articulação entre o local e o espaço<br />

transnacional, o que reforça sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformar a natureza e a cultura<br />

em mercadoria e capital (FERREIRA, 2007).<br />

O problema que a pesquisa se propõe a investigar, a (re) significação do calendário<br />

<strong>de</strong> ritos Desâna, no contexto no qual estão inseridos, no âmbito do<br />

etnoturismo e da etnoconservação, atuando ora como agenciadores das relações<br />

<strong>de</strong> turismo com as quais convivem diariamente, ora como agenciados <strong>de</strong> guias e<br />

agências <strong>de</strong> turismo que esten<strong>de</strong>m seus pacotes à visitação na al<strong>de</strong>ia - o que ocorre<br />

<strong>de</strong> maneira mais intensiva - é referente à pergunta: os Desâna, no Tupé, po<strong>de</strong>m<br />

(re) significar-se culturalmente no sentido <strong>de</strong> afirmarem uma (re) <strong>territorialização</strong><br />

no campo da cultura, on<strong>de</strong> se estabeleceram numa ativida<strong>de</strong>-base focada no espaço-tempo<br />

da maloca? Ou estão inseridos tanto no processo <strong>de</strong> (<strong>de</strong>s) <strong>territorialização</strong><br />

que está envolvido no atual Zoneamento Ecológico-Econômico da Amazônia, junto<br />

a mecanismos <strong>de</strong> interface global, quanto no processo da sua própria (<strong>de</strong>s)<br />

<strong>territorialização</strong> enquanto etnia transmigrada do alto rio Negro, seu lugar <strong>de</strong> origem,<br />

<strong>de</strong>senvolvendo ativida<strong>de</strong>s exógenas, tais como o comércio, o garimpo, e até o<br />

turismo em algum sentido, já que, mesmo estando espacializado na casa-<strong>de</strong>-reza,<br />

é realizado fora do espaço-tempo da cosmologia Desâna propriamente dita, atuando<br />

sob uma plataforma <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, com seu cotidiano voltado para um “tempo<br />

branco” como diz o Sr. Raimundo Vaz, e tudo que lhe é próprio: uso do transporte<br />

urbano, dos supermercados, da telefonia, da internet, etc. A princípio, a nossa<br />

hipótese é <strong>de</strong> que uma (re) <strong>territorialização</strong> cultural da sua vida tradicional na floresta,<br />

mesmo inseridos numa plataforma <strong>de</strong> globalização, po<strong>de</strong> ser afirmada, a partir<br />

da (re) significação <strong>de</strong> elementos estruturais da sua cultura tradicional Desâna.<br />

Antes <strong>de</strong> voltarmo-nos aos elementos que atualmente estruturam as vivências<br />

Desâna no Tupé, vamos nos voltar ao que se po<strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r por <strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong><br />

e re<strong>territorialização</strong> cultural. GIDDENS (1990,1991) Apud LABATE (2004) afirma<br />

que, no capitalismo <strong>de</strong>sorganizado, com a circulação <strong>de</strong> sujeitos e objetos em<br />

escala cada vez maiores, o tempo e o espaço são progressivamente esvaziados,<br />

<strong>de</strong>sencaixados <strong>de</strong> seu conteúdo concreto. Isso significa que o tempo se reduz a uma<br />

série <strong>de</strong> eventos contingentes, <strong>de</strong>sconectados; as culturas são <strong>de</strong>sterritorializadas;<br />

os sujeitos <strong>de</strong>spojados <strong>de</strong> sua afetivida<strong>de</strong> e os objetos <strong>de</strong> seu conteúdo simbólico e<br />

material. Com a crescente importância das imagens, o outro (etnias, nacionalida<strong>de</strong>s)<br />

está progressivamente se mediatizando, isto é, cada vez mais sendo (re)


118 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

construído através das imagens e como mercadoria. A natureza, por sua vez, passa<br />

a receber valor e atenção crescentes, tornando-se cada vez mais um dos meros<br />

“artefatos da escolha do consumidor”. Isto é o gigantesco consumismo global transforma<br />

a natureza em apenas uma <strong>de</strong>ntre outras possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> escolha <strong>de</strong> consumo.<br />

(LASH e URRY, 1994: p.227 Apud LABATE, 2004).<br />

Para abordarmos o tema, teremos que analisar os domínios culturais envolvidos<br />

nos elementos rituais que estruturam seu trabalho no contexto do etnoturismo<br />

e teremos que recorrer a autores que fazem referência não só aos fundamentos do<br />

conceito <strong>de</strong> turismo, como <strong>de</strong> cultura, território, territorialida<strong>de</strong>s e planejamento<br />

do turismo.<br />

Ferreira (2008) afirma que o que diferencia um lugar do outro é a forma <strong>de</strong><br />

ocupação e os atores <strong>sociais</strong> engajados no processo <strong>de</strong> produção do espaço <strong>de</strong> acordo<br />

com seus costumes, valores, tradições, ou seja, a cultura. (GEERTZ, 1978;<br />

SAHLINS, 1997; HAESBART, 2001 Apud FERREIRA, 2007) compreen<strong>de</strong>m a<br />

cultura como sistemas simbólicos e concebem o território como construído a partir<br />

da apropriação simbólico-cultural do espaço pela comunida<strong>de</strong>/povo. Segundo a<br />

autora, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos lugares <strong>de</strong>ve ser observada para o planejamento do turismo.<br />

O turismo é aí entendido como fator <strong>de</strong> transformação do espaço, a partir do<br />

momento em que passa a ser objeto <strong>de</strong> apropriação e consumo do mesmo. (CRUZ,<br />

2000 Apud FERREIRA, 2007) afirma que o espaço, nesse contexto, é transformado<br />

em lugares turísticos e em territórios turísticos, muitas vezes sem levar em consi<strong>de</strong>ração<br />

a cultura e a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do lugar.<br />

Segundo Kisibi-Kumu Raimundo Vaz, o perfil dos turistas que visitam a comunida<strong>de</strong><br />

é o perfil dos turistas levados pelas agências e guias que atuam em<br />

Manaus, em sua maioria, estrangeiros, que vem a Amazônia, em expedições em<br />

grupo, com tempo limitado por uma agenda <strong>de</strong> visitas e ativida<strong>de</strong>s intensas voltadas<br />

à natureza. Os pacotes turísticos oferecidos na comunida<strong>de</strong> Desâna do Tupé<br />

envolvem a chegada dos turistas na al<strong>de</strong>ia, os ritos <strong>de</strong> boas-vindas na oca ou casa<br />

<strong>de</strong> reza, trilhas interpretativas, banhos <strong>de</strong> cachoeira, pescaria com canoa e remo,<br />

banho nos rios e lagos, reconhecimento <strong>de</strong> espécies que utilizam na fabricação <strong>de</strong><br />

instrumentos, incensos, beberragens, e outros elementos importantes na composição<br />

cultural do espaço. Na casa <strong>de</strong> reza são apresentados, <strong>de</strong> modo <strong>de</strong>monstrativo,<br />

os ciclos <strong>de</strong> conhecimento da cultura, os ciclos produtivos e as peças artesanais,<br />

musicais, instrumentais, e rituais que <strong>de</strong>les resultam.<br />

O tempo <strong>de</strong> visita é geralmente <strong>de</strong> vinte e cinco minutos para os ritos <strong>de</strong>monstrativos<br />

na casa <strong>de</strong> reza. Este é o tipo <strong>de</strong> visita mais comum. Mais raros são<br />

os turistas que vêm com disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tempo para uma vivência mais completa,<br />

com pernoite na al<strong>de</strong>ia, o que permite outros tipos <strong>de</strong> vivências. Geralmente<br />

estes turistas têm acesso à cozinha, mais próxima da casa, em estilo tradicional,<br />

que utiliza <strong>de</strong> bioconstrução com terra e pau-a-pique, e conta com forno <strong>de</strong> farinha<br />

e forno-a-lenha, on<strong>de</strong> são feitos os cozimentos <strong>de</strong> comidas típicas e das bebi-


Cap. VI O Uso do Calendário Astronômico Desâna na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento... 119<br />

das feitas a partir <strong>de</strong> fermentações especiais, servidas em rituais não apenas <strong>de</strong>monstrativos,<br />

mas <strong>de</strong> vivências mais próximas do xamanismo Desâna. A casa <strong>de</strong><br />

reza é o principal espaço <strong>de</strong> vivência tradicional, já que os jardins <strong>de</strong> mandioca estão<br />

restritos, na área ocupada pelos Desâna, no Tupé, na Comunida<strong>de</strong> São João do Tupé.<br />

Ao todo são seis comunida<strong>de</strong>s que habitam na RDS do Tupé: Livramento, Julião e<br />

Agrovila (localizadas na margem direita do rio Tarumã - mirim), Colônia Central<br />

(no interior da Reserva), São João do Tupé e Tatu (margem esquerda do rio Negro);<br />

e comunida<strong>de</strong>s do entorno, N.Sª. <strong>de</strong> Fátima, Ebenezer e São Sebastião (localizadas<br />

na margem esquerda do rio Tarumã – Mirim, na Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental<br />

(APA) Estadual, Margem Esquerda do Rio Negro/Setor Tarumã – Açu /Tarumã –<br />

Mirim ). Algumas trilhas, cachoeiras, lagos e roçados estão fora dos limites da<br />

comunida<strong>de</strong> São João do Tupé, assim, algumas ativida<strong>de</strong>s com os turistas, tais como:<br />

vivências <strong>de</strong> feitio <strong>de</strong> instrumentos, observação <strong>de</strong> animais, colheitas <strong>de</strong> frutos, <strong>de</strong><br />

tintas para o grafismo, reconhecimento <strong>de</strong> espécies vegetais, pesca, etc. interagem<br />

com outras comunida<strong>de</strong>s da reserva.<br />

SÍNTESE RITUAL E CONTEXTO CULTURAL<br />

O que se enten<strong>de</strong> por contexto original <strong>de</strong> um habitat tukâno, contém: a floresta,<br />

montanhas e rios e as criaturas que habitam, homens, animais e “espíritos”<br />

(Arhem, 1993). Entre os tukâno, os yaiwa, bayaroá – mestres <strong>de</strong> música e cerimônia<br />

– e os kumuã – conhecedores <strong>de</strong> plantas, mitos, músicas, rezadores, benzedores<br />

(categoria on<strong>de</strong> se insere Kisibi-Kumu Raimundo Vaz) – ouvem as canções que são<br />

emanadas por Miri6 ~<br />

e, em suas práticas, acessam não só a música, mas outros planos<br />

do universo e seres <strong>de</strong> outras dimensões.<br />

Os yaiwa – como são <strong>de</strong>nominados os pajés no alto rio Negro – são também<br />

xamãs, termo mais utilizado em antropologia, que tem origem na Sibéria (Tungúsia),<br />

referindo-se àquele que realiza viagens pelo mundo dos espíritos. Mircea Elia<strong>de</strong><br />

(2002), afirma que são caracterizados pelo domínio do fogo, a ascensão dos céus,<br />

a <strong>de</strong>scida do inferno, o vôo mágico e o transe. 7 O xamanismo amazônico é <strong>de</strong>finido<br />

por Viveiros <strong>de</strong> Castro (2000:p.358 Apud FRANCO DE SÁ, 2010:p.17) como<br />

a habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cruzar as barreiras corporais e adotar a perspectiva <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>s<br />

alo-específicas, <strong>de</strong> modo a administrar a relação entre estas e os humanos. O<br />

6. O mesmo jurupari ou o instrumento que leva seu nome (flauta e trompete). O mito<br />

tukâno da criação consi<strong>de</strong>ra Mir? a música. (FRANCO DE SÁ, 2010).<br />

7. A alteração dos estados <strong>de</strong> consciência entre os xamãs siberianos acontece através dos<br />

toques do tambor. No entanto, no alto rio Negro, para obtenção <strong>de</strong> alteração nos estados<br />

<strong>de</strong> consciência, são utilizadas substâncias tais como kahpí e paricá. O enteógeno kahpí<br />

é uma bebida preparada com o cipó <strong>de</strong>nominado Mariri (banisteriopsis caapi) e folhas da<br />

planta Chacrona (psychotria viridis), utilizado pelos índios do alto rio Negro para acesso<br />

a outras dimensões do cosmos. O paricá é um psicoativo retirado <strong>de</strong> um cipó ou feito a<br />

partir <strong>de</strong> plantas diversas e utilizado pelos pajés para proporcionar visão espiritual (FRAN-<br />

CO DE SÁ, 2010).


120 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

pajé ou yaiwa é alguém que a<strong>de</strong>ntra dimensões do cosmos, atuando como<br />

interlocutor entre o mundo dos seres sobrenaturais e o dos seres humanos.<br />

Manuela Carneiro da Cunha (1998, Apud LABATE, 2004:p.93), aborda o<br />

xamanismo em termos <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações e estruturas e situa a figura do xamã<br />

<strong>de</strong> modo diferenciado, fazendo alusão à sua representativida<strong>de</strong>, ele mesmo como<br />

um portal <strong>de</strong> comunicação entre mundos, sendo ele uma via <strong>de</strong> contato com o<br />

<strong>de</strong>sconhecido, o novo. A figura do yaiwa ou kumuã, representada no Tupé, por Kisibi-<br />

Kumu Raimundo Vaz, está presente como elemento estruturador do grupo, no qual<br />

ele exerce a função <strong>de</strong> pajé, tanto como chefe do grupo familiar, quanto como conhecedor<br />

supremo da cultura tradicional Desâna, que promove práticas <strong>de</strong> cura,<br />

no contexto da sua cultura. Ele faz referência às cinco casas <strong>de</strong> rezas tradicionais,<br />

por on<strong>de</strong> passam os Desâna, em sua viajem na barriga da cobra-canoa, durante a<br />

sua transformação em seres humanos, quando os Umuri Mahsã – Gente do Universo<br />

– passam a se chamar Pumeri Mahsã – Gente da Transformação. As casas <strong>de</strong><br />

reza tradicional correspon<strong>de</strong>m a diferentes dimensões do universo que são acessadas<br />

na Maloca com o Kahpí, 8 ~<br />

~<br />

a música e a reza tradicional.<br />

A casa <strong>de</strong> reza, segundo Kisibi – Kumu Raimundo Vaz, é um centro <strong>de</strong> ligação<br />

com as seis casas <strong>de</strong> reza tradicional que são parte da viagem dos seres humanos<br />

na Canoa da Transformação. Isto é acessado durante a ingestão do Kahpí. Os ritos<br />

realizados pela família do casal anfitrião são referentes à música e aos instrumentos<br />

musicais da região do rio Negro. Os cantos kaapiwaiá – canto/dança dos cami-<br />

~<br />

nhos, do kahpí – e ãha<strong>de</strong>aki – cantos femininos –, a música instrumental e as flautas<br />

e trompetes sagrados <strong>de</strong> Jurupari, o Yapurutu, e o Carysso. A música para os Desâna<br />

leva os yaiwa, bayás e kumuã a a<strong>de</strong>ntrarem as diversas Camadas do universo,<br />

contactando, assim, com planos do universo <strong>de</strong> on<strong>de</strong> advém a música. Franco <strong>de</strong><br />

Sá (2010) afirma que a dança e a música tornam-se formas <strong>de</strong> socialização entre<br />

comunida<strong>de</strong>s. Essa socialização musical cria um espaço social naturalizado, on<strong>de</strong><br />

humanos interagem com não-humanos.<br />

Entre os instrumentos que são tocados nos rituais realizados pelos Desâna,<br />

no Tupé, estão a flauta <strong>de</strong> Jurupari, o Yapurutu, o Cariço, o Tubo <strong>de</strong> Rítmo, o Mbaracá,<br />

a Flauta Cotia e o Chocalho. A pintura corporal é um dos aspectos rituais mais<br />

representativos, para os Desâna no Tupé. Ela representa o nascimento do Kahpí, que<br />

nasceu como humano todo tatuado. A pintura, afirma Vaz, nasceu do Kahpí, por<br />

isso, quando se faz o rito, tem que ser pintado. Quando se toma Kahpí, é a pintura<br />

que dá a visão, enquanto o mundo gira como pião. “Vindo esse efeito do Kahpí, as<br />

casas, caibros, esteios que ficam <strong>de</strong>ntro da maloca ficam sombreados, sombreia tudo,<br />

8. A vinha torcendo o Yagé, o Kana ramificado como cordões umbilicais, que são concebidos<br />

todos como “caminhos” (ma), situados como fonte da vida e crescimento (HUGH-<br />

JONES, 1979).


Cap. VI O Uso do Calendário Astronômico Desâna na Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento... 121<br />

quando vai dando isso, todas as coisas pintadas são a miração que a gente vê e realiza.<br />

O Kahpí dá tudo na mente. Isso vem nascendo e funcionando assim”.<br />

Quanto à memória do tempo antigo, Raimundo Vaz afirma que, atualmente,<br />

não se faz tudo como era antes. A cultura branca e a cultura indígena estão misturadas.<br />

Mas, a lembrança, segundo ele, pra quem conhece é clara. O Kahpí traz a<br />

memória através das seis casas tradicionais. Elas são da natureza, tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><br />

concentrar na natureza. “A natureza tem energia igual como os humanos, o pajé<br />

concentra nisso, na vida da floresta que é viva. Ele vê toda floresta viver, através da<br />

miração, ele convoca a natureza, e ela respon<strong>de</strong>”. Kisibi-Kumu não acredita que a<br />

natureza possa ter fim. Os Desâna, segundo ele, não tem uma visão do “fim”, pois<br />

enten<strong>de</strong>m que a natureza, concebida como fonte geradora e nutridora da humanida<strong>de</strong>,<br />

nunca se acabará. Refletindo sobre sua tradição, ele afirma que a humanida<strong>de</strong><br />

sim, po<strong>de</strong> precisar a qualquer momento embarcar em novas “Canoas <strong>de</strong><br />

Transformação”, para reencontrar os “buracos <strong>de</strong> transformação”, nas nascentes e<br />

cachoeiras que correspon<strong>de</strong>m à sua ancestralida<strong>de</strong> espiritual.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Concluímos que, apesar <strong>de</strong> os Desâna, na RDS do Tupé, atuarem sob uma<br />

plataforma <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, o fato <strong>de</strong> terem se estruturado em torno da maloca<br />

(casa <strong>de</strong> reza) e da figura do Kisibi- Kumu, Raimundo Vaz, como chefe <strong>de</strong> família<br />

que assume a posição <strong>de</strong> yaiwa (pajé), não só com a família, mas em situações específicas<br />

em que é solicitado para atuar no trabalho com a cura através do Kahpí e<br />

outras plantas medicinais, proporciona ao grupo um contato direto com os objetos<br />

e níveis <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> próprias do xamanismo Desâna e que dizem respeito ao conteúdo<br />

simbólico e material da tradição da sua cultura. Vimos que apesar <strong>de</strong> viverem<br />

um espaço-tempo misto entre a maloca e o contexto do centro urbano <strong>de</strong><br />

Manaus, e <strong>de</strong> vivenciarem, em alguma medida, o que GIDDENS (1990,1991) Apud<br />

LABATE (2004) <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “capitalismo <strong>de</strong>sorganizado”, seu tempo-espaço<br />

circula entorno <strong>de</strong> uma organização social e situação <strong>de</strong> retorno à casa <strong>de</strong> reza e<br />

aos objetos materiais cultura Desâna. Assim sendo, seu espaço-tempo são móveis,<br />

similares à estrutura dinâmica do universo. Ao invés <strong>de</strong> “esvaziado” e “<strong>de</strong>sencaixado”<br />

<strong>de</strong> seu conteúdo concreto, seu espaço-tempo irrompe outro território<br />

“perspectivo”, pleno <strong>de</strong> conteúdo concreto, simbólico e cosmológico, mantendose<br />

em mobilida<strong>de</strong> territorial no mesmo rio, fonte <strong>de</strong> sua sabedoria e ancestralida<strong>de</strong>.<br />

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PARTE IV<br />

EXPRESSÕES ESPACIAIS DA<br />

VIOLÊNCIA NA PRODUÇÃO SOCIAL<br />

DO MUNDO URBANO


INTRODUÇÃO<br />

CAPÍTULO VII<br />

DESASTRES E DESAMPARO COLETIVO:<br />

o ente público diante dos grupos afetados<br />

Norma Valencio *<br />

Regiani Cristina <strong>de</strong> Oliveira<br />

Victor Marchezini **<br />

Mariana Siena **<br />

Um aspecto central do <strong>de</strong>bate da sociologia e da geografia humana em torno<br />

dos <strong>de</strong>sastres são os <strong>processos</strong> <strong>sociais</strong> que os <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>iam e os aprofundam, o que<br />

implica a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicitação do contexto socioambiental e dos sujeitos<br />

envolvidos no enfrentamento <strong>de</strong>sse tipo específico <strong>de</strong> crise na esfera social.<br />

No contexto brasileiro, as similitu<strong>de</strong>s concernentes aos inúmeros <strong>de</strong>sastres<br />

não se limitam às características do fator <strong>de</strong> ameaça que agri<strong>de</strong> o espaço dos grupos<br />

empobrecidos e nele adicionam novos danos materiais e simbólicos. Num nível<br />

aparente, diz-se que o fator ameaçante crônico subjacente ao conjunto formado<br />

por mais <strong>de</strong> 90% dos <strong>de</strong>sastres oficialmente reconhecidos no país nos últimos anos<br />

são as águas incontroláveis, seja no stress hídrico, seja nas chuvas intensas, o que é<br />

fato. Uma análise um pouco mais <strong>de</strong>nsa permitiria dizer que o fator ameaçante é<br />

a temerária gestão institucional das águas no país, o que seria um passo além, uma<br />

vez que a expansão significativa do sistema sociotécnico público, legitimado e remunerado<br />

em torno <strong>de</strong> obras civis, não rompeu o ciclo <strong>de</strong> afetação adversa <strong>de</strong><br />

milhões <strong>de</strong> brasileiros. Contudo, num nível estrutural, a ameaça fundante é a persistência<br />

da lógica política e fundiária concentracionista, a qual valida os assentamentos<br />

humanos precários como forma ‘normal’ <strong>de</strong> <strong>territorialização</strong> dos grupos<br />

<strong>sociais</strong> a quem as relações <strong>de</strong> classe empobrecem, tanto no contexto rural quanto<br />

no urbano (VALENCIO, 2010).<br />

Embora a cida<strong>de</strong> seja o locus da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e, portanto, o contexto espacial<br />

que o imaginário social supõe tenha ultrapassado os fatores ameaçantes da natureza,<br />

é nela que se ampliam as bordas periféricas a que os benefícios do progresso<br />

material e tecnológico teimosamente não alcançam, expondo seus moradores ao<br />

enfrentamento <strong>de</strong> recorrentes episódios <strong>de</strong> enchentes, <strong>de</strong>slizamentos,<br />

<strong>de</strong>sabastecimento hídrico e um elenco <strong>de</strong> outras tantas mazelas relacionadas à água.<br />

* Apoio: MCT/CNPq. ** Apoio: FAPESP.


