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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA<br />

Fabiana Eramo<br />

Infinita Beleza: O Sétimo Sentido<br />

A Linguagem do Corpo e a Inteligência dos Sentidos na Performance da<br />

Dança Afro<br />

Niterói, 2010


UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE<br />

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA<br />

Fabiana Eramo<br />

Infinita Beleza: O Sétimo Sentido<br />

A Linguagem do Corpo e a Inteligência dos Sentidos na Performance da<br />

Dança Afro<br />

Dissertação apresentada ao Programa de<br />

Pós-Graduação em Antropologia da<br />

Universidade Federal Fluminense, como<br />

requisito parcial para obtenção do Grau de<br />

Mestre.<br />

Orientador: Dr. Julio Cesar de Tavares<br />

Niterói, 2010


Banca Examinadora<br />

Prof. Orientador- Dr. Júlio Cesar de Tavares<br />

Universidade Federal Fluminense<br />

Prof. Dr. Sidnei Clemente Peres<br />

Universidade Federal Fluminense<br />

Prof. Dr. José Luiz Ligiéro Coelho (Zeca Ligiéro)<br />

UniRio<br />

Prof. Dr. Ricardo Freitas<br />

Universidade Federal do Rio de Janeiro<br />

Prof. Dr. Daniel Bitter<br />

Universidade Federal Fluminense


RESUMO<br />

Este trabalho explora a performance da dança Afro, especialmente da dança de Orixás<br />

neste contexto profano, evidenciando ao mesmo tempo o caráter sagrado da performance<br />

e as origens dessa dança no mundo sagrado da religião afro-brasileira do Candomblé.<br />

Dentro da performance analisa-se o corpo como produtor de significados, meio de<br />

comunicação, locus de memória e de identidade. Esta dissertação apresenta como os<br />

jogos interacionais na performance, os gestos, movimentos e outros símbolos corporais<br />

da dança são, graças a uma inteligência sensorial e um conhecimento corporal, produtores<br />

e transmissores de histórias e significados que fazem parte do rico legado cultural afrobrasileiro.<br />

Metodologicamente, a pesquisa baseou-se na auto-etnografia conduzida como<br />

dançarina de dança Afro e apoiada por teorias antropológicas, sociológicas, teorias da<br />

performance e da comunicação, utilizando uma abordagem interacionista e<br />

fenomenológica para analisar o objeto da pesquisa. O objetivo deste trabalho é mostrar a<br />

importância do corpo e da inteligência sensorial na produção e comunicação de<br />

significados dentro da performance da dança Afro, valorizando essa como uma arte<br />

complexa, rica de história e de beleza, capaz de ensinar, resgatar e transmitir um saber<br />

que faz parte da cultura afro-brasileira e que precisa ser reconhecido e apreciado.<br />

ABSTRACT<br />

This work explores the performance of Afro-brazilian dance, especially of Orixá dance<br />

within this profane context, underlining at the same time the sacred trait of the<br />

performance as well as its origins in the sacred world of the Afro-brazilian religion of<br />

Candomblé. Within the performance, I analyze the body as producer of meaning,<br />

communication tool, and memory and identity guardian. This thesis presents how the<br />

interactional games, gestures, movements and other dance body symbols within a<br />

performance, thanks to a sensorial intelligence and to a body knowledge, produce and<br />

transmit histories and meaning that are part of a rich afro-brazilian cultural patrimony.<br />

Methodologically speaking, the research was based on an auto-ethnography as a dancer<br />

of Afro-brazilian dance, supported by sociological, anthropological communication and<br />

performance theories, and I especially focused on interactionist and phenomenological<br />

views to analyze the research object. The goal of this work is to show the importance of<br />

the body and of the sensorial intelligence in the meaning production and communication<br />

within the Afro-brazilian dance performance, valorizing this as a complex art, rich in<br />

history and beauty, capable of teaching, remembering and transmitting a special<br />

knowledge which is part of the Afro-brazilian culture, and which needs to be recognized<br />

and appreciated.<br />

PALAVRAS CHAVE: 1. Dança Afro; 2. Orixás; 3. Corporeidade; 4. Performance;<br />

KEY-WORDS: 1. Afro-brazilian dance; 2. Orixás; 3. Embodiment; 4. Performance;


SUMÁRIO<br />

• Agradecimentos………………………………………………………………..…7<br />

• Introdução…………………………………………………………………..…….9<br />

• Capítulo 1: Olhar para a (e na) Performance………………………….….…..12<br />

1.1 Métodos e descrição do campo de pesquisa……………………….………...12<br />

1.2 Performance………………………………………………………………….17<br />

1.3 Paralelo Ritual-Performance…………………………………………………20<br />

1.4 Funções da Performance……………………………………………………..24<br />

• Capítulo 2: O Gosto da Dança Afro……………………………………………28<br />

2.1 O mundo da dança……………………………………………………….…..28<br />

2.2 Danças Afro-brasileiras………………………………………………….…..36<br />

2.3 A Arte de dançar Afro………………………………………………………..45<br />

2.3.1 História……………………………………………………..…….46<br />

2.3.2 Elementos………………………………………………...………49<br />

2.3.3 Modalidades…………………………………………………...…57<br />

• Capítulo 3: Os Cheiros da Natureza (Incorporando Orixás)…………………61<br />

3.1 O Candomblé……………………………………………………………...…61<br />

3.2 O Ritual da Festa Pública…………………………………………………….63<br />

3.3 Os Orixás e suas Danças……………………………………………………..68<br />

3.4 O Mito no Corpo……………………………………………...………..…...103<br />

3.5 Dança de Orixás no contexto sagrado e no profano…………………......…104<br />

• Capítulo 4: Ouvir o Outro (Comunicar Dançando)………………………....109<br />

4.1 Sinergia e Cooperação………………………………………………...…....109<br />

4.2 Diálogo e incorporação da linguagem……………………………………...112<br />

4.3 Comunicação entre corpo e natureza…………………………………….…114<br />

4.4 Conversas na dança: a presença do Tambor…………………………….….116


• Capítulo 5: A Intuição do Corpo (O Corpo na Dança e a Dança no Corpo) 119<br />

5.1 Corpo como Instrumento, “pessoa” e mediador cultural…………….….….119<br />

5.2 O Corpo que (se) pensa dançando………………………………………….123<br />

5.3 O gesto na Performance da dança Afro…………………………………….128<br />

5.4 Memória corporal e embodiment………………………………………….…..134<br />

• Capítulo 6: Sentir na Pele (Corpo, Identidade e Alteridade)……………..…142<br />

6.1 Resgate e Identidade………………………………………………………..142<br />

6.2 Categorias Sociais e Estereótipos…………………………………………..145<br />

6.3 Estigma e Preconceito Racial……………………………………………….149<br />

• Conclusão……………………………………………………………………….155<br />

• Bibliografia……………………………………………………………………..157<br />

• Lista de Imagens……………………………………………………………….166


AGRADECIMENTOS<br />

A Deus e todos os Orixás por providenciarem luz e força para terminar este trabalho.<br />

A Eliete, educadora, mulher guerreira, amiga e conselheira, por me ensinar a infinita<br />

beleza da dança Afro e por me inspirar a pesquisar essa arte.<br />

Aos meus pais, por me apoiarem nas minhas escolhas, projetos e aventuras.<br />

Ao Prof. Dr. Júlio Cesar de Tavares, por me orientar e ajudar nesta pesquisa desafiadora,<br />

e por acreditar neste trabalho.<br />

Aos Professores da banca examinadora, pela sua disponibilidade, ajuda e pelas valiosas<br />

sugestões.<br />

Aos meus amigos e colegas de dança, pelos seus gestos, palavras, movimentos e pela<br />

alegria gerada nas aulas.<br />

Aos integrantes da Cia. CorpAfro, presentes e passados, por acreditar no grupo e no seu<br />

objetivo, e pelos momentos de grande aprendizado juntos.<br />

Ao meu amigo Alex, fantástico dançarino, por contribuir à minha pesquisa com valiosas<br />

informações e por me convidar a conhecer e participar de maravilhosas festas públicas de<br />

Candomblé.<br />

A mãe Renata, Pai William e Mãe Rosa, por abrirem as portas dos seus Ilês e por me<br />

acolherem como parte da família.<br />

A Pai Jobi, por oferecer a oportunidade de conhecer o mundo dos Orixás.<br />

A Alex, Claudia, Dejaneth, Eliete, Akauan e Walmir, por dançarem e tocarem<br />

maravilhosamente no dia da defesa.


À FEBARJ (Federação dos Blocos Afro do Rio de Janeiro), pois foi lá que tudo<br />

começou.<br />

À UERJ, ao Circo Voador e ao Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, por oferecer<br />

ótimos espaços e estruturas de ensaio, tornando minha etnografia possível.<br />

Às minhas famílias, tanto a de origem como as que me adotaram no Rio de Janeiro, pela<br />

ajuda, amor e suporte muito preciso longe de casa.<br />

Ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense<br />

(PPGA-<strong>UFF</strong>).<br />

À Capes, pela concessão de bolsa de estudo para tornar essa pesquisa viável.<br />

A todos os professores de dança Afro que me deram aula e aos cujos espetáculos foram<br />

uma inspiração: a Tatiana, Pakito, Vânia, Charles Nelson, Zebrinha, Neudinha, George<br />

Momboye, Rubens Barbot, Rui Moreira por seus ensinamentos, seu tempo, e suas<br />

contribuições.<br />

Ao meu companheiro Pimpolho, por aguentar minhas crises de mestranda, pelas idéias<br />

fornecidas, pelas brigas que me incitaram a terminar este projeto e pelo amor dado.<br />

A todos meus amigos e amigas, pelas conversas, ajuda e solidariedade, tanto nos<br />

momentos difíceis como nos de celebração, e por não me deixar desistir.<br />

À minha gatinha Sete, por alegrar a casa enquanto escrevia.<br />

A todos e todas que contribuiram com este trabalho.


INTRODUÇÃO<br />

O corpo só tem sentido se aguçarmos nossos sentidos.<br />

A arte de dançar é algo que sempre foi presente na vida do ser humano e que faz<br />

parte de uma variedade de atividades que vão da esfera do lúdico ao religioso, da arte à<br />

diversão, da brincadeira ao profissionalismo. Como aponta o título “To dance is Human”<br />

de Judith Lynn Hanna, antropóloga e pesquisadora em dança na Universidade de<br />

Maryland, dançar é humano e a humanidade se expressa quase universalmente através da<br />

dança (Hanna, 1987). Explicando mais em detalhe a presença da dança nos vários<br />

campos da vida humana, Hanna descreve a dança como uma arte que representa pelo<br />

menos sete tipos de comportamento humano: físico, cultural, social, psicológico,<br />

económico, político e comunicativo (Hanna, 1987). Esta dissertação abordará cada uma<br />

destas dimensões da dança, todas elas entrelaçadas e ligadas à corporeidade humana.<br />

Junto com os tipos de comportamento humano, portanto, explicarei cada capítulo deste<br />

trabalho através dos sentidos corporais: a visão, o tato, o olfato, o paladar, a audição e o<br />

que pode se definir de sexto sentido: a intuição. Todos estes sentidos estão presentes na<br />

performance da dança Afro e em todos os tipos de comportamento humano representados<br />

pela dança. Entretanto, associei cada sentido a um capítulo e a um tema específico da<br />

minha pesquisa, mostrando como, de maneira variada mas sempre corporalmente o “eu<br />

dançante” na dança Afro aprende, pensa na prática, interage, compreende, comunica,<br />

carrega memórias e resgata identidades.<br />

O primeiro capítulo é o da visão; é um sentido forte, que permite olhar para e<br />

assistir o que está sendo mostrado. É o capítulo onde apresentarei meus métodos<br />

etnográficos, e farei uma descrição do campo de pesquisa além de apresentar as teorias de<br />

performance que serão a base do meu trabalho. Com o suporte teórico de Richard<br />

Schechner e Victor Turner falarei de performance e ritual, eventos nos quais a presença<br />

de espectadores é fundamental. Explorarei também as teorias de interação social de<br />

Erving Goffman, onde o olhar é um elemento chave do sucesso da interação. Seguindo o<br />

sentido da visão, associei o paladar ao segundo capítulo, sendo esse o capítulo que vai dar<br />

um gosto sobre a arte da dança em geral e sobre as danças afro-brasileiras e a dança Afro<br />

em particular. Tentarei aqui explicar a história, os elementos e as modalidades do que


pode ser chamado de dança Afro, saboreando a variedade e complexidade dessa arte.<br />

Nestes primeiros dois capítulos é possível ver especialmente como a dança é um<br />

comportamento social e econômico. A dança faz parte da nossa vida social e, ao dançar, o<br />

performer assume um certo status e executa vários papéis, assim como acontece na vida<br />

social, como será evidenciado no próximo capítulo com as teorias de Goffman.<br />

Economicamente falando, a dança é o meio de trabalho e de sustento de muitos<br />

profissionais, além do fato de muitas pessoas pagarem por aprender esta arte, por motivos<br />

que vão do buscar uma identidade ao fazer exercício, do conhecer novas pessoas ao se<br />

destrair, como veremos dos depoimentos no segundo capítulo.<br />

O terceiro capítulo foca-se mais sobre a modalidade sagrada da dança Afro, a<br />

dança de Orixás. Trarei aqui uma breve introdução sobre o mundo da religião do<br />

Candomblé, explicando quem são os Orixás e listando os principais deuses com seus<br />

arquétipos, suas características, seus gestos e jeitos de dançar. Ao analisar o corpo que<br />

dança Orixá, farei uma comparação entre o contexto sagrado do Candomblé e o campo<br />

profano da dança Afro, levantando algumas questões corporais que serão retomadas em<br />

seguida. Este capítulo é associado ao olfato, sentido que é fundamental no Candomblé e<br />

no lidar com as forças da natureza, muito presentes quando se fala de Orixás. Faz-se aqui<br />

evidente como dançar é algo cultural dado que todos os valores, atitudes e crenças<br />

influenciam os movimentos e a performance do dançarino. Além disso, através da dança<br />

transmitem-se elementos que fazem parte de uma rica cultura; neste caso passam-se<br />

histórias e mitos originários da religião do Candomblé, parte da cultura afro-brasileira.<br />

O quarto capítulo é da audição, pois é o capítulo que fala de comunicação. No dia<br />

a dia a comunicação acontece tanto de maneira verbal quanto não verbal. De qualquer<br />

maneira, o que é fundamental no processo comunicativo é que tenha alguém que escute e<br />

receba a mensagem. Na dança Afro o corpo comunica através dos gestos, da voz, da<br />

música, do toque do tambor, do movimento. Explorarei portanto as teorias de<br />

comunicação que abordam os elementos de interação e cooperação entre os protagonistas<br />

do ato comunicativo. Olhando para os tipos de comportamento de Hanna, esse capítulo<br />

lida com o “comportamento comunicativo” da dança, considerando esta arte como uma<br />

linguagem, um meio de comunicação não-verbal através da qual instauram-se relações e<br />

transmitem-se significados.


O capítulo cinco é associado ao sexto sentido da intuição. É um capítulo onde<br />

explorarei mais detalhadamente as teorias fenomenológicas do corpo, afirmando que não<br />

existe uma divisão entre corpo e mente e analisando como o corpo é capaz de aprender e<br />

compreender sozinho, pois os seus sentidos possuem uma inteligência própria e uma<br />

memória altamente funcional. Nesse capítulo é portanto possível ver a presença e a<br />

junção do comportamento físico e psicológico da dança; dançar é físico pois é uma ação<br />

estritamente ligada ao corpo do dançarino e aos movimentos executadoos através dos<br />

músculos, das articulações e dos impulsos energéticos vindo do cérebro. A dança é<br />

também um comportamento psicológico pois envolve pensamentos, emoções,<br />

sentimentos e afetos. Essas duas dimensões estão profundamente interligadas no<br />

corpo\mente do “eu dançante”.<br />

Finalmente, o sexto capítulo é o capítulo do tato, pois trata de sentir na pele a<br />

questão de identidade e alteridade racial presente na discussão e prática da dança Afro no<br />

Brasil. Trarei especialmente minha experiência de dançarina e pesquisadora branca no<br />

campo da dança Afro, mostrando a presença de fortes estereótipos raciais e falando da<br />

vivência de reações estigmatizadoras e preconceitos por causa da cor da pele de quem<br />

dança. É evidente como a questão política está aqui presente, mostrando a dança como<br />

um campo onde opiniões, posições socio-políticas e ideais são expressos e onde se<br />

instalam hierarquias e jogos de poder.<br />

Tendo apresentado os seis sentidos que inspiraram os capítulos desta dissertação,<br />

cabe mencionar “o sétimo sentido” que deu o título a este trabalho. A epifania que deu<br />

origem ao título veio há pouco tempo durante uma aula de dança Afro, na qual minha<br />

professora colocou uma das músicas que mais foram presentes nos meus anos de aulas e<br />

ensaios com ela e com o grupo. A música é “Raça Negra” da cantora baiana Virginia<br />

Rodrigues e as letras falam do povo negro e da “infinita beleza: o sétimo sentido da tal<br />

legião”. A infinita beleza refere-se à beleza da dança, a beleza da cultura afro-brasileira e<br />

do povo negro; é a beleza dos Orixás e dos reis e rainhas Africanos; a beleza da música e<br />

do tambor; a beleza da memória ancestral, da resistência e dos gestos. É a infinita beleza<br />

dos corpos que dançam.


CAPITULO 1 – Olhar para a (e na) Performance<br />

Tudo pode ser dançado e compreendido,<br />

pois o corpo, por uma razão ancestral,<br />

sempre teve necessidade de comunicar-se<br />

através do movimento.<br />

Maria Fux<br />

Métodos e descrição do campo de pesquisa<br />

Desde que cheguei no Rio de Janeiro, a dança Afro entrou na minha vida de<br />

maneira intensa, como uma verdadeira força da natureza com a qual esta arte tanto está<br />

conectada. Foi dançando que aprendi muitas coisas sobre a cultura afro-brasileira que<br />

comecei a sentir tão perto de mim que comecei a querer saber e pesquisar mais sobre ela.<br />

Por isso, depois de alguns mêses de aula, reparando quanto a dança Afro tinha virado<br />

algo extremamente importante na minha vida, quis realmente entender e procurar saber<br />

mais sobre este universo. Foi assim que decidi pensar em um projeto de mestrado onde<br />

pudesse estudar e pesquisar a dança Afro. Esta possibilidade me foi dada dentro do<br />

campo da antropologia, onde pude descobrir detalhes fascinantes que fazem parte do<br />

universo da dança Afro.<br />

Minha pesquisa baseou-se principalmente na observação participante do meu<br />

objeto de estudo como dançarina de dança Afro. Ao longo da minha pesquisa participei<br />

de muitas aulas e oficinas de dança Afro, tanto no Rio como em Salvador. Fiz algumas<br />

aulas com o professor Charles Nelson na Fundição Progresso na Lapa e participei como<br />

percussionista da banda Afro Orunmilá, na Febarj, na Lapa, onde tive contato com a<br />

prática de dança de blocos Afro que acontecia no lugar enquanto a banda tocava. Durante<br />

meu tempo em Salvador, frequentei as aulas de dança Afro na Escola de Dança do<br />

Terreiro de Jesus com Vânia, Tatiana e Pakito. Consegui participar de oficinas com<br />

Zebrinha e Neudinha, coreógrafos do Ballet Folclórico da Bahia. Além de participar<br />

como dançarina de aulas e oficinas de dança Afro, também assisti espetáculos, festivais e<br />

eventos de dança afro-brasileira, como o espetáculo “Orixás” da Cia Rubens Barbot de<br />

dança, o show do Ballet Folclórico da Bahia em Salvador, a Noite da Deusa do Ebano do<br />

Orunmila no Rio de Janeiro, e o Festival de jongo no quilombo S. José, entre outros.<br />

Ainda, conversei e conduzi entrevistas com profissionais da área e com alunos de dança


Afro e pesquisei e estudei fontes teóricas relacionadas ao meu objeto. Além disso,<br />

participei, como espectadora, de algumas festas de Candomblé em terreiros na Baixada<br />

Fluminense para poder observar e estudar a dança de Orixás dentro do ritual religioso e<br />

poder fazer uma comparação com o contexto profano da dança. Entre todas estas fontes<br />

de pesquisa, houve um campo principal no qual conduzi minha etnografia, que foi o<br />

campo onde comecei a dançar e que quero descrever mais detalhadamente.<br />

A maioria das aulas que frequentei foram da professora de dança Afro Eliete<br />

Miranda, baiana, formada pela escola de dança da UFBA (Universidade Federal da<br />

Bahia), e ex dançarina e coreógrafa do Bando de Teatro Olodum de Salvador. Comecei a<br />

dançar com Eliete em Agosto 2007 na Febarj (Federação dos blocos Afro do Rio de<br />

Janeiro), na Lapa, bem antes de até cogitar escrever uma dissertação de mestrado. Desde<br />

2007 nunca parei de fazer aula com Eliete e continuei seguindo ela para onde estivesse<br />

ensinando. Durante este último ano, desde março 2009, data do início oficial da minha<br />

etnografia, as aulas da Eliete das quais participei como dançarina e pesquisadora foram<br />

na UERJ (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e no Circo Voador na Lapa. Além<br />

das aulas, dancei e fiz pesquisa também como membro da Cia CorpAfro de Eliete, da<br />

qual faço parte desde setembro 2007 a pesar de algum tempo no qual me afastei do grupo<br />

devido a atritos entre alguns membros da companhia e a falta de organização. Desde<br />

Abril 2009, entretanto, ensaiei toda sexta e sábado junto com a Eliete e os outros<br />

participantes do grupo no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, localizado na Tijuca.<br />

Durante este ano, houve algumas apresentações do grupo que considerei também como<br />

material etnográfico.<br />

Quero portanto descrever com mais detalhes como são estes três espaços nos<br />

quais conduzi minha pesquisa e quem foram as pessoas que fizeram parte do campo<br />

durante o ano passado. Disse que, desde Abril 2009 as aulas e os ensaios aconteceram em<br />

três lugares principais. O primeiro lugar onde começaram as aulas do ano passado foi o<br />

Circo Voador, espaço cultural da prefeitura localizado na Lapa. Durante a semana ele<br />

abriga várias atividades culturais, como aulas e oficinas de dança, circo, teatro; no fim de<br />

semana, o circo Voador vira uma casa de show, onde é possível assistir a maioria dos<br />

músicos e artistas brasileiros. O espaço para dançar aqui é diferente do que seria uma<br />

qualquer sala de aula: o ambiente é aberto, ao ar livre, o chão é de madeira e a “pista” é


edonda. A circularidade do espaço, por exemplo, foi muitas vezes usada para trabalhar o<br />

elemento da roda, tão importante na dança Afro, e foi aproveitado para explorar<br />

arrumações e posições coreográficas diferentes das convencionais. A maioria das aulas<br />

no Circo Voador foi com a percussão ao vivo presente, o que levantou a energia em<br />

várias ocasiões. Sendo um espaço aberto, muitas vezes durante o inverno tivemos aula<br />

com tempo frio (relativamente, óbvio, agradecendo ao Rio de Janeiro!) e chuvoso. Ao<br />

chegar nossos corpos estavam com preguiça, endurecidos e cansados. O som do tambor<br />

era como um despertador, que fazia nos soltar e energizar, dançar e aquecer.<br />

As aulas no Circo sempre incluiam um momento para nos sentarmos na roda e<br />

discutir temas sobre a dança Afro, assuntos raciais e socio-políticos, e ler textos e poesias<br />

sobre história e identidade afro-brasileira. Mesmo sendo um espaço aberto, é um<br />

ambiente privado e tranquilo, que permite estes tipos de atividade de reflexão e<br />

discussão. Estes momentos em específico foram a melhor oportunidade para nós, alunos<br />

da aula, nos conhecermos, para trocar idéias e opiniões. O que ajudou na interação entre<br />

nós alunos foi o número pequeno de pessoas e o fato da maioria de nós já sermos amigos<br />

de anos, desde as primeiras aulas da Eliete. Muitas pessoas “novas” fizeram uma ou outra<br />

aula sem dar continuação, mas tiveram umas três pessoas que começaram a dançar no<br />

Circo Voador com a Eliete que continuaram e ficaram o ano inteiro; foram estas poucas<br />

pessoas que aos poucos se integraram mais com o “nosso grupo” de amigos da dança já<br />

existente. Foi muito interessante observar este tipo de interação, onde ficou sempre<br />

evidente a distinção entre os “novos alunos” e os “antigos”, que não somente são alunos<br />

de longa data, mas também fazem parte do grupo CorpAfro, fazendo com que a<br />

intimidade fosse bem maior do que com os outros. Esta situação, comum nas aulas mais<br />

recentes da Eliete, é um exemplo do conceito de team que o sociólogo Erving Goffman<br />

define no seu livro Presentation of Self in Everyday Life. Ele escreve que um time pode<br />

ser criado por indivíduos para ajudar o grupo do qual são membros; porém, eles acabam<br />

formando um tipo de “sociedade secreta” cujos membros são reconhecidos pelos nãomembros<br />

por formar uma sociedade exclusiva, mesmo que esta sociedade não esteja<br />

sendo constituída pelo fato deles atuar como um time (Goffman, 1959, p. 105).<br />

O segundo espaço é o da UERJ, onde a diferença entre os alunos antigos e os<br />

novos está presente também mas em nível menor, pois além de mim e mais um aluno dos


antigos, o resto da turma é formada por pessoas novas. As aulas de dança Afro da UERJ<br />

fazem parte do projeto do COART que promove todo semestre várias atividades artísticas<br />

e culturais. A Eliete tem dado aula lá há muitos anos, e eu já fiz aula na UERJ com ela<br />

nos anos passados. No ano da minha pesquisa, 2009, formou-se uma turma que continuou<br />

dançando nos dois semestres, e que surpreendeu pela sua vivacidade, intimidade, vontade<br />

de aprender e de interagir. O espaço para dançar na UERJ é uma sala pequena mas limpa<br />

e confortável, com espelhos, ar condicionado, equipamento audio-visual e uma variedade<br />

de instrumentos percussivos a disposição. Como a aula tem três horas de duração, Eliete<br />

sempre reserva uma boa parte do tempo para uma parte teórica, assim como ela faz no<br />

Circo Voador, para poder discutir assuntos atuais sobre a questão Afro. Esta estrutura de<br />

aula é o que torna o método de Eliete tão diferente da maioria das aulas de dança Afro<br />

das quais já participei. O fato de discutir e estudar assuntos como identidade negra,<br />

sistema de cotas, mitologia dos Orixás, histórias dos blocos Afro de Salvador etc. é algo<br />

que, além de promover a interação entre os alunos, também estimula o interesse pela<br />

questão Afro, e ajuda a entender mais a importância da dança como uma maneira de<br />

aprender, compreender e resgatar certas memórias e raízes.<br />

O terceiro ambiente que irei descrever é o Centro Coreogràfico do Rio de Janeiro<br />

(CCRJ) onde, desde Abril 2009, o grupo CorpAfro da Eliete está ensaiando. Este é um<br />

lugar dedicado especificamente ao universo da dança e é portanto equipado para isso. As<br />

salas são grandes e entornadas de espelhos, o chão, a luz e o som são apropriados para<br />

dançar, e tanto as salas quanto o prédio são extremamente limpos e funcionais. Durante<br />

uma roda entre os membros do grupo, no nosso primeiro ensaio do ano, Eliete falou<br />

muito sobre este espaço, que foi conseguido por meio de um processo de seleção muito<br />

duro. A coordenação do Centro agora é de Carmen Luz, coreógrafa da Cia Etnica, que<br />

deu a Eliete e ao grupo Corpafro a possibilidade de ser residentes no CCRJ por um ano.<br />

Eliete comentou que “É muito importante estar neste espaço especialmente para um<br />

grupo de dança Afro, pois sempre foi um espaço reservado a grupos de ballet ou de dança<br />

contemporânea” (10 Abril 2009). Este comentário evidencia a importância de ter<br />

conquistado um espaço que foi historicamente reservado somente para alguns estilos de<br />

dança, e que sempre teve preconceito com grupos de dança Afro. Por estar em um espaço<br />

profissional, Eliete exigia uma postura profissional, começando pelo uso de uma


uniforme para dançar. Desde o primeiro ensaio, foi evidente como o clima e a atmosfera<br />

desse espaço era completamente diferente dos outros lugares de aula, pois realmente<br />

pôde-se sentir a seriedade, a responsabilidade e o profissionalismo exigidos. Uma coisa<br />

que Eliete evidenciou em um ensaio foi a importância de “saber chegar no lugar, não<br />

deixando de ser você mesmo mas precisando ter limites e regras” (18 Abril 2009). Mais<br />

uma vez, a teoria de Goffman pode ser relacionada a esta situação, pois evidencia como a<br />

vida social de todo dia é um palco no qual, para poder ter sucesso, é preciso saber chegar,<br />

se preparar, conhecer as regras e os limites do jogo para poder respeitá-los e conseguir<br />

jogar e interagir com os outros (Goffman, 1959).<br />

A partir daquele momento, os ensaios aconteceram toda sexta e sábado, por cinco<br />

horas seguidas, sendo estes momentos de criação, de trabalho e de concentração. O<br />

trabalho prosseguiu e evoluiu mas faltou ter uma consistência de participantes do grupo,<br />

o que acabou demotivando um pouco o clima dos ensaios. De qualquer maneira, as<br />

experiências vividas, as informações aprendidas e a prática adquirida durante os ensaios<br />

foram extremamente valiosos para cada um dos membros do grupo, assim como para a<br />

Eliete. Durante estes mêses de ensaio, tiveram várias apresentações do nosso espetáculo<br />

“Corpos e Tambores”, o qual, mesmo estando ainda em construção, transmite os<br />

objetivos do grupo CorpAfro elencados por Eliete:<br />

Grupo Corpafro: corpo e origem Afro-Brasil.<br />

1. trabalhar a nossa identidade cultural.<br />

2. trabalhar corporeidade.<br />

3. conhecer o que tem ao nosso redor.<br />

4. desmistificar o fato do que “dança afro é macumba”.<br />

5. leitura, pesquisa, conhecer as origens. (24 Julho 2009)<br />

Estes objetivos são os objetivos da arte de dançar Afro segundo os ensinamentos da<br />

Eliete, os quais mostram como a performance da dança Afro é um meio para ensinar e<br />

construir uma realidade que seja consciênte de certas questões pertencentes à cultura<br />

afro-brasileira. É preciso agora clarificar o conceito de performance, muitas vezes<br />

utilizado de maneira superficial sem conhecer o seu complexo significado. Após entender<br />

mais este termo, mostrarei como os elementos performáticos fazem parte tanto da vida<br />

cotidiana, quanto da dança e do ritual.


Performance<br />

As teorias de performance de Erving Goffman, Richard Schechner e Victor<br />

Turner aparecem como ferramentas adequadas para analisar as aulas, ensaios e<br />

apresentações de dança Afro que fizeram parte da minha pesquisa. Primeiro, é<br />

fundamental definir melhor o termo performance. Segundo um dos maiores estudiosos<br />

de performance junto com Victor Turner, o norte-americano Richard Schechner, a<br />

performance pode ser entendida no ambiente do cotidiano, do ritual e da arte. Todos estes<br />

tipos de performance são feitas de “comportamentos duplamente exercidos,<br />

comportamentos restaurados, ações performadas que as pessoas treinam para<br />

desempenhar, que têm que repetir e ensaiar” (Schechner, 2003, p. 27). Ele continua<br />

afirmando que as performances “afirmam identidades, curvam o tempo, remodelam e<br />

adornam corpos, contam histórias” (Ibidem) Segundo Schechner portanto a atuação<br />

repetida e ensaiada é um elemento fundamental da performance. Além disso, o<br />

componente do “jogo” é também importante. Em sua obra “Performance Theory”,<br />

Schechner define performance como “Ritualized behavior permeated by play”<br />

(Schechner, 1988, p. 99). A característica ritual da performance será analisada em<br />

seguida; com resguardo ao fator do jogo, isso é algo que faz parte da interação entre os<br />

atores, e entre atores e audience, tanto no espetáculo de teatro ou dança, quanto na vida<br />

de todo dia. O jogo é algo que rende a performance uma situação sempre ativa e, como<br />

Schechner escreve, um “processo turbulento de transformação” (Schechner, 1988: 157).<br />

Esta concepção de performance como atividade sempre em movimento e como<br />

mudança pode ser comparada com a definição tanto de interação quanto de performance<br />

de Erving Goffman. Ele afirma que a interação é a influência reciproca dos indivíduos<br />

sobre as suas ações na sua presença imediata. A performance é toda a atividade de um<br />

participante em uma situação, que serve para influenciar os outros participantes<br />

(Goffman, 1959, p.15). Mais uma vez é possível ver como a “atividade” está presente<br />

entre um grupo de indivíduos. No artigo Performance e História, Antonio Herculano<br />

Lopes, após consultar várias definições de performance em dicionários, conclui que a<br />

idéia de movimento, ação ou processo, combinada com a noção de resultado, assim como<br />

a associação com um público são os elementos chave da performance. Lopes continua<br />

explicando que no campo artístico o termo equivale ao termo apresentação, indicando a


atuação de um artista numa apresentação (Lopes, 2003, p. 7). Além do campo artístico,<br />

entretanto, “todo um enorme universo que nos circunda no dia a dia é de caráter<br />

performático” (Ibidem, p. 6)<br />

A performance portanto relaciona-se a algo que fazemos todo dia segundo<br />

Goffman também ao assumir os vários papéis nas diferentes situações da vida. As<br />

aparências e o jeito de se comportar são muitas vezes os maiores elementos de uma<br />

performance e são os indicadores de um dado papel para os outros indivíduos. A maneira<br />

de andar, a indumentária e alguns objetos pessoais se tornam símbolos que comunicam<br />

determinado status ou personalidade:<br />

“Quando começamos a ensaiar no Centro Coreográfico, comprei uma bolsa de<br />

dança, do tamanho suficiente para poder carregar minha roupa, água e tudo do<br />

que precisasse. É uma bolsa de pano beige com um desenho de pés descalços na<br />

frente dela, caracterizando-a como uma bolsa de dança. Ao andar pela rua com<br />

meu cabelo preso, meu sutiã esportivo e minha bolsa, estava consciênte do fato<br />

que quem me observava passar pela rua provavelmente achava que fosse uma<br />

dançarina.”<br />

Este excerto do diário de campo mostra como alguém possui um dado papel pelo fato de<br />

simplesmente aparentar aquele papel e não necessariamente estar executando ele<br />

(Goffman, 1959). A ação de andar pela rua usando uma bolsa com um desenho que<br />

simboliza a arte da dança é uma performance, pois é guiada e condicionada por princípios<br />

estéticos e técnicas teatrais; ao mesmo tempo a estética teatral de uma cultura é guiada e<br />

condicionada por processos de interação social (Schechner, 1988, p. 215).<br />

Para mostrar como as regras de interação social e as regras de performance<br />

artística se relacionam, é interessante olhar para algumas situações nos ensaios e<br />

apresentações de dança Afro. Primeiro, voltanto ao conceito de “time” de Goffman, ele<br />

explica que a interação entre membros de um mesmo time precisa ser muito forte para<br />

que a performance do grupo seja realizada com sucesso. Na dança, ao executar uma<br />

coreografia em grupo, a cooperação entre os dançarinos é fundamental para formar um<br />

conjunto harmônico e esteticamente coerente na frente de uma audience. É necessário<br />

confiar no companheiro de dança e existe uma ligação de dependência reciproca entre os<br />

indivíduos atuando juntos (Goffman, 1959). Esta cooperação é necessária tanto durante o<br />

ensaio quanto, a maior razão, durante uma apresentação pública. Neste caso, a cooperação<br />

precisa ser ainda maior. No caso de um dos componentes do grupo errarem na


frente de espectadores, os outros membros precisam não revelar o erro até o fim da<br />

apresentação (Goffman, 1959, p. 89). Esta situação aconteceu algumas vezes durante as<br />

apresentações do grupo CorpAfro, durante as quais, se algum de nós errasse na<br />

coreografia, isso seria comentado somente no camarim após a apresentação.<br />

O fato de comentar abertamente os erros só longe da presença do público, evidencia a<br />

presença nas performances de regiões distintas que Goffman chama de “front region” e<br />

“backstage”. A região de frente é onde a performance está acontecendo e os bastidores<br />

são a região na qual acontecem ações relacionadas com a performance mas que não são<br />

coerentes com a aparência da performance (Ibidem, p. 134). Antes de uma apresentação,<br />

portanto, toda a fase de arrumação, de maquiagem, de últimas repetições das coreografia<br />

faz parte dos bastidores. Ao entrar no palco, entra-se a região de frente, onde os<br />

performers mostram somente o que a audience está preparada para ver. A área dos<br />

bastidores serve também para outras funções. Longe dos olhos e dos ouvidos da audience<br />

é muito comum os componentes do time, os dançarinos no meu caso, falar mal dos<br />

espectadores, coisa que eles não fariam na região de frente. Este comportamento é o que<br />

Goffman chama de “Treatment of the absent” (Ibidem, p. 170) e é uma maneira de<br />

manter a moral do time. Este “tratamento dos ausentes” aconteceu algumas vezes durante<br />

minha etnografia como por exemplo em uma apresentação na Cinelandia em ocasião da<br />

marcha mundial da paz. Ao nos apresentar, a mulher responsável pelo evento nos<br />

introduziu como um “grupo de dança típica africana”. O que quer dizer algo “típico<br />

africano”? Isso foi o que cada um de nós pensou imediatamente, internamente julgando a<br />

mulher por pensar que “dança Afro”, no Brasil, é igual a uma “dança africana”. Como<br />

veremos no próximo capítulo, essa é uma definição completamente inexata. Primeiro, não<br />

existe uma dança africana, mas várias danças africanas, pois estamos falando de um<br />

continenete composto por múltiplos países, povos e culturas. Segundo, a dança Afrobrasileira<br />

que o nosso grupo apresenta é complexa e formada por várias modalidades que<br />

serão descritas no próximo capítulo e que, apesar de ter uma origem africana, é uma<br />

dança brasileira, típica portanto deste país onde se desenvolveu. Na hora do comentário<br />

da mulher não falamos nada, entramos na praça e fizemos nossa performance. Ao sair de<br />

cena e nos reunir depois, todo mundo do grupo comentou sobre a denominação dada pela<br />

organizadora e mostrou sua indignação (diário, 2 Outubro 2009).


