Anne Caroline Nava Lopes - Outros Tempos
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO MARANHÃO<br />
CENTRO DE EDUCAÇAO CIÊNCIAS EXATAS E NATURAIS<br />
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA E GEOGRAFIA<br />
CURSO DE HISTÓRIA<br />
ANNE CAROLINE NAVA LOPES<br />
FINITUDE HUMANA E REARRANJOS DA SENSIBILIDADE FÚNEBRE:<br />
das “belas mortes” às mortes selvagens<br />
São Luís<br />
2008
ANNE CAROLINE NAVA LOPES<br />
FINITUDE HUMANA E REARRANJOS DA SENSIBILIDADE FÚNEBRE:<br />
das “belas mortes” às mortes selvagens<br />
São Luís<br />
2008<br />
Monografia apresentada ao curso de História<br />
Licenciatura da Universidade Estadual do<br />
Maranhão como requisito para obtenção do grau<br />
de Licenciada em História.<br />
Orientador: Prof. Ms. Yuri Michael Pereira Costa
ANNE CAROLINE NAVA LOPES<br />
FINITUDE HUMANA E REARRANJOS DA SENSIBILIDADE FÚNEBRE:<br />
Aprovada em / /<br />
das “belas mortes” às mortes selvagens<br />
Monografia apresentada ao curso de História<br />
Licenciatura da Universidade Estadual do<br />
Maranhão como requisito para obtenção do grau<br />
de Licenciada em História.<br />
BANCA EXAMINADORA<br />
____________________________________________<br />
Prof. Ms. Yuri Michael Pereira Costa (Orientador)<br />
Universidade Estadual do Maranhão<br />
____________________________________________<br />
Universidade Estadual do Maranhão (Examinador)<br />
____________________________________________<br />
Universidade Estadual do Maranhão (Examinador)
A minha mãe, pelo seu infinito amor por<br />
mim, aos meus avós (in memorian)<br />
Gualter Gonçalves <strong>Lopes</strong> e Elza Lima de<br />
Holanda, por terem me proporcionado<br />
uma infância doce e uma educação digna.
AGRADECIMENTOS<br />
A Deus, por ser uma força de amor em meu coração.<br />
À minha mãe, por alimentar meus sonhos e por representar um adorável<br />
reencontro em nossas infinitas vidas.<br />
Aos meus avós Francisco <strong>Nava</strong> e Hail <strong>Nava</strong> pelo amor e carinho<br />
dedicados em minha vida.<br />
Aos meus irmãos, Silvia, Rosilene e Neto pelo apoio e compreensão.<br />
Á minha cunhada Leda, pelas horas de descontração.<br />
Á amiga Heidy Kellem, pela amizade e força nos momentos difíceis e pelo<br />
incentivo dado carinhosamente em todos os meus grandes desafios.<br />
À minha amiga Luadyna, por seu apoio e por sua amizade. À Leandro<br />
Martins pelo apoio na tradução do texto em francês.<br />
Á amiga Suzany, por ter sido sempre uma boa companhia.<br />
Á minha “prima” Sergiliana <strong>Nava</strong> pelo incentivo, caronas, xérox e por<br />
sempre ter separado artigos sobre a minha temática quando achava que me seria<br />
útil.<br />
Aos colegas de minha turma do Mestrado em Ciências Sociais, Nicole,<br />
Denise e Rafael Moscoso (pequenas lontras), que até atrapalharam um pouco me<br />
fazendo convites para sair, mas agradeço pelas idéias e incentivo!<br />
À professora Ednalva Maciel Neves pela parceria, sugestões e<br />
principalmente por ter acreditado em minha potencialidade e por ser uma inspiração<br />
constante no amadurecimento dessa temática.<br />
Aos professores do curso de História da UEMA, Henrique Borralho, Júlia<br />
Constança, Josenildo, Helidacy e Marcelo Cheche, por terem contribuído bastante<br />
com suas reflexões em sala de aula e pelo estímulo dado em toda nossa<br />
aprendizagem.<br />
Especialmente ao professor Yuri, por seu apoio sempre presente, pelas<br />
aulas sempre interessantes e principalmente por ter me estimulado a melhorar cada<br />
vez mais diante dos desafios, que sem a sua ajuda, não teria superado com êxito.<br />
Ao meu companheiro, Thiago Henrique Melo Gomes pelo seu apoio e<br />
incentivo na busca pelo conhecimento. Por sua companhia e por seu doce amor que<br />
dá alegria e sentido aos meus dias.
“Por fim a morte pálida com sua mão gelada<br />
Com o tempo acariciará teus seios;<br />
O belo coral de teus lábios empalidecerá<br />
A neve de teus mornos ombros será fria areia<br />
O doce piscar de teus olhos / o vigor de tua mão<br />
Por quem caem / cedo desaparecerão<br />
Teu cabelo / que agora tem o tom de ouro<br />
Os anos farão cair, uma comum madeixa<br />
Teu bem formado pé / a graça de teus movimentos<br />
Serão em parte pó / em parte nada e vazio.<br />
Então ninguém mais cultuará teu esplendor agora<br />
divino<br />
Isso e mais que isso por fim terá passado<br />
Só teu coração todo o tempo durará<br />
Porque de diamante o fez a natureza”<br />
Christian Hofmann von Hofmannswaldau
RESUMO<br />
Este trabalho inicia-se com uma abordagem teórica sobre as concepções de morte e<br />
sobre a chamada morte domada sob o controle e domínio eclesiásticos. Apresenta-<br />
se uma discussão acerca do imaginário fúnebre e das práticas mortuárias e por<br />
conseqüência uma análise sobre a mudança de sensibilidade no que diz respeito a<br />
morte no Ocidente e no Brasil do século XIX que circulavam em meios elitistas,<br />
estritamente ligada ao ideal católico. Discute-se em seguida a questão do domínio<br />
sobre a morte e os mortos, isto é, sobre a organização da morte que reflete disputas<br />
entre os homens da Igreja e homens da ciência. Por fim, busca-se apresentar os<br />
principais efeitos da mudança de sensibilidade fúnebre – aprofanada –<br />
demonstrando os novos medos, as novas formas de expressões e sentimentos e o<br />
processo de interdição da morte.<br />
Palavras-chave: Morte. Igreja. Religião. Sensibilidade. Ciência.
ABSTRACT<br />
This work begins with a theoretical approach on concepts of death and the so-called<br />
death domada under control and area church. It presents a discussion about the<br />
imaginary funeral and practices mortuárias and consequently an analysis of the<br />
change of sensitivity with regard to death in the West and Brazil in the nineteenth<br />
century that circulated in media elitist, strictly linked to the Catholic ideal. It discusses<br />
then the question of control over the death and the dead, that is, on the organization<br />
of death that reflects disputes among men of the Church and men of science. Finally,<br />
seeks to present the main effect of a change of sensitivity funeral - aprofanada -<br />
demonstrating the new fears, new forms of expressions and feelings and the process<br />
of banning the death.<br />
Keywords: Death. Church. Religion. Sensibility. Science.
SUMÁRIO<br />
1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................9<br />
2 DE COMPANHEIRA A VILÃ: a morte .............................................................13<br />
3 PRÁTICAS FÚNEBRES: o império da lógica religiosa ....................................14<br />
3.1 A morte e o caminho do céu: imaginário e expressões da morte na arte<br />
medieval ...........................................................................................................16<br />
3.2 O domínio sobre a morte e os mortos: disputas entre os homens da<br />
Igreja e os homens da ciência médica ............................................................17<br />
3.3 O processo civilizador: a morte e o progresso da ciência médica e a<br />
intervenção estatal sobre as práticas corporais – tempo de mudança ............20<br />
4 OS EFEITOS DE UMA NOVA SENSIBILIDADE PROFANA: novos medos,<br />
formas de expressões e sentimentos e a interdição da morte .........................23<br />
5 CONCLUSÃO ..................................................................................................48<br />
REFERÊNCIAS ................................................................................................50<br />
ANEXOS ...........................................................................................................50
1 INTRODUÇÂO<br />
Este estudo é continuidade da reflexão feita na monografia do curso de<br />
Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, intitulada Dessacralização<br />
da Morte: o advento do cemitério na cidade de São Luís/MA. O referido trabalho já<br />
abordava o tema da morte, mas agora, a presente monografia se estende para a<br />
questão de mudanças de sensibilidade sobre a morte no Ocidente e no Brasil do<br />
século XIX. Essa reflexão também é decorrente da pesquisa que desenvolvo no<br />
mestrado em Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão.<br />
Sobre a morte, vem-se desenvolvendo uma série de estudos, debates e<br />
pesquisas que são testemunhos de um investimento considerado novo sobre as<br />
atitudes e sensibilidades coletivas acerca desse fenômeno. É relativamente recente<br />
que o tema da morte torna-se um campo de investigação, pois as relações entre<br />
corpo, sexualidade e morte foram, por muito tempo, consideradas “tabus” pela<br />
mentalidade coletiva e, também, no meio acadêmico. É possível que a morte como<br />
uma invariante ideal e essencial na experiência humana tenha tornado a sua própria<br />
história tão fascinante.<br />
Nascemos, vivemos e morremos. E então, tem que ser sempre assim?<br />
Por que? O que acontece depois? A vida tem mesmo um fim? O que fazer? Estas<br />
perguntas têm desafiado a humanidade através da história do mundo. Nosso<br />
entendimento do que acontece antes, durante e após a morte influencia muito a<br />
maneira pela qual vivemos e pensamos sobre nós mesmos.<br />
Uma grande influência é exercida pelo discurso religioso na tentativa<br />
de dar explicações para questionamentos como esses. Tais explicações geralmente<br />
expostas por meio de parábolas, ilustrações e enigmas. E em relação às explicações<br />
acerca caráter de nossa finitude, algo permanece envolto em um mistério: por que<br />
somos mortais?<br />
De acordo com o Catolicismo, a resposta encontra-se no pecado<br />
cometido por Eva e depois por Adão, ao terem comido o fruto da árvore proibida no<br />
Jardim do Éden – o chamado pecado original. Como escrito na Bíblia, em Gênesis<br />
2:16-17 (NOGUEIRA, 2005, p. 33):<br />
E ordenou o Senhor Deus ao homem, dizendo: de toda árvore do jardim<br />
comerás livremente, mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não<br />
comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás.
Entretanto, existem outras espécies de explicações sobre a morte, as<br />
perspectivas filosóficas, míticas, científicas etc. De qualquer modo, cada uma das<br />
perspectivas, a sua maneira, procura confortar e dar esperança ao ser humano,<br />
diante do que é inevitável e temível: a morte.<br />
Pesquisar sobre a morte não é uma das atitudes mais confortáveis para<br />
aqueles que assumem o medo que sentem dela. Diante dessa afirmação, nos<br />
deparamos com a inevitável e certa condição mortal que possuímos e refletir sobre<br />
isso, de certo modo, não é algo muito agradável.<br />
O refletir sobre a morte, a necessidade de estudar e compreender sua<br />
dinâmica tem uma ligação particular sobre a certeza que possuímos de que tudo que<br />
é orgânico um dia finda, esvai-se, desaparece, morre. Mas, para além de reflexões<br />
pessoais, este trabalho almeja contribuir com o conhecimento de que a experiência<br />
de viver e morrer são momentos singulares de nossa existência humana e que tais<br />
processos adquiriram sentidos e significados ao longo da história. Dessa maneira, o<br />
objetivo do trabalho aponta para a discussão sobre a relação entre a finitude<br />
humana, as práticas sociais e os rearranjos da mentalidade social.<br />
O lidar com o fato de que todas as formas de vida, incluídas as nossas,<br />
têm um fim, é tradicionalmente considerado um problema para os vivos. Diante de<br />
tal condição inevitável, foram forjados sentidos e representações levando-se em<br />
consideração a influência dos mortos na vivência em sociedade.<br />
A abordagem sobre a temática da morte que aqui se deseja construir<br />
ultrapassa uma conotação biológica e assume sua significação na esfera social.<br />
Portanto, a presente investigação não é sobre a morte física ou sua experiência em<br />
nível psicológico, mas sobre a morte como uma expressão de nível coletivo, como<br />
sociogênese 1 .<br />
Dizer, portanto, que a morte deve ser vista a partir de sua expressão<br />
social, indo além de sua significação biológica, significa dizer que determinações<br />
sobre a vida e sobre a morte devem se afastar das explicações dos chamados<br />
acontecimentos “naturais” e, portanto, devem ser percebidos como inteiramente<br />
modelados pelo contexto histórico e social. Além disso, não se deve deixar de<br />
considerar que os modos, os gestos, os comportamentos e costumes diante do<br />
1 A referência da necessidade de uma abordagem em nível de sociogênese significa perceber os<br />
fenômenos históricos em suas múltiplas relações e interações sociais, não no nível individual<br />
(psicogênese), mas sim no nível coletivo.