126 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

O cotidiano dos moradores <strong>de</strong>sses lugares suscetíveis é recheado <strong>de</strong> experiências<br />

<strong>de</strong> negação <strong>de</strong> cidadania que, no conjunto, sonega as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> concretização<br />

do sonho <strong>de</strong> incorporação plena ao mundo urbano, particularmente naquilo que<br />

se refere ao acesso a uma moradia abastecida regularmente com água potável e<br />

resistente às intempéries. As agruras do dia a dia, constituintes da situação <strong>de</strong><br />

pobreza no meio urbano, advertem para uma condição sociopolítica <strong>de</strong> <strong>de</strong>sproteção<br />

permanente que, ao se espelhar no território, sinaliza a predisposição maior do grupo<br />

aos <strong>de</strong>sastres, atestado contun<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sfiliação social. Há, então, a cida<strong>de</strong><br />

dividida: <strong>de</strong> um lado, a rica e com infraestrutura e, <strong>de</strong> outro, a pobre e precária. As<br />

oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> crescimento circulam no meio daqueles que vivem melhor, e a<br />

permeabilida<strong>de</strong> entre esses e os pobres é muito pequena (ROLNIK, 2006). As áreas<br />

<strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> regularização fundiária e ocupadas por populações empobrecidas<br />

se constituem lugares fora da norma legal, inseridos na lógica <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> da<br />

produção social do espaço. Longe <strong>de</strong> ser apenas o locus da produção, as cida<strong>de</strong>s são<br />

espaços <strong>de</strong> lutas entre as classes <strong>sociais</strong> pela ação do capital imobiliário e ausência<br />

<strong>de</strong> políticas públicas que abran<strong>de</strong>m os efeitos do sistema socioeconômico, afirma<br />

Rolnik (2006). Complementa a autora:<br />

“Excluídos do marco regulatório e dos sistemas financeiros formais, os assentamentos<br />

irregulares se multiplicaram em terrenos frágeis ou em áreas não passíveis<br />

<strong>de</strong> urbanização, como encostas íngremes e áreas inundáveis, além <strong>de</strong><br />

constituírem vastas franjas <strong>de</strong> expansão periférica sobre zonas rurais, eternamente<br />

<strong>de</strong>sprovidas das infra-estruturas, equipamentos e serviços que caracterizam<br />

a urbanida<strong>de</strong>. Ausentes dos mapas e cadastros <strong>de</strong> prefeituras e<br />

concessionárias <strong>de</strong> serviços públicos, inexistentes nos registros <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

nos cartórios, esses assentamentos têm uma inserção no mínimo ambígua nas<br />

cida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> se localizam. Mo<strong>de</strong>lo dominante <strong>de</strong> <strong>territorialização</strong> dos pobres<br />

nas cida<strong>de</strong>s brasileiras, a consolidação <strong>de</strong>sses assentamentos é progressiva,<br />

eternamente incompleta e totalmente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma ação discricionária<br />

do po<strong>de</strong>r público – visto que para as formas legais <strong>de</strong> expressão <strong>de</strong><br />

pertencimento à cida<strong>de</strong> esses assentamentos simplesmente não existem<br />

(ROLNIK, 2006: 199).<br />

A Constituição Fe<strong>de</strong>ral dispôs em seu artigo 6º que a moradia constitui-se em<br />

direito fundamental do cidadão. O direito à moradia convalida a indissociabilida<strong>de</strong><br />

entre a garantia <strong>de</strong> condições <strong>de</strong> vida digna e o bem-estar do ser humano.<br />

“De alguma maneira é preciso morar (...). No campo, na pequena cida<strong>de</strong>, na<br />

metrópole, morar como vestir, alimentar, é uma das necessida<strong>de</strong>s básicas dos<br />

indivíduos. Historicamente mudam as características da habitação, no entanto,<br />

é sempre preciso morar, pois não é possível viver sem ocupar espaço<br />

(RODRIGUES, 1997: 11).<br />

Porém, contraditoriamente ao que preconiza o arcabouço jurídico no país,<br />

milhões <strong>de</strong> brasileiros não têm tido acesso ao solo urbano e à moradia senão atra-


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 127<br />

vés <strong>de</strong> <strong>processos</strong> e mecanismos informais – e frequentemente ilegais –, resultando<br />

em um habitat precário, vulnerável e inseguro. Favelas, loteamentos e conjuntos<br />

habitacionais irregulares, loteamentos clan<strong>de</strong>stinos, cortiços, ocupações em áreas<br />

públicas, nas encostas e beiras <strong>de</strong> rios – essas têm sido as principais formas <strong>de</strong><br />

habitação produzidas diariamente nas cida<strong>de</strong>s brasileiras, pela maior parte dos<br />

moradores urbanos.<br />

Os <strong>de</strong>sastres no meio urbano se nutrem da vulnerabilida<strong>de</strong> socioeconômica<br />

refletida na organização socialmente <strong>de</strong>sigual do solo; os grupos mais vulneráveis<br />

tornam-se os principais afetados nos <strong>de</strong>sastres; o <strong>de</strong>satendimento ou mau atendimento<br />

público no pós-impacto é o que os torna, numa espiral ascen<strong>de</strong>nte, os mais<br />

vulneráveis diante da vinda <strong>de</strong> novas ameaças, o que amplia o fosso entre os sujeitos<br />

na paisagem citadina, culminando nas diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> garantia do<br />

direito <strong>de</strong> viver. Há, <strong>de</strong> um lado, os grupos afluentes e bem integrados, capazes <strong>de</strong><br />

se precaver das ameaças ambientais através <strong>de</strong> uma territorialida<strong>de</strong> mais segura;<br />

se recompor através dos meios econômicos próprios; ter acesso ao sistema securitário<br />

e creditício para refazer-se; e, ainda, contar com a priorização <strong>de</strong> providências<br />

públicas na sua reabilitação. E há, <strong>de</strong> outro lado, os que sofrem extensivamente<br />

em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> perdas <strong>de</strong> difícil recuperação.<br />

A racionalida<strong>de</strong> subjacente à proliferação dos riscos múltiplos, que as<br />

territorialida<strong>de</strong>s precárias dos grupos empobrecidos apresentam, é impeditiva da<br />

produção sociopolítica <strong>de</strong> práticas públicas a<strong>de</strong>quadas <strong>de</strong> prevenção e preparação<br />

frente aos fatores ambientais ameaçantes. Há, no Brasil, uma dificulda<strong>de</strong> crônica<br />

dos empobrecidos em alcançar interlocutores oficiais válidos, pois os agentes públicos<br />

constroem a performance na inacessibilida<strong>de</strong>, instituindo variadas barreiras,<br />

a começar pela comunicativa, a saber: na imposição <strong>de</strong> meios tecnologizados como<br />

forma <strong>de</strong> contato com os órgãos; na limitação <strong>de</strong> locais e horários para atendimento<br />

ao público; no uso <strong>de</strong> jargões e siglas como única forma válida <strong>de</strong> expressão do<br />

problema; e no preenchimento <strong>de</strong> um sem número <strong>de</strong> cadastros/formulários/ofícios.<br />

São essas estratégias que, somadas a outras, predispõem o Estado a naturalizar<br />

que os afetados vivam suas agruras em perverso silêncio ou, então, que os mesmos<br />

produzam uma abordagem fracionada do seu sofrimento, diluindo-o em compartimentos<br />

<strong>de</strong> palavrórios ininteligíveis, papeladas infindas e romarias constantes a<br />

repartições públicas; em outros termos, reduzindo a expressão pública <strong>de</strong> seu drama,<br />

nivelando o grupo para padronizar providências a um mínimo possível. Tal<br />

diluição permite, ainda, ao agente público, argumentar que muitos dos aspectos<br />

do drama vivido pelos afetados ultrapassam a sua área <strong>de</strong> atuação, remetendo-os a<br />

outros trâmites burocráticos a fim <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sonerar <strong>de</strong> qualquer compromisso e<br />

atuação.<br />

A multidimensionalida<strong>de</strong> do fenômeno entendido como <strong>de</strong>sastre confere à<br />

<strong>de</strong>fesa civil o papel <strong>de</strong> instituição competente para coor<strong>de</strong>nar todas as ações voltadas<br />

para a minimização dos danos, incluindo as <strong>de</strong> assistência social. Contudo, nos


128 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

municípios brasileiros, a assistência social tem uma presença institucional significativamente<br />

maior em relação à <strong>de</strong>fesa civil. Nos dias atuais, 99,9% dos municípios<br />

possuem estrutura organizacional para i<strong>de</strong>almente materializar, no plano local, a<br />

política <strong>de</strong> assistência social, enquanto que apenas 59,26% dos municípios possuem<br />

unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil (IBGE, 2010a). Isso, na melhor das hipóteses, sobrecarrega<br />

a assistência social num sem-número <strong>de</strong> mediações e solicitação <strong>de</strong> providências<br />

e, na pior <strong>de</strong>las, limita burocraticamente o atendimento aos afetados, com um progressivo<br />

distanciamento e indiferença a toda <strong>de</strong>manda que escape a uma limitada<br />

compreensão daquilo que consi<strong>de</strong>ra como sendo suas atribuições. A inexistência da<br />

instituição <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil no organograma do po<strong>de</strong>r executivo local é um indicador<br />

fundamental para caracterizar aspectos <strong>de</strong> negligência institucional no âmbito do<br />

Sistema Nacional <strong>de</strong> Defesa Civil (GUEDES, 2011). Adicionaríamos o fato <strong>de</strong> que,<br />

em vários municípios, há uma existência meramente formal do referido órgão, que<br />

não correspon<strong>de</strong> à constituição <strong>de</strong> um quadro humano qualificado, tampouco meios<br />

materiais para o cumprimento <strong>de</strong>vido <strong>de</strong> suas atribuições.<br />

Seja com a presença central do órgão local <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil ou <strong>de</strong> assistência<br />

social, o atendimento público tem se caracterizado pela má qualida<strong>de</strong> naquilo que<br />

implica o provimento dos mínimos vitais e <strong>sociais</strong> a que tem direito o cidadão. Ações<br />

pífias <strong>de</strong> compensação, oferecidas pelo ente público, são publicizadas como um tipo<br />

<strong>de</strong> atenção social suficiente, entendimento esse que se dissemina pelas frações do<br />

Estado nos projetos voltados para o combate à pobreza e à miséria, que não ultrapassam<br />

a estreiteza na concepção dos sentidos <strong>de</strong> mundo. A <strong>de</strong>nominação assistência<br />

humanitária, ora em uso pelos órgãos que atuam em emergências no contexto<br />

nacional, vem substituir o que outrora o meio técnico <strong>de</strong>nominava reabilitação, o<br />

que é uma forma enganosa <strong>de</strong> o Estado brasileiro, tencionando correspondências<br />

in<strong>de</strong>vidas com práticas <strong>de</strong> atendimento orientadas para o âmbito internacional –<br />

on<strong>de</strong> um país doa ao outro aquilo que quiser, quanto pu<strong>de</strong>r e quando lhe aprouver<br />

–, colocar em negociação o suprimento <strong>de</strong> “carências” <strong>de</strong> cidadãos brasileiros<br />

afetados em <strong>de</strong>sastres como se não houvesse, <strong>de</strong> fato, direitos a garantir <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />

um arcabouço legal consolidado (VALENCIO, 2010). A prepon<strong>de</strong>rância da lógica<br />

<strong>de</strong> benemerência, caracterizada pela insuficiência e precarieda<strong>de</strong>, molda a cultura<br />

<strong>de</strong> atendimento às emergências e <strong>de</strong>sastres, pois que “para os pobres qualquer coisa<br />

basta” (YAZBEK, 2008). O empobrecimento não é visto como algo relacional à<br />

afluência social dos <strong>de</strong>mais. Daí, os empobrecidos serem representados socialmente<br />

como “necessitados”, grupos passivos em relação à sua própria condição, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

<strong>de</strong> ajuda; enfim, não cidadãos (TELLES, 1999a), impedidos moralmente<br />

<strong>de</strong> reclamar do pouco que recebem, posto que, à visão dos setores afluentes, não o<br />

mereçam, por não terem se esforçado o suficiente para morar em locais seguros.<br />

Isso é o inverso do que se concebe no campo dos direitos, quando se trata da<br />

inseparabilida<strong>de</strong> do sujeito e seu contexto, do lugar cujo provimento dá a medida<br />

da expressão social da garantia <strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento pleno. No dizer <strong>de</strong> Santos<br />

& Silveira (2001: 247),


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 129<br />

“(...) quando quisermos <strong>de</strong>finir qualquer pedaço <strong>de</strong> território, <strong>de</strong>vemos levar<br />

em conta a inter<strong>de</strong>pendência e a inseparabilida<strong>de</strong> entre a materialida<strong>de</strong>, que<br />

inclui a natureza, e o seu uso, que inclui a ação humana, isto é, o trabalho e a<br />

política (...) <strong>de</strong>frontamo-nos com o território vivo, vivendo.”<br />

Os discursos e práticas dos setores bem integrados reproduzem-se nos quadros<br />

humanos das instituições públicas que, <strong>de</strong> modo automático, <strong>de</strong>svinculam<br />

sujeito e território e passam a focalizar o suprimento dos afetados em um nível<br />

mínimo, passível <strong>de</strong> interrupções. Essa contaminação i<strong>de</strong>ológica dissipa, no dia a<br />

dia da atuação <strong>de</strong> órgãos como os da assistência social e da <strong>de</strong>fesa civil, o atendimento<br />

<strong>de</strong> sua missão precípua, qual seja, a segurança global do cidadão, pautada,<br />

<strong>de</strong>ntre outros, numa territorialida<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quada em termos infraestruturais e no<br />

suporte a uma moradia digna. A garantia da dignida<strong>de</strong> refere-se aos aspectos espaciais<br />

das práticas privadas do grupo convivente e aos rigores construtivos perante<br />

quaisquer riscos externos. No escopo da lógica dissipadora dos direitos da pessoa,<br />

o papel usualmente exercido pela assistência social junto aos grupos severamente<br />

afetados nos <strong>de</strong>sastres tem se restringido ao cadastramento das famílias afetadas<br />

para que estas recebam medidas paliativas, como: o aluguel social, no geral, pago<br />

em valores aquém do necessário segundo a dinâmica imobiliária local; a distribuição<br />

<strong>de</strong> colchão, no geral, em quantida<strong>de</strong> menor que o número <strong>de</strong> pessoas da família<br />

e em qualida<strong>de</strong> mínima; a entrega <strong>de</strong> uma cesta básica, cujo período e<br />

regularida<strong>de</strong> é o agente público distribuidor, e não a família, quem <strong>de</strong>fine; a distribuição<br />

<strong>de</strong> roupas usadas doadas, que <strong>de</strong>stituem o recebedor da dignida<strong>de</strong> mínima<br />

relacionada ao controle do corpo e da autoimagem; e assim por diante. Nos <strong>de</strong>sastres,<br />

o ente público reduz drasticamente e domestica as necessida<strong>de</strong>s da vida social<br />

do grupo, disciplinamento esse que <strong>de</strong>corre em prejuízo à cidadania. No escopo<br />

supra, o atendimento aos afetados nada mais é que a “gestão da pobreza”, o que<br />

caracteriza a natureza sociopática subjacente ao projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional.<br />

Ou, no dizer <strong>de</strong> Telles (1999b: 89), parece tratar-se da “<strong>de</strong>molição das referências<br />

públicas pelas quais os dramas <strong>de</strong> cada um po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>ssingularizados e<br />

traduzidos não apenas como experiências compartilhadas, mas como problemas<br />

pertinentes à vida pública <strong>de</strong> um país”.<br />

Diante <strong>de</strong> um quadro sociopolítico opressivo, que ten<strong>de</strong> a <strong>de</strong>squalificar o grupo<br />

<strong>de</strong> afetados nos <strong>de</strong>sastres, apresentamos uma breve contextualização e análise sociológica<br />

<strong>de</strong> variados aspectos do <strong>de</strong>salento vivido pelo mesmo com vistas à i<strong>de</strong>ntificação<br />

<strong>de</strong> similarida<strong>de</strong>s e especificida<strong>de</strong>s referentes à problemática supra.<br />

Tentativas <strong>de</strong> reumanização das relações <strong>de</strong> frações do Estado com os grupos<br />

afetados têm sido realizadas, mobilizando pessoal e recursos materiais no atendimento<br />

pós-impacto. Porém, indagamos: em que medida essas ações são capazes <strong>de</strong><br />

reverter o quadro histórico <strong>de</strong> um Estado <strong>de</strong>scompromissado com a cidadania dos<br />

empobrecidos? Para apontar caminhos para essa questão, remeteremos a recortes


130 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

<strong>de</strong> dois diferentes <strong>de</strong>sastres relacionados às chuvas ocorridos na região Norte do<br />

país, a saber: em Manaus, AM, e em Rio Branco, AC.<br />

DESASTRE EM MANAUS, AM<br />

O município <strong>de</strong> Manaus, AM, possui uma área <strong>de</strong> 11.458,5 km 2 . No ano <strong>de</strong><br />

1991, contavam-se 1.011.501 habitantes, dos quais 1.006.585 (99,51%) residiam<br />

em área urbana. Passada uma década, a população total aumentou para<br />

1.405.835, com 1.396.768 (99,36% do total) resi<strong>de</strong>ntes na área urbana (PNUD,<br />

2000). O Índice <strong>de</strong> Desenvolvimento Humano do Município (IDHM), em 1991,<br />

era <strong>de</strong> 0,745, apresentando uma melhora no ano 2000, quando se alterou para<br />

0,774. Porém, o IDHM-renda piorou: em 1991 era <strong>de</strong> 0,712, mas no ano 2000<br />

reduziu-se para 0,703. A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> renda também aumentou: em 1991, o<br />

Índice <strong>de</strong> Gini era <strong>de</strong> 0,57; no ano 2000 passou para 0,64 (PNUD, 2000). Segundo<br />

a Secretaria <strong>de</strong> Estado <strong>de</strong> Planejamento e Desenvolvimento Econômico do<br />

Amazonas (2006), a proporção <strong>de</strong> pobres aumentou durante a década <strong>de</strong> 1990 no<br />

estado. No último censo, a população era <strong>de</strong> 1.802.014, sendo 1.792.881 resi<strong>de</strong>ntes<br />

na área urbana e 9.133 na área rural (IBGE, 2010b).<br />

Em Manaus, a vulnerabilida<strong>de</strong> social se manifesta, entre outras, através da<br />

segregação socioespacial, como na proliferação <strong>de</strong> assentamentos precários em<br />

igarapés no meio urbano. Milhares <strong>de</strong> famílias replicam, nas águas <strong>de</strong> igarapés, o<br />

solo urbano, cuja dinâmica do mercado <strong>de</strong> terras não lhes permite obter. O território<br />

<strong>de</strong> moradia sobre as águas não circunscreve apenas as agruras da dinâmica<br />

socioambiental comunitária, como também a rotina pautada pela ausência <strong>de</strong><br />

infraestrutura sanitária. Há, ainda, a convivência forçada com os <strong>de</strong>jetos do meio<br />

envolvente, que para ali carreiam.<br />

Esse contexto espacial adverso não era o mesmo encontrado em Manaus<br />

durante as cheias históricas do Rio Negro no ano <strong>de</strong> 1953, a maior já registrada<br />

(29,69 metros) antes da que ocorreu em 2009 (29,72 metros). Em 1953, as cheias<br />

implicaram danos a uma população expressivamente menor, cujo território apresentava<br />

outro conjunto <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> sujeitos <strong>sociais</strong> em interação, com<br />

outras formas <strong>de</strong> ocupação do solo. Notícias <strong>de</strong> telejornais, com difusão nacional,<br />

quando <strong>de</strong>ram visibilida<strong>de</strong> aos problemas recentes das cheias da região Norte, em<br />

especial em Manaus, focalizaram principalmente os problemas da invasão <strong>de</strong> animais<br />

peçonhentos nas moradias nos igarapés, o que adviria das cheias, procurando-se,<br />

assim, reafirmar o caráter “selvagem” da referida região. De outro lado, os<br />

argumentos da imprensa diante da gran<strong>de</strong> soma <strong>de</strong> resíduos sólidos acumulados à<br />

borda das moradias nas comunida<strong>de</strong>s impactadas, além dos comentários sobre o<br />

insuportável odor das águas, procuravam estabelecer uma conexão <strong>de</strong>preciativa<br />

entre o ambiente e as rotinas das famílias que ali residiam: se era possível ali morar,<br />

a vida não valia <strong>de</strong>masiado. A oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vocalização dos afetados na<br />

imprensa sofria controle, circunscrevendo as manifestações verbais ao universo das


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 131<br />

necessida<strong>de</strong>s, resumidas a: “estamos precisando <strong>de</strong> colchão, remédio e comida”.<br />

Todavia, quando se observaram in loco as interações entre os sujeitos envolvidos<br />

no <strong>de</strong>sastre, foi possível i<strong>de</strong>ntificar outras dimensões das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r expressas<br />

no território, instâncias materiais <strong>de</strong> sujeição e formas <strong>de</strong> resistência.<br />

Cardoso (2006) salienta como o <strong>de</strong>bate acerca do risco assume uma abordagem<br />

moralizadora, atribuindo a certos grupos <strong>sociais</strong> um déficit na percepção <strong>de</strong><br />

risco – atribuindo-lhes o status <strong>de</strong> “ignorantes” –, os quais, por vezes, ten<strong>de</strong>m a ser<br />

culpabilizados pela situação que enfrentam, isentando, por conseguinte, <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong><br />

outros grupos, particularmente o estado. Em Manaus, essa abordagem<br />

moralizadora se expressou na operação <strong>de</strong> limpeza SOS Igarapé. O governo do<br />

estado difundia o discurso <strong>de</strong> que “o povo precisa <strong>de</strong> consciência para não sujar os<br />

igarapés”. A produção e a difusão <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> discurso constituíram-se numa forma<br />

<strong>de</strong> sujeição social que construía a estigmatização dos moradores dos igarapés urbanos.<br />

O po<strong>de</strong>r da imagem jornalística, em seu recorte fotográfico e informativo,<br />

<strong>de</strong> imediato, relacionava diretamente o objeto e seu sujeito: os moradores locais<br />

aparecem como produtores do lixo ao redor <strong>de</strong> suas casas. O discurso oficial, colado<br />

à produção imagética, faz <strong>de</strong>notar uma preocupação com aspectos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />

ambiental que os moradores aparentemente não teriam. A construção social da<br />

<strong>de</strong>squalificação dos moradores <strong>de</strong> igarapés urbanos servia-se do revés das cheias e<br />

dos transtornos que as mesmas causavam ao cotidiano comunitário e à vida privada<br />

para acelerar a <strong>de</strong>socupação do lugar em vez <strong>de</strong> prover melhorias e atendimento<br />

para reduzir o sofrimento social.<br />

Nos igarapés urbanos, a invasão das moradias por águas contaminadas<br />

inviabilizava muita das funções normais da casa, assim como ocorria com os <strong>de</strong>mais<br />

estabelecimentos nas comunida<strong>de</strong>s afetadas, como o pequeno comércio local,<br />

templos religiosos e outros. Novas passarelas estreitas, feitas pela própria<br />

comunida<strong>de</strong>, com tábuas estreitas e num nível acima das águas, viabilizavam precariamente<br />

a circulação <strong>de</strong> pessoas ali resi<strong>de</strong>ntes. A cada dia, a estratégia das <strong>de</strong>nominadas<br />

marombas, relativa às práticas <strong>de</strong> elevação do piso <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>ntro<br />

da moradia, era reiniciada. Transpunham-se os objetos móveis da moradia para o<br />

novo patamar do piso a fim <strong>de</strong> impedir danos materiais e prover, ainda que com<br />

gran<strong>de</strong>s restrições, a condição <strong>de</strong> permanência da família no local.<br />

Uma das moradoras do Bairro Raiz, no Igarapé dos Quarenta, relatou que,<br />

durante as cheias <strong>de</strong> 2009, <strong>de</strong>mandou ao chefe da Coor<strong>de</strong>nadoria Municipal <strong>de</strong><br />

Defesa Civil avaliar a situação em que se encontravam ela, o marido e o filho (com<br />

<strong>de</strong>ficiência motora) na moradia. Ao argumentar, “eu não vou <strong>de</strong>ixar o meu filho<br />

nessa condição”, teria obtido como resposta: “tem gente numa situação pior que a<br />

sua”. A condição restritiva <strong>de</strong> locomoção do filho, diante da <strong>de</strong>struição e inundação<br />

das vias intracomunitárias e <strong>de</strong>stas com o restante da cida<strong>de</strong>, tornaram-na refém,<br />

assim como sua família, da situação ambiental que piorava a cada dia. Porém, o<br />

ente público criava discursos <strong>de</strong> sujeição que não só imputavam culpa aos afetados


132 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

perante as adversida<strong>de</strong>s sofridas, mas <strong>de</strong>smereciam-nas ao sinalizar a existência <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>scompasso ainda maior <strong>de</strong> cidadania algures.<br />

No caso do Igarapé dos Quarenta, a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>scompromisso diante das<br />

cheias se caracterizou ainda pela política <strong>de</strong> reabilitação calcada centralmente na<br />

distribuição <strong>de</strong> tábuas para que os próprios moradores fossem construindo novas<br />

estruturas internas e comunitárias conforme o nível da água fosse subindo. Cabia<br />

a cada família e à comunida<strong>de</strong> em geral organizarem-se para <strong>de</strong>dicar tempo <strong>de</strong> trabalho,<br />

habilida<strong>de</strong>s e técnicas corporais para afastar ou minimizar os perigos do local,<br />

<strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> ser tarefa do ente público. Os riscos à saú<strong>de</strong> humana na elevação das<br />

águas contaminadas por resíduos sólidos e <strong>de</strong>jetos orgânicos somaram-se aos ratos,<br />

caramujos, cobras, animais peçonhentos e outros vetores que invadiam as casas<br />

e ameaçavam seus moradores, colocando-os em um cotidiano <strong>de</strong> alerta e<br />

intranquilida<strong>de</strong> permanentes: ao repousar, ao preparar e servir as refeições, ao prover<br />

higienização corporal, no cuidado com as crianças e idosos. Doenças <strong>de</strong> veiculação<br />

hídrica se propagavam, sobretudo aquelas relacionadas às diarreias e coceiras. Perigos<br />

novos se impuseram, como os relacionados à circulação das crianças nas pontes<br />

artesanais mais estreitas e altas construídas pela comunida<strong>de</strong> (Fotos 1 e 2).<br />

Fotos 1 e 2 Aspectos das enchentes no Igarapé dos Quarenta, Manaus, AM.<br />

Acervo NEPED/DS/<strong>UFSCar</strong> (2009).<br />

Crianças se <strong>de</strong>sequilibravam, caindo nas águas dos igarapés, afogando-se em<br />

lixo e fezes:<br />

“É criança doente, é diarreia (...) teve uma garotinha que caiu, bebeu essa água<br />

podre e tá com infecção intestinal. A outra filha do vizinho também caiu outro<br />

dia na ponte, quase que não pegavam mais [quase se afogou]. [pausa] Difícil,<br />

muito difícil...” (Relato <strong>de</strong> Dona M. S., Igarapé dos Quarenta em Manaus, AM,<br />

2009).<br />

Diante do risco <strong>de</strong> caírem das estreitas pontes <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, muitas mães não<br />

se aventuravam a carregar seus filhos no colo e levá-los ao posto <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, como<br />

também, segundo relatam as mesmas, os agentes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> não se arriscavam a entrar


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 133<br />

na comunida<strong>de</strong>. Conforme as águas foram subindo e se construiu a ponte num<br />

nível mais alto, outra ameaça surgiu: a proximida<strong>de</strong> com os fios elétricos dos postes<br />

predispunha ao risco <strong>de</strong> eletrocussão, principalmente quando chovia e os ventos<br />

balançavam os fios:<br />

“Antes os agentes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> vinham nas casas, agora nem aparecem. [Nessa situação],<br />

uma mãe com uma criança <strong>de</strong> <strong>de</strong>z anos no colo, ela vai ter que vir se<br />

equilibrando [ao andar nas tábuas]. Qual é o risco <strong>de</strong>la? Os fios [<strong>de</strong> energia].<br />

Ela tem o risco <strong>de</strong> tropeçar e cair com a criança <strong>de</strong>ntro da água. Ali, no Ipiranga,<br />

já houve o caso da criança tomar choque na cabeça [estava no colo da mãe]<br />

por causa do fio que já está encostando. Teve uma chuva aí, que meu sobrinho<br />

tomou um choque, teve outro que peguei choque nas costas, teve criança que<br />

caiu [na água], quer dizer, é risco? É” (Relato <strong>de</strong> Sra. C. M., moradora do Igarapé<br />

dos Quarenta, Manaus, AM, 2009).<br />

Os mecanismos adicionais <strong>de</strong> reabilitação foram um auxílio monetário e uma<br />

proposta <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> abrigos temporários nos bairros vizinhos ao Igarapé<br />

dos Quarenta. Esse auxílio financeiro, no valor <strong>de</strong> trezentos reais, intitulava-se SOS<br />