É interessate ver como esta divisão de regiões é típica de qualquer performance, tanto<br />

artística, quanto da vida cotidiana ou ritual. Introduzindo o aspecto performático do<br />

ritual, aqui temos um exercício das regiões em um terreiro do Candomblé em Nova<br />

Iguaçu, onde as pessoas envolvidas no ritual estavam se arrumando para participar de<br />

uma festa de Iemanjá:<br />

Na casa de R., mãe de santo de A. houve a preparação para a festa: em um quarto<br />

todas as mulheres se arrumaram, escolhendo a roupa certa para o evento, se<br />

maquiaram, pentearam o cabelo por horas, preocupando-se muito com a<br />

aparência. Achei esta cena muito parecida com a arrumação nos bastidores de<br />

uma apresentação de dança. (9 Maio 2009)<br />

Assim como o contexto artístico, o ritual religioso também possui sua região de frente e<br />

seus bastidores. Ao entrar em cena, os elementos performáticos continuam co-existindo<br />

com os elementos religiosos do ritual. A relação inversa é também algo que observei<br />

durante meu campo, ou seja a a presença de elementos rituais na performance artística.<br />

Em um festival de Jongo (tipo de dança Afro-brasileira) no quilombo de S. José da Serra<br />

no Rio de Janeiro, esta correlação foi evidente especialmente na hora da abenção da<br />

fogueira, feita pelo patriarca e pela matriarca do quilombo com ervas e água, após a qual<br />

a fogueira virou o centro das rodas de jongo que aconteceram a noite toda ao ritmo dos<br />

tambores. Para explorar mais esta ligação performance-ritual trarei novamente as teorias<br />

de Victor Turner e de Schechner o qual afirma que “separar arte e ritual é particularmente<br />

difícil” (Schechner, 2003, p. 31).<br />

Paralelo Ritual-Performance<br />

Victor Turner desenvolve a noção de performance em sua paradigmática obra The<br />

Anthropology of Performance. Turner define antes de tudo o conceito de “performances<br />

culturais” citando Milton Singer, e afirmando que as performances são os elementos que<br />

constituem uma cultura e são compostas por “mídia culturais”, ou seja modos de<br />

comunicação verbal e não-verbal, que expressam o conteúdo de uma dada cultura, assim<br />

como podem ter influências sobre ela. (Turner, 1987, p. 23). Muitas vezes as<br />

performances culturais correspondem a momentos de crise ou desarmonia. Turner chama<br />

estas situações de conflito de “dramas sociais”, nos quais as ações assumem carácter<br />

performático pois os participantes tentam mostrar suas ações para os outros (Ibidem, p.


74). A performance de uma sequência complexa de atos simbólicos é definida por Turner<br />

como ritual. O que é de importância para a nossa discussão é o paralelo que Turner faz<br />

entre o ritual, ou cerimônia coletiva, e outros gêneros de performance como o teatro ou,<br />

neste caso, a dança. Ambos possuem características parecidas tais como uma atuação<br />

consciênte, uma certa ordem, um estilo evocativo de se apresentar, e uma mensagem ou<br />

significado a ser disseminado (Ibidem, p. 93). Como Turner afirma também no seu livro<br />

Floresta de Símbolos, a performance é então uma atividade ritual; é um conjunto de<br />

expressões que tem corpo e ideologia. O elemento do corpo é mais uma vez presente,<br />

sendo o suporte fundamental do ritual; pois não existe linguagem sem corpo e o ritual é<br />

linguagem (Turner, 2005).<br />

Richard Schechner, estudioso de teatro, retoma a teoria de Turner e aplica ela<br />

mais ainda à área de dança e teatro. Como ele escreve no texto Ritual, Violence and<br />

Creativity, “a ação ritual é muito parecida com o teatro” (Schechner, 1963, p. 297). No<br />

ritual, assim como no teatro e na performance da dança, o comportamento é<br />

reorganizado, exagerado, e ritmizado, fazendo uso de figurinos, máscaras e maquiagem.<br />

Também, seja no ritual quanto nas artes performáticas a ação é simbólica (Ibidem).<br />

Neste texto Schechner pontua vários aspectos fundamentais que aproximam o ritual ao<br />

teatro ou à dança, evidenciando a natureza liminar destas experiencias.<br />

Primeiro, os rituais envolvem muitas vezes elementos artísticos como dança,<br />

música ou teatro. Eles utilizam elementos cenográficos tais quais máscaras ou figurinos,<br />

e criam uma atmosfera de envolvimento para a audience presente. Os valores<br />

encorporados nos participantes dos rituais são “rítmicos e cognitivos, espaciais e<br />

conceptuais, sensuais e ideológicos”, ou seja, segundo Schechner, o ritual é “totalmente<br />

teatro” (Ibidem, p. 302). Tomando outro texto de Schechner, Magnitudes of Performance,<br />

ele explora mais ainda esta dimensão do ritual e da performance, analisando os ensaios e<br />

as oficinas da peça The Prometeus Project. Ele afirma que várias vezes os participantes<br />

das ofinicas entravam em estado de trance, pois entrar o mundo de Io, a protagonista, era<br />

uma experiência muito intensa e profunda. Assim como a experiencia em si, o momento<br />

sucessivo do alongamento permitia que os participantes voltassem ao estado presente, um<br />

estado mental caracterizado por “mais pensar do que sentir” (Schechner, 1986, p. 365).<br />

Nos meus ensaios de dança Afro, várias vezes experimentei este estado de trance e de


total envolvimento com o movimento executado. Uma das aulas viu como protagonistas<br />

os tambores na minha experiência pessoal de dançarina:<br />

“Hoje não conseguia parar, era como se fosse um desafio comigo mesma-queria ir<br />

até o final. Ainda bem que os tambores ajudaram. É incrível como eles abstraem a<br />

mente do esforço que estou fazendo. Senti o toque deles bem perto do meu<br />

trabalho e consegui realmente estabelecer uma conexão entre a música e os<br />

movimentos que estava fazendo. Foi muito bom.”(diário, 13 Maio 08)<br />

Esta experiência denota um caráter praticamente ritual do ensaio, onde o som dos<br />

tambores penetrou o corpo tão intensamente que o esforço e a dor conseguiu ser<br />

abstraídos para se chegar a um outro nível, mais que simplesmente material, cheio de<br />

sensações positivas. Esta conexão com o som dos tambores é algo de muito espiritual<br />

que, no contexto da dança afro, nos remete a uma experiência do contexto sagrado do<br />

candomblé. Como explica Monique Augras em O Duplo e a Metamorfose “Os tambores<br />

são personagens importantes na vida do candomblé. São considerados como seres vivos”<br />

(Augras, 1983, p. 72). Augras continua explicando que, no barracão de candomblé, os<br />

visitantes vão primeiro saudar os tambores, assim como depois farão os orixás e que “é o<br />

som dos tambores que chama os deuses. Cada orixá tem seus toques específicos, aos<br />

quais responde” (Ibidem, p. 73). Várias cantigas são cantadas para cada orixá, mas é<br />

somente o toque do atabaque que tem o poder de fazer os deuses “baixarem”.<br />

Mesmo não estando em um ritual de candomblé, os tambores na dança afro são<br />

extremamente importantes. Especialmente durante a dança de orixás, é o toque do tambor<br />

que chama o movimento. O corpo responde automaticamente com o movimento ao som<br />

do atabaque, simbolizando um determinado orixá. Em outra aula, pode-se ver como a<br />

conexão entre dançarino e orixá representado está presente:<br />

“É impressionante a sensação de cansaço mas também de leveza que se<br />

experiencia no final de um ensaio destes, dedicado ao estudo de dança das yabás.<br />

É como se um pouco da personalidade de cada uma das orixás femininas entrasse<br />

por dentro do dançarino, que consegue se aproximar de cada uma delas através da<br />

representação dos movimentos simbolizando cada entidade.”(diário, 17 Junho<br />

2008)<br />

Neste caso, o dançarino consegue incorporar o Orixá representado, “se aproximando” e<br />

sentindo dentro de si a personalidade de cada Yabá (orixá feminino). A sensação vivida<br />

pode ser analisada com o conceito de “jogo” de Turner, apresentado por Schechner. Este


“jogo” é o prazer, a mera êxtase que os rituais dão a seus participantes; é a “atuação de<br />

perigos dentro da esquema do “como se” (Schechner, 1986, p. 365). Do outro lado,<br />

Schechner também considera o verdadeiro estado de transe como um tipo de atuação:<br />

“ser possuído por outro, ou seja, virar outro” (Schechner, 1988, p. 199).<br />

Voltando ao texto Ritual, Violence and Creativity de Schechner, o autor apresenta<br />

um segundo paralelo entre o ritual e a dança ou teatro. Utilizando o conceito de “processo<br />

ritual” de Turner, Schechner escreve que “o processo ritual é estritamente análogo ao<br />

processo de treino-oficina-ensaio, onde o que ‘é dado’ e o que ‘é já feito’, é<br />

desconstruido e quebrado em pequenos pedaços de comportamento, sentimento,<br />

pensamento, e texto, e é depois reconstruido nas performances públicas” (Schechner,<br />

1963, p. 311). Schechner prossegue dizendo que este treinamento comporta o<br />

aprendizado de novas maneiras de falar e de se mover, novos gestuais e talvez novas<br />

maneiras de pensar e de sentir. Ao fim do periodo de treinamento, o ator ou dançarino é<br />

incorporado na tradição do que aprendeu, justamente como um membro iniciado em um<br />

ritual (Ibidem).<br />

Em sua outra obra Between Theater and Anthropology, Schechner reforça mais esta<br />

similaridade entre o rito e a arte da performance trazendo a teoria de Arnold Van<br />

Gennep. Na obra Ritos de Passagem, o autor alemão estuda o rito como um fenômeno<br />

em si, dotado de certos mecanismos recorrentes e de um certo conjunto de<br />

significados. Ele concentra seu estudo nas margens, na transição, que constitui o<br />

aspeto principal dos ritos de passagem. Além da margem, estes ritos são constituídos<br />

também por um momento anterior (fase de separação) e um posterior (fase de<br />

agregação), os quais são importantes de se considerar para o entendimento do ritual<br />

(Van Gennep, 1977). Fazendo um paralelo com Van Gennep, Schechner afirma como<br />

a arte da performance é um ritual que inclui uma fase de separação (preparo técnico<br />

e ensaio), uma de transição (performance) e uma de retorno (relaxamento). A<br />

performance é então a fase de margem e, assim como a iniciação, ela faz de uma<br />

pessoa, outra, com a única diferença do que as transformações na performance são<br />

geralmente temporárias (Schechner, 1985). Viu-se portanto como o ritual e a<br />

performance artística são dois mundos relacionados e parecidos. A linha de separação<br />

entre os dois é fluida, e as fronteiras não são rígidas. Como podem então ser<br />

reconhecidos devidamente? O que marca a diferença entre o rito e o espetáculo teatral<br />

ou de dança? Schechner diz que cada ritual pode ser tirado do seu contexto original e<br />

pode ser performado como teatro. Isso é possível porque o contexto e a função, assim<br />

como a estrutura ou processo fundamentais, distinguem o ritual do entretenimento da<br />

vida cotidiana; além disso, esta diferença surge do acordo entre os performers e a<br />

audience (Schechner, 1988, p. 152). No caso da dança de Orixás, é preciso saber<br />

distinguir entre esta dança no contexto sagrado do Candomblé e no contexto profano<br />

da dança Afro. O terceiro capítulo apresenterá a dança de Orixás nesses dois mundos,


fazendo um paralelo e ao mesmo tempo deixando claro que a dança de um contexto é<br />

algo bem distinto da dança do outro contexto. Antes de chegar lá quero concentrar a<br />

atenção mais sobre as funções da performance.<br />

Funções da Performance<br />

Analisou-se até agora o que pode ser considerado performance; evidenciaram-se os<br />

elementos interacionais nela presentes e viu-se a proximidade existente entre a<br />

performance artística e o ritual sagrado. No artigo O que é Performance, Richard<br />

Schechner elenca sete funções principais da performance: entreter, fazer alguma coisa<br />

que é bela, marcar ou mudar a identidade, fazer ou estimular uma comunidade, curar,<br />

ensinar, persuadir ou convencer, e lidar com o sagrado e com o demoníaco<br />

(Schechner, 2003, p. 45). Cada performance focaliza geralmente em várias funções ao<br />

mesmo tempo e até os significados de cada função não são tão fixos, pois dependem<br />

de fatores culturais e situacionais. O sentido do que é belo, por exemplo, muda<br />

dependendo da cultura ou simplesmente da audience. Da mesma maneira, as<br />

performances podem entreter alguns espectadores e não outros. Em geral, é importante<br />

lembrar e considerar essas funções escolhidas por Schechner que, como veremos ao<br />

longo da dissertação aplicam-se muito bem à performance da dança Afro. A questão<br />

da formação de identidade através da performance por exemplo é particularmente<br />

presente na minha pesquisa, assim como o fato da dança Afro lidar com ambos os<br />

campos do sagrado e do profano.<br />

Retomando o artigo sobre Performance de Antonio Herculano Lopes, acho importante<br />

evidenciar duas funções da performance que o autor pontua. Primeiro, ele escreve que<br />

“os elementos performáticos contribuem para a construção de identidades coletivas<br />

que ao memo tempo refletem e influenciam o curso dos eventos” (Lopes, 2003, p. 9).<br />

Tais elementos, nas artes, assumem uma forma mais explícita, permitindo ao grupo<br />

social de se auto-reconhecer. No caso da dança Afro, elementos constitutivos e<br />

característicos dessa arte fornecem um instrumento de identidade para os dançarinos,<br />

como veremos mais em detalhe no último capítulo. Segundo, através da performance,<br />

recupera-se uma sensação que ficou registrada em algum canto da memória (Ibidem,<br />

p. 11). A performance da dança Afro, assim como outras formas artísticas, cria uma<br />

experiência performática, onde o espectador penetra por dentro da performance,<br />

envolvendo a totalidade dos seus sentidos. É por essa razão também que os sentidos<br />

são evidenciados e dão o título a cada capítulo desta dissertação.<br />

Um elemento fundamental que faz parte da performance destacado por Schechner<br />

é o da transformação. Segundo ele, as pessoas usam o teatro como meio de experimentar<br />

e atuar mudanças. Tais mudanças acontecem nos performers assim como na audience e,<br />

como foi mencionado antes, podem ser temporárias, no caso do teatro, ou permanentes,<br />

no caso do ritual. Em artigo intitulado “Etnografia da performance musical: identidade,<br />

alteridade e trasnformação”, Rose Satiko Gitirana Hikiji aponta como esse elemento da


transformação encontra-se presente na performance musical do grupo de adolescentes do<br />

projeto Guri. Ela escreve:<br />

“Experiência ampla, a performance é central em projetos que, como o Guri, tem<br />

como um dos objetivos principais a intervenção social por meio da música. Ela<br />

torna visíveis atores e instituição. É palco de um amplo jogo de espelhos, lugar de<br />

exibição de identidade e construção de auto-imagens. É espaço de transformação.<br />

É concebida como auge do processo pedagógico, locus de exibição do que foi<br />

aprendido, ensaiado, incorporado. É oportunidade de conhecer novos lugares,<br />

pessoas, é "saída para o mundo".” (Hikiji, 2005)<br />

A autora apresenta como a performance musical, nesse caso, é fonte de construção de<br />

identidades e auto-imagens, é espaço de transformação e ferramenta de ensino, além<br />

de ser uma possibilidade para conhecer novos lugares, novas pessoas e novas<br />

realidades. O conhecimento do outro é considerado por Hikiji como elemento<br />

fundamental para a transformação dos alunos. Tanto o encontro com os outros no<br />

palco quanto com a platéia é uma ferrameta de aprendizagem, apesar de poder ser<br />

tanto alegre quanto conflituoso. Graças a estes encontros, os alunos trocam impressões<br />

um do outro, cada um vê a realidade do outro, e eles se percebem (Hikiji, 2005). A<br />

performance diante de uma platéia permite a fixação de identidade do grupo e a<br />

experiência de transformação, de se tornar o outro sem abandonar a si próprio.<br />

Hijiki, assim como Lopes, também ressalta a experiência sensível da<br />

performance:<br />

“A performance é também uma experiência sensível única, que mobiliza<br />

sensações independentemente de estarem sobre o palco amadores, profissionais,<br />

estudantes ou participantes de um projeto de intervenção social…<br />

Essa manipulação de expectativas, medos, vaidades e do prazer de fazer música –<br />

somente possível dada a relação palco-platéia – corresponde a um intenso<br />

aprendizado sentimental.” (Hikiji, 2005)<br />

Mais uma vez pode-se observar como a performance estimula, mobiliza e manipula<br />

sentimentos e sensações tanto para quem está no palco quanto para a platéia, permitindo<br />

o que Hikiji chama de “intenso aprendizado sentimental”. Este aprendizado, assim como<br />

o pleno envolvimento dos sentidos na performance e a criação de auto-imagens e<br />

identidades fazem parte do palco e sua “magia”. Segundo a autora, essa “magia” do palco


é incorporada e carregada para a vida cotidiana, onde as imagens construídas no palco<br />

graças à interação com os outros farão parte das noções de pessoa destes jovens<br />

performers nas suas vidas pessoais (Hikiji, 2005)<br />

Uma vez mais percebe-se que essa magia da performance está presente em todo<br />

lugar: no espaço, nas coisas, nas pessoas; tudo vira um símbolo, que possui um<br />

significado muito maior. Na análise da performance do Moçambique de Belém, Claudio<br />

Alberto Dos Santos ressalta como o bastão usado nessa performance “deixa de ser uma<br />

mera coisa” e assume um significao e um poder especial, “mágico” para os<br />

moçambiqueiros. Essa coisa chega a ter alma e coração, permitindo uma vivência intensa<br />

da performance (Dos Santos, 2003, p. 151). O Moçambique de Belém, assim como as<br />

outras performances afro-brasileiras, caracaterizam-se por essa intensidade, pelas<br />

vibrações de energia que se criam no ar, pela impetuosidade e pelo despertar e<br />

envolvimento de todos os sentidos e das emoções movimentados pela percussão, pela<br />

dança e pelos gestos rituais:<br />

“ A percussão, a dança e os gestos rituais ajudam nesse movimento que leva aos<br />

estados alterados da percepção. O corpo dos participantes muda, transforma-se,<br />

porque entram em jogo elementos irracionais. É um corpo emocionalmente<br />

intenso, extático.” (Ibidem, p. 153)<br />

O corpo na performance afro-brasileira atua através de elementos impulsivos e é um<br />

corpo que se movimenta e experiencia a performance não só fisicamente, mas também<br />

emocional e espiritualmente. Na dança Afro, os “estados alterados da percepção” se<br />

manifestam movidos pelo toque do tambor e pelos gestuais dos Orixás. O performer<br />

transmite e vivencia intensamente essa emoção, entregando-se totalmente em cena e<br />

executando gestos fortes e exagerados que surgem de dentro, das emoções mais<br />

profundas, das vibrações energéticas internas e das experiências sensoriais do corpo. A<br />

performance da dança Afro é um lugar onde o corpo do dançarino percebe o outro, troca<br />

olhares com o outro, sente os cheiros em volta dele, toca o outro e sente os gestos e<br />

movimentos na pele, ouve os sons, as músicas e os ritmos que o entornam, e sente o gosto<br />

do que está fazendo, da dança, da música, do ambiente, e do outro.


CAPITULO 2 – O Gosto da Dança Afro<br />

O universo da Dança<br />

Dancing is like breast-feeding.<br />

That is, it is a potentially nurturing,<br />

sustaining activity, an act of transmission.<br />

Barbara Browning<br />

Como foi analisado detalhadamente na introdução, dançar é humano. E a dança<br />

permeia várias áreas da nossa vida cotidiana. Dançar pode ser considerado algo como<br />

vários tipos de comportamento humano, do físico ao psicológico, do social e cultural<br />

ao econômico e político, até ser um meio de comunicação. O que é portanto dançar?<br />

Quais são os elementos que constituem a arte da dança? E por que as pessoas dançam?<br />

Estas são as perguntas que tentarei responder nesta primeira parte deste capítulo.


Olhando para os dados que colecionei, achei a melhor definição de dança ser a de<br />

Judith Lynn Hanna, a autora mencionada na introdução deste trabalho, no seu livro<br />

“To Dance is Human”. Ela define “dança” como um “comportamento humano”<br />

composto por sequências de movimentos corporais e outras atividades motoras com<br />

valor estético, desenhadas culturalmente, intencionalmente rítmicas e possuindo um<br />

objetivo (Hanna, 1987, p. 19). É importante evidenciar cada elemento desta definição<br />

para poder entender a complexidade muitas vezes não reconhecida da dança.<br />

Especialmente na nossa sociedade ocidental a dança, como a arte de maneira geral, é<br />

colocada em um plano inferior e não é devidamente valorizada. Dentro da academia<br />

encontra-se o mesmo tipo de resistência ao considerar a dança como uma disciplina<br />

complexa e rica de significados a ser estudados. Por isso acho fundamental<br />

desconstruir estas noções mostrando como dançar é algo sério e importante, algo que<br />

não é fácil e que exige muito treino e estudo para poder ser compreendido e executado<br />

corretamente.<br />

Voltando à definição da Hanna e aos dados observados na minha etnografia, começo a<br />

apontar os elementos principais da arte de dançar. Primeiro, a dança tem um objetivo.<br />

Isso quer dizer que, ao se movimentar dançando, o indivíduo quer alcançar algo, seja<br />

este condicionamento físico, distração mental ou desejo de comunicar alguma coisa.<br />

Veremos isso melhor ao falar do porque as pessoas dançam. Segundo, um elemento<br />

chave da dança é o ritmo. Ritmo vem do grego rhytmos e designa aquilo que flui, que<br />

se move, movimento regulado. O ritmo não está presente somente na música ou na<br />

dança. Achamos ele na poesia (métrica), nos “ritmos” biológicos (respiração ou batida<br />

do coração), na nossa maneira de andar. Na música, o ritmo é um “acontecimento<br />

sonoro, que acontece numa certa regularidade temporal”. É portanto uma maneira de<br />

marcar o tempo. Na dança, em ausência de música, o ritmo é marcado pelo próprio<br />

corpo, através da batida da mão, da marcação dos pés no chão, da contagem ou através<br />

de outros sons da voz. É possível portanto dançar sem música, mas não é possível<br />

dançar ser ritmo.<br />

Tão importante quanto o elemento temporal é a dimensão espacial da dança. Durante<br />

minha experiência como dançarina reparei que é fundamemental para o dançarino ter<br />

noção de espaço. O que exatamente quer dizer isso? Vários aspectos estão envolvidos<br />

nessa noção, entre os quais três principais ficaram em evidência nas minhas notas de<br />

campo. Primeiro, é preciso saber ocupar o espaço disponível para dançar de maneira<br />

uniforme, harmoniosa e tendo consciência da distância entre seu próprio corpo e os<br />

limites do palco ou da sala de aula, assim como a distância entre seu próprio corpo e<br />

os outros dançarinos. Geralmente, durante uma aula de dança, os alunos ocupam um<br />

lugar na sala de aula para poder executar os movimentos mostrados pelo professor.<br />

Após a repetição do movimento no lugar, os alunos repetem o mesmo movimento se<br />

deslocando pelo espaço. É importante neste momento manter a arrumação e o desenho<br />

inicial e ter noção de onde a outra pessoa está, para não invadir o espaço do outro. Isso<br />

pode parecer algo simples, mas requer muita concentração, visão, controle e sobretudo<br />

respeito. Durante minhas aulas e ensaios de dança, Eliete nunca falta de repetir quanto<br />

é importante respeitar o espaço do outro, ficar no seu lugar e saber controlar os<br />

movimentos para que ocupem de maneira proporcional e estética o lugar de ensaio.


O segundo elemento espacial que também não falta de ser lembrado aos dançarinos<br />

durante as aulas e ensaios é o sentido de direção. Assim como é importante respeitar o<br />

espaço de cada um e do lugar onde se está dançando, é também fundamental saber<br />

para onde seu corpo está indo. Durante uma aula no Circo Voador por exemplo,<br />

trabalhamos exclusivamente este elemento de noção de espaço e direção. Fizemos<br />

movimentos simples e repetitivos, treinando estas qualidades, com a Eliete repetindo<br />

constantemente que “é preciso ser consciênte do espaço do outro e saber respeitá-lo”, e<br />

que “é preciso saber para onde vai, não só na dança mas no dia a dia. Tem que ter<br />

direção e pisar firme!” (diário, 25 Maio 2009).<br />

O último desafio ligado à dimensão espacial da dança é saber se adaptar aos lugares<br />

diferentes nos quais se dança, o que é algo complicado, como pude experienciar várias<br />

vezes nas apresentações do nosso grupo CorpAfro. Durante os ensaios do espetáculo,<br />

o grupo encontra-se geralmente em um ou dois lugares específicos, onde ensaiam-se<br />

as coreografias, os desenhos formados pelos corpos e pelos movimentos, as marcações<br />

de lugares, das entradas e saídas do palco etc. No momento do dia da apresentação,<br />

muitas vezes o espaço é totalmente diferente do que se imaginava o do no qual as<br />

coreografias foram ensaiadas. Após ter ensaiados nas grandes salas do Centro<br />

Coreográfico, por exemplo, fomos chamados para fazer uma apresentação em uma<br />

loja de construção onde tivemos que dançar em um pequeno espaço no meio de<br />

banheiras. Em outra ocasião, em vez de nos apresentar no palco do teatro do CCRJ,<br />

como nos foi comunicado, tivemos que dançar na área externa, um espaço bem maior,<br />

onde o som e a luz eram precárias e em vez do que em cima de um piso, dançamos na<br />

grama. Isso requer uma rápida avaliação e estudo do novo espaço disponível, assim<br />

como uma reorganização e adaptação das arrumações espacias previamente ensaiadas<br />

e uma capacidade do corpo se adaptar às novas condições oferecidas.<br />

Eliete reforça constantemente esses elementos técnicos espaço-temporais presentes na<br />

definição de dança. Durante um ensaio no Centro Coreográfico do Rio de Janeiro, em<br />

uma folha ela escreveu a importância da “prática de movimentos e ritmo”, atingida<br />

através de três elementos:<br />

- VISÃO: capacidade de perceber as formas, linhas, e proporção harmoniosas.<br />

- PRECISÃO: velocidade e rapidez na execução do movimento, aumentando o<br />

fortalecimento e o equilibrio.<br />

- TENACIDADE: qualidade do profissional coma estética e musicalidade.<br />

Comentando sobre estes ensinamentos, Eliete falou que “precisa harmonizar os<br />

movimentos com linhas específicas e com sentido, com direção. A musicalidade (ritmo)<br />

está junto com a corporeidade.” (Diário, 11 Abril 2009).<br />

Apareceram aqui mais dois elementos da definição de dança da Hanna:<br />

movimentos executados com precisão e estética. Na dimensão de visão da Eliete, recalca-


se a presença na dança de formas e harmonia, e no elemento de precisão sublinha-se a<br />

importância da rapidez, da força e do equilíbrio a ser obtidos na execução de um<br />

movimento. Para que se obtenha este resultado é preciso muito treino, em um processo<br />

que durante nossos ensaios do grupo chamamos de “limpar o movimento”. Esta<br />

“limpeza” é atingida através da repetição do mesmo movimento durante a qual é preciso<br />

prestar atenção aos mínimos detalhes para poder aperfeiçoar o movimento, até conseguir<br />

executá-lo de modo mais perfeito possível, formando linhas e desenhos claros e nítidos,<br />

com equilibrio, força, jeito harmonioso e rapidez.<br />

Este processo de treino se utiliza da repetição exaustiva como método de<br />

aperfeiçoamento e que é chamado de “drilling” por Susan Leigh Foster no seu artigo<br />

“Dancing Bodies”. Ela escreve como o corpo do dançarino pode ser visto como um<br />

ensemble de linhas e pontos, puxados, empurrados, esticados, elevados pelos dançarinos<br />

durante as aulas de técnica. Assim, o dançarino aprende as curvas que o corpo é capaz de<br />

formar e aprende também a criar certas formas seguindo certos ritmos (Foster, 1997, p.<br />

239). Este “drilling” é portanto necessário para “criar o corpo”, pois, através da repetição,<br />

as imagens e ações usadas para descrever o movimento do corpo se tornam o próprio<br />

corpo, e é assim que o processo de treino repetidamente reconfigura o corpo (Ibidem).<br />

Ao explicar o conceito de movimento na dança, Hanna também aponta para a<br />

importância dos já mencionados ritmos, espaço e direção, assim como para a importância<br />

da criação de formas e de execução do movimento com força. Ela define “forma” como<br />

“o contorno físico do desenho do movimento, criado pelo corpo e pelas suas partes,<br />

formando ângulos e curvas”, e descreve “força” como “a quantidade relativa de energia<br />

física e emocional gasta” (Hanna, 1987, p. 36-37). Olhando para esta descrição de<br />

“força”, podemos observar como o elemento emocional acompanha e está estritamente<br />

ligado ao físico. A própria Eliete durante uma minha entrevista com ela falou que “a<br />

dança é uma mixtura de técnicas com o que vem de dentro” (Eliete, 29 Dezembro 2009).<br />

Como Susan Leigh Foster também escreve, os dançarinos podem ser instruídos e<br />

aconselhados sobre como girar, pular, pisar etc., mas eles são também movidos a<br />

“escutar” o próprio corpo e a permitir que novas possibilidades de movimentos se<br />

manifestem spontaneamente (Foster, 1997, p. 250). “Escutar” o próprio corpo quer dizer<br />

prestar atenção ao que vem de dentro do corpo e não só de fora dele; quer dizer permitir


que o corpo se expresse sem querer controlá-lo rigidamente e deixando fluir as energias<br />

por ele até essas se manifestarem em forma de novos movimentos.<br />

Este gasto de energia, tanto físico como emocional é algo que pode ser observado<br />

na resultante dor e cansaço depois de uma aula de dança. Após uma aula no Circo Voador<br />

Eliete falou da necessidade de considerar a consciência do corpo, da dor e do cansaço,<br />

mesmo que seja muito difícil de fazer. A dança faz com que se haja essa consideração; “a<br />

dança é como análise-mexe-se em coisas que não se quer mexer” (Eliete, 20 Abril 2009).<br />

É interessante ver como isso se reflete na reação de uma aluna que após uma aula<br />

comentou: “to frustrada, enferrujada…depois de ficar tantos mêses parada, não consigo<br />

acompanhar.” (Circo Voador, 6 Abril 2009). Neste caso o fato de estar “enferrujada”<br />

fisicamente se relaciona diretamente a uma sensação de “frustração” no plano emocional,<br />

mostrando como a dança, através do esforço da movimentação do corpo, atinge um lado<br />

mais “interno” do campo das sensações e emoções. O depoimento de uma aluna depois<br />

de uma aula de dança Afro na UERJ descreve este fator plenamente: “Foi mais do que<br />

desempenho ou trabalho aeróbico; foi sensação, foi transcendência” (16 Setembro 2009).<br />

As palavras desta aluna expressam como o trabalho físico anda junto com a sensação,<br />

junto com algo além do tangível na hora de dançar. Veremos mais nos capítulos adiante<br />

como esta ligação corpo\mente na dança pode ser analisada antropologicamente.<br />

Além dos elementos já analisados do movimento na dança, a estética é algo que<br />

precisa ser evidenciado e explorado mais. Segundo a definição de Hanna, os movimentos<br />

na dança possuem valor estético. A autora escreve que “experiência estética” envolve o<br />

estímulo de atenção imediata e a contemplação dos significados imanentes ou<br />

trascendentes de um fenômeno nos níveis emocional, cognitivo e comportamental<br />

(Hanna, 1987, p. 38). Logicamente, as experiências estéticas não são iguais para todo<br />

mundo e variam dependendo de vários fatores, como idade, humor, background artístico<br />

ou de dança, educação social etc. A dança possui qualidades que estimulam a experiência<br />

estética. Essas qualidades podem ser tanto o estilo e a forma da dança quanto o próprio<br />

conteudo e significados transmitidos. Falando de significados, precisa apontar que estes<br />

variam socialmente e culturalmente e a dança possui portanto significados e sequências<br />

determinados culturalmente. A dança é um fenômeno social e é um veículo através do<br />

qual a cultura é transmitida (Hanna, 1987), e, como argumentarei nesta dissertação,


através do qual a cultura é também criada e recriada permanentemente no gestual do<br />

corpo. Do outro lado, a cultura também afeta e escolpe os estilos e a estrutura dos<br />

movimentos de dança. Como Hanna remarca, enquanto os estilos de dança podem<br />

requerer um treino especializado, a capacidade de dominar um estilo pode se desenvolver<br />

através de experiências de vida cotidianas (Ibidem, p. 34).<br />

Foram apresentados até então alguns dos elementos chave que são parte<br />

constituinte da arte da dança, tentando explicar o que quer dizer dançar e o que a dança<br />

envolve, mostrando a complexidade desta disciplina, muitas vezes subestimada. Falta<br />

ainda responder o porquê da dança. O que as pessoas que dançam procuram obter? Quais<br />

são as razões que levam alguém a querer dançar? Depois de ter posto esta pergunta para<br />

os dançarinos do meu campo de pesquisa, reparei que existem múltiplos fatores que<br />

inspiram entrar e ficar no mundo da dança. Uma razão primária para os alunos que<br />

escolhem ter aula de dança é a diversão e a procura de uma atividade para si mesmo que<br />

distraia e relaxe o corpo e a mente. Depois de uma aula de dança Afro da Eliete na UERJ,<br />

os alunos expressaram suas sensações:<br />

“Precisava resgatar algo. Tava me adoecendo em não fazer nada para mim e<br />

precisava sair da rotina e foi a melhor coisa que fiz”<br />

“O bom da dança é que você não pensa em nenhum problema”<br />

“È uma terapia”<br />

“È muito legal trocar energias com gente que não se conhece” (20 Maio 2009)<br />

Como é possível ver destes comentários, as pessoas buscam a dança como uma “terapia”,<br />

algo que faça bem para o “self”, algo que forneça uma saida e distração dos problemas e<br />

algo social, que permita conhecer outras pessoas e trocar energias com elas. Sobre este<br />

último ponto, uma outra aluna e membro do nosso grupo de dança Afro, disse durante um<br />

ensaio no Centro Coreográfico:<br />

“A arte, nesse caso a dança, é mágica, proporciona possibilidades de se encontrar, de se aproximar quando você geralmente não<br />

convive no dia a dia”(M., 1 Maio 2009).<br />

A dimensão social da dança é algo extremamente valorizado por todos que se envolvem<br />

com esta arte. O fato de encontrar pessoas, trocar idéias, mover seu corpo junto com o de<br />

outros e interagir dançando provoca um bem estar tanto físico quanto mental.


