Ficção e Autobiografia: - Série Produção Acadêmica Premiada
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<strong>Série</strong>: <strong>Produção</strong> <strong>Acadêmica</strong> <strong>Premiada</strong><br />
tal sonho tem uma grande parte de verdade. O gesto de esquiva (e talvez de reprovação)<br />
está presente nos dois casos: na irmã que simplesmente vai embora deixando Levi falar<br />
sozinho, nos cidadãos de Salzburg que balançam a cabeça sem nada dizer, deixando Bernhard<br />
igualmente só. Desse fato Todorov conclui que as pessoas preferem ocupar-se de<br />
seus problemas imediatos, de suas próprias feridas e esquecer as antigas, os sobreviventes<br />
seriam então símbolo de um passado que se prefere esquecer (cf. Todorov 1995: 281).<br />
Já Bernhard não parece tão compreensível ao comentar o esquecimento de seus contemporâneos,<br />
reprova tal comportamento e exorta: “Die Tatsachen sind immer erschreckende,<br />
und wir dürfen sie nicht mit unserer krankhaft in jedem ununterbrochen arbeitenden<br />
und wohlgenährten Angst vor diesen Tatsachen zudecken [...]” (UR, 23s.) 32 .<br />
Se o tom é semelhante, o alvo da acusação é um pouco diverso: Bernhard lembra a seus<br />
contemporâneos as verdades inconvenientes que todos preferem esquecer, os mortos da<br />
guerra – mas todos esses mortos são civis austríacos bombardeados ou soldados. Quanto<br />
ao resto de sua família, pouco fala da posição deles sobre a política nazista, sendo que<br />
sobre a de extermínio não há menção: é dito que o avô era absolutamente contra o nacional-socialismo,<br />
o qual fora criticado sempre de forma abstrata, assim como o neto fez ao<br />
longo de quase toda sua obra, ou seja, criticado por tirar a independência dos homens,<br />
impedir a liberdade de pensamento. Lê-se que seu tio e seu padrasto foram soldados da<br />
Wehrmacht, ao que tudo indica por obrigação, mas esses fatos são apenas aludidos, permanecem<br />
meras indicações. Fica ao leitor então apenas a suposição de que membros da<br />
família como a mãe, por exemplo, sobre a qual nada é dito a esse respeito, tratavam do<br />
assunto sem grande interesse, como, aliás, grande parte da população camponesa, que<br />
estava ocupada com seus próprios problemas, interessada apenas em como essa guerra<br />
afetaria na prática seu cotidiano já por si bastante duro.<br />
Pode-se pensar, contudo, como Primo Levi, o qual na condição de sobrevivente<br />
dos campos, acha sempre digno de interesse tais omissões: ao comentar uma carta recebida<br />
de uma jovem bibliotecária da Vestifália, por ocasião da publicação de um de seus<br />
livros na Alemanha, o autor diz que a jovem confessa sua culpa por, embora não ter sabido<br />
nada sobre os campos na época, ter tratado judeus de forma diferente e nada ter feito<br />
por eles. Levi, intrigado, observa: “Nada diz de seus pais, e é um sintoma: ou sabiam e<br />
não falaram com ela; ou não sabiam, e então com eles não haviam falado aqueles que<br />
certamente sabiam [...] qualquer um, em suma, que não cobrisse os olhos com as mãos”<br />
(2004: 155s.). A indignação do autor dirige-se também para os que nada sabiam, pois<br />
para ele não saber era uma opção, diante do número de indícios de que algo monstruoso<br />
estava acontecendo. E conclui seu comentário da seguinte forma: “Repito-o: a culpa verdadeira,<br />
coletiva geral, de quase todos os alemães de então foi não ter tido a coragem de<br />
falar.” (2004: 155) A omissão de Bernhard certamente também é sintomática, mas não<br />
se pode afirmar com certeza do quê, embora, como aludido, provavelmente do desinte-<br />
32<br />
“Os fatos são sempre assustadores, não devemos permitir que o medo doentio deles, vigoroso e em ação constante<br />
em cada um de nós, venha a encobri-los [...]” (130).