morrer transformam-se ao longo do tempo, visto que são indissociáveis da própria<br />
evolução das sensibilidades, que são, por sua vez, socialmente construídas.<br />
As atitudes em relação à morte e a imagem que a morte possui em nossa<br />
sociedade não podem ser entendidas a partir de uma perspectiva meramente<br />
psicológica de visibilidade e compreensão individual. Só a partir de uma perspectiva<br />
de dinâmica do imaginário coletivo podemos conferir significação social à<br />
experiência humana de deparar-se com sua condição finita.<br />
Na perspectiva de utilizar o imaginário sagrado da morte a partir das<br />
práticas sociais que circulavam em meio às elites no Ocidente, no Brasil e por<br />
extensão em São Luís no século XIX, busca-se pensar os ritos fúnebres e as<br />
práticas presentes no sistema cultural da morte percebendo sua mudança de<br />
sensibilidade. Acreditamos que as noções de representações 2 e reconfigurações<br />
podem nos auxiliar nessa empreitada na medida em que poderemos perceber o fato<br />
de que a sociedade gradualmente confere novos sentidos aos fenômenos sociais<br />
frutos da própria dinâmica que passa a conferir valor ao individualismo, laicização e<br />
humanismo.<br />
Ressalta-se, que este trabalho não tem como objeto de investigação as<br />
representações sobre a morte na cidade de São Luís no século XIX. Não é nossa<br />
proposta fazer uma espécie de História do Maranhão. O que desejamos aqui<br />
construir é uma análise sobre a mudança de sensibilidade sobre a morte no<br />
Ocidente e no Brasil do século XIX e isso se justifica pela necessidade de abordar a<br />
questão da mudança de sensibilidade fúnebre pela perspectiva da longa duração,<br />
afim de que possamos compreender uma dinâmica mais ampla das práticas sociais<br />
para então percebermos o processo atual de “desformalização” da relação com a<br />
morte.<br />
2 A noção de “representações” que aqui utilizamos está fundamentada em Roger Chartier, que aponta<br />
que estas são elementos que tentam reconstituir o imaginário de organizações sociais e de sua<br />
realidade, bem como de suas significações. Desse modo, para esse autor, os comportamentos<br />
sociais decorrem de um modo que as representações são incorporadas pelo sujeito, uma vez que se<br />
tratam de significações presentes num sistema de idéias dos costumes de uma época. Nesse<br />
sentido, utiliza-se nesse trabalho as noções de “representações”, pois para Chartier (1987, p. 17) “as<br />
representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um<br />
diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam”.
Abordar o tema da morte em sua dimensão simbólica implica em<br />
evidenciar a forma como se constitui o sistema cultural da morte e seus significados<br />
a partir de um referencial sagrado. A partir disso, reflete-se sobre a sua<br />
reconfiguração – profanação.<br />
Assim, o interesse do estudo recai sobre a “substituição” conflituosa das<br />
formas de controle social eclesiásticas pelas formas estatais de domínio sobre a<br />
organização da morte no século XIX, o que nos implica afirmar que estamos diante<br />
de segmentos sociais específicos (a elite). Por outras palavras, é a problemática das<br />
“relações de poder” 3 em torno do domínio dos modos de como as pessoas morrem,<br />
de como elas lidam com a morte, de que maneira deveria esta ser vivida e antes<br />
disso, de como deveria ser evitado o encontro com a morte. Estas eram algumas<br />
das questões que estavam em jogo.<br />
Segue-se, em conseqüência de tais disputas, o que Norbert Elias 4<br />
designa de impulso de desformalização da relação com a morte. Ou seja, trata-se de<br />
uma nova experiência de uso e costumes coletivos fúnebres que advém do recuo<br />
das práticas religiosas que tradicionalmente davam forma às condutas que se<br />
deveria ter diante dos moribundos.<br />
No entanto, não nos contentamos com apenas essas constatações, vez<br />
que desejamos buscar as determinações causais e como uma delas, sob forma de<br />
hipótese, apontamos a medicalização da relação com a morte, que coloca a morte<br />
no patamar científico e não mais na ordem dominada anteriormente pela religião,<br />
principalmente no que concerne à passagem da vida na terra para o mundo<br />
sobrenatural.<br />
As relações entre vida e morte estão permanentemente conjugadas e<br />
quando são pensadas nas sociedades ocidentais modernas remetem-nos às<br />
concepções próprias de morte dessa cultura. A “morte moderna” que é fruto de uma<br />
administração da morte pelo poder médico cuja sensibilidade é uma expressão dos<br />
valores modernos.<br />
3 Entenda-se “relações de poder” pela perspectiva de Foucault, que sugere a existência de condições<br />
historicamente determinadas de ações de poder de uns sobre os outros (FOUCAULT, 2003).<br />
4 A utilização conceitual de Norbert Elias nesse trabalho, não se faz na perspectiva de perceber<br />
qualquer tipo de evolução entre sociedades, como um impulso que decorre de um processo<br />
civilizatório, tal como parece acreditar o referido autor. Apenas enfocamos as mudanças históricas e<br />
suas transformações.
Advertimos que experiência da morte deve ser historicizada, pois todas as<br />
representações da morte estão imersas em contextos sociais e culturais que<br />
determinam de modo significativo as atitudes coletivas onde se encontram o<br />
imaginário, os rituais, os gestos, onde se prolongam os medos e onde se cristalizam<br />
os mistérios. Resta-nos indagar como mudou o sistema de representações coletivas<br />
em torno do tema da morte de sua dimensão sagrada para outra profana.<br />
A atualidade do tema e a reflexão realizada neste trabalho dão-se pela<br />
motivação de discutir um tema por muito tempo silenciado, enquanto um assunto<br />
interditado e banido do cenário da vida, uma vida moderna que se caracteriza cada<br />
vez mais pela atitude de recusa da morte. Dessa maneira, deseja-se reconhecer a<br />
importância da temática da morte como algo importante vinculado aos fenômenos da<br />
vida fazendo com que a mesma adquira valor e possa ser vivenciada em toda a sua<br />
dimensão. O debate em torno da morte é, portanto, fundamental para a<br />
compreensão da vida.<br />
Nesse ínterim, dispomos de estruturas de longa duração, que possibilitam<br />
alargar o plano dos acontecimentos e ainda visualizar os fenômenos, a configuração<br />
e suas densas variações (FOUCAULT, 2008, p. 56).<br />
É para estabelecer as séries diversas, entrecruzadas, divergentes muitas<br />
vezes, mas não autônomas, que permitem circunscrever o “lugar” do<br />
acontecimento, as margens de sua contingência, as condições de sua<br />
aparição.<br />
O trabalho está basicamente dividido em três partes. Em um primeiro<br />
momento faremos uma discussão geral das atitudes e representações perante a<br />
experiência da morte no século XIX no ocidente e no Brasil, ressaltando a<br />
importância da perspectiva do imaginário fúnebre religioso e das disputas que se<br />
fizeram no tocante à. organização da morte. Num segundo momento, discutiremos<br />
os novos arranjos e dinâmicas sociais decorrentes de um discurso médico e de um<br />
controle estatal sobre as práticas corporais. Num terceiro momento, discutiremos<br />
sobre os efeitos modificadores com o trato da morte que são mais comuns aos<br />
nossos atuais costumes, ou seja, será feita uma referência à construção da idéia de<br />
uma morte mais “selvagem” que suplanta as consideradas “belas mortes”.
2 DE COMPANHEIRA A VILÃ: a morte<br />
Assim, [isto é, calmamente] morreram as pessoas durante séculos ou<br />
milênios... Essa atitude antiga, para a qual a morte era ao mesmo tempo<br />
familiar, próxima e amenizada, indiferente, contrasta com a nossa, em que a<br />
morte provoca tal medo que não mais temos coragem de chamá-la por seu<br />
nome. É por isso que chamo essa morte familiar de morte domesticada.<br />
Não quero dizer que tenha sido selvagem anteriormente... Quero dizer, ao<br />
contrário, que se tornou selvagem hoje (ELIAS, 2001, p. 20). 5<br />
A instigante imagem da morte domesticada como um acontecimento<br />
familiar, ou melhor, uma suposição de imagem da morte como um processo sereno<br />
e calmo apresentado por Áries (2003), significa um sentido de morte naturalizado ao<br />
extremo.<br />
Morrer, pode ter significado dor e tormento na Idade Média. Antigamente,<br />
em meados do século XIV e XV, por exemplo, os indivíduos tinham menos<br />
possibilidades de aliviar suas dores e tormentos físicos. Muitas pessoas morreram<br />
em terríveis agonias assoladas pelas pestes e muitas delas temiam a morte que as<br />
circundavam. Será que é realmente possível falar em morte pacífica no passado?<br />
Nessa configuração é possível afirmar que a morte era mais familiar, mas<br />
não dá para fazer a mesma constatação no sentido de afirma que se morria<br />
serenamente.<br />
Havia uma atitude de aproximação entre vivos e mortos para possibilitar<br />
um “bem morrer”, entretanto, diante da derradeira hora de “partir”, a referida<br />
tranqüilidade era apenas aparente.<br />
A vida na Idade Média era mais curta, breve. Os perigos de surtos<br />
epidêmicos, aparecimento e contaminação das pestes, mais intensos. O medo da<br />
morte, das punições, do inferno, da não salvação da alma propagados pela religião<br />
oficial, mais forte, segundo Lins (1999, p. 17):<br />
A vida na Idade Média era muito mais uma vida de morte; a mortalidade era<br />
extremamente alta, a expectativa de vida não ultrapassava os trinta anos de<br />
idade, aliás, conseguir chegar aos quarenta era uma façanha para poucos...<br />
De fato a morte era familiar e estava presente no cotidiano, contudo, o<br />
medo também estava aí, não se queria morrer.<br />
Interessado no estudo de bem morrer, Áries (2003) define uma<br />
concepção de morte “normal” demais, deveras tranqüila e serena, embora tenha<br />
razão em afirmar que a morte fazia parte do cotidiano, da esfera pública social.<br />
5 O autor refere-se ao modelo de “morte domesticada” de Áries (2003).
Segundo o referido autor, a época moderna representa a morte como mais<br />
selvagem, temida e privativa. No que concordamos.<br />
Desse modo, pensando as determinações da dinâmica do processo de<br />
“morrer”, o imaginário sagrado do fenômeno da morte adquire particularidades em<br />
razão do tipo de organização e sistema de significação religioso que o determina.<br />
Constata-se que foi dentro do campo religioso católico, que se instituiu um<br />
imaginário fúnebre principalmente no contexto medieval do qual herdamos os<br />
códigos sagrados de significação da morte.<br />
A Igreja Católica como instituição reguladora se constituía como um<br />
espaço social que exercia controle disciplinar sobre os indivíduos. A tradição católica<br />
tinha como base a expectativa da vida eterna ao lado de Deus, dos anjos e santos<br />
católicos. A salvação da alma era a essência do viver e do morrer.<br />
Não restam dúvidas de que morte e religião estão diretamente<br />
conectadas. A questão é que, na história dos homens, os mitos e mesmo a própria<br />
religião surgiram da necessidade de se dar explicações para os acontecimentos que<br />
a razão humana não conseguia explicar.<br />
Assim, a morte ao que tudo indica, parece ter encontrado na religião sua<br />
forma mais eficaz de ser organizada. Desse modo, a sensibilidade religiosa, seus<br />
rituais, crenças e explicações permearam o morrer com a sua própria lógica<br />
sagrada.<br />
Ainda que tais explicações míticas e, sobretudo, religiosas tenham tido<br />
uma determinante influência sobre a forma de pensar e agir das pessoas e ainda<br />
que elas tenham sido modeladas pelas inspirações religiosas, não se pode, contudo,<br />
afirmar que morriam serenamente.<br />
No intuito de superar a perspectiva de que no passado as pessoas<br />
morriam serenas e tranqüilas e pensando o “morrer” como tormento, dor e agonia<br />
para todos que o vivenciaram, tenta-se ultrapassar uma visão romântica daquilo que<br />
pode ser em última análise um momento de inúmeras intranqüilidades e pavor, ainda<br />
que anteriormente esse momento fosse vivenciado mais publicamente. Segundo<br />
Elias (2001, p. 23):<br />
Em resumo, a vida na sociedade medieval era mais curta; os perigos menos<br />
controláveis; a morte, muitas vezes mais dolorosa; o sentido da culpa e o<br />
medo da punição depois da morte, determinados pela doutrina oficial.<br />
Porém, em todos os casos, a participação dos outros na morte de um<br />
indivíduo era muito mais comum.