Se para os alunos das aulas de dança esta é mais uma atividade saudável e<br />

diversiva, já por alguns dos componentes da companhia de dança CorpAfro e por Eliete a<br />

dança representa uma verdadeira profissão e sustento. Eliete é professora de dança Afro<br />

full time, e sempre repete para seus alunos que ela “vive disso”. A dança portanto<br />

significa trabalho para muitos, e deveria ser respeitada como tal pelos não profissionais<br />

da área, coisa que infelizmente nem sempre acontece. Além da função mais prática e<br />

econômica do ensino da dança, minha professora, e outros instrutores e profissionais com<br />

quem falei, tanto no Rio como na Bahia, escolhem esta profissão com o objetivo de<br />

educar os alunos. Através da dança ensina-se história, mitologia, estudos sociais e<br />

políticos bem como a cultura de um povo. No caso da dança Afro, leva-se muito a serio<br />

esta missão educacional sobre a história, os mitos, a identidade e a cultura afro-brasileira<br />

e o ensino é considerado como um dos motivos e objetivos principais para dançar.<br />

Falando mais em específico do meu campo de pesquisa, muitos dos alunos que<br />

escolhem fazer aula de dança Afro estão à busca de algo mais, algo que está relacionado<br />

a resgate e identidade, nesse caso resgate da cultura afro-brasileira, como refletem os<br />

depoimentos dos alunos depois de uma aula na UERJ:<br />

“È uma coisa muito enraizada na cultura brasileira. Tem uma identidade forte<br />

porque a cultura africana aqui é muito forte”<br />

“Trabalhar nosso corpo e nossa identidade ao mesmo tempo-a aula refletiu<br />

isso”<br />

“Cada vez que eu danço é que nem encontrar a mim mesmo”<br />

“A energia se renova neste espaço e me faz lembrar quanto a nossa cultura é<br />

rica”.<br />

“Entrei para a dança para me encontrar como mulher negra; a dança não é só uma questão de corpo mas de identidade afrobrasileira,<br />

de resgate, de resistência”.<br />

Esses comentários indicam a razão que conduz as pessoas a dançarem e escolherem um<br />

gênero de dança, nesse caso dança Afro. Para muitos brasileiros (e não brasileiros<br />

também), estudar a dança afro-brasileira é um modo de aprender e descobrir as raizes


ancestrais tão fundamentais como bastante presentes na construção da cultura e arte<br />

brasileiras. Para outros alunos, especialmente para os negros, a questão identitária é<br />

muito sentida e considerada. Como diz o último depoimento desta aluna, ela entrou para a<br />

dança Afro para se “encontrar como mulher negra”, para resgatar a identidade afrobrasileira<br />

presente no dia a dia do seu corpo.<br />

Drid Williams, antropóloga e dançarina, apresenta o porquê das pessoas dançarem<br />

no capítulo “Why do people dance?” do livro Anthropology and the Dance. Williams<br />

teve seu treinamento como dançarina profissional e foi convidada a estudar antropologia<br />

na Universidade de Oxford por Evans-Pritchard, que reconheceu o imenso potencial do<br />

conhecimento em dança de Williams e a sua contribuição para o pensamento<br />

antropológico. Em sua obra, Drid Williams pergunta: “o que as pessoas estão fazendo<br />

quando dançam?”. E responde, primeiro, elas estão criando e\o reforçando relações<br />

sociais significativas. Segundo, elas estão reproduzindo papéis significativos para elas,<br />

para suas histórias, seus mitos, suas crenças religiosas, vidas políticas etc. Terceiro, elas<br />

estão estabelecendo e reforçando conecções sociais que lhe permitem seguir com suas<br />

vidas (Williams, 1991, p. 21). Pode-se ver então como a importância do elemento de<br />

interação social é reafirmado por Williams também, assim como foi apontado por muitos<br />

dos alunos do campo de pesquisa. Através da dança criam-se relações socias e<br />

interpretam-se vários papéis, muitos dos quais têm a função de promover um resgate da<br />

própria história, cultura, dos próprios mitos, idéias e visões, que são por sua vez<br />

ensinados e transmitidos para quem assiste as pessoas dançarem.<br />

Na tentativa de definir o universo da dança com seus elementos técnicos, seus<br />

participantes e as razões que conduzem as pessoas a querer fazer parte do mundo da<br />

dança, vimos como a dança é uma arte complexa, que exige muito treino, disciplina e<br />

talento para poder ser aperfeiçoada. Apontou-se para as várias funções da dança, e para<br />

como é utilizada na condição de meio de comunicação e educação, de resgate de cultura e<br />

identidade e de bem estar físico e mental. Todos estes fatores foram analisados de<br />

maneira geral dentro do campo geral da arte de dançar, entrando somente às vezes no<br />

campo específico da dança Afro. O passo seguinte será introduzir as danças que fazem<br />

parte de um complexo cinético esculpido pela herança de influências motoras e<br />

simbólicas do povo da diáspora Africana, onde concentrarei minha análise mais


especificamente nas danças Afro-brasileiras, destacando elementos relevantes e em<br />

comum entre elas, até chegar a definir o objeto da pesquisa desta dissertação que é a<br />

dança Afro.<br />

Danças Afro-brasileiras<br />

Como foi afirmado anteriormente, a dança é um meio de comunicação que recria,<br />

ensina e transmite mitos, histórias e culturas. O instrumento chave através do qual o<br />

dançarino opera é seu próprio corpo, o qual realiza movimentos e gestos<br />

significativos. Ao falar de corpo, é importante entender que este é um simbolo da<br />

sociedade, e que os seres humanos experienciam o mundo através dos seus corpos. Os<br />

nossos corpos portanto, carregam histórias e memórias, não somente individuais, mas<br />

também histórias mais gerais, de raça, gênero e cultura. O corpo conta uma história e<br />

fala de certas experiências culturais através de gestos, que representam símbolos.<br />

No caso deste trabalho, serão analisadas as histórias, os gestos, os símbolos e os<br />

corpos dançantes elaborados por intermédio da dispersão da diaspora africana e que se<br />

difundiram para os diversos países e contextos do mundo. Robert Farris Thompson, na<br />

introdução do seu livro “Flash of the Spirit” sobre arte africana e afro-americana, declara<br />

que muita da música popular mundial é influenciada do que ele chama de “flash of the<br />

spirit” de um certo povo dotado com um incrível talento improvisatório (Farris<br />

Thompson, 1984). Devido ao comércio internacional de escravos, princípios<br />

organizadores de música e dança atravessaram o oceano da Africa para o Novo Mundo.<br />

O autor identifica seis desses princípios: estilo de performance percussivo; propensão<br />

para uma métrica múltipla; elementos de chamada e resposta nas músicas; controle de<br />

pulsação interna; sequências de acentuação suspesas (contra-tempos); músicas e danças<br />

de alusão social (Ibidem). Veremos aqui como estes elementos se integram nas danças<br />

afro-descendentes e, em particular, afro-brasileiras. No artigo “La musica y danza<br />

tropical e Africana desterritorializadas”, o antropólogo Miguel Chamorro Vergara<br />

também fala de uma “música negra” que se expandiu pelo mundo, contribuindo para a<br />

construção de uma identidade nacional desterritorializada (Vergara, 2002). Mais em<br />

específico a dança, segundo Vergara, é um “componente expressivo de poder da diáspora<br />

africana” (Ibidem, p. 90), pois, continua ele, a “dança africana ou de negros” é um tipo de<br />

“manifestação corporal ritualística” que se comunica através da linguagem dos<br />

movimentos dos indivíduos, transmitindo imagens culturais (Ibidem, p. 91). O objetivo


deste trabalho é melhor compreender que movimentos corporais são esses da dança Afro<br />

e como eles transmitem certas imagens culturais.<br />

Falando de “música negra” e “dança Afro”, podem-se encontrar múltiplas<br />

expressões corporais em vários lugares do mundo atuando como textos desta<br />

“Africanidade”. Um exemplo de expressão corporal da cultura diaspórica no novo mundo<br />

é contemporaneamente o hip-hop, símbolo da identidade Afro-americana. Segundo um<br />

artigo escrito por Thomas F. DeFrantz, toda dança da diáspora africana pode ser ligada a<br />

uma oralidade africana, onde o elemento da “chamada e resposta” é presente. No caso da<br />

dança, o corpo e os movimentos respondem ao ritmo do tambor; os movimentos da<br />

dança, portanto atuam como se fossem um discurso, contendo significado além da forma<br />

estética e da sequencia de movimentos executada pelo corpo em ação (DeFrantz, 2004).<br />

DeFrantz continua analisando alguns dos elementos comuns às danças diaspóricas,<br />

tentando entender o “Africanismo” presente no hip-hop, e resume afirmando que as<br />

“danças negras” materializam no corpo uma continuidade de fala performática para os<br />

africanos da diáspora. As danças oferecem uma maneira de identificação cultural que une<br />

os Afro-americanos no que ele chama de corporeal orature, ou seja uma ligação entre<br />

fala e movimento que convida à ação (Ibidem).<br />

O próprio Vergara fala sobre os ritmos caraíbicos e tropicais como manifestação<br />

simbólica de uma cultura através das imagens produzidas no corpo e na corporeidade ao<br />

se mover em múltiplos sentidos (Vergara, 2002). Como exemplos de estudos sobre a<br />

herança africana nas danças dos Caribes podemos mencionar o de Katherine Dunham em<br />

Haiti e o de Yvonne Daniel em Cuba. Dunham conduz seu estudo na ilha de Haiti, onde<br />

as danças possuem uma forte influência africana. Como ela escreve no seu livro “Dances<br />

of Haiti”, muitos historiadores sempre reconheceram o fato da dança ser uma parte<br />

fundamental da cultura dos africanos trazidos para as Américas e ser ao mesmo tempo<br />

vital para a sobrevivência e o bem estar dos escravos, pelo menos como elemento<br />

recreacional (Dunham, 1983). A antropóloga também explica que cada dança tradicional<br />

de Haiti está ligada a algum tipo de ritual, profano ou sagrado que seja. Este aspecto<br />

ritualístico da dança pode ser visto em outras danças de matriz africana no novo mundo e<br />

será em seguida analisado com respeito ao objeto da dança de Orixás no Brasil.<br />

Analisando a religião do vodun, Dunham explica os aspectos materiais, as organizações


dos grupos de dança e as funções das danças. A pesquisa feita em Haiti ressalta a<br />

presença e a importância sagrada dos tambores, os quais são os instrumentos chave das<br />

danças haitianas e são considerados religiosamente sagrados (Ibidem). A presença de<br />

instrumentos percussivos e sua importância ritualistica são características das danças<br />

afro-brasileiras também, em particular das danças de Orixás.<br />

Mais um estudo conduzido nos Caribes sobre a influência africana na dança é o de<br />

Yvonne Daniel sobre as danças de Cuba. Daniel define três aspectos comuns às danças<br />

afro-caribenhas, sendo estes a movimentação da pelvis, a música polirrítmica e a<br />

presença da percussão como guia do tom e da sensação (Daniel, 2002). Entre as ilhas<br />

caribenhas, o estudo de Daniel concentra-se na ilha de Cuba, onde ela analisa as<br />

influências européa, indígena e africana nas danças da região. Uma parte do seu texto<br />

analisa as múltiplas danças africanas presentes em Cuba, devido à importação de<br />

escravos da Africa do Oeste e Central, trazidos para trabalhar na produção de açucar.<br />

Entre as influências africanas em Cuba, Daniel aponta as de quatro grupos distintos:<br />

Kongo, Arará, Carabalí e Yoruba, descrevendo os movimentos corporais típicos de cada<br />

tradição e sublinhando que, assim como aconteceu também aqui no Brasil, estas danças<br />

africanas foram influênciadas desde a sua chegada pelas tradições locais, formando<br />

portanto algo que não pode ser chamado mais de dança africana mas de dança afrocubana,<br />

ou afro-brasileira no nosso caso.<br />

Os elementos corporais descritos mudam dependendo do grupo étnico-cultural<br />

mas mais uma vez, como foi visto no caso de Haiti, a presença dos instrumentos de<br />

percussão é uma constante. Na descrição dos movimentos da cultura Congo-Angolana,<br />

pertencente a povos do Congo e de Angola e que fazem parte do grupo linguístico Bantu,<br />

podem se ver semelhanças com os movimentos de muitas danças afro-brasileiras. Daniel<br />

descreve as danças Congo-angolanas como altamente percussivas e sensuais. O torso dos<br />

dançarinos é dobrado para a frente, de maneira muito baixa; o movimento de cada parte<br />

do corpo é constante, e os movimentos são extremamente fortes, dinâmicos e possuem<br />

uma grande quantidade de saltos e pulos (Daniel, 2002). Os movimentos provenientes do<br />

grupo Arará (dos povos do antigo Reino de Daomé) envolvem a presença de tambores e o<br />

movimento predominante dos ombros, algo que é também muito presente nas danças<br />

afro-brasileiras. Finalmente, ao descrever as danças de origem Yoruba, que incluem


povos das atuais regiões da Nigéria e República do Benin, Yvonne Daniel explica como<br />

estas são danças específicas representando as divindades por ela chamadas “orichas” e<br />

seus movimentos, os quais retratam as vidas e os arquétipos de cada divindade (Ibidem).<br />

Ao descrever a dança de cada “oricha”, é impossível não reparar a extrema semelhança<br />

com a dança de Orixás brasileira, derivante da mesma cultura Yoruba. Daniel portanto<br />

descreve elementos visuais e corporais comuns aos quatro grupos de influência africana<br />

em Cuba, que, como veremos adiante, são reconhecíveis na dança Afro do Brasil, como a<br />

posição baixa com joelhos flexionados, os pés firmes no chão e as costas levemente para<br />

a frente, posição essa típica do que é chamado de molejo na dança Afro, considerado o<br />

elemento chave na realização desta dança. Viu-se até agora como as influências da<br />

diáspora africana estão presentes em várias partes do globo, com resguardo à música e à<br />

dança. Concentrarei agora a atenção na influência africana nas danças no Brasil,<br />

introduzindo mais o objeto da pesquisa, que analisa uma destas danças afro-brasileiras<br />

em particular, ou seja a dança Afro.<br />

Existem múltiplos estilos de danças afro-brasileiras, muitas vezes classificadas<br />

como danças populares, ou danças folclóricas. Cada região do Brasil tem suas danças<br />

típicas, e a influência africana está presente em muitas delas. Durante o período colonial,<br />

povos africanos como os Bantu, os Yoruba, os Fon e os Jeje estavam no Brasil, sendo<br />

trazidos como escravos pelos Européus. Em cada região eles carregaram suas histórias e<br />

tradições, que acabaram se expressando no novo continente. As danças brasileiras de<br />

origem africana são inúmeras e contam as história e as realidades das populações<br />

africanas no Brasil. É nas artes que apresentam o corpo como protagonista que a estética<br />

africana mais se manifesta. No livro Diásporas Africanas na América do Sul, Julio Cesar<br />

de Tavares e Januario Garcia escrevem como nas artes a herança africana revelou-se na<br />

vida brasiileira, afirmando o corpo como arma de resistência à colonização e como<br />

suporte dos signos culturais:<br />

“Paladino de toda a experiência simbólica e material na diáspora, o corpo torna-se<br />

maestro de uma orquestra de experiências não-verbais que efetivam a estética da<br />

vida dessa civilização recriada pela força da imaginação.” (Tavares e Garcia,<br />

2008, p. 42).


É no corpo que as experiências dos povos da diáspora africana se reproduzem e se<br />

mantém. No caso do Brasil, essas experiências são reproduzidas e mantidas em um corpo<br />

que expressa-se principalmente nas artes e, mais ainda, nas danças afro-brasileiras.<br />

Acham-se hoje essas manifestações nas diferentes regiões do Brasil e incluem<br />

artes corporais como a capoeira, o jongo, o coco, o maracatu, o tambor de crioula, o<br />

samba, o batuque, o cacuriá, a dança Afro entre outras. Durante minha pesquisa fui<br />

assistir um espetáculo realizado por um projeto do grupo cultural Nós do Morro na<br />

comunidade carioca do Vidigal. O nome do show era “Afro em nós” e quis apresentar<br />

uma série de danças afro-brasileiras. Começaram com a figura do malandro e o samba<br />

carioca, e passou-se através do jongo, do coco, maculelê, cacuriá, capoeira, dança afro e<br />

samba de roda. Cada apresentação de dança foi introduzida por uma breve explicação que<br />

denotava a influência de elementos de matriz africana que aqui no Brasil juntaram-se aos<br />

de origem indígena ou européia. Todas estas danças são de origem africana e<br />

apresentaram vários elementos em comum que pude identificar durante a apresentação,<br />

como grandes movimentos de braços e ombros. batidas de pés e mãos junto com a batida<br />

do tambor, a presença da roda, a parte do quadril sempre em movimento, giros, pés<br />

descalços e pisando forte no chão, e elementos de jogo e brincadeira. O espetáculo<br />

terminou, não por acaso, com o samba de Ary Barroso cuja letra diz “esse aqui ai é um<br />

pouquinho de Brasil, esse Brasil que canta e é feliz… é também um pouco de uma raça,<br />

que não tem medo de fumaça não…”(Diário de campo, 28 Março 2009). Para mostrar<br />

mais em detalhe e com um suporte teórico estas qualidades das danças afro-brasileiras,<br />

trago aqui quatro estudos sobre o Jongo no Sudeste, o Tambor de Crioula do Maranhão,<br />

a Capoeira, e o Samba.<br />

O Jongo é considerado uma das mais importantes manifestações africanas no<br />

Brasil, originária dos escravos da região Congo-Angola, e que, desde novembro de 2005,<br />

foi denominado um dos Patrimônios Culturais do Brasil. Através dos cânticos, do sons<br />

dos surdos, danças em círculo, e das batidas das mãos, o Jongo conta a história dos<br />

escravos das velhas plantações de café. Todos os elementos desta dança e da música e<br />

batida de tambores que a acompanha comunicam uma história de origem africana (Mattos<br />

e Abreu, 2007). O elemento de “chamada e resposta” analisado previamente no texto de<br />

DeFrantz sobre hip-hop, é uma característica fundamental do Jongo, onde cada estrofa


dos cânticos é enunciada por uma pessoa e repetida pelo grupo todo. Em um artigo sobre<br />

os cânticos no Jongo e na Umbanda, Carina Maria Guimarães Moreira escreve que os<br />

versos cantados nestas duas tradições são chamados de “pontos” e provém de uma cultura<br />

baseada na oralidade. Estes pontos cantados “juntamente com o ritmo dos tambores e das<br />

danças encerram uma tradição: a do poder mágico da palavra trazida pelos povos bantos<br />

para o Brasil” (Moreira, 2008). Ao analisar as letras de pontos cantados de umbanda e de<br />

jongo, Moreira exemplifica como a história oral de origem africana, junto com a música e<br />

a dança é comunicada tanto nos eventos religiosos quanto nas rodas de jongo.<br />

Durante o período da minha etnografia, em Maio 2009, tive a oportunidade de<br />

viajar para o quilombo S. José da Serra na região de Valença no estado do Rio de Janeiro<br />

onde, anualmente, realiza-se um festival de jongo, com apresentações de danças afrobrasileiras<br />

que duram um fim de semana inteiro. O que pude observar no festival foi a<br />

formação constante de rodas para cada apresentação. Teve rodas de jongo, de cachambu,<br />

de capoeira, todas mostrando uma dinâmica parecida: a maioria dos participantes formam<br />

uma roda e ficam cantando, tocando tambor e outros instrumentos percussivos, e batendo<br />

palmas ao mesmo tempo. Enquanto isso, uma dupla de pessoas entra no meio da roda e<br />

fica “jogando”, tanto no jongo quanto na capoeira ou no coco. Cada jogo e cada dança era<br />

executada ao som dos tambores e de pés no chão, e tudo aconteceu em um ambiente rico<br />

de significados e símbolos da cultura afro-brasileira, tentando-se recriar uma atmosfera<br />

quase ritualística do festival. Este paralelo entre performance artística e ritual sublinhado<br />

no primeiro capítulo será melhor desenvolvido no próximo capítulo.<br />

Elementos parecidos com o jongo, como a roda, a umbigada e os tambores, se<br />

encontram na dança típica do Maranhão Tambor de Crioula. Esta é uma dança negra<br />

executada ao som de tambores, tocados por homens, enquanto as mulheres dançam<br />

dentro de uma roda e com movimentos circulares, usando saias largas, grandes e<br />

coloridas, e alternando sua entrada dentro da roda com a umbigada, comum também ao<br />

jongo e ao samba de roda. A umbigada ou punga é um elemento importante na dança do<br />

tambor de crioula. No passado foi vista como elemento erótico e sensual, que estimulava<br />

a reprodução dos escravos. Hoje a punga é um dos elementos da marcação da dança,<br />

quando a mulher que está dançando convida outra para o centro da roda, ela sai e a outra<br />

entra (Ferretti, 2006). Ferretti, neste artigo sobre o Tambor de crioula no Maranhão


explica detalhadamente a diferença com o Tambor de Mina, ritual religioso Maranhense.<br />

Existem distinções entre estas duas manifestações: o tambor de crioula é uma dança de<br />

divertimento que se caracteriza pela importância da punga. O tambor de mina é uma<br />

dança religiosa em que o transe é o elemento fundamental. Embora seja uma dança<br />

eminentemente festiva, o tambor de crioula possui diversas relações com a religiosidade<br />

popular, não sendo correto afirmar que é manifestação exclusivamente profana, pois, na<br />

cultura popular o sagrado e o profano encontram-se intimamente relacionados (Ibidem).<br />

Mais uma vez, nesta dança afro-brasileira, encontra-se o elemento religioso ligado ao<br />

profano, e uma sinergia entre a dança, os tambores e a circularidade.<br />

As expressões de danças populares afro-brasileiras que mais viraram símbolos<br />

nacionais, tanto no Brasil quanto no exterior, são o samba e a capoeira. Mesmo sendo<br />

duas expressões artísticas muito diferentes, e diferentes das outras mencionadas até<br />

agora, podem-se encontrar vários elementos em comum, típicos das danças de matriz<br />

africana. A capoeira é considerada uma mistura entre dança e arte marcial, caracterizada<br />

por golpes e movimentos acrobáticos desenvolvidos pelos escravos e seus descendentes.<br />

Tomando a capoeira no contexto de cultura afro-brasileira e da expressão da diáspora<br />

africana, é importante sublinhar que existem uma simbologia, ritualidade e ancestralidade<br />

de origem africana que influenciam consideravelmente essa manifestação. Na tese<br />

“Capoeira Angola: cultura popular eo jogo dos saberes na roda”, Abib analisa a capoeira<br />

como uma manifestação da cultura popular onde a memória e oralidade e ritualidade<br />

assumem um papel muito importante (Abib, 2004). O que Abib escreve com respeito às<br />

manifestações culturais de origem africana é relevante para este trabalho:<br />

“É certo que não podemos desconsiderar o processo híbrido que caracterizou a<br />

formação<br />

das manifestações afro-brasileiras e mesmo as afro-americanas.<br />

Também é certo que, no Brasil como em poucos lugares do mundo, podemos<br />

verificar o quanto a influência africana foi marcante e mesmo preponderante em<br />

boa parte das manifestações envolvendo os elementos lúdicos de dança, música,<br />

jogo e brincadeira. Não podemos desvincular o contexto de surgimento da<br />

capoeira, do contexto do surgimento do maracatu, por exemplo, ou das congadas


e moçambiques, do jongo e do próprio samba, apenas para citar as<br />

manifestações mais conhecidas, que partilham, juntamente com a capoeira,<br />

de um mesmo núcleo cultural proveniente da África, responsável por claras<br />

semelhanças entre essas manifestações.”<br />

Dois elementos chave deste “Africanismo” derivado da diáspora africana na capoeira são:<br />

primeiro, a música, executada com instrumentos de percussão sempre presente nas rodas<br />

de capoeira onde acontece o “jogo” entre os capoeiristas. Segundo, o elemento da roda é<br />

uma característica primária da capoeira, sendo sempre mantida como moldura do jogo<br />

executado no meio.<br />

Segundo o estudo “Dança da Guerra” do antropólogo Julio Cesar de Tavares, a<br />

roda é um elemento fundamental na capoeira; é um espaço onde há uma concentração de<br />

energias que seriam do espaço cósmico e que são “canalizadas pela rítmica do berimbau e<br />

pela energia dos corpos em movimento”. É um espaço onde há a preservação da<br />

“motricidade negro-africana”, baseada na movimentação dos quadris e na conservação da<br />

energia vital da cultura iorubana, o axé (Tavares, 1984, p. 62). Tavares continua<br />

afirmando que a dimensão energética presente na roda contribui para a “versatilidade” e a<br />

“dinâmica mobilidade” do corpo, como pode ser observado nas danças africanas, nas<br />

práticas religiosas e nas outras manifestaões afro-brasileiras (Ibidem, p. 69). A capoeira é<br />

portanto uma forma de ludicidade brasileira que recupera as “unidades básicas da<br />

maneira de agir e estar no mundo da população negra” (Ibidem, p. 60), na qual os gestos<br />

corporais refletem e resgatam a memória do cotidiano dos negros, através do que Tavares<br />

denomina de uma “bricolage gestual” que surgiu instintivamente diante da experiência<br />

dominadora e colonial da escravidão (Ibidem, p.70). Concluindo, Tavares escreve:<br />

A Capoeira faz parte da memória corporal dos negros e de seus descendentes,<br />

localizando-se nela os índices que podem falar sobre a sua resistência à<br />

hegemonia cultural da civilização ocidental, uma vez que ela compreende as<br />

características corporais desenvolvidas pelo negro, tanto na luta como na paz,<br />

para garantir sua sobrevivência. (p. 103)<br />

Essa “memória corporal” do negro é o que aproxima as manifestações corporais afrobrasileiras,<br />

trazendo uma corporeidade específica que se originou nos corpos dos


africanos trazidos ao Brasil em condição de escravos, corpos que sempre lutaram e<br />

reagiram contra os abusos coloniais. Essa corporeidade mostra elementos comuns às<br />

várias formas de expressão artísticas afro-brasileiras, como será evidenciado na próxima<br />

parte deste capítulo.<br />

No final da roda de capoeira, geralmente acontece um samba de roda, outra<br />

manifestação cultural afro-brasileira. Entre todos os tipos de samba, o samba de roda é o<br />

mais próximo das danças populares analisadas até então, possuindo elementos em comum<br />

com as outras manifestações. O samba de roda é originário do Recôncavo Baiano e é<br />

dançado por homens e mulheres dentro de uma roda, os quais entram e saem da roda<br />

alternando-se depois da umbigada, já encontrada no Jongo e no Tambor de Crioula. Este<br />

samba é tocado por um conjunto de pandeiro, atabaque, berimbau, viola e chocalho,<br />

acompanhado principalmente por canto e palmas, e dança-se descalço. Um elemento de<br />

relevância nesta dança para o objeto desta pesquisa é a roda. Como escreve Daniela<br />

Maria Amoroso no artigo “Corpo, o dono do samba: um estudo sobre o samba-de-roda do<br />

Recôncavo”:<br />

“A roda, como o próprio nome diz, é onde tudo acontece. É na roda que se canta,<br />

dança, bate palmas, toca instrumentos. E é na roda que uma energia se cria, se<br />

multiplica, se espalha. Entendo que a roda não é uma mera forma de organização<br />

espacial do samba-de-roda e estou convencida de que semelhanças existem entre<br />

o que acontece na roda de capoeira, no samba-de-roda e também no candomblé.<br />

A roda constrói o lugar daquele ritual, que não é religioso, mas sim festivo. Não é<br />

algo banal entrar numa roda para sambar, não é banal iniciar um jogo numa<br />

roda de capoeira.”<br />

O que pode ser destacado como ponto comum entre estes tipos de danças afrobrasileiras<br />

(o Jongo, Tambor de Crioula, Capoeira e Samba de Roda), portanto, são dois<br />

elementos essenciais, sempre presentes na performance de cada uma delas: o som dos<br />

tambores como acompanhamento necessário à dança, e a formação da roda como


elemento coreográfico da execução das danças. Além disso, todas as danças afrobrasileiras<br />

são dançadas descalços para manter o contato dos pés no chão. Segundo a<br />

visão mítica Nagô “o corpo humano em si é um microcosmo. Os pés apoiam-se no<br />

concreto, no barro de onde saiu para onde voltará, na terra que os antepassados pisaram e<br />

à qual retornarão” (Augras, 1983). Estes três elementos estão presentes e são<br />

fundamentais também na dança Afro, especialmente na dança dos Orixás. Muitas vezes<br />

nas aulas e ensaios de dança Afro do meu campo de pesquisa trabalhou-se o conceito de<br />

roda e circularidade, de energia dos tambores, e de contato com o chão, todos elementos<br />

que caracterizam a dança Afro e que serão portanto retomados na parte seguinte.<br />

A Arte de Dançar Afro<br />

O objetivo é procurar saber o que é a dança afro. Isso é ter coragem.<br />

Eliete Miranda<br />

A dança Afro surgiu no Brasil devido as influência trazidas por africanos retirados<br />

do seu país de origem para realizarem trabalho escravocrata em solo brasileiro. Os<br />

escravos brasileiros pertenciam a diversos grupos étnicos, incluindo os Yoruba, da<br />

Nigeria e da República do Benin, os Ewe e os Fon, do Benin e Togo e o grupo linguístico<br />

Bantu, do Congo e Angola, e eles trouxeram consigo suas experências corporais,<br />

culturais e religiosas. Aqui no Brasil estas experiências se modificaram, vindo a<br />

apresentar características típicas próprias. As danças lúdicas e religiosas destes povos,<br />

especialmente as de origem Bantu e Yoruba, foram recriadas de maneira própria no novo<br />

mundo, mantendo elementos de matriz africana reconhecíveis. Agora, se tivessemos que<br />

definir e descrever exatamente o que é a dança Afro, as coisas se complicam,<br />

principalmente por duas razões. Primeiro, a dança Afro é uma mistura de estilos e<br />

contribuições de variadas origens africanas reelaboradas no Brasil; usando o termo que<br />

Julio Cesar de Tavares utilizou referenido-se à capoeira, a dança Afro é uma “bricolage”<br />

de múltiplos elementos. Segundo, os mitos e histórias das culturas que deram origem aos<br />

movimentos da dança Afro fazem parte de uma história oral que sempre foi transmitida<br />

de forma não escrita, dando origem a mais prováveis confusões e a menos clareza.<br />

Depois de pesquisar fontes teóricas, perguntar para profissionais da área, observar e<br />

participar da dança Afro nos últimos dois anos, cheguei à conclusão do que definir o que


é a dança Afro é um verdadeiro desafio. Até hoje não existe uma definição exata; ao<br />

contrário, têm várias versões sobre o que é, quem criou, onde se originou e o que inclui a<br />

dança Afro. Segundo minhas observações, isso depende do fato que a arte de dançar Afro<br />

é algo de extremamente complexo e rico em variedades. Nesta última parte do segundo<br />

capítulo pretendo fazer três coisas: primeiro, quero apresentar uma breve história sobre o<br />

que é a dança Afro, trazendo as diferentes teorias e opiniões sobre a questão; segundo,<br />

quero apontar os elementos corporais (movimentos), musicais e culturais que levam a<br />

definir certa dança de dança Afro; e terceiro quero definir as diferentes modalidades que<br />

fazem parte da dança Afro, de acordo com meu campo de pesquisa.<br />

História<br />

Uma das únicas referências teóricas sobre a dança Afro é o livro “Dança Afro-<br />

Sincretismo de Movimentos” da dançarina e coreógrafa baiana Nadir Nóbrega Oliveira.<br />

No seu texto a autora evidencia a confusão em volta deste assunto. Oliveira escreve que<br />

“são variadas e antagônicas as opinões e explicações sobre o que está convencionado<br />

como Dança Afro” (Oliveira, 1992). Tentando fornecer uma história de quando e como<br />

iniciou a dança Afro, Nadir escreve que a primeira dançarina e coreógrafa negra a<br />

convencionar uma técnica de dança baseada nas danças negras de Haiti, foi Katherine<br />

Dunham, nos Estados Unidos. Foi ela que, vindo ao Brasil em 1949, conheceu a bailarina<br />

negra do Teatro Municipal Mercedes Baptista e convidou ela para estudar na sua<br />

academia em Nova York (Ibidem). Mercedes Baptista voltou ao Brasil nos anos 50, e<br />

fundou o balé folclórico que leva seu nome, baseado nas técnicas aprendidas com<br />

Dunham (Ibidem). Uma das únicas fontes que contam a história da fundação da dança<br />

Afro no Rio de Janeiro é a dissertação de mestrado na UFRJ do antropólogo Nelson<br />

Lima, o qual escreve sobre Mercedes Baptista e o fato dela ser considerada a mãe do Balé<br />

Afro e fundadora da escola e técnica de dança Afro no Rio de Janeiro (Lima 1995).<br />

Segundo o estudo de Lima, a técnica de Mercedes era baseada nos rituais religiosos de<br />

matriz africana, e tentava reproduzir com fidelidade os movimentos e gestuais dos<br />

Orixás, divindades da religião afro-brasileira do Candomblé (ver Capítulo 3). Esta técnica<br />

foi adaptada pelas duas principais alunas de Mercedes, Isaura de Assis e Marlene Silva,<br />

as quais inovaram e interpretaram as origens africanas com elementos da dança clássica e


moderna, criando uma linguagem cênica e não só ritual (Lima, 1995). Um dos maiores<br />

defensores desta versão da origem da dança Afro é Charles Nelson, professor de dança<br />

Afro no Rio de Janeiro o qual, durante uma entrevista que tive com ele na Lapa, declarou:<br />

“A Mercedes Baptista foi a criadora da dança afro, não somente no Rio quanto no<br />

Brasil. O dela não é estilo de dançar, mas uma escola de Afro, é diferente. Eu<br />

dancei com ela e com a Katherine Dunham quando ela veio ao Rio… a dança afro<br />

nasceu no Rio, não em Salvador. Eles dizem que nasceu lá mas foi aqui com a<br />

Mercedes; eles lá inventaram o swing baiano.” (15 Abril 2009)<br />

Como pode-se ver deste trecho, existe um atrito sobre quem fundou e onde nasceu a<br />

dança Afro. Segundo Charles Nelson, a dança Afro nasceu no Rio e foi fundada pela<br />

Mercedes Baptista. A técnica tem elementos de balé juntos a movimentos inspirados pela<br />

dança de Orixás, adaptados para palco.<br />

Voltando ao texto de Nadir Nóbrega de Oliveira, ela escreve que, em Salvador, os<br />

grupos folclóricos que começaram a se formar a partir dos anos 60, apresentavam os<br />

“aspectos mais expressivos da cultura africana presentes na Bahia”. Ela continua<br />

afirmando que, até hoje, as manifestações mais exploradas pelos grupos Afro em<br />

Salvador são o Candomblé, a Puxada de Rede, o Maculelê, a Capoeira e o Samba de roda<br />

(Oliveira, 1992, p. 33). Ainda na sua tese de douturado sobre a influência do dançarino<br />

Clyde Morgan na escola de dança da Universidade Federal da Bahia, Nóbrega Oliveira<br />

reafirma a presença de “hibridações no que se chama de dança Afro em Salvador” pois<br />

existiam trocas culturais entre danças africanas, dança moderna, capoeira e candomblé<br />

(Oliveira, 2006, p. 114). Segundo este estudo de Oliveira, o dançarino e coreógrafo negro<br />

norte-americano Clyde Wesley Morgan foi uma presença fundamental na escola de dança<br />

da UFBA e contribuiu para a integração de elementos afro no seu grupo de dança<br />

contemporânea, em um ambiente onde as técnicas de dança ensinadas incluiam somente a<br />

moderna, clássica e contemporânea. Segundo Oliveira, Morgan “captou os movimentos<br />

da capoeira e do candomblé, principalmente as armadas, a ginga e o ginká (movimentos<br />

circulares dos ombros, utilizados nas danças de candomblé), introduzindo-os,<br />

artisticamente reelaborados, em suas coreografias (Ibidem, p. 104).<br />

Mais um profissional considerado um dos mestres e fundadores da dança Afro em<br />

Salvador é Raimundo Bispo Dos Santos, melhor conhecido como King, que começou a<br />

atuar como dançarino e coreógrafo nos anos 70, inspirando-se no que tinha aprendido na


escola de dança da UFBA e nos ensinamentos de Mercedes Baptista, Katherine Dunham<br />

e Domigos Campos, coreógrafo do Brasil Tropical (Oliveira, 2006, p. 34). No artigo da<br />

coreógrafa e educadora Amélia Vitória de Souza Conrado “Dança Ètnica Afro-Baiana”,<br />

ela tenta explicar e compreender o que é a dança Afro e, para este propósito traz<br />

entrevistas com o mestre King. Segundo ele, a técnica da dança Afro é inspirada nos<br />

Orixás, sendo essa uma “técnica própria, uma postura própria dos Orixás, uma cultura”<br />

(Conrado, 2006, p. 38). Ao falar isso, King defende uma não rigidez dos movimentos;<br />

eles devem ser baseados na postura dos filhos de santo observados nos terreiros de<br />

Candomblé, mas cada mestre e professor de dança deveria enriquecer estes movimentos<br />

com estudos e experiências próprias (Conrado, 2006). Similarmente à posição do mestre<br />

King, dois jovens instrutores de dança Afro em Salvador que tive a possibilidade de<br />

entrevistar, colocaram sua opinião, ao lhe ser perguntado “o que é a dança Afro?”:<br />

“É afro-brasileiro. É uma mistura de tudo. Não existe afro puro aqui, teria que ir pra Africa. Não existe nada de escrito, tudo foi<br />

passado oralmente, então você não tem algo de definido. Mas eu e Tati trazemos a complexidade. Se definir demais vai<br />

simplificar. O afro é complexo. A base é o movimento dos Orixás. Mas ai, eu uso coisas do dia a dia. O afro-brasileiro já é<br />

contemporãneo se explorar as possibilidades dentro dele” (Pakito, 27 Agosto 2009).<br />

A fala de Pakito mostra mais uma vez a complexidade e a falta de definição do que é a<br />

dança Afro. Ele faz questão de explicar que é uma arte brasileira, de origem africana, cuja<br />

técnica é baseada nos movimentos dos Orixás. Ao mesmo tempo, como vimos com o<br />

depoimento do Mestre King, é uma arte de dançar sempre recriada e inovada por cada<br />

professor que traz suas experiências e conhecimentos para enriquecer este estilo de<br />

dança.<br />

Mesmo entre estas versões diferentes do que é a dança Afro, podemos observar<br />

alguns aspectos comuns. A característica principal da dança Afro é certamente sua matriz<br />

africana, sua influência corporal e cultural dos povos da diáspora africana no Brasil.<br />

Usando as palavras de Clyde Morgan na dissertação de Nadir Nóbrega Oliveira, “é bom<br />

lembrar que esta dança está ligada a uma tradição, com seu códigos e símbolos”<br />

(Oliveira, 2006, p. 91). Isso quer dizer que o sentido dos movimentos da dança “traduzem<br />

a forma do africano e do seu descendente ver e estar no mundo” (Conrado 2006, p. 27),<br />

recriando uma sabedoria ancestral e expressando ela através do corpo numa linguagem<br />

própria. A dança afro descendente constrói corpos, incluindo movimentos, gestos,<br />

posturas corporais e ritmos, que agem contando suas histórias (Oliveira, 2006, p. 17).