Enchente. Entretanto, moradores relataram a existência <strong>de</strong> problemas em relação<br />

ao cadastro do referido auxílio, sobretudo porque “o pessoal do cadastro não passou<br />

em muitas casas, muitos dos que foram cadastrados não receberam, e muitos<br />

[moradores] que não precisavam se cadastraram e receberam”, conta um dos moradores.<br />

O cadastro era feito em horário comercial, quando muitas pessoas não se<br />

encontravam em suas casas em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalharem em outros locais: “Eu não<br />

posso ficar em casa esperando o momento <strong>de</strong>les passarem e per<strong>de</strong>r o dia do meu<br />

trabalho. Eles passam no horário comercial”, reclamou Sra. D. G., uma das moradoras<br />

do local. Em relação à organização <strong>de</strong> abrigos temporários, o então coor<strong>de</strong>nador-adjunto<br />

da Coor<strong>de</strong>nadoria Estadual <strong>de</strong> Defesa Civil relatou que essa ação<br />

estava começando a ser implantada em Manaus pela esfera estadual, <strong>de</strong> forma<br />

“paralela”, uma vez que a nova equipe da <strong>de</strong>fesa civil municipal ainda não havia<br />

enviado documentos reconhecendo a incapacida<strong>de</strong> para agir frente ao fenômeno e<br />

solicitado apoio. Diante <strong>de</strong>sses conflitos no interior do sistema <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil, os<br />

afetados enfrentavam a situação e cobravam das autorida<strong>de</strong>s uma solução <strong>de</strong>finitiva<br />

<strong>de</strong> moradia, rejeitando a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seguirem para abrigos, on<strong>de</strong> supunham<br />

que existissem ainda maiores restrições ao seu cotidiano, como riscos à<br />

integrida<strong>de</strong> pessoal pela ausência <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong> e riscos aos bens móveis <strong>de</strong>ixados<br />

na moradia que porventura ficasse vazia. Principalmente por iniciativa das mulheres,<br />

as comunida<strong>de</strong>s afetadas pelas cheias do Rio Negro, sobretudo as mais<br />

vulneráveis constituídas em igarapés, organizaram manifestações públicas para<br />

exigir uma interlocução com as autorida<strong>de</strong>s e a afirmação <strong>de</strong> seus direitos. O grupo<br />

conseguiu essa priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escuta do ente público apenas quando interrompeu<br />

o fluxo <strong>de</strong> várias avenidas e ruas importantes da capital, estratégia que se iniciou<br />

no Bairro Raiz e que se esten<strong>de</strong>u por outros bairros, como o São Jorge e o Igarapé<br />

do Mindu. As manifestações reivindicavam rapi<strong>de</strong>z na solução habitacional:


134 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

“Faz oito anos o Prosamim [Programa Social e Ambiental dos Igarapés <strong>de</strong><br />

Manaus] veio, fez a inscrição [cadastro] <strong>de</strong>ssas pessoas (...) só promessa que<br />

‘vai tirar hoje, vai tirar amanhã, vai tirar <strong>de</strong>pois’... e nunca chega, enten<strong>de</strong>u?<br />

Nós, moradores aqui da área, nós tomamos essa atitu<strong>de</strong>: se as pessoas importantes<br />

(governantes) não vêm até nós, nós vamos até eles. Então, o que foi que<br />

nós fizemos: nós se reunimos com alguns moradores – que são mais <strong>de</strong> quatrocentos<br />

moradores aqui – lá na Silva [Av. Presi<strong>de</strong>nte Costa e Silva]” (Relato do<br />

Sr. G. B. A., morador do Igarapé dos Quarenta, Manaus, AM, 2009).<br />

Ficar na moradia, enfrentar a situação <strong>de</strong> privação em vez <strong>de</strong> seguir para os<br />

abrigos temporários e se manifestar publicamente constituíram-se em formas <strong>de</strong><br />

resistência dos afetados; isto é, estratégia comunitária para garantir que o atual<br />

território <strong>de</strong> inserção se mantivesse como uma referência socioespacial <strong>de</strong> uma<br />

precarieda<strong>de</strong> estrutural inaceitável em torno da qual a ação política <strong>de</strong>veria ser<br />

orientada para algo mais que as medidas paliativas oferecidas. As preocupações<br />

coletivas dos moradores pairavam sobre o <strong>de</strong>scaso público assim que as águas baixassem.<br />

Diziam-se: “o rio vai começar a <strong>de</strong>scer e vai ficar tudo na mesma.<br />

[Governantes] falam que vem hoje, daí passam para amanhã e assim vão indo”<br />

(Relato do Sr. N. A., Igarapé dos Quarenta, Manaus, AM, 2009). Com a <strong>de</strong>scida<br />

das águas, nos meses seguintes, esvaía-se a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar mediações pelas<br />

quais os sujeitos pu<strong>de</strong>ssem reivindicar direitos e dar visibilida<strong>de</strong> pública a suas<br />

<strong>de</strong>mandas estruturais. A precarieda<strong>de</strong> ali persistiria, mas naturalizada, não seria<br />

mais notícia nem preocupação central das autorida<strong>de</strong>s.<br />

Os <strong>de</strong>sastres relacionados às cheias são elementos espaciais constitutivos do<br />

agravamento da pobreza e da miséria em Manaus, a <strong>de</strong>speito dos recentes estudos<br />

(BRASIL, 2011) apontando para a diminuição da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> nos país.<br />

Mais recentemente, em novos episódios envolvendo assentamentos suscetíveis<br />

aos alagamentos e posterior <strong>de</strong>sabamentos, o po<strong>de</strong>r executivo local aventou a<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento involuntário dos moradores e não propen<strong>de</strong>u a abrir<br />

canais para ter em conta o ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>sses. Adicionalmente, a discriminação<br />

<strong>de</strong> migrantes ali inseridos ficou evi<strong>de</strong>nciada tanto na precarização <strong>de</strong> acesso ao solo<br />

quanto na ru<strong>de</strong>za da abordagem da maior autorida<strong>de</strong> pública local diante da reivindicação<br />

do direito à moradia na cida<strong>de</strong>. Num ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> circulação na<br />

internet, 1 cobrindo a visita do prefeito municipal ao Bairro Santa Marta, uma<br />

moradora local, por ser vista como forasteira, refugo humano (cf. BAUMAN, 2005),<br />

foi humilhada e tratada como ‘ignorante’ pela relutância em permanecer no lugar.<br />

O diálogo é elucidativo da construção social da sujeição: “Vamos nos unir para ver<br />

o máximo que a gente po<strong>de</strong>”, diz o prefeito. “Mas o senhor quer nos ajudar como,<br />

1. A íntegra do referido ví<strong>de</strong>o, <strong>de</strong> aproximadamente 20 minutos, está disponível eletronicamente<br />

no en<strong>de</strong>reço: http://www.youtube.com/watch?v=n7Yaq08MIZY&feature=<br />

related.


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 135<br />

senhor prefeito?”, retruca a moradora. “Não fazendo casa on<strong>de</strong> não <strong>de</strong>ve”, respon<strong>de</strong><br />

o prefeito. “Mas se nós ‘tamo’ morando aqui porque nós não tem condição <strong>de</strong> ter<br />

uma moradia digna”, rebate a moradora. “Minha filha, então morra, morra!” e,<br />

adiante, indaga: “Você é <strong>de</strong> on<strong>de</strong>?” E a moradora respon<strong>de</strong>: “Eu sou do Pará”. E a<br />

autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>volve à moradora: “Então, está explicado!”. Mais à frente, conclui o<br />

prefeito: “Essa ignorância é inimiga <strong>de</strong> vocês (...) não é através <strong>de</strong> uma ignorância<br />

<strong>de</strong>ssas que vocês vão se salvar”.<br />

DESASTRE EM RIO BRANCO, AC<br />

O município <strong>de</strong> Rio Branco é a capital do Estado do Acre, 2 sendo o mais populoso<br />

do estado, com 336.038 habitantes (IBGE, 2010b), o que equivale a quase<br />

50% do total da população do território acreano. Localiza-se às margens do Rio<br />

Acre, porção sudoeste da Bacia Amazônica, numa altitu<strong>de</strong> aproximada <strong>de</strong> 153 m<br />

acima do nível do mar. O aglomerado populacional que originou o município <strong>de</strong><br />

Rio Branco se estabeleceu à margem direita do Rio Acre. Foi, durante décadas, o<br />

eixo estruturante <strong>de</strong>ssa cida<strong>de</strong>, e foi a partir <strong>de</strong> suas margens que a mesma se expandiu.<br />

O mesmo divi<strong>de</strong> a cida<strong>de</strong> em primeiro e segundo distritos.<br />

A ocupação inicial do território rio-branquense é similar à <strong>de</strong> outros territórios<br />

da Amazônia no final do século XIX, que se <strong>de</strong>u por meio <strong>de</strong> uma frente <strong>de</strong><br />

expansão do capital, <strong>de</strong>vido à <strong>de</strong>manda internacional pelo látex, produto extraído<br />

da seringueira, 3 que cresceu substancialmente no final do século XIX por conta da<br />

emergência do capitalismo industrial na Europa e nos Estados Unidos. Teve-se, nesse<br />

período, a migração <strong>de</strong> pessoas oriundas do Nor<strong>de</strong>ste brasileiro em busca <strong>de</strong> melhores<br />

condições <strong>de</strong> vida (MORAIS, 2000). A cida<strong>de</strong> foi criada em 1904, como<br />

se<strong>de</strong> administrativa do Departamento do Alto Acre. Durante décadas manteve uma<br />

mancha urbana em torno do Rio Acre e baixo crescimento <strong>de</strong>mográfico. Com a<br />

crise da economia extrativista do látex, tem-se na região amazônica uma nova frente<br />

<strong>de</strong> expansão coor<strong>de</strong>nada pelo Governo Fe<strong>de</strong>ral, inaugurando um novo ciclo<br />

econômico – a agropecuária, cujo apogeu ocorreu entre as décadas <strong>de</strong> 1970 e 1990.<br />

Diferentemente dos dois ciclos da borracha, que pelas suas características peculiares<br />

seguravam o homem na floresta, o avanço da agropecuária leva à concentração<br />

<strong>de</strong> terras, com a venda dos seringais, e, proporcionalmente, à expulsão da<br />

população extrativista da floresta para os núcleos urbanos, em um processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong> da população local (MORAIS, 2000).<br />

2. Nome originado da palavra “Aquiri” proveniente do dialeto Wuakuru dos povos indígenas<br />

Ipurinã.<br />

3. Conhecida cientificamente por Hevea brasiliensis, essa árvore fornece matéria–prima flexível,<br />

transformando-se pelo processo <strong>de</strong> vulcanização na “borracha”, mercadoria que<br />

possibilitou o incremento industrial na construção dos maquinários, automóveis e outros<br />

artefatos <strong>de</strong> borracha.


136 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

No contexto das migrações rural-urbana das décadas <strong>de</strong> 1970 a 1980, um<br />

gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> seringueiros foi expulso da floresta em <strong>de</strong>corrência da frente<br />

agropecuária. Nesse contexto, ampliaram-se as áreas periféricas da cida<strong>de</strong>. As margens<br />

<strong>de</strong> rios e igarapés foram constituindo-se na alternativa para os grupos mais<br />

pobres que chegavam à cida<strong>de</strong>. A evolução <strong>de</strong>mográfica do município <strong>de</strong> Rio Branco<br />

tem sido consi<strong>de</strong>rável, principalmente na área urbana, on<strong>de</strong> se concentra mais <strong>de</strong><br />

90% da população total. É entre as décadas <strong>de</strong> 1970 e 1990 que se presencia o<br />

crescimento mais vertiginoso da população <strong>de</strong> Rio Branco, passando <strong>de</strong> 83.977 para<br />

196.923 habitantes, ou seja, mais que duplicou entre as duas décadas.<br />

Expropriada <strong>de</strong> suas terras e dos meios <strong>de</strong> subsistência, a população expulsa<br />

dos seringais chegou à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Rio Branco, na tentativa <strong>de</strong> recomeçar, iniciando<br />

um novo processo <strong>de</strong> <strong>territorialização</strong>. No entanto, com o pouco ou nada que trouxeram<br />

em anos <strong>de</strong> labuta na seringa, era impossível adquirir lotes urbanos em áreas<br />

já tomadas pela especulação imobiliária, on<strong>de</strong> foram sendo construídos conjuntos<br />

habitacionais cujos preços eram inacessíveis ao grupo. Dessa forma, em consonância<br />

com outros fatores regionais e culturais, essa população passa a ocupar áreas<br />

com preços mais baratos, como áreas suscetíveis à ocorrência <strong>de</strong> escorregamento/<br />

rastejo, influenciado pelo tipo <strong>de</strong> solo e pela incidência <strong>de</strong> chuvas na planície <strong>de</strong><br />

inundação do Rio Acre, as áreas que estão sujeitas tanto por inundação/enchente<br />

(BRASIL, 2006) quanto pelos <strong>de</strong>sabamentos quando as águas recuam, fenômeno<br />

que acelera o processo <strong>de</strong> erosão do solo <strong>de</strong>vido ao encharcamento. Tais periferias<br />

são, como <strong>de</strong>nomina Rogério Haesbaert (2002; 2004), uma ilustração <strong>de</strong> aglomerados<br />

<strong>de</strong> exclusão. Do total da população dos bairros que são afetados por <strong>de</strong>sastres<br />

relacionados à água, 63% possui perfil Cadastro Único (CadÚnico), em que as famílias<br />

vivem com rendimento mensal inferior a ½ salário mínimo per capita. Em<br />

bairros como Baixada da Habitasa (96%), Taquari (87%) e Triângulo Novo (82%),<br />

a maior parte da população possui perfil CadÚnico (½ SM), e <strong>de</strong>stas mais <strong>de</strong> 80%<br />

possui perfil Bolsa Família (renda per capita inferior a R$ 140,00), o que revela que<br />

a população <strong>de</strong>sses bairros encontra-se na margem da pobreza e extrema pobreza.<br />

O fenômeno conhecido popularmente como “alagação” não ocorre apenas<br />

pelo transbordamento da cota <strong>de</strong> alerta do rio, mas também pelo afloramento da<br />

água dos meandros abandonados (braços do rio), como é o caso do Bairro Baixada<br />

da Habitasa, um dos primeiros a ser afetado com a cheia do Rio Acre (Foto 3).<br />

Os dados extraídos dos cadastros realizados pela Secretaria Municipal <strong>de</strong><br />

Cidadania e Assistência Social com 181 famílias <strong>de</strong>sabrigadas pelas enchentes, ocorridas<br />

no ano <strong>de</strong> 2010, <strong>de</strong>monstram a vulnerabilida<strong>de</strong> socioeconômica e habitacional<br />

<strong>de</strong>ssas famílias. As famílias foram levadas a morar nessa área, segundo relato das<br />

mesmas, pelo valor com que os imóveis foram adquiridos, baixos em comparação<br />

a outros lugares. Foi citada também, como motivo, a proximida<strong>de</strong> do bairro com o<br />

centro da cida<strong>de</strong>, no caso específico do Bairro Baixada da Habitasa, facilitando o<br />

acesso a bens e serviços públicos. A maioria das famílias ocupou as áreas já cons-


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 137<br />

ciente <strong>de</strong> que eram suscetíveis a enchentes; aquelas que não tinham conhecimento<br />

resignaram-se e foram obrigadas a conviver com o fenômeno:<br />

Foto 3 Imagem disponibilizada pela Defesa Civil do município – Bairro Baixada da<br />

Habitasa (enchente ocorrida no ano <strong>de</strong> 2010).<br />

“A gente não tinha condição <strong>de</strong> comprar em outro bairro. É mais caro, né. A<br />

gente não tinha condição no momento. Até agora a gente não tá po<strong>de</strong>ndo ainda<br />

comprar em outro lugar. Compramos aqui <strong>de</strong> um primo do meu marido.<br />

Morava na Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Boca do Acre. Tem minha prima aqui do lado que também<br />

sofre com a alagação” (F. S.V., 40 anos, moradora do Bairro Baixada da<br />

Habitasa).<br />

“Não tínhamos dinheiro suficiente para encontrar outro local, era tudo muito<br />

caro. Aqui cabia em nosso bolso. Antes morávamos no São Francisco. Não tinha<br />

água e era muito longe” (E. C. S., 32 anos, moradora do bairro Airton Sena).<br />

“Olha, a gente veio, veio morar antes da alagação. Nós não sabia que era área<br />

<strong>de</strong> risco, nem que alagava, mas aí <strong>de</strong>pois a gente sofremos várias alagações, aí<br />

nos acostumemos a viver nessa vida. A gente que é pessoal humil<strong>de</strong> não tem<br />

dinheiro pra comprar em outra localida<strong>de</strong>. A gente vai vivendo aí. A alagação<br />

às vezes alaga no ano, às vezes não alaga no outro ano. Primeiramente a gente<br />

não tínhamos e não temos condição <strong>de</strong> comprar a casa em outro bairro. Mas<br />

aí, como eu falei, a gente acostumou a ficar na alagação aqui. Depois que seca<br />

é uma bênção aí, né. E agora, já passou o asfalto aqui na frente, melhorou” (A.<br />

C. S., 44 anos, morador do bairro Taquari).<br />

“Sabia que aqui alagava do rio, não sabia que aqui alagava quando chovia, o<br />

terreno. Tinha canto mais barato em Boca do Acre, mas meu marido endoidou<br />

para vim pra cá. Lá a gente não morava no alagado. Já batalhei para comprar


138 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

um terreno em outro local, mas o dinheiro não dá. Todo dinheiro que eu pego<br />

é pra comer” (A. L. M. S., 44 anos, moradora do bairro Taquari).<br />

O fato <strong>de</strong> a moradia estar próxima ao centro, no caso da Baixada da Habitasa,<br />

corrobora para a filiação paulatina ao território:<br />

“Gosto sim. Do bairro. É calmo, tranquilo. Fica próximo à minha igreja” (F. S.<br />

V., 40 anos, moradora do bairro Baixada da Habitasa).<br />

“Gosto muito <strong>de</strong>ste local. Se fosse pra sair daqui queria ir para a Morada do<br />

Sol. Não sei se iria pra longe” (G. F. S., 29 anos, moradora do bairro Baixada<br />

da Habitasa).<br />

“Rapaz, eu já me acostumei, né. Porque fica perto do meu trabalho aí. Às vezes<br />

saio mais cedo. Chego <strong>de</strong> madrugada. Outros cantos aí que a gente não<br />

conhece é mais perigoso, né. Aqui não, o povo que é morador daqui quase todo<br />

mundo já se conhece e principalmente a gente que é da igreja, né. Vai passando<br />

as pessoas, vê que a gente somos pessoas que só faz o bem. Já não têm muitos<br />

problemas” (A. C. S., 44 anos, morador do bairro Taquari).<br />

Ressalta-se que, do universo <strong>de</strong> famílias <strong>de</strong>sabrigadas, 58% já morava no local<br />

a mais <strong>de</strong> quatro anos e tinha pelo lugar um sentimento <strong>de</strong> pertencimento e <strong>de</strong><br />

segurança, apesar <strong>de</strong> serem áreas suscetíveis às ameaças relacionadas às chuvas.<br />

Apesar das condições ina<strong>de</strong>quadas, as famílias que construíram ou adquiriram casas<br />

em áreas ditas <strong>de</strong> “risco” encontraram nesses espaços a saída para romper com a<br />

insegurança “do morar e do viver”, como a <strong>de</strong>pendência do aluguel, ou seja, passam<br />

a constituir uma moradia própria.<br />

Tendo por referência os últimos cinco anos, Rio Branco vivenciou três<br />

inundações <strong>de</strong> maiores proporções: em 2006, 2009 e 2010. No entanto, a do ano<br />

<strong>de</strong> 2006 foi a que apresentou maior magnitu<strong>de</strong>, com o nível do Rio Acre atingindo<br />

16,72 m. Nos anos <strong>de</strong> 2009 a 2010, o fenômeno da inundação/enchente se <strong>de</strong>u<br />

em menor intensida<strong>de</strong>, com o nível do Rio Acre chegando ao pico máximo <strong>de</strong> 15,55<br />

metros, 1,17 m a menos do que em 2006. No Quadro 1 enumeram-se as pessoas<br />

em situação <strong>de</strong> afetados/<strong>de</strong>salojados/<strong>de</strong>sabrigados nesses três anos.<br />

Quadro 1 Número <strong>de</strong> pessoas vítimas da inundação (2006, 2009 e 2010).<br />

Ano Afetados Desalojados Desabrigados<br />

Nº bairros<br />

atingidos<br />

2006 33156 4890 3800 47<br />

2009 15948 911 1723 16<br />

2010 16834 580 1376 16<br />

Fonte: Coor<strong>de</strong>nadoria Municipal <strong>de</strong> Defesa Civil – COMDEC/AVADANS (2006, 2009<br />

e 2010).


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 139<br />

Em alguns bairros, no entanto, os moradores vivenciam a situação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre<br />

quase que anualmente. São bairros que têm áreas mais baixas, que se localizam<br />

na calha e planície <strong>de</strong> inundação do Rio Acre, com cotas próximas a 13,5 m. As<br />

famílias que moram nessas áreas já esperam a ocorrência da inundação, principalmente<br />

entre os meses <strong>de</strong> fevereiro e abril <strong>de</strong> cada ano, como relatam as moradoras<br />

do Bairro Baixada da Habitasa/Ca<strong>de</strong>ia, especificamente da Travessa Bolívia e Rua<br />

Judite Paiva:<br />

“Começa a chover, né, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> janeiro a gente já fica esperando. Nestes onze<br />

anos que moramos aqui já passamos por sete alagações, e só saímos <strong>de</strong> casa<br />

quatro vezes. Nem sempre saímos <strong>de</strong> casa, não. A água tem ano que vai até a<br />

escada da casa (...). Tem ano que sobe a casa toda, aí não tem jeito, né, temos<br />

que ir para o abrigo da prefeitura. Os vizinhos têm barco, somos preparados.<br />

Depois a água vai embora e tudo volta a ser como antes” (C. S. N, 32 anos).<br />

“Temos medo, sabe, todo ano é a mesma coisa. Perto do carnaval o rio sobe e<br />

este esgoto chega em nossa casa. A luz acaba, é muito ruim. Só saímos <strong>de</strong> barco<br />

ou nadando mesmo” (F. S.V, 40 anos).<br />

É possível i<strong>de</strong>ntificar no relato <strong>de</strong> alguns moradores <strong>de</strong>ssas áreas um sofrimento<br />

que é sistematicamente aguardado quando vem a alagação, naturalizando<br />

a vivência das perdas materiais, as rupturas do parco bem-estar e das rotinas, bem<br />

como o aumento dos riscos relacionados à saú<strong>de</strong> humana em virtu<strong>de</strong> da piora da<br />

qualida<strong>de</strong> ambiental local. A busca por meios próprios para reduzir os efeitos in<strong>de</strong>sejáveis<br />

da alagação resulta do reconhecimento coletivo <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>sfiliação social<br />

(Fotos 4 e 5), da qual <strong>de</strong>corre uma sociabilida<strong>de</strong> comunitária solidária nesse contexto<br />

adverso:<br />

“Oh, moça, meu filho comprou há dois anos um barco. Esse aí que está coberto.<br />

Quando alaga, ele vai para o trabalho <strong>de</strong> barco. Muito morador tem canoa<br />

aqui. Meu filho, ele é uma pessoa muito boa, ajuda os vizinhos, carrega na canoa<br />

(...). Quando a água sobe, ele faz um sobrado, ele é carpinteiro, né, e sobe todos<br />

os móveis. Ele vai para casa da filha <strong>de</strong>le ali em cima. Lá alaga também.<br />

Ele faz um sobrado para ele assim em cima, e fica vigiando as casas dos vizinhos,<br />

senão o povo vem e rouba tudo. Ele faz sobrado até para o cachorro <strong>de</strong>le”<br />

(F. C., 68 anos).<br />

“A gente não espera pelo bombeiro, não. Primeiro a gente trepa as coisas. Se<br />

precisa sair pegamos o barco com ajuda dos vizinhos. Vamos para a igreja que<br />

congregamos. E lá a gente fica até a água abaixar” (F. S. V, 40 anos).<br />

Quando as águas estão a ponto <strong>de</strong> atingir um limite crítico, a equipe da<br />

Coor<strong>de</strong>nadoria Municipal <strong>de</strong> Defesa Civil (COMDEC), com suporte do Corpo <strong>de</strong><br />

Bombeiros do Estado do Acre, das polícias militares e civis e outros órgãos, que<br />

ce<strong>de</strong>m carros e pessoal, retira as famílias e bens móveis das moradias, levando-os<br />

para abrigos provisórios da prefeitura, bem como para abrigos mantidos pela própria<br />

comunida<strong>de</strong>, como estabelecimentos religiosos que viram abrigos para os fi-


140 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

éis. Nos abrigos provisórios, as famílias passam por situações difíceis <strong>de</strong> adaptação,<br />

tendo <strong>de</strong> modificar totalmente suas rotinas, como a ida das crianças à escola,<br />

pois os abrigos geralmente estão distantes do bairro <strong>de</strong> origem das famílias ali acolhidas.<br />

Fotos 4 e 5 Canoa do Sr. F. C., morador do Bairro Baixada da Habitasa, e moradores<br />

locais fazendo uso <strong>de</strong> canoas para acesso à área da moradia. Imagens<br />

disponibilizadas pela Defesa Civil do Município, Bairro Baixada da Habitasa<br />

(ref. enchentes ocorridas no ano <strong>de</strong> 2010).<br />

A mulher, sobretudo, é quem mais sofre, ao per<strong>de</strong>r a referência da casa no<br />

exercício <strong>de</strong> seus papéis na sociabilida<strong>de</strong> privada. O mundo privado torna-se público.<br />

Antes <strong>de</strong> 2006, os abrigos temporários em Rio Branco eram instalados em<br />

escolas estaduais e municipais, ginásios e outros espaços públicos cedidos pela<br />

comunida<strong>de</strong>. Nas escolas, a função do espaço como abrigo provisório ameaçava o<br />

cumprimento do calendário escolar. Constituíam-se ali espaços ina<strong>de</strong>quados para<br />

a permanência temporária das famílias, que nem sempre tinham sua privacida<strong>de</strong> e<br />

autonomia garantidas. A permanência da vulnerabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> muitas famílias diante<br />

das sucessivas cheias foi naturalizando sua <strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong> sazonal, mas<br />

também exigiu do po<strong>de</strong>r público o provimento <strong>de</strong> instalações alternativas para os<br />

abrigos, conforme os relatos abaixo <strong>de</strong>notam:<br />

“Tô aqui <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a alagação <strong>de</strong> 1997. Daquela época pra cá fui mais <strong>de</strong> sete vezes<br />

para o abrigo. Oh! Mas tenho que dizer. Agora é menos ruim ir para o abrigo.<br />

Era muito ruim antes, fia. A gente ia pra escola, jogava a gente <strong>de</strong> qualquer<br />

jeito. Ninguém mais tinha privacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nada, todo mundo misturado mesmo.<br />

Era um barulho terrível. Hoje é bem melhor, né” (F.C., 68 anos, 2011).<br />

“(...) nós já moramos um tempo na exposição. Em 97 nós fomos pra escola<br />

Diogo Feijó. Mas eu gostei mais da Exposição, é mais organizado lá. O pessoal<br />

aten<strong>de</strong> melhor nós, sabe” (A. C. S., 44 anos, morador do Bairro Taquari).<br />

A partir <strong>de</strong> 2006, a ocupação do espaço físico das escolas tornou-se a última<br />

opção <strong>de</strong>flagrada pelo ente público a fim <strong>de</strong> que tal uso não comprometesse o ano


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 141<br />

letivo. Espaços alternativos passaram a ser utilizados como abrigo, a saber: o Parque<br />

Marechal Castelo Branco, o Ginásio Coberto Álvaro Dantas e o espaço do SEST/<br />

SENAT. O órgão gestor municipal responsável pela coor<strong>de</strong>nação dos abrigos provisórios<br />

em Rio Branco é a Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cidadania e Assistência Social.<br />

Esta procurou diminuir os constrangimentos que o abrigo causa ao cotidiano das<br />

famílias. A exemplo, <strong>de</strong>stinou a cada família um box fechado (medindo 3 x 3 m),<br />

garantindo-lhe o mínimo <strong>de</strong> privacida<strong>de</strong>. Outro cuidado foi a guarda dos bens móveis<br />

da família, sendo estes inscritos em inventários próprios, colocados <strong>de</strong> forma<br />

separada, encobertos com lona e i<strong>de</strong>ntificados pelo nome e número <strong>de</strong> box.<br />

Outra medida é o pacto <strong>de</strong> convivência, realizado <strong>de</strong> forma participativa, em<br />

que são <strong>de</strong>finidas as regras básicas do abrigo. Busca-se conjugar uma série <strong>de</strong> serviços<br />

que possam aten<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>s mínimas dos <strong>de</strong>sabrigados, <strong>de</strong> modo a<br />

reduzir o stress causado pela situação <strong>de</strong> abrigamento (RIO BRANCO, 2009). O<br />

abrigamento é o momento em que o estado, <strong>de</strong> uma forma positiva ou negativa, se<br />

aproxima <strong>de</strong> fato da vida das pessoas. O distanciamento das pessoas do aparato<br />

estatal é reduzido. Este, por sua vez, consegue acessar as diversas fragilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ssa<br />

população. Nesse lócus, os agentes públicos responsáveis pelos abrigos po<strong>de</strong>m<br />

estabelecer relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e medo, como também um elo <strong>de</strong> proteção e segurança junto<br />

aos abrigados. Foi possível <strong>de</strong>tectar isso em algumas situações durante o atendimento<br />

às famílias em 2009 e 2010. Nesse período foram i<strong>de</strong>ntificadas, por exemplo,<br />

situações <strong>de</strong> violência doméstica. Diante da estrutura protetiva que o estado representava<br />

naquele momento, as mulheres violentadas, durante anos <strong>de</strong> convivência,<br />

<strong>de</strong>nunciaram seus companheiros pela primeira vez, o que <strong>de</strong>monstra sua<br />

confiança, naquele momento, na proteção do Estado.<br />

Em termos sociopolíticos, a prática da gestão municipal atual <strong>de</strong> transferir o<br />

gabinete do prefeito e o secretariado para <strong>de</strong>ntro do principal local <strong>de</strong> abrigo provisório<br />

– realizando a partir dali os <strong>de</strong>spachos e permitindo aos afetados acompanhar<br />

<strong>de</strong> perto as providências, tal como se <strong>de</strong>u em abril <strong>de</strong> 2011, em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

enchentes que afetaram aproximadamente três mil pessoas – sinalizou não apenas<br />

para os afetados um compromisso público com a resolução <strong>de</strong>ssa questão estrutural,<br />

mas para o restante dos cidadãos <strong>de</strong> Rio Branco que aquela era uma questão<br />

central para toda a socieda<strong>de</strong> da capital acreana.<br />

Entre os anos <strong>de</strong> 2006 e 2010, 36 famílias oriundas <strong>de</strong> diferentes bairros<br />

afetados pela cheia do Rio Acre per<strong>de</strong>ram suas moradias. Desse total, 20 famílias<br />

foram contempladas com unida<strong>de</strong>s habitacionais e 16 estão em aluguel temporário<br />

pago pela Prefeitura <strong>de</strong> Rio Branco através da Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cidadania<br />

e Assistência Social (SEMCAS), que é o órgão que fazia a i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong><br />

imóveis, pagando diretamente aos locatários. Mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z bairros da área urbana<br />

<strong>de</strong> Rio Branco têm sido atingidos por <strong>de</strong>slizamentos/escorregamentos, <strong>de</strong>ntre os<br />

quais se <strong>de</strong>stacam, nos últimos cinco anos: Preventório, Aeroporto Velho, Placas e<br />

Cida<strong>de</strong> Nova. Das 150 famílias mais vulneráveis nesses precários assentamentos


142 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

urbanos, 28% foram contempladas com unida<strong>de</strong>s habitacionais, 69% ainda moram<br />

em “casas/apartamentos” alugados pela Prefeitura <strong>de</strong> Rio Branco e o restante<br />

busca meios próprios para morar (casa <strong>de</strong> parentes e outros, tornando-se <strong>de</strong>salojadas).<br />

As três situações expressam diferentes gradações <strong>de</strong> perdas materiais e<br />

mobilização emocional, sujeitando as famílias a reiniciar suas referências<br />

socioespaciais num novo território.<br />

Apesar <strong>de</strong> os Planos Diretores (datados <strong>de</strong> 1986 e 2006) preverem a saída<br />

das famílias das áreas i<strong>de</strong>ntificadas como não aptas à moradia, o que se veem, historicamente,<br />

são ações pontuais, voltadas para o atendimento quando o <strong>de</strong>sastre<br />

já ocorreu, e essa saída, <strong>de</strong> qualquer modo, traz sempre o ônus <strong>de</strong> suscitar rupturas<br />

objetivas e subjetivas na vida dos afetados. Há <strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacar que o Rio Acre<br />

faz parte da história da migração para Rio Branco, e os migrantes ainda se reconhecem<br />

como ribeirinhos. Como resistência à iminência <strong>de</strong> tais rupturas, muitas<br />

são as famílias que retornam para as áreas ditas <strong>de</strong> risco, prática essa que agentes<br />

públicos significam preconceituosamente. É comum ouvir, <strong>de</strong> tais agentes, afirmações<br />

como “pobre gosta é <strong>de</strong> sofrer”, “são um bando <strong>de</strong> aproveitadores querendo<br />

ganhar casas do governo”, <strong>de</strong>ntre outras que negam a legitimida<strong>de</strong> das razões que<br />

fazem os moradores persistirem no terreno.<br />

De outro lado, o retorno <strong>de</strong> muitas famílias para as moradias interditadas<br />

representa a <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> planejamento do po<strong>de</strong>r público no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

ações e estratégias para um reassentamento a<strong>de</strong>quado das famílias em áreas mais<br />

seguras. Ações <strong>de</strong> reassentamento não têm sido preparadas <strong>de</strong> modo a priorizar o<br />

acolhimento <strong>de</strong>ssas novas famílias. Soluções habitacionais em bairros distantes do<br />

centro da cida<strong>de</strong>, nem sempre com os equipamentos públicos necessários à manutenção<br />

da rotina familiar – como escola e outros –, colaboram para a <strong>de</strong>silusão das<br />

famílias após o contentamento inicial por terem sido contempladas com uma moradia<br />

em área segura. A<strong>de</strong>mais, por serem famílias <strong>de</strong> baixa renda, estas se veem<br />

acuadas perante os custos advindos da nova moradia (luz, IPTU, transporte, <strong>de</strong>ntre<br />

outros). O <strong>de</strong>sencantamento logo emerge diante da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escolha entre<br />

distintos riscos. A maior segurança da moradia, no que tange às enchentes ou aos<br />

<strong>de</strong>sabamentos, apresenta sua face perversa: a <strong>de</strong> constituir-se como fator <strong>de</strong> maior<br />

insegurança frente aos <strong>de</strong>mais requerimentos da vida social, como o da educação<br />

formal, das rotinas do trabalho, da manutenção dos vínculos com a re<strong>de</strong> primária<br />

<strong>de</strong> relações. A <strong>de</strong>sarticulação <strong>de</strong>sses planos da existência, colocando os grupos<br />

vulneráveis permanentemente na berlinda, é o que torna o aprendizado do po<strong>de</strong>r<br />

local ainda incompleto.<br />

PARA CONCLUIR<br />

Os conceitos <strong>de</strong>limitam o sujeito, sua compreensão e sua ação sobre o mundo.<br />

Os jogos <strong>de</strong> linguagem e <strong>de</strong> práticas ocorridos no encontro <strong>de</strong> grupos, entre os


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 143<br />

afetados multidimensionalmente nos <strong>de</strong>sastres e as autorida<strong>de</strong>s públicas, compõem<br />

um campo <strong>de</strong> forças em que disputam os distintos sensos <strong>de</strong> direito e <strong>de</strong> justiça.<br />

Os percalços e constrangimentos acima, em larga medida, <strong>de</strong>vem-se à concepção<br />

<strong>de</strong> que o ente público tem suas responsabilida<strong>de</strong>s perante os sujeitos mais<br />

vulneráveis. Há frações do Estado que adotam a piora do atendimento aos afetados<br />

nos <strong>de</strong>sastres como parte <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong>liberada para <strong>de</strong>svinculá-los<br />

socioespacialmente, até que aceitem a sua condição <strong>de</strong> refugo humano (cf. BAUMAN,<br />

2005) e <strong>de</strong>sapareçam da cena. Embora as <strong>de</strong>svantagens materiais e <strong>sociais</strong> dos<br />

afetados recru<strong>de</strong>sçam nos <strong>de</strong>sastres, órgãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil e <strong>de</strong>mais atores públicos<br />

presentes propen<strong>de</strong>m a enten<strong>de</strong>r como satisfatória a adoção <strong>de</strong> providências<br />

aquém da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, o que se <strong>de</strong>ve não apenas ao <strong>de</strong>sencontro<br />

das visões em torno dos acontecimentos, mas à contestação da valida<strong>de</strong> da ótica<br />

dos que se situam do lado <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro das tragédias, envoltos em extensivo sofrimento.<br />

Tal prática se propaga em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> fatores que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a valorização<br />

excessiva da racionalida<strong>de</strong> tecnicista – com foco principal nas chamadas “medidas<br />

estruturais”, ilustradas por obras civis – ao ajustamento acrítico e parcial das rotinas<br />

burocráticas, assincrônico e insuficiente à disrupção da vida cotidiana daqueles<br />

a quem tal atendimento é prestado. Nesse diapasão, o <strong>de</strong>scaso total em relação<br />

aos grupos afetados também ocorre, bem como os discursos que margeiam a intolerância<br />

mais bruta. Do outro lado, há a ambiguida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um exaspero que se torna<br />

contido <strong>de</strong>vido à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sobreviver. As práticas <strong>sociais</strong> contrastantes e<br />

conflitantes entre o Estado e os afetados ampliam a vulnerabilida<strong>de</strong> dos últimos e<br />

os levam ao estágio seguinte, qual seja, tornando-os o grupo mais frágil, com<br />

consequências <strong>sociais</strong> ainda mais graves.<br />

O <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> contínua repetição refere-se ao processo sociopolítico perverso<br />

no qual a <strong>de</strong>bilitação gradual dos grupos empobrecidos afetados, pelos danos intensivos<br />

e extensivos vividos, torna-os paulatinamente miseráveis e, <strong>de</strong>sse modo,<br />

<strong>de</strong>squalifica-os socialmente e os impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> participar <strong>de</strong> quaisquer discussões sobre<br />

o enfrentamento futuro <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> crise. Descortina-se, assim, o projeto autoritário<br />

<strong>de</strong> redução da esfera pública no tema das emergências e <strong>de</strong>sastres: os<br />

afetados encontrar-se-ão muito <strong>de</strong>bilitados para falarem por si. No plano prático,<br />

tanto os serviços públicos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa civil quanto os <strong>de</strong> assistência social distanciam-se<br />

progressivamente do i<strong>de</strong>ário <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong>fendido, em maior ou menor<br />

medida, pelas correspon<strong>de</strong>ntes instituições e passam a configurar rotinas técnicas<br />

calcadas no reacionarismo político, no bojo do qual quaisquer manifestações <strong>de</strong><br />

insatisfação por parte dos afetados passam a ser consi<strong>de</strong>radas afrontas aos po<strong>de</strong>res<br />

constituídos, que respon<strong>de</strong>m com ritmo lento, <strong>de</strong> forma parcial, hostil ou, simplesmente,<br />

<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r às solicitações dos mesmos.<br />

As medidas <strong>de</strong> reabilitação que usualmente têm sido colocadas em prática<br />

pelo ente público nos <strong>de</strong>sastres, e cujas nuances acima ilustramos, são norteadas<br />

por um sistema <strong>de</strong> significados que ten<strong>de</strong>m a perpetuar a <strong>de</strong>squalificação social


144 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

dos grupos afetados e, assim, recru<strong>de</strong>scer os efeitos pernósticos à cidadania. As<br />

escassas providências públicas <strong>de</strong> melhoramento dos sistemas <strong>de</strong> objetos<br />

tecnológicos que po<strong>de</strong>riam ampliar a proteção territorial comunitária diante dos<br />

fatores recorrentes <strong>de</strong> ameaça, suscitando a progressiva <strong>de</strong>gradação e inviabilida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> ocupação territorial; a prática subsequente <strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>territorialização</strong> compulsória<br />

das famílias; as providências oficiais pífias frente ao montante necessário para<br />

reconstituir minimamente as rotinas da vida social; as provisões parcas oferecidas<br />

e a vagarosa/incompleta/ina<strong>de</strong>quada solução habitacional compõem um rol <strong>de</strong><br />

práticas públicas que, separadas ou em conjunto, ten<strong>de</strong>m a esmagar a condição<br />

humana dos grupos afetados. Constituem o misto <strong>de</strong> ação/inação que se faz notar<br />

nas várias formas <strong>de</strong> (<strong>de</strong>s)atendimento, contribuindo para a <strong>de</strong>gradação material,<br />

física, moral e psicossocial dos mesmos, tudo corroborando para invalidar o seu<br />

projeto existencial, individual e coletivo. O tempo, o espaço e o conteúdo <strong>de</strong> um<br />

projeto <strong>de</strong> <strong>territorialização</strong> cidadã, a que os afetados nos <strong>de</strong>sastres aspiram, têm<br />

sido <strong>de</strong>scartados do rol <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s existenciais, <strong>de</strong>sintegrando as perspectivas<br />

<strong>de</strong> interlocução com o ente público com base em uma noção compartilhada<br />

<strong>de</strong> justiça. Um sentimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>samparo coletivo, aos poucos, transcen<strong>de</strong> as<br />

especificida<strong>de</strong>s dos <strong>de</strong>sastres que os <strong>de</strong>flagra e amalgama os vários grupos afetados<br />

país afora através das improprieda<strong>de</strong>s, ina<strong>de</strong>quações e insuficiências das práticas<br />

do ente público.<br />

Fundidos estão os afetados em seu <strong>de</strong>samparo quando vivenciam uma progressiva<br />

contestação <strong>de</strong> quaisquer territórios em que porventura se insiram e contra<br />

quem se impõe a força <strong>de</strong> polícia em ato <strong>de</strong> remoção; quando veem<br />

obstaculizadas as tentativas <strong>de</strong> coesão familiar por falta <strong>de</strong> uma moradia que possa<br />

congregar seus membros; quando a sociabilida<strong>de</strong> na esfera pública, como no<br />

trabalho, na escolarização e outras, sofre os percalços da ausência <strong>de</strong> meios para<br />

viabilizá-lo. A sucessão <strong>de</strong> humilhações relacionadas aos direitos mínimos da pessoa<br />

humana e à ausência <strong>de</strong> perspectivas em supri-los condizentemente é coroada<br />

pelo constrangimento público <strong>de</strong>corrente da <strong>de</strong>liberada propagação <strong>de</strong> uma imagem<br />

distorcida que <strong>de</strong>les fazem as autorida<strong>de</strong>s, representando-os como sendo ‘gente<br />

sem valor’.<br />

Diferentemente do cumprimento <strong>de</strong> uma missão institucional voltada para<br />

o enfrentamento das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>sociais</strong>, as práticas correntes dos agentes das<br />

frações do Estado que atuam nas emergências e <strong>de</strong>sastres replicam, em seu interior,<br />

o viés <strong>de</strong> classe, reforçando-o em diferenças abissais. Buscam influenciar o imaginário<br />

dos grupos afetados, fazendo-os absorver concepções que corrompem sua<br />

autoimagem; os envergonham, os constrangem, tencionam tornar incontestável seu<br />

<strong>de</strong>mérito social e <strong>de</strong>svalor. Nas referências i<strong>de</strong>ológicas <strong>de</strong> opressores, que corroem<br />

as bases <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, o número <strong>de</strong> afetados em <strong>de</strong>sastres aumenta<br />

a cada dia e são levados a interagir como não tendo direitos a exigir garantias<br />

ante as contingências da vida, a qual é vivida em constante provisorieda<strong>de</strong>.


Cap. VII Desastres e Desamparo Coletivo: o ente público diante dos grupos afetados 145<br />

As agruras que pontuam a trajetória dos afetados não se colocam em termos<br />

puramente materiais, mas num universo simbólico no qual os fracassos, as frustrações,<br />

as resistências e as aspirações fazem parte da sua afirmação como ser-nomundo.<br />

Medidas <strong>de</strong> reabilitação e recuperação, concebidas sem a compreensão e<br />

incorporação do ponto <strong>de</strong> vista dos afetados, são não <strong>de</strong>mocráticas. Tais medidas<br />

<strong>de</strong>notam a continuida<strong>de</strong> do projeto político histórico <strong>de</strong> <strong>de</strong>svinculação daqueles a<br />

quem a lógica do mercado sempre <strong>de</strong>scartou. O <strong>de</strong>samparo coletivo é a principal<br />

regularida<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificável nas inúmeras ocorrências <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres no país, estado<br />

emocional vinculado a um sistema comum <strong>de</strong> significados em torno da trajetória<br />

social <strong>de</strong> contínua frustração nas tentativas <strong>de</strong> acessar o aparato público e lograr<br />

êxito no reconhecimento <strong>de</strong> direitos.<br />

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CAPÍTULO VIII<br />

AS REDES SOCIAIS E AS ATIVIDADES INFORMAIS<br />

INTRODUÇÃO<br />

NO CENTRO DE MANAUS<br />

Marcio André Araújo <strong>de</strong> Oliveira<br />

Maria Izabel <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Valle<br />

O processo organizativo do comércio <strong>de</strong> rua, sobretudo a ativida<strong>de</strong> do<br />

camelô,escapa à lógica da burocratização e reconhecimento <strong>de</strong> contratos formais<br />

inerentes aos <strong>processos</strong> <strong>de</strong> racionalização econômica. Nesse caso, a aparente “<strong>de</strong>sorganização”<br />

<strong>de</strong>ssa ocupação no centro comercial das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s encobre<br />

estratégias organizativas que envolvem re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> relações <strong>sociais</strong> ativadas sempre<br />

que se <strong>de</strong>seja entrar, transitar ou sair da ativida<strong>de</strong>.<br />

A Praça da Matriz é um espaço no centro <strong>de</strong> Manaus on<strong>de</strong> se localiza a Catedral<br />

Metropolitana <strong>de</strong> Nossa Senhora da Conceição, em tese, um espaço sagrado.<br />

No final <strong>de</strong> suas escadarias e percorrendo o gradil que cerca a igreja situa-se o<br />

mundo da vida profana on<strong>de</strong> prolifera o comércio informal, no qual ven<strong>de</strong>dores<br />

oferecem mercadorias as mais variadas, em geral <strong>de</strong> baixo custo. Com aproximadamente<br />

295 bancas <strong>de</strong> permissionários 1 na ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> camelô, além <strong>de</strong> outras ocupações,<br />

a Praça é um dos espaços públicos no centro da cida<strong>de</strong> que mais chama a<br />

atenção pela intensa movimentação do comércio <strong>de</strong> rua.<br />

Seu entorno é local <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> três centenas <strong>de</strong> indivíduos que buscam,<br />

por meio das diversas ativida<strong>de</strong>s informais ali existentes, a obtenção diária <strong>de</strong> renda<br />

e sobrevivência pessoal e familiar; é o lugar possível para aqueles excluídos do<br />

mercado <strong>de</strong> trabalho formal e das suas exigências <strong>de</strong> empregabilida<strong>de</strong> (MACHA-<br />

DO DA SILVA, 2003). Embora gran<strong>de</strong> seja a <strong>de</strong>manda por um espaço nesse mercado<br />

informal, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vagas oferecidas tem sido menor em comparação<br />

com a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalhadores que as buscam.<br />

Esta pesquisa contou com o apoio da Coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> Aperfeiçoamento <strong>de</strong> Pessoal <strong>de</strong> Nível<br />

Superior (CAPES) e da Fundação <strong>de</strong> Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).<br />

1. Permissionário é aquele indivíduo que solicita junto à Prefeitura permissão para utilizar<br />

a via pública com interesse <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> comercial. A permissão recebida é pessoal,<br />

individual e só po<strong>de</strong> ser transferida mediante solicitação por escrito a outra pessoa interessada,<br />

que passa a utilizar o local (o ponto) mesmo que comercialize produtos diferentes<br />

(caso do camelô ou ambulante). Embora proibida, a comercialização do ponto<br />

(venda ou aluguel) é praticada por alguns permissionários.


148 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

O mercado <strong>de</strong> trabalho não po<strong>de</strong> ser entendido apenas em sua dimensão<br />

econômica. É importante ir além, recuperando a dimensão social e espacial, do<br />

território, do lócus on<strong>de</strong> os sujeitos criam re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, um espaço não<br />

apenas <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> sobrevivência e permanência, ou <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver<br />

moral, mas também um campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, no qual os vínculos <strong>sociais</strong><br />

se reproduzem, ampliam-se e reconfiguram-se, favorecendo a inserção “nas franjas<br />

mais dissocializadas” e precárias da socieda<strong>de</strong> (CASTEL, 1998: 31).<br />

Na tentativa <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o entorno da Praça da Matriz como um “campo<br />

<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s”, realizamos, em 2009, uma pesquisa com os camelôs ali localizados<br />

com o propósito <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r e analisar a forma relacional da<br />

sociabilida<strong>de</strong> em re<strong>de</strong> que tem lugar no interior do trabalho informal entre as diversas<br />

ativida<strong>de</strong>s realizadas na Praça da Matriz, em Manaus. Para obtenção dos<br />

dados da pesquisa, optou-se pela metodologia etnográfica viabilizada através <strong>de</strong><br />

entrevistas realizadas com os camelôs, conversas informais, visita às bancas dos<br />

permissionários e participação nas reuniões do Sindicato dos Ambulantes e Camelôs.<br />

Além disso, utilizaram-se dados disponíveis no IBGE (2009) sobre índices<br />

<strong>de</strong> crescimento populacional do Estado e da capital, no cadastro <strong>de</strong> comércio informal<br />

<strong>de</strong> Manaus apresentado pela Prefeitura (2009) e reportagens <strong>de</strong> jornais locais<br />

relacionadas ao trabalho informal e camelôs. Foram entrevistados 25 camelôs<br />

permissionários e 6 fiscais da prefeitura que atuam na área do centro <strong>de</strong> Manaus.<br />

MERCADO DE TRABALHO E A ZONA FRANCA DE MANAUS<br />

Analisando o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> Manaus, Scherer (2005) e Valle<br />

(2007) argumentam que o ingresso da capital do estado do Amazonas em um<br />

período <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização recente ocorreu após a implementação do Projeto Zona<br />

Franca. Constituído no período da política <strong>de</strong>senvolvimentista implementada pelo<br />

governo militar, o referido projeto tinha por objetivo a “integração” da Amazônia<br />

Oci<strong>de</strong>ntal ao restante do país, e, por essa via, a diminuição do <strong>de</strong>sequilíbrio regional.<br />

O mo<strong>de</strong>lo zona franca <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou mudanças profundas na paisagem urbana<br />

da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Manaus e teve gran<strong>de</strong>s repercussões na configuração do mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho local.<br />

As relações entre os interesses dos grupos econômicos locais, nacionais e internacionais<br />

que articulam o mercado local ao mercado internacional <strong>de</strong>terminam<br />

que os vínculos <strong>de</strong>ssa integração funcionem sempre que seja necessário pulverizar<br />

as relações produtivas e <strong>sociais</strong> existentes anteriormente. Ora, isso implica a<br />

<strong>de</strong>sestruturação das antigas relações do mercado tradicional local e a construção<br />

<strong>de</strong> novas relações e estruturas produtivas em ca<strong>de</strong>ias e re<strong>de</strong>s para aten<strong>de</strong>r às novas<br />

<strong>de</strong>mandas criadas pelo mercado exterior à região (VALLE, 2007).<br />

O po<strong>de</strong>r atrativo exercido pela capital amazonense sobre a população do interior<br />

do estado e <strong>de</strong>mais cida<strong>de</strong>s da região po<strong>de</strong> ser compreendido e explicado nos


Cap. VIII As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus 149<br />

diversos estudos que historicamente têm apontado para as questões estruturais que<br />

afetam as cida<strong>de</strong>s amazônicas, no que diz respeito ao mínimo acesso do usufruto<br />

<strong>de</strong> bens e serviços públicos a essas localida<strong>de</strong>s. Estas passam por problemas vinculados<br />

ao <strong>de</strong>senvolvimento social, como abastecimento <strong>de</strong> água tratada e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

esgoto, serviços <strong>de</strong> assistência médica, escolas e <strong>de</strong>senvolvimento educacional, baixa<br />

perspectiva <strong>de</strong> postos <strong>de</strong> trabalho, precário abastecimento <strong>de</strong> energia elétrica, <strong>de</strong>pendência<br />

total <strong>de</strong> repasse <strong>de</strong> recursos fe<strong>de</strong>rais e estaduais, entre outros.<br />

Desse modo, a migração para Manaus transforma-se em estratégia <strong>de</strong> sobrevivência<br />

para a população do interior que é atraída pelo discurso i<strong>de</strong>ológico representado<br />

pelo “progresso” e “<strong>de</strong>senvolvimento” da capital – alimentando a crença<br />

na ascensão social, fortalecendo, assim, os atributos positivos da “nova realida<strong>de</strong>”.<br />

Essa realida<strong>de</strong> não faz <strong>de</strong>saparecer a antiga exclusão, mas a retorna como uma<br />

linha tênue entre seus parcos recursos <strong>de</strong> sobrevivência e uma via pela inclusão <strong>de</strong><br />

trabalho precário. Embora não se <strong>de</strong>va menosprezar a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma vida<br />

melhor i<strong>de</strong>alizada por aqueles que chegam à cida<strong>de</strong> em busca <strong>de</strong> emprego e renda,<br />

<strong>de</strong>ve-se levar em consi<strong>de</strong>ração, para enten<strong>de</strong>r o processo acelerado <strong>de</strong> concentração<br />

populacional na capital amazonense, o estímulo dado ao crescimento econômico<br />

por meio da criação da Zona Franca. Tal mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> crescimento provocou, sem<br />

dúvida, significativo aumento populacional e criou um novo cenário urbano<br />

re<strong>de</strong>finido pelas novas formas <strong>de</strong> inserção no mercado <strong>de</strong> trabalho local (VALLE,<br />

2007; SCHERER, 2005).<br />

Segundo Valle (2007: 134), “o processo <strong>de</strong> migração para Manaus, intensificado<br />

com a criação da Zona Franca, caracteriza dois movimentos combinados:<br />

esvaziamento do interior amazonense e ‘inchaço’ populacional da capital do Estado”.<br />

As consequências são visíveis, com o inchamento da cida<strong>de</strong>, a proliferação das<br />

favelas, o aumento da criminalida<strong>de</strong>, da prostituição e do número <strong>de</strong> menores<br />

carentes, o crescimento do <strong>de</strong>semprego e do subemprego, a elevação do custo <strong>de</strong><br />

vida, entre outros. Assim, institui-se uma estrutura social favorável ao aparecimento<br />

<strong>de</strong> ocupações e táticas <strong>de</strong> sobrevivência em um cotidiano hostil. É preciso salientar<br />

que Manaus ainda concentra quase meta<strong>de</strong> da população economicamente ativa<br />

(PEA) do estado do Amazonas.<br />

O processo migratório revela-se bastante intenso, como indicam os dados da<br />

Tabela 1.<br />

Com o crescimento populacional, os espaços para a sociabilida<strong>de</strong> serão<br />

re<strong>de</strong>finidos, as vagas <strong>de</strong> emprego terão seu lugar <strong>de</strong> realização principal no Polo<br />

Industrial <strong>de</strong> Manaus (PIM), os locais <strong>de</strong> moradia serão reor<strong>de</strong>nados e reorganizados<br />

em conjuntos habitacionais e as ocupações informais irão se <strong>de</strong>senvolver, sobretudo,<br />

na periferia da cida<strong>de</strong>, entre outras transformações. Mais tar<strong>de</strong>, na década<br />

<strong>de</strong> 1990, os novos postos <strong>de</strong> trabalho (cargos, funções, rotinas) que surgem como<br />

resultado das transformações tecnológicas e da nova divisão internacional do tra-


150 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

balho passam a excluir os trabalhadores menos qualificados. Quer por limites <strong>de</strong><br />

faixa etária, quer por limitações <strong>de</strong> vagas nesses postos, o fato é que esses ex-trabalhadores<br />

não conseguirão voltar às fábricas. Relatos <strong>de</strong> ex-trabalhadores do PIM,<br />

durante as entrevistas, apontam a faixa etária como um dos obstáculos principais<br />

<strong>de</strong> retorno, e o nível <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> como o segundo fator.<br />

Tabela 1 Rota migratória para Manaus, Região Norte (2000). 2<br />

Cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> origem Frequência absoluta<br />

Frequência relativa<br />

Amazonas (interior) 163.061 78,87%<br />

Pará 36.293 17,55%<br />

Acre 4.926 2,38%<br />

Rondônia 1.944 0,94%<br />

Amapá 259 0,13%<br />

Roraima 130 0,06%<br />

Tocantins 130 0,06%<br />

Fonte: Tabela organizada por Oliveira (2009), com base nas informações do SEBRAE/AM.<br />

De outro modo, segundo Singer (1996), esses postos <strong>de</strong> trabalho são, muitas<br />

vezes, ocupações por conta própria, reais ou apenas formais, enquanto as ocupações<br />

para serviços altamente qualificados, como na indústria <strong>de</strong> microeletrônicos<br />

ou <strong>de</strong> informática, representam cargos ou ocupações bem remunerados e com vantagens<br />

extras. No PIM, os serviços <strong>de</strong> limpeza, contabilida<strong>de</strong>, vigilância, <strong>de</strong> refeição,<br />

transporte, entre outros, são realizados por pequenas firmas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

que geralmente empregam trabalhadores com (sub)contratos regulares. Os trabalhadores<br />

terceirizados retêm empregos <strong>de</strong> baixa remuneração e não participam das<br />

vantagens extras que o posto <strong>de</strong> trabalho oferece aos empregados não terceirizados.<br />

Desse modo, a precarização do trabalho toma a forma também <strong>de</strong> “relações ‘informais’<br />

ou ‘incompletas’ <strong>de</strong> emprego”.<br />

No final dos anos 1990, o número <strong>de</strong> empregados no PIM começa a <strong>de</strong>clinar,<br />

atingindo o patamar <strong>de</strong> 39.652 trabalhadores, uma queda significativa consi-<br />

2. Teve-se acesso a uma pesquisa do SEBRAE/AM feita em 2005, mas que não foi publicada.<br />

Ela foi realizada por solicitação do po<strong>de</strong>r público municipal da época para traçar um<br />

perfil socioeconômico do trabalho informal <strong>de</strong> camelôs e ambulantes do centro da cida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Manaus, com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saber <strong>de</strong> que maneira po<strong>de</strong>ria ser feita a transferência<br />

<strong>de</strong>sse contingente para um local apropriado e sem gerar conflitos mais significativos<br />

entre estes e o po<strong>de</strong>r público. A pesquisa do SEBRAE/AM (2005) não faz distinção entre<br />

os dois tipos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s realizadas por camelôs e ambulantes. Nossa investigação, no<br />

entanto, operacionaliza a distinção <strong>de</strong> ambos, que ocorre seja pela posição que ocupam<br />

na re<strong>de</strong> social da Praça da Matriz, seja pelos produtos que ven<strong>de</strong>m.


Cap. VIII As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus 151<br />

<strong>de</strong>rando-se que no começo da mesma década eram 76.798 os trabalhadores formalmente<br />

empregados. O <strong>de</strong>senvolvimento baseado na economia aberta e competitiva,<br />

característica do Brasil da década <strong>de</strong> 1990, passa a privilegiar o crescimento<br />

da produtivida<strong>de</strong> e a mo<strong>de</strong>rnização organizacional da fábrica, mas seu <strong>de</strong>sdobramento<br />

gera exclusão social, uma vez que as empresas passam a elevar substancialmente<br />

o nível do investimento em equipamentos, máquinas e automação visando<br />

diminuir o número <strong>de</strong> postos <strong>de</strong> trabalho e, consequentemente, reduzir o número<br />

<strong>de</strong> contratações (VALLE, 2007).<br />

EMPREGO E OCUPAÇÃO INFORMAL<br />

No mercado <strong>de</strong> trabalho, como espaço <strong>de</strong> trocas, <strong>de</strong> compra e venda, “o<br />

emprego resulta <strong>de</strong> um contrato pelo qual o empregador compra a força <strong>de</strong> trabalho<br />

ou a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir do empregado” (SINGER, 1996: 3). Ora, entre<br />

tantas ocupações possíveis, o emprego é uma das possibilida<strong>de</strong>s. Acreditar que o<br />

emprego é a única ocupação possível é um julgamento falho. Ocupação não é<br />

sinônimo <strong>de</strong> emprego. Segundo Paul Singer (1996), “ocupação compreen<strong>de</strong> toda<br />

ativida<strong>de</strong> que proporciona sustento a quem a exerce”. A ativida<strong>de</strong> autônoma, em<br />

franca expansão atualmente, é uma ocupação, como o é também o emprego público,<br />

o trabalho doméstico, os que executam ativida<strong>de</strong>s não remuneradas, os que<br />

vivem da mendicância, os que vivem da criminalida<strong>de</strong>, entre tantos outros tipos<br />

<strong>de</strong> ocupação. 3<br />

Nessa relação diversa e múltipla, entre ocupação e emprego, a população<br />

economicamente ativa 4 jamais será igual aos que efetivamente estão trabalhando<br />

em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma questão fundamental: sempre haverá um grupo <strong>de</strong> pessoas que<br />

está querendo trabalhar pela primeira vez ou que se encontra em trânsito <strong>de</strong> uma<br />

ocupação para outra.<br />

Mesmo os supranumerários irão procurar uma ocupação que lhes possibilite<br />

a sobrevivência nas franjas mais dissocializadas da socieda<strong>de</strong> (CASTEL, 1998).<br />

Nesses termos, é possível que a ocupação mais significativa, do emprego formal,<br />

marcada pelo contrato <strong>de</strong> trabalho por tempo in<strong>de</strong>terminado, esteja dando sinais<br />

<strong>de</strong> ampliação mais lenta, como atestam Castel (1998) e Malaguti (2000).<br />

3. População ocupada é uma subdivisão da PEA (a outra é população procurando trabalho),<br />

sendo que é representada sob o ponto <strong>de</strong> vista da posição que o indivíduo <strong>de</strong>tém<br />

na ocupação que exerce: empregado, empregador, trabalhador autônomo ou por conta<br />

própria. (MÉDICI & AGUIAR, 1986).<br />

4. População Economicamente Ativa (PEA) é um conceito econômico. É formada pelo<br />

conjunto <strong>de</strong> pessoas que se encontram efetivamente trabalhando ou em busca <strong>de</strong> trabalho.<br />

Portanto, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> um indivíduo, refletida em ações objetivas que <strong>de</strong>monstram<br />

a busca pelo trabalho, constitui-se em critério para classificá-lo como economicamente<br />

ativo (MÉDICI & AGUIAR, 1986).


152 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Observando o entorno da Praça da Matriz (Figura 1), é possível dizer que a<br />

ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvida pelos camelôs em Manaus, e todos os <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong><br />

sua interação com outras ocupações no comércio <strong>de</strong> rua, é uma <strong>de</strong>ntre as diversas<br />

ativida<strong>de</strong>s realizadas diariamente na Praça da Matriz. Por outro lado, para <strong>de</strong>terminados<br />

segmentos <strong>sociais</strong>, sobretudo aqueles que conformam os estratos médios<br />

da socieda<strong>de</strong> amazonense, o uso da via pública por essas ocupações promove uma<br />

<strong>de</strong>sfiguração e <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>namento do espaço urbano.<br />

Figura 1 Vista aérea da Praça da Matriz e seu entorno.<br />

Fonte: Google Maps, 2009.<br />

Na pesquisa <strong>de</strong> campo, pu<strong>de</strong>mos observar que o local <strong>de</strong> trabalho dos<br />

permissionários apresenta padronização <strong>de</strong> organização e certa formalida<strong>de</strong>. Isso<br />

se <strong>de</strong>ve à normatização do uso do espaço pelo po<strong>de</strong>r público, 5 que, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar<br />

o formato padrão das bancas (1,20 x 1,20 x 1,90) para a venda <strong>de</strong> mercadorias<br />

e o uso <strong>de</strong> uniformes i<strong>de</strong>ntificando o tipo <strong>de</strong> serviço e/ou produto, também<br />

<strong>de</strong>fine a realização das ativida<strong>de</strong>s em um espaço restrito e fiscalizado pela Prefeitura<br />

Municipal <strong>de</strong> Manaus.<br />

5. A Lei nº 674, <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2002, é relativa ao licenciamento e à fiscalização <strong>de</strong><br />

ativida<strong>de</strong>s em estabelecimentos e logradouros e integra o Conjunto <strong>de</strong> Posturas do<br />

Município <strong>de</strong> Manaus.


Cap. VIII As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus 153<br />

OS NÓS DA REDE ENTRE AS OCUPAÇÕES NA PRAÇA DA MATRIZ<br />

Uma hierarquia na constituição da re<strong>de</strong> foi percebida durante a pesquisa. Por<br />

um lado, camelôs e ambulantes se diferenciam: enquanto estes andam <strong>de</strong> um lado<br />

a outro na plataforma <strong>de</strong> ônibus e ven<strong>de</strong>m produtos <strong>de</strong> menor valor, os camelôs<br />

têm um ponto fixo e po<strong>de</strong>m mesmo ven<strong>de</strong>r equipamentos eletrônicos e joias (produtos<br />

<strong>de</strong> valor mais elevado) e costumam chamar a si mesmos <strong>de</strong> autônomos; por<br />

outro lado, ambos se distinguem dos chamados “invasores”, 6 vistos como concorrentes<br />

<strong>de</strong>sleais pela falta <strong>de</strong> autorização para estar em via pública.<br />

A relação <strong>de</strong> elos fortes, consi<strong>de</strong>rando o círculo <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong>s do indivíduo na<br />

composição da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ocupações da Praça da Matriz, <strong>de</strong>staca-se a partir da entrada<br />

na re<strong>de</strong> <strong>de</strong> camelôs e <strong>de</strong> sua permanência na ocupação; por exemplo, no caso<br />

daqueles que adquirem o ponto on<strong>de</strong> se localiza a banca a partir <strong>de</strong> um amigo ou<br />

parente próximo que já está fixo no local.<br />

Atuando como nós na re<strong>de</strong> social específica da Praça da Matriz, encontramos<br />

gran<strong>de</strong> diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos exercendo uma gama variada <strong>de</strong> ocupações.<br />

Esses nós, abaixo i<strong>de</strong>ntificados, constituem-se significativos e intensos para a formação<br />

<strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> social complexa e maleável que ajuda a compreen<strong>de</strong>r o funcionamento<br />

da ativida<strong>de</strong> informal e o modo pelo qual os trabalhadores nela se<br />

estabelecem, permanecem e a reproduzem.<br />

OS ARTISTAS E PREGADORES<br />

Este nó esteve presente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sempre na história das praças, basta se lembrar<br />

dos coretos das praças como lugar <strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong> músicos e artistas em geral.<br />

No entorno da Matriz, as apresentações têm um espaço <strong>de</strong>terminado: o calçadão<br />

do relógio municipal.<br />

Tanto as pregações evangélicas quanto as apresentações musicais na Praça da<br />

Matriz representam uma pausa na intensida<strong>de</strong> da movimentação do espaço urbano,<br />

da expectativa para o entretenimento, da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com a cultura popular. As<br />

pessoas interagem intensamente nesses momentos, seja na hora <strong>de</strong> dançar com os<br />

bailarinos da banda e com o próprio cantor, seja na hora <strong>de</strong> bater palmas e entoar<br />

as canções com os pregadores. Em qualquer momento, o show/espetáculo atrai um<br />

público que faz espontaneamente a “roda”, ficando em volta dos pregadores ou<br />

artistas não apenas para assistir, mas para com eles interagir. Os artesãos que esten<strong>de</strong>m<br />

panos sobre os bancos <strong>de</strong> pedra ou sobre o chão para a exposição <strong>de</strong> suas<br />

peças são também constituintes <strong>de</strong>sse nó. São homens e mulheres, jovens e adultos,<br />

alguns com crianças <strong>de</strong> colo, ven<strong>de</strong>ndo e produzindo, ali mesmo, as peças <strong>de</strong><br />

6. “Invasores” são aqueles que, sem autorização <strong>de</strong> permissionários, ven<strong>de</strong>m seus produtos<br />

no entorno da Praça: mingau, verduras e frutas, café da manhã, merenda, peixes,<br />

entre outros.


154 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

metal, <strong>de</strong> massa e sementes da região, entre outros materiais que são utilizados na<br />

produção dos artefatos.<br />

O CARREGADOR DE BANCAS<br />

É um nó extremamente importante tanto para o “fechamento”, que ocorre<br />

na parte da noite, quanto para a “abertura” do trabalho, pela manhã. Utilizam o<br />

próprio corpo como alavanca, guindaste ou força <strong>de</strong> tração. No fim do expediente,<br />

empurram a banca até um local escolhido como <strong>de</strong>pósito/estacionamento <strong>de</strong> veículos<br />

<strong>de</strong> bancas para, no outro dia, trazê-las <strong>de</strong> volta. Muitos camelôs do entorno<br />

da Praça <strong>de</strong>ixam sua banca no próprio local <strong>de</strong> trabalho; outros, porém, preferem<br />

dispor dos serviços do carregador, pois acreditam ser mais seguro guardar seus<br />

produtos em lugar distante dos olhares e mãos dos frequentadores noturnos da<br />

Praça.<br />

OS FISCAIS DA PREFEITURA<br />

O grupo que representa o po<strong>de</strong>r público mostrou-se um nó importante entre<br />

as ações da Prefeitura e os permissionários do Centro; sua atuação, no entanto,<br />

revelou-se controversa, como se po<strong>de</strong> observar na tabulação dos dados que aferiu<br />

a importância do fiscal em relação ao trabalho dos camelôs: 30% dos informantes<br />

responsabilizaram os fiscais pelo expressivo aumento <strong>de</strong> ambulantes e outros ven<strong>de</strong>dores<br />

na Praça da Matriz. Outros 60% julgaram importante e eficiente o trabalho<br />

dos fiscais para coibir a “bagunça” do Centro; os 10% restantes consi<strong>de</strong>raram<br />

a atuação dos fiscais como muito importante e acima das suas expectativas.<br />

A rotina <strong>de</strong> trabalho dos fiscais é <strong>de</strong> seis horas diárias (das 8 às 14 horas),<br />

po<strong>de</strong>ndo se iniciar mais cedo e se esten<strong>de</strong>r após o horário, caso haja uma operação<br />

especial. Segundo a chefia dos fiscais, ao todo são apenas duas equipes que se revezam<br />

no trabalho <strong>de</strong> fiscalização <strong>de</strong> todo o Centro, sendo 15 no turno matutino<br />

e 15 no turno vespertino, e apenas 5 fiscais no entorno da Praça. É um número<br />

insignificante tendo em vista a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> permissionários existentes no centro<br />

e, particularmente, na Praça da Matriz.<br />

Um informante fiscal salienta:<br />

“No dia a dia, a rotina é fazer uma varredura em toda a área [da Matriz], ver<br />

o que tá irregular, ver o que tá certo e o que tá errado. Ver os lanches, se falta<br />

higiene, e como estão as carteirinhas [cadastro do permissionário], se tem algum<br />

não autorizado, a situação dos CDs piratas, os invasores, que têm muitos<br />

por aqui.”<br />

A punição (advertência, multa, lacre da banca e suspensão da permissão)<br />

também faz parte da rotina dos fiscais, mesmo que não seja a ação punitiva a opção<br />

<strong>de</strong>sejável, segundo um dos fiscais entrevistados. Ainda, as sanções previstas


Cap. VIII As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus 155<br />

po<strong>de</strong>m incidir sobre o permissionário caso a sua ausência no horário estabelecido<br />

para o funcionamento da banca não seja comunicada com a <strong>de</strong>vida antecedência.<br />

A título <strong>de</strong> explicitação da aplicabilida<strong>de</strong> da sanção, o fiscal informou que, quando<br />

um permissionário não cumpre suas obrigações – por exemplo, a banca <strong>de</strong> café<br />

não funcionar após as 10 horas –, ele po<strong>de</strong> ser suspenso. O <strong>de</strong>poimento do fiscal<br />

entrevistado é bastante ilustrativo:<br />

AGIOTAS<br />

“A gente vai lá duas, três vezes, notifica ele, faz um relatório <strong>de</strong> que tá passando<br />

do horário [banca <strong>de</strong> café da manhã], não tá cumprindo com o horário, aí<br />

a gente notifica e manda pra secretaria. Aí lá ele é suspenso um dia, dois dias,<br />

conforme se ele não agredir o fiscal. Se fizer isso passa a ser mais penalizado,<br />

conforme a agressão, uma semana, duas semanas [<strong>de</strong> afastamento da banca].”<br />

O agiota é uma figura muito citada pelos camelôs, e sua presença po<strong>de</strong> ser<br />

percebida durante algumas entrevistas. Os camelôs tomam pequenos empréstimos<br />

dos agiotas para diversas finalida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong>ntre elas, e com mais frequência, para a<br />

compra <strong>de</strong> mercadorias e <strong>de</strong>spesas pessoais. Um dos entrevistados apontou um<br />

agiota para quem <strong>de</strong>via um montante <strong>de</strong> R$ 500,00 e a quem pagava parcelas diárias<br />

<strong>de</strong> R$ 15,00. Em dado momento do trabalho <strong>de</strong> campo, no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> uma<br />

entrevista, um agiota apareceu para cobrar o pagamento do empréstimo contraído<br />

pelo informante entrevistado. O camelô, após o pagamento, fez a <strong>de</strong>vida anotação<br />

em seu ca<strong>de</strong>rno contábil e <strong>de</strong>pois mostrou-nos o registro das parcelas pagas e as<br />

que estavam para vencer. De acordo com as informações coletadas com os diversos<br />

camelôs entrevistados, os pagamentos parcelados são recolhidos diariamente<br />

pelo agiota nas próprias bancas dos permissionários endividados.<br />

“INVASORES”<br />

Tanto os fiscais quanto os camelôs mencionaram aqueles que são chamados<br />

<strong>de</strong> “invasores”. Trata-se dos ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> rua que trabalham sem autorização, isto<br />

é, não têm permissão legal para exercer essa ocupação, o que os torna diferentes<br />

dos permissionários (camelôs ou ambulantes) que têm carteirinha emitida pela<br />

Secretaria <strong>de</strong> Abastecimento <strong>de</strong> Mercados e Feiras (SEMAGA).<br />

Os “invasores” utilizam modalida<strong>de</strong>s distintas para a realização do seu trabalho:<br />

alguns seguram nos braços as mercadorias e as oferecem aos transeuntes que<br />

por ali passam; outros adotam um carrinho <strong>de</strong> mão (típica ferramenta <strong>de</strong> transporte<br />

e exposição <strong>de</strong> produtos, forrada <strong>de</strong> papelão ou com um tabuleiro) e expõem<br />

nele a sua mercadoria. Os “invasores” que usam o carrinho <strong>de</strong> mão escolhem um<br />

produto específico para ven<strong>de</strong>r, que varia <strong>de</strong> frutas e verduras a cereais e mingaus,<br />

passando pelo café da manhã e alcançando peixes diversos e até ban<strong>de</strong>jas <strong>de</strong> iogurte,<br />

entre muitos outros colocados à disposição do público consumidor que circula


156 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

diariamente e em ritmo frenético pelo local. Aqueles que carregam os produtos nos<br />

braços ven<strong>de</strong>m meias, cintos, peças íntimas, CD “pirata”, lenços, entre outros que<br />

consigam carregar.<br />

É após as 18 horas, quando os permissionários já recolheram suas bancas,<br />

que tanto a Praça da Matriz quanto a Plataforma da Estação Central ficam repletas<br />

<strong>de</strong> “invasores” que aproveitam a ausência <strong>de</strong> fiscalização para ven<strong>de</strong>r seus produtos<br />

nos carrinhos <strong>de</strong> mão.<br />

Para os camelôs, os “invasores” precisam ganhar o pão <strong>de</strong> cada dia, sendo justo<br />

que permaneçam no local nos horários acordados com a SEMAGA, qual seja, das<br />

18 às 10 horas do dia seguinte. Fora <strong>de</strong>sse horário, os camelôs consi<strong>de</strong>ram inaceitável<br />

a presença dos “invasores”, pois os veem como concorrentes em potencial.<br />

Em situações <strong>de</strong>ssa natureza, os camelôs consi<strong>de</strong>ram que os “invasores” infratores<br />

<strong>de</strong>vem ser punidos pela SEMAGA pela quebra <strong>de</strong> acordo. Para vários dos<br />

permissionários entrevistados, os “invasores” contribuem para inchar ainda mais<br />

o lugar, atrapalhando as vendas.<br />

OFICINAS DE CONSTRUÇÃO E REFORMA DE BANCAS<br />

Este é o nó <strong>de</strong> produção da materialida<strong>de</strong> principal da ocupação do camelô:<br />

a banca. Um camelô é reconhecido e diferenciado em sua ocupação pela estrutura<br />

<strong>de</strong> sua banca, que é diversa <strong>de</strong> outros modos <strong>de</strong> exposição <strong>de</strong> mercadorias, como o<br />

carrinho <strong>de</strong> mão, simples gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pendurar produtos, tabuleiros <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira ou<br />

as próprias mãos. Essas pequenas oficinas se localizam próximas à Praça da Matriz,<br />

sobretudo na Avenida Sete <strong>de</strong> Setembro. Nesses locais realiza-se o conserto<br />

das bancas, bem como sua própria construção e pintura, além <strong>de</strong> reparos e pinturas<br />

em carros-lanche ou carrinhos <strong>de</strong> mão que transportam frutas, verduras, mingaus,<br />

cereais, etc. Além disso, as oficinas servem <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósito, local para on<strong>de</strong> os<br />

carregadores <strong>de</strong> bancas as levam ao fim do dia <strong>de</strong> trabalho dos permissionários.<br />

O VENDEDOR DE ÁGUA<br />

Este se ocupa da venda <strong>de</strong> água e gelo para os camelôs e carros-lanche que<br />

estão no entorno. O veículo usado pelo ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> água é um tipo <strong>de</strong> triciclo com<br />

um gran<strong>de</strong> gra<strong>de</strong>ado, on<strong>de</strong> coloca os sacos <strong>de</strong> gelo e os garrafões <strong>de</strong> água; por vezes,<br />

carrega engradados <strong>de</strong> refrigerante.<br />

Há, porém, um “carroceiro” específico para os refrigerantes. Ele po<strong>de</strong>, também,<br />

apresentar- se com um carrinho do tipo utilizado no supermercado, procedimento<br />

que facilita ainda mais seu <strong>de</strong>slocamento entre as bancas. Além <strong>de</strong> encher<br />

com água a garrafa térmica do camelô, ele oferece copos <strong>de</strong>scartáveis e cubos <strong>de</strong><br />

gelo. Não foi possível i<strong>de</strong>ntificar, no <strong>de</strong>correr da pesquisa, a procedência da água<br />

vendida.