De acordo com Rinaldi (1999, p. 103), nesse mundo familiarizado com a<br />
morte acreditava-se que os mortos apenas dormiam e o leito era o lugar da morte.<br />
Além disso, havia intensas manifestações de luto, que se iniciavam antes mesmo do<br />
último suspiro do moribundo. A crença no repouso dos mortos persiste até hoje,<br />
embora em fins do século XIX, nas regiões economicamente mais desenvolvidas, a<br />
maneira simples e pública de morrer deixou de ser dominante.<br />
Diante desse estilo de morte domada 6 desenvolvido por Áries (2003), se<br />
tem uma apresentação característica dessa atitude tradicional de morte, qual seja,<br />
uma faceta da morte “amiga” que se anunciava ao moribundo através de sonhos e<br />
pressentimentos.<br />
A crença de que a morte avisava e anunciava sua hora atravessou<br />
séculos e ainda perdurou bastante no imaginário popular, porque de fato estava<br />
enraizada na vida cotidiana. Assim, a considerada premonição da morte era<br />
percebida enquanto algo natural e todos sabiam que iam morrer, pois eram de<br />
alguma forma avisados.<br />
Diante dessa morte “amiga”, os moribundos, ao sentirem sua morte cada<br />
vez mais próxima, tomavam suas devidas providências. Preparavam suas pompas<br />
fúnebres, redigiam testamentos, confeccionavam sua mortalha e esperavam a hora<br />
derradeira.<br />
Apesar desse modelo de morte ter persistido por muito tempo, não se<br />
manteve sob um pano de fundo de imobilidade. A morte considerada legítima,<br />
observando a construção de Áries (2003), era aquela da vida cotidiana, que se<br />
anunciava e para a qual cada indivíduo se preparava. Contudo, essa maneira de<br />
morrer gradualmente transformou-se e cedeu espaço para mudanças que nos<br />
atingiram diretamente em nossa atual maneira de trato com a morte.<br />
Em outras épocas, morrer era uma questão mais pública do que é hoje.<br />
Nascimento e morte eram eventos mais sociáveis, ao contrário de hoje. Morrer era<br />
menos privativo. Diante do impulso civilizador 7 e das atitudes de controle laicizado<br />
6 Trata-se de uma espécie de morte familiarizada, que tinha a tendência de aproximar os vivos e<br />
mortos, pois no cotidiano, segundo esse modelo, a morte era um fenômeno natural e que fazia parte<br />
da esfera pública.<br />
7 A idéia de “impulso civilizador” desenvolvida por Norbert Elias é aqui utilizada com o fim de<br />
percebermos o tempo como fator de mudanças históricas, mas não comungamos de nenhum tipo de<br />
ideal evolucionista entre as organizações sociais, pois não concebemos nenhuma espécie de níveis<br />
etapistas de civilidade.
da morte, ela acabou por ser banida do cotidiano. Passou a ser ainda mais<br />
temerosa. Segundo Rinaldi (1999, p. 107):<br />
A laicização que vai atingir tanto a vida quanto a morte, no Século das<br />
Luzes, aprofunda a dualidade corpo e alma, o que tem repercussões nos<br />
costumes funerários. A transformação do corpo humano em objeto, a<br />
apropriação da morte pela medicina e o desenvolvimento da ideologia da<br />
higiene, com a separação dos cemitérios das cidades, vão caracterizar um<br />
processo em que a morte se distancia do homem, até se tornar alteridade<br />
absoluta na época contemporânea.<br />
Assim a morte passou a ser considerada um dos grandes perigos da vida<br />
humana não resolvido pela medicina e torna-se cada vez mais empurrada para os<br />
bastidores da vivência social.<br />
Durante o curso do processo civilizador e das mudanças históricas que se<br />
iniciaram a quatrocentos ou quinhentos anos, as formas de atitudes dos indivíduos<br />
em relação à morte sofreram reestruturações profundas.<br />
O corpo passa a ser objeto de estudo da medicina e da ciência. Os<br />
progressos da anatomia e da dissecação dos cadáveres e os limites entre a vida e a<br />
morte se transformaram significativamente, bem como modificaram a relação do<br />
indivíduo com a morte.<br />
Esta reflexão está, portanto, voltada para o imaginário e suas<br />
determinações que os agentes sociais expressaram diante da vivência sagrada do<br />
sistema cultural da morte e, por conseqüência, na reconfiguração das<br />
representações permeadas de novas interpretações e sensibilidades impostos pelo<br />
domínio médico que transformou a natureza social das práticas, comportamentos e<br />
atitudes diante desse fenômeno.<br />
Assim, as mudanças de atitude diante da morte estão ligadas ao<br />
aparecimento de uma sensibilidade nova, uma espécie de reviravolta da<br />
sensibilização. É o tempo em que as “belas mortes”, das mortes românticas cedem<br />
espaço para uma atitude de negação e medo da morte. Uma espécie de morte<br />
“selvagem” se apresenta, uma morte cada vez mais rápida, solitária e discreta. De<br />
acordo com Rinaldi (1999, p. 107):<br />
Ariès assinala, contudo, que na segunda parte do século XIX, a morte deixa<br />
de ser bela e tem novamente realçados seus aspectos repugnantes. O que<br />
era dito na Idade média para depois da morte, transfere-se para a agonia<br />
pré-morte Ela se torna inconveniente como as secreções do corpo, obscena<br />
e suja. O medo da morte advém não apenas da sua negatividade, mas da<br />
repugnância que ela provoca. Torná-la pública passa a ser indecente. A<br />
relação entre o moribundo e as pessoas que o cercam também se modifica<br />
e este é mantido na ignorância de seu estado, mentira que tem sua origem<br />
no amor pelo outro e na tentativa de protegê-lo. Não há mais aviso e se<br />
desenvolve um quadro de dissimulação do qual o moribundo participa.
A prática e a experiência nova sobre a morte se generalizaram. De<br />
companheira, a morte passou a ser a grande vilã dos indivíduos de todos os tempos.<br />
A supressão da morte do cenário familiar foi uma forma de excluí-la do cenário da<br />
vida.
3 PRÁTICAS FÚNEBRES: o império da lógica religiosa<br />
Na nossa sociedade atual, que está voltada para o culto do corpo, da<br />
beleza, de uma vida saudável, soa até estranho falar cotidianamente de defuntos,<br />
sepulturas e cemitérios. O medo que sentimos de nos depararmos com a morte<br />
também nos afasta dos moribundos, dos cemitérios, enterros e hospitais, e até é<br />
capaz de nos causar constrangimento no momento de dar os pêsames a alguém.<br />
Todo este panorama de interdição é resultado do que se convencionou chamar de<br />
“tabu da morte”.<br />
Mas, se fizermos referência ao Maranhão colonial, e mesmo imperial,<br />
assim como em todo território brasileiro, veremos que essa atitude de interdição,<br />
ocultamento e recusa da morte presentes nos dias de hoje, era uma exceção à regra<br />
naquelas épocas. Àquela época, a regra era a de que a morte e os moribundos<br />
também faziam parte do cotidiano.<br />
O medo da morte foi um dos pilares sobre os quais a Igreja Católica<br />
estruturou-se como instituição predominante no controle dos códigos da morte.<br />
Entendam-se tais códigos por expressões ritualísticas, imaginário, controle sobre os<br />
corpos e condutas incorruptíveis, sacramentos etc. Tais atitudes controladas pela<br />
igreja conferiam mais familiaridade e publicidade ao processo de morrer. Segundo<br />
Rodrigues (1981, p. 55):<br />
Todas estas questões nos possibilitam compreender a familiaridade entre<br />
vivos e mortos que havia tempos atrás. A proximidade física dos fiéis com<br />
os mortos, no período colonial e em parte do imperial, se fez acompanhar<br />
de rituais funerários que primavam pelos detalhes, pela publicidade e pela<br />
exterioridade, fazendo parte do que se convencionou chamar de<br />
“catolicismo barroco brasileiro”. Os costumes fúnebres de então foram muito<br />
apropriadamente denominados, por João José Reis, como “a morte<br />
enquanto festa”.<br />
Essa forma de morrer caracterizada pelo espetáculo fúnebre, pela<br />
festividade era bastante comum em épocas onde a morte era uma expressão da<br />
simbologia sagrada, na qual a publicidade era a regra.<br />
A sensibilidade religiosa católica sobre a morte, que prevaleceu até<br />
meados do século XIX, tanto no Brasil como na Europa era vista como uma espécie<br />
de rito de passagem entre a vida física e a vida espiritual eterna. Ordenados pelos<br />
rituais e crenças religiosas, o agir e o sentir em relação à morte eram profundamente<br />
orientados no sentido de garantir um bom lugar na vida eterna, no paraíso, no céu.
Essa estrutura imaginária está ligada à noção de “boa morte”, isto é, uma<br />
preparação em vida para uma morte tranqüila e planejada. Para Koury (2003, p. 59):<br />
A busca de morrer bem está associada assim às estratégias lançadas por<br />
alguém em vida para livrar-se da morte eterna. A morte eterna é uma noção<br />
extrema na complexa simbologia cristã. Segundo esta, no Juízo Final os<br />
mortos ressuscitarão após um julgamento divino particular de cada pecador.<br />
Portanto, boa morte significava conseguir a salvação da alma, superar as<br />
culpas, preparar-se e reparar-se quando possível para apresentar no céu um<br />
histórico digno de salvar o espírito do “fogo do inferno”. A boa morte era alcançada<br />
em decorrência de uma vida sem pecados em conformidade com as condutas<br />
comportamentais imperativas dos preceitos católicos e sempre acompanhada de<br />
rituais, orações, doação de esmolas, com vistas a obtenção da salvação do<br />
moribundo. Eram as lições da Igreja que conferiam sentido a noção de boa morte.<br />
Assim, a boa morte remontava a fenecer no leito domiciliar acompanhado<br />
de parentes e conhecidos e, para assegurar o perdão da alma, atos e condutas de<br />
“bom cristão” como, por exemplo, socorrer os pobres dando esmolas, reparar-se<br />
com os seus e desprender-se de bens materiais eram indispensáveis. Segundo Coe<br />
(2005, p. 44-45):<br />
Quando se aproximava o momento da morte era necessário que se<br />
reafirmasse a crença no culto católico, pois só assim se poderia ter a<br />
intercessão de anjos e santos. Acreditava-se que havia uma verdadeira<br />
batalha entre o bem e o mal pela alma do falecido cada um buscando leválo<br />
para o “céu” ou para o “inferno”. Tudo ia depender de uma atitude<br />
humilde diante da morte onde era fundamental que o moribundo<br />
confessasse todos os erros cometidos em vida. Qualquer coisa que fosse a<br />
favor ou contra aos preceitos cristãos poderia ser contabilizada na hora do<br />
julgamento final. Se o indivíduo não tivesse coragem de fazer isto<br />
oralmente, aconselhava-se que fizesse em testamento.<br />
O devotamento e a crença católica na hora da morte podem ser ilustrados<br />
por meio da fala testamentária da Sra. Luiza Basson, moradora, à época, na cidade<br />
de São Luís-MA (TESTAMENTO DE D. LUIZA ELENA BASSON, 1821, p.2): “Em<br />
primeiro lugar declaro que sou catholica Romana em cuja crença tenho vivido, e<br />
nella espero morrer e salvar minha alma“.<br />
Era muito comum iniciar um testamento professando a fé na lógica cristã,<br />
bem como demonstrar sua crença na Igreja e nos santos e anjos católicos. Era, pois,<br />
indispensável confirmar nas formalidades testamentárias que o indivíduo sempre<br />
acreditou na intercessão da “Corte Celestial” na hora da morte. Disso dependia a<br />
salvação de sua “boa alma”.
Percebe-se, pois, que as tradicionais práticas fúnebres sacralizadas<br />
conferem à morte uma ligação estrita com a noção de eternidade, com a noção de<br />
Deus e idéia de vida no “céu” ou no “inferno”. Por conta de todo esse imaginário<br />
religioso católico é que os sepultamentos eram realizados nas próprias Igrejas, em<br />
seus altares, paredes, solo e arredores.<br />
As igrejas católicas eram, por assim dizer, verdadeiros cemitérios.<br />
Enterrava-se pelas paredes, sob os altares, abaixo deles, próximo dos oratórios, no<br />
solo, em toda parte interior e arredores. As sepulturas dentro das igrejas eram<br />
lugares sagrados nessa cultura funerária.<br />
Quanto ao medo da morte, tem-se que o temor não era exatamente o de<br />
perder a vida terrena propriamente, mas sim o de não conseguir a obtenção da<br />
salvação da alma após a “passagem”.<br />
No ambiente da São Luís em meados do século XIX, o temor não era<br />
igual ao de hoje – perder a vida terrena que prezamos – mas o de não ser salvo, o<br />
medo de ir para o “inferno” ou mesmo para o “purgatório”, onde neste último espaço,<br />
ainda que transitoriamente, haveria para a alma pecadora expiações e penas a<br />
cumprir. Decorre de toda essa simbologia o discurso eclesiástico que enaltecia a<br />
vida eterna e que propagava o medo em torno do não alcance desse objetivo e que<br />
ao mesmo tempo controlava a vida dos fiéis impondo um ideal de vida incorruptível e<br />
“correto” segundo os preceitos religiosos.<br />
Outro aspecto importante das práticas ritualísticas mortuárias era o seu<br />
caráter social. Ressalta-se os momentos de existência de cortejos – morte<br />
espetáculo – velórios e sepultamentos, todos rituais públicos. Segundo Rodrigues<br />
(1981, p. 55):<br />
O momento em que saia o cortejo acompanhando o morto era o ápice da<br />
morte-espetáculo, onde a pompa poderia ser expressa tanto na quantidade<br />
de participantes como no aparato dos objetos funerários. A morte era um<br />
acontecimento social (grifo nosso) – tanto para quem morria como para os<br />
que ficavam. Em primeiro lugar, porque se morria em casa, na companhia<br />
dos parentes, amigos, padres, inclusive crianças. Raramente a solidão fazia<br />
companhia a um moribundo. Em segundo porque, desde o leito de morte,<br />
passando pelo velório, cortejo e sepultamento, clérigos e acompanhantes<br />
leigos se faziam presentes.<br />
Esse “processo de morrer” se desenvolvia em torno do moribundo,<br />
familiares, parentes, amigos e até desconhecidos. O ambiente do quarto era o lugar<br />
mais comum do fim da vida. Esse ambiente íntimo (o quarto) era considerado o lugar<br />
onde se morria, onde ocorria a vigília das agonias e tormentos da morte, onde
ocorriam parte dos rituais religiosos (extrema unção), onde até havia doações aos<br />
pobres e correções testamentárias.<br />
Assim, todas essas práticas tornam possível a compreensão da existência<br />
da familiaridade entre viventes e moribundos numa sociedade onde a morte era<br />
vivida numa dimensão comunitária. Família, instituições religiosas e demais esferas<br />
sócias estavam em harmonia, unidas sob um vínculo forte de solidariedade para que<br />
a uma bela morte garantisse a vida eterna do moribundo no céu. Para Reis (2004, p.<br />
100):<br />
Nesse estilo de morte, o indivíduo administrava seu fim fazendo valer suas<br />
palavras. A tradição popular considerava esta uma “morte bonita”. Mas<br />
morrer assim representava um esforço coletivo. Uma boa morte era sempre<br />
acompanhada por especialistas em bem morrer e solidários espectadores.<br />
Ela não podia ser vivida na solidão.<br />
Desse modo, na então chamada morte domesticada, o processo de<br />
morrer possuía um sentido equivalente ao de um estágio preparatório para a vida no<br />
Além que se iniciava com o trespasse do morto e que culminava na efetiva obtenção<br />
de uma morada celestial devidamente assegurada. Era preciso sob todos os<br />
esforços individuais e coletivos, salvar-se. Eis uma bela morte.<br />
Por outro lado, pavorosa, amedrontadora, temerosa e fatídica era a morte<br />
abrupta, inesperada, cuja preparação ficava deveras comprometida, cujos rituais e<br />
cerimoniais eram prejudicados ou inexistentes de tão repentina que era esta forma<br />
de morte. De acordo com o ideal de boa morte, o morrer de um indivíduo nunca<br />
deveria ser vivido na solidão, repentina e privativamente.<br />
Uma boa preparação para a morte exigia uma previa feitura<br />
testamentária, no qual se poderia expressar as últimas vontades e desejos. Também<br />
se podia por meio deste ordenar o que gostaria que fosse feito com o corpo, o que<br />
usar e quantas missas se desejava que fossem celebradas, além, é claro, de<br />
distribuir os bens aos herdeiros. No instrumento de testamento também eram<br />
expressas as referências de fé e de uma vida baseada no comportamento adequado<br />
aos preceitos religiosos:<br />
Nesse intuito precavido de feitura testamentária, tem-se a figura do Sr.<br />
Sebastião Pereira de Magalhães Brito, morador da cidade de São Luís-MA<br />
(TESTAMENTO DE SEBASTIÃO PEREIRA DE MAGALHÃES, 1800, p. 1):
Em nome da Santíssima Trindade, Padre Filho e Espírito Santo, trêz<br />
pessoas distintas em hum só Deuz Verdadeiro . Eu, Sebastião Pereira de<br />
Magalhães Brito protesto viver e morrer como christão (rasurado) em não<br />
saber como Deuz disporá de minha vida determinei fazer meu testamento<br />
na forma seguinte: (...) meus testamenteiros abaixo tomem conta de tudo<br />
(...) Mas aqui por minha vontade, que por morte dos ditos meos irmãos e<br />
pela dita minha mulher, sendo inda viva aquelle tempo, pois sendo morta,<br />
passará aos meos parentes mais próximos com a obrigação de me<br />
mandarem rezar pela minha alma e de meos pais e ditos meos irmãos<br />
quinhentas missas (grifo nosso).<br />
Como a hora da morte era geralmente incerta, havia uma necessidade<br />
muito grande de precaver-se antecipadamente. Sebastião Pereira de Magalhães<br />
sabia disso e logo se precaveu, uma vez que deseja planejar-se para seu<br />
“passamento”. Ele queria garantir sua salvação e evitar que a morte chegasse<br />
repentinamente.<br />
A feitura do testamento era o momento em que o corpo ainda estava em<br />
estado de redigir o testamento e a alma ainda não havia partido para algum outro<br />
lugar no céu (preferencialmente) ou no inferno. Evitando, assim, arder no “fogo do<br />
inferno”, era necessário tirar proveito dos derradeiros dias em que o gozo das<br />
capacidades mentais permitia ao moribundo organizar suas últimas vontades.<br />
Segundo Coe (2005, p. 48), os testamentos serviam, para muitas coisas:<br />
reconhecer paternidades, dar as cartas de alforria aos escravos, favorecer com<br />
heranças aqueles que eram considerados bons servidores. Sempre se procurava<br />
esclarecer como se desejava o enterro e costumeiramente solicitavam-se missas.<br />
Também era muito comum que o indivíduo, ao perceber a iminência de<br />
sua morte, procurasse deixar bem claro no seu testamento demonstrado a sua fé e<br />
sua devoção à igreja. Toda a essência da ritualização, de um modo geral, estava no<br />
objetivo de absolvição dos pecados e no intuito de alcançar o paraíso.<br />
Era o caso de D. Anna Maria de Assumpção Vieira, maranhense<br />
(TESTAMENTO DE ANNA MARIA ASSUMPÇÃO VIEIRA, 1800, p. 2) que ordenou<br />
que fossem feitas missas em todas as igrejas da cidade de São Luís. Ela também<br />
pede para ser enterrada com o habito da Freguezia do Carmo, além de pedir a todos<br />
os santos – que pôde lembrar na feitura do testamento – para que eles<br />
intercedessem por sua bem-aventurança. Como o relato de D. Anna Maria é muito<br />
rico em detalhes, reproduzimos parcialmente seu testamento:
Em nome da Santíssima Trindade de Padre, Filho e Espírito Santo trêz<br />
pessoas lealmente distintas em hum só Deuz Verdadeiro, em quem firme e<br />
verdadeiramente creio// Eu Anna Maria de Assumpção Vieira natural da<br />
cidade de Lisboa, moradora nesta do Maranhão estando naquelle perfeito<br />
juízo (rasurado)... por me lembrar da certeza da morte e da incerteza da<br />
sua hora e chegada; e conhecendo que como catholica devo sempre estar<br />
pronta, disposta e preparada para ella, ordeno e declaro a minha última<br />
vontade por este testamento que quero seja firme e immutavel para<br />
sempre// Primeiramente entrego e encomendo meu corpo e alma a<br />
Santíssima Trindade e lhe rogo muito umildemente me receba na sua<br />
glórizão Companhia, onde vô gozar a Bemaventurança, não pelas minhas<br />
obras, mas pelo merecimento do meo Senhor Jesus Christo Segunda<br />
pessoa da mesma Trindade Beatíssima cuja incarnação, eu creio<br />
firmemente e todos os mais artigos, que crê e ensina a santa Madre Igreja<br />
Catholica Romana em cuja fé espero a salvação da minha alma, rogando a<br />
Virgem Nossa Senhora se interesse sempre a meu favor na presença de<br />
seo Bemdito filho; e a todos os santos da Corte Celestial, principalmente os<br />
da minha maior devoção, para que todos intercedão pela minha alma a fim<br />
de chegar a minha bemaventurança para que fui creada.<br />
Quero que tanto que eu falecer seja envolvido meu corpo em hum hábito da<br />
Ordem do carmo e sepultada na Igreja da mesma ordem e que meu enterro<br />
se faça conforme vzo custume dessa minha Freguezia e que por trêz dias<br />
sucesivos se digão missas pela minha alma em todas as Igrejas desta<br />
cidade, principiando no do meu falecimento ou no seguinte imediato//<br />
Quero que se celebrem mais pela minha alma quatro capellas de missas e<br />
duas pela de meo marido; duas pelas de meos pais; trêz pelas de meos<br />
irmãons e huma pela de meu filho Joaquim Vieira da Silva.<br />
Nessas horas, se a pessoa não quisesse queimar nas chamas do inferno,<br />
deveria buscar refúgio na benevolência de todo os anjos e santos possíveis.<br />
Com relação ao número de missas, aqui diferentemente do testamento de<br />
Sebastião Pereira de Magalhães, o número de missas é mais modesto. Entretanto,<br />
não menos suntuosos são os apelos a toda a “Corte Celestial” feitos por D. Anna.<br />
Percebe-se ainda toda uma preocupação com o posterior ritual fúnebre<br />
expresso na determinação de qual hábito usar no dia da morte do indivíduo, o qual<br />
seria enterrado junto com ele, como e onde se desejava ser sepultada e quantas<br />
missas para a moribunda e para outros parentes deveriam ser feitas e qual a<br />
quantidade para cada um. Por trás de todos esses pedidos havia a predisposição de<br />
se gastar tudo o que possuía em favor de um “trespasse” tranqüilo ao reino de Deus.<br />
Segundo Ariès (apud COE, 2005, p. 51), na hora da morte o testador<br />
exprimia, através das formalidades, tudo o que pensava, além de sua fé e sua<br />
confiança na intercessão de toda a “corte Celeste”, e colocava a disposição dos<br />
anjos e santos as duas únicas coisas que neste momento lhe era mais precioso: seu<br />
corpo e sua alma.<br />
A instabilidade da vida nessa época e diante de tais circunstâncias<br />
provocou um significativo aumento das atitudes de devoção – romarias, procissões,
penitências, confissões etc. – que eram praticados pelos fiéis na esperança de dias<br />
melhores e de uma eternidade feliz depois da morte. Enfatizou-se a importância da<br />
reflexão religiosa em todos os momentos do dia-a-dia, de modo a impedir que o<br />
cristão fosse se desviando pouco a pouco do caminho da salvação.<br />
Na presença da morte, inevitavelmente todos são iguais, ou seja, todos<br />
morrem. Mas as desigualdades sociais determinavam as diferenças entre rituais<br />
fúnebres pomposos dos mais humildes. De toda forma, a morte sempre aparecia<br />
para todos. É o que pode ser percebido pela reprodução de um desenho de 1486<br />
que segue abaixo:<br />
Figura 1: Da abnegação de si mesmo e a abdicação de toda a cobiça<br />
Fonte: Tufano (1990, p. 155)<br />
O desenho representa a dança da morte, um tema que caracteriza a<br />
época da peste, fome e guerra. Possuidores de uma macabra alegria, duas caveiras<br />
agarram um bispo e um fidalgo. Na presença da morte, todos são iguais.<br />
E nesse sistema cultural de morte, o morrer não elimina o ser, mas abre<br />
as portas para uma outra vida, que se desejava mais feliz, no Além. A morte é o<br />
resultado da vontade de viver eternamente com os anjos.
3.1 A morte e o caminho do céu: imaginário e expressões da morte na arte<br />
medieval<br />
É preciso não perder de vista que a preocupação com a morte e<br />
consequentemente com a salvação da alma foi uma das grandes obsessões da<br />
Idade Média. A experiência agonizante e dolorosa da brevidade da vida foi expressa<br />
constantemente na arte medieval. Os poetas medievais exploraram muito esse tema<br />
realçando a passagem do tempo e a chegada inevitável e certa da morte, que<br />
destrói o que era outrora belo, acaba com as vaidades e mesmo com as diferenças<br />
tão profundamente destacadas em vida. Todos acabam virando pó.<br />
A exemplo, tem-se os versos do poeta francês François Villon (século<br />
XV), no qual destaca como, na presença da morte, todos os homens tornam-se<br />
iguais:<br />
E cabeças que se inclinavam<br />
Frente a outras em suas vidas,<br />
Entre as quais alguns reinavam<br />
Sobre outras, por quais servidas,<br />
Eu vejo todas revolvidas,<br />
Juntas, igual confusa rama;<br />
As senhorias removidas:<br />
Mestre ou Doutor ninguém se chama.<br />
Ora estão mortos, Deus os guarde!<br />
Os seus corpos apodrecidos.<br />
Senhores, damas, em verdade<br />
Delicadamente nutridos<br />
De creme, arroz e de cozidos;<br />
Os seus ossos viraram pó:<br />
Dispensam os risos distraídos.<br />
Jesus perdoe e tenha dó (TUFANO, 1990, p. 154)<br />
O tema da morte na arte representava a preocupação dos viventes em<br />
relação à morte, ao “Juízo Final”, à salvação da alma e também fazia referência ao<br />
estado de decomposição dos corpos, O imaginário fúnebre era povoado de fantasias<br />
do “bem” e do “mal” e do perdão dos pecados.<br />
O fim da vida retratado nas expressões artísticas também fazia referência<br />
a necessidade de abnegação de si mesmo e abdicação de toda e qualquer cobiça.<br />
Estimulava-se o desapego as materialidade e vaidade do mundo e tudo em função<br />
da conquista de um bom lugar no céu. É o que demonstra o trecho do livro Imitação<br />
de Cristo (KEMPIS, 1984, p.5-54 )
Mui depressa chegará teu fim neste mundo; vê, pois, como te preparas:<br />
hoje está vivo o homem, e amanhã já não existe. Entretanto, logo que se<br />
perdeu de vista, também se perderá da memória. Ó cegueira e dureza do<br />
coração humano, que só cuida do presente, sem olhar para o futuro! De tal<br />
modo te deves haver em todas as tuas obras e pensamentos, como se<br />
fosse já a hora da morte. Se tivesses boa consciência não temerias muito a<br />
morte. Melhor fora evitar o pecado que fugir da morte. Se não estás<br />
preparado hoje, como o estarás amanhã? O dia de amanhã é incerto, e<br />
quem sabe se te será concedido? (...)<br />
Procura agora de tal modo viver, que na hora da morte te possas antes<br />
alegrar que temer. Aprende agora a desprezar tudo, para então poderes<br />
voar livremente a Cristo. Castiga agora teu corpo pela penitência, para que<br />
possas então ter legítima confiança.<br />
Por meio das palavras de um membro da Igreja, também se percebe a<br />
maneira como se institui o medo na morte durante a própria vida. Esta deve ser<br />
vivenciada de um modo incorruptível, pois as atitudes dos homens em vida devem<br />
refletir um ideal de vida religioso estabelecido pela Santa Igreja Católica. Era<br />
necessário, portanto conviver cada vez menos com o pecado, pois este poderia ser<br />
um grande obstáculo diante do salvamento da alma de um fiel.<br />
O pecado exercia um papel fundamental na intimidação da morte, pois se<br />
sabia que Deus não perdoaria uma vida desregrada e permeada de pecados diante<br />
do juízo individual a que todos seriam submetidos após a morte. O medo era tão<br />
intenso que durante a morte, todos buscavam estratégias para se redimir de suas<br />
faltas, pois tinham a certeza de que tudo Deus sabia, tudo Deus via, nada lhe era<br />
ocultado.<br />
Outro fragmento dessa mesma obra do cônego Kempis (1984, p. 53-54)<br />
demonstra a obrigação de seguir um ideal religioso de vida. Segundo ele, tudo o que<br />
não vem de Deus perecerá. Suas palavras estimulam a necessidade de rejeição da<br />
cobiça e dos comportamentos perniciosos e nocivos como o egoísmo e a<br />
ostentação. O fragmento intitula-se Da abnegação de si mesmo e abdicação de toda<br />
cobiça. Trata-se de um diálogo entre Jesus e alma cujo centro da discussão é um<br />
modelo de vida “correto”:
Jesus: Filho, não podes gozar perfeita liberdade, enquanto não renunciares<br />
inteiramente a ti mesmo: Em escravidão vivem, todos os ricos e egoístas, os<br />
cobiçosos, curiosos, que gostam de vaguear, buscando sempre as delícias<br />
dos sentidos e não as de Jesus Cristo, mas só imaginam o que não pode<br />
permanecer e só disso cogitam. Pois tudo que não vem de Deus perecerá.<br />
Conserva em teu coração esta breve e profunda sentença: Deixa tudo, e<br />
tudo acharás; renuncia a cobiça, e terás sossego. Pondera isto, e quando<br />
praticares, tudo entenderás.<br />
A Alma: Senhor, isto não é obra de um dia, nem brincadeira de criança,<br />
antes nesta breve palavra se compendia toda a perfeição religiosa.<br />
Jesus: Filho, não deves recear, nem logo desanimar, ouvindo falar do<br />
caminho dos perfeitos, mas antes esforça-te por um estado mais perfeito,<br />
ou pelo menos almeja-o ardentemente. Oxalá fosses assim e tivesses<br />
chegado a tanto, que não te amasses a ti mesmo, mas estivesses<br />
inteiramente resignado à minha vontade e à daquele que te dei por diretor.<br />
Muito me agradarias, então, e toda a tua vida passaria em paz e alegria.<br />
Nesse momento, Jesus tenta convencer uma alma da importância dos<br />
valores e ensinamentos religiosos. Exprime, ser indispensável uma vida equilibrada<br />
e destituída de egoísmo e cobiça. Fala da necessidade que os indivíduos têm de<br />
trilharem um caminho de perfeição e da prática de bons atos e condutas<br />
exemplares.<br />
A vida é literalmente muito mais uma vida de morte, pois vive-se para<br />
preparar-se para esta. Todas as condutas dos indivíduos volta-se para o momento<br />
de trespasse da alma e do lugar a qual ela estaria destinada a passar toda a<br />
eternidade<br />
Um outro exemplo de manifestação artística que tem como tema a morte<br />
é o que foi dedicado à rainha D. Leonor – representado pela primeira vez em Lisboa<br />
em 1508 – o conhecido Auto da Alma, de Gil Vicente. Neste, o autor religioso<br />
apresenta as dificuldades que devem ser superadas pela alma se ela quiser ganhar<br />
a vida eterna no paraíso.<br />
No fragmento que apresentaremos também aparecerão as figuras do<br />
Diabo e do Anjo, representações de oposição de destinos da alma posteriormente à<br />
morte do indivíduo. Na cena, a Alma é guiada pelo anjo, mas, no caminho, é<br />
abordada pelo Diabo (VICENTE, 1973, p. 140-144)
Diabo: Tão depressa, Ó delicada,<br />
alva pomba, para onde is?<br />
Quem vos engana<br />
e vos leva tão cansada<br />
por estrada,<br />
que somente não sentis<br />
Se sois humana?<br />
Não cureis de vos matar,<br />
que ainda estais em idade<br />
de crescer;<br />
tempo há de folgar<br />
e caminhar;<br />
vivei à vossa vontade<br />
e hevei prazer<br />
Gozai, gozai dos bens da terra<br />
procurai por senhorios<br />
e haveres.<br />
Quem da vida vos desterra<br />
à triste serra?<br />
Quem vos fala em desvarios<br />
por prazeres?<br />
Esta vida é descanso<br />
doce manso.<br />
Alma: Não me detenhais aqui;<br />
Deixai-me ir, que em al me fundo8<br />
(...)<br />
Anjo: Torna o Anjo à Alma, dizendo:<br />
Que andais fazendo?<br />
Alma: Faço o que vejo fazer<br />
Pelo mundo.<br />
Anjo: Ó Alma, i-vos perdendo;<br />
correndo vos is meter<br />
no profundo9!<br />
quanto caminhais avante,<br />
tanto vos tornais atrás<br />
e através10<br />
tomastes ante com ante<br />
por marcante,<br />
o cossairo Satanás,<br />
porque queres<br />
Oh! Caminhai com cuidado,<br />
que a Virgem gloriosa<br />
vos espera.<br />
Através de todas essas expressões artísticas aqui ilustradas tem-se uma<br />
demonstração com a preocupação com o sentido da vida e com o destino do homem<br />
depois da morte.<br />
8 Significa “em outra coisa me apóio, isto é, acredito em outros valores”.<br />
9 Significa “no inferno”.<br />
10 Significa “arruinar-se”.
No imaginário, presente estava o medo, na vida real, uma instituição<br />
religiosa que o alimentava. Entretanto, a relação entre vivos e mortos mudou muito,<br />
bem como as condutas humanas e o sentido da vida também.<br />
Nos deteremos agora sobre as perspectivas das disputas entre os<br />
homens da Igreja e os homens da ciência e na conseqüente mudança de imaginário<br />
relativo a morte e os mortos. Em seguida abordaremos a questão da ideologia<br />
médica e intervenção estatal sobre as práticas corporais.<br />
3.2 O domínio sobre a morte e os mortos: disputas entre os homens da Igreja e<br />
os homens da ciência médica<br />
O século XIX é considerado o momento fundamental para a compreensão<br />
dos rumos de uma nova organização da morte, que passou a ser envolvida num<br />
processo de medicalização que fazia parte de um projeto higiênico social mais<br />
amplo.<br />
Desse modo, com fins de promover uma intervenção técnica mais<br />
profilática, os médicos organizaram-se no intuito de higienizar o meio ambiente.<br />
Desejavam principalmente buscar soluções para combater os surtos epidêmicos. Ao<br />
introduzir na morte uma faceta higiênica e sanitária, o domínio religioso da morte<br />
ficou deveras comprometido. De acordo com Vovelle (1997, p. 352):<br />
Com todas as necessárias precauções, é possível afirmar que o lugar dos<br />
mortos foi inteiramente dissociado da Igreja e do templo. Em segundo lugar,<br />
evidencia-se que o século XIX foi a preparação de toda uma rede ou de<br />
toda uma constelação de ritos e novos gestos referentes à morte.<br />
Esse processo retira significativamente a morte dos domínios sagrados<br />
para ser assunto de controle higiênico das autoridades públicas, sendo a<br />
organização da morte religiosa alvo de intensas discussões. A questão crucial era a<br />
de reorganizar e disciplinar a relação entre moribundos e pessoas, rituais fúnebres e<br />
controle da igreja. Tornou-se imperativa uma administração técnica da morte e para<br />
isso era necessário questionar a organização religiosa da morte.<br />
Sugere Coe (2005, p. 26) “que ia se desenvolvendo gradativamente a<br />
idéia do caráter pernicioso da morte, sendo os enterros realizados nos templos<br />
religiosos objeto agora de inúmeras discussões”. Isso decorre do fato de que as<br />
igrejas recebiam um fluxo muito grande de pessoas que as visitavam e estas<br />
pessoas conviviam diariamente e de maneira muito próxima com os cadáveres que
eram ali sepultados. Sendo essa aproximação uma das principais causas de surtos<br />
e doenças aos vivos, houve uma real necessidade de combater tudo que poderia ser<br />
nocivo à saúde das pessoas.<br />
Diante dessa realidade e com o avanço da racionalidade e do<br />
desenvolvimento da ciência médica, novas posturas surgiram. Ainda de acordo com<br />
Coe (2005, p. 25):<br />
Com o fortalecimento da doutrina capitalista, há uma nova atitude diante da<br />
morte e dos mortos. Se até o século XVIII não havia separação radical entre<br />
a vida e a morte, a partir do século XIX essa separação se acentua. Há o<br />
avanço do individualismo, do pensamento racional, da laicização das<br />
relações sociais, da secularização da vida cotidiana. Os enterros vão sendo<br />
paulatinamente sendo objeto de inúmeras discussões, pois os<br />
sepultamentos eram realizados nos templos religiosos considerados santos.<br />
Aos poucos os enterramentos nas igrejas vão perdendo o seu caráter<br />
sagrado, assumindo um caráter cada vez mais profano. Seria o advento da<br />
“morte selvagem” e o fim da “morte familiar” que havia vigorado até então.<br />
Os discursos médicos, higiênico-sanitários passaram a ser os discursos<br />
predominantes e focos da atenção das políticas públicas e de seu ordenamento tal<br />
como ocorreram na Europa os discursos e práticas higienistas. A morte higiênica na<br />
concepção de Ariès (2003) em seu estudo sobre a morte e o morrer no ocidente deu<br />
origem ao que o autor chama de “morte interdita”, isto é, processo através do qual<br />
se institui no social contemporâneo a cultura mortuária vista através e sob controle<br />
do saber médico. De acordo com Reis (1991, p. 248):<br />
A França representava um espelho de civilização e progresso, como<br />
escreveu em sua tese um médico baiano em 1852. Tal como esse país<br />
resolvera combatera seus miasmas no século XVIII, o Brasil independente<br />
deveria combatê-los como parte de um projeto civilizatório.<br />
Desse modo, o morrer passa por uma drástica estruturação e<br />
ajustamento, tornando-se cada vez mais racional o trato com a morte, fazendo com<br />
que as velhas práticas e hábitos sagrados fossem se modificando e cedendo espaço<br />
para novos costumes.<br />
Com o advento do Código Sanitário de 1904, sancionado pelo governo no<br />
momento em que a cidade de São Luís passava por um processo de urbanização<br />
que instaurou-se um período de mudanças. Foram as preocupações relativas ao<br />
controle das doenças e infecções que impulsionaram as reformas urbanas, por isso<br />
foram as ruas alargadas, iluminadas e tornadas ventiladas, medidas consideradas<br />
indispensáveis para acabar com os miasmas. De acordo com Medeiros (2007, p.<br />
92):
Os cemitérios e necrotérios deveriam ficar longe dos centros populosos<br />
nunca a menos de 300 m de qualquer habitação, sendo construídos em<br />
pontos elevados na contra corrente das águas que venham a alimentar<br />
cisternas ou poços e na direção oposta à corrente dos ventos.<br />
Além de todas essas reformas urbanísticas, alguns anos antes, a partir do<br />
ano de 1805 foram expressamente proibidos os sepultamentos nos largos e adros<br />
das igrejas, fortalecendo cada vez mais os enterros nos cemitérios em São Luís.<br />
Mas, interessante notar que os representantes da igreja não assistiram<br />
passivamente os efeitos de todas essas inovações, que a propósito lhes diminuía a<br />
influência nas questões fúnebres. Embora a promulgação da lei tenha estimulado as<br />
pessoas a realizarem outra prática fúnebre, muitas pessoas continuaram sendo<br />
enterradas nas igrejas. Sobre isso, constatamos que mesmo com a proibição<br />
expressa dos sepultamentos realizados no interior das igrejas da cidade de São<br />
Luís, ainda aconteciam casos como o do comendador Jozé Gonçalves da Silva, que<br />
foi enterrado na Capela São José das Laranjeiras, no Centro da cidade de São Luís,<br />
em 22 de novembro de 1821. 11<br />
A partir do fim do século XIX e início do XX, a morte foi envolvida cada<br />
vez mais no processo de medicalização que culminou com a transferência do<br />
moribundo para o Hospital. De acordo com Rinaldi (1999, p. 108):<br />
Em lugar das palavras e rituais que celebravam a morte no passado, a<br />
própria palavra morte é interditada na linguagem cotidiana, assim como o<br />
doente é isolado dos parentes e amigos, não só pela dissimulação de seu<br />
estado, como também pela transferência para o hospital. Os progressos da<br />
medicina, associados ao desenvolvimento da higiene e das idéias de<br />
assepsia, fazem do hospital o locus privilegiado da morte<br />
A própria prática médica tornou-se marcada por uma intensa recusa da<br />
morte, na sua batalha pelo prolongamento da vida. O morrer deixou de ser um<br />
fenômeno natural para se tornar um sinal de impotência dos médicos que precisava<br />
ser superado. Para os médicos, a morte de um paciente representa um fracasso,<br />
que sempre os surpreende em sua luta diária em estabelecer a vida, ainda que em<br />