Estas histórias são inscritas e recriadas pelos corpos dançantes e através da dança<br />

revivem-se mitos, costumes, simbologias e narrativas, caracterizando ela como uma<br />

“manifestação viva de identidade étnica” (Ibidem). Os mitos e símbolos da religião afrobrasileira<br />

do Candomblé marcam a estética da dança Afro no plano sagrado, objeto<br />

principal desta dissertação. Antes de entrar nos detalhes do plano sagrado da dança Afro,<br />

quero apresentar os elementos corporais, musicais e culturais da dança Afro,<br />

evidenciados e observados durante minha pesquisa.<br />

Elementos<br />

Como foi mencionado anteriormente, evidenciei alguns elementos comuns às<br />

danças afro-brasileiras, sendo estes aspectos fundamentais da vida e cultura dos povos<br />

africanos que vieram para o Brasil. Um elemento fundamental na visão dos povos<br />

africanos que influênciou a cultura brasileira é o da circularidade. A presença da roda nas<br />

aulas de dança Afro administradas por Eliete é muito forte. Muitas vezes começamos as<br />

aulas formando um círculo, no qual é posssível olhar para cada pessoa, se introduzir<br />

quando for necessário, e conversar. Este círculo é sempre recriado também no final da<br />

aula, quando todos se juntam dando a mão e passando a energia acumulada durante a<br />

aula:<br />

Fizemos esta coreógrafia várias vezes, em pares, se encontrando no meio da sala,<br />

trocando de lugares e finalmente convergendo todo mundo para o meio, formando<br />

um círculo de novo. (20 Abril 2009)<br />

Para completar nos alongamos dando-se a mão e passamos o aperto de mão para<br />

passar energia, algo que Eliete sempre faz no final da aula (27 Abril 2009)<br />

Levantamos e começamos um alongamento em roda. As aulas do circo voador<br />

(espaço de ensaio) são sempre muito circulares, a gente quase nunca quebra a<br />

roda. (4 Maio 2009)<br />

Nestes exemplos pode-se ver como a formação da roda é algo que transmite energia, é<br />

usado como forma de coreografias ou de alongamento, e é uma arrumação que permite<br />

conversar olhando-se. A circularidade é algo de sagrado, algo que é parte constituinte dos<br />

rituais das religiões afro-brasileiras. Ao perguntar “o que é a roda” numa aula no Circo<br />

Voador, os alunos responderam:


“O que é a roda?<br />

Ritual, movimento, troca de energias, circularidade, sintonia e cooperação.<br />

Precisa trabalhar a energia, a força da roda, na dança, assim como é feito no<br />

Candomblé “ (31 Agosto 2009).<br />

A roda é portanto um elemento proveniente da visão de vida nas matrizes africanas; ela<br />

está presente nos rituais sagrados de Candomblé e é reapropriada na dança Afro como<br />

meio de troca de energia, de força, de sintonia e de cooperação. Trata-se de um elemento<br />

forte que reflete a importância da circularidade nas múltiplas formas de pensamento<br />

africanas.<br />

Esta energia presente na dança Afro provém também de outras características de<br />

origem africana, trabalhadas e utilizadas na dança, como o contato dos pés com o chão, o<br />

som dos tambores e os elementos da natureza. Os tambores, e outros instrumentos<br />

percussivos em geral, são um componente chave da dança Afro. Eles são considerados<br />

sagrados nas culturas dos povos africanos e a vibração produzida por eles é o que move a<br />

energia do corpo do dançarino. Como disse a ativista do movimento negro Naira<br />

Fernandes durante uma palestra dada em um dos ensaios do grupo Corpafro, “o tambor é<br />

nossa ligação entre nós, onde a gente se identifica, cada toque tem seu significado, ele é<br />

tudo pra gente” (25 Abril 2009). Os toques do tambor definem o ritmo e a modalidade de<br />

dança Afro a ser dançada. No caso da dança de Orixás, veremos em seguida como cada<br />

toque corresponde a um tipo de Orixá e portanto de movimento, criando uma linguagem<br />

cooperativa entre corpo e som, entre toque e movimento, tambor e dançarino. Os<br />

tambores ajudam também a criar uma energia mais forte durante a aula ou o ensaio.<br />

Durante minha experiência etnográfica, muitas vezes ouvi comentários como o que M.<br />

(uma aluna e integrante do grupo) fez depois de um ensaio com percussão ao vivo: “a<br />

música eletrónica é diferente dos instrumentos ao vivo. Dançar com a percussão é outra<br />

coisa, dá pra sentir a vibração.” (20 Março 2009).<br />

Além do que através do som dos tambores, é possível sentir a vibração do corpo<br />

graças ao contato com os pés descalços no chão. A energia que vem da terra se transfere<br />

pelo corpo todo através dos pés, símbolo da raiz, da força e da firmeza, e símbolo<br />

também da ancestralidade, valor fundamental de descendência africana. Falando em raiz<br />

e ancestralidade, estes são elementos associados ao elemento da natureza terra. A dança<br />

Afro, aplicando os valores da cosmogonia nagô, trabalha muito com os quatro elementos


da natureza, que possuem significados específicos e são associados às várias regiões do<br />

corpo. Como introdução de uma aula no circo Voador, Eliete, falou sobre estes<br />

significados e associações dos quatro elementos da natureza:<br />

“Os quatro elementos da natureza são:<br />

Fogo: calor, viibração, força, expansão. Transforma, é perigoso, significa energia<br />

e ação, sexualidade e fantasias.<br />

Terra: fertilidade, base, sustentação, firmeza, ancestralidade e raiz<br />

Àgua: a água é tudo e tudo é água. A gente é água. Fluidez, adaptação, evolução,<br />

vida, movimento.<br />

Ar: transição, sopro vital, vento, tempestade, brisa.<br />

Precisa buscar um equilíbrio entre eles e trabalhar eles todos, tanto na nossa vida<br />

de dia a dia, quanto na dança. A gente usa eles e eles nos usam também. Dentro<br />

da dança Afro é fundamental trabalhar estes 4 elementos, pois eles estão no corpo:<br />

Ar: região cardiaca, torax<br />

Àgua: estômago, barriga,<br />

Fogo: pelvis, quadril, região do ventre.<br />

Terra: coluna.<br />

Ao trabalhar estes 4 elementos da natureza na dança, portanto, trabalham-se as<br />

regiões do corpo, as 4 direções, as mitologias nagôs, os sentimentos e as<br />

sensações. Todos os movimentos estão ligados a elementos da natureza, sendo<br />

agitados, outros menos fortes, alguns firmes, outros ondulatórios.“(13 Abril<br />

2009).<br />

As notas de campo explicam como os quatro elementos da natureza são muito<br />

importantes de se trabahar na dança Afro, pois estão presentes no corpo e estão ligados às<br />

sensações e a mitologia nagô. Como veremos em seguida, cada Orixá corresponde a um<br />

elemento da natureza, fato esse que influencia o próprio arquétipo e personalidade do<br />

Orixá e portanto o tipo de movimento, determinando a força, a rapidez, a ondulação do<br />

corpo, a direção. Como escreve Rosamaria Barbara em sua tese sobre a dança das Aiabás:<br />

“O corpo é o ponto de conjunção entre as energias naturais e a cultura e, por meio do<br />

ritmo traduzido em dança, transforma os eventos naturais em significados culturais.<br />

Cada gesto mostra o sentido de um símbolo, criando assim a dialética, o fluir<br />

dinâmico do ritual” (Bárbara, 2002, p. 54).<br />

Na dança Afro, assim como no ritual do Candomblé, o corpo é a ponte, o contato entre as<br />

forças da natureza e a cultura, através dos gestuais da dança, que comunicam com o


itmo dos tambores. A criação de significados acontece graças à movimentação do corpo<br />

na dança, que produz e mostra os símbolos da natureza ligados a significados culturais.<br />

Sem ainda reproduzir os movimentos de Orixá, um ensaio no Centro Coreográfico<br />

focou-se no exercitar os quatro elementos da natureza no corpo. Neste exercício,<br />

tínhamos que andar pela sala, tentando mostrar através do movimento o elemento da<br />

natutreza que a Eliete estava mandando incorporar. As sensações foram intensas e os<br />

movimentos que apareceram foram os seguintes:<br />

1. Agua: o corpo se mexia ondulando, representando a sensação de beber agua, jogar<br />

agua, tomar banho, sentir a agua do mar.<br />

2. Terra: foram movimentos de pegar com a mão no chão, sentar e crescer de baixo<br />

para cima, sentir a firmeza da terra, mostrar a raiz de algo crescendo.<br />

3. Fogo: sensação de calor, tentando soltar as chamas jogando-se, muita energia<br />

sentida no corpo, pulando rápidamente.<br />

4. Ar: voar como se fosse uma ave, pular bem em alto mas leve, movimentos sutis,<br />

expandindo o corpo, respirando profundo. (29 Maio 2009)<br />

É interessante ver como o corpo experiencia sensações variadas e as expressa através do<br />

movimento, que é inspirado por dentro, pela emoção que aparece ao sentir cada elemento<br />

da natureza. Estes movimentos de ondulação do corpo, de firmeza no chão, de saltos<br />

fortes e explosivos ou de leveza e sutileza, além de estar estritamente ligados à dança de<br />

Orixás, são movimentos característicos de todas as modalidades da dança Afro.<br />

A maior dificuldade no definir os movimentos da dança Afro é o fato deles não<br />

ter nome. Como disse Charles Nelson durante nossa entrevista:<br />

“Na dança afro os movimentos não têm nome, ao contrário do<br />

ballet por exemplo. No ballet, alguém pode até ensinar sentado se<br />

quiser, é só falar os nomes; eu não tenho como-preciso fazer aula<br />

junto com o aluno, preciso mostrar o movimento, pois não tem<br />

nome!” (15 Abril 2009).<br />

Essa falta de codificação gera uma dificuldade no ensino e na definição da dança Afro.<br />

Tomando em consideração estes desafios, e com a ajuda das minhas observações ao<br />

longo da etnografia tentarei descrever as posições e movimentos corporais típicos da<br />

dança Afro.<br />

Primeiro, é importante identificar a postura do corpo na dança Afro: não rígida,<br />

meio inclinada para a frente, com pés paralelos pisando firmes no chão e joelhos<br />

flexionados. Segundo Mestre King esta postura a ser assumida na dança é fundamental e


é inspirada pela postura dos filhos de santo no Candomblé: joelhos semi-flexionados e<br />

performance meio inclinada, tentando incorporar elementos da “postura ritual” no<br />

“trabalho da dança” (Conrado 2006, p. 40). O aspecto dos joelhos flexionados foi<br />

evidenciado por todos os professores em qualquer aula de dança Afro da qual tenha<br />

participado, tanto como dançarina quanto como observadora. Em uma aula de Tatiana em<br />

Salvador ela explicou: “A base do afro são joelhos sempre dobrados” (27 Agosto 2009).<br />

Este ensinamento é algo que Eliete sempre repete nas suas aulas, desde o próprio<br />

alongamento inicial; um dia, depois de uma sequencia de alongamento, ela disse: “o<br />

alongamento precisa envolver muito trabalho de torso, joelhos e molejo, tudo que é usado<br />

maiormente na dança Afro” (18 Maio 2009). O “molejo” é algo considerado fundamental<br />

para quem dança Afro; segundo a dissertação de Nelson Lima, esta flexibilidade do corpo<br />

em se movimentar harmoniosamente chamada molejo, e a capacidade de ter uma<br />

coordenação rítmicas são os dois elementos chave da técnica corporal da dança Afro<br />

(Lima, 1995, p. 77). Durante uma oficina de dança africana da qual participei no Centro<br />

Coreográfico dada pelo dançarino africano (da Costa de Marfim) George Momboye, me<br />

surpreendi ao reparar que a maioria dos gestuais e movimentos eram totalmente<br />

diferentes dos que conheço e que estou acostumada a fazer nas aulas de dança Afro da<br />

Eliete, ou de outros professores brasileiros. Entretanto, foi possível reparar como a base<br />

de joelhos flexionados, o molejo, a ampla movimentação de tronco e quadris e a<br />

polirritmia do som dos tambores fazem parte da dança africana também, rendendo o<br />

elemento “Afro” na dança aqui no Brasil reconhecível. Após a oficina alguns dos<br />

participantes que fazem dança Afro comentaram como esta disciplina de dança é<br />

totalmente diferente do ballet; “o Afro não tem nada de ponta, tudo é dobrado e<br />

flexionado, e tudo é no molejo, nada é esticado. Também tem muito braço, muita força”,<br />

comentou um dos participantes (19 Junho 2009). São exatamente estes detalhes, entre<br />

outros, que identificam as matrizes africanas na dança Afro no Brasil.<br />

Mais um elemento característico da dança Afro observado no meu campo de<br />

pesquisa é a grande movimentação da pélvis e dos quadris. Nadir Nobrega escreve que “a<br />

dança com os quadris é um patrimonio da nossa ancestralidade africana” (Oliveira, 2006,<br />

p. 140). Julio Cesar de Tavares, no seu estudo sobre capoeira citado anteriormente,<br />

escreve que na cultura africana a cintura assume a função-chave do corpo. A soltura dos


quadris é o que Tavares define de “variável somática” responsável pelos movimentos da<br />

capoeira, do reggae, do soul, do rock ou dos breakers, os requebros das passistas de<br />

samba, os movimentos religiosos da Umbanda e Candomblé (Tavares, 1984, p. 33).<br />

Tavares continua:<br />

“O jogo de cintura, ou jogo de quadris, é marca registrada no cotidiano negro<br />

africano e, por extensão, da afro-diáspora. Movimento dos quadris e energia<br />

dinâmica são dois elementos que fazem o corpo do negro ser um corpo que<br />

cataliza e reverbera a força energético-cósmica. Lembremos que tais elementos<br />

são os traços definidores do corpo em texto na Capoeira. Como resíduos de<br />

identidade para o interior da comunidade, enquanto prática constituída, significam<br />

um saber produzido e memorizado pelo corpo. O corpo é signo.” (p. 73)<br />

O movimento dos quadris é portanto um elemento constitutivo do corpo negro e das<br />

danças de matriz africana, símbolo de identidade e de um saber e conhecimento que está<br />

na memória do corpo e é constantemente produzido pelo corpo. Nas danças africanas e<br />

afro-brasileiras, portanto, é muito comum o sacudir dos quadris ao ritmo da percussão.<br />

Sobre este assunto, acho importante trazer aqui algo que a Eliete muitas vezes faz questão<br />

de sublinhar. Durante uma aula no Circo Voador, por exemplo, nós estávamos<br />

executando movimentos que envolviam uma ampla movimentação dos quadris, quando<br />

Eliete gritou: “é mexer mesmo, não é rebolar - é Afro primitivo, não é o tchan!” (22<br />

Junho 2009). É interessante ver que o uso de certos termos valoriza e estimula o<br />

movimento de pelvis na dança Afro, e desconsidera o movimento dos quadris como<br />

contendo significado puramente sexual, distinguindo a arte de dançar Afro, nesse caso,<br />

do dançar do grupo de pagode baiano “è o tchan”, popular nos anos noventa, autor de<br />

músicas com teor erótico e duplos sentidos.<br />

O elemento chamada e resposta mencionado ao se falar do hip-hop e do jongo<br />

está presente também na performance da dança Afro. Especialmente na dança de Orixás,<br />

é possível observar esta característica típica da estética das danças africanas. No<br />

Candomblé existe uma estreita relação entre a música e a dança, tanto entre quem puxa as<br />

cantigas e os outros religiosos, quanto entre o toque do tambor e os movimentos e<br />

gestuais dos Orixás. Na dança de Orixás no contexto profano da dança Afro, esta<br />

comunicação entre o tambor e o gestual do dançarino é um elemento fundamental. A<br />

cada “chamada” do tambor executando um toque específico, o corpo do dançarino


“responde” com um gestual e uma postura próprios, instaurando um processo de<br />

interação e diálogo formado por este jogo de “chamada e resposta”. Essa comunicação<br />

entre tambor e dançarino será melhor explorada no quarto capítulo, onde analisarei mais<br />

em detalhe o elemento comunicativo da dança Afro.<br />

Finalmente, vale a pena mencionar a característica polirrítmica e asimétrica da<br />

dança Afro, símbolo das suas origens africanas. No livro A Dança de Yemanjá Ogunté,<br />

Suzana Martins evidencia estas características chamando-as de “polirritmia”,<br />

“policentrismo” e “holismo”, indicando-as como pilares fundamentais e estruturais da<br />

estética negra, das danças africanas e das coreografias dos Orixás. Por “polirritmia”<br />

entende-se a utilização de diferentes ritmos para diferentes movimentos, assim como a<br />

execução de toques rítmicos diferentes dentro de uma mesma estrutura sonora e corporal<br />

e executados de forma sobreposta (Martins, 2008, p. 118). A polirritmia promove uma<br />

complexidade na movimentação do corpo, cujos membros executam movimentos parciais<br />

e diferentes dentro de uma mesma estrutura coreográfica, mostrando a qualidade<br />

asimétrica da dança Afro. Além disso, o pilar do “policentrismo” descrito por Martins<br />

ressalta que os movimentos Afro “se expandem no espaço, sobrepondo-se uns aos outros<br />

a partir do estímulo dado pelos toques dos atabaques os quais, por sua vez, emolduram o<br />

tempo e o desenho espacial” (Ibidem, p. 119). O corpo portanto não se locomove de<br />

maneira fixa e reta; ao contrário, ele se locomove com movimentos sobrepostos se<br />

expandindo no espaço. Por fim, o pilar do “holismo” explica o fato do corpo se<br />

movimentar de maneira que todas as partes interajam entre si, promovendo o movimento<br />

do corpo todo sem enfatizar as articulações individualmente. Esta característica baseia-se<br />

na filosofia holística típica do pensamento africano, onde o todo é maior do que as<br />

individualidades separadas (Ibidem, p. 120).<br />

Já disse que, devido à falta de uma denominação de movimentos na dança Afro, é<br />

complicado tanto estabelecer quanto reconhecer o que exatamente é e faz parte desta arte<br />

de dançar. Entretanto, após um extenso período praticando e vivendo no universo da<br />

dança Afro, consegui ser capaz de distinguir certos movimentos e falar que podem ser<br />

considerados movimentos de dança Afro. Isso aconteceu claramente em duas ocasiões,<br />

nas quais as apresentações de dança Afro estavam juntas a outras modalidades. No<br />

festival de jongo em São José da Serra, mencionado anteriormente, entre muitas rodas de


jongo e capoeira, apresentações do coco e folia de reis, teve uma apresentação do “Boi de<br />

Miracema”, uma manifestação de bumba meu boi (dança do folclore popular brasileiro)<br />

que incluiu uma coreografia de dança Afro executada por um grupo de meninas. Foi<br />

interessante constatar que, tanto eu quanto duas minhas amigas que também fazem aula<br />

de dança Afro, conseguiram reconhecer imediatamente que aquela coreografia era de<br />

dança Afro, diferente do jongo ou do coco ou da capoeira das outras apresentações. Isso<br />

aconteceu por causa dos movimentos executados e reconhecíveis, como a presença de<br />

muito molejo, amplos movimentos de tronco, mãos espalhadas e braços se<br />

movimentando com força e rapidez, postura do tronco inclinada, pulos e saltos,<br />

movimentação do quadril muito acentuada e alguns gestuais de orixá. (diário de campo,<br />

16 Maio 2009). Uma segunda ocasião na qual fui capaz de distinguir imediatamente os<br />

movimentos Afro da dança, foi durante o espetáculo que a companhia do dançarino<br />

George Momboye, anteriormente citado, fez no teatro João Caetano no Rio de Janeiro.<br />

Esta companhia se define como um grupo de dança que mistura a técnica africana com a<br />

contemporânea européia. Durante o show, foi interessante ver a capacidade que tive em<br />

reconhecer os elementos de dança africana, como, mais uma vez, os joelhos flexionados,<br />

a amplitude de movimentos braçais, a execução de pulos, o molejo, a rapidez dos pés, a<br />

força da percussão (diário de campo, 23 Junho 2009).<br />

Espero ter conseguido explicar da melhor forma possível os elementos gerais que<br />

caracterizam a dança Afro, e espero ter mostrado que são elementos de matriz africana,<br />

que têm origem nas culturas e histórias dos povos da diáspora africana no Brasil e que, ao<br />

incorporar e reproduzir eles, a dança Afro recria e transmite estes símbolos culturais e<br />

histórias. Os movimentos e os elementos da dança Afro portanto não acontecem por<br />

acaso; eles têm todo um simbolismo e um significado, ligados a uma história e uma<br />

memória que está no corpo. Como afirmou Vera Lopes coreógrafa e professora de dança<br />

contemporânea, durante uma conversa com o nosso grupo no Centro Coreográfico, “os<br />

do Afro são movimentos que têm força, que têm identidade” (22 Maio 2009). Esta força<br />

ancestral e esta identidade querem ser resgatadas através da dança Afro, que, usufruindo<br />

do corpo como maior locus de memória e meio de comunicação, como será analisado nos<br />

próximos capítulos, mantém vivos e ensina os mitos, os valores, as histórias e as<br />

filosofias que vieram de povos africanos cuja influência está fortamente presente na


iqueza da cultura brasileira. Tentarei portanto explicar, nesta parte final do primeiro<br />

capítulo, como as diferentes modalidades da dança Afro refletem e recriam as várias<br />

histórias e os variados mundos e valores das culturas africanas que mais tiveram<br />

influência no Brasil, a Bantu e a Yoruba.<br />

Modalidades<br />

A dança Afro é muito rica em movimentos e significados e dentro dela podem ser<br />

distinguidas algumas modalidades. A principal distinção que pode ser feita dentro do<br />

Afro é entre as danças lúdicas, ou profanas, e as danças sagradas. As danças lúdicas,<br />

por sua vez, podem ser subdivididas em três grupos principais: as danças tradicionais,<br />

o afro primitivo, e a dança de blocos Afro. A modalidade sagrada dentro do contexto<br />

profano da dança Afro é a dança de Orixás inspirada pelas danças religiosas do<br />

Candomblé. Antes de tentar explicar no que consiste cada uma dessas modalidades, é<br />

importante sublinhar que a divisão sagrado/profano dentro das danças afro-brasileiras<br />

nunca é completamente rígida, pois a dança na cultura dos povos africanos é uma das<br />

maiores manifestações presentes nos rituais. Portanto, mesmo as danças lúdicas<br />

possuem uma estrutura ou elementos ritualísticos e sagrados. Ao mesmo tempo, é<br />

importante lembrar que, nesta pesquisa, estamos falando de um contexto profano, o<br />

da dança Afro. Por isso, quando falarei mais em específico de dança de Orixás, é<br />

preciso saber que a analiso no seu contexto performático e não dentro do contexto<br />

religioso do Candomblé, mesmo se serão feitas comparações entre estes dois mundos.<br />

Começando pelo lado lúdico da dança Afro, vou explicar no que consistem as três<br />

subdivisões que tentei determinar. As danças tradicionais que fazem parte da dança<br />

Afro são algumas das danças afro-brasileiras, especialmente o samba de roda e o<br />

maculelê. Em muitas das aulas de dança Afro das quais participei, tanto as da Eliete,<br />

quanto do Charles Nelson, ou da Tatiana em Salvador, reserva-se uma parte da aula<br />

para se ensinar e praticar o samba de roda, já analisado anteriormente na sessão<br />

falando das danças afro-brasileiras. Durante uma aula dedicada ao samba de roda,<br />

exercitamos o aspecto da circularidade e da ludicidade desta dança, formando a roda,<br />

praticando os passos do samba, para a frente, lado e trás, movimentando os quadris,<br />

praticando o jogo de sedução entre homem e mulher, e dançamos cantando e batendo<br />

palmas ao mesmo tempo (diário, 25 Maio e 1 Junho 2009). A segunda modalidade<br />

pode ser considerada como o Afro-primitivo. Eliete, em entrevista, afirma que o afro<br />

primitivo recria os movimentos que estão ligados à natureza: inclui gestuais<br />

animalescos, de árvores, folhas, terra e gestuais de caça. Os movimentos desta<br />

modalidade são muito fortes, envolvem muitos giros, pulos e saltos, muita definição<br />

das articulações das mãos, e uma expressão facial intensa, forte, concentrada. Em<br />

muitas aulas exercitaram-se movimentos de afro primitivo:<br />

Hoje fizemos movimenntos de AFRO PRIMITIVO: as mãos ficam sempre muito<br />

abertas, os braços dobrados, fortes. As pernas são sempre flexionadas,


movimentando o quadril. São movimentos muito cansativos e difíceis, sobretudo<br />

dificéis de coordenar. (Circo Voador, 1 Junho 2009)<br />

Na aula, fizemos movimentos de Afro primitivo. Eliete explicou que são gestos<br />

que fazem muito nas danças na Africa, sobretudo no Senegal. Nos movimentamos<br />

pela sala com os braços abertos, com cotuvelos dobrados, abrindo para cima e<br />

para baixo. Fizemos um movimento de oferenda com os braços, enquanto o pé<br />

marcava com o calcanhar no chão lateralmente. (UERJ, 3 junho 2009).<br />

Hoje fizemos só movimentos de afro primitivo: joelhos sempre flexionados,<br />

movimentos de “pernas bamba” se mexendo, pés dobrados nos pulos e nos<br />

passos, braços muito grandes, muito movimento de pelvis e percussão muito<br />

rápida. (CircoVoador, 22 Junho 2009).<br />

Nos movimentos de Afro primitivo as pernas são muito flexionadas, e tem muito movimento da cabeça. Gritos acompanham a<br />

aula toda hora. Fizemos muitos giros da cabeça, com mãos na cabeça ou com braços abertos e mãos espalhadas. O molejo está<br />

sempre presente. Fizemos giros com movimentos de oferenda dos braços. Braços e pernas são sempre muito fortes, grandes, com<br />

os ombros se movimentando muito. Executamos movimentos de caça, com braços simulando a figura de arco e flecha, pulando<br />

alto. Pés flexionados, muito movimento de quadril e movimentos sincopados. (Aula Charles Nelson, 6 Maio 2009).<br />

Olhando para todos estes excertos de diário de campo, podem se ver algumas<br />

características corporais do Afro primitivo, uma modalidade da dança Afro com<br />

movimentos muito fortes, acentuados, fazendo uso de muito tronco, braços e quadril.<br />

Giros e pulos são muito presentes e os gestuais são de oferenda, de caça, de natureza.<br />

A terceira modalidade que faz parte das danças profanas dentro da dança Afro é a<br />

das danças de blocos Afro de Salvador. As danças de blocos Afro tem movimentos<br />

específicos e reconhecíveis. Os principais ritmos dançados são: o Afoaxé (típico de<br />

grupos como os Filhos de Gandi), o Samba-reggae (ex. Olodum) e o ritmo próprio do Ilê<br />

Aiye, primeiro grupo Afro de Salvador. Cada um desses ritmos percussivos tem uma<br />

dança própria e movimentos associados. Muitos deles são baseados em gestuais de<br />

Orixás que são modificados e reutilizados nessas danças. O Afoaxé é o nome de um<br />

ritmo, de um instrumento e de bloco. O Afoaxe, ou Ijexa, é dançado por Oxum no<br />

Candomble, e por Oxalá tambem. Os Filhos de Gandi na Bahia criaram o primeiro grupo<br />

de afoaxe, com os homens do cais, vestidos de branco e azul, em homenagem a Gandi, a<br />

paz, a Oxalá (aula Circo Voador, 11 Maio 2009). Os movimentos do Afoaxé são<br />

baseados nos movimentos dos Orixás Oxum, Oxalá, Ossaim e Logun Edé e são<br />

movimentos leves, sutis, pequenos, baseados na resistência e no molejo. Os dois passos<br />

principais são:


1. pés se movimentando chutando levemente para a frente, com joelhos<br />

flexionados, com molejo; as mãos estão fechadas e os braços juntos<br />

ondulando de um lado e outro do tronco.<br />

2. movimento de abre e fecha de pernas e braços simltaneamente, com<br />

molejo constante e movimentação contínua dos ombros. (diário, 11 e 18<br />

Maio 2009)<br />

Estes movimentos típicos do Ijexá mostram a influência Yoruba e da dança de Orixás na<br />

dança Afro. Entretanto, mesmo sendo baseado nos movimentos de Orixá, o afoaxé ainda<br />

não é considerado a dança sagrada de Orixás. Mais um estilo de dança de blocos Afro é a<br />

dança da beleza negra do bloco Afro Ilê Aiye. Este foi o primeiro bloco Afro a ser<br />

fundado no bairro do Curuzu da cidade de Salvador, e, como manifestação de resgate da<br />

cultura negra e de valorizar a mulher negra, o bloco organiza cada ano a noite da beleza<br />

negra, onde várias candidatas dançam ao toque dos tambores do Ilê, mostrando a beleza e<br />

a sutileza do feminino, através da dança. A dança é baseada na sutileza da dança de<br />

Orixás; movimentos de Oxum, Iemanja e Iansã (Orixás femininos) estão presentes na<br />

dança da beleza negra, sendo estes orixas femininos inspiração para a feminilidade e a<br />

realeza das mulheres. Durante uma aula na UERJ dedicada ao estudo dos movimentos da<br />

dança da beleza negra, Eliete continuava repetindo de expressar o fato de estar dançando<br />

rainhas negras. Os movimentos utilizam especialmente a parte superior do corpo, com<br />

braços e ombros executando movimentos amplos, e tudo é sempre acompanhado por<br />

molejo (diário, 7 Outubro 2009). Nas aulas de dança de blocos Afro que fiz em Salvador<br />

reconheci imediatamente estes movimentos da dança da beleza negra e, dançando ao<br />

toque do Ilê Aiye, executamos os movimentos sinuosos típico de Oxum, com ampla<br />

abertura de braços e muita movimentação das mãos; tinham também passos baseados nos<br />

movimentos de Oxossi, e a maneira de pisar no chão é diferente do Afro primitivo: os pés<br />

parecem deslizar levemente no chão, se movimentando assim como os pés dos Orixás<br />

dançando em um ritual de Candomblé (diário, 11 Agosto 2009). Além dos blocos de<br />

Afoaxé e do Ilê, existem vários outros blocos afro, tanto em Salvador quanto no Rio de<br />

Janeiro, cuja batida e ritmo tocado chama-se de samba-reggae, ou afro-reggae. A maneira<br />

de dançar que acompanha estes ritmos é diferente das outras modalidades, e envolve<br />

movimentos sinuosos, que utilizam muito balanço e flexibilidade do tronco. Eles são


mais rápidos que os movimentos da dança da beleza negra ou do afoaxé, e trabalha-se<br />

muito o quadril enquanto os braços são “jogados” para os lados e para cima de maneira<br />

muito rápida. Musicalmente falando, os ritmos dos blocos Afro, além das danças, são<br />

variados e inovadores, juntando estilos diferentes de música de matrizes africanas, como<br />

o samba, o reggae, os toques de orixás, e criando fusões Afro complexas e inspiradoras.<br />

Vimos portanto como a dança Afro inclui vários e diferentes estilos e<br />

modalidades. Até agora dei uma descrição das modalidades que fazem parte da esfera<br />

profana da dança Afro mesmo se, como foi já mencionado, os gestuais e movimentos<br />

sagrados dos Orixás são muitas vezes a base dos movimentos das danças até agora<br />

descritas. Dentro da dança Afro, porém, existe a própria dança de Orixás, onde os<br />

movimentos e gestuais executados refletem o mais autenticamente possível os gestos dos<br />

Orixás que dançam na cerimônia religiosa do Candomblé. Durante uma performance de<br />

dança de Orixás, o dançarino tenta recriar no seu corpo os gestos, os arquétipo, os<br />

símbolos e os elementos da natureza associados a cada Orixá. Esta dança será analisada<br />

em detalhe no próximo capítulo, onde explicarei melhor o mundo do Candomblé e dos<br />

Orixás e sua importância na dança Afro.<br />

CAPITULO 3 - Os Cheiros da Natureza<br />

(Incorporando Orixás)<br />

O Candomblé<br />

No começo não havia separação entre o Orun, o céu dos Orixás, e o Aiê, a terra dos<br />

humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e dividindo vidas e<br />

aventuras. Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê, um ser humano tocou


o Orum com as mãos sujas. O céu imaculado do Orixá fora conspurcado. O branco<br />

imaculado de Obatalá se perdera. Oxalá foi reclamar a Olorum. Olorum, Senhor do<br />

Céu, Deus Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a disciplência dos mortais,<br />

soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre e Céu da Terra. Assim, o<br />

Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia ir ao Orum e<br />

retornar de lá com vida. E os orixás também não poderiam vir à Terra com seus<br />

corpos. Agora havia o mundo dos homens e dos orixás, separados. Isolados dos<br />

humanos habitanttes do Aiê, as divindades entristeceram. Os orixás tinham saudade<br />

de suas peripécias entre os humanos e andavam tristes e amuados. Foram queixar-se<br />

com Olodumare, que acabou consentindo que os Orixás pudessem vez por outra<br />

retornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomar o corpo material de seus<br />

devotos. Foi a condição imposta por Olodumare.<br />

Oxum, que antes gostava de vir à Terra brincar com as mulheres, dividindo com elas<br />

sua formosura e vaidade, ensinando-lhe feitiços de adorável sedução e irresistível<br />

encanto, recebeu de Olorum um novo encargo: preparar os mortais para receberem<br />

em seus corpos os orixás. Oxum fez oferendas a Exu para propiciar sua delicada<br />

missão. De seu sucesso dependia a alegria de seus irmãos e amigos orixás. Veio ao<br />

Aiê e juntou as mulheres à sua volta, banhou seus corpos com ervas preciosas, cortou<br />

seus cabelos, raspou suas cabeças, pintou seus corpos. Pintou suas cabeças com<br />

pintinhas brancas, como as penas da galinha d´ angola. Vestiu-as com belíssimos<br />

panos e fartos laços, enfeitou-as com jóias e coroas. O ori, a cabeça, ela adornou<br />

ainda com a pena ecodidé, pluma vermelha, rara e misteriosa do papagaio-da-costa.<br />

Nas mãos as fez levar abebés, espadas, cetros, e nos pulsos, dúzias de douradops<br />

indés. O colo cobriu com voltas e voltas de coloridas contas e múltiplas fieiras de<br />

búzios, cerâmicas e corais. Na cabeça pôs um cone feito de manteiga de ori, finas<br />

ervas e obi mascado, com todo condimento de que gostam os orixás. Esse oxo atrairia<br />

o orixá ao ori da iniciada e o orixá não tinha como se enganar em seu retorno ao Aiê.<br />

Finalmente, as pequenas esposas estavam feitas, estavam prontas, e estavam odara.<br />

As iaôs eram as noivas mais bonitas que a vaidade de Oxum conseguia imaginar.<br />

Estavam prontas para os deuses.<br />

Os orixás agora tinham seus cavalos, podiam retornar com segurança ao Aiê, podiam<br />

cavalgar o corpo das devotas. Os humanos faziam oferendas aos orixás, convidandoos<br />

à Terra, aos corpos das iaôs. Então os orixás vinham e tomavam seus cavalos. E,<br />

enquanto os homens tocavam seus tambores, vibrando os batás e agogôs, soando os<br />

xequerês e adjás, enquanto os homenss cantavam e davam vivas e aplaudiam,<br />

convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê, os orixás dançavam e<br />

dançavam e dançavam. Os orixás podiam de novo conviver com os mortais. Os orixás<br />

estavam felizes. Na roda das feitas, no corpo das iaôs, eles dançavam e dançavam.<br />

Estava inventado o candomblé.<br />

(Prandi, 2001, p. 522)


A dança de Orixás é uma das modalidades dentro da dança Afro. Como foi<br />

explicado no capítulo anterior, os gestuais da dança dos Orixás são aplicados às outras<br />

modalidades dentro da dança Afro; entretanto, durante a execução da própria dança<br />

sagrada dos deuses no contexto profano da dança, o dançarino reproduz a figura dos<br />

Orixás, com seus movimentos, gestos, mitos e adereços, transmitindo e recriando as<br />

histórias que fazem parte do patrimônio religiosos e cultural afro-brasileiro. Antes de<br />

analisar detalhadamente o corpo do performer durante a dança de Orixás, é importante<br />

introduzir o contexto destas divindades afro-brasileiras, protagonistas da religião do<br />

Candomblé. O Candomblé é uma religião que veio se constituir no Brasil após o<br />

tráfico dos escravos que trouxe milhares de homens e mulheres de vários grupos<br />

étnicos e regiões da Africa. Estes vários povos trouxeram suas culturas e seus hábitos<br />

junto, incluindo suas crenças religiosas, que acabaram influênciando fortemente a recriação<br />

das religiões afro no Novo Mundo. Os maiores grupos que chegaram ao Brasil<br />

foram os Bantus, da região de Congo e Angola, os Yorubás, da moderna Nigéria e<br />

República do Benin, e os Jejes, do antigo reino de Daomé. Como a religião se tornou<br />

semi-independente em regiões diferentes do país, entre grupos étnicos diferentes,<br />

evoluíram diversas "divisões" ou nações, que se distinguem entre si principalmente<br />

pelo conjunto de divindades veneradas, os atabaques e a língua sagrada usada nos<br />

rituais. Entretanto, como escreve Zeca Ligiéro no seu livro Iniciação ao Candomblé,<br />

os três grupos mencionados, iorubás, angolas e jejes, “se destacaram pels heranças<br />

deixadas, visíveis até hoje, balanceadas por uma filosofia realmente animista e por<br />

uma crença religiosa que tem como preceito a harmonização com as forças vivas da<br />

natureza, onde se pode sentir e conviver com a força divina dos Orixás, dos inquices e<br />

dos voduns” (Ligiéro, 2006, p. 20). Entre os grupos étnicos, os Yorubás, denominados<br />

de Nagô aqui no Brasil, foram uma das maiores influências na arte, religião e cultura<br />

afro-brasileira, pois eles imigraram em grandes números e “suplantaram<br />

numericamente os Jeje”, após a destruição dos reinos Yorubá de Ketu no Benin e de<br />

Oió na Nigéria (Pessoa de Barros, 2000, p. 23). A maioria dos Candomblés das<br />

regiões onde houve esta grande imigração Nagô, especialmente no Nordeste (Bahia,<br />

Pernambuco e Maranhão) e no Rio de Janeiro, são de origem Yorubá e, especialmente,<br />

são da nação de Ketu. Os terreiros da Baixada Fluminense onde fiz minhas<br />

observações são portanto centros de Candomblé nagô da nação de Ketu.<br />

A religião do Candomblé sustenta-se em uma força vital, energia chamada Axé,<br />

presente nas forças da natureza e nos seres humanos, considerada a própria presença<br />

divina, contida e representada pelo Deus supremo Olorum e pelos Orixás, deuses que<br />

têm poder sobre os vários tipos de seres e coisas do mundo, e que são associados a<br />

cada elemento da natureza. Existe portanto uma ligação muito forte entre o divino, o<br />

humano e o natural e as folhas e os ambientes naturais são considerados fundamentais<br />

para o Candomblé (Ligiéro, 2000). Como foi mencionado no capítulo anterior, cada<br />

Orixá está ligado a uma força da natureza, que influencia sua personalidade e, como<br />

consequência, seu modo de agir e de se movimentar. Os gestos, os movimentos e as<br />

danças de cada Orixá estão portanto estritamente conectados com os elementos da<br />

natureza. Antes de explorar os arquétipos e os gestuais de cada Orixá, é necessário<br />

clarificar qual é a presença e a importância da dança dentro do Candomblé. Para fazer<br />

isso, é preciso fazer uma breve descrição do que envolve um dos rituais públicos desta<br />

religião: a “festa pública”.


Ritual da Festa Pública<br />

Segundo a religião nagô, cada ser humano é filho de um Orixá principal, e de outros<br />

secundários. Ao jogar os búzios, o babalorixá (pai de santo), ou iyalorixá (mãe de<br />

santo), considerados os sacerdotes no Candomblé, descobrem o “dono da cabeça” do<br />

filho de santo. Após um processo de iniciação, o fiel pode ”receber” seu santo durante<br />

um ritual de Candomblé, que envolve práticas muito específicas e detalhadas. O ritual<br />

analisado neste texto é a festa pública, que acontece regularmente nos terreiros de<br />

Candomblé, segundo um calendário estabelecido pelo próprio pai ou mãe de santo,<br />

onde cada festa é dedicada a um Orixá específico, que será o protagonista do ritual. A<br />

dança, a música e os cantos acompanham o ritual o tempo todo e é justamente através<br />

das cantigas e dos toques dos atabaques que os Orixás chegam a se manifestar. A<br />

maneira deles se amostrarem é dançando no corpo dos filhos de santo, recriando e<br />

contando seus mitos e suas personalidades através dos gestos, cores e adereços da<br />

performance.<br />

A festa pública no candomblé é um evento muito parecido com a performance<br />

teatral: o espaço é decorado nos mínimos detalhes, convidam-se pessoas para assistir<br />

ao ritual, e existe um “roteiro” a ser seguido. Os fieis participantes entram e saem de<br />

cena para se arrumarem, e geralmente participa-se de uma confraternização com<br />

comida e bebida após o término do ritual. Utilizando minhas notas de campo,<br />

mostrarei brevemente cada um destes elementos performáticos. A decoração do<br />

espaço é cuidadosamente executada e é repleta de significação simbólica. Em uma<br />

festa de Iemanjá em Nova Iguaçu, por exemplo, as paredes eram decoradas com<br />

recortes de peixes prateados, símbolo da rainha do mar, junto com papeis recortados<br />

em forma de machado, símbolo de Xangô. Teve uma festa pública da qual participei<br />

como observante que foi um exemplo ótimo de como este ritual é performático. Foi a<br />

inauguração de um terreiro em nova Iguaçu da mãe de santo de um amigo que dança<br />

comigo, sendo ela filha da Orixá Obá. Quando cheguei:<br />

“Tudo estava decorado: tinha um bolo laranja, cor de Obá, em cima de uma mesa,<br />

tinha quiabo em um recipiente, sendo este a comida de Xangô (marido de Obá),<br />

laços em volta das colunas, folhas no chão, pequenos machados de papel nas<br />

paredes e fotos de quando a R., Iyalorixá desta casa, foi iniciada raspando a<br />

cabeça, aos 8 anos. Na casinha do lado do patio etavam os bastidores, como se<br />

fosse um camarim, onde todo mundo da casa estava se arrumando. A platéia<br />

estava chegando e tomando seus lugares nas cadeiras que foram colocadas no<br />

patio, quando de repente uma chuva fortissima começou a cair e a entrar no<br />

barraccão, alagando o chão e começando a molhar todas as decorações. Assim, as<br />

pessoas da casa começaram a tentar achar soluções para que a chuva não entrasse.<br />

Montaram um telhado improvisado, mas não conseguiram fazer com que a água<br />

não se infiltrasse de qualquer jeito. Tentaram varrer a água que estava alagando o<br />

chão de terra, mas ela era mais insistente e continuava voltando. A lona também<br />

caiu pois não aguentou a força do temporal. Depois de quase uma hora a chuva<br />

lentamente parou e permitiu que tudo aos poucos voltasse ao normal e foi assim<br />

que, por volta de 1 hora da manha começou o ritual.” (27 Junho 2009)


Pela descrição do espaço e da dinâmica do início do ritual, é evidente como este é<br />

parecido com um espetáculo de dança por exemplo. O cenário é preparado com objetos<br />

simbólicos representantes do tema da festa; o lugar de arrumação das pessoas parece com<br />

o camarim de um teatro; os espectadores vão chegando e se acomodando nas cadeiras<br />

preparadas para eles; por fim, imprevistos técnicos acontecem, como neste caso foi a<br />

chuva fortissima que caiu e causou uma reorganização e muito trabalho para que não se<br />

estragassem o cenário e os figurinos. Um cuidado particular foi reservado, como sempre<br />

é, para os atabaques, considerados sagrados na religião afro-brasileira. Eles são<br />

enfeitados com laços, posicionados em uma área própria, e somente os iniciados podem<br />

tocar neles. Os músicos que são autorizados a tocar neles, chamados de ogãs, são<br />

especialmente treinados e iniciados para aprender cada toque, cada ritmo e cantiga de<br />

Orixá. No ritual ketu há três atabaques: o Run, o maior deles, de tom grave, tocado com<br />

uma baqueta de madeira e uma das mãos, é considerado como o som que chama os<br />

Orixás; o Rumpi, menor que o Run, percutido por baquetas de madeiras chamadas<br />

aquidavis, e tem função de manter o ritmo; o Lê, atabaque pequeno com tom médio, com<br />

a mesma função do Rumpi (Pessoa de Barros, 2000). A sacralidade dos atabaques é algo<br />

que já foi mencionado no capítulo anterior ao falar da importância dos instrumentos<br />

percussivos na cultura afro-descendente. Na dança Afro, os atabaques e os toques<br />

executados com eles são fundamentais na execução dos passos e na performance do<br />

movimento. Além dos atabaques, outros instrumentos são usados no ritual de Candomblé,<br />

como o agogô ou o adja, instrumentos percussivos com som metálico, utilizados na<br />

dança de Orixás no contexto profano também.<br />

A primeira parte da festa pública no Candomblé é chamada de Xirê, onde os<br />

filhos de santo, guiados pelo toque da orquestra dos atabaques e pelas cantigas, formam<br />

uma roda e dançam em círculo, executando gestos e movimentos específicos de acordo<br />

com a música. O elemento da circularidade portanto aparece fortemente desde o início do<br />

ritual, pois a roda é um componente chave neste primeiro momento de danças do xirê. Ao<br />

se locomover em círculo, reparei que os filhos de santo dançam levemente, executando<br />

movimentos de maneira sutil e não completamente definida. Os atabaques e as cantigas<br />

seguem sem interrupção e, ao tocar certo ritmo, os filhos de santo no xirê executam o


movimento correspondente de maneira imediata, sabendo exatamente qual gestual<br />

acompanha qual toque, mesmo que cada um execute ele com estilo próprio:<br />

“Primeiro começou um xirê com todas as pessoas dançando em circulo com o<br />

mesmo movimento, cantando e todos mudando de movimento a cada toque<br />

diferente que os atabaques mandavam. Todas as pessoas no xirê reconheciam<br />

imediatamente o toque e a cantiga, cantada em iorubá, e executavam o movimento<br />

do orixá correspondente ao toque. Tudo isso ainda sem que nenhum “santo”<br />

estivesse presente nas pessoas. Os gestuais eram executados com leveza, sem<br />

exagero, apenas para simbolizar. Cada pessoa executava o gesto com seu próprio<br />

estilo, mas era possível reconhecer qual gesto era. Como espectador, fui capaz de<br />

reconhecer a maioria dos gestos e saber a qual orixá pertenciam, mesmo<br />

reparando a diferença entre a execução do gesto no xirê do ritual e na dança Afro,<br />

onde é muito maior e mais estilizado.” (diário, 27 Junho 2009)<br />

É interessante ver como, com o olhar de dançarina de dança Afro, o que capturou<br />

minha atenção foi a diferença na execução dos gestuais entre os filhos de santo que<br />

dançam no xirê religioso e o dançarino que representa a dança do xirê no palco.<br />

Mesmo tendo a mesma forma essencial, os gestos são executados com estilos<br />

diferentes em contextos diferentes, motivados por objetivos diferentes. Entretanto, o<br />

dançarino no palco, mesmo ampliando e estilizando mais o gestual e o movimento, é<br />

inspirado pela postura corporal dos filhos de santo durante o xirê. No seu livro A<br />

Dança de Yemanjá Ogunté: sob a Perspectiva Estética do Corpo, Suzana Martins<br />

escreve que todos os corpos no xirê assumem uma postura comum ao se<br />

locomoverem, mesmo com estilo diferente. Martins chama esta postura de “atitude<br />

corporal básica” que consiste em:<br />

“Alinhar verticalmente todo o corpo, acomodando a coluna vertebral em posição<br />

ereta mas curvando o tronco levemente para frente. A articulação dos ombros é<br />

acionada de maneira relaxada, com os braços semiflexionados e os cotovelos<br />

apontados para fora; os joelhos também se mantém semiflexionados. Mantendo<br />

essa atitude o corpo se desloca para frente, através de um pequeno passo que abre<br />

e que fecha para um lado e para o outro, alternando os pés, enquanto os braços<br />

semiflexionados balançam num movimento de “ir” e “vir” sutilmente acentuados<br />

pelos cotovelos” (Martins, 2008, p. 46)<br />

Esta postura descrita por Suzana Martins é retomada e adaptada na dança Afro. Como<br />

ela mesmo escreve, no afoaxé e no samba de roda por exemplo, adota-se esta atitude<br />

corporal basica enfatizando-a, ampliando e marcando os movimentos com mais<br />

ênfase.<br />

Durante o xirê, os filhos de santo incorporam o Orixá em um momento de êxtase bem<br />

marcante. O corpo do filho de santo começa a tremer ao receber seu “dono da cabeça”<br />

e a partir daquele momento, a roda vai ser composta por espíritos divinos dançando<br />

nos corpos dos iniciados. Corporalmente e cenicamente falando, é interessante


observar o momento da “virada” do santo e a sucessiva fase de transe. Durante o xirê<br />

da festa da mãe R., minhas notas contam:<br />

“Quando começou-se a tocar para Xangô, as pessoas “viraram” e apareceram<br />

vários orixas. O momento foi um ápice, onde a energia aumentou, o toque rápido<br />

despertou um fluxo de energia e movimentação, houve gritos e cantigas em tom<br />

bem alto, com as equedes e a plateia incitando e acompanhando a virada dos<br />

santos, até que todos os filhos de santo foram levados para a casinha onde iam ser<br />

arrumados, cada um com sua roupa específica.” (27 Junho 2009)<br />

O momento da incorporação dos Orixás é o verdadeiro ápice do ritual, e a energia<br />

dentro do barracão aumenta incrivelmente, suscitando uma série de reações por parte<br />

dos participantes, tanto dos ogãs, quanto das equedes (filhas de santo que não são<br />

rodantes, ou seja não incorporam o santo), e da audience. Após virarem, os filhos de<br />

santo são ajudados pelas equedes, que retiram cada objeto material do corpo, como<br />

relógio, óculos ou sapatos, e colocam um pano da costa amarrado no tronco, chamado<br />

ojá. Os filhos de santo em união com os Orixás dançam segundo as cantigas especiais<br />

de cada um de seus Orixás, até eles serem retirados do barracão e seguem para o<br />

quarto reservado para sua arrumação. Este é geralmente o momento quando se há um<br />

intervalo, onde a platéia e os ogãs comem alimentos típicos do santo homenageado na<br />

festa, conversam e confraternizam. Após a pausa, o ritual recomeça e os Orixás<br />

entram, vestidos com suas roupas e seus adereços que irei descrever na próxima parte<br />

deste capítulo. Na festa pública trazida até agora como exemplo comecei a observar a<br />

dança dos Orixás:<br />

“Desta vez, cada um dançava muito bem, tendo seu estilo diferente. Ao dançar, me foi possível individuar uns elementos<br />

tipicamente “Afro” no movimento dos corpos: molejo constante, ombros sempre se movimentando, braços grandes e flexionados<br />

e ondulando, mãos abertas ou em punhos, pés leves no chão, joelhos flexionados. O gestual de cada orixá era muito parecido com<br />

o que a gente faz na aula, mas era executado de maneira mais leve, menos exagerado, não para palco” (27 Junho 2009).<br />

Este excerto mostra como a postura corporal dos Orixás dançando no terreiro de Candomblé tem muitos elementos presentes na<br />

corporeidade do dançarino de dança Afro, como o molejo, a movimentação dos ombros, joelhos e braços flexionados etc. Muitas<br />

vezes Eliete levou seus dançarinos para assistir a festas públicas de Candomblé, para poder fazer um estudo etnográfico e observar os<br />

movimentos e as posturas corporais para poder depois reproduzí-los na sala de aula ou no palco. Entretanto, como escrevi no meu<br />

diário de campo, os movimentos e os gestuais dos Orixás no ritual são geralmente muito mais sutis e menos estilisticamente<br />

trabalhados do que os gestuais que o dançarino treina e ensaia na dança Afro.<br />

Antes de analisar detalhadamente os gestuais, símbolos, mitos e personalidades carragedos por cada principal Orixá do<br />

Candomblé de Ketu, quero terminar esta parte da descrição do ritual mencionando o usual encerramento de uma festa pública, que na<br />

maioria das vezes se estende até 5 ou 6 horas da manhã, tendo o ritual durado a madrugada inteira. Para terminar a roda, depois dos<br />

ogãs ter tocado e cantado várias cantigas para cada Orixá, em uma ordem predeterminada, tocam-se músicas de despedida, até cada<br />

filho de santo incorporado sair de cena, de volta para o quarto de arrumação. O ritual acaba e a confraternização informal começa<br />

entre os que participaram ativamente e os que estavam observando. Geralmente é servida uma comida típica do santo homenageado na<br />

festa, junto com bebida, doces e lembrancinhas. Todo mundo senta e descontrai, come, bebe e conversa geralmente sobre a festa que<br />

acabou de acontecer ou sobre temas relacionados ao Candomblé. Durante uma destas confraternizações, após uma festa de Iemanjá em<br />

Nova Iguaçu, os comentários foram sobre a importância do ogã e dele tocar o ritmo certo: “a leveza dos atabaques é o que faz o<br />

candomblé” disse um dos participantes do ritual. Além de ressaltar a importância da música e do ritmo, foram feitos vários<br />

comentários sobre a dança dos Orixás. Todos admiravam a leveza do Orixá e diziam que o fato de um Orixá ser bonito ou não


dependia de como dançava, e a leveza e sutileza pareciam ser o que determina a beleza da dança (diário, 9 Maio 2009). É interessante<br />

apontar que, durante as aulas de dança Afro, Eliete também ressalta a importância da execução de movimentos leves e sutis durante a<br />

dança de Orixás. Vamos analisar agora como estes e outros elementos são importantes na dança de Orixás, tanto no contexto sagrado<br />

quanto no profano.<br />

Os Orixás e Suas Danças<br />

Trazidos por navios negreiros<br />

Do solo africano para o torrão brasileiro<br />

Os negros escravos<br />

Que entre gemidos e lamentos de dor<br />

Traziam em seus corações sofridos<br />

Seus Orixás de fé<br />

Hoje tão venerados no Brasil<br />

Nos rituais de Umbanda e Candomblé<br />

Neste terreiro em festa<br />

Entre mil adobás<br />

Prestamos nosso tributo<br />

Aos Orixás<br />

Clara Nunes, “Tributo aos Orixás”<br />

Composição: Mauro Duarte / Noca / Rubem Tavares<br />

Os Orixás são deuses africanos estritamente ligados às forças sagradas da natureza e portadores da energia vital presente no<br />

universo e dentro de cada um de nós. Cada Orixá portanto é considerado ser o rei ou rainha de um elemento da natureza, e possui uma<br />

personalidade própria relacionada às manifestações destas forças da natureza que afeta sua maneira de se movimentar e de dançar.<br />

Estes tratos da personalidade são chamados de arquétipos dos Orixás, repletos de símbolos a ser entendidos e interpretados. As<br />

características de cada Orixá os aproxima dos seres humanos, pois eles se manifestam através de emoções como nós. Através de seus<br />

gestos, sua indumentária e seus adereços, os Orixás contam suas características e personalidades e suas histórias, seus mitos nagôs.<br />

Como escreve Rosamaria Barbara na sua tese de doutorado, “muita importância é dada à manifestação e às posturas que o orixá toma<br />

porque, através delas, entende-se quem ele é e qual é a sua história mítica, e qual sua função cósmica e social” (Barbara, 2002, p. 111).<br />

Existem vários Orixás, mas no Brasil só reverenciam-se os mais conhecidos. Neste trabalho, farei uma descrição dos Orixás que, além<br />

de ser mais conhecidos, são os que estudei e ensaiei nas aulas de dança Afro e que observei manifestados nas festas públicas de<br />

Candomblé. Por cada um destes Orixás, incluirei os arquétipos, os mitos principais, os símbolos tais quais indumentária, cores e<br />

adereços, e especialmente os gestuais e movimentos típicos da dança de cada um, pois é a dança que, como escreve Rosamaria<br />

Barbara “representa a vida do Orixá, é a ilustração viva das palavras das cantigas, que são audíveis com a música, a qual dirige e<br />

coordena a dança” (Barbara, 1995, p. 75). A música e a dança expressam o caráter do Orixá e os acontecimentos da sua vida: “Os<br />

Orixás dançam a música que conta os acontecimentos das suas vidas” (Ibidem, p. 77). Focando portanto nas danças e gestuais de cada<br />

Orixá, contarei seus mitos começando por Exu, que é o primeiro a ser honrado no Candomblé, pedindo licença para continuar com a<br />

descrição dos outros Orixás, que dividirei em grupos segundo o elemento da natureza ao qual mais pertencem, pois “a forma da<br />

gestualidade das danças dos Orixás imita a forma das energias da natureza que representa” (Ibidem, p. 85).


Em cada elemento da natureza vejo um Orixá: quando os bailarinos dançam, viram<br />

água, mata, encruzilhadas e tudo com muita luz.<br />

Rubens Barbot<br />

EXU<br />

Laroiê!<br />

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Exú Orixá, conhecido também como Exú Elegbara, é o deus dos caminhos e da comunicação entre o Orum (mundo dos<br />

deuses) e o Aiye (mundo material). Ele é astucioso, brincalhão, e possui dois lados, o positivo e o negativo, que na cosmogonia Iorubá


não são opostos; ao contrário, ambos fazem parte da natureza humana e convivem no Orixá Exu. Como explicam alguns dos seus<br />

mitos, Exu tem a capacidade de criar mal entendidos e confusões entre as pessoas, e arruma-lhes várias armadilhas. Esta característica<br />

é exemplificada por um dos seus mitos onde conta-se que Exu pintou metade de seu corpo de preto e a outra de vermelho (as cores<br />

que o representam) e apostou com dois amigos de acertar a sua cor para poder ganhar uma recompensa. Mas os dois estavam vendo<br />

somente um dos lados do corpo do Exu e acabaram brigando, enquanto Exu ria satisfeito (Ligiéro, 2006, p. 56).<br />

Esta personalidade confusa e brincalhona manifesta-se na dança desse Orixá. É<br />

muito raro achar alguém que seja filho de santo de Exu, e é portanto difícil ver a dança<br />

deste Orixá incorporado em alguém. Durante uma festa pública de Iemanjá em Nova<br />

Iguaçu, tive a sorte de observar um Exu Orixá, e fiquei muito impressionada com seus<br />

movimentos:<br />

“Junto com Iemanjá entrou Exu, com uma vara na mão e umas folhas nas costas.<br />

Ele acompanhava as Iemanjás de maneira muito calma até chegar a sua hora de<br />

dançar, quando começou a executar movimentos muito rápidos e agitados, saindo<br />

até do barracão; ele se locomovia com giros descontrolados, com os ombros<br />

sempre se movimentando, os braços executando movimentos amplos. Sua dança<br />

era imprevisível, sem regras, possuindo uma grande variedade de movimentos.”<br />

(9 Maio 2009)<br />

Os movimentos “descontrolados”, “agitados” e “sem regra” de Exu refletem sua<br />

personalidade. O corpo mostra uma postura impulsiva, rápida, difícil de controlar. Antes<br />

de ir assistir esta festa de santo onde observei a dança de Exu, tinha ensaiado dança de<br />

Orixás no Centro Coreográfico com Eliete e tínhamos estudado Exu entre eles. Durante o<br />

ensaio tive a seguinte experiência:<br />

Os movimentos de Exu são muito rápidos, sem regras, sem definição, mudando<br />

muito. Os passos tinham muita acentuação e um movimento do corpo<br />

descontrolado, como se estivesse quase caindo, confuso. Foi muito difícil dançar<br />

para Exu. (9 Maio 2009)<br />

Segundo as notas de campo, a dança de Exu que tentamos fazer durante o ensaio<br />

expressou, de maneira parecida com a dança do Orixá no terreiro, a personalidade agitada<br />

e descontrolada de Exu. A postura corporal assumida foi também parecida, executando<br />

movimentos rápidos, acentuados, repletos de mudanças improvisas e sem definição.<br />

Observando a dança de Exu no barracão e executando os movimentos deste Orixá no<br />

ensaio de dança, lembrei-me de uma perfomance de dança da companhia mineira<br />

SeráQue?que assisti no CCBB (Centro Cultural Banco do Brasil) do Rio de Janeiro<br />

durante a qual o dançarino e coreógrafo Rui Moreira representou Exu no palco. O corpo<br />

de Rui estava pintado de preto e seus lábios de vermelho, representando as cores de Exu;


ele tinha uma saia feita de folhas que se espalharam pelo palco todo ao rodar. Os ombros<br />

estavam em constante movimento e ele não parava de rodar, com giros muito rápidos e<br />

fortes, transmitindo a sensação de uma entidade poderosa, mesmo para um observador<br />

que não conhecesse a mitologia dos Orixás (diário, 14 Setembro 2008). O corpo que<br />

dança para Exu é portanto um corpo imprevisível, um corpo que gira, um corpo com<br />

acentos, rápido e em contínua mudança.<br />

Terra<br />

OGUM<br />

Ogunhê


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Ogum é o deus da guerra, do ferro, da tecnologia. Ele tem o poder de abrir<br />

caminhos facilitando os progressos da vida. É um bom guerreiro, forte, teimoso e<br />

traballhador. A cor simbolizando Ogum no Candomblé é azul real e seu símbolo é a faca,<br />

o obé, com a qual consegue cortar para abrir os caminhos na sua frente. Seus gestuais são<br />

portanto ligados a este adereço e a sua função: ele movimenta os braços e as mãos como<br />

para cortar algo, ou ainda amolar uma faca, ou partir para a guerra correndo e com a faca<br />

na mão. Ele “dança com ar marcial, agitando sua espada e procurando um adversário para<br />

golpear” (Verger, 1981, p. 94). Nas aulas de dança Afro no ano passado, trabalhamos<br />

muito a corporeidade e os gestuais de Ogum, que representam guerra, força, energia,<br />

ferro. Durante um ensaio Eliete falou: “tem que mostrar esta força no corpo, fazendo tudo


grande, lá em cima, mostrando o rosto, mostrando frieza racional, força!” (diário, 22<br />

Maio 2009). Para poder melhor representar as qualidades de Ogum no corpo, foi<br />

importante ler alguns detalhes sobre sua personalidade e sua história. Ao ler que ele é o<br />

deus da tecnologia, a instrução da Eliete foi:<br />

“Então temos que trabalhar a tecnologia corporal, colocar um<br />

novo design no nosso corpo. A mão é sempre aberta, abrindo os<br />

caminhos com a faca.” (22 Maio 2009).<br />

O “design corporal” do dançarino ao representar Ogum é um que<br />

possue força, determinação, atitude, decisão, intenção. Os movimentos<br />

são sempre executados com a mão aberta, símbolo de algo que corta.<br />

Tivemos algumas aulas de dança onde estudamos especificamente os<br />

gestuais de Ogum e identifiquei alguns movimentos principais.<br />

Primeiro, com os braços semiflexionados, executa-se um movimento de<br />

amolar a faca, posicionando as mãos abertas com as palmas se olhando,<br />

alternando-se, e abrindo horizontalmente a parte anterior do braço. Ao<br />

mesmo tempo, os pés marcam alternadamente para a frente. O segundo<br />

movimento é parecido, mas acontece com deslocamento lateral, e com<br />

uma abertura dos braços maior, chegando estes a se esticar. Após abrir<br />

os caminhos cortando com estes movimentos, Ogum se prepara para a<br />

guerra, com uma mão na frente do corpo e a outra do lado, virando a<br />

palma para cima e para baixo, e executa uma corrida para a frente no<br />

contratempo. Depois de correr, ele pára e gira rapidamente sobre o<br />

próprio eixo, ou executa um movimento com as duas mãos cortando em<br />

cima e em baixo. Para voltar para trás, Ogum pula com uma perna só,<br />

chutando com a outra para a frente e martelando com um pulso no<br />

outro com os braços esticados no alto. Todos estes movimentos são<br />

muito fortes, e assumem mais força ainda quando executados com o<br />

toque de Ogum, que é um ritmo muito rápido e energizante. Quando


Ogum entra em cena, é como se uma energia indo para a frente e<br />

abrindo espaços tivesse chegado. O corpo dançando para Ogum é<br />

determinado, mostra intenção, força e energia; é um corpo pronto para<br />

lutar e ir para guerra, aberto, erguido e para a frente.<br />

OXOSSI<br />

Okê arô<br />

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Oxossi é deus da caça, dos matos e florestas, protetor dos animais. Ele vive no<br />

mato, é um espírito livre e em harmonia com a natureza. O símbolo que ele carrega é o<br />

ofá, o arco com a flecha, instrumento que ele usa para caçar nas florestas. A imagem de


caçador é sem dúvida o emblema de Oxossi. Uma das lendas de Oxossi fala que,<br />

desrespeitando a proibição de caçar num determinado dia, não cumprindo assim a<br />

determinação de Ifá, Oxossi seguiu seu caminho em direção à floresta. Caminhando pela<br />

mata, Oxossi encontrou uma serpente, que era Oxumarê, e matou ela. Em casa, preparou<br />

uma comida com o fruto de sua caça e devorou-a rapidamente. No dia seguinte, quando<br />

Oxum, sua esposa, voltou para casa, encontrou Oxossi morto, com ao seu lado um rastro<br />

de cobra. Desesperada, Oxum procurou Orunmilá que ouviu seu pleito, fez renascer<br />

Oxossi como orixá protetor de todos os caçadores (Prandi, 2001, p. 115).<br />

O principal símbolo corporal na dança desse Orixá é a<br />

reprodução do ofá com as mãos, onde elas estão de punho fechado<br />

menos os dedos indicador e polegar das duas mãos, e onde coloca-se o<br />

dedo indicador direito em cima do polegar esquerdo. Qualquer outro<br />

movimento executado mantendo este gestual indica que quem está<br />

dançando é Oxossi. Durante uma aula de dança no Circo Voador,<br />

fizemos um exercício no qual tínhamos que representar uma frase<br />

através do corpo. Duas alunas da aula receberam uma lenda de um<br />

guerreiro que conseguia matar o animal com suas armas secretas.<br />

Enquanto esta lenda estava sendo contada por uma delas, a outra<br />

encenou o gestual do arco e flecha de Oxossi aqui explicado (diário, 15<br />

Junho 2009).<br />

Além do gestual típico, Oxossi se locomove com uns passos muito<br />

sincopados, colocando um pé para frente e depois para trás, para depois<br />

fazer um meio giro e alternar as pernas do outro lado. Enquanto isso, os<br />

braços acompanham o movimento mantendo o gestual das maõs, e os<br />

joelhos estão constantemente flexionados, com molejo sempre presente.<br />

O movimento dos pés é também executado com as mãos em punhos<br />

fechados, se movimentando ao lado do corpo, como se o Orixá estivesse<br />

andando a cavalo. O ritmo compassado típico de Oxossi chama-se de


aqueré, e guia de maneira muito marcada os passos do Orixá. Os outros<br />

movimentos de Oxossi incluem imitar movimentos de caça como por<br />

exemplo apontar o arco, simbolizado pelo dedo indicador, para todas as<br />

direções. Para poder caçar, Oxossi também se deita no chão com o<br />

corpo alongado e aponta seu arco e flecha para frente. A cor que<br />

representa Oxossi é verde ou azul claro, utilizadas nas suas roupas. A<br />

personalidade deste Orixá é livre, curiosa, solitária, sempre em busca de<br />

algo e determinado a achá-lo. O corpo na dança de Oxossi é um corpo<br />

muito ágil, rápido e esperto, um corpo que está sempre alerto, em<br />

movimento e à procura, que está em contato com a natureza e bem<br />

plantado na terra, seu elemento chave.<br />

OSSAIN<br />

Ewê Ô


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Ossain é o deus das folhas, deus da sabedoria das plantas<br />

medicinais e das curas possíveis através da natureza. Está<br />

profundamente ligado com a imagem da floresta e possui um enorme<br />

respeito para a natureza. Seu símbolo é constituído por sete lanças com<br />

um pássaro em cima delas, considerado como o símbolo do poder deste<br />

Orixá, pois é seu mensageiro, que colhe informação por todo lado e<br />

volta para fazer o relato para Ossain (Verger, 1981, p. 122). É um orixá<br />

dinâmico, brincalhão, mas que possue o poder sobre as ervas que


curam, mesmo que este poder seja dividido com Orunmilá, deus do ifá,<br />

ou seja do destino, que detém o poder sobre as palavras que devem<br />

acompanhar as plantas no momento da seu uso (Verger, 1981, p. 123).<br />

Ossaim anda sempre em companhia de Aroni, um anãozinho de uma<br />

única perna que fuma eternamente um cachimbo e que no brasil foi<br />

associado com a figura popular do saci-pererê, personagem de uma<br />

perna só que anda pulando e vive na floresta em liberdade. Segundo<br />

uma lenda:<br />

“Durante uma festa na qual os homens estavam homenageando<br />

Ossaim, chegou um homem estranho, de traje e modos nobres,<br />

montado em um antílope. Os homens não o reconheceram mas o<br />

receberam muito bem, pois parecia ser alguém importante, a<br />

pesar de ter uma perna só. A festa continuou muito animada e o<br />

estranho homem era oo que mais dançava. Ele parecia nunca se<br />

cansar. Quando ele já havia dançado a noite toda, se despediu<br />

falando. Foi assim que os homens descobriram que era Ossaim.<br />

Ossaim gosta de passar despercebido. Ossaim também gosta de<br />

fazer surpresas. Ele viera dançar com os homens e quem sabe<br />

levaria os seus pedidos aos outros orixás” (Prandi, 2001, p.158).<br />

O corpo que dança para Ossain é um corpo dinâmico, rápido e que<br />

executa muitos movimentos. Os movimentos incluem giros, mudança de<br />

direção, e pulos com uma perna só, lembrando sua associação com<br />

Aroni. É um corpo que surpreende, combinando com sua personalidade<br />

revelada pela mitologia do orixá.


OMOLU (OBALUAIÊ)<br />

Atotô


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Omolu, ou Obaluaiê é o deus da varíola, das doenças contagiosas e especialmente<br />

das doenças de pele. Ele é relacionado com todas as doenças e é o dono das curas. É um<br />

Orixá muito severo, considerado o senhor da terra e da vida e da morte. Sua ira pode<br />

trazer doenças, por isso é um Orixá muito temido. Omolu é filho de Nanã, que abandonou<br />

ele por causa da varíola que marcava seu corpo, e foi adotado por Iemanjá que teve pena<br />

dele. Uma lenda conta que Iemanjá encarregou Iansã de trazer-lhe uma esteira todo dia<br />

para curar o sofrimento de Omolu, que conseguiu curar-se, mas, mesmo assim, não se<br />

esquece de atender a quem precisa (Pessoa de Barros, 2000). Para esconder suas feridas,<br />

Omolu está coberto da cabeça aos pés por uma vestimenta de palha da costa. Ela cobre,<br />

de forma cônica toda a cabeça do Orixá, alongando-se até os pés, que, junto com os


aços são as únicas partes do corpo deixadas nuas. Além da indumentária singular, o<br />

símbolo de Obaluaiê é o xarará, objeto formado pelas nervuras das folhas de palmeira,<br />

amarradas com tiras de couro e decorado com figuras de búzios, com o qual ele varre a<br />

peste para longe de nós (Pessoa de Barros, 2000). Umas cabaças são penduradas ao seu<br />

ápice, contendo os óleos e remédios deste “médico dos pobres”.<br />

Omolu dança seu ritmo específico, o opanijé, andando para direita e para<br />

esquerda, com três passos para cada lado. Ao mesmo tempo, as mãos espalmadas<br />

movem-se alternadamente para o alto (significando vida) e para baixo (significando<br />

morte), a cada movimento de braços que avançam e se recolhem (Pessoa de Barros,<br />

2000). O ritmo de Omolu tem uma cadência firme e marcada, e os movimentos são<br />

portanto lentos e cadenciados. Na festa pública de Candomblé observei Omolu entrar<br />

todo coberto de palha da costa, executando o movimento da mão aqui a pouco descrito,<br />

andando de maneira compassada e com muito molejo do corpo. Nas aulas de dança,<br />

reproduzimos este movimento típico de Omolu, prestando muita atenção ao molejo<br />

cadenciado do corpo, à posição inclinada para a frente e ao movimento significativo da<br />

mão. Nos ensaios exploramos outros movimentos de Omolu, nos quais as mãos ficam<br />

tremendo enquanto o corpo executa um giro de um lado e de outro e, a cada giro, os<br />

braços são jogados para o alto, como para expulsar as doenças do corpo (diário, 5<br />

Setembro 2009). Ao dançar Omolu a sensação do corpo é de tremor, para expulsar tudo<br />

de ruim e doente de dentro. É uma sensação também de vergonha e indignação por ter<br />

sido abandonado. O corpo que dança para Omolu está muito ligado à terra, tendo<br />

momentos nos quais até se ajoelha e bate com o punho fechado no chão, na terra, seu<br />

elemento natural. É um corpo que anda pausadamente, com um molejo bem acentuado,<br />

como para marcar o alto e o baixo, representando mais uma vez a vida e a morte.<br />

OXUMARÊ


Aoboboi<br />

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Oxumarê é deus do arco-iris, e é também representado como serpente. Durante<br />

seis meses ele é homem e durante seis meses é mulher. Seus elementos são também<br />

duplos, pois representa as riquezas do subsolo mas ao mesmo tempo tem a função de<br />

levar a água para o céu. É portanto o Orixá da dualidade, com personalidade ambígua e<br />

incostante. Como arco-iris, ele representa a beleza, e a ponte entre o céu e a terra. Como<br />

cobra, ele representa a traição e o perigo (Ligiéro, 2006). Ele é irmão de Omolu, filho de<br />

Nanã, com os quais compartilha o elemento terra. Uma lenda conta da transformação de<br />

Oxumarê em cobra para escapar a Xangõ:


“ Oxumarê era um rapaz muito bonito e invejado. Suas roupas tinham todas as<br />

cores do arco-iris e suas jóias faiscavam de longe. Um dia, Xangô viu Oxumarê<br />

passar com suas cores e seus brilhos mas conhecia a fama do orixá de não deixar<br />

ninguém dele se aproximar. Assim preparou uma armadilha para capturar o arcoiris.<br />

Uma vez que Oxumarê entrou no palácio de Xangô, os soldados aprisionaram<br />

ele. Desesperado, Oxumarê pediu a ajuda de Olorum, que, ouvindo-o,<br />

transformou-o numa cobra, que Xangô largou com nojo e medo. A cobra deslizou<br />

pelo chão em movimentos rápidos e sinuosos, escapando e livrando-se do assedio<br />

de Xangô” (Prandi, 2001: 226).<br />

Sua dança é imprevisível e difícil de ser definida, assim como sua personalidade.<br />

Durante a dança de Oxumarê, o corpo se move de maneira sinuosa, se contorcendo e<br />

formando curvas e ondulações, simulando o corpo de uma cobra. As mãos são juntas e<br />

pontudas, para representar a cabeça da serpente. Muitas vezes movimentam-se somente<br />

as mãos nessa forma, mexendo-se rapidamente e de maneira improvisa, como se fosse<br />

um animal vivo. Com os braços e as mãos ele mostra o céu e a terra, referindo-se à sua<br />

dualidade, e movimenta-se rastejando no chão. A expressão facial é também muito<br />

trabalhada na dança de Oxumarê, mexendo a língua dentro e fora da boca, como cobra<br />

faz, e olhando com olhos pequenos e traiçoadores. O corpo que dança para Oxumarê é<br />

sinuoso e alongado, sempre representando uma cobra. É um corpo que rasteja no chão e<br />

que mostra o céu ao mesmo tempo, um corpo duplo e incostante, lindo e perigoso ao<br />

mesmo tempo.<br />

NANÃ


Saluba<br />

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Nanã é a deusa da terra, da lama, dos pântanos. É a mais velha divindade do<br />

panteão afro-brasileiro e é considerada guardiã da sabedoria e mãe dos mortos. É a mãe<br />

mítica de Oxumarê e Omolu mas, como ela pariu estes Orixás com formas monstruosas,<br />

abandonou eles, tentando afogá-los na lama, e eles foram salvos por Iemanjá, que teve<br />

pena, adotou-os e cuidou deles (Ligiéro, 2006, p. 82). A personalidade de Nanã é de uma<br />

mulher sábia mas terrível, severa e controladora, autoritária e pronta a ensinar para os<br />

mais jovens, mas também a puní-los se não respeitar as regras. Ela está intimamente<br />

ligada ao culto dos egunguns, ou seja os espíritoss ancestrais do povo-de-santo, e é


venerada e respeitada por isso. As cores de Nanã são branco e roxo ou lilás claro; ela<br />

veste uma coroa (adê) bordada em palha-da-costa e búzios, e seu símbolo é o ibiri, cetro<br />

feito de fibras vegetais com o formato da letra jota.<br />

Nanã dança de maneira delicada, com ritmo lento, passos curtos, corpo cansado e<br />

curvado para frente, como o de uma velhinha fatigada. Ela se movimenta como se<br />

estivesse andando na lama, movimentando o quadril de um lado e outro enquanto em<br />

posição agachada, com os braços flexionados na frente do corpo, mãos espalhadas<br />

mexendo-se de maneira circular, como para mexer a lama. As costas são curvadas e<br />

quando para, o Orixá movimenta os braços e as mãos como se estivesse colocando algo<br />

em um recipiente. Durante uma coreografia de Nanã que executei em um ensaio de<br />

dança, após andar com o movimento de quadril e dos braços apenas descrito, sentei no<br />

chão, e com as mãos toquei o chão com força, como para pegar a lama, e esfreguei as<br />

mãos no rosto e nos braços, simbolizando o molde do ser humano com a lama. Neste<br />

momento senti o próprio contato com o chão, a força que vinha da terra e subia para o<br />

corpo, o poder que a terra e a lama têm de moldar o corpo (diário, 23 Maio 2009). O<br />

corpo de Nanã na dança é um corpo ancião, que anda curvado, com leveza e devagar. É o<br />

corpo de uma senhora que modela o ser, um corpo que anda na lama com dificuldade e<br />

que está ligado à terra, mostrando este contato nos seus gestuais, na sua postura e nos<br />

seus movimentos.<br />

Fogo


XANGÔ<br />

Caô Cabiessi<br />

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Xangô é o rei do trovão e da justiça. Ele foi rei da cidade de Oyó, e<br />

sua imagem é de um guerreiro valoroso, viril, e poderoso. Ele não tolera<br />

crime algum pois é o deus que resolve todas as questões da justiça. Tem<br />

controle sobre raios e trovões, forças violentas e foguentas do céu. Além<br />

de rei poderoso, Xangô sempre foi a imagem do conquistador, e casouse<br />

várias vezes; entre suas mulheres estão Obá, Oxum e Iansã, entre as


quais houve várias brigas por causa do rei da justiça. Suas cores são o<br />

vermelho, ou marrom, e o branco. Seu símbolo é um machado de duas<br />

láminas chamado oxé, representando a justiça. A personalidade de<br />

Xangô é então muito forte e resoluta; ele gosta muito do poder, e sabe<br />

que ele tem muito.<br />

A postura corporal, os gestuais e os adereços de Xangô mostram<br />

todo esse poder. Durante uma oficina de dança Afro em Salvador, antes<br />

de executar os movimentos, a professora nos contou os tratos e a<br />

mitologia de Xangô para poder incorporá-lo melhor:<br />

“Ele é o rei e carrega 12 coroas de ouro, por isso precisa segurá-las e erguer a cabeça bem alta; nunca olha para baixo. O peito fica<br />

sempre aberto para mostrar imponência. Ele tem machados nas mãos e segura eles com os braços abertos. Tudo é muito forte.<br />

Alguns movimentos dele representam quando ele atira pedras de fogo e raios, pois ele é o deus do fogo e dos trovões. O seu giro<br />

representa um tornado poderoso, nada é leve com ele.” (27 Janeiro 2009)<br />

A postura corporal que se precisa assumir ao dançar Xangô é portanto uma postura ereta, erguida, imponente, com peito estufado e<br />

aberto, ombros e braços grandes, força nas posições. Este Orixá se locomove andando muito rapidamente para a frente com um passo<br />

específico executado no contratempo, movimentando os braços para trás de um lado e outro do corpo, de maneira oposta ao pé que vai<br />

para trás enquanto o outro fica na frente. Este movimento requer uma incrível coordenação motora, e é muito difícil para o dançarino<br />

executá-lo perfeitamente, especialmente no começo da aprendizagem da dança Afro. O que torna o passo ainda mais complicado são<br />

os ritmos extremamente rápidos de Xangô, como o bata ou o alujá, ritmos vivos e guerreiros. Uma outra maneira de se movimentar, é<br />

para os lados, cruzando as pernas e jogando raios com os braços em baixo e em cima. Quando o rei pára, muitas vezes fica segurando<br />

os machados nos punhos fechados com os braços abertos e começa a girar rapidamente, levantando os braços e parecendo um<br />

“tornado poderoso”.<br />

Ao observar a dança de Xangô no terreiro de Candomblé, reparei as mesmas características da postura e os mesmos<br />

movimentos e gestuais, só menos enfatizados e menos marcados. Durante a festa da inauguração do terreiro de R., tiveram três<br />

pessoas que incorporaram Xangô e foi interessante ver os estilos diferentes, mesmo dançando os mesmos movimentos. Um dele<br />

gritava constantemente e mudava sua expressão facial toda hora, chegando a contorcer nariz, olhos e boca. Uma outra mulher<br />

movimentava muito os ombros e as costas, com movimentos muito ondulatórios, e prosseguia na caminhada do contratempo de Xangô<br />

de maneira muito rápida mas leve (diário, 27 Junho 2009).<br />

A representação do Orixá dos trovões nas apresentações de dança Afro mostra seu caráter através de seus gestos e do seu<br />

corpo dançante. No espetáculo “O Reino do Outro Mundo: Orixás”, a Cia Barbot de dança, fez uma leitura contemporânea dos Orixás.<br />

Mesmo com músicas contemporâneas e movimentos estilizados, foram mantidos muitos símbolos que representavam de maneira<br />

exaustiva o Orixá dançando no palco. Quando chegou a hora de Xangô dançar, foi uma explosão de simbologias e corpos contando os<br />

mitos nagô dos deuses africanos. O dançarino entrou em cena com sua indumentária vermelha e branca, segurando e ostentando os<br />

machados nas mãos, com cabeça erguida e peito aberto, entrando com toda velocidade como um furacão. O olhar era de rei, firme; os<br />

giros eram rápidos e os pés movimentavam-se rapidamente no contratempo. De repente, Xangô pegou um recipiente com fogo e<br />

dançou na sua postura segurando seu elemento natural. Muitas vezes o dançarino lançava um grito potente, como para afirmar quem é<br />

o poderoso rei. No final da performance de Xangô, ele também contracenou com Oxum e Iansã, duas de suas mulheres, que ficaram<br />

adorando o conquistador uma de cada lado (diário, 9 Julho 2009). Estes três corpos, com seus símbolos de indumentárias, cores,<br />

adereços e gestuais, contaram sem usar palavras um mito que faz parte da história e cultura Iorubá e afro-brasileira. Além disso, a


dança transmitiu claramente a personalidade do Orixá. Nesse caso, o corpo na dança de Xangô é um corpo firme, erguido, imponente<br />

e poderoso, um corpo que tem fogo dentro de si e que irradia esta energia quente e atrevida ao dançar.<br />

Ar<br />

OXALÁ<br />

Epa babá<br />

Oxalá é o pai de todos os homens, e pai de muitos Orixás também. É deus da<br />

criação e símbolo de todas as coisas. Ele é sábio, autoritário e representa a criação e a<br />

masculinidade. O branco total é sua cor, símbolo da pureza e da totalidade. Sua<br />

personalidade possue dois aspectos diferentes. Um dele é um Orixá jovem, guerreiro,<br />

criador da cultura material, chamado Oxaguiã, e o outro é um Oxalá velho, sábio,<br />

cansado, chamado de Oxalufã. Os dois têm personalidades e tratos diferentes, e suas<br />

danças e posturas corporais são bem distinctas também.<br />

Oxalufã


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Este é o Orixá velho, lento, cansado, que é sempre reverenciado ao fim de cada<br />

festa de Candomblé. Seu símbolo é o paxorô, o cajado no qual se apoia para dançar. Ele<br />

se movimenta ao ritmo do igbi, um toque compassado, lento, que combina com os<br />

movimentos pequenos e lentos do pai da criação. Um mito conta a origem da posição<br />

curvada de Oxalufã:<br />

“Oxalá foi consultar os adivinhos para saber como conduzir melhor sua vida. Os<br />

velhos aconselharam-no a oferecer aos outros deuses uma cabaça grande cheia de<br />

sal e um pedaço de pano, para não passar vergonha na terra. Oxalá como era<br />

muito teimoso, deu de ombros aos conselhos e foi dormir sem cumprir o<br />

recomendado. Durante a noite, Exu entrou em sua casa trazendo uma cabaça cheia<br />

da sal, amarrando-a às costas de Oxalá, que jazia em profundo sono. Na manhã<br />

seguinte, Oxalá despertou corcunda e desde então tornou-se o protetor dos<br />

corcundas, albinos, aleijados e lhe foi proibido o consumo de sal.” (Prandi, 2001,<br />

p. 512).<br />

Durante a dança, Oxalá velho não sai da posição curvada, dá três passos para a frente e<br />

para, tremendo o corpo todo, sempre segurando o cajado com as mãos na sua frente. A


indumentária de Oxalufã é totalmente branca, com decorações prateadas. Usa uma saia<br />

comprida e um filá de contas encobrindo seu rosto. Outro mito explica porque Oxalá usa<br />

estes últimos dois detalhes, geralmente usados pela Iabás (Orixás femininos). Segundo<br />

este mito, Oxalá foi visitar Nanã, que tem controle sobre os eguns (espíritos dos mortos)<br />

e com o passar dos dias seduziu Nanã para que lhe mostrasse o quarto dos eguns. Um<br />

dia, na ausência de Nanã. Oxalufã vestiu-se de mulher e foi ter com os eguns, chamandoos<br />

exatamente como Nanã fazia, ordenando-lhes que deveriam obedecer a partir dali<br />

somente ao homem que vivia na casa da rainha. Em seu retorno Nanã tomou<br />

conhecimento do fato ficando zangada com o velho rei e foi assim que rogou uma praga<br />

no velho rei que partir dali nunca mais usaria vestes masculinas. Por isso até hoje Oxalufã<br />

veste-se com saia cumprida e cobre o rosto como as deusas rainhas. O corpo que dança<br />

para Oxalufã é um corpo velho, cansado, curvado, e se movimentando lentamente,<br />

pausando e se tremendo. É um corpo que mostra a idade e a calma do Orixá pai de todos<br />

os homens.<br />

Oxaguiã


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Oxaguiã é a versão jovem de Oxalá. Ele foi criador da cultur material e inventou o<br />

pilão, que é um dos seus símbolos. Ele é um guerreiro, simbolizado portanto também por<br />

uma espada de prata. O Orixá possui uma personalidade criativa, intrépida, mas ao<br />

mesmo tempo pacata e paciente. Um mito de Oxaguiã conta que:<br />

“Oxaguiã, que gostava muito de guerra voltava para a sua cidade quando viu que<br />

ela estava muito vazia…soube então que parte do seu povo fora levado e<br />

escravizado…cheio de raiva vai à foresta e arranca uma imensa árvore e vem sobe<br />

seu tronco até o Brasil…no meio do mar encontra uma linda mulher, Iemanjá-<br />

Ogunté, guerreira como ele…fazem um filho Ogunjá…e os três chegam à Bahia<br />

para lutar juntos pela sua gente…” (Pessoa de Barros, 2000, p. 126).


Este mito mostra o espírito guerreiro, intrépido e aventureiro do Oxalá jovem. A dança<br />

de Oxaguiã é muito leve. Os movimentos são sutis, com os pés se movimentando<br />

lateralmente e os braços são puxados de um lado e outro do corpo. Pelo que pude<br />

observar durante meu tempo no campo, a dança de Oxaguiã é caracterizada por<br />

movimentos pequenos e leves, tanto no terreiro quanto no contexto da aula de dança. O<br />

corpo que dança Oxaguiã tem uma forma simples, limpa, é um corpo que desliza no chão<br />

e se movimenta com extrema leveza e calma, mas não com lentidão. É um corpo jovem,<br />

que tem atitude e tranquilidade, um guerreiro da paz.


IANSÃ (OU OYÁ)<br />

Eparrei<br />

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Iansã é a deusa dos raios, do vento e da tempestade. Ela cuida também dos eguns,<br />

os espíritos dos mortos, levando-os ao outro mundo. Ela é uma mulher forte, abusada,<br />

corajosa e espalhafatosa. Ela foi uma das esposas de Xangô e o acompanha na guerra.<br />

Iansã é impulsiva e impetuosa, determinada, audaciosa e autoritária. Seu símbolo é a<br />

espada e um espanta-mosca feito de rabo de cavalo, chamado eruquerê, com o qual<br />

espanta os eguns. Sua cor é o vermelho, cor forte, agressiva e sedutora, assim como a<br />

deusa do vento e da tempestade. A intensidade destas forças da natureza é espressa nos


movimentos do corpo que dança para Iansã, um corpo rápido, que se mexe com agito e<br />

como se fosse ventanias.<br />

A dança de Iansã envolve muito movimento de quadril, pés rápidos, apenas<br />

tocando no chão antes de se levantar rapidamente; assim como o vento, Iansã parece voar<br />

no espaço onde dança. Os braços são amplos, rápidos, girando para trás e colocando as<br />

mãos nas cadeiras. Ao dançar, Iansã executa muitos giros rápidos e suspende muito as<br />

mãos para o alto, executando um movimento típico, no qual mexe as mãos espalmadas<br />

como para afastar os eguns. Em outros momentos, Iansã pode ser sensual, provocando os<br />

homens ao colocar as mãos nas cadeiras, levantar e movimentar a saia e remexer as<br />

cadeiras. Sua dança é sempre frenética e o seu ritmo, o Ilu, é sempre acelerado. Seu passo<br />

principal, o quebra-pratos é extremamente rápido e acentuado, e consiste em arrastar um<br />

pé no chão seguido de um contratempo, repetindo este movimento ora com um, ora com<br />

outro pé (Zenicola, 2003, p. 108). No terreiro de Candomblé, Iansã executa todos estes<br />

movimentos, utilizado o eruquerê também para chicotear suas costas. Sua dança é agitada<br />

e rápida, acentuada e impetuosa. Quando esta dança é trazida para o palco, os elementos<br />

típicos da personalidade e da corporeidade de Iansã são evidenciados mais ainda.<br />

Nas aulas e ensaios de dança Afro, os gestuais e movimentos da deusa do vento<br />

são usados para uma coreografia do grupo CorpAfro, chamada de “Mulheres guerreiras”.<br />

Durante os ensaios, trabalhamos muito cada gestual e olhar da mulher guerreira,<br />

começando por uma caminhada ampla, com mãos nas cadeiras, mostrando “atitude e<br />

carão”, como Eliete sempre fala. Parando com firmeza, o dançarino, ou neste caso, as<br />

dançarinas, como é uma coreografia de só mulheres, mexem os ombros com as mãos nas<br />

cadeiras e olham para cima do ombro. Em seguida chega o giro de Iansã: é uma ventania<br />

rápida em baixo, com as mãos “espantando” em cima. Na hora de andar para trás, as<br />

dançarinas movimentam as cadeiras colocando uma perna para trás, alternadamente, e<br />

girando o braço rapidamente fazendo um giro e terminando com a mão na cadeira<br />

novamente. Para sair de cena, Iansã corre com o passo do quebra-pratos, passando como<br />

o vento e saindo. Comentando sobre estes movimentos Eliete falou:<br />

“Ela (Iansã) é uma mulher impulsiva, corajosa, que se movimenta com rapidez,<br />

agilidade, energia, determinação e atitude. Os movimentos refletem a<br />

personalidade do Orixá e isso dá mais sentido à coreografia das mulheres<br />

guerreiras. A gente faz estes gestos todo dia sem perceber” (18 abril 2009).


Este comentário mostra como os gestuais da dança dos Orixás fazem parte do nosso dia a<br />

dia e são incorporados nas atitudes e nos rituais cotidianos. Ao mesmo tempo, são estas<br />

atitudes de todo dia que são incorporadas na dança de Orixás, reforçando a história e a<br />

personalidade de uma mulher guerreira. Falando nisso, uma performance que assisti no<br />

teatro Glaucio Gil de Copacabana representou exatamente o arquétipo de Iansã como<br />

mulher guerreira através dos seus símbolos:<br />

“Ao entrar no teatro, o palco era todo cheio de elementos vermelhos: areia<br />

vermelha no chão, colar de bolas vermelhas, vaso e sapatos vermelhos, e a atriz<br />

era uma mulher negra com um vestido vermelho e batom vermelho. O espetáculo<br />

inteiro foi cheio de referências a Iansã, e os elementos do vermelho e do vento<br />

estavam sempre presentes. Durante a performance, a atriz contou histórias de<br />

várias mulheres guerreiras e falou sobre raça e identidade negra. Teve momentos<br />

de dança nos quais os gestuais de Iansã foram utilizados, como o movimento de<br />

ventanias para trás ou o sacudir as mãos espalmadas afastando os eguns.” (16<br />

Outubro 2009)<br />

A simbologia da deusa do vento está presente em cada elemento desta perfomance que,<br />

através do corpo, seja enquanto dança, ou enquanto cores e elementos naturais, é o corpo<br />

de uma mulher guerreira, um corpo forte, impulsivo e determinado, um corpo que tem<br />

atitude, que luta, que se movimenta como o vento, um corpo “vermelho”, que desafia e<br />

obtém o que deseja.


Àgua<br />

YEMANJÁ<br />

Odoya


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Yemanjá é a figura maternal, rainha do mar e mãe de todos os seres humanos e<br />

dos peixes. Ela é representada com uma sereia e associada as ondas do mar. Sua<br />

personalidade é de mãe: protetora, cuidadosa dos seus filhos e muito emocional. Na<br />

mitologia Iorubá, ela gerou vários Orixás junto com Oxalá, sendo a segunda esposa dele<br />

depois de Nanã. Yemanjá representa a fertilidade e fecundidade, e é um dos Orixás mais<br />

populares no Brasil. Muitas oferendas são feitas para esse Orixá, geralmente colocandoas<br />

em barcos e levadas para o mar. As cores simbolizando Yemanjá são o azul claro e o<br />

branco, as cores das águas do mar. Seu símbolo é um espelho e peixes prateados, que são<br />

geralmente colocados na sua roupa.


A dança de Yemanjá reflete sua personalidade maternal e seu elemento natural<br />

das àguas do mar. A dança de Yemanjá se destaca por movimentos de oscilação,<br />

ondulação e flutuação (Martins, 2008, p. 94). As mãos na dança da rainha do mar estão<br />

em um fluxo contínuo e os braços ficam se movimentando como se fossem ondas do mar.<br />

O ritmo é também parecido com o ritmo dos oceanos, e Yemanjá dança parecendo<br />

acariciar as ondas do mar. Além da leveza e ondulação da água, Yemanjá também<br />

representa a fertilidade através de sua dança. Ela movimenta a pélvis ao dançar, símbolo<br />

da reprodução e germinção. Ao se olhar no espelho, ela representa a beleza, mas uma<br />

beleza calma e pacífica. Nas festas públicas observadas, os filhos de santo que<br />

incorporaram Yemanjá dançavam com muita leveza, calma e sutileza. Na festa pública de<br />

Yemanjá em Nova Iguaçu, duas senhoras mais velhas incorporaram a deusa do mar e, ao<br />

dançar, mostraram e transmitiram a sensação de uma figura materna, calma e acolhedora<br />

(diário, 9 Maio 2009). Nas aulas e ensaios de dança Afro, durante a dança de Yemanjá a<br />

tentativa é sempre de movimentar o corpo como se fosse água. Ao se movimentar com<br />

passos laterais, o dançarino joga os braços de baixo para cima, alternadamente, come se<br />

estivesse jogando água para cima do corpo. Em outro momento, o corpo para e o gestual<br />

executado é de se abaixar para pegar água e jogá-la em cima do corpo colocando as mãos<br />

cruzadas no peito e curvando as costas para trás, criando uma imagem pacífica e sensual<br />

de Yemanjá tomando banho. Mais um movimento representa a deusa do mar tomando<br />

banho: o dançarino anda para a frente com os braços esticados em baixo e o corpo<br />

levemente inclinado, e volta para trás cruzando os braços e as mãos no peito, tudo com<br />

um movimento flutuante do corpo. Durante um ensaio, Eliete falou que “a dança de<br />

Orixás é sensação mais de qualquer coisa”. Qualquer movimento de Yemanjá deve<br />

portanto ser executado sentindo o elemento da água no corpo, sentindo a leveza, a<br />

sutileza, a feminilidade (diário, 5 Setembro 2009).<br />

Na dança Afro, uma coreografia em específico fala de Yemanjá e conta sua<br />

história e seu mito: a puxada de rede. Nesta coreografia, a rainha do mar entra em cena,<br />

deslizando os pés no chão lateralmente, locomovendo-se como uma sereia, ondulando os<br />

braços ao lado do corpo e chamando os pescadores, que simbolizam puxar as redes com<br />

seus corpos, enquanto um coral está cantando “E na na e nago, e na na e puxa, puxa a<br />

rede de ioio, canta pra Iemanja”. Enquanto isso, as mulheres dançam segurando as


peneiras, executando movimentos que simbolizam catar mariscos e peneirar a areia. Esta<br />

pesca se deu graças a Yemanjá, que protege os pescadores e permite uma boa pesca. Este<br />

mito é contado através desta coreografia de dança, onde todos os gestuais contribuem<br />

para simbolizar e comunicar os detalhes desta história: segurar a peneira, catar algo no<br />

chão, sacudir os braços para peneirar, movimentar o corpo sinuosamente, como se fosse<br />

uma onda.<br />

Nas aulas de dança, tem mais um gestual que faz parte da dança de Yemanjá,<br />

simbolizando o Ori, ou seja a cabeça. Este gesto é executado colocando uma mão atrás da<br />

nuca e uma mão na testa, alternando-as pausadamente. A primeira vista, este gestual não<br />

representa nem fertilidade nem as águas do mar. Entretanto, um mito conta a relação<br />

deste gestual com Yemanjá:<br />

“Iemanjá trabalhava e reclamava de sua condição de menos favorecida, afinal,<br />

todos os outros deuses recebiam oferendas e homenagens e ela, vivia como<br />

escrava, cuidando do marido. Durante muito tempo Iemanjá reclamou dessa<br />

condição e tanto falou, nos ouvidos de Oxalá, que este enlouqueceu. O ori<br />

(cabeça) de Oxalá não suportou os reclamos de Iemanjá. Oxalá enfermo, Iemanjá<br />

deu-se conta do mal que fizera ao marido e, em poucos dias, utilizando-se de ori<br />

(banha vegetal), de omi-tutu (água fresca), de obi (fruta conhecida como nóz-decola),<br />

eyelé-funfun (pombos brancos) e esò (frutas) deliciosas e doces, curou<br />

Oxalá. Oxalá agradecido foi a Olodumare pedir para que deixasse a Iemanjá o<br />

poder de cuidar de todas as cabeças. Desde então Iemanjá recebe oferendas e é<br />

homenageada quando se faz o bori (ritual propiciatório à cabeça) e demais ritos à<br />

cabeça.” (Prandi, 2001, p. 399)<br />

Por isso, a cabeça é simbolizada pela deusa do mar durante a sua dança, mostrando a<br />

grande responsabilidade deste Orixá, pois o ori é considerada a parte do corpo mais<br />

importante na cosmogonia Iorubá. O corpo que dança para Yemanjá é portanto um corpo<br />

suave, leve, maternal. É um corpo que desliza no chão e que se movimenta como uma<br />

onda do mar. È um corpo fluido como a água, que se banha e flutua, cuidando de todos<br />

seus filhos.<br />

OBÁ<br />

Obá Xireê


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Obá é a deusa das águas paradas, das lagoas e dos lagos. É uma mulher idosa,<br />

forte e guerreira, tendo como ferramentas o escudo e a espada. Obá é objetiva, correta,<br />

mas possui um gênio difícil. Além de rainha guerreira, Obá representa a imagem da<br />

mulher traida, devido ao mito mais famoso que a vê envolvida. Ela foi a primeira esposa<br />

de Xangô que, enquanto casado com ela, ficava também com Iansã e Oxum. Interessado<br />

mais por estas últimas, Xangô não prestava atenção para Obá, que pediu ajuda a Oxum<br />

para poder reconquistar o marido. Mas Oxum enganou ela, sugerindo-lhe de cortar sua<br />

própria orelha e preparar com ela uma sopa para Xangô como feitiço de amor,<br />

prometendo-lhe, mentindo, que sua orelha fosse crescer de novo. Obá fez como Oxum<br />

mandou e Xangô, ao ver o “prato especial” preparado pela mulher, ficou espantado e


evoltado e expulsou Obá da sua casa, ordenando-lhe de sumir (Adilson de Oxalá, 2006,<br />

p. 127-130). Esta lenda faz com que Obá e Oxum sejam grandes rivais até hoje e, se se<br />

encontarem em um terreiro, elas brigam executando uma dança de luta. Esta rivalridade é<br />

espressa não somente na dança, mas nas interações sociais de todo dia também. Ao se<br />

arrumar para ir para uma festa de Yemanjá em Nova Iguaçu, presenciei a seguinte<br />

interação:<br />

“Enquanto a R. (filha de santo de Obá) estava fazendo prancha no cabelo disse<br />

para quem estava com a prancha na mão: “cuidado em não queimar minha<br />

orelha”. Ai A. comentou qua ela já teve um passado com orelha, e precisava ter<br />

cuidado mesmo, e disse: “ainda bem que a que está fazendo a prancha em você<br />

não é de Oxum mas de Iemanjá!”. Ai R. disse que não deixa ninguem de Oxum<br />

botar mão na sua cabeça.” (9 Maio 2009)<br />

Este exemplo exemplifica como este mito de Obá ter cortado sua orelha por causa de<br />

Oxum está presente na vida das pessoas que têm um conhecimento disso, perpetuando e<br />

reforçando esta história através das ações cotidianas.<br />

A dança de Obá reflete também o incidente contado neste mito, pois ela dança<br />

com uma das mãos cobrindo a orelha, geralmente a do ouvido isquierdo, o tempo todo.<br />

Executando este gesto, Obá se movimenta lateralmente, com três passos cruzando as<br />

pernas e dando um leve pulo, jogando uma das pernas na frente. Durante as aulas de<br />

dança, este é o movimento mais ensaiado. Além disso, o dançarino gira pulando com uma<br />

perna só, e continua cobrindo a orelha com a mão. O único momento no qual este gestual<br />

se desfaz é durante a dança de luta de Obá, na qual ela chuta com as pernas para trás e<br />

fica cortando com os braços em cima e em baixo, similarmente a como Ogum faz<br />

também. Na festa pública da inauguração do terreiro em Nova Iguaçu, Obá foi o Orixá<br />

protagonista da festa, sendo a dona da cabeça da mãe de santo, dona do terreiro. O Orixá<br />

estava todo vestido de laranja, sua cor, segurando um escudo, a espada e o arco e flecha<br />

típicos de Oxossi, que Obá usa também na sua dança. O rosto estava coberto com um filá<br />

de contas e ela dançou muito. Os pés do Orixá movimentavam-se leves no chão, a mão<br />

segurando a orelha, e deixando esta pose para executar movimentos de guerra, mais<br />

rápidos, cortando em baixo e em cima como Ogum, girando rápido e movimentando os<br />

braços e as mãos no alto para guerrear (diário, 27 Junho 2009). O corpo na dança de Obá<br />

é um corpo que, através de um gestual específico, conta um mito nagô no qual Obá foi


traida e enganada. É um corpo determinado na sua luta, um corpo às vezes submisso,<br />

outras revoltado, ora mais lento, ora agitado e guerreiro, ora pronto para chorar sua perda<br />

do amor, ora pronto para lutar contra sua inimiga e conquistar o amor de volta.<br />

OXUM<br />

Ora Ieiê ô


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Oxum é a deusa das águas doces, rainha dos rios, da fertilidade e do amor. É uma<br />

mulher vaidosa, orgulhosa de sua beleza, sedutora e arrogante. É protetora da<br />

menstruação e da gravidez e simboliza o parto e a fertilidade. Seu símbolo é um espelho<br />

em forma de leque, o abebé, no qual a deusa passa horas se admirando e se arrumando.<br />

Suas cores são o amarelo e o ouro, cores representando a riqueza, o brilho e a beleza<br />

deste Orixá, que também é deusa do ouro. Oxum é também simbolizada por um pássaro,<br />

por causa do seguinte mito:<br />

“Oxum era filha de Orunmilá. Um dia casou-se com Xangô, indo viver em seu<br />

palácio. Logo Xangô percebeu o desinteresse de Oxum pelos afazeres domésticos,<br />

pois a rainha vivia preocupada com suas jóias e caprichos. Aborrecido, Xangô<br />

mandou prendê-la numa torre, sentindo-se livre novamente. Exu, vendo a situação


de Oxum correu e contou a seu pai Orunmilá que, fazendo deste seu mensageiro,<br />

entregou-lhe um pó mágico que deveria ser soprado sobre Oxum. Exu, que se<br />

transforma no que quer, chegou ao alto da torre e soprou o pó sobre Oxum que, no<br />

mesmo instante, transformou-se num lindo pombo chamado Adabá, ganhando a<br />

liberdade e voltando à casa paterna.” (Prandi, 2001, p. 332)<br />

Oxum portanto foi uma das esposas de Xangô e já vimos ela como protagonista da briga<br />

com Obá por causa de suas artemanhas. Este mito mostra também como a deusa das<br />

águas doces preocupa-se principalmente com suas jóias e caprichos, não dando atenção<br />

para os afazeres da casa. Esta vaidade e personalidade manhosa e sedutora é comunicada<br />

através da sua dança.<br />

A dança de Oxum é muito sensual e delicada. Seus movimentos executados ao<br />

ritmo do ijexá são suaves, sutis e, como no caso de Yemanjá, o corpo de Oxum se<br />

movimenta lembrando as ondas e a flutuação da água, seu elemento natural. Ela<br />

locomove-se através de passos miudos e lentos onde abre e fecha os pés junto com os<br />

braços, tudo no molejo e na sutileza. Sua dança lembra uma mulher vaidosa e sedutora,<br />

que se abaixa para tomar banho na fonte ou na cachoeira, olha-se no espelho enquanto<br />

penteia o cabelo com a outra mão, se abana graciosamente e enfeita-se com brincos,<br />

aneis, colares, pulseiras, mostrando estas suas jóias com prazer e satisfação (Verger,<br />

1981, p. 176). Ela movimenta os ombros com uma mexidinha sensual, e “sua<br />

movimentação é suave, lenta e densa, fluida como a água” (Zenicola, 2003, p. 112).<br />

Durante uma aula de dança, eu e um meu amigo da dança tivemos que representar Oxum<br />

através do corpo. Comecei me arrumando sentada no chão, utilizando objetos como<br />

brincos, espelho e batom. Soltei o cabelo, e movimentei o corpo da maneira mais<br />

feminina e vaidosa possível: com movimentos lentos, ondulatórios, mexendo os ombros,<br />

olhando intensamente para meu amigo, que começou a se aproximar, me olhar e me<br />

oferecer um drink. Depois de me recusar a aceitar algumas vezes, cedi e dancei com ele<br />

(diário, 15 Junho 2009). Esta cena mostra como Oxum está no corpo da vida cotidiana<br />

nos momentos de sedução e feminilidade.<br />

A performance de dança afro “Orixás”, de Rubens Barbot, mencionada<br />

anteriormente, mostrou a dança de Oxum comunicando toda sua beleza e fertilidade. A<br />

dançarina vestia uma roupa amarelo ouro regal, uma coroa com filá de contas cobrindo<br />

seu rosto, e muitas joias douradas que ela tirou e colocou de novo com uma sutileza de


movimentos impressionante. Ela andava que nem água, escorrendo e fluindo no chão, e<br />

no final colocou suas mãos segurando a barriga, simbolizando a fertilidade da mulher<br />

(diário, 9 Julho 2009). O corpo que dança Oxum é um corpo super feminino, sutil e<br />

suave. É um corpo fluido como a água, sensual e sedutor, um corpo que é consciênte da<br />

sua beleza e mostra isso nos seus gestos, sua maneira de andar e seu olhar.<br />

O mito no corpo<br />

As descrições dos mitos, arquétipos e gestuais de cada Orixá apresentadas<br />

mostram como os mitos estão personificados no corpo que dança. Como afirma Denise<br />

Zenicola ao falar das figuras míticas do malandro e da mulata como representantes da<br />

cultura carioca e como inspiradores dos dançarinos do Samba de Gafiera, “estes mitos em<br />

performance, com sua elegância e estética peculiares, … apresentam formas de dançar<br />

reveladoras das tradições africanas” (Zenicola, 2007, p. 117). Igualmente, a estética<br />

particular dos mitos dos Orixás em performance apresenta uma dança específica e<br />

reveladora da tradição religiosa do Candomblé, parte fundamental da cultura afrobrasileira.<br />

Através desta análise, quis-se evidenciar a importância do mito como forma de<br />

conhecimento e a presença deste mito no corpo, tanto na dança e na música quanto na<br />

indumentária ou nas performances e afazeres de todo dia. Como escreve Maria Consuelo<br />

Oliveira Santos em um artigo sobre a função pedagógica do mito:<br />

“O mito se concretiza nas histórias, lendas, contos, casos, seja nas orações, nos<br />

rituais, nas oferendas, na arquitetura, na vestimenta, no comer, no dizer, no<br />

dançar, no cantar, pois o mito não se expressa apenas no discurso linguístico, mas<br />

em inúmeras construções textuais que se explicitam nos vários espaços do fazer<br />

humano, através de uma infinidade de formas que a criatividade humana propõe<br />

cotidianamente” (Santos, 2006, p. 162)


O mito é portanto expresso pelo seu fazer e, em particular neste caso, é expresso na<br />

dança, através do simbolismo dos gestos e movimentos executados na performance. A<br />

dança Afro reproduz com movimentos, gestos e indumentária as histórias dos Orixás e<br />

recria assim, além de transmitir, os mitos que fazem parte da cultura afro-brasileira. O<br />

dançarino de dança Afro se inspira no ritual de Candomblé para reproduzir no corpo as<br />

qualidades, os movimentos e as energias dos arquétipos dos Orixás, dando origem a uma<br />

performance artística que, mesmo fora do contexto sagrado da religião, é capaz de contar<br />

os mitos afro-brasileiros, os quais, segundo Inaycira Falcão dos Santos “reforçam e<br />

ensinam os padrões e valores de um povo, aliados aos elementos da composição<br />

coreográfica das danças realizadas nos terreiros” (Falcão dos Santos, 2006, p. 31). É<br />

necessário reconhecer a importância do mito como instrumento de comunicação de uma<br />

cultura, e a importância da dança como instrumento de comunicação e recriação dos<br />

mitos. No caso deste trabalho o corpo na dança Afro recria e comunica os mitos dos<br />

Orixás, reforçando a história e cultura nagô no Brasil, trabalhando o resgate e a memória<br />

de uma identidade afro-brasileira e contribuindo para um projeto de arte, cultura e<br />

educação. Para concluir este capítulo e introduzir as temáticas de inteligência do corpo e<br />

estigma que serão analisadas em seguida, trago agora uma comparação sobre o corpo que<br />

dança os orixás no contexto sagrado e no profano.<br />

Dança de Orixás no contexto sagrado e no profano<br />

Analisou-se até agora neste capítulo a importância da dança e da música no ritual<br />

de Candomblé, e descreveram-se os gestos, os mitos os arquétipos dos Orixás, os deuses<br />

africanos que se expressam dançando. Vimos como o corpo, tanto no ritual, quanto na<br />

performance de dança ou na vida cotidiana, conta mitos e histórias de um povo da<br />

diáspora africana no Brasil. Esta mitologia, mesmo tendo origem religiosa, faz parte de<br />

uma cultura mais geral, importante de conhecer para resgatar e valorizar a memória dos<br />

ancestrais e a história afro-brasileira. É importante portanto entender e estudar a religião<br />

do Candomblé, com seus Orixás e seus mitos, pois é parte da cultura afro-brasileira.<br />

Agora, é fundamental deixar claro que não precisa ser de dentro do candomblé para<br />

estudar isso. A dança Afro é uma maneira de estudar e conhecer o mundo dos Orixás,


aprender seus gestos e seus toques, reconhecer os diferentes ritmos e associá-los às<br />

diferentes divindades. É uma arte que utiliza movimentos ligados na estética dos gestuais<br />

dos Orixás, onde trabalha-se o corpo para que se possa sentir a personalidade, os mitos e<br />

os elementos da natureza de cada Orixá, incorporá-los e expressar estas sensações<br />

dançando. Na dança Afro constata-se o transporte dos gestos dos Orixás na sua gramática<br />

básica que são transformados pela estilística e estética da dança. Como escreve<br />

Rosamaria Barbara na sua dissertação de mestrado sobre a dança das Aiabás, “a estética<br />

do corpo atua como um papel fundamental porque está ligada à sabedoria expressa pelo<br />

próprio corpo…uma sabedoria armazenada e enraizada corporalmente ao longo de um<br />

processo que se passa e atua no e com o corpo” (Barbara, 2002, p. 20). Este processo de<br />

aprendizagem, tanto no Candomblé quanto na dança, é uma experiência totalmente<br />

sensorial, que envolve o som, os cheiros, e a sensação dos elementos da natureza e dos<br />

mitos dentro de si:<br />

“Hoje a gente explorou muitos movimentos de cada Iabá. As orixás mulheres são<br />

tão diferentes entre si, e cada uma tem as suas características, seus ritmos, seus<br />

significados. Vimos Oxum, Iansã, Yemanjá e Nanã. Cada uma se expressa de um<br />

jeito diferente e isso é muito difícil de expressar através do movimento corporal.<br />

A leveza e feminilidade de Yemanjá e Oxum requerem uma concentração na<br />

execução de movimentos lentos e sutis, sempre pensando na constante referência<br />

das ondas da água, tentando reproduzir esta sensação deste elemento da natureza<br />

no corpo e na expressão facial. O toque dos atabaques ajuda na pegada do ritmo<br />

que, depois de alguns minutos, parece penetrar dentro do corpo, rendento o<br />

movimento mais exato e o tempo dele mais certo…dançar Iansã é pura rapidez<br />

simbolizando o vento, simbolizando a mulher guerreira que passa e que, como um<br />

furacão, deixa as marcas. A força contida num passo dela é símbolo da força da<br />

personalidade do orixá, a qual, ajudada pelo toque do tambor, se insere no corpo,<br />

provocando uma sensação que se reflete na força dos movimentos de dança” (6<br />

Setembro 2008).<br />

Segundo estas notas de campo, a experiência sensorial total ao dançar as Iabás é evidente.<br />

Durante a execução dos movimentos, pensa-se sempre no elemento da natureza que o<br />

corpo deveria expressar, tentando incorporar esta sensação. Nisso o toque dos tambores<br />

tem um papel fundamental enquanto “ajuda na pegada do ritmo que parece penetrar<br />

dentro do corpo”, e “ajuda a personalidade do orixá a se inserir no corpo”. Segundo<br />

Rosamaria Barbara, “a música é a vibração do Orixá e o meio através do qual ele se<br />

canaliza” (Barbara, 2002, p. 121). A música e a dança portanto cooperam e nunca estão


isoladas, pois “o tambor é a voz do Orixá” (Ibidem, p. 128). Veremos esta cooperação e<br />

comunicação entre dançario e tambor no próximo capítulo.<br />

Vimos portanto como a dança de Orixás, tanto no contexto sagrado quanto no<br />

profano, é uma experiência sensorial, estreitamente ligada aos elementos da natureza,<br />

apreendida na prática, e que incorpora e transmite os mitos e as personalidades de cada<br />

Orixá através do corpo, especialmente através dos gestos. Nesta última parte deste<br />

capítulo quero mais uma vez deixar clara a diferença que existe entre os dois mundo, um<br />

sagrado e outro profano, pois existem dúvidas e confusão com respeito ao assunto. Várias<br />

vezes, durante minha experiência dentro da dança Afro, ouvi comentários falando: “Ah,<br />

isso é macumba!”, ou: “È tudo a mesma coisa: dança afro, capoeira, Candomblé; tudo<br />

coisa de preto!”. A própria Eliete, durante uma entrevista com ela, contou de quando foi<br />

dar aula de dança Afro para meninos todos afro-brasileiros e de como, de vinte e quatro<br />

somente ficaram doze alunos, pois os outros falaram imediatamente: “é macumba, é<br />

macumba!” (29 Dezembro, 2009). É evidente como não existe um conhecimento<br />

adequado sobre a dança Afro que, mesmo tendo uma forte conecção com os<br />

ensinamentos e os elementos do Candomblé, não é uma atividade religiosa:<br />

Após uma apresentação do nosso grupo no Forte de Copacabana, os componentes<br />

de um outro grupo de percussão que tinha se apresentado também perguntou:<br />

“Vocês são todos de terreiros de Candomblé né?”; ao ouvir uma resposta negativa<br />

por minha parte, ele insistiu: “Ué, mas vocês dançam os orixás né?” (26 Setembro<br />

2009).<br />

Estes comentários mostram como uma performance artística de dança de Orixás é<br />

considerada ser a mesma do que a performance religiosa. Mesmo sendo os movimentos e<br />

os gestuais dos Orixás os mesmos, durante a cerimônia do Candomblé o fiel está em<br />

transe, e quem está dançando é o próprio Orixá, incorporado no corpo do “cavalo”. Na<br />

dança, o dançarino conscientemente tenta “incorporar” os elementos dos Orixás, e<br />

mostrá-los através da dança.<br />

Outras dúvidas envolvem o medo do que pode ou não pode ser feito durante a<br />

dança de Orixás. Durante uma discussão no término de uma aula de dança na UERJ,<br />

foram levantadas algumas perguntas:<br />

“Pode aprender esta dança sagrada sem ser da religião? Pensei que não fosse<br />

possível estudar danças religiosas ser estar envolvido”.


“ Qual é a importância da dança no candomblé? Pode-se dançar danças de orixas<br />

em apresentações?” (17 Junho 2009)<br />

Estas perguntas evidenciam que, mesmo entre os alunos de dança Afro não existe clareza<br />

sobre o fato de que a apresentação de dança de Orixás no palco é distinta do que a<br />

performance durate o ritual. A Eliete aponta outras diferenças fundamentais entre a dança<br />

de Orixá nos dois contextos. Durante uma entrevista, ela conta:<br />

“Lembro de quando fui dar um curso para pai e mãe de santo e ninguem sabia dançar<br />

para orixá. Fiquei com medo; eu sei coisa de palco, não de dentro de candomblé-eles<br />

ficaram bobos que eu não era de dentro mas sabia tudo e eles queriam saber dançar com<br />

os filhos de santo.”<br />

E ainda:<br />

“Quando dei aula para uma turma, tinha uma menina de dentro do candomblé e a gente<br />

fez dança de orixá. Aí deu pra ver a diferença entre o religioso e o cultural. Fizemos o<br />

movimento de Oxum e falei para ela”olha como você está fazendo o movimento de<br />

Oxum-este é de dentro e este que eu estou fazendo é pra palco. Olha a diferença!” (29<br />

dezembro, 2009).<br />

Com estes depoimentos, a professora de dança Afro deixou claro como o movimento e o<br />

gestual “para palco” é diferente do que o gesto “de dentro do Candomblé”. Como<br />

evidenciei na descrição da dança de Orixá anteriormente, os movimentos executados<br />

durante o ritual são mais leves, menos acentuados, enquanto em uma performance no<br />

palco, o dançarino exagera o movimento, amplia-o e estiliza-o.


Falando mais especificamente sobre corpo, durante minha etnografia algumas<br />

observações que fiz levantaram umas perguntas que tentei pesquisar. Durante uma festa<br />

pública de Ogum em Caxias, na Baixada Fluminense, pela primeira vez vi meu amigo de<br />

dança Afro incorporar seu santo, Oxaguiã. Conhecendo como ele dança na aula de dança<br />

Afro, foi muito interessante ver ele dançar enquanto estava incorporando Oxaguiã. O<br />

jeito de dançar dos dois era muito parecido. Oxaguiã dançou com uma boa técnica,<br />

deslizando no chão, e movimentando os pés e os braços de maneira parecida com meu<br />

amigo durante a aula (25 Abril 2009). Quando expliquei para ele durante uma entrevista<br />

o que tinha observado, me respondeu:<br />

“O fato do cavalo ou do orixa saber dançar não tem nada a ver um com outro,<br />

acho. Eu aprendi a dançar no candomble, antes de fazer aula de afro.” (9 Maio<br />

2009).<br />

Em uma entrevista sucessiva ele continuou me explicando:<br />

“A dança do Orixá é diferente da do cavalo. Tem pessoas que não sabem dançar<br />

mas o Orixá sabe. Mas ao mesmo tempo, o orixá usa o corpo da pessoa e se ele<br />

achar alguém que saiba dançar, o usa mais; não pode melhorar muito se o cavalo<br />

não sabe dançar nada.” (27 Junho 2009).<br />

Estes dois depoimentos, junto com as observações da minha etnografia, levantam uma<br />

questão interessante sobre o “corpo dançante”. Segundo o fiel, durante o ritual de<br />

candomblé, é o próprio Orixá que dança, simplesmente usufruindo-se do corpo do assim<br />

chamado cavalo que incorpora a divindade. A capacidade do corpo saber dançar ou não<br />

depende do Orixá, mas parece existir uma ligação com a habilidade do cavalo, podendo<br />

“usar mais” o corpo de alguém que saiba dançar. O Orixá se adapta ao corpo no<br />

Candomblé, pois o Orixá tem respeito com o corpo.<br />

Agora, focando a atenção no caso do meu amigo dançarino A. que incorpora<br />

Oxaguiã, comecei a pensar nas possíveis hipóteses que pudessem explicar a semelhança<br />

entre os movimentos corporais do A. dançarino e os do Orixá dançando. Em outra festa<br />

pública de Candomblé, dessa vez uma festa de Oxalá em Nova Iguaçu, tive a<br />

oportunidade de observar o Oxaguiã de A. dançar o tempo todo, e reparei mais e mais<br />

como o corpo deste Orixá se locomovia e mexia com a mesma forma e sutileza do meu<br />

amigo na sala de aula. Como ulterior contribuição às minhas suposições, notei uma


semelhança na atitude corporal e na maneira de dançar também em uma filha-de-santo<br />

que estava em outra festa pública incorporando Xangô, e que neste dia somente dançou<br />

sem “baixar o santo”. Lembrei dos movimentos das costas e dos ombros bem peculiares e<br />

únicos desta mulher enquanto o Xangô dela estava presente, e reparei o mesmo molejo e<br />

a mesma forma destes movimentos no corpo da fiel dançando sem incorporar o Orixá (3<br />

Outubro 2009). Após estas observações, e respeitando a crença religiosa do que é o Orixá<br />

que está dançando na hora do transe no ritual de Candomblé, me perguntei: será que é o<br />

Oxaguiã dele que A. leva para a sala de aula? Ou seja, será que o corpo do A. foi<br />

moldado pela técnica corporal do Oxaguiã que ele carrega por anos que aprendeu a se<br />

movimentar de certa maneira e lembra esta maneira de dançar na hora da aula de dança<br />

Afro? Retomarei esta hipótese de “memória corporal” no capítulo 5, onde utilizarei as<br />

teorias fenomenológicas de aprendizagem, memória e inteligência do corpo para tentar<br />

explicar este fenômeno observado nos dois mundos (o sagrado e o profano) da dança de<br />

Orixás. Antes de chegar lá, quero dedicar uma parte da minha discussão às teorias de<br />

comunicação para melhor entender como opera a linguagem da dança Afro.<br />

CAPITULO 4- Ouvir o Outro<br />

(Comunicar dançando)<br />

Sinergia e Cooperação<br />

A dança e a percussão dizem claramente<br />

o que escapa ao discurso das palavras.<br />

Seu vocabulário permite sondar abismos do desconhecido.<br />

Claudio Alberto Dos Santos<br />

Vimos até agora como a dança, e em específico a dança de Orixás, é uma forma<br />

artística repleta de símbolos e significados. Foi evidenciado particularmente no<br />

capítulo anterior como cada gesto, cada movimento e cada cor de indumentária são<br />

elementos que representam, produzem e comunicam certos significados; no caso deste<br />

trabalho, estes elementos corporais representam, produzem e contam os mitos e as<br />

histórias das divindades protagonistas da religião afro-brasileira do Candomblé. Quero<br />

portanto neste capítulo focar mais na linguagem do corpo e na comunicação não<br />

verbal da expressão corporal, analisando a dança, e em particular a dança Afro, como<br />

texto repleto de mensagens e significados, evidenciando a variedade e pluralidade de


linguagens na dança, e analisando a cooperação e os “diálogos” entre os protagonistas<br />

da performance de dança Afro.<br />

Ao falar da pluralidade de linguagens, é fundamental utilizar e entender o<br />

conceito de gêneros de discurso de Mikhail Bakhtin, o qual afirma que cada campo de<br />

uso da linguagem elabora seus tipos característicos de enunciados, chamando estes de<br />

gêneros de discurso. Estes são extremamente heterogêneos, podem ser orais assim como<br />

escritos, e constituem as unidades fundamentais do diálogo (Bakhtin, 2003). Sempre<br />

segundo Bakhtin, o diálogo é o que faz a comunicação possível. O discurso não depende<br />

de enunciados independentes do emissor, mas é o produto de uma interação entre a<br />

emissão e a recepção do enunciado dentro de certo contexto histórico-cultural e sempre<br />

levando em conta as várias influências externas sobre o ato comunicativo (Bakhtin,<br />

2003). É fundamental então entender a comunicação como um sistema interativo onde as<br />

várias partes estão sempre interligadas. Vale a pena explorar mais esta idéia da vida como<br />

sistema de sinergias e cooperação, de harmonia e colaboração, pois, assim como a vida, a<br />

dança pode ser considerada como tal sistema sinergico, harmonico e cooperativo.<br />

Tomando a idéia principal de autopoeisis, elaborada por Humberto Maturana,<br />

pode-se dizer que a vida é um conjunto de sistemas fechados que precisam de<br />

colaboração e de um processo de articulação. Nós, seres humanos, não somos peças<br />

isoladas e a vida, a natureza e a existência são entrelaçadas e precisam de harmonia para<br />

continuar a existir. Maturana afirma que sem cooperação não tem sistema e que o<br />

elemento principal desta harmonia é o amor. O amor é o que fecha o sistema, é o<br />

sentimento que funda o social, pois permite a aceitação do outro como legítimo outro na<br />

convivência. A emoção do amor é então a base de cada ação, cada relação social e da<br />

comunicação cooperativa. A vida, portanto só existe a partir do princípio comunicativo<br />

da cooperação. Assim, é possível ver como a linguagem entra a fazer parte deste todo<br />

harmonioso, pois ela está entrelaçada à emoção e é considerada como uma ação por<br />

Maturana. A linguagem é definida como a “coordenação consensual de condutas de<br />

coordenações”, ou seja como o elemento fundamental da convivência consensual entre<br />

indivíduos e indivíduos e natureza (Maturana, 2002). A linguagem está na base do<br />

conhecimento, o qual leva ao entendimento e consequentemente à comprensão e à<br />

harmonia. O que é fundamental entender no argumento de Maturana é esta idéia de<br />

consenso e sinergia entre as partes da vida, e que esta última só é possível graças à


cooperação e não à luta entre as partes. A ligação entre emoção, ação e comunicação é<br />

um aspecto chave para entender a autopoeisis e a interação como base da vida.<br />

Esta teoria da interação e da sinergia é retomada também por Lynn Margulis na<br />

sua obra O que é Vida?. A idéia principal neste texto é a de holarquia, ou seja do que o<br />

todo é maior do que a soma das partes, afirmando o poder dos pequenos corpos e da<br />

micro-estrutura, a qual pode ser mais poderosa do que a grande estrutura. Margulis<br />

escreve que a vida surgiu das amoebas e das bacterias e é isso que nos mantem até hoje.<br />

A origem da vida se reproduz continuamente no curso da vida e a vida é exatramente<br />

este encontro de energias, esta sinergia e simbiose entre as partes. Todos estes conjuntos<br />

e sistemas vivos se autoregulam e pode-se afirmar então que a vida é autopoética. A vida<br />

e a biosfera se auto-sustentam. Adaptações a vários ambientes se criam e recriam e a vida<br />

é um processo que só pode-se entender em seu meio cósmico (Margulis). A teoria de<br />

Margulis é que não existe contradição na vida pois tudo é parte do processo, tudo é<br />

passagem e os vários encontros geram os fluxos da vida que é então movida por<br />

um”chaos poético”. Uma contribuição importante da autora para este trabalho vem sa sua<br />

afirmação que “a mente e o corpo não são separados, mas parte do processo unificado da<br />

vida. Esta, sensível desde sempre, é capaz de pensar.” (Margulis, p. 23). Esta poderosa<br />

passagem da sua obra propõe um pensamento que desafia a tradicional divisão cartesiana<br />

entre o corpo e a mente, sustentando a idéia que o corpo pensa, e é uma coisa só com a<br />

mente. Contribuindo mais para esta idéia é a discussão do biólogo Francisco Varela sobre<br />

o sistema imunológico, consiiderado como um sistema cognitivo que precisa de harmonia<br />

interacional entre as partes que o constituem para funcionar (Varela). Esta idéia quebra<br />

com o fato que o sistema reage a um estímulo externo; o sistema possui uma inteligência<br />

que reconhece, aprende e memoriza, e é portanto pro-ativo dado que cria possibilidades,<br />

além de ser autônomo e presentes em todos os seres vivos. Estes conceitos serão<br />

maiormente analisados no próximo capítulo, cujo foco é justamente a inteligência do<br />

corpo e dos sentidos.<br />

Na dança a cooperação e a sinergia são elementos fundamentais para a expressão<br />

corporal. Já foi visto no Capítulo 1 como a cooperação entre os dançarinos é necessária<br />

para o sucesso da performance. Existem porém outros tipos de cooperações dos corpos<br />

dançantes, como por exemplo a sinergia entre as diferentes partes do corpo:


“A gente trabalhou muito a descontrução do movimento. Isso pode ser entediante,<br />

mas é realmente útil. Depois de repetir as várias partes do movimento, consegui<br />

entendê-lo bem melhor, e consegui executá-lo melhor também. É incrível quantos<br />

elementos têm dentro de um movimento de dança. Se for um movimento do<br />

braço, precisa prestar atenção à mão, à ponta dos dedos, pois toda articulação está<br />

envolvida. E quando a gente começa a desenvolver os passos e unir braços,<br />

pernas, pés, pescoço, quadril, rosto….ai a gente repara quantas realmente são as<br />

partes do corpo envolvidas e quanto precisa-se de um trabalho de coordenação<br />

bem complicado.” (20 Maio 2008)<br />

Este excerto mostra a complexidade de um movimento de dança, o qual envolve<br />

múltiplos elementos dentro de si. Cada parte do corpo, ao se movimentar, precisa pensar<br />

em todas as articulações presentes. Ao juntar a movimentação de várias partes do corpo,<br />

é preciso ter “um trabalho de coordenação” notável, onde as partes se juntem<br />

sinergicamente para formar o todo. É possível reparar na importância dos detalhes do<br />

movimento, da mão à ponta dos dedos, pois cada mínima parte contribui para a formação<br />

do gesto e do movimento de dança.<br />

Durante um ensaio de dança Afro é evidente a sinergia entre as partes; desta vez<br />

porém a harmonia não é somente entre as partes do corpo, mas é entre o corpo e o<br />

tambor:<br />

Hoje cheguei no ensaio e estava sozinha. Antes de começar a Eliete ficou<br />

ensaiando “Corpos e Tambores” (nome do espetáculo do grupo). Ela dançou junto<br />

com o tambor, segurando ele, tocando e dançando ao mesmo tempo. Pode-se ver<br />

uma sinergia entre o corpo e o instrumento; as formas deste tambor usado<br />

remetem às formas do corpo humano; parecia ter uma fusão entre os dois, um<br />

parecia complementar o outro, como peças de um quebra-cabeça que se unem. As<br />

curvas do tambor e do corpo se pareciam e formavam uma coisa só. (11 Abril<br />

2009)<br />

Esta observação de campo descreve a união entre o corpo dançante da Eliete e o tambor<br />

que ela está segurando. Ao dançar, podia-se observar uma “sinergia entre o corpo e o<br />

instrumento”, “uma fusão entre os dois”, como se fossem elementos complementares,<br />

iguais às “peças de um quebra-cabeça”. Ambos o corpo da dançarina e o tambor eram<br />

formados por curvas que se uniam e juntavam formando uma coisa só.<br />

Diálogo e incorporação da linguagem<br />

.


Vimos portanto como as teorias de cooperação e sinergia entre as partes trazidas por<br />

Maturana, Mergulis, Varela e Bakhtin se aplicam à linguagem, no caso deste trabalho,<br />

à linguagem do corpo na dança. O elemento corporal é considerado fundamental e<br />

evidenciado por muitos ciêntistas da comunicação. Partindo da base que a<br />

comunicação é um princípio estruturante que atravessa as várias esferas da sociedade,<br />

e que estas diferentes esferas estão sempre cooperando e em sinergia uma com a outra,<br />

Anthony Wilden fala da união da comunicação verbal e não verbal. Estas são<br />

possibilidades comunicativas presentes na vida que nunca operam em conflito ou<br />

separadas uma da outra, mas ao contrário, elas sempre interagem e colaboram na<br />

expressão comunicativa de todo dia (Wilden). Os estudos de Emile Benveniste<br />

contribuem também para esta visão, pois ele escreve que como a linguagem chega a<br />

ter significado na prática, quer dizer que esta precisa do corpo e da emoção para que se<br />

realize com sucesso. Além disso, ele afirma que a linguagem está profundamente<br />

ligada ao contexto e é socialmente construída e que, para se comunicar e se relacionar<br />

com o outro, precisa-se do diálogo (Benveniste, 1988). Unindo estes conceitos, podese<br />

ver como a dança se insere perfeitamente na discussão da expressão dialógica.<br />

Como forma de comunicação não verbal, a dança opera através do instrumento<br />

fundamental da linguagem que é o corpo. Possuindo seus próprios gêneros de<br />

discurso e agindo de maneira autopoética, a expressão corporal e a comunicação na<br />

dança acontecem graças à interação entre emissor e receptor dentro de um<br />

determinado contexto, e graças à sinergia e cooperação entre as partes.<br />

Continuando a discussão da ligação entre comunicação e corpo, tanto Bakhtin<br />

como o antropólogo William Hanks exploram o tema da incorporação da linguagem.<br />

Articulando corporeidade à linguagem e imprimindo na linguagem uma apreciação<br />

antropológica, Hanks afirma que o campo cultural é a incorporação de valores e de<br />

práticas, e fornece portanto o quadro interpretativo necessário para a linguagem. É o<br />

campo corporal que circumscreve a fala; o discurso então acontece no espaço do corpo<br />

(Hanks, 2008). Como o próprio Hanks afirma em Language and Communicative<br />

Practices, tomando as teorias de Bakhtin, a produção de discurso é um fato social e o<br />

significado se cria a partir do interplay entre a produção e a recepção da mensagem; os<br />

gêneros de discurso então são maneiras práticas de perceber o mundo e agir sobre ele em<br />

várias maneiras (Hanks, 1996). Esta pluralidade e multiplicidade se reflete na<br />

corporeidade que, sempre segundo Hanks, “emerge na atividade, e não é pré-estabelecida<br />

em categorias culturais” (Ibidem p. 254). A corporeidade está portanto sempre mudando;<br />

ela é um processo e não uma coisa (Hanks, 1996). No texto A Cultura Popular na Idade<br />

Média e o Renascimento e suas Fontes, Bakhtin, através da análise do grotesco,<br />

também mostra como o corpo está sempre em movimento e sempre se relacionando com<br />

o mundo.<br />

Ao falar deste corpo, Bakhtin escreve que ele “jamais está pronto nem


acabado; está sempre em estado de construção, de criação … e esse corpo absorve o<br />

mundo e é absorvido por ele” (Bakhtin, 1999, p. 277). Assim como o corpo grotesco, o<br />

corpo dançante está continuamente em movimento e em construção:<br />

“Reparei como cada movimento muda dependendo da diferença do olhar, o qual<br />

determina a intenção atrás da performance do movimento.”(7 Junho 2008)<br />

Neste caso, a mudança do movimento depende da mudança do olhar dos<br />

dançarinos, evidenciando mais uma vez como as várias partes do corpo estão<br />

interligadas e uma influênciando a outra. Um outro exemplo mostra como uma<br />

mudança do toque da música causa uma mudança na maneira de se movimentar o<br />

corpo:<br />

“Ao mudar do toque, que pode acontecer de repente, se passa para a<br />

representação de outra aiabá, com ritmo e expressão corporal totalmente<br />

diferente. O corpo então precisa fazer uma mudança radical de pensamento,<br />

sensação e reprodução do movimento.”(6 Setembro 2008)<br />

É evidente como, nestas experiências, o corpo nunca está fixo, e como cada mínima coisa<br />

tenha uma influência e mude o comportamento corporal. Um olhar diferente, assim como<br />

um toque de tambor diferente, age imediatamente no corpo, ativando uma série de<br />

reações e movimentos diferentes. A comunicação, portanto se realiza na hora que a<br />

resposta interage e coopera com o estímulo emitido, dentro de um contexto cultural de<br />

significados específico.


Comunicação entre Corpo e Natureza<br />

Mais um elemento corporal evidenciado por Bakhtin que pode ser aplicado à<br />

etnografia dos ensaios de dança Afro é a interação e cooperação entre o corpo e os<br />

cosmos, os elementos da natureza. Bakhtin escreve que “os elementos cósmicos se<br />

transformam em alegres elementos corporais” (Bakhtin, 1999, p. 297). Ele afirma que “o<br />

universo parece reagrupado no corpo humano, em toda a sua múltipla diversidade” (p.<br />

317), e que “o corpo é um microcosmos onde se reúne em um todo único tudo o que está<br />

disperso e afastado no cosmos” (p.318). A dança Afro parece exemplificar este conceito<br />

plenamente. Duas ocasiões em particular mostram este contato e sinergia entre o cosmo e<br />

o corpo, justamente como Maturana teoriza falando da autopoesis. Em uma avaliação no<br />

fim da aula onde tínhamos trabalhado o olhar e os movimentos em duplas, o comentários<br />

dos participantes anotados no diário etnográfico se resumiram assim:<br />

“Nos sentimos conectados um com o outro através da expressão facial e<br />

conectados com a natureza, com algo de sagrado e espiritual através dos<br />

movimentos lentos do Afro primitivo. Fazendo este tipo de exercício um com o<br />

outro, veio a se criar uma certa energia no espaço onde estavamos e dentro de<br />

cada um, o que influenciou a dança de cada um de nós. “(7 Junho 2008)<br />

Esta conecção energética mostra como a linguagem da dança, através do “olhar” e de<br />

“movimentos lentos do Afro primitivo” emana enunciados do seu campo, que são<br />

recebidos e interpretados por cada um, criando certa comunicação na qual corpo, espaço<br />

e emoção cooperam e agem junto. Durante outra aula, foi interessante observar esta<br />

sinergia entre corpo e natureza, sentida ao representar a dança de Orixás:<br />

“Estudamos nos detalhes os movimentos de vários orixás e associamos cada um a<br />

um elemento da natureza…Começamos pela água e vimos os movimentos de<br />

Oxum, bem leves e fluidos, lembrando as ondulações da água. Vimos Oxóssi,


associado à caça e à terra, Xangô ao fogo e Iansã ao ar, com seus movimentos<br />

rápidos e fortes como as ventanias… Pensando nos elementos da natureza<br />

durante a dança fez com que os detalhes dos movimentos e a expressão facial e<br />

corporal fossem mais intensas e mais exatas. É incrível a ligação que existe entre<br />

as forças e energias da natureza e o nosso corpo, e é incrível como o movimento<br />

muda de forma e intensidade quando nos concentramos nesta sintonia e conecção<br />

que existe com a natureza.”(21 Junho 2008)<br />

É evidente a descrição da ligação entre as forças da natureza e a representação de cada<br />

Orixá, como já foi analisado no capítulo anterior. Através dos movimentos de cada<br />

entidade, mostra-se a ligação dela com um elemento da natureza, e conta-se assim a<br />

história das divinidade religiosas da tradição Afro-brasileira. A sinergia entre fala,<br />

corpo e contexto age portanto no ato comunicativo da performance da dança Afro. Um<br />

exemplo claro desta sinergia entre estes três elementos vem de algumas frases que nós<br />

dançarinos tivemos que criar e expressar através da voz e do movimento durante um<br />

ensaio do espetáculo da Cia Corpafro “Corpos e Tambores”:<br />

1. Meu corpo é meu instrumento<br />

2. Meu corpo é meu tambor<br />

3. Ritmos e curvas se misturam<br />

4. Meu corpo é minha história<br />

5. Meu corpo é realidade<br />

Estas frases mostram como os dançarino percebem seus corpos em relação à dança Afro e<br />

ao tambor; é como se os corpos se misturassem completamente com o instrumento,<br />

expressando uma sinergia entre o “corpo e o tambor”, entre “os ritmos e as curvas”, entre<br />

“corpo e história e realidade”. Ao ser perguntados sobre esta comunião entre corpo e<br />

tambor, os membros do grupo comentaram:<br />

“É uma junção entre corpo e tambor e não tem um sem o outro. Um existe dentro<br />

do outro.”<br />

“ No meu corpo já existem vários ritmos e várias pulsações. O corpo está cheio de<br />

ritmos, harmonias, melodias.”<br />

“Existe o ritmo corporal do dia a dia e os ritmos e vibrações do tambor, mas, para<br />

tocar, precisa-se de um corpo.” (2 Maio 2009)


Mais uma vez pode-se observar que o corpo e o ritmo do tambor estão interconectados<br />

existindo “um dentro do outro”, e precisando um do outro na performance da dança Afro.<br />

Conversas na dança: a presença do Tambor<br />

Falando da sinergia e da conecção entre as várias partes do corpo e entre corpo e<br />

tambor, o diálogo é um elemento sempre presente na performance da dança Afro. Podem<br />

ser evidenciados em particular três tipos de conversas: entre dançarino e audience, entre<br />

dançarinos, e entre dançarino e tambor. O primeiro tipo de conversa entre performer e<br />

audience foi extensivamente analisado no capítulo 1 através das teorias de interação de<br />

Erving Goffmann e das teorias de performance de Turner e Schechner. A interação e a<br />

comunicação entre os dançarinos foi também analisada no mesmo capítulo, evidenciando<br />

uma conversa entre corpos, uma interrelação entre movimentos, uma sinergia entre<br />

passos e gestos. Um artigo do antropólogo Alejandro Frigerio sobre as qualidades que<br />

caracterizam a performance artística afro-americana evidencia a importância do<br />

“conversacional” durante a performance Afroamericana. Dentro desta qualidade, o autor<br />

destaca vários tipos de conversa: entre solista e coro, entre tambores, entre dançarino e<br />

tambor, entre cantante e tambor, entre dançarinos e entre o cantante e dançarino principal<br />

e os outros performers (Frigerio, 2003). Dentro de todas estas conversas, a entre<br />

dançarinos e entre dançarino e tambor são as que podem ser aplicada ao meu campo de<br />

pesquisa. Como já falamos da primeira, quero aqui trazer dados etnográficos sobre a<br />

conversa entre dançarino e tambor. O seguinte excerto, usado também no primeiro<br />

capítulo me referindo à experiencia ritual de transe na dança, apresenta uma experiência<br />

pessoal que tive durante uma aula com percussão ao vivo:<br />

“Os tambores ajudaram. É incrível como eles abstraem a mente do esforço que<br />

estou fazendo. Senti o toque deles bem perto do meu trabalho hoje e consegui<br />

realmente estabelecer uma conecção entre a música e os movimentos que estava<br />

fazendo.” (13 Maio 2008).<br />

Esta experiência como dançarina aponta a importância da percussão ao vivo para a<br />

execução da dança e para o esforço do corpo. Ao “sentir o toque bem perto do meu<br />

corpo”, os tambores ajudaram a “estabelecer uma conecção entre música e movimentos”.<br />

Trazendo as palavras de Argeliers em sua descrição da rumba columbia cubana, Frigerio


escreve que o dançarino estabelece um “diálogo” com o percussionista, que marca os<br />

gestos e os passos com os quais o dançarino deve responder (Frigiero, 2003, p. 58). Este<br />

diálogo é evidenciado e reafirmado por alguns componentes do grupo Corpafro e pelo<br />

percussionista do grupo depois de um ensaio:<br />

“M.- a música eletronica é diferente do que os instrumentos ao vivo. Dançar com<br />

a percussão é outra coisa, dá pra sentir a vibração.<br />

F. (percussionista)- a percussão anda bem junto com a dança. Se vocês forem para<br />

frente, a percussão também vai para frente. Se vocês pararem e cansarem, ai eu<br />

também fico desanimado e “mucho”. Hoje foi prazeroso tocar, porque estava<br />

sentindo vocês animadas e dançando com prazer.<br />

E.- existe uma sinergia entre percussionista e dançarino. Sinto a minha emoção e<br />

ao mesmo tempo sinto a energia e o afeto dele. “ (20 Março 2009)<br />

Estes comentários evidenciam a interação e sinergia existentes entre o dançarino e o<br />

percussionista. Como o prórpio percussionista afirma, o ritmo e a emocão dele mudam<br />

dependendo do ritmo e da emoção de quem está dançando. Eliete reforçou este ponto<br />

dizendo que é preciso sentir a própria “emoção” como dançarina e ao mesmo tempo “a<br />

energia e o afeto dele”. Esta colaboração e sinergia entre música e dança, entre dançarino<br />

e percussionista, corpo e tambor é uma característica também dos rituais de Candomblé.<br />

Segundo Rosamaria Barbara, “não se pode compreender o lado musical ou da dança<br />

isoladamente, porque se trata de um todo semântico no qual cada aspecto estético remete<br />

ao outro na construção do orixá” (Barbara, 2002, p. 125). Ela continua escrevendo que a<br />

música “entra no mundo da motricidade corporea” e “as percussões passam do ouvido ao<br />

corpo inteiro, como se entrassem nos ossos e gerassem uma influência emotiva e<br />

energética no corpo” (Ibidem, p. 141). Esta cooperação entre o alabê, atabaque e orixá no<br />

caso do Candomblé e entre percussionista, tambor e dançarino na dança Afro é muito<br />

forte e todos os elementos precisam estar interligados para poder comunicar.<br />

Este capítulo analisou a ligação entre corpo, cultura e comunicação na dança,<br />

mostrando as interações e as conversas deste universo utilizando as teorias de dialogismo,<br />

cooperação e comunicação de vários autores. Viu-se como o princípio comunicativo da<br />

cooperação é o fundamento da vida e da dança, e analisou—se o diálogo como forma<br />

primária de comunicar sentidos e significados. Seja entre dançarinos, ou entre dançarino<br />

e audience, ou entre dançarino e tambor, a transmissão de mensagens acontece através do


diálogo e da interação, onde a mensagem é uma estrutura complexa de significados e<br />

onde o significado não é fixo (Hall, 2003). Stuart Hall continua explicando em outro<br />

texto que o significado não está inerente às coisas, mas é construido e produzidos na<br />

prática. Como vimos antes, esta produção de significado na prática acontece através da<br />

interação e do discurso, no qual o objeto em questõ só assume significado em relação ao<br />

espectador e ao “outro” que está interagindo (Hall, 1997). No caso deste trabalho, viu-se<br />

como na prática o corpo em movimento do dançarino consegue estabelecer um diálogo e<br />

comunicar umas mensagens que fazem parte de um dado contexto cultural, neste caso, o<br />

da experiência e história de matrizes africanas no Brasil.<br />

CAPITULO 5 - A Intuição do Corpo<br />

(O Corpo na Dança e a Dança no Corpo)<br />

Be content with a body that refuses to hold still.<br />

Margaret Lock<br />

Corpo como instrumento, “pessoa” e mediador cultural<br />

Há séculos o pensamento ocidental considerou o ser humano como algo constituido<br />

por duas partes separadas, o corpo e a alma. Nesta visão dualística, o corpo é<br />

considerado como objeto material conhecível e como suporte do espírito, visto como


sujeito imaterial, psíquico e racional. Foi somente a partir das últimas décadas que o<br />

corpo tem alcançado um outro tipo de argumento. Com esse novo argumento<br />

estabelece-se uma ruptura com a visão cartesiana, em direção a uma teoria<br />

construtivista do corpo. Através de uma viagem entre algumas teorias antropológicas<br />

do corpo, com as quais me familiarizei no curso de antropologia do corpo do primeiro<br />

semestre 2009, mininstrado pelo Prof. Julio Tavares, este capítulo visa a explorar a<br />

construção da corporeidade como meio comunicativo e como sujeito constitutivo do<br />

real e, mais especificamente, pretende apresentar um corpo como protagonista na<br />

construção de significados na performance da dança Afro.<br />

Começando a analisar como o corpo é produto da sociedade, Marcel Mauss, no<br />

texto As Técnicas Corporais, escreve como o corpo humano é moldado e adaptado às<br />

condições estabelecidas pelas disciplinas e pelos elementos de poder na sociedade. Ele<br />

enfatiza a transmissão da tradição, querendo dizer que as técnicas corporais são ensinadas<br />

e o corpo é o produto de uma adaptação. O modo de olhar, assim como o modo de andar<br />

e o comportamento são atividades resultantes de um trabalho fisiológico e são produto da<br />

transmissão cultural (Mauss, 1934). Mauss portanto fala de um homem total, constituído<br />

pelo lado físico, psicológico e sociológico. Mesmo que nos textos de Mauss esteja<br />

presente uma dicotomia entre corpo e alma, ele começa a reconhecer a interação e<br />

cooperação entre estes elementos.<br />

Mauss traz exemplos de como o corpo aprende coisas diferentes a partir de<br />

situações diferentes, tais quais a questão de gênero, idade e ambiente. O homem consegue<br />

utilizar seu corpo e produzir técnicas corporais dependendo do ambiente, e acostuma o<br />

corpo a determinada ação. O corpo é definido por Mauss como o instrumento e meio<br />

técnico do homem, e as técnicas são procedimentos incorporados ligados à tradição e à<br />

transmissão, especialmente oral. Segundo Mauss, o processo é inconsciênte, onde o corpo<br />

é um elemento da natureza que absorve a consciência coletiva da sociedade e da cultura.<br />

O corpo portanto é considerado como um produto de um pensamento coletivo. Mesmo<br />

tendo elementos inovadores na análise de Mauss, ele não consegue quebrar<br />

definitvamente com o dualismo cartesiano que sempre influenciou as ciências ao se falar<br />

de corpo e alma como duas coisas distintas onde a alma é considerada a parte pensante,<br />

ou seja o “eu”. No entanto, ao introduzir o corpo na sua discussão, Mauss contribui para<br />

se entender o corpo como sujeito pensante e como pessoa.<br />

Falando da noção de pessoa, Mauss também escreve sobre a formação da<br />

categoria do “eu” e sobre as várias formas de ser um determinado sujeito em determinado


lugar, pois existem formas diferentes de ser pessoa em ambientes diferentes. Trazendo<br />

esta discussão para o campo da dança, é interessante perguntar “qual é a noção de pessoa<br />

do dançarino Afro no campo da dança Afro? Quem é este dançarino na dança?”. Para se<br />

compreender as respostas a estas perguntas, vamos considerar a linguagem com a qual os<br />

“dançarinos” coonceituam a si próprios e o contexto que os envolve, pois como afirma<br />

Stuart Hall, “a realidade é constantemente mediada pela linguagem ou através dela”<br />

(Hall, 2003, p.392). O primeiro detalhe interessante a respeito disso que fiquei reparando<br />

ao longo da minha convivência com profissionais ou amadores do campo da dança Afro,<br />

é que eles se definem como “dançarinos” e não como “bailarinos”, sendo esta última<br />

categoria mais ligada ao ballet clássico. Isso não quer dizer que não tenha técnicas de<br />

ballet no Afro, mas a categoria usada para se denominar cria uma distinção entre as duas<br />

áreas de dança.<br />

Um segundo aspeto sobre esta noção de pessoa é entender as dinâmicas e muitas<br />

vezes as contradições entre como os “dançarinos” se identificam e como os outros olham<br />

para eles e categorizam eles. Muitas vezes ouvi minha professora falar “ele\ela acha que<br />

dança mas não dança nada!”, se referindo a alunos que se definem “dançarinos” mas que<br />

ela acha que tenham muito ainda para aprender para poder se definir como tais. Durante<br />

uma entrevista com outra professora de dança com a qual fiiz algumas aulas em Salvador,<br />

ela disse:<br />

“Minha aula não é para dançarino profissional, é pra quem quer aprender. Tem<br />

todos os níveis, de quem “se diz” dançarino, porque, assim, digo “se diz” porque<br />

muitos se acham ne… até pessoas mais velhas que querem se divirtir.” (Tatiana,<br />

26 Agosto 2009).<br />

É possível portanto ver como esta noção e categoria de<br />

“dançarino” é bem flúida e depende da visão de quem está classificando.<br />

Com respeito à categoria específica de “dançarino de dança Afro”,<br />

quero apontar as pré-noções que a maioria das pessoas tem sobre quem<br />

é, ou deveria ser, que dança Afro, e utilizarei como exemplo as


experiências vividas em primeira pessoa sobre esta questão. Muitas<br />

vezes, ao falar que pesquiso e que faço dança Afro, a reação das pessoas<br />

é de surpresa e incompreensão. Dois exemplos mais recentes destas<br />

reações vieram um de uma professora acadêmica de dança e outro de<br />

um amigo de uma minha amiga. Ao falar da minha pesquisa, a<br />

primeira me perguntou: “Como você se envolveu e porque você estuda<br />

algo tão longe de você?”. O segundo comentário que recebi foi com tom<br />

mais surpreso ainda e disse: “Você faz dança Afro? Como assim? Você<br />

é branca!”. Analisando estas reações é possível ver como, pelo menos<br />

por quem é de fora e não me conhece, uma branca, e ainda mais não<br />

brasileira, não se encaixa nas noções assumidas de quem deveria ser um<br />

dançarino de Afro, cujo componente racial é, evidentemente, um<br />

componente do imaginário vinculado a tal categoria. Voltarei a analisar<br />

esta questão da “noção de pessoa” sugerida por Mauss com mais<br />

detalhes no próximo capítulo sobre corpo e identidade, onde falarei<br />

também do corpo do pesquisador no campo pesquisado.<br />

Voltando a explorar mais uma visão construtivista do corpo, a<br />

autora Mary Douglas no seu livro Pureza e Perigo fornece um exemplo<br />

de como analisar a construção do discurso e ver como os elementos<br />

estão interligados. Metodologicamente, querendo comprender o<br />

conjunto, ou seja o sistema, ela trabalha com elementos da semiologia<br />

cuja unidade de análise é o signo. O corpo para ela é o signo que dá<br />

conta da estruturação dos sistemas de classificação, e é uma forma de<br />

produzir um sentido. O signo portanto é visto como mediador da<br />

cultura, e o corpo, sendo um signo, é considerado como um elemento de<br />

comunicação e da cultura. A cultura, segundo Douglas, é a mediação<br />

das experiências dos indivíduos e ela reduz, controla, reforça, classifica


e ordena. O corpo então é a chave da comunicação e é nele que se<br />

realizam as ambiguidades presentes na sociedade com as quais Douglas<br />

se preocupa. O corpo é o suporte, o significante; Mary Douglas deu<br />

significado a este suporte nas culturas. O corpo é portanto o suporte das<br />

classificações em cada determinada cultura (Douglas, 1982).<br />

Mas, Douglas não foi a única a se preocupar com as “impurezas” e “sujeiras”<br />

presentes nas sociedades. No texto “The Pre-Eminence of the Right Hand”, Robert Hertz<br />

discute a ligação entre cérebro e movimento com resguardo ao maior uso da mão direita<br />

sobre a esquierda. Tomando as pesquisas biológicas segundo as quais existe uma ligação<br />

entre o desenvolvimento da parte esquierda do cérebro e o desenvolvimento da parte<br />

motória direita, Hertz pergunta “somos destros porque a parte esquierda do cérebro é<br />

mais desenvolvida, ou pode ser o contrário?”. Ele levanta uma questão ignorada por<br />

todos sobre a possibilidade do movimento de um lado do corpo ter uma influência sobre<br />

a maior atividade de uma parte oposta do cérebro. Sob esta perspectiva, Hertz conduz<br />

uma discussão sobre a hierarquia da mão direita, instituída socialmente. Ele afirma que<br />

até pode existir uma predisposição biológica para a mão direita, mas a sociedade a<br />

reforça, desvalorizando a mão esquierda. A esquierda é portanto vista como “sinistra”, e<br />

inferior (Hertz, 1909).<br />

O dualismo entre sagrado e profano que existe no mundo está presente no corpo<br />

também, e as práticas religiosas legitimam este dualismo. Além da religião, hoje em dia a<br />

ciência, como antigamente era a filosofia, é outro cânone que legitima o dualismo na<br />

sociedade. Hertz tenta quebrar com esta visão escrevendo, neste texto, que o orgânico,<br />

mesmo sendo importante, não determina completamente o indivíduo, pois o social<br />

participa muito também. O processo cognitivo não é só biológico, mas também social, e<br />

nós somos cultura e natureza ao mesmo tempo. Tudo conflui no sujeito, o qual vira um<br />

ser dinâmico, instável, ator de práticas sociais, as quais possuem múltiplas facetas e<br />

sempre deveriam ser analisadas a partir de múltiplas perspectivas (Hertz, 1909).<br />

Pensando o texto de Hertz no contexto da dança, é claramente possível ver como o<br />

dualismo entre os dois lados do corpo está presente e incorporado em nós, e como o<br />

lado direito assume um papel prioritário sob dois pontos de vista. Primeiro,<br />

convencionalmente, todos os movimentos, as coreografias e as direções que um<br />

instrutor de dança passa são sempre a partir do lado direito primeiro. Sem o professor


precisar mais falar depois de algum tempo, os alunos de dança já sabem que precisam<br />

começar com o lado direito: com o pé, a perna, o braço, a mão direita primeiro, para<br />

depois executar o movimento do outro lado. Para que possa-se apreender bem o<br />

movimento, ele é executado e repetido mais do lado direito, pois é o primeiro a ser<br />

utilizado. Ao trocar e executar os passos do lado esquierdo, os dançarinos encontram<br />

muita dificuldade. Um exemplo prático disso vem do meu diário de campo,<br />

registrando uma aula de dança Afro no Circo Voador:<br />

“Hoje estávamos fazendo uma série de movimentos seguindo a Eliete-ela<br />

executava, e a gente repetia os movimentos depois dela. Muitos deles requeriam<br />

movimentar uma lado do corpo de cada vez, e sempre começávamos com o lado<br />

direito. Ao mudar para o lado esquierdo, eu e os outros alunos, nos sentimos<br />

totalmente desorientados e parecia como se o movimento, executado<br />

anteriormente do lado direito razoavelmente bem e sem confusão, estivesse agora<br />

errado. A execução do lado direito saiu “automaticamente”; no entanto, antes de<br />

fazer o mesmo movimento do lado esquerdo, foi preciso parar para pensar e tentar<br />

várias vezes coordenar as partes inferiores e superiores do corpo para reproduzir<br />

aquela energia do lado esquierdo.” (6 Abril 2009)<br />

Esta experiência pode ser tanto um resultado da hierarquia do lado<br />

direito sobre o esquerdo que viemos incorporando socialmente durante<br />

a nossa vida, quanto um resultado mais especificamente do ambiente da<br />

dança, que reforça esta hierarquia e ensaia primeiro, e portanto mais, o<br />

lado direito do corpo.<br />

Mas, além das visões construtivistas analisadas até agora, como<br />

pode também ser possível entender esta execução e prática de<br />

movimentos mais ou menos “automâtica”? Como o corpo consegue se<br />

comportar de certa maneira ou outra, dependendo do contexto? Qual é<br />

o papel e a importância do corpo dançante na produção de significados?<br />

Para que possa-se tentar responder a estas perguntas é preciso explorar<br />

outras abordagens teóricas com respeito ao corpo, as quais vão<br />

desconstruindo mais e mais o dualismo entre o corpo-objeto e a almasujeito,<br />

e as quais propõem uma idéia de um corpo-sujeito capaz de<br />

entender e de produzir conhecimento.


O Corpo que (se)pensa dançando<br />

Uma análise que pense o corpo como sujeito ativo moldado socialmente deve sem<br />

dúvida considerar o conceito de habitus de Bourdieu. Segundo Bourdieu, o habitus é um<br />

principio tanto estruturado quanto estruturante, pois expressa a maneira pela qual a<br />

sociedade está depositada nas pessoas sob forma de habilidades ou modos estruturados de<br />

pensar, sentir e agir, que, em seguida guiam as pessoas nas suas respostas criativas às<br />

solicitações dos seus milieus sociais (Wacquant.)<br />

O conceito de habitus portanto propõe um sujeito ativo, produto de experiências<br />

individuais situacionadas dentro de um campo social. Ao explicar o habitus de Bourdieu,<br />

Setton escreve que “ os habitus individuais, produtos da socialização, são constituídos em<br />

condições sociais específicas, por diferentes sistemas de disposições produzidos em<br />

condicionamentos e trajetórias diferentes, em espaços distintos…” (Setton, 2002: 65).<br />

Usando as próprias palavras de Bourdieu, ele diz que o conceito de habitus confere ao<br />

agente uma “capacidade de construir a realidade social, ela mesma socialmente<br />

construída, que não é a de um sujeito transcendental, mas a de um corpo socializado”<br />

(Bourdieu, 2001, p. 167). No mesmo texto “O conhecimento pelo corpo”, Bourdieu<br />

afirma que “Aprendemos pelo corpo” (Ibidem, p. 172). Segundo o autor, a ordem social<br />

se inscreve nos corpos, e existe uma “compreensão prática”, onde é “o sentido prático do<br />

habitus habitado pelo mundo que ele habita…que constrói o mundo e lhe confere um<br />

sentido” (Ibidem, p. 173).<br />

O habitus se realiza portanto no corpo, o qual é produzido por rotinas e ensinamentos<br />

e que, ao mesmo tempo, realiza as aprendizagens. Segundo Bourdieu, o habitus é um<br />

conjunto de disposições corporais incorporadas socialmente. O aprendizado portanto é<br />

muito mais do que uma internalização de idéias e de regras; ele é mais um aprendizado<br />

que ocorre agindo. Um exemplo prático disso vem das aulas e ensaios de dança, onde<br />

o corpo aprende o movimento fazendo-o. A seguir está um trecho de diário de campo<br />

de uma aula de dança Afro que fiz em Salvador:<br />

“Depois do alongamento, chegou a hora na qual todo mundo na aula forma várias<br />

filas e a professora executa um movimento na frente de todos nós, que, seguindo<br />

ela, reproduzimos o movimento e executamos ele até a outra extremidade da sala.<br />

Aí reparei que só conseguia reproduzir o movimento se, ao olhar a professora<br />

fazendo ele, eu tentasse fazê-lo junto. Se ficasse somente olhando primeiro, na<br />

hora de partir para executar o movimento, não conseguia acertar os passos e me<br />

coordenar.” (18 Agosto 2009).


A partir deste conceito, pode-se ver como há um conhecimento que é corporificado, ou<br />

seja que está presente dentro do meu corpo e que me garante andar no mundo. Este<br />

conhecimento é o resultado da constante interação entre o corpo e o mundo, entre o<br />

“eu” e o contexto, que estão sempre em contato e influênciando um ao outro.<br />

Esta idéia de Bourdieu nos leva a uma postura mais radical ainda, onde o corpo, o<br />

mundo e o indivíduo se entrelaçam e interagem de tal maneira que o dualismo cartesiano<br />

pode-se considerar superado. Trata-se da abordagem fenomenológica de Merleu-Ponty,<br />

fundamental para analisar o corpo em movimento na dança. Através desta abordagem,<br />

desconstrói-se a idéia de corpo como simples expressão de significado e, em seu lugar,<br />

ergue-se um corpo sujeito, produtor de significado e de discurso. Na obra A<br />

Fenomenologia da Percepção, Merleu-Ponty pergunta: “se o corpo é instrumento, quem<br />

o instrumentaliza? A resposta é o próprio corpo, na medida que é extensão do meu “ser”,<br />

torna-se dele o agente. No momento em que corpo e consciência são interagentes,<br />

deveria-se reconhecer certa subjetividade ao corpo (Merleu-Ponty, 1971).<br />

O corpo, segundo Merleu-Ponty, é o locus da manifestação da existência, dos atos<br />

incorporados, e é sujeito. É no corpo-próprio o lugar onde o sujeito “reconhece o corpo e<br />

estabelece com ele uma subjetividade incarnada, instaurada e instauradora de sentidos”<br />

(Julio). Tudo portanto está no corpo, e este é o veículo de comunicação do ser no mundo.<br />

Gestos e vozes são linguagens construídas através do meu corpo. O mundo então não<br />

pode ser pensado fora da experiência corporal, pois o corpo não é só suporte; ele é a<br />

janela da minha experiência no mundo (Merleu-Ponty, 1971).<br />

Esta visão fenomenológica de Merleu-Ponty vê um corpo, ou seja um sujeito, que<br />

não é somente “pensante”, mas que é também um sujeito que sente ao mesmo tempo.<br />

Este corpo está toda hora se deparando com o mundo, considerado pelo autor como algo<br />

concreto, como objetos não abstratos. O corpo é o ponto de vista sobre este mundo e se<br />

relaciona com os objetos, com as formas presentes ao seu redor de maneira efetiva e<br />

afetiva, pois o corpo não é só movimento, mas também sensibilidade, e a emoção é<br />

fundamental na experiência do mundo. É preciso portanto realizar experiências sensóriomotoras<br />

antes de tudo no próprio corpo, para poder entendê-las. De maneira parecida<br />

Sartre, no texto O Corpo, extraído de “O ser e o Nada: Ensaio de Ontologia<br />

Fenomenológica”, escreve que eu sou o que o mundo é capaz de apresentar para mim, e<br />

que o meu lado sensível emerge na hora que me coloco em relação com as formas do


mundo (usando o conceito de Merleau-Ponty) diante de mim. O mundo é o encontro da<br />

sensação com a ação; ele é fruto de uma experiência vivida e da capacidade de imaginar<br />

esta experiência vivida. Não existe portanto um “fora” e um “dentro” do mundo (Sartre,<br />

1997).<br />

Voltando à teoria de Merleau-Ponty, pode-se afirmar que esta visão une inteligência, motricidade e percepção em um<br />

corpo-sujeito. Este corpo não é simplesmente uma coleção de orgãos, mas é organizado segundo um “esquema corporal” que, unindo<br />

os elementos de corpo, espaço e ação, expressaria a localização do corpo no mundo e permite entender como exprimir e situar seu<br />

corpo no mundo (Merleu-Ponty, 1971). Ao falar de espaço e localização, aparece um elemento fundamental na discussão de Merleau-<br />

Ponty: o movimento. O movimento não é somente ação locomotora; ele é provido de sentido e significado, e ele cria a consciência, a<br />

imagem corporal e o espaço. Na hora da execução do movimento, o sujeito não precisa pensar antes para poder executar; é algo que<br />

acontece simultaneamente. O corpo em movimento é portanto a demonstração da atividade do movimento. O ato do movimento não é<br />

mecânico; ele traz uma inteligência em si. Isso quer dizer que existe uma “compreensão corporal” que leva o corpo a se movimentar,<br />

respondendo fisicamente após compreender a situação. A resposta corporal já é interpretação; ela não é nem uma resposta mecânica,<br />

nem uma avaliação mental; esta resposta corporal já é uma compreensão da situação (Merleu-Ponty, 1971).<br />

Para entender o que isso significa praticamente na dança, trago aqui um momento de uma aula no Circo Voador, onde o<br />

corpo compreendeu a situação e executou o movimento sem que tivesse uma avaliação mental anteriormente. Nesta situação minha<br />

professora colocou vários ritmos diferentes de música, trocando toda hora e deixando-nos livres para executar qualquer movimento.<br />

Ao ouvir a música o corpo já respondia de certa maneira:<br />

“Durante a aula executamos movimentos variados ao mudar constante dos ritmos, rapidamente. Naquele momento o corpo está<br />

pensando; a gente reflete depois no movimento que já conhece por cada estilo de música, mas a memória está no corpo.” (30<br />

Março 2009).<br />

Neste caso, através do sentido da audição, o corpo compreendeu uma situação que, de acordo com as memórias de experiências<br />

passadas, pediu ao próprio corpo de se movimentar com um certo “estilo”. Como tudo aconteceu de maneira tão rápida, a<br />

interpretação da música foi a própria resposta corporal e não um pensamento anterior à movimentação. Isso indica que o corpo<br />

“pensou” e “lembrou-se” sozinho dos movimentos aprendidos e dos diferentes ritmos, e foi capaz de executar o que aprendeu na<br />

prática. Utilizando as palavras de Merleu-Ponty, ao falar de “adquirir o hábito de uma dança”, ele escreve: “é o corpo…que agarra e<br />

que “compreende” o movimento. A acquisição de um hábito é bem a apreensão de uma significação, mas é a apreensão motora de<br />

uma significação motora” (Merleu-Ponty, 1971, p. 154). A própria Eliete (minha professora), durante uma outra aula no Circo Voador<br />

na semana seguinte disse: “não se trata de copiar o movimento, é entender ele. O importante é sentir, cada um com seu jeito, prestar<br />

atenção aos detalhes e ver a ciência do movimento” (Eliete, 6 Abril 2009).<br />

Voltando à relação entre o corpo e o mundo, Merleau-Ponty diz que precisamos<br />

habitar o mundo do objeto para penetrar nele, ou seja, o corpo não pode se distanciar do<br />

objeto para conhecê-lo; ao contrário, precisa penetrá-lo. A visão fenomenológica propõe<br />

um abandono de si no outro, para poder conhecer o outro habitando e adotando-o. A<br />

divisão corpos-objetos do positivismo não está mais presente aqui. Segundo Merleau-<br />

Ponty os objetos são corpos e os corpos são objetos, e o mundo é mobiliado por corpos e<br />

objetos, por formas que se relacionam toda hora, criando várias possibilidades de<br />

encontros no espaço. Dentro deste espaço do mundo, o corpo tem seu mundo próprio,


sua singularidade, onde o gesto é fundamental na produção de linguagem e comunicação<br />

deste corpo com o mundo. O gesto é onde o corpo se realiza, é a estrutura da memória. O<br />

gesto é usado para recuperar a memória, pois nele pensamento e movimento estão juntos.<br />

Cada gesto é um ato significativo, pois fornece muita informação sobre a vida do sujeito.<br />

Não existiria portanto vida sem gestos, pois até a fala é executada por gestos. O corpo é<br />

então um medium, elemento fundamental da comunicação (Merleu-Ponty, 1971).<br />

Fazendo uma comparação com Goffman, cuja teoria foi analisada no capítulo 1 deste<br />

trabalho, podemos dizer que o acontecimento motor conforme é visto por Merleau-Ponty<br />

estabelece os jogos interacionais pelos gestos, e mostra a dimensão corporal e sensorial<br />

das mesmas interações. A comunicação, segundo o autor é, portanto, vista como a<br />

extensão do homem em contato com o outro. Vamos agora explorar mais em detalhe esta<br />

noção da importância do gesto como criador de significado, e o uso deste gesto na<br />

performance da dança Afro.<br />

O gesto na Performance da dança Afro<br />

Continuando a discussão sobre a importância do gesto, uma grande contribuição<br />

vem de George Herbert Mead. Baseando sua teoria na interação social, Mead afirma que<br />

é no gesto que se produzem a experiência e o significado, e, mais especificamente, o<br />

autor considera o que ele define de “conversation of gestures” como a chave da<br />

organização social (Mead, 1967). Essa conversa, portanto, esta comunicação, é o que<br />

gera a interação, movida por uma operação coordenada e cooperativa. O sentido está na<br />

organização da experiência através de gestos e a produção de significado deriva da cooperação<br />

na conversa de gestos (Ibidem). Pode-se observar aqui uma semelhança com a<br />

teoria de Erving Goffman analisada anteriormente, onde as conversas corporais e as<br />

interações entre indivíduos criam significados e organizam as situações sociais. Goffman<br />

relativiza tudo, juntando as técnicas do corpo com a formação do “eu”. A linguagem em<br />

Goffman se realiza no corpo e como um ato performático. A fala não é somente um som,<br />

mas uma perspectiva e uma atitude. Através de atos de fala, de condutas e de linguagem<br />

se produz o “eu”, que é portanto uma construção social. Comparando então Goffman com<br />

Mead no discurso sobre linguagem, segundo este último, toda conversa tem uma ordem e<br />

um jogo gestual que a organiza (Mead, 1967). Por ambos, a cooperação entre os


indivíduos é fundamental para o sucesso da interação e a produção de significado, assim<br />

como foi visto no capítulo anterior analisando as teorias cooperativas de Maturana,<br />

Bakhtin e os outros autores utilizados.<br />

Um exemplo de uma conversa corporal que se realiza através do gesto é a<br />

experiência de “contracenar” na dança. Usa-se esta expressão quando quer se indicar uma<br />

interação entre dois ou mais dançarinos, os quais vão respondendo um ao gesto e ao<br />

movimento do outro, tentando estabelecer um diálogo e construir uma coreografia. A<br />

contracena na dança é parecida com o jogo na capoeira, onde constroi-se uma conversa<br />

de gestos entre os corpos envolvidos no jogo. Nos ensaios do Centro Coreográfico do Rio<br />

de Janeiro exercitamos várias vezes o ato de contracenar:<br />

“O outro exercício de hoje foi uma contracena onde cada um começou a criar<br />

movimentos no meio da sala, e aos poucos teve que contracenar um com o outro,<br />

até juntar-se a todo mundo e contracenar com todos ao mesmo tempo, juntos, se<br />

tocando, até parar no chão e andando juntos, entrelaçados no chão, juntando os<br />

corpos. Os corpos se juntaram, entrelaçaram, se tocaram sem reter nada, ousando.<br />

Não foi fácil. Tem que se desenvolver muita confiança para este tipo de trabalho,<br />

aprender a conhecer os outros. Experiencia-se muito medo de não saber os<br />

limites, até onde você pode ir. Foi uma maneira para se descobrir também, na<br />

mudança de olhar, e ver que nosso corpo é um mistério a ser desvendado.” (18<br />

Abril 2009).<br />

Pode-se observar como esta interação corporal foi cheia de movimentos, emoções,<br />

medos, descobertas e como “não foi fácil”. Para que se crie uma coreografia de corpos<br />

em movimentos, todos estes fatores precisam interagir, e eles somente interagem a partir<br />

dos próprios gestos executados por corpos em movimento. Graças aos gestos então, os<br />

corpos puderam “se juntar, entrelaçar e se tocar sem reter nada”. Confiando no outro e<br />

estabelecendo a cooperação entre os dançarinos, foi possível realizar a descoberta do<br />

próprio corpo e do dos outros, rendendo possível a realização da contracena.<br />

Percebemos então a convergência das contribuições de Mead e Goffman. No<br />

entanto, outros autores, além dos analisados no capítulo 1, contribuem com outras<br />

abordagens a interação e conversa de gestos como produtoras de significado. Mais em<br />

específico, continuaremos vendo como esta interação acontece no campo da performance,<br />

seja esta sagrada ou profana, seja entre os atores envolvidos no ritual ou no palco com a<br />

audience. O texto “Performance and the Cultural Construction of Reality: a New Guinea<br />

Example” de Schieffelin traz um exemplo de etnografia e análise de ritual, neste caso um


itual espírita na Nova Guiné, onde o autor inclui uma descrição detalhada, seguida por<br />

uma análise, na qual ele ressalta a importância dos atores da performance, tanto dos<br />

envolvidos no ritual quanto da audience (Schieffelin, 1993). Assim como Turner também<br />

teoriza, Schieffelin escreve que o ritual é validado pelo público e que o significado só se<br />

dá durante a interação social. Não existem portanto estruturas fixas: elas são construídas a<br />

cada ritual e as crenças vão se formando dependendo do ritual. Não existe portanto uma<br />

estrutura, uma lógica de significado, pois o sistema de crenças não é fixo e depende do<br />

jogo entre a platéia e os atores em um determinado contexto. O ritual é formado pelo<br />

conjunto de evocações que um evento cria, e são estas evocações que precisam ser<br />

observadas e analisadas (Schieffelin, 1993).<br />

Como exemplificação deste argumento, trarei minha experiência pessoal como<br />

espectadora de rituais de Candomblé da nação de Ketu no Rio de Janeiro. Desde que<br />

comecei a fazer dança Afro, me interessei para conhecer mais sobre os Orixás que a gente<br />

estava dançando, e foi assim que comecei a frequentar festas de terrreiros de candomblé.<br />

Lembro das minhas primeiras vezes assistindo estes rituais quando, mesmo sendo<br />

fascinada e atraída por aquelas cerimônias, não conseguia entender muito do que estava<br />

acontecendo. Na maioria das vezes, eu ia acompanhada por um amigo que é iniciado na<br />

religião, o qual tentava me explicar os inúmeros símbolos que estavam presentes no<br />

ritual, com seus usos e significados. Mesmo assim, lembro que não conseguia entender<br />

plenamente e ter uma exata noção da dinâmica das festas. Com o passar do tempo, fiquei<br />

frequentando mais e mais os terreiros e continuei dançando a dança de Orixás nas aulas<br />

com a Eliete, até que ultimamente, depois de quase dois anos de convivência e<br />

experiência dentro deste contexto, reparei o quanto um ritual de candomblé Ketu diz para<br />

mim. No mês de Junho fui para a inauguração de um Ilê em Nova Iguaçu e me deparei<br />

com a seguinte experiência pessoal:<br />

“Cada pessoa executava o gesto com seu próprio estilo, mas podia-se reconhecer qual gesto era. Como espectador, fui capaz de<br />

reconhecer a maioria dos gestos e saber a qual orixá pertenciam, mesmo reparando a diferença entre a execução do gesto no xirê<br />

do ritual e na dança, onde é muito maior e mais estilizado… Foi interessante ver a simbologia pela qual, como audience, fui capaz<br />

de reconhecer cada Orixá, antes das danças: as cores da roupa, as guias no pescoço, as ferramentas de cada um…”(27 Junho<br />

2009).<br />

Este reconhecimento de gestos e símbolos que cada orixá apresenta<br />

durante o ritual, só foi possível graças a minha vivência e experiência.<br />

Foi somente por causa deste idioma corporal, conforme conceitua


Goffman e que venho aprendendo há uns anos, que os gestos e os<br />

símbolos do ritual do candomblé adquiriram um sentido e evocaram<br />

significado para mim naquela circunstância.<br />

Assim como o ritual para Schieffelin, a performance para Richard Schechner,<br />

como já vimos no capítulo 1, existe na interação entre ator e audience e é composta por<br />

vários momentos e fases que vão da preparação com treino e ensaio, ao após<br />

apresentação. No texto “Points of Contact Between Anthropological and Theatrical<br />

Thought”, Schechner apresenta como esta ligação entre ritual e performance exemplifica<br />

a ligação entre teatro e antropologia. A antropologia permite a passagem da vida de todo<br />

dia ao plano do teatro, do espetáculo. Ao se fazer uma análise antropológica, pode-se<br />

olhar para o cotidiano como um conjunto de atitudes corporais, ou seja um conjunto de<br />

desempenhos, de coreografias (Schechner, 1985). Um exemplo desta interação entre ator<br />

e audience na vida cotidiana pode ser trazido de uma experiência recente que tive<br />

andando pela rua em Salvador:<br />

Hoje experienciei algo que nunca tinha acontecido comigo no Rio. Me arrumei de<br />

manhã e coloquei uma bata amarela e preta, com um desenho de uma máscara<br />

africana. Como meu cabelo estava rebelde, amarrei ele com um pano amarelo,<br />

coloquei uns brincos com búzios e minha guia dourada no pescoço. Sai para<br />

tomar café e a garçonete do hotel comentou “tá bonita hoje, toda de Oxum”. Daí<br />

fui para a aula, e um professor do curso que estava fazendo disse “hoje você<br />

vestiu seu projeto”, sabendo que estava pesquisando dança de Orixás. À noite sai<br />

andando na Avenida Sete até o Pelourinho e pelo menos duas pessoas<br />

comentaram “Que Oxum linda” ou saudaram “Ora ie ie o”. (13 Agosto 2009).<br />

Lendo este trecho de diário, pode-se ver como os símbolos que estava<br />

vestindo, referendo-se à deusa das águas doces Oxum, assumiram e<br />

evocaram este significado em um contexto, tal qual a cidade de


Salvador, onde estes gestos corporais são entendidos através de uma<br />

vivência muito presente da religião Afro-brasileira, parte do cotidiano<br />

da cultura baiana. O amarelo presente na roupa e nos acessorios que<br />

estava vestindo foi imediatamente associado à cor símbolo da Iabá<br />

rainha dos rios. Os búzios e a estampa do vestido contribuiram para a<br />

formação de um visual “Afro”, o que pode ter provocado mais tais<br />

respostas. No Rio de Janeiro, ao contrário, não sendo estes gestuais uma<br />

parte predominante da experiência das pessoas no cotidiano da cidade,<br />

nunca encontrei uma tal interpretação ao atuar certos gestos visuais.<br />

O gesto é um elemento muito poderoso e capaz de comunicar<br />

coisas que a palavra por si só não consegue transmitir. No campo do<br />

sagrado, dos rituais e das emoções, o uso do gesto é fundamental.<br />

Rosamaria Barbara escreve que “O corpo expressa muito mais o<br />

contato com o divino que as simples palavras.” (Barbara, 1995, p. 168).<br />

È por isso que a comunicação nos rituais transmite-se através da dança,<br />

da música, dos movimentos corporais. Na performance de dança o gesto<br />

nasce do sentimento e é “como a exteriorização de sentimentos que se<br />

evidenciam no corpo” (Oliveira, 2006, p. 60). No momento da dança de<br />

Orixás, o gestual assume uma importância especial, conectando o corpo<br />

com uma energia da natureza e com um sentimento específico ligado a<br />

certo Orixá.<br />

Um exemplo interessante desta conexão entre dança e ritual através do gesto é fornecido<br />

pelo artigo “O Gestual Cotidiano das Lavadeiras e sua Relação com os Orixás uma<br />

Concepção Coreográfica”, onde Maria de Lurdes Barros da Paixão afirma que o mito<br />

pode se reafirmar na dança através dos movimentos do corpo, mesmo que estejamos<br />

falando da dança em um contexto técnico-artístico e dessacralizado (Barros da Paixão,<br />

2002, p. 99). O que faz possível a transmissão do mito e das histórias sagradas afro-


asileiras na dança Afro não é o contexto, mas a linguagem do corpo através da fala do<br />

movimento.<br />

Vários exemplos desta linguagem dos gestos contando mitos afro-brasileiros vêm<br />

dos gestuais da dança de orixás na dança Afro, como já tivemos oportunidade de ver no<br />

capítulo 3, falando sobre as características dos Orixás. Os movimentos das mãos de Iansã<br />

relembram o mito que conta da deusa do vento e da tempestade afastando os eguns<br />

(espiritos dos mortos) ao entrar no cemetério para enterrar o marido Xangô. A postura<br />

corporal deste último na dança, com cabeça erguida e peito aberto, reafirma o mito dele<br />

ser o rei forte e poderoso, que nunca olha para baixo e sempre mostra imponência. A<br />

dança de Obá, durante a qual ela segura uma mão na orelha toda hora, incorpora o mito<br />

segundo o qual Oxum mandou Obá cortar a orelha e colocá-la na comida de seu marido<br />

Xangô, para poder conquistar seu amor de volta. Mas esta foi uma cilada armada pela<br />

própria deusa dos rios e das águas doces, também apaixonada por Xangô, para que o rei<br />

repudiasse Obá. Cada gesto de cada Orixá executado na dança reafirma um mito,<br />

ajudando a retornar à ancestralidade e resgatando os fatos que ficaram na memória e que<br />

falam da história e da cultura de um povo (Barros da Paixão, 2002, p. 99). Cabe aqui<br />

trazer o texto de Leda Martins “Performances do Tempo e da Memória: os Congados”,<br />

onde ela afirma que a memória do conhecimento “se recria e transmite pelos repertórios<br />

orais e corporais, gestos, hábitos, cujas técnicas e procedimentos de transmissão são<br />

meios de criação, passagem, reprodução e de preservação dos saberes” (Martins, 2003, p.<br />

69). Ela continua escrevendo sobre o papel do corpo:<br />

“O corpo na performance ritual é local de inscrição de um conhecimento que se<br />

grafa no gesto, no movimento, na coreografia, na superficie da pele, assim como<br />

nos ritmos e timbres da vocalidade… Nas performances da oralidade, o gesto<br />

institui e instaura a própria performance” (p. 70)<br />

O corpo portanto, com todos seus elementos, a pele, o movimento, o gesto, os ritmos, a<br />

voz, é o lugar de memória do conhecimento, que se institui atraves da performance,<br />

graças à repetição de gestos, coreografias, músicas e cantos, técnicas que são todas<br />

veiculadas pelo corpo. Martins escreve sobre os Congados, um tipo de performance afrobrasileira;<br />

assim como a dança Afro, estas performances carregam, transmitem e recriam<br />

no corpo uma memória ancestral de origem africana, com suas histórias, seus valores e


suas características. Sendo a cultura afro-brasileira uma cultura predominantemente oral e<br />

gestual, o corpo vira local de memória por excelência, fazendo da dança a própria<br />

inscrição da memória neste corpo. Continuando com as palavras de Leda Martins:<br />

“O corpo em performance restaura, expressa e, simultaneamente, produz esse<br />

conhecimento, grafado na memória do gesto” (Martins, 2003, p. 82)<br />

O gesto vira portanto o protagonista da produção de conhecimento e do locus da<br />

memória. Ele é o instrumento de transmissão e reprodução das histórias ancestrais dos<br />

povos de matriz africana, que por séculos basearam a transmissão de suas culturas na<br />

oralidade. Tanto o ritual no campo sagrado quanto a performance da dança Afro no<br />

contexto profano são dois lugares onde o corpo expressa as memórias inscritas nele na<br />

prática e é utilizado para que recrie e transmita os mitos afro-brasileiros através da<br />

música, dos cantos, da indumentária, da dança, ou seja, através dos gestos.<br />

Finalmente podemos analisar a visão de Harold Scheub sobre gesto e interação na<br />

produção de significado na performance oral. Aqui o autor afirma que a matéria de toda<br />

performance é a cultura, formada por várias narrativas. O narrador portanto pega os<br />

elementos da vida cotidiana e usa eles na narrativa e na performance de arte, a qual<br />

provoca uma experiência estética na platéia. Na narrativa há portanto uma tradição<br />

atualizada através do real, ou seja a cronologia do passado é atualizada no tempo<br />

presente, juntando o mundo real ao mundo da fantasia. O narrador trabalha sempre em<br />

cima das reações da platéia e dos elementos emotivos sinalizados no corpo da audience.<br />

O gesto nisso é fundamental: ele tem a força de capturar a platéia e é o veículo da<br />

emoção, fornecendo a ligação entre corpo, oralidade e emoção presente na performance,<br />

assim como no ritual (Scheub, 1977).<br />

Para exemplificar como o gesto é tão poderoso na resposta emocional da platéia,<br />

uso a reação que eu tive como audience de um espetáculo de dança Afro no momento da<br />

dança de Orixás. A experiência foi quando fui assistir o espetáculo da Cia Rubens Barbot<br />

de dança previamente mencionado, intitulado “Orixás”. Este foi uma reinterpretação<br />

contemporânea da dança dos Orixás que, ao mesmo tempo, mantinha os gestuais e a<br />

simbologia típicos de cada orixá. Os elementos presentes no contexto estimulavam cada<br />

sentido, do cheiro do incenso, à luz das velas, ao vento do palco aberto onde a companhia<br />

estava se apresentando, ao toque dos atabaques. Cada vez que um orixá entrasse em cena,


todos os sentidos corporais se envolviam para curtir e compreender o espetáculo. Em dois<br />

momentos em particular, na apresentação de Oxum e na entrada final de Oxalá, meu<br />

corpo começou a se arrepiar e se emocionar de tal maneira que cheguei a chorar. Agora,<br />

racionalmente falando, não havia razão alguma para que eu tivesse esta reação, mas<br />

entendo que houve, como hipótese, uma compreensão corporal que aconteceu, estimulada<br />

pelos gestos presentes na performance, assim como no ritual.<br />

Para resumir estas construções de significados a partir da conversa de gestos entre<br />

indivíduos, Mead fala sobre o aspecto da memória. O autor considera a memória como<br />

um catálogo de experiências de gestos. As memórias e os gestos só se configuram através<br />

da experiência e a memória é produto da atividade pública do indivíduo. Algo só tem<br />

significado se for construído pela ação; portanto, se não há memória da experiência, o<br />

gesto visual não possui significado. Este gesto será percebido mas não será<br />

compreendido, pois não tem consciência sem a experiência (Mead, 1967). Analisaremos<br />

agora mais esse aspecto do gesto dentro do contexto da memória corporal para<br />

chegarmos ao conceito de “embodiment”, que está na base de toda a discussão<br />

desenvolvida até agora sobre corpo e dança.<br />

Memória corporal e Embodiment<br />

Evidenciei já no capítulo 1 e ao longo deste capítulo também a forte conecção que<br />

existe entre performance e ritual, entre o contexto sagrado e o profano; no caso deste<br />

trabalho as experiências performáticas no campo profano da dança Afro oferecem uma<br />

clara noção de quanto este campo profano se aproxime do contexto sagrado do ritual de<br />

Candomblé, onde os “santos” são incorporados pelos sujeitos do ritual. Com respeito a<br />

este campo sagrado, é interessante olhar para uma análise do corpo em estado de<br />

possessão, e por isso podemos fazer uso dos estudos de Paul Stoller sobre “Spirit<br />

possession”. Na obra Embodying Colonial Memories, Stoller explora o campo dos<br />

sentidos e das sensorialidades, analisando as performances dos corpos envolvidos na<br />

possessão de espíritos em rituais e olhando para as sensações, as vibrações e as emoções<br />

presentes nos sujeitos destes eventos. Ele considera o corpo como fundamental, assim<br />

como “os cheiros, os sabores, as texturas e as sensações” (Stoller, 1995, p. 22).


O que é que estas sensações provocam dentro de um ritual coletivo? Utilizando os<br />

conceitos de Connerton, Stoller escreve que uma memória social se forma nestes rituais,<br />

pois eles se referem a pessoas e eventos históricos ou mitológicos e estas referências não<br />

são simplesmente pensadas ou contadas: elas são atuadas através de práticas corporais<br />

(Stoller, 1995). Estas práticas, ou seja “o substrato incorporado da performance”, é a<br />

chave para a memória cultural, onde “o passado é, como era, sedimentado no corpo”<br />

(Ibidem, p. 29). Indo mais além desta concepção do Connerton, Stoller adiciona os<br />

sentidos e as sensações a estas experiências e performances, afirmando que a memória<br />

cultural é um fenômeno incorporado. Esta afirmação é bem exemplificada pelas histórias<br />

que o Stoller traz no seu texto do livro Corregidora de Gayl Jones. Trazendo uma história<br />

do meu campo etnográfico, é evidente como a memória “embodied” está presente nos<br />

corpos dos dançarinos do nosso grupo de dança Afro. Em um ensaio no Centro<br />

Coreográfico do dia 25 de Abril 2009, cada pessoa do grupo interpretou uma parte de<br />

uma poesia, cujo texto é o seguinte:<br />

Echoam Atabaques nas Senzalas…<br />

Ressoam Atabaques nos terreiros das fazendas, sufocando gemidos, lamentos, tormentos<br />

Ressoam Atabaques nos terreiros das fazendas, para afastar a saudade da terra amada<br />

que deixou<br />

Ressoam Atabaques nos terreiros das fazendas, louvando Zumbi dos Palmares, negro de<br />

grande valor<br />

Ressoam ainda hoje os Atabaques, nos morros, guetos, favelas, alertando ao povo negro<br />

que a liberdade ainda não chegou.<br />

Cada dançarino declara estes versos ao se afastar de uma figura corpórea que tinha sido formada e que a gente chama de<br />

“árvore”, ou seja um conjunto dos nossos corpos encaixados um no outro, onde as pernas, os braços, as mãos, os troncos e as cabeças<br />

são utilizados para formar o tronco, os galhos e as folhas da árvore Baoba, elemento sagrado na cosmogonia Africana, símbolo de raiz<br />

e ancestralidade. Ao se movimentar para longe da árvore e ao declarar esta poesia, o corpo de cada um incorporou na voz, no olhar, na<br />

atitude e em cada gestual as sensações que esta realidade, esta história oral conta para nós. Os gestos corporais eram cheios de dor na<br />

primeira estrofa, de tristeza e saudade na segunda, de força e orgulho na terceira, e de raiva e realidade na última estrofa.<br />

Esta performance é um exemplo de como a memória é um saber prático e de<br />

como a memória de um grupo se constitui em performances que re-apresentam o passado,


e-experienciando-o e revivendo-o, assim que não fique tão distante. Como os<br />

participantes do grupo disseram depois da performance desta poesia, “a gente busca<br />

nossa identidade através da dança” (S.); “com nossas conversas a gente resgata nossa<br />

história e nossa memória” (F.); e “isso está no corpo, é uma memória que vai aparecendo<br />

através do gestual” (E.). Como escreve Oswald Barroso no artigo “Incorporação e<br />

memória na performance do ator brincante”, a gente possui um conhecimento habitual,<br />

uma “recordação no corpo”, adquirida através de um percurso de incorporação (Barroso,<br />

2004, p. 70). O corpo pode portanto ser lido como um texto que contém significados e,<br />

utilizando a noção de Connerton, Barroso escreve que “muitas formas de memória se<br />

sedimentam no corpo” (Ibidem, p. 76). Em tudo isso a importância do espaço e do gesto<br />

são fundamentais na conservação da memória cultural através do corpo, pois, como<br />

lembra Bastide, “os rituais não são mais que a tradução dos mitos em gestos” (Barroso,<br />

2004: 77).<br />

Para explicar mais a noção de embodiment, retomamos o discurso de Thomas<br />

Csordas, o qual considera o corpo como “fundamento existencial da cultura” (Csordas,<br />

1994). O corpo não é portanto separado da mente e não é só suporte, mas é chão da<br />

cultura e do “eu”. O ser é dinâmico, sempre em movimento na prática da experiência. O<br />

corpo é o lugar da fluição da experiência e a cultura está incorporada no corpo. Ao<br />

estudar e etnografar a religião pentacostal, Csordas mostra a interação corpo\mente e<br />

mostra que existe uma dimensão abstrata do corpo tanto quanto a dimensão incorporada<br />

da mente. No estudo dele sobre glossolalia, relatado no texto “Embodiment as a<br />

Paradigm”, pode-se observar o envolvimento sensível da palavra e o intercâmbio entre<br />

corpo e linguagem. A narrativa provoca respostas não só intelectuais mas sensíveis, então<br />

as histórias são compreendidas sensorialmente. Existe portanto uma correspondência<br />

entre o mito narrado e a experiência corporal. Csordas descreve como as respostas<br />

gestuais imediatas a gestos de outras pessoas, as quais mostravam uma impressão de<br />

espontaneidade coletiva, indicavam o entendimento imediato e intuitivo de todos do<br />

significado implícito do gesto (Csordas, 1990). Um pouco mais adiante no texto, Csordas<br />

escreve que este sentido de fazer o que “parece estar certo” emerge espontaneamente,<br />

com tanto que os participantes tenham acesso imediato ao conhecimento corporal<br />

inculcado como disposições compartilhadas culturalmente (Ibidem).


Trazendo esta discussão para a dança, consigo pensar em várias ocasiões nas<br />

quais este senso do que “parece estar certo” foi o guia inspirador da execução de vários<br />

movimentos e gestuais. Dois exemplos são bastante explicativos deste processo de<br />

compreensão corporal devida ao embodiment de certas disposições; o primeiro mostra<br />

uma resposta corporal a um estímulo auditivo, o outro apresenta uma resposta a um<br />

estímulo visual. Primeiro, durante o alongamento de uma aula no dia 3 de Junho na UERJ<br />

aconteceu algo que reparei ser fruto de um certo hábito e de uma memória corporal:<br />

“Estávamos em uma posição com um joelho dobrado e a outra perna esticada<br />

atrás, com as mãos apoiadas no chão, alongando as coxas, quando a Eliete deu a<br />

ordem: “abram”. Eu imediatamente reagi e me posicionei com as duas pernas<br />

esticadas , tronco lá em baixo e mãos ainda no chão. Mas reparei que algumas das<br />

pessoas que eram novas na aula e não estavam acostumadas com o alongamento<br />

da Eliete, não assumiram logo a nova posição, pois não tinham entendido o<br />

comando.” (3 Junho 2009).<br />

Esta experiência mostra como, respondendo a uma ordem vocal tão<br />

genêrica como “abram”, só me foi possível executar o passo certo pois<br />

eu já tinha no meu corpo um conhecimento prévio do movimento que ia<br />

seguir aquela posição na qual estava.<br />

Durante uma aula de dança em Salvador, meu corpo pensou e<br />

respondeu automâticamente ao movimento da professora:<br />

“Assim que a professