Ficção e Autobiografia: - Série Produção Acadêmica Premiada
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<strong>Série</strong>: <strong>Produção</strong> <strong>Acadêmica</strong> <strong>Premiada</strong><br />
de Günter de Bruyn contado em sua autobiografia Zwischenbilanz. Eine Jugend in Berlin,<br />
cujos pais o impediram de participar da Juventude Hitlerista. Sobre a entrada de<br />
Bernhard na Hitlerjugend ou sobre a reação da família frente ao fato nada sabemos, o<br />
episódio é apenas aludido na citação apresentada, na qual nem o nome da organização<br />
é mencionado, ficando restrito a uma sigla, embora certamente transparente ao público.<br />
Vale a ressalva, contudo, de que a partir de certo momento se tornou obrigatória a participação<br />
em tais organizações, e quem não cumprisse com tal obrigação era normalmente<br />
severamente punido: desde 1936 havia uma lei que obrigava todos os jovens a receberem<br />
educação na Juventude Hitlerista, sendo que em 1939 a lei tornara-se mais severa, prevendo<br />
como punição aos pais que não aceitassem a JH terem seus filhos levados, ou que<br />
os filhos fossem expulsos do colégio. Depoimentos como os de Henry Metelmann (cf.<br />
Bartoletti 2006: 37) dão uma boa ideia da situação: “Meu pai não gostava que eu participasse<br />
do que ele chamava de Peste Marrom. Mas concordou porque achava insensato<br />
discordar”. O depoimento torna também mais compreensível, por exemplo, a posição<br />
do avô de Bernhard sobre a organização, opinião ausente em Die Ursache – podendo,<br />
contudo, ser deduzida da posição do avô de crítico da política vigente – mas de certa<br />
forma presente em Ein Kind, publicado sete anos depois. A citação refere-se na verdade<br />
à Jungvolk, instituição um grau anterior à Juventude Hitlerista, mas também de caráter<br />
obrigatório: “Der Großvater fand das Jungvolk grauenhaft, aber Du mußt hingehen, es ist<br />
mein innigster Wunsch, sagte er, wenn es dich auch die größte Überwindung kostet” (KIND:<br />
128) 41 . É dito ainda que a família implorara para que ele participasse da Jungvolk, ainda<br />
que odiada, sem dizer por que, mas provavelmente por medo das punições decorrentes<br />
da recusa – o avô já havia sido preso por ouvir transmissões radiofônicas proibidas, um<br />
segundo delito complicaria muito a situação da família. Além disso, vale notar, ao falar<br />
da Jungvolk em Ein Kind, o autor usa o episódio para acentuar a continuidade de caráter<br />
existente entre o que é e o que foi, pois já nessa ocasião apresenta-se como alguém (embora<br />
com cerca de apenas sete anos) que tem aversão à massa, daí vindo seu ódio frente<br />
à organização – sobre as continuidades na personalidade de Bernhard apresentadas em<br />
sua autobiografia, será discutido mais a frente.<br />
Esses fatos não afetam – e não deveriam mesmo fazê-lo – a imagem apresentada<br />
por Bernhard de alguém desvinculado da mentalidade de sua época. Diz mesmo que,<br />
graças à educação recebida dos avós, “war ich [...] niemals auch in die Gefahr einer solchen<br />
Charakter- und Geistesschwäche gekommen” (UR, 98) 42 . A memória autobiográfica,<br />
essa é a opinião corrente nas pesquisas sobre o tema atualmente, não é uma cópia<br />
da realidade, mas reconstrução: a lembrança é sempre reconstruída para ser compatível<br />
com a auto-imagem que o indivíduo que recorda tem de si, bem como essas lembranças<br />
geralmente são revestidas de significado, a fim de justificar e explicar suas ações para si<br />
mesmo e para o outro. No caso de Bernhard fica claro que a autobiografia surge para<br />
41<br />
“Meu avô achava a tal Jungvolk pavorosa, mas você precisa participar, é meu desejo mais profundo, disse ele, ainda<br />
que isso custe tanto a você” (ORI, 89).<br />
42<br />
“nunca corri sequer risco de incorrer numa tal fraqueza de caráter e espírito [...]” (ORI, 184).