O VENDEDOR DE CAFÉ<br />

Cap. VIII As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus 157<br />

Este é um dos grupos que mais transitam no entorno da Praça. A maioria é<br />

composta por mulheres jovens que empurram um carrinho <strong>de</strong> feira com diversas<br />

garrafas <strong>de</strong> café (alguns com 10 a 15 garrafas térmicas). O café oferecido para os<br />

transeuntes e para os camelôs é servido num copinho <strong>de</strong>scartável. Algumas <strong>de</strong>ssas<br />

mulheres ven<strong>de</strong>m também carteiras <strong>de</strong> cigarros ou cigarros a retalho para aumentar<br />

a renda diária.<br />

O VENDEDOR DE LANCHE<br />

Não sendo o permissionário comum do lugar, o ven<strong>de</strong>dor <strong>de</strong> lanche está mais<br />

ligado à figura do “invasor”. Ven<strong>de</strong> seus salgados e sucos sobre a bicicleta ou carregando-os<br />

nos braços em vasilhas plásticas. Durante uma das entrevistas, um <strong>de</strong>sses<br />

ven<strong>de</strong>dores interpelou o camelô para cobrar o pagamento do lanche. Isso significa<br />

que a merenda po<strong>de</strong> ser paga na hora ou no final do dia, na medida em que eles<br />

circulam tanto pela manhã quanto à tar<strong>de</strong>.<br />

O VENDEDOR DE ALMOÇO EM MARMITA<br />

Os ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> almoço iniciam seu trabalho a partir das 11 horas, quando<br />

po<strong>de</strong>m ser vistos por todo o centro, entre as bancas, com suas sacolas <strong>de</strong> náilon<br />

cheias <strong>de</strong> marmitas. Alguns têm clientes certos. São mulheres e homens ven<strong>de</strong>ndo<br />

almoço em marmitas a R$ 5,00 cada. Seus clientes são tanto os camelôs quanto os<br />

transeuntes, ven<strong>de</strong>dores “intrusos”, artesãos e outros frequentadores da Praça. Os<br />

comensais <strong>de</strong>ixam a marmita sobre as pernas ou num lugar improvisado como mesa.<br />

E ficam à vonta<strong>de</strong>, sem se preocupar com o movimento em volta, parando muitas<br />

vezes para aten<strong>de</strong>r aos compradores que se aproximam da banca. Todos os camelôs<br />

entrevistados afirmaram comprar seu almoço <strong>de</strong>sses ven<strong>de</strong>dores.<br />

O VIGILANTE<br />

Não foi possível saber a partir <strong>de</strong> quando este nó apareceu na re<strong>de</strong>. Mas se<br />

tornou tão importante que se <strong>de</strong>sdobrou em verda<strong>de</strong>iros acordos <strong>de</strong> segurança<br />

privada. Os camelôs pagam a um grupo <strong>de</strong> vigilantes para, após o expediente do<br />

dia, vigiarem as bancas que ficam nas ruas e os carros-lanches. Todos os entrevistados,<br />

quando indagados sobre os serviços <strong>de</strong> vigilância existentes na Praça, confirmaram<br />

a exigência <strong>de</strong> pagamento semanal. Algumas bancas pagam R$ 10,00 por<br />

dia; outras, R$ 15,00.<br />

O valor <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> do produto vendido na banca. Se forem pulseiras ou joias<br />

folheadas a ouro, o preço da vigilância é mais alto; se forem apenas miu<strong>de</strong>zas, é<br />

menor. Durante as entrevistas, alguns informantes disseram terem sido roubados<br />

e que a vigilância i<strong>de</strong>ntificou quem havia praticado o roubo; outras vezes, no en-


158 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

tanto, produtos sumiram, mas a vigilância não conseguiu i<strong>de</strong>ntificar os autores nem<br />

ressarciu os permissionários. Os entrevistados afirmaram que, nesse caso, é um<br />

serviço oferecido apenas no perímetro da Praça da Matriz por um grupo <strong>de</strong> seis<br />

vigilantes e alguém que os chefia, mas isso não significa que não existam indivíduos<br />

isolados que prestem o serviço.<br />

ELOS RELACIONAIS ENTRE AS DIVERSAS OCUPAÇÕES<br />

EXERCIDAS NO ENTORNO DA PRAÇA DA MATRIZ<br />

A configuração dos elos entre as diversas ocupações acima i<strong>de</strong>ntificadas tornou-se<br />

possível a partir das observações feitas durante o período <strong>de</strong> realização do<br />

trabalho <strong>de</strong> campo e das entrevistas realizadas com os permissionários. As falas e<br />

as práticas que se <strong>de</strong>stacaram nesse momento ajudaram a compor a formação do<br />

quadro. Cada grupo é parte <strong>de</strong> um elo que forma a re<strong>de</strong> da Praça da Matriz das<br />

ocupações <strong>de</strong>senvolvidas em seu entorno. A inter<strong>de</strong>pendência entre <strong>de</strong>terminados<br />

grupos ajuda na permanência e no <strong>de</strong>senvolvimento das ativida<strong>de</strong>s da maioria, como<br />

o camelô que não precisa sair <strong>de</strong> sua banca para almoçar, pois o alimento lhe é<br />

vendido ali mesmo a um custo baixo em comparação com os restaurantes do Centro,<br />

ou o agiota que por meio <strong>de</strong> empréstimos traz ao camelô o crédito rápido, ou<br />

mesmo os carregadores que fazem o transporte <strong>de</strong> engradados <strong>de</strong> refrigerantes para<br />

os carros-lanche.<br />

Ambulantes<br />

G<br />

B<br />

Ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> almoço<br />

D<br />

Ven<strong>de</strong>dores <strong>de</strong> água<br />

I<br />

Falsificadores<br />

Camelôs<br />

A<br />

Agiotas<br />

F<br />

Artistas e pregadores<br />

H<br />

Fonte: OLIVEIRA, 2009.<br />

Fiscais<br />

C<br />

Invasores<br />

E<br />

Consumidores<br />

J


Cap. VIII As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus 159<br />

Foram i<strong>de</strong>ntificados, a partir <strong>de</strong>sse quadro: a) os elos relacionais entre camelôs,<br />

ambulantes e fiscais (grupos A, B e C, chamados <strong>de</strong> G1); o grau <strong>de</strong> estreitamento<br />

das ativida<strong>de</strong>s entre eles é intenso <strong>de</strong>vido à condição <strong>de</strong> permissionários e o fiscal<br />

como ponte com o po<strong>de</strong>r público; b) os elos relacionais nos grupos D, E e F (que<br />

chamaremos <strong>de</strong> G2) têm similarida<strong>de</strong> justamente porque nenhum <strong>de</strong>les é<br />

permissionário, mas são ativos e importantes no cotidiano da re<strong>de</strong>; o grau <strong>de</strong> aproximação<br />

entre G1 e G2 fica evi<strong>de</strong>nte pelas relações mais estreitas com o grupo F,<br />

excetuando-se o grupo C; c) os elos relacionais dos grupos G, H, I e J (que chamamos<br />

<strong>de</strong> G3) são diferenciados; enquanto o grupo G estreita os elos com G1 e G2<br />

(excetuando-se, para este caso, os grupos J, F e C), o grupo J aumenta a aproximação<br />

das relações com os grupos I e H, então, o estreitamento do G1 e do G2 em<br />

relação ao G3 ten<strong>de</strong> a ser menor.<br />

À medida que esses grupos agem <strong>de</strong> modo simultâneo e o grau da intensida<strong>de</strong><br />

nodal é diferenciado, temos a impressão <strong>de</strong> que, em que pesem as diferentes<br />

ocupações exercidas nos vários grupos distintos, as relações que se <strong>de</strong>senvolvem<br />

acabam por estabelecer elos <strong>de</strong> ajuda mútua e por favorecer a atração <strong>de</strong> outros<br />

indivíduos para o interior <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sses grupos ocupacionais. Essa percepção<br />

vai se consolidando quando se observam as práticas e o cenário em que atuam esses<br />

atores <strong>sociais</strong>, envolvidos em estratégias <strong>de</strong> sobrevivência e tentando escapar, o<br />

quanto possível, da normatização, or<strong>de</strong>namento e fiscalização do po<strong>de</strong>r público.<br />

Na tentativa <strong>de</strong> se incorporar <strong>de</strong> algum modo na estrutura social, esses atores<br />

são conduzidos a uma integração social nas fissuras abertas nos limites do mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho formal, especialmente para aqueles que já não encontram on<strong>de</strong><br />

ven<strong>de</strong>r sua força <strong>de</strong> trabalho. Esses personagens atuam no espaço público, porém<br />

não existe uma condição <strong>de</strong> equilíbrio entre eles. A existência <strong>de</strong> uma hierarquia<br />

entre camelôs, ambulantes e “invasores” <strong>de</strong>monstra bem essa realida<strong>de</strong>. Os “invasores”,<br />

diferentemente dos camelôs e ambulantes, não po<strong>de</strong>m atuar nas vias públicas,<br />

por isso aparecem <strong>de</strong> manhã cedo ou após as 18 horas, quando os fiscais<br />

estão ausentes e os permissionários já encerraram suas ativida<strong>de</strong>s e venda. Por outro<br />

lado, os ambulantes buscam um ponto fixo típico <strong>de</strong> camelô para <strong>de</strong>ixarem <strong>de</strong> ir<br />

<strong>de</strong> um lado a outro da plataforma central e do entorno da Praça da Matriz.<br />

AS REDES SOCIAIS NA PRÁTICA COTIDIANA<br />

A prática <strong>de</strong> ajuda mútua que permeia as relações <strong>de</strong> trabalho informal entre<br />

os camelôs da Praça da Matriz aponta para um mecanismo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância<br />

quando se quer falar da entrada e da permanência <strong>de</strong>sses atores <strong>sociais</strong> no entorno<br />

da Praça da Matriz. Não se <strong>de</strong>ve entendê-la, porém, como uma ausência <strong>de</strong> regras<br />

ou permissões entre aqueles que já possuem a legitimida<strong>de</strong> dada pelo tempo <strong>de</strong><br />

ocupação do ponto <strong>de</strong> trabalho, posto que os permissionários reconhecem um<br />

novato e procuram ver nele a disposição para se adaptar a esse tipo <strong>de</strong> ocupação.<br />

São os conhecimentos adquiridos e o uso <strong>de</strong> contatos das re<strong>de</strong>s pessoais que dão


160 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

o toque <strong>de</strong> entrada e trânsito entre os que vivem <strong>de</strong>ssa ocupação. Essa característica<br />

da ajuda mútua associada à parceria, inerente à socieda<strong>de</strong> camponesa do caboclo<br />

da região como processo grupal <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, ganha novo enfoque e<br />

entendimento no cenário do trabalho urbano e informal.<br />

Há indícios suficientes para se construir uma abordagem que vincule as questões<br />

<strong>de</strong> dimensão macrossocial à dimensão microssocial no que tange às construções<br />

<strong>de</strong> táticas do grupo <strong>de</strong> trabalhadores informais enquanto <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong><br />

sua mobilida<strong>de</strong> ou sobrevivência na ocupação. No caso estudado, os indícios aparecem<br />

a partir da migração familiar, do <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> populações das regiões<br />

estagnadas do interior do estado do Amazonas e <strong>de</strong>mais localida<strong>de</strong>s próximas ou<br />

distantes <strong>de</strong> Manaus.<br />

De outro modo, o conceito <strong>de</strong> re<strong>de</strong> implica o entendimento <strong>de</strong> que o contato<br />

entre os atores, admitindo-se que seja visual ou físico, é um contato social que po<strong>de</strong><br />

acontecer mesmo entre pessoas que não se conhecem, mas que possuem certo sentimento<br />

<strong>de</strong> pertencer a um lugar em comum, nesse caso, o lugar <strong>de</strong> trabalho compartilhado<br />

com outros atores <strong>sociais</strong>. A re<strong>de</strong> social implica uma noção <strong>de</strong><br />

pertencimento, mesmo que alguns atores <strong>sociais</strong> não se reconheçam como fazendo<br />

parte <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong>terminado. Isto contribuiu fundamentalmente para se<br />

pensar melhor a Praça da Matriz, ocupada e utilizada por atores <strong>sociais</strong> com origens<br />

diversas, histórias e trajetórias também diversas, que tecem suas ocupações<br />

no espaço público há um tempo variado, mas que estão inseridos, cada um, numa<br />

re<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada <strong>de</strong> relações <strong>sociais</strong> que os levaram até ali.<br />

Por isso, os <strong>processos</strong> organizativos <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> entre os camelôs substituem<br />

a racionalização burocrática dos contratos formais na medida em que a confiança<br />

nas relações <strong>de</strong> parentesco e na parceria com amigos consolida um tipo <strong>de</strong><br />

processo associativo por meio <strong>de</strong> acordos, ajustes, reciprocida<strong>de</strong> para o<br />

enfrentamento das condições <strong>de</strong> trabalho na Praça da Matriz. Como marca <strong>de</strong><br />

<strong>processos</strong> organizativos por meio <strong>de</strong> acordo verbal que <strong>de</strong>sconhece os contratos<br />

formais e a legalização burocrática, po<strong>de</strong>-se citar, por exemplo, o empréstimo do<br />

agiota para o permissionário que exclui o reconhecimento <strong>de</strong> firma.<br />

Assim, os estabelecimentos <strong>de</strong> vínculos <strong>sociais</strong> em re<strong>de</strong>s informais para os<br />

trabalhadores <strong>de</strong> baixa renda apresentam diferentes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> organizações<br />

e novas trajetórias para esse segmento ocupacional. O apoio no trabalho cotidiano,<br />

envolvendo negociações e parceria com aqueles que estão ao redor, os acordos<br />

com os fiscais durante as ocorrências <strong>de</strong> fiscalização e a ajuda mútua <strong>de</strong> familiares<br />

e amigos proporcionam, para esses trabalhadores, mecanismos <strong>de</strong> entrada no mercado<br />

<strong>de</strong> trabalho informal e a garantia <strong>de</strong> sobrevivência, ainda que em condições<br />

precárias.


Cap. VIII As Re<strong>de</strong>s Sociais e as Ativida<strong>de</strong>s Informais no Centro <strong>de</strong> Manaus 161<br />

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CAPÍTULO IX<br />

TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE, GESTÃO<br />

INTRODUÇÃO<br />

DO CONHECIMENTO, GLOBALIZAÇÃO E<br />

DESENVOLVIMENTO REGIONAL<br />

Noval Benayon Mello<br />

Márcia Cristina Pereira <strong>de</strong> Melo Fittipaldy<br />

Bartolomeu Lima da Costa<br />

O território po<strong>de</strong> ser compreendido como produto da materialida<strong>de</strong> técnica<br />

das socieda<strong>de</strong>s; um campo <strong>de</strong> forças políticas no qual as ações humanas constroem<br />

as marcas e projetam suas dimensões socioespaciais através das múltiplas<br />

territorialida<strong>de</strong>s (SANTOS, 1996). Estas, por sua vez, proporcionam a formulação<br />

<strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> controle/po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> um grupo social sobre um <strong>de</strong>terminado espaço<br />

através do fortalecimento <strong>de</strong> forças econômicas, políticas e culturais. O entendimento<br />

<strong>de</strong> tais relações estabelecidas no espaço é necessário para compreen<strong>de</strong>r as constantes<br />

transformações contemporâneas do mundo globalizado e <strong>de</strong>sigual.<br />

Po<strong>de</strong>mos afirmar que a contradição do processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico e social <strong>de</strong> um país ou região constitui-se, ainda hoje, um dos gran<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong>safios para todas as áreas concernentes ao seu bem-estar. Diversas são as teorias<br />

e vertentes que buscam explicações para os problemas do sub<strong>de</strong>senvolvimento que<br />

afligem gran<strong>de</strong> parte dos países que adotam a or<strong>de</strong>m sociometabólica do capital<br />

(MÉSZÁROS, 2002). As tendências atuais convergem para um enfoque centrado<br />

na premissa <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, com práticas socialmente justas,<br />

ecologicamente corretas e economicamente viáveis.<br />

Sem dúvida, a importância do bem-estar <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> é algo<br />

inquestionável. Entretanto, para alcançá-lo precisamos encontrar mecanismos eficientes<br />

e eficazes que contribuam para sua promoção, <strong>de</strong>monstrando, acima <strong>de</strong> tudo,<br />

a melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Assim, ciência, tecnologia e inovação (CT&I)<br />

constituem instrumentos com os quais as socieda<strong>de</strong>s contemporâneas têm buscado<br />

o <strong>de</strong>senvolvimento baseado na formação dos capitais humano, intelectual e<br />

social. Contudo, é válido atentar para o fato <strong>de</strong> que uma socieda<strong>de</strong> é pautada por<br />

diferentes realida<strong>de</strong>s socioeconômicas, políticas, culturais e ambientais e que estas<br />

<strong>de</strong>vem compor o embasamento dos objetivos das políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

regional.


164 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Nessa perspectiva, fazem-se necessárias uma interação e a cooperação efetiva<br />

<strong>de</strong> agentes públicos e privados, com visões semelhantes para elaboração <strong>de</strong> soluções<br />

concretas. As parcerias são capazes <strong>de</strong> fomentar novos formatos<br />

organizacionais, conhecidos como arranjos produtivos locais (clusters, polos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento, distrito industrial, <strong>de</strong>ntre outros), em que as empresas se aglomeram<br />

em um mesmo território, visando ao fortalecimento através da interação,<br />

geração, aquisição e difusão <strong>de</strong> conhecimentos e inovações técnico-científicas.<br />

O objetivo <strong>de</strong>ste capítulo é discutir o papel da CT&I como ferramenta relevante<br />

ao processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento regional e local, dando ênfase aos capitais<br />

humano, intelectual e social como impulsores <strong>de</strong>sse processo, intimamente ligados<br />

às múltiplas relações socioespaciais contidas nos territórios globalizados. Para atingir<br />

o objetivo a que se propõe, a estrutura textual está subdividida em quatro partes.<br />

Na primeira, discutem-se o território e a territorialida<strong>de</strong> como elementos<br />

indispensáveis para a compreensão das múltiplas relações socioespaciais. A segunda<br />

trata da intensificação do processo <strong>de</strong> globalização da economia mundial e das principais<br />

mudanças tecnológicas inseridas no contexto do <strong>de</strong>senvolvimento regional. A<br />

terceira parte, além <strong>de</strong> explicitar a importância da aquisição <strong>de</strong> novas capacitações e<br />

conhecimentos como fatores prepon<strong>de</strong>rantes à aptidão e assimilação <strong>de</strong> inovação e<br />

competitivida<strong>de</strong> no ambiente global, também expõe o problema da insuficiência <strong>de</strong><br />

políticas públicas comprometidas com as especificida<strong>de</strong>s locais e regionais e com a<br />

promoção da ciência e a tecnologia no Brasil. A última parte mostra a importância<br />

das organizações locais como parceiras privilegiadas na aquisição, difusão do conhecimento<br />

e inovações imprescindíveis ao <strong>de</strong>senvolvimento regional.<br />

TERRITÓRIO E TERRITORIALIDADE<br />

O conceito <strong>de</strong> território surge nas Ciências Sociais associado a uma dimensão<br />

<strong>de</strong> apropriação e/ou sentimento <strong>de</strong> pertencimento, sendo essa apropriação no<br />

sentido <strong>de</strong> controle efetivo por parte <strong>de</strong> instituições ou grupos sobre um dado segmento<br />

do espaço concreto em si (com seus atributos naturais e socialmente<br />

construídos), que é apropriado, ocupado por um grupo social. Ao longo <strong>de</strong> sua<br />

evolução paradigmática, tal conceito sofreu várias ressignificações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua<br />

vinculação ao domínio espacial do Estado-nação até as novas perspectivas.<br />

Quando nos propomos a compreen<strong>de</strong>r as múltiplas relações socioespaciais é<br />

necessário distinguir entre espaço e território, apesar <strong>de</strong> ambos serem produzidos<br />

e reproduzidos dialeticamente <strong>de</strong> forma articulada. Para Fernan<strong>de</strong>s (2005: 2), o<br />

espaço é “multidimensional, multiescalar, em intenso processo <strong>de</strong><br />

complementarida<strong>de</strong>, conflitualida<strong>de</strong> e interação”. Para compreendê-lo <strong>de</strong>vem-se<br />

consi<strong>de</strong>rar as várias dimensões das relações <strong>sociais</strong>, já que o espaço geográfico é<br />

formado pelos elementos da natureza e também pelas dimensões <strong>sociais</strong>, produzidas<br />

pelas relações entre as pessoas (a socieda<strong>de</strong>), como a cultura, a política, a economia,<br />

etc. Tendo em vista que,


Cap. IX Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento, Globalização... 165<br />

“Sempre que houver homens em interação com um espaço, primeiramente,<br />

transformando a natureza (espaço natural) através do trabalho, e <strong>de</strong>pois criando<br />

continuamente valor ao modificar e retrabalhar o espaço social, estar-seá,<br />

também, diante <strong>de</strong> um território e não só <strong>de</strong> um espaço econômico: é<br />

inconcebível que um espaço que tenha sido alvo <strong>de</strong> valorização pelo trabalho<br />

possa <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> estar territorializado por alguém. Assim, como o po<strong>de</strong>r é<br />

onipresente nas relações <strong>sociais</strong>, o território está, outrossim, presente em toda<br />

a espacialida<strong>de</strong> social – ao menos enquanto o homem também estiver presente.<br />

[Visto que], se todo território pressupõe um espaço social, nem todo espaço<br />

social é um território (...)” (SOUSA, 2001: 96).<br />

Essa opinião é também compartilhada por Raffestin (1993: 144), para quem<br />

o espaço é diferente <strong>de</strong> território, pois o mesmo antece<strong>de</strong> o território e este se forma<br />

a partir do espaço geográfico via as relações que são estabelecidas no meio social.<br />

Nesse sentido afirma que: “(...) o território se apóia no espaço, mas não é o espaço.<br />

É uma produção, a partir do espaço. (...) Qualquer projeto no espaço que é<br />

expresso por uma representação revela a imagem <strong>de</strong>sejada <strong>de</strong> um território, <strong>de</strong> um<br />

local <strong>de</strong> relações”. Esta <strong>de</strong>finição, <strong>de</strong>ntre outros aspectos, revela as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />

que produzem o território, mas <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra que o espaço também é produzido<br />

socialmente, e não é um a priori, mas, ao contrário, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma instância<br />

da socieda<strong>de</strong> (SANTOS, 1996).<br />

Raffestin (1993) afirma que o po<strong>de</strong>r correspon<strong>de</strong> à habilida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong><br />

agir em comum acordo, o mesmo jamais é proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um único indivíduo, mas<br />

representa um <strong>de</strong>terminado grupo social. O po<strong>de</strong>r visa ao controle e à dominação<br />

sobre os homens e sobre as coisas. O autor <strong>de</strong>staca ainda que o território está<br />

estruturado a partir <strong>de</strong> “tessituras, nós e re<strong>de</strong>s”, passíveis <strong>de</strong> aplicação e <strong>de</strong>senvolvimento<br />

do capital social, os quais estão organizados hierarquicamente a fim <strong>de</strong><br />

assegurar o controle sobre aquilo que po<strong>de</strong> ser possuído, permitindo a realização<br />

da integração e a conexão dos territórios por meio das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Nesse<br />

sentido:<br />

“Tessituras, nós e re<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser muito diferentes <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> para outra,<br />

mas estão sempre presentes. Quer sejam formados a partir do princípio da<br />

proprieda<strong>de</strong> privada ou coletiva, nós os encontramos em todas as práticas espaciais.<br />

(...) Com as tessituras, os nós e as re<strong>de</strong>s temos três subconjuntos estruturais<br />

aparentemente multiformes, mas que são, <strong>de</strong> fato, imagens possíveis<br />

<strong>de</strong> uma mesma estrutura base” (RAFFESTIN, 1993: 151).<br />

O ponto-chave é que o po<strong>de</strong>r é construído, é exercido nas relações, por isso<br />

seu caráter relacional e sua importância para compreen<strong>de</strong>r a produção <strong>de</strong> território<br />

e territorialida<strong>de</strong>s nas diversas escalas geográficas. Assim,<br />

“Os territórios <strong>de</strong> um país, <strong>de</strong> um estado, <strong>de</strong> um município ou <strong>de</strong> uma proprieda<strong>de</strong><br />

são totalida<strong>de</strong>s diferenciadas pelas relações <strong>sociais</strong> e escalas geográficas.