condições indignas. Ainda de acordo com Rinaldi (1999, p. 108):<br />
O hospital além de oferecer os recursos técnicos de tratamento das<br />
doenças graves, oferece proteção para a família contra a doença e a morte.<br />
Esta passa a ser um fenômeno técnico, e o doente, mais um “caso”. A<br />
família e o indivíduo não são mais senhores da morte, que chega solitária<br />
para o moribundo em um quarto de hospital.<br />
11 Cf. Fotos do túmulo do Comendador no anexo B dessa monografia.
Já no âmbito da sensibilidade, tais rearranjos fizeram da relação do<br />
homem com a morte, uma relação de distanciamento e dissimulação. A tendência foi<br />
a de isolá-la e ocultá-la.<br />
Separada em muitos sentidos da perspectiva sagrada, mas não<br />
totalmente, a morte adquiriu nova nuance, rompendo com sua administração<br />
anterior. Não há mais um domínio hegemônico do poder eclesiástico. Não se trata<br />
de um fracasso da fé, mas do surgimento de uma racionalidade médica que se sente<br />
estimulada a prolongar a vida.<br />
3.3 O processo civilizador: a morte e o progresso da ciência médica e a<br />
intervenção estatal sobre as práticas corporais – tempo de mudança<br />
Interessante notar que no âmbito dos estudos sobre as práticas corporais<br />
e a administração estatal sobre o corpo, muitas foram as resistências em se<br />
trabalhar com esse tipo de objeto. Como apontou Memmi (2000, p. 3-20), foi<br />
necessário chegarmos aos anos 60 para que os intelectuais franceses se<br />
esforçassem no sentido de abordar o corpo como objeto legítimo de estudo. Nessa<br />
tomada do corpo como um dado concreto a ser produzido e reproduzido pela<br />
sociedade, dois autores são referências importantes segundo Memmi: Foucault e<br />
Elias.<br />
Nesse sentido, o processo de individualização 12 das sociedades<br />
ocidentais (que corresponde a quarta característica das sociedades desenvolvidas<br />
apontadas por Elias) afastou consideravelmente a relação com a morte das práticas<br />
religiosas tradicionais e de sua formalização coletiva. A tendência é o isolamento<br />
humano. Então, é possível perceber que houve uma certa reestruturação de práticas<br />
e de suas determinantes, pois uma organização estatal da morte tornou-se<br />
imperativa e tomou para si a antiga função de grupos humanos no trato com a<br />
morte. Adverte-se que na verdade, nada na história da relação com a morte indica<br />
que essas mudanças tenham sido realizadas racionalmente, por meio de qualquer<br />
12 Nessas sociedades uniformemente pacificadas em que a vida comunitária demanda um controle<br />
completo de todos os impulsos e um arrefecimento permanente das emoções violentas, há certas<br />
características comuns da estrutura da personalidade que transcendem a classe e outras diferenças<br />
de grupo. E elas emergem apenas pela comparação com sociedades em diferentes estágios de<br />
civilização. Essas características comuns incluem o alto grau de individualização, a ampla e<br />
constante contenção de todos os impulsos instintivos e emocionais fortes e uma tendência ao<br />
isolamento (ELIAS, 2001, p. 67).
educação intencional de pessoas isoladas ou grupos. Segundo as concepções de<br />
Elias (1993, p. 194), “o que aqui se coloca no tocante ao ‘processo civilizador’ nada<br />
mais é do que o problema geral da mudança histórica”. Esse processo é conhecido<br />
como medicalização da morte e tem como origem histórica a morte em sua face<br />
interdita, que se remete à descoberta das primeiras regras de higiene nos países<br />
europeus do final do século XVIII para o XIX. De acordo com Epele (1999, p. 2):<br />
Desde el siglo XIX, em la sociedad occidental se inicia el proceso de<br />
medicalización, por el cual áreas de la vida social antes reguladas por outro<br />
tipo de poderes, cayeron bajo el control de la medicina. De este modo, el<br />
processo de morir de lãs personas, antes regulado por la famillia y lãs<br />
comunidades religiosas, fue progresivamente desplazándose bajo el<br />
domínio del sistema médico.<br />
A medicalização da relação com a morte coloca o fenômeno da morte na<br />
ordem de entendimento e explicação científicos dos fins naturais e não mais na<br />
ordem religiosa da passagem ao mundo sobrenatural.<br />
Assim, as necessidades sociais dos viventes são produtos do movimento<br />
historicamente determinado pelas condições que permitiram o desenvolvimento da<br />
medicina e também o desenvolvimento urbano implicando num maior controle social.<br />
Tornou-se cada vez mais influente a ideologia da medicina, a qual julgava<br />
ser necessário prevenir doenças, higienizar o ambiente e reorganizar a morte.<br />
Segundo Elias (2001, p. 56):<br />
o conhecimento da implacabilidade dos processos naturais é aliviado pelo<br />
conhecimento de que, dentro de certos limites, eles são controláveis. Mais<br />
do que nunca, podemos hoje esperar – com a habilidade dos médicos, a<br />
dieta e os remédios – o adiantamento da morte. Nunca antes na história da<br />
humanidade os métodos mais ou menos científicos de prolongar a vida<br />
foram discutidos de maneira tão incessante em toda a sociedade como em<br />
nossos dias (...) A constatação de que a morte é inevitável está encoberta<br />
pelo empenho em adiá-la mais e mais com a ajuda da medicina e da<br />
previdência.<br />
Essa forma médica de assistência aos moribundos consolidou-se por<br />
meio do controle social sobre os corpos. Criou-se uma cultura médica que teve<br />
tendência a espoliar do moribundo sua própria morte. Assim, à medida que o<br />
moribundo vai definhando e atingindo sua finitude, a existência deixa de ser sua e<br />
torna-se do outro, seja da equipe da enfermagem, dos médicos e posteriormente<br />
dos agentes funerários. Nesse sentido, de acordo com Boltanski (1979), houve uma<br />
espécie de monopolização dos atos médicos sobre os moribundos. Decorrentes<br />
disso, os indivíduos aprendem que a assistência hospitalar é indispensável e mais<br />
do que isso, tais indivíduos se submetem docilmente a tal controle, reconhecendo-os<br />
como legítimos.
O trato com o próprio corpo e o corpo do outro tem uma referência naquilo<br />
que Boltanski designou como “código de boas maneiras” para viver com o corpo.<br />
Trata-se de habilidades ou modos comuns a todos os membros de um grupo social<br />
que seguem de maneira bastante interiorizada o repertório desejado pelo sistema de<br />
dominação e que tem sua base num programa ideológico do controle social sobre a<br />
morte.<br />
De acordo com Boltanski 13 , tem-se o fenômeno da expropriação da morte<br />
tutelada pelo médico que está em permanente disputa com outras formas de<br />
controle social sobre a saúde das pessoas.<br />
Não muito distante das perspectivas de Boltanski (1979), mas com suas<br />
especificidades próprias, encontra-se o desenvolvimento de um pensamento sobre a<br />
discussão em direção a uma nova confissão laica sobre a nova administração<br />
estatal dos corpos proposta por Memmi (2000). Para esta autora que limita seu<br />
espaço de reflexão para a intervenção estatal e sua nova administração sobre as<br />
práticas corporais na França, que segundo ela se desenvolveu em três etapas, tem-<br />
se um cenário contemporâneo de manipulação sobre os corpos a partir da<br />
intervenção do controle médico.<br />
A autora afirma a existência de uma tendência contemporânea de<br />
controle estatal e de aperfeiçoamento de estratégias econômicas além do<br />
desenvolvimento de uma vigilância contemporânea sobre os corpos e as práticas<br />
corporais. Então, surgindo para promover uma gestão sobre o aleatório biológico, o<br />
Estado cria técnicas de intervenção nas práticas que antes eram da esfera privada<br />
do indivíduo (aborto, contracepção, morte, eutanásia etc.) a autora faz referência a<br />
Elias e a Foucault e apóia-se nas perspectivas dos “faire-vivre” e “laisser mourir”<br />
eixos do biopoder 14 .<br />
Existem formas de interferências estatais e expressões do biopoder, hoje<br />
percebidas pela autora na França que estão relacionadas. Tem-se um tipo<br />
específico de vigilância e de atuação:<br />
13 Boltanski (1979, p.135) demonstra como a relação terapêutica torna a relação profissional x<br />
paciente uma relação de subordinação e dependência. O paciente representa o objeto da relação e o<br />
médico é aquele que manipula fisicamente o objeto e que tem o poder de manipular as sensações do<br />
doente utilizando seu arcenal de técnicas reconhecidas e aprovadas socialmente.<br />
14 Trata-se de um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de<br />
reprodução, a fecundidade de uma população. São esses processos de natalidade, de mortalidade,<br />
de longevidade que, na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas<br />
econômicos e políticos, constituíram os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle da<br />
biopolítica (FOUCAULT, 2002, p. 289- 290).
Mais à quel type de surveillance avons-nous alors affaire? le déplacement<br />
contrôle átatique de la punition vers la surveillance mène-t-il pour autant à<br />
un redéploiment du mode de contrôle de l`état vers un contrôle disciplinaire?<br />
mène-t-il à cette mise en place et en rang des corps, des gestes, des<br />
postures que Foucault nous a longuemenet décrite à propos de l'ordre<br />
pénal, mais aussi scolaire? Bien évidemment, non: si 80% des mourants se<br />
retrouvent aujourd'hui à 'hôspital, c'est dans des services dispersés, et les<br />
femmes réclamant des moyens contraceptifs ou celles destinées à avorter,<br />
par exemple, ne se trouvent que fugitivement captives des services<br />
hospitaliers... le contrôle sur l'usage qu'elles feront de leur corps s'opère<br />
évidemment à la faveur d"autres procédures (MEMMI, 2000, p. 6).<br />
Controle, vigilância financeira, formas de intervenção sobre as práticas<br />
corporais são expressões de uma legítima administração do Estado e órgãos<br />
estatais de caráter da biopolítica que se perfaz efetiva pelas orientações de fazer<br />
viver e deixar morrer. Diante dessa realidade, será que nossos corpos e nossa morte<br />
realmente nos pertencem?<br />
Nessa perspectiva, a da “biopolítica” nos termos de Foucault, deseja-se e<br />
promove-se a vida. Faz-se com que as pessoas vivam cada vez mais, mesmo no<br />
instante em que elas deveriam biologicamente estar mortas. Foucault, tratando das<br />
técnicas e tecnologias de poder, demonstra que um dos fenômenos fundamentais do<br />
século XIX foi a assunção da vida pelo poder. Ele explica que esse poder é sob o<br />
ser humano vivo devido a uma espécie de estatização do biológico. Assim, ao se<br />
referir as tecnologias de poder, ou melhor, do “biopoder”, Foucault afirma que os<br />
primeiros alvos desse controle foram o conjunto de processos dos nascimentos e<br />
dos óbitos etc. Na época que vige a biopolítica, é imperativo o poder de “fazer-<br />
viver” 15 .<br />
Ora, para Foucault, agora o poder é cada vez menos o direito de fazer<br />
morrer e cada vez mais o direito de intervir para fazer viver e também na maneira de<br />
viver e no como viver, a partir do momento em que, segundo ele, o poder intervém,<br />
para aumentar a vida, para controlar seus acidentes. Nesse sentido, a morte é o<br />
termo da vida e ao mesmo tempo o limite e a extremidade do poder.<br />
Para Rabinow (2002, p. 135), Michel Foucault identificou o poder<br />
“biotécnico” como a forma caracteristicamente moderna de poder. O biopoder<br />
designa aquilo que faz com que a vida e seus mecanismos entrem em domínio dos<br />
cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida. De<br />
acordo com Rabinow (2002), historicamente, as práticas e discursos do biopoder<br />
15 Foucault (2002) explica que a Soberania fazia morrer e deixava viver e agora aparece um poder<br />
regulamentador que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer. Respectivamente tratase<br />
da Soberania e do Biopoder.
agruparam-se em dois pólos distintos: a “anátomopolítica do corpo humano”, âncora<br />
e alvo das tecnologias disciplinares, e um pólo regulador centrado na população com<br />
uma panóplia de estratégias concentradas no saber, no controle e no bem-estar.<br />
O controle e tecnologias traduzem um monopólio sobre a forma de viver<br />
dos indivíduos e se estendermos tal monopolização para o campo do morrer,<br />
também perceberemos que o controle social aí se estabelece fortemente.
4 OS EFEITOS DE UMA NOVA SENSIBILIDADE PROFANA: novos medos,<br />
formas de expressões e sentimentos e a interdição da morte<br />
A nova organização da morte promoveu novos problemas para os vivos e<br />
disseminou mais profundamente o “tabu” da morte. As variações nas expressões de<br />
afetos e sentimentos modificaram-se profundamente, pois a maneira como os<br />
indivíduos passaram a se relacionar com a experiência da morte do outro, produziu<br />
um grau de reservas das expressões jamais vistas anteriormente.<br />
Uma das conseqüências da perfeição técnica da medicina e dos novos<br />
hábitos instituídos foi o fato de os moribundos terem sido fatalmente afastados para<br />
os bastidores da vida social.<br />
A morte, em certos momentos tornou-se uma situação constrangedora.<br />
Cumprimentar em velórios os familiares do falecido não é uma situação confortável<br />
para ninguém.<br />
À falta de algo mais original e menos forçado, assume-se expressões<br />
mais compungidas, como por exemplo, estender a mão e pronunciar o indefectível –<br />
Meus pêsames...<br />
Se a morte ocorreu após longa enfermidade, acrescentamos – Sofreu<br />
muito! Finalmente descansou...<br />
Há ainda aqueles que conseguem, ao mesmo tempo, lamentar a morte e<br />
promover o morto – Coitado! Tão bom!... morreu!<br />
O contrário também ocorre com freqüência. Se o moribundo se tratava de<br />
um jovem, comentam – Os bons morrem cedo! (idéia nada lisonjeira para os<br />
idosos).<br />
Talvez isso seja comum, porque é terrível quando pessoas jovens morrem<br />
antes de terem sido capazes de dar um sentido às suas vidas e de experimentar<br />
alegrias e satisfações que tanto planejam enquanto jovens. O certo é que para<br />
crianças, jovens e idosos, homens e mulheres, não há cura conhecida para a morte.<br />
Quanto aos efeitos que se manifestam em relação ás expressões,<br />
sentimentos e comportamentos, é que eles se tornaram cada vez menos<br />
espontâneos e raras as suas demonstrações públicas. Tem-se uma espécie de<br />
código mecanicamente instituído e composto de frases pré-fixadas e curtas<br />
acompanhadas de um silêncio mórbido. Não há mais espaço para manifestação<br />
aberta de choro e emoções mais fortes. Segundo Elias (2001, p. 35):
Na presença de pessoas que estão para morrer – e dos que as pranteiam –<br />
vemos, portanto, com particular clareza um dilema característico do<br />
presente estágio do processo civilizador. Uma mudança em direção à<br />
informalidade fez com que uma série de padrões tradicionais de<br />
comportamentos nas grandes situações de crise da vida humana, incluindo<br />
o uso de frases rituais, se tornasse suspeita e embaraçosa para muitas<br />
pessoas. A tarefa de encontrar a palavra e o gesto certos, portanto, sobra<br />
para o indivíduo. A preocupação de evitar rituais e frases socialmente<br />
prescritos aumenta as demandas sobre a capacidade de invenção e<br />
expressão individual. Essa tarefa, porém, está muitas vezes fora do alcance<br />
das pessoas no estágio corrente da civilização. A maneira como as pessoas<br />
vivem em conjunto, que é fundamentalmente nesse estágio, exige e produz<br />
um grau relativamente alto de reserva na expressão de afetos fortes e<br />
espontâneos.<br />
Desse modo, caso os comportamentos fossem mais espontâneos – o que<br />
poderia ser uma grande forma de conforto ou uma espécie de inspiração a<br />
superação da perda – esbarra nas atitudes menos espontâneas e involuntárias.<br />
Os viventes enfrentam os inúmeros tabus que proíbem a demonstração<br />
de suas emoções, embora, eventualmente elas possam até acontecer. Nesse<br />
estágio, é cada vez mais difícil um gesto mais aberto, um sentimento mais<br />
excessivo, um choro dolorido vivido publicamente. Os sentimentos foram<br />
esvaziados.<br />
Todos esses efeitos concernentes às emoções, sentimentos e afeições,<br />
ou seja, – para ser mais preciso – a ausência de tais comportamentos demonstra o<br />
quanto a experiência da morte é indesejada pelos indivíduos que a repelem do<br />
cenário da vida.<br />
No curso da vivência humana, estamos preparados para acordar todos os<br />
dias, trabalhar, nos alimentar, nos divertir, mas não estamos, na grande maioria das<br />
vezes, preparados para enfrentarmos a nossa certa e inevitável condição humana<br />
finita. Ao contrário, ocultamos a nossa irrevogável mortal existência humana.<br />
A censura social acaba por silenciar a morte, a interditando tão friamente<br />
quanto mais frios somos em relação ao que sentimos e expressamos diante da<br />
morte de alguém intimo ou não. As barreiras sociais construídas ao longo da<br />
mudança de sensibilidade fúnebre tornam-se cada vez mais imperativas e<br />
intransponíveis. É a estrutura reguladora e normativa dos novos códigos de<br />
condutas que se impõem mais fatalmente diante da morte.<br />
A resistência de se tratar a morte de modo mais aberto, numa relação<br />
mais informal e mesmo descontraída é impensável nesse estágio. O refletir sobre<br />
tais questões normalmente acontece quando a morte aparece abruptamente ou<br />
quando de certo modo já havia sua previsibilidade, por exemplo, nos casos de
doença terminal. No entanto, não é habitual pensar, falar ou refletir sobre a morte,<br />
ainda que, durante as atividades mais banais que fazemos. O imperativo é não<br />
pensar no fim absoluto de nós mesmos.<br />
Ante familiares que falecem, muitas pessoas, embora aceitando princípios<br />
religiosos que consagram a imortalidade, desesperam-se por sentir que, de certa<br />
forma, os perderam, porquanto, segundo suas concepções aqueles que partem<br />
permanecem irremediavelmente distantes, às voltas com beatitudes celestes ou<br />
tormentos infernais.<br />
A imagem da morte é sempre uma imagem evitada, negativa e isso<br />
decorre dentre outros fatores pela extensão do tempo de vida em nossas<br />
sociedades, vez que o “encontro” com a morte torna-se cada vez mais adiado. Ao<br />
desfrutarmos a possibilidade de viver mais, nesse caso, há a situação de que o<br />
indivíduo seja capaz de manter a idéia de morte à distância durante um período<br />
maior de toda sua vida.<br />
A sociedade gradualmente reestruturou-se com o avanço da<br />
racionalidade, individualismo e laicização. Desse modo, a preparação para a morte,<br />
a ritualística fúnebre, os cerimoniais e cultos aos mortos foram adquirindo nova<br />
significação.<br />
A laicização das relações sociais que atingiu tanto a morte quanto a vida,<br />
desde o século das Luzes, aprofundou como sugere Rinaldi (2002, p. 107) a<br />
dualidade corpo e alma, o que tem repercussões nos costumes funerários. A<br />
transformação do corpo humano em objeto, a apropriação da morte pela medicina e<br />
o desenvolvimento da ideologia da higiene, com a separação dos cemitérios das<br />
cidades, vão caracterizar um processo em que a morte se distancia do homem, até<br />
se tornar alteridade absoluta na época contemporânea.<br />
O que chama atenção nesse distanciamento entre vivos e mortos, é que<br />
observa-se uma intensificação do individualismo, da medicalização e do pensamento<br />
racional que vão influenciar fortemente as práticas fúnebres e que vão fazer surgir<br />
especialistas no trato profissional da morte. Fazendo uso das palavras de Rinaldi<br />
(1999, p. 25), constata-se que:
A medicalização da morte vem acompanhada de uma profissionalização e<br />
industrialização da prática fúnebre, em que empresas funerárias,<br />
juntamente com os hospitais, transformam a morte em negócio lucrativo. A<br />
indústria da morte cobra caro para fazer um trabalho perfeito,<br />
encarregando-se de tudo, desde o fim da agonia até a inumação no<br />
cemitério. Os ritos funerários se tornam discretos e reservados, e os<br />
cemitérios modernos, concebidos como parques, onde o repouso dos<br />
mortos se confunde com o retorno à natureza, representam a versão<br />
contemporânea da imposição do silêncio à morte.<br />
A vida é mais longa, e a morte é cada vez mais adiada. Os perigos<br />
atualmente são mais controláveis, devido o progresso da ciência na luta contra a<br />
doença, especialmente o controle sobre os surtos epidemiológicos tão temíveis e<br />
avassaladores em outras épocas.<br />
Uma outra característica bem especifica decorrente de toda essa<br />
transformação na mentalidade é que a experiência contemporânea da morte ganhou<br />
outro sentido em virtude dos progressos da medicina. Aqui, existe toda uma<br />
tecnologia da ciência médica e farmacológica, todo um aparato institucional<br />
hospitalar assegurado por profissionais da saúde, tudo isso em sua totalidade<br />
objetivando evitar a morte ou adiá-la quando possível. Em seguida, a assistência<br />
médica tornou-se uma atividade lucrativa e desenvolveu-se ainda mais<br />
intensamente. Segundo Pessini e Barchifontaine (apud GURGEL, 2008, p. 209):<br />
A exploração de uma medicina lucrativa atraiu para a área de assistência<br />
vultuosos recursos do capital industrial e financeiro. O estilo ocidental da<br />
pretensa medicina curativa foi exportado para o Terceiro Mundo,<br />
perenizando o relacionamento colonial, tornando as ex-colônias<br />
dependentes das tecnologias e provisões do ocidente. A indústria<br />
farmacêutica cresceu com o desenvolvimento do capitalismo e a<br />
industrialização do setor químico e petroquímico.<br />
Desse modo, antes de tornar-se moribundo, os indivíduos são eternos<br />
“pacientes” dependentes dos medicamentos, das terapias e análises, o que<br />
corresponde a um progressivo controle estatal sobre os corpos.<br />
Em lugar das palavras e rituais que celebravam a morte em outros<br />
tempos, a própria palavra “morte” é interditada na linguagem atual, assim como o<br />
doente é isolado dos parentes e amigos, não apenas pela dissimulação de seu<br />
estado, como também para a transferência para o hospital. Os avanços da medicina,<br />
associados ao desenvolvimento da higiene e das idéias de tratamento das doenças,<br />
fazem do hospital um espaço privilegiado da morte.<br />
O hospital, além de oferecer os recursos técnicos de tratamento das<br />
doenças graves, oferece proteção para a família contra a doença e a morte. Essa<br />
passa a ser um fenômeno técnico, e o doente, mais um “caso”. A família e o
indivíduo não são mais senhores da morte, que chega solitária para o moribundo em<br />
um quarto de hospital (RINALDI, 2002, p. 108).<br />
O afastamento dos vivos em relação aos moribundos intensificou-se na<br />
medida em que antes mesmo da morte apresentar-se, as pessoas afastam-se<br />
involuntariamente. Isso pode ser percebido, por exemplo, no cuidado dispensado<br />
aos doentes feitos por médicos e demais profissionais da saúde, frequentemente<br />
destituídos de sentimentos, pois a questão é de ofício. Depois que chega o fim, o<br />
afastamento também está presente. Isso pode ser visto, no tratamento dispensado<br />
aos cadáveres e às sepulturas. As duas condutas saíram das mãos da família,<br />
parentes, irmandades religiosas e passaram às mãos de especialistas remunerados.<br />
Nesse momento, é possível constatar que gradualmente substituiu-se a<br />
figura do padre, como o então reconhecido especialista no processo de morrer, pela<br />
figura do médico. As medidas higienistas, que objetivavam à promoção da<br />
salubridade pública, o controle sobre as doenças e a prevenção da morte,<br />
transformou as práticas fúnebres que eram realizadas em função da salvação da<br />
alma numa questão de saúde pública.<br />
<strong>Outros</strong> aspectos também se fazem presentes, como por exemplo, a<br />
questão da valorização da memória dos mortos. Naturalmente, a memória do<br />
indivíduo que morreu continua a existir. O ente que partiu é lembrado e<br />
homenageado por meio de missas e pelo Dia de Finados, entretanto, as sepulturas<br />
tendem a perder sua significação. Doravante, a sepultura em sua significação<br />
religiosa era considerada como uma das condições básicas para a obtenção da<br />
salvação da alma. Era a base do dogma da ressurreição, segundo o qual era<br />
necessário a inumação.<br />
Por outro lado, os sepultamentos nas igrejas, basílicas e catedrais foram<br />
transferidos para cemitérios construídos fora dos limites das cidades. Com isso,<br />
houve uma abrupta separação entre os vivos e os mortos, uma vez que as<br />
necrópoles foram erigidas distantes das residências e dos centros urbanos. Um<br />
efeito disso foi a contribuição para a desritualização dos funerais. Segundo Elias<br />
(2001, p. 30-31):<br />
Hoje as coisas são diferentes. Nunca antes na história da humanidade<br />
foram os moribundos afastados de maneira tão asséptica para os bastidores<br />
da vida social; nunca antes os cadáveres humanos foram enviados de<br />
maneira tão inodora e com tal perfeição técnica do leito de morte à<br />
sepultura.
Assim, o hábito tradicional de enterrar os mortos nas igrejas passou a ser<br />
considerado uma prática nociva à saúde da população. O caráter infeccioso dos<br />
enterramentos no interior das igrejas foram duramente combatidos pelas autoridades<br />
públicas e novas práticas e novos espaços geográficos para tal finalidade foram<br />
surgindo.<br />
Tantas transformações nos costumes mortuários e na mentalidade<br />
fúnebre fizeram com que o ocultamento da morte e dos mortos se tornasse cada vez<br />
maior. O interesse agora era na vida e nos vivos, e estes suplantaram as tradicionais<br />
regras instituídas pelas igrejas.<br />
Dessa maneira, é o médico e não mais o padre que é convocado quando<br />
se está diante da iminência da morte. O objetivo agora é o de a qualquer custo evitar<br />
a morte, isto é, o de prolongar a vida terrena e não o de ultrapassa-la. A morte<br />
médica prolonga o “tempo da morte”, retardando o momento fatal, mas, como diz<br />
Bataille (1987, p. 42):<br />
O pensamento de um mundo onde a organização artificial asseguraria o<br />
prolongamento da vida humana evoca a possibilidade de um pesadelo, sem<br />
deixar entrever nada além de uma pequena demora. No fim, a morte estará<br />
lá, convocada pela multiplicação, pelo excesso da vida.<br />
A medicalização da relação com a morte coloca o fenômeno da morte na<br />
ordem de entendimento e explicação científicos dos fins naturais e não mais na<br />
ordem religiosa da passagem ao mundo sobrenatural.<br />
Assim, as necessidades sociais dos viventes são produtos do movimento<br />
historicamente determinado pelas condições que permitiram o desenvolvimento da<br />
medicina e também o desenvolvimento urbano implicando num maior controle social.<br />
Vai se tornando cada vez mais influente a ideologia da medicina, onde era<br />
preciso prevenir doenças, higienizar o ambiente e organizar a morte em sua<br />
dimensão geográfica – transferência dos enterros – e também em sua perspectiva<br />
organizacional como um todo, vez que um novo conceito de urbanização também<br />
surgia juntamente com a necessidade de reordenar a civilização dos costumes.<br />
Incluem-se principalmente nesse rol os costumes fúnebres.<br />
A progressiva estatização da morte tornou-se novo paradigma da<br />
assistência profana aos mortos. Isso se deve, porque houve uma disputa<br />
organizacional entre o corpo eclesiástico e o estatal, especialmente após o<br />
fortalecimento da vida urbana modelada pelo mecanicismo e iluminismo. Surge, de<br />
forma simbólica o ideal de morte mecânica. Entretanto, longe dessa disputa esta
encerrada e resolvida, questões atuais como o aborto ou a eutanásia, dentre outras,<br />
ainda demonstram como ainda é forte essa disputa hoje.<br />
A morte foi sendo envolvida num processo de medicalização que implicou<br />
na transferência do moribundo para o hospital. Não há mais espaços para a antiga<br />
prática de cuidados compartilhados pelos parentes, vizinhos e amigos. Segundo<br />
Rinaldi (1999, p. 109):<br />
Nos homens das Luzes, cresce o medo da morte, na medida em que o<br />
desregramento da natureza, a violência natural ameaça penetrar na “cidade<br />
racional dos homens”. Antes o homem certamente tinha medo da morte,<br />
mas esse medo era traduzido por palavras e canalizado para os rituais<br />
familiares. Ele se importava com a morte. O medo sem palavras de hoje<br />
aparece na época em que algo mudou na antiga familiaridade do homem<br />
com a morte.<br />
Isso também decorre do fato de que o Estado institucionalizou as formas<br />
de solidariedade, retirando a espontaneidade das condutas, conseguindo impor<br />
como necessário o controle social estatal sobre o morrer. Trata-se do controle<br />
comandado pelo saber clínico baseado na tecnologia médica. Quanto ao espaço do<br />
hospital é caracterizado por suas profundas contradições. Segundo Gurgel (2008, p.<br />
210-211):<br />
No entanto, o ambiente hospitalar é rico em determinações, de modo que a<br />
morte hospitalizada, como “evento social”, é pautada por inúmeras<br />
contradições. O hospital é, ao mesmo tempo, tanto o local de assistência<br />
quanto o da exclusão social dos moribundos, como forma simbólica da<br />
política de higienização social. Como defendeu Foucault (2006, p. 101),<br />
nem sempre o hospital foi o que é hoje, mas sempre portou essas<br />
contradições internas: “Antes do século XVIII, o hospital era essencialmente<br />
uma instituição de assistência aos pobres. Instituição de assistência, como<br />
também de separação e exclusão”.<br />
A medicalização do morrer dissipou a ideologia das UTIs e essas<br />
intensificaram cada vez mais o isolamento entre viventes e moribundos, além de<br />
determinar como e onde as pessoas morrem e por quem são assistidas. Desse<br />
modo, a morte é expropriada deixando de pertencer ao moribundo e à sua família e<br />
parentes próximos, para pertencer a setores tercerizados, o que se convencionou<br />
chamar de indústria da morte (hospitais, asilos, funerárias, planos de saúde, casas<br />
de velório etc.).<br />
Ao contrário de épocas fortemente influenciadas pela religiosidade<br />
católica, não se vive mais a vida com o pensamento e as condutas humanas<br />
voltados para a outra vida num “outro mundo”. Agora se luta cada vez mais para<br />
viver mais e se acredita intensamente que podemos encontrar a felicidade nesta e<br />
não em outra vida.
Uma outra conseqüência desse novo processo da morte, como bem<br />
lembra Áries (2003), é a supressão do luto. Enquanto nas práticas fúnebres<br />
passadas, o luto ritualizado expressava a angustia da sociedade diante da morte de<br />
uma pessoa, a partir do século XIX e na contemporaneidade a “expulsão” do luto<br />
está ligada à tentativa de eliminar a dor e o sofrimento, fazendo com que as atitudes<br />
dos enlutados seja caracterizada pela discrição e autocontrole.<br />
Desse modo, as tradicionais atitudes, as expressões das emoções dos<br />
indivíduos enlutados e dos outros que os acompanhavam caíram em desuso, pois<br />
atualmente vigora uma extrema privacidade das emoções e das expressões de luto.<br />
No passado mais familiarizado com a morte, acreditava-se que os mortos<br />
apenas dormiam um sono profundo e o leito era o lugar da morte. Havia ainda<br />
grandes manifestações de luto, que eram iniciadas antes mesmo dos últimos<br />
suspiros dos moribundos. Essas práticas tiveram a tendência de desaparecer em<br />
nossa época. Da mesma forma, em nossa sociedade, o luto foi gradativamente<br />
perdendo a sua importância diante da necessidade de contenção e discrição dos<br />
sentimentos.<br />
O leito mais comum de morte em nossos dias é o leito das UTIs ou<br />
macas dos hospitais. Essa pode ser uma face cruel da morte, principalmente quando<br />
se constatam as diferenças sociais que se repercutem em diferenças nas formas de<br />
morrer – trata-se da conhecida mistanásia 16 .<br />
Há diferenças cruciais entre quem pode pagar e quem não pode. A<br />
questão social e o poder aquisitivo do moribundo e de seus familiares tornam-se<br />
uma determinante na maneira como se morre atualmente. Assim, o contexto das<br />
profundas desigualdades sociais também interfere – diga-se, de modo cruel – a hora<br />
da morte.<br />
Desse modo, não há que se falar no fato de a morte nos igualar<br />
socialmente, pelo contrário, acaba por nos submeter às mesmas regras do “mercado<br />
da morte”. A aquisição dos artigos mortuários ou mesmo um bom leito num hospital<br />
renomado ou um lugar no chão de um hospital popular demonstram que as<br />
16 Segundo a designação dada por Gurgel, mistanásia significa morrer abandonado nos corredores<br />
dos hospitais, sem leito, em cima de uma maca, colchão ou simplesmente no chão. Significa também<br />
morrer nas ambulâncias que transportam os moribundos do interior para a capital como uma<br />
estratégia eleitoreira que perde vidas, mas ganha votos. Ou ainda de infecção generalizada por falta<br />
de cuidados adequados. Em casa, isso significa morrer em um quarto escuro no fundo do quintal à<br />
míngua, em uma cama velha ou esteira de palha. Na rua, significa morrer sem teto, de fome e frio, ou<br />
vítima das mais diversas classes da violência... morrer como um rato de esgoto
desigualdades que acompanharam os indivíduos em vida, se fazem presentes na<br />
morte.<br />
Nesse sentido, morrer em organizações sociais como as nossas e no<br />
estágio em que nos encontramos pode ser uma experiência terrível se levarmos em<br />
conta o grande número de indivíduos assolados pelas intensas mazelas sócias as<br />
quais estão submetidos em decorrência do jogo da vida que como regra básica<br />
exige a cada vez maior desigualdade entre os homens.<br />
Finalmente, constata-se o reconhecimento de que a morte não é um<br />
acontecimento dissociado da vida, muito menos da forma de vida que cada um leva.<br />
Quanto mais pobres os indivíduos são, mais a morte para eles pode ser cruel.
5 CONCLUSÃO<br />
Este trabalho iniciou-se com uma abordagem teórica sobre as<br />
concepções de morte e sobre a chamada morte domada sob o controle e domínio<br />
eclesiásticos. Apresentou uma discussão acerca do imaginário fúnebre e das<br />
práticas mortuárias e por conseqüência uma análise sobre a mudança de<br />
sensibilidade no que diz respeito a morte no Ocidente e no Brasil do século XIX.<br />
Efetivamente, a preocupação com o morrer era algo constitutivo da<br />
própria vida, principalmente diante de um contexto social em que a religião<br />
administrava as posturas, o imaginário e a própria morte. Portanto, morrer bem<br />
exigia uma harmonia entre a religião e um ideal de vida incorruptível. Entretanto,<br />
percebemos que transformações sociais e científicas possibilitaram uma<br />
reconfiguração das sensibilidades sobre o morrer.<br />
Desse modo, o discurso e o poder da ideologia médica assim como o<br />
domínio das práticas corporais pelo Estado promoveram novas relações dos<br />
indivíduos com a morte e, como vimos, muitos foram os efeitos dessas<br />
transformações que atingiram a organização da morte. Assim, não há mais espaço<br />
para as belas mortes, que foram suplantadas pela morte selvagem,<br />
Por fim, conclui-se que o século XIX é um marco temporal fundamental<br />
para pensar os novos rearranjos sobre a experiência da morte. Também<br />
percebemos que nesse momento houve uma modificação profunda sobre as<br />
sensibilidades fúnebres que adquiriram novos sentidos e significados ao longo do<br />
tempo. Significados estes que nos atingiram de maneira direta e que diante de uma<br />
organização social cada vez mais complexa como a nossa pôde revelar uma faceta<br />
da morte cruel demais para todos aqueles assolados pela pobreza.
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ANEXOS
Anexo A: Figura do Comendador José Gonçalves da Silva, personagem do<br />
cenário político de São Luís do século XIX<br />
Comendador Jozé Gonçalves da Silva
Anexo B: Figura do túmulo do Comendador José Gonçalves da Silva na Capela<br />
das Laranjeiras, no centro da cidade de São Luís<br />
Túmulo do Comendador na Capela
<strong>Lopes</strong>, <strong>Anne</strong> <strong>Caroline</strong> <strong>Nava</strong><br />
Finitude humana e rearranjos de sensibilidade fúnebre:<br />
“belas mortes” às mortes selvagens / <strong>Anne</strong> <strong>Caroline</strong> <strong>Nava</strong><br />
<strong>Lopes</strong>. – São Luís, 2008.<br />
52 f. jl.<br />
Monografia (Graduação em História) – Universidade<br />
Estadual do Maranhão, 2008.<br />
Orientador: Prof. Ms. Yuri Michael Pereira Costa.<br />
1. Morte 2. Igreja 3. Religião 4. Sensibilidade 5. Ciência<br />
I. Título.<br />
CDU 128