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Ficção e Autobiografia: - Série Produção Acadêmica Premiada

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<strong>Série</strong>: <strong>Produção</strong> <strong>Acadêmica</strong> <strong>Premiada</strong><br />

tematizada nas autobiografias de muitos dos intelectuais que viveram no período 35 – na<br />

verdade, há sim em Bernhard um posicionamento frente ao tema: a posição do autor<br />

presente no texto é de vítima; uma abordagem, contudo, mais ampla da época está ausente<br />

de seu texto. Mesmo que grande parte não possa assumir uma culpa individual,<br />

afinal, eram adolescentes ao fim da guerra, assumem uma espécie de culpa abstrata e<br />

coletiva, partilhando da responsabilidade por pertencerem ao grupo dos considerados,<br />

com todas as ressalvas, “culpados”. Esse comportamento, aliás, parece não ser apenas<br />

esperado, como às vezes, justa ou injustamente, cobrado, e quando ausente, causa estranheza.<br />

Para Todorov, por exemplo, os habitantes dos países totalitários também seriam<br />

responsáveis, cúmplices, culpados por vezes não de matar, mas de “manter o silêncio, de<br />

repetir fórmulas perigosas, de levantar a mão direita sem nada dizer” (Todorov 1995:<br />

164). Primo Levi também fala em seus textos da culpa coletiva alemã e de seu pior crime,<br />

o de calar-se frente à barbárie (2004: 155), para ele fica a tarefa de tentar compreender os<br />

alemães, não só os carrascos, mas os cidadãos médios, os quais “não acreditando, haviam<br />

calado, não haviam tido a coragem sutil de nos olhar nos olhos, de nos dar um pedaço<br />

de pão, de murmurar uma palavra humana” (Levi 2004: 144) – e essa palavra humana<br />

ainda é esperada pelos sobreviventes dos campos, para os quais é quase insuportável<br />

quando alemães arianos falam de seus sofrimentos, devido à desproporção das experiências<br />

vividas por uns e por outros.<br />

Nas autobiografias dos intelectuais, cuja infância e adolescência transcorreram sob<br />

o nacional-socialismo é apresentada ao leitor uma identidade que mostra a consciência<br />

de pertencer ao grupo dos (potencias) aniquiladores, não dos aniquilados – e essa<br />

consciência parece ausente do texto de Bernhard. Esses autores, ao apresentarem suas<br />

dificuldades no período, pois muitos, como Bernhard, também foram de certo modo<br />

vítimas do regime, não o fazem usando vocabulário e estilo do grupo dos aniquilados, o<br />

que poderia ser visto pelos sobreviventes da barbárie até mesmo como provocação.<br />

É comum haver ainda nas autobiografias de muitos desses autores, justamente<br />

decorrente do fato de colocarem-se como integrantes do grupo dos “criminosos”, uma<br />

distância entre o eu narrado e o eu narrador, o adulto marcando uma cisão, repreendendo<br />

o jovem que fora, como, por exemplo, o faz Christa Wolf em seu Kindheitsmuster<br />

(1976) 36 . A autora apresenta um quadro muito detalhado da época e da jovem que fora<br />

então, há uma franqueza radical no relato, na apresentação das próprias lembranças e<br />

na das pessoas a sua volta, o que é feito por vezes de forma bastante indiscreta – como<br />

35<br />

Cf. por exemplo: Christa Wolf: Kindheitsmuster (1976), Günter de Bruyn: Zwischen Bilanz. Eine Jugend in Berlin<br />

(1990), Günter Grass: Beim Häuten der Zwiebel (2007), Joachim Fest: Ich nicht (2006), Ludwig Harig: Weh dem,<br />

der aus der Reihe tanzt (1990). É preciso notar, contudo, que se trata de autores vivendo e escrevendo na Alemanha,<br />

o caso austríaco era um pouco diferente, como se verá posteriormente.<br />

36<br />

Wolf escreve sua autobiografia alternando entre primeira, segunda e terceira pessoa, numa construção literária altamente<br />

artística e complexa. As memórias da infância e adolescência são apresentadas por meio da personagem Nelly,<br />

e apesar de os nomes contidos na obra serem diferentes dos reais – no caso de si e da família –, os fatos narrados são<br />

autobiográficos. Pode-se pensar que o uso do nome “Nelly”, além de preservar a identidade da autora e dos familiares<br />

na Alemanha Oriental, também ajuda, como vê Wagner-Egelhaaf (2000: 195), a criar uma personagem para nela<br />

mostrar, não só a infância individual, mas também o modelo de infância comum a seus contemporâneos.

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