166 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Essas totalida<strong>de</strong>s são multidimensionais e só são completas neste sentido, ou<br />

seja, relacionando sempre a dimensão política com todas as outras dimensões:<br />

social, ambiental, cultural, econômica, etc.” (FERNANDES, 2008: 279).<br />

Portanto, o território po<strong>de</strong> ser concebido “a partir da imbricação <strong>de</strong> múltiplas<br />

relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, do po<strong>de</strong>r mais material das relações econômico-políticas ao<br />

po<strong>de</strong>r mais simbólico das relações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mais estritamente cultural”<br />

(HAESBAERT, 2006: 79). Além disso, sabemos que a produção do espaço <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><br />

das relações <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre um grupo social e seu espaço, que o produz e<br />

o mantém a partir <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Na concepção <strong>de</strong> Souza (2001), o território<br />

é um espaço <strong>de</strong>finido e <strong>de</strong>limitado por e a partir <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, o qual<br />

po<strong>de</strong> ser construído e <strong>de</strong>sconstruído <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> diferentes escalas temporais, po<strong>de</strong>ndo<br />

ainda ter um caráter permanente ou periódico. Assim:<br />

“A ocupação do território é vista como algo gerador <strong>de</strong> raízes e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>: um<br />

grupo não po<strong>de</strong> ser mais compreendido sem o seu território, no sentido <strong>de</strong> que<br />

a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> sócio-cultural das pessoas estaria inarredavelmente ligada aos<br />

atributos do espaço concreto (...)” (SOUZA, 2001: 84).<br />

O conceito <strong>de</strong> território também está centrado nas dimensões <strong>sociais</strong> da economia,<br />

da política e da cultura, sendo esse um produto socioespacial <strong>de</strong> relações<br />

<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r que ocorrem através <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s internas e externas. Nesse sentido, o território<br />

é fundado em procedimentos humanos que envolvem a comunicação, a cooperação<br />

e a troca, ou seja, as formas <strong>de</strong> socialização em uma dada formação<br />

territorial (SAQUET, 2007: 80-81).<br />

Segundo Fernan<strong>de</strong>s (2008: 279), o conceito <strong>de</strong> território <strong>de</strong>ve ser analisado<br />

a partir <strong>de</strong> seus principais atributos: “totalida<strong>de</strong>, multidimensionalida<strong>de</strong>,<br />

escalarida<strong>de</strong> e soberania”. Uma vez que, se o conceito <strong>de</strong> território não for analisado<br />

a partir <strong>de</strong> sua totalida<strong>de</strong>, certamente per<strong>de</strong>rá a sua capacida<strong>de</strong> explicativa<br />

da realida<strong>de</strong> socioespacial. Além disso, é valido enfatizar as relações existentes entre<br />

as diversas escalas dos territórios como espaço <strong>de</strong> governança e como proprieda<strong>de</strong>s.<br />

Po<strong>de</strong>mos ainda inferir que o território é o resultado <strong>de</strong> uma apropriação simbólica<br />

do espaço. E a sua construção <strong>de</strong>corre principalmente da dimensão histórica<br />

e da construção do imaginário que envolvem relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r estabelecidas ao<br />

longo das diferentes temporalida<strong>de</strong>s.<br />

Ao discutir a distinção entre território e territorialida<strong>de</strong>, Saquet (2007: 83)<br />

afirma que: “(...) o território é produto da organização social e a territorialida<strong>de</strong><br />

correspon<strong>de</strong> a ações <strong>de</strong> influência e controle em uma área do espaço, tanto <strong>de</strong> indivíduos<br />

como <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s e relações, o que po<strong>de</strong> ocorrer em diferentes níveis<br />

escalares”. Além disso, em um contexto espaço-temporal, “(...) a territorialida<strong>de</strong><br />

está intimamente relacionada ao como as pessoas usam a terra, como organizam o<br />

espaço e como dão significados ao lugar”. Nesse prisma “(...) a territorialida<strong>de</strong> é


Cap. IX Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento, Globalização... 167<br />

uma expressão geográfica primária do po<strong>de</strong>r social”. A territorialida<strong>de</strong> humana<br />

reflete a multidimensionalida<strong>de</strong> do vivido territorial pelos membros <strong>de</strong> uma<br />

coletivida<strong>de</strong> e se manifesta em todas as escalas espaciais e <strong>sociais</strong>; ela é<br />

consubstancial a todas as relações e seria possível dizer que “é a face vivida da face<br />

agida do po<strong>de</strong>r”. Assim:<br />

“(...) o que reivindica uma socieda<strong>de</strong> ao se apropriar <strong>de</strong> um território é o acesso,<br />

o controle, uso tanto das realida<strong>de</strong>s visíveis quanto dos po<strong>de</strong>res invisíveis que as compõem,<br />

e que parecem partilhar o domínio das condições <strong>de</strong> reprodução da vida<br />

dos homens, tanto a <strong>de</strong>les própria quanto a dos recursos dos quais eles <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m”<br />

(GODELIER, 1984 apud HAESBAERT, 2006: 49) (grifo do autor).<br />

Po<strong>de</strong>mos dizer que a territorialida<strong>de</strong> envolve tanto a sociabilida<strong>de</strong> quanto<br />

tensões entre <strong>de</strong>terminado grupo social em <strong>de</strong>terminado espaço geográfico, ao passo<br />

que as territorialida<strong>de</strong>s proporcionam a formulação <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> controle <strong>de</strong><br />

um grupo social sobre um <strong>de</strong>terminado espaço através do fortalecimento <strong>de</strong> forças<br />

econômicas, políticas e culturais. Nesse contexto, as territorialida<strong>de</strong>s são formadas<br />

a partir das múltiplas relações socioespaciais estabelecidas nas diversas escalas<br />

geográficas, on<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser construído e <strong>de</strong>senvolvido o capital social.<br />

Atualmente, a inter<strong>de</strong>pendência universal dos lugares vem promovendo<br />

alterações profundas no espaço geográfico, sendo essa a nova realida<strong>de</strong> do território<br />

transnacionalizado. Para Santos (1996: 15-19): “Hoje, quando vivemos uma<br />

dialética do mundo concreto, evoluímos da noção, tornada antiga, <strong>de</strong> Estado<br />

Territorial para a noção pós-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> transnacionalização do território”. De<br />

acordo com o autor supracitado, antigamente, sobretudo antes da existência humana,<br />

o que reunia as diferentes porções <strong>de</strong> um território era a energia, oriunda<br />

dos próprios <strong>processos</strong> naturais. Ao longo da história é a informação que vai ganhando<br />

essa função, para ser hoje o verda<strong>de</strong>iro instrumento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> união<br />

entre as diversas partes <strong>de</strong> um território.<br />

A partir da década <strong>de</strong> 1970, os novos progressos técnico-científicos e<br />

informacionais sob a égi<strong>de</strong> do mercado capitalista transformaram e construíram<br />

diferentes territórios no mundo globalizado, sendo esse período chamado por<br />

Milton Santos <strong>de</strong> “técnico-científico-informacional”. Assim,<br />

“o território ganha novos conteúdos e impõe novos comportamentos, graças<br />

às enormes possibilida<strong>de</strong>s da produção e, sobretudo, da circulação dos insumos,<br />

dos produtos, do dinheiro, das idéias e informações, das or<strong>de</strong>ns e dos homens.<br />

É a irradiação do meio técnico-científico-informacional que se instala sobre o<br />

território” (SANTOS, 2001: 52-53).<br />

No contexto atual, a ciência, a tecnologia e a informação juntas dão forma às<br />

tecnologias da informação e comunicação (TICs), que exercem um papel fundamental<br />

nas múltiplas relações contidas nos territórios, já que o processo <strong>de</strong>


168 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

mundialização ou globalização está intimamente ligado a esses <strong>processos</strong> <strong>de</strong> inovações<br />

do conhecimento.<br />

GLOBALIZAÇÃO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL<br />

As últimas décadas têm sido palco <strong>de</strong> profundas transformações na configuração<br />

da or<strong>de</strong>m do capital no plano mundial, provocando a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se pensar<br />

na criação <strong>de</strong> novas condições socioeconômicas, políticas, ambientais, científicas<br />

e tecnológicas. Essas transformações <strong>de</strong>mandam e estimulam o surgimento <strong>de</strong> novas<br />

i<strong>de</strong>ias e conceitos para explicar a realida<strong>de</strong> e organizar as iniciativas e ações da<br />

socieda<strong>de</strong> diante das circunstâncias históricas.<br />

A transição para um novo paradigma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento mundial está associada<br />

ao processo acelerado <strong>de</strong> globalização com a intensa integração econômica,<br />

formação <strong>de</strong> blocos regionais e a emergência <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s empresariais com<br />

estratégias e atuações globais. Paradoxalmente, contudo, nunca foi tão forte a preocupação<br />

com o <strong>de</strong>senvolvimento local e a <strong>de</strong>scentralização econômica, social e<br />

política, e tão visíveis os movimentos localizados e endógenos <strong>de</strong> mudança e <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Segundo Buarque (2006: 37):<br />

“A globalização é um movimento <strong>de</strong> caráter seletivo em termos <strong>sociais</strong>, espaciais<br />

e setoriais que avança <strong>de</strong> forma diferenciada nos diversos segmentos, com<br />

<strong>de</strong>staque para a internacionalização dos fluxos financeiros. Processo contraditório<br />

que intensifica e aguça a competição e a disputa dos mercados, ao mesmo<br />

tempo em que estimula e acentua a inter<strong>de</strong>pendência das economias e dos<br />

conglomerados econômicos. Processo complexo e conflitivo que combina a<br />

homogeneização dos mercados com diversificação e flexibilização das economias<br />

e dos mercados locais, integrando e articulando o local ao global.<br />

Nesse sentido, cada vez mais o local sofre as profundas influências dos <strong>processos</strong><br />

globais <strong>de</strong> mudanças socioeconômicas, políticas, tecnológicas e institucionais<br />

que <strong>de</strong>terminam seu futuro, trazendo suas ameaças, mas também algumas oportunida<strong>de</strong>s,<br />

ao tempo em que também é importante como fonte <strong>de</strong> recursos naturais<br />

e como mercado consumidor. Dentro da lógica da or<strong>de</strong>m do capital, acredita-se<br />

que o <strong>de</strong>senvolvimento local num mundo globalizado não é uma alternativa<br />

inviável, ainda que, reconhecidamente, seja difícil a conciliação entre crescimento<br />

econômico, superação da pobreza e preservação do meio ambiente (SCOTTO et<br />

al. , 2007).<br />

Buarque (2006) acredita que a interação entre o global e o local constitui dois<br />

polos <strong>de</strong> um mesmo processo complexo e contraditório, exercendo forças <strong>de</strong> integração<br />

e <strong>de</strong>sagregação, <strong>de</strong>ntro do intenso jogo competitivo mundial. Concomitantes ao<br />

processo <strong>de</strong> globalização e <strong>de</strong> integração da economia mundial surgem novas e crescentes<br />

iniciativas em nível local, integradas ou não à dinâmica internacional, que<br />

viabilizam <strong>processos</strong> diferenciados <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no espaço/tempo.


Cap. IX Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento, Globalização... 169<br />

Os <strong>de</strong>sequilíbrios regionais, bem como os <strong>de</strong>sequilíbrios ambientais provocados<br />

pela ação antrópica, são intensificados pela reorganização da produção<br />

globalizada e passaram a ser estudados, basicamente, à luz <strong>de</strong> duas categorias<br />

analíticas convergentes e complementares: a sustentabilida<strong>de</strong> e a endogenia<br />

(MORAES, 2003). O <strong>de</strong>senvolvimento regional ambientalmente sustentável centra<br />

sua atenção na relação do homem com a natureza, preconizando a utilização racional<br />

dos estoques dos recursos naturais, enquanto o <strong>de</strong>senvolvimento endógeno<br />

<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o capital social, capital humano, pesquisa e <strong>de</strong>senvolvimento po<strong>de</strong>m<br />

ser gerenciados endogenamente em cada território.<br />

O <strong>de</strong>senvolvimento endógeno baseia-se na execução <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> fortalecimento<br />

e na qualificação das estruturas externas dos territórios visando à consolidação<br />

<strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento genuinamente local, criando as condições <strong>sociais</strong><br />

e econômicas para a geração e atração <strong>de</strong> novas ativida<strong>de</strong>s produtivas. A propagação<br />

e a penetração do novo paradigma <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no espaço mundial e<br />

as condições estruturais <strong>de</strong> cada país ou região na nova configuração da or<strong>de</strong>m do<br />

capital ten<strong>de</strong>m a produzir, em escala mundial e local, uma nova divisão do trabalho.<br />

Segundo Lemos (2000: 157):<br />

“Para acompanhar as rápidas mudanças em curso, torna-se <strong>de</strong> extrema relevância<br />

a aquisição <strong>de</strong> novas capacitações e conhecimentos, o que significa intensificar<br />

a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indivíduos, empresas, países e regiões <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>r e<br />

transformar este aprendizado em fator <strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong> para os mesmos.”<br />

No contexto atual <strong>de</strong> intensa competição, o conhecimento torna-se a base<br />

fundamental, sendo que o aprendizado interativo é a melhor forma <strong>de</strong> indivíduos,<br />

empresas, regiões e países estarem aptos a enfrentar as mudanças em curso a fim<br />

<strong>de</strong> intensificarem a geração <strong>de</strong> inovações e se capacitarem para a inserção mais<br />

efetiva no mercado global. A história do <strong>de</strong>senvolvimento permite ver o homem<br />

como um agente transformador do mundo, que interage com o meio no empenho<br />

<strong>de</strong> criar riqueza e efetivar suas potencialida<strong>de</strong>s. Tendo a hegemonia do Estado como<br />

agente propulsor na <strong>de</strong>finição do interesse nacional, sendo que, para isso, <strong>de</strong>senvolve<br />

políticas <strong>de</strong> direcionamento estratégico que em muitos casos estão atreladas<br />

à dinâmica do capital.<br />

PROGRESSO TÉCNICO-CIENTÍFICO<br />

O progresso técnico-científico voltado para a realização <strong>de</strong> bens públicos<br />

<strong>de</strong>stinados a satisfazer as necessida<strong>de</strong>s <strong>sociais</strong> é o caminho para a socieda<strong>de</strong> alcançar<br />

<strong>de</strong> forma perceptível o <strong>de</strong>senvolvimento. Veiga (2005: 23-25) afirma que “o<br />

principal vírus que dissemina a inviabilida<strong>de</strong> econômica da gran<strong>de</strong> maioria dos<br />

países ‘em <strong>de</strong>senvolvimento’ aten<strong>de</strong> pelo nome <strong>de</strong> miséria científico-tecnológica”.<br />

Nessa lógica, Furtado (2000: 10) assinala que “tudo se resume em dotar a socie-


170 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

da<strong>de</strong> <strong>de</strong> instituições que possibilitem ao individuo realizar plenamente suas<br />

potencialida<strong>de</strong>s”. Assim:<br />

“A crescente subordinação do progresso social aos critérios da racionalida<strong>de</strong> instrumental<br />

teria <strong>de</strong> acarretar modificações na organização social. O avanço das<br />

técnicas ten<strong>de</strong>u a ser visto como um meio <strong>de</strong> contornar a escassez <strong>de</strong> um fator<br />

<strong>de</strong> produção no nível <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> produtiva. O progresso técnico é uma<br />

expressão vaga que, no seu uso corrente, cobre o conjunto das transformações<br />

<strong>sociais</strong> que possibilitam a persistência do progresso <strong>de</strong> acumulação, por conseguinte<br />

a reprodução da socieda<strong>de</strong> capitalista” (FURTADO, 2000: 12-14).<br />

A saída encontrada para a superação duradoura das tensões <strong>sociais</strong> inerentes à<br />

reprodução da socieda<strong>de</strong> capitalista consistiu na orientação do progresso técnico no<br />

sentido <strong>de</strong> compensar a rigi<strong>de</strong>z potencial da oferta <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra. Nessa perspectiva,<br />

ao alisar a economia shumpeteriana, Souza (1993) afirma que a força principal<br />

do crescimento é a inovação empresarial e que o processo <strong>de</strong> produção capitalista<br />

compreen<strong>de</strong> a combinação <strong>de</strong> forças produtivas, formadas pelos meios <strong>de</strong> produção,<br />

pelo trabalho, pela terra, pelas inovações tecnológicas e pelo meio sociocultural. Sendo<br />

assim, o capital é <strong>de</strong>finido como a soma <strong>de</strong> meios <strong>de</strong> pagamento que está disponível,<br />

em dado momento, para transferência aos empresários.<br />

Em termos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento regional, as políticas <strong>de</strong> CT&I <strong>de</strong>vem ser<br />

orientadas para a utilização das aptidões regionais a fim <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver ao máximo<br />

o leque <strong>de</strong> recursos naturais a ser consi<strong>de</strong>rado, visando reduzir a <strong>de</strong>pendência<br />

em relação a um único produto ou a uma única cultura. Contudo, o processo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico não se faz sentir igualmente em todo o território, mas,<br />

ao contrário, privilegia as regiões economicamente mais <strong>de</strong>senvolvidas, contribuindo<br />

para um aumento da divergência nos níveis <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento regional.<br />

Sabe-se que o <strong>de</strong>senvolvimento não ocorre <strong>de</strong> forma homogênea, pois o mesmo<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> das particularida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada região, as quais <strong>de</strong>vem ser levadas em consi<strong>de</strong>ração<br />

através da setorização do território. É por isso que <strong>de</strong>vemos pensar em um<br />

<strong>de</strong>senvolvimento não apenas no âmbito regional, mas na escala do território local.<br />

Nesse sentido, para o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> um território local são <strong>de</strong>senvolvidas as<br />

ações setoriais através da elaboração <strong>de</strong> programas políticos e projetos específicos<br />

por setores ou dimensões da realida<strong>de</strong>, formando assim as estratégias governamentais<br />

que proporcionam o <strong>de</strong>senvolvimento local.<br />

DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL<br />

A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável adquiriu bastante visibilida<strong>de</strong> a partir<br />

dos anos 1980, significando uma nova forma <strong>de</strong> ver o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico e social, embora seu significado seja controverso. Em sua origem, o<br />

conceito se confundia com a noção <strong>de</strong> crescimento econômico, base do pensamento<br />

neoliberal, partindo do falso pressuposto <strong>de</strong> que é possível compatibilizar cres-


Cap. IX Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento, Globalização... 171<br />

cimento com a preservação ambiental. Essa visão está impregnada <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sejo<br />

“expansionista, imperialista e quantitativo, que acompanha algumas das socieda<strong>de</strong>s<br />

humanas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primórdios” (MILANEZ, 2003: 73).<br />

O conceito foi formulado num documento das Nações Unidas <strong>de</strong> nome Nosso<br />

Futuro Comum, resultado do trabalho da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente<br />

e Desenvolvimento (CMMAD), publicado em 1987 na Inglaterra e nos<br />

Estados Unidos e em 1988 no Brasil. Esse documento <strong>de</strong>fine <strong>de</strong>senvolvimento<br />

sustentável como um “<strong>de</strong>senvolvimento que é capaz <strong>de</strong> garantir as necessida<strong>de</strong>s<br />

do presente sem comprometer a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> as gerações futuras aten<strong>de</strong>rem também<br />

às suas” (SCOTTO et al., 2007: 9). A presença <strong>de</strong>sse conceito nos discursos<br />

oficiais e institucionais, a partir <strong>de</strong> então, não tem significado consenso entre as<br />

diversas interpretações no campo das ciências <strong>sociais</strong>; o tema surgiu como uma área<br />

<strong>de</strong> estudos da sociologia do <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

Até fins dos anos 1970, o <strong>de</strong>senvolvimento era i<strong>de</strong>ntificado com os crescimentos<br />

econômico, tecnológico e urbano, internalizando a lógica da produção e<br />

da acumulação em todas as esferas da socieda<strong>de</strong>. A superação da pobreza e do atraso<br />

tinha por paradigma a socieda<strong>de</strong> estaduni<strong>de</strong>nse. A i<strong>de</strong>ologia do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

industrial era consi<strong>de</strong>rada como i<strong>de</strong>al do progresso. Sob essa lógica, era necessário<br />

que os países consi<strong>de</strong>rados em <strong>de</strong>senvolvimento crescessem economicamente, se<br />

industrializassem e se urbanizassem, não importando os custos <strong>de</strong>correntes do<br />

endividamento crescente da esfera econômica, da marginalização das práticas<br />

populares e da exploração da força <strong>de</strong> trabalho e dos recursos naturais (SCOTTO<br />

et al., 2007: 17). Esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento acabou criticado pelos efeitos<br />

adversos que provocou.<br />

O progresso tecnológico associado à or<strong>de</strong>m do capital – por natureza<br />

concentradora da riqueza – levou, no caso <strong>de</strong> alguns países da América, ao que se<br />

convencionou chamar <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização conservadora, que não conduz à melhoria do<br />

bem-estar da maioria da população, mantendo ou mesmo ampliando as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

<strong>sociais</strong>. A crise ecológica que emerge nos anos 1970 torna visível o fracasso<br />

do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>senvolvimentista na solução dos problemas <strong>sociais</strong> e expõe a exploração<br />

ilimitada dos bens ambientais na socieda<strong>de</strong>. A crise permitiu constatar a<br />

falência das teorias calcadas na noção <strong>de</strong> crescimento econômico ilimitado num<br />

mundo com recursos limitados. A i<strong>de</strong>ia econômica <strong>de</strong> que sem crescimento não há<br />

<strong>de</strong>senvolvimento esbarra na impossibilida<strong>de</strong> do mo<strong>de</strong>lo sociometabólico do capital<br />

na solução dos problemas <strong>sociais</strong> globais.<br />

Nesse contexto, o tema relacionado aos limites aceitáveis para o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

começa a alimentar o <strong>de</strong>bate internacional e a levar a propostas que buscam<br />

caminhos <strong>de</strong> superação <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo, como também a iniciativas que<br />

trabalham na perspectiva <strong>de</strong> sua reformulação <strong>de</strong>ntro da lógica do capital. Os limites<br />

aceitáveis para o <strong>de</strong>senvolvimento passam a ocupar a agenda dos estudiosos<br />

ao redor do mundo, e o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento associado ao <strong>de</strong>senvolvimen-


172 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

to tecnológico e à acumulação material passa a ser associada ao risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação<br />

ambiental.<br />

O conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável surge como resultado da crítica<br />

ao <strong>de</strong>senvolvimentismo neoclássico, <strong>de</strong> caráter ilimitado, na medida em que o crescimento<br />

do volume da produção capitalista, em nível mundial, tem configurado<br />

um <strong>de</strong>senvolvimento predatório do uso dos recursos naturais e um <strong>de</strong>senvolvimento<br />

tecnológico com gran<strong>de</strong> impacto ambiental (SCOTTO et al., 2007: 28).<br />

Dada sua característica inovadora, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável<br />

po<strong>de</strong> ressaltar as contradições entre crescer economicamente com superação da<br />

pobreza e a preservação do meio ambiente. Essas questões estão imbricadas e sua<br />

dinâmica <strong>de</strong>ve estar em harmonia com o princípio <strong>de</strong> que – ao contrário do senso<br />

comum, mas fazendo eco a uma corrente <strong>de</strong> pensamento cada vez mais visível no<br />

meio científico –, o planeta precisa é <strong>de</strong> menos crescimento econômico e maior<br />

qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida. Tal constatação provoca um <strong>de</strong>bate no campo discursivo, em<br />

torno do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável.<br />

CAPITAL SOCIAL E DESENVOLVIMENTO REGIONAL<br />

O termo capital social, <strong>de</strong>finido precisamente e estabelecida sua <strong>de</strong>vida importância,<br />

po<strong>de</strong> se constituir num importante instrumento conceitual e prático para<br />

a consolidação <strong>de</strong> políticas públicas para o <strong>de</strong>senvolvimento em bases sustentáveis<br />

e para a revitalização da socieda<strong>de</strong> e da <strong>de</strong>mocracia (ARAÚJO, 2003: 7).<br />

Historicamente, embora não seja tão recente, o termo tem sua expansão a<br />

partir da década <strong>de</strong> 1990 como uma ferramenta para a compreensão e a intervenção<br />

da maior parte <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, por suas comunida<strong>de</strong>s e grupos <strong>sociais</strong>, em<br />

parceria com os governos. Nesse contexto, a cultura cívica, a cultura política e a<br />

tradição são traços culturais importantes para a formação do capital social em uma<br />

região (ARAÚJO, 2003: 14).<br />

Numa linguagem simplificada, capital social po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado uma ferramenta<br />

útil para auxiliar comunida<strong>de</strong>s e governos na solução <strong>de</strong> problemas <strong>sociais</strong><br />

relevantes. Segundo o Banco Mundial, capital social po<strong>de</strong> ser entendido<br />

basicamente como a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um território <strong>de</strong> estabelecer laços <strong>de</strong> confiança<br />

interpessoal e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cooperação com vistas à produção <strong>de</strong> bens coletivos. A i<strong>de</strong>ia<br />

<strong>de</strong> capital social está relacionada com a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> praticar<br />

a cooperação e a confiança, tendo por um dos objetivos a produção <strong>de</strong> bens públicos<br />

(ARAÚJO, 2003: 11). Confiança e cooperação são as palavras-chave para o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento do capital social. Seu conceito nos remete a aspectos éticos da<br />

vida em comum, valoriza a cultura humana em suas diferentes manifestações. Nesse<br />

tipo <strong>de</strong> capital é importante a participação comunitária.<br />

A vida econômica está intimamente ligada à vida social, aos seus costumes,<br />

hábitos e valores morais e à sua cultura, elementos que contribuem para a forma-


Cap. IX Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento, Globalização... 173<br />

ção do capital social. Para que haja capital social é necessário que se valorizem<br />

normas éticas e morais da comunida<strong>de</strong> e, nesse processo, se adquira consciência<br />

cívica com base na lealda<strong>de</strong>, honestida<strong>de</strong> e confiabilida<strong>de</strong> (BARQUERA, 2003: 29).<br />

Ainda segundo o mesmo autor, o capital social envolve dois componentes básicos:<br />

o estrutural e o cognitivo. O primeiro diz respeito à composição e às práticas das<br />

instituições locais que viabilizam o <strong>de</strong>senvolvimento local. Já o componente<br />

cognitivo refere-se a crenças, valores, atitu<strong>de</strong>s, normas <strong>sociais</strong> e comportamentos<br />

comunitários, tais como confiança interpessoal, solidarieda<strong>de</strong> e reciprocida<strong>de</strong>.<br />

O capital social facilita ainda a cooperação espontânea, minimiza os custos<br />

da transação e po<strong>de</strong> ser mediado por fatores intermediários, como confiança, normas<br />

<strong>de</strong> reciprocida<strong>de</strong> e sistemas <strong>de</strong> participação cívica. Diferente <strong>de</strong> outros tipos<br />

<strong>de</strong> capital, o capital social é um bem público, seus resultados não po<strong>de</strong>m ser apropriados<br />

privadamente. A prática do capital social remete a um mo<strong>de</strong>lo societário<br />

forte e saudável o suficiente para proporcionar o bem-estar <strong>de</strong> seus membros, a<br />

equida<strong>de</strong> social e a igualda<strong>de</strong> política.<br />

A formação do capital social em uma comunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma duradoura, <strong>de</strong>ve<br />

enfrentar algumas ameaças e <strong>de</strong>safios. A burocratização intensa, a transferência –<br />

terceirização – do controle organizacional <strong>de</strong> suas associações/cooperativas, somadas<br />

à corrupção que drena um volume significativo <strong>de</strong> recursos financeiros anualmente,<br />

ameaçam a eficácia <strong>de</strong> políticas públicas responsáveis e a necessária<br />

confiança e transparência dos governos. Governos corruptos <strong>de</strong>scolam-se da socieda<strong>de</strong>,<br />

incentivam práticas ilícitas e predatórias e provocam a falta <strong>de</strong> confiança<br />

e <strong>de</strong> cooperação entre os governos e os cidadãos, gerando frustação e<br />

insatisfação com as instituições públicas. As instituições públicas po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vem<br />

ser promotoras do capital social, contribuindo para a organização social da<br />

produção. Mas as oportunida<strong>de</strong>s elencadas po<strong>de</strong>m superar as ameaças e apontar<br />

para um <strong>de</strong>senvolvimento socialmente justo, ambientalmente sustentável e economicamente<br />

necessário (BENCHIMOL, 2001). Dessa forma, Bartsch & Antunes<br />

(2007: 71) afirmam que:<br />

“Governo, universida<strong>de</strong>s e empresas <strong>de</strong>vem interagir no sentido <strong>de</strong> tornar favoráveis<br />

as diferentes variáveis que influenciam, e são influenciadas, <strong>de</strong>ntro<br />

do processo <strong>de</strong> difusão e absorção <strong>de</strong> tecnologias. Nestas variáveis encontramse<br />

incluídas a estabilida<strong>de</strong> econômica, o regime <strong>de</strong> concorrência, a i<strong>de</strong>ntificação<br />

<strong>de</strong> <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> bens e serviços, a educação <strong>de</strong> consumidores, a<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regulação do estado, os direitos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> intelectual e<br />

exploração comercial, a qualificação dos trabalhadores, capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> antecipação<br />

do progresso técnico-científico, infra-estrutura <strong>de</strong> serviços técnicocientíficos<br />

e estratégias <strong>de</strong> competição das empresas. Além disso, uma<br />

consciência sistêmica torna-se primordial com alicerces fortemente fincados<br />

na continuida<strong>de</strong> dos <strong>processos</strong>.”


174 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO: PRINCIPAL INSUMO DO PROCESSO<br />

INOVATIVO E DA COMPETITIVIDADE<br />

Enfrentar com eficiência as atuais metamorfoses que vêm ocorrendo no mundo<br />

globalizado, competitivo, <strong>de</strong>sigual e exclu<strong>de</strong>nte é um dos principais <strong>de</strong>safios <strong>de</strong> hoje.<br />

A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> políticas públicas voltadas a investimentos em ciência, tecnologia<br />

e inovação constituem fatores fundamentais nesse processo. Estes, por sua vez, dão<br />

sustentação e promovem a criação <strong>de</strong> conhecimento, visto como principal insumo<br />

do processo inovativo. A inovação é apreciada como uma vantagem competitiva<br />

pelas organizações que procuram se diferenciar tanto pela melhoria dos produtos<br />

e serviços oferecidos, quanto pela eficiência operativa. Porém, competitivida<strong>de</strong> e<br />

inovação requerem elementos essenciais para o seu sucesso, que são os investimentos<br />

em educação, ciência e tecnologia, hoje ainda insuficientes em nosso país.<br />

Na visão <strong>de</strong> Mello & Jacaúna (2009: 2),<br />

“a ciência e a tecnologia são elementos capitais para um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

em qualquer país ou região. É através do conhecimento cientifico e<br />

tecnológico (conseguido através do incentivo à formação do capital intelectual<br />

e social) que se criam condições para a produção <strong>de</strong> bens e serviços que atendam<br />

às necessida<strong>de</strong>s locais, regionais e globais”.<br />

Para Maciel (2005), o avanço do <strong>de</strong>senvolvimento pressupõe a <strong>de</strong>mocratização<br />

do conhecimento e das <strong>de</strong>cisões. Portanto, inovação é o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong><br />

novas formas <strong>de</strong> produzir, aplicar e distribuir o conhecimento. A <strong>de</strong>mocratização<br />

do conhecimento não é só fator, mas também resultado da inovação e principal<br />

elo entre esta e a mudança social.<br />

Nesse sentido, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inovação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong>, nas relações entre seus agentes, movimentos, organizações e instituições,<br />

se empenhar nas escolhas que lhe são mais a<strong>de</strong>quadas <strong>de</strong>ntre as disponíveis<br />

e acessíveis, bem como aplicar os resultados <strong>de</strong> suas opções como e on<strong>de</strong> serão mais<br />

produtivos socioeconomicamente (MACIEL, 2005).<br />

Nas regiões brasileiras percebem-se claramente as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> investimentos<br />

em ciência e tecnologia, bem como as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> competivida<strong>de</strong> das<br />

regiões periféricas. A insuficiência e ineficácia <strong>de</strong> políticas públicas voltadas a esses<br />

fins constituem-se ainda entraves reais. Dessa forma, combater as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s<br />

regionais e <strong>sociais</strong>, bem como competir igualmente com regiões e países<br />

<strong>de</strong>senvolvidos, fazem parte <strong>de</strong> um sonho a ser alcançado por milhões <strong>de</strong> brasileiros.<br />

Segundo Mello & Jacaúna (2009: 2):<br />

“(...) tornam-se necessários investimentos em ciência e tecnologia comprometidos<br />

com a realida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> cada região. A relação entre ciência e tecnologia<br />

no Brasil não produziu sinergia. O que vem ocorrendo é uma constante importação<br />

<strong>de</strong> tecnologia, seja para a ativida<strong>de</strong> industrial, seja para a área <strong>de</strong>


Cap. IX Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento, Globalização... 175<br />

serviços, assim, o <strong>de</strong>senvolvimento econômico do país acaba sendo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte<br />

<strong>de</strong> tecnologias estrangeiras”.<br />

Comprovadamente, o sucesso econômico <strong>de</strong> uma região ou território está cada<br />

vez mais ligado à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inovação dos agentes produtivos. Inovações essas<br />

que, impulsionadas pelo fenômeno do avanço tecnológico e da globalização, se<br />

tornam obsoletas a cada instante, exigindo uma rápida capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resposta para<br />

transformá-las e superá-las. Esse fato <strong>de</strong>ixa transparecer ainda mais a necessida<strong>de</strong><br />

urgente <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> ciência e tecnologia, com <strong>de</strong>staque para o capital intelectual<br />

e social para os <strong>processos</strong> <strong>de</strong> aprendizado.<br />

A produtivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> países como o Brasil só po<strong>de</strong>rá ser aumentada à medida<br />

que também forem maiores os investimentos em ciência, tecnologia e capacitação<br />

<strong>de</strong> recursos humanos, pois, consequentemente, esse fato gerará inovações competitivas.<br />

Caso contrário, continuar importando tecnologias <strong>de</strong> outros países resultará<br />

na permanência da <strong>de</strong>pendência tecnológica e da submissão econômica. Afinal,<br />

sabemos que os países <strong>de</strong>senvolvidos são <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> alta produção tecnológica<br />

e gran<strong>de</strong>s investimentos em pesquisa e <strong>de</strong>senvolvimento (P&D) e em ciência e<br />

tecnologia (C&T), evi<strong>de</strong>nciando a importância do patrimônio cientifico e<br />

tecnológico para a economia.<br />

Um caso particular no Brasil é o da Amazônia, como assinalam Mello & Jacaúna<br />

(2009: 6), em que “(...) as atuais crises ecológicas e a importância que a conservação<br />

ambiental em nível internacional vem ganhando po<strong>de</strong>m influenciar significativamente<br />

a produção em ciência e tecnologia em busca do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável”. Dessa<br />

forma, <strong>de</strong>vemos pensar o <strong>de</strong>senvolvimento regional <strong>de</strong> forma local, pois cada região<br />

possui características socioeconômicas, ambientais e culturais específicas que po<strong>de</strong>m<br />

contribuir <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>terminante ao processo inovativo e competitivo.<br />

Entre as causas do baixo <strong>de</strong>senvolvimento científico e tecnológico estão os<br />

baixos investimentos em CT&I na região amazônica, com pouca contribuição para<br />

a formação do parque tecnológico local. O gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio é justamente consolidar<br />

políticas e investimentos voltados à realida<strong>de</strong> da região. A Amazônia é, sem dúvida,<br />

uma das áreas mais valiosas do planeta, pelos recursos que tem e pela magnitu<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> sua biodiversida<strong>de</strong>. Tem potencial para <strong>de</strong>sempenhar um papel<br />

importantíssimo como fonte <strong>de</strong> pesquisa nas mais diversas áreas das ciências, além<br />

<strong>de</strong> contribuir com o <strong>de</strong>senvolvimento regional e do restante do Brasil.<br />

A IMPORTÂNCIA DAS ORGANIZAÇÕES LOCAIS PARA O<br />

DESENVOLVIMENTO REGIONAL<br />

O modo dinâmico como vem sendo processado o conhecimento requer uma<br />

ênfase especial no aprendizado permanente e interativo, para que indivíduos,<br />

empresas e <strong>de</strong>mais instituições se tornem aptos a enfrentar os novos <strong>de</strong>safios do<br />

cenário mundial e habilitem-se a uma inclusão representativa. Daí o <strong>de</strong>staque do


176 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

capital humano – o estoque <strong>de</strong> cientistas, pesquisadores, profissionais <strong>de</strong> alta qualificação<br />

interagindo, quando possível, com o conhecimento tradicional – como um<br />

dos fatores capazes <strong>de</strong> encontrar soluções para os problemas regionais em sua ligação<br />

com o global.<br />

É em busca da superação <strong>de</strong>sses obstáculos que surge um componente-chave:<br />

as parcerias. Através <strong>de</strong> novos formatos organizacionais, conhecidos como arranjos<br />

produtivos locais, clusters, polos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, distrito industrial,<br />

<strong>de</strong>ntre outros, as empresas se aglomeram em um mesmo território, visando ao fortalecimento<br />

através da interação, geração, aquisição e difusão <strong>de</strong> conhecimentos e<br />

inovações. Sobre este aspecto, Maciel (2005: 38) enfatiza que:<br />

“(...) hoje o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> predominantemente da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

gerar e aplicar produtivamente o conhecimento, condição indispensável da produtivida<strong>de</strong>,<br />

da competitivida<strong>de</strong>, mas também do capital social. (...) tem sido<br />

constatada mundialmente a eficácia das estratégias regionais e municipais <strong>de</strong><br />

um <strong>de</strong>senvolvimento sustentado na integração dos diversos agentes <strong>sociais</strong> e<br />

na circulação ampliada do conhecimento e da inovação”.<br />

Nesse particular, inferimos que as aglomerações <strong>de</strong> empresas, as associações<br />

e cooperativas afetam e são afetadas pela localida<strong>de</strong> e geram uma gama <strong>de</strong> relações<br />

<strong>sociais</strong> e conhecimentos tácitos. Aproveitam-se das sinergias coletivas geradas por<br />

suas interações com o ambiente on<strong>de</strong> se localizam e efetivamente fortalecem suas<br />

chances <strong>de</strong> sobrevivência e crescimento, constituindo-se em importantes fontes<br />

geradoras <strong>de</strong> vantagens inovativas e competitivas. A interação gera um ambiente<br />

<strong>de</strong> externalida<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> são socializados fluxos <strong>de</strong> conhecimentos e inovações,<br />

informações, cooperações, riscos, custos <strong>de</strong> coleta, etc. Nesse caso, a proximida<strong>de</strong><br />

é tida como um componente fundamental.<br />

No Brasil, esses novos formatos organizacionais beneficiam em especial micro<br />

e pequenas empresas, que em função <strong>de</strong> suas dificulda<strong>de</strong>s peculiares e da baixa<br />

representativida<strong>de</strong> na economia requerem políticas diferenciadas. Também eles<br />

assumem gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque para o enfrentamento dos <strong>de</strong>safios colocados pela difusão<br />

da era do conhecimento, pois beneficiam os <strong>processos</strong> <strong>de</strong> aprendizagem coletiva,<br />

cooperação e dinâmica inovativa. Segundo Lemos (2000: 175):<br />

“Nesse processo coletivo <strong>de</strong> aprendizagem, apesar do epicentro estar constituído<br />

pelas empresas nos diferentes setores on<strong>de</strong> atuam, outros atores e instituições<br />

públicas e privadas possuem importante participação. Ressalta-se,<br />

particularmente, o papel das instituições <strong>de</strong> pesquisa e das universida<strong>de</strong>s, que<br />

fornecem a base do <strong>de</strong>senvolvimento científico e tecnológico para a geração<br />

<strong>de</strong> conhecimentos e capacitação <strong>de</strong> pessoas.”<br />

Incontestavelmente, po<strong>de</strong>mos compreen<strong>de</strong>r que o trabalho através <strong>de</strong>sses<br />

novos formatos organizacionais po<strong>de</strong> se constituir como excelente instrumento <strong>de</strong><br />

planejamento regional, bem como fortalecimento das condições <strong>de</strong> inovação e


Cap. IX Território e Territorialida<strong>de</strong>, Gestão do Conhecimento, Globalização... 177<br />

competitivida<strong>de</strong>, principalmente nas regiões periféricas, que respon<strong>de</strong>m por uma<br />

imensa dívida social e por um terrível hiato tecnológico, necessitando construir, a<br />

partir do diálogo e da sinergia, bases para competir positivamente no mercado<br />

nacional e até mesmo internacional.<br />

CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

Diante dos fatos aqui apresentados, reafirma-se a importância <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r<br />

as múltiplas relações socioespaciais estabelecidas nas diferentes territorialida<strong>de</strong>s<br />

para enten<strong>de</strong>r a nova or<strong>de</strong>m mundial globalizada e exclu<strong>de</strong>nte. Além disso, a educação,<br />

a ciência e a tecnologia <strong>de</strong>vem ser percebidas como ferramentas capazes <strong>de</strong><br />

promover a inovação e a competitivida<strong>de</strong>, bem como a inserção do Brasil no mercado<br />

nacional e internacional. Temos ciência <strong>de</strong> que uma das razões para as gran<strong>de</strong>s<br />

diferenças socioeconômicas entre os países <strong>de</strong>corre principalmente da<br />

capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicar conhecimentos e gerar inovação.<br />

Para que o <strong>de</strong>senvolvimento socioeconômico se torne uma possibilida<strong>de</strong> real<br />

necessitamos <strong>de</strong> economias compostas por indústrias competitivas e inovadoras,<br />

operando em ambientes com elevado potencial <strong>de</strong> crescimento econômico. Porém,<br />

precisa ser <strong>de</strong>stacado que competitivida<strong>de</strong> e inovação requerem elementos essenciais,<br />

que são os investimentos em educação, ciência e tecnologia, hoje tão <strong>de</strong>ficitários<br />

no país em que vivemos.<br />

Para a elaboração <strong>de</strong> soluções concretas, faz-se necessária uma participação mais<br />

efetiva <strong>de</strong> agentes públicos e privados através da implementação <strong>de</strong> políticas e investimentos<br />

capazes <strong>de</strong> atenuar essas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s. Em especial, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar<br />

a importância das parcerias entre aca<strong>de</strong>mia, empresa e governo como fundamentais<br />

para consolidar e estruturar ambientes favoráveis à geração e difusão <strong>de</strong> ciência e<br />

tecnologia, e, consequentemente, para impulsionar o <strong>de</strong>senvolvimento regional.<br />

Embora haja um consenso sobre a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> políticas públicas voltadas<br />

à melhoria da educação, ciência, tecnologia e inovação, o tema não tem merecido<br />

a atenção <strong>de</strong>sejável. Assim, a inexpressivida<strong>de</strong> ainda é o marco real, vindo a<br />

transparecer através das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s socioeconômicas regionais. Buscando atingir<br />

o nosso alvo, que é a promoção do <strong>de</strong>senvolvimento socioeconômico, cultural,<br />

político e ambiental, sugerimos que não <strong>de</strong>vemos pensá-lo somente através do fator<br />

econômico, ou seja, pelo aumento da renda, mas através <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> fatores<br />

essenciais que levem à melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.<br />

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SOBRE OS AUTORES<br />

Alessandra Severino da Silva Manchinery. É graduanda em Geografia – Bacharelado pela<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre. Bolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica – CNPq. E-mail:<br />

amanchinery@gmail.com.<br />

André Ricardo <strong>de</strong> Souza. Mestre e doutor em sociologia pela USP, com pós-doutorado<br />

pela PUC-SP. É professor do Departamento <strong>de</strong> Sociologia e do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />

em Sociologia da <strong>UFSCar</strong>. Coor<strong>de</strong>na o Núcleo <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Religião, Economia e<br />

Política (NEREP/<strong>UFSCar</strong>). E-mail: anrisouza@uolcom.br.<br />

Antonio Carlos Witkoski. Graduado em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> do Vale do Rio<br />

dos Sinos (UNISINOS) (1985), mestre em Sociologia pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (UnB)<br />

(1998) e doutor em Sociologia pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Ceará (UFC) (2002). Atualmente<br />

é professor adjunto do Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais (DCIS) da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />

do Amazonas (UFAM). Ensina e pesquisa no Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Sociologia<br />

(PPGS) (no qual atualmente exerce a função <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nador) e no Programa <strong>de</strong> Pós-graduação<br />

Socieda<strong>de</strong> e Cultura na Amazônia (PPGSCA). E-mail: acwitkoski@uol.com.br.<br />

Bartolomeu Lima da Costa. Licenciado em Geografia, mestrando em Desenvolvimento<br />

Regional pelo PPG/MDR da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre. E-mail: bartogeo.ac@hotmail.com.<br />

Diego Correia Silva. Bacharel em Ciências Sociais, mestrando do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação<br />

em Sociologia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Carlos (<strong>UFSCar</strong>), on<strong>de</strong> foi bolsista CA-<br />

PES. Pesquisador vinculado ao Núcleo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED)<br />

do Departamento <strong>de</strong> Sociologia da <strong>UFSCar</strong>. E-mail: diego.sociologo@yahoo.com.br.<br />

El<strong>de</strong>r Andra<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paula. Pós-doutor pelo Instituto <strong>de</strong> Investigaciones Económicas <strong>de</strong> la<br />

Universidad Nacional Autónoma <strong>de</strong> México (Observatório Latino-americano <strong>de</strong><br />

Geopolítica). Professor adjunto e pesquisador do Centro <strong>de</strong> Filosofia e Ciências Humanas<br />

e do Programa <strong>de</strong> Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre<br />

(UFAC). E-mail: el<strong>de</strong>rpaula@uol.com.br.<br />

Ilunilson dos Santos Paquete Fernan<strong>de</strong>s. Sociólogo, mestrando do Programa <strong>de</strong> Pósgraduação<br />

em Sociologia da <strong>UFSCar</strong>. Bolsista FAPESP. Pesquisador do Núcleo <strong>de</strong> Estudos<br />

e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED) do Departamento <strong>de</strong> Sociologia da <strong>UFSCar</strong>. Email:<br />

ilusantos@yahoo.com.br.<br />

José Júlio César do Nascimento Araújo. Mestre em Desenvolvimento Regional – PPG/<br />

MDR da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre UFAC. É graduado em Letras. Pós-graduado em<br />

Gestão <strong>de</strong> Sistemas <strong>de</strong> Ensino, Pedagogia Gestora, Gestão <strong>de</strong> Políticas Públicas. Professor<br />

da re<strong>de</strong> estadual <strong>de</strong> ensino do Acre e do Amazonas. Coord. dos cursos <strong>de</strong> Pós-graduação<br />

FARO/ Cruzeiro do Sul-AC. E-mail: ama<strong>de</strong>us13julio@gmail.com.<br />

Juliana Mitoso Belota. Jornalista e mestranda do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Sociologia<br />

da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas com o projeto <strong>de</strong> pesquisa Neká Masá Wii –<br />

Casa da Gente Estrela – análise sociocultural do calendário astronômico Dessana, financiada pela<br />

CAPES, no biênio 2010-12. E-mail: jumibe2@gmail.com.<br />

Lucas Jatobá do Lago. Graduando em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />

Amazonas e bolsista FAPEAM do Programa <strong>de</strong> Bolsas <strong>de</strong> Iniciação Científica (PIBIC/UFAM)<br />

com o projeto <strong>de</strong> pesquisa A compreensão e representação dos astros segundo os Wahari Diputiro<br />

Porã, os avôs do mundo Dessana, no anuênio 2010-11. E-mail: lucasjatobalago@yahoo.com.br.<br />

Márcia Cristina Pereira <strong>de</strong> Melo Fittipaldy. Licenciada em História, mestranda em Desenvolvimento<br />

Regional pelo PPG/MDR da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre. E-mail:<br />

marciafittipaldy@ibest.com.br.


180 Processos <strong>de</strong> Territorialização e I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s Sociais (Volume II)<br />

Márcio André <strong>de</strong> Oliveira. Licenciado em Filosofia pela UFAM, Mestre em Sociologia pelo<br />

PPGS/UFAM. Professor do Centro Universitário do Norte/LAUREATE e Faculda<strong>de</strong> Salesiana<br />

D. Bosco. E-mail: marcioandr@hotmail.com.<br />

Maria <strong>de</strong> Jesus Morais. Professora adjunta e pesquisadora do Centro <strong>de</strong> Filosofia e Ciências<br />

Humanas e do Programa <strong>de</strong> Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universida<strong>de</strong><br />

Fe<strong>de</strong>ral do Acre (UFAC). E-mail: mjmorais@hotmail.com; mjmorais@globo.com.<br />

Maria Izabel <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>iros Valle. Socióloga, Mestre e Doutora em Sociologia (UFRJ).<br />

Professora do Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais e do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Sociologia/UFAM.<br />

E-mail: izabelvalle@ufam.edu.br.<br />

Mariana Siena. Socióloga, mestre em Sociologia, doutoranda do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação<br />

em Sociologia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Carlos (<strong>UFSCar</strong>), bolsista FAPESP.<br />

Pesquisadora do Núcleo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED) do Departamento<br />

<strong>de</strong> Sociologia da <strong>UFSCar</strong>. E-mail: mari_siena@yahoo.com.br.<br />

Mariette <strong>de</strong> Souza Espíndola (in memorian). Graduanda em Geografia – Licenciatura pela<br />

Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre. Bolsista Voluntária do Programa <strong>de</strong> Educação Tutorial.<br />

Marilina Conceição Oliveira Bessa Serra Pinto. Professora adjunta III do <strong>de</strong>partamento<br />

<strong>de</strong> filosofia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas e do Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em<br />

Sociologia PPGS/UFAM. E-mail: marilina-pinto@ig.com.br.<br />

Norma Valencio: economista, mestre em Educação e doutora em Ciências Humanas.<br />

Docente do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Ciências da Engenharia Ambiental da USP-São<br />

Carlos e do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Sociologia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Carlos<br />

(<strong>UFSCar</strong>). Coor<strong>de</strong>na o Núcleo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED) do<br />

Departamento <strong>de</strong> Sociologia da <strong>UFSCar</strong>. Bolsista Produtivida<strong>de</strong> do CNPq. E-mail:<br />

normaf@terra.com.br.<br />

Noval Benayon Mello. Economista, professor do Departamento <strong>de</strong> Economia e Análise,<br />

vinculado ao Programa <strong>de</strong> Pós-graduação <strong>de</strong> Desenvolvimento Regional (PRODERE) e<br />

Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Sociologia (PPGS) da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas<br />

(UFAM). E-mail: nbenaionmello@ig.com.br.<br />

Pedro Rapozo. Sociólogo, mestrando do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Sociologia (PPGS)<br />

da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Amazonas (UFAM), pesquisador do Núcleo <strong>de</strong> Socioeconomia<br />

(NUSEC) da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Ciências Agrárias (UFAM). E-mail: pedro_rapozo@hotmail.com.<br />

Regiani Cristina <strong>de</strong> Oliveira. Graduada em Ciências Sociais, com habilitação em ciências<br />

políticas, pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre (UFAC). Mestre em Desenvolvimento Regional<br />

pelo PPG/MDR da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Acre. Atua na Secretaria Municipal <strong>de</strong><br />

Cidadania e Assistência Social (SEMCAS) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2005, ocupando hoje a função <strong>de</strong> Diretora<br />

<strong>de</strong> Proteção Social Básica. Presi<strong>de</strong>nte do Conselho Municipal <strong>de</strong> Assistência Social. E-mail:<br />

regianicri@gmail.com.<br />

Victor Marchezini: Sociólogo, mestre em Sociologia, doutorando do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação<br />

em Sociologia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Carlos (<strong>UFSCar</strong>) e bolsista FAPESP.<br />

E-mail: victor_marchezini@yahoo.com.br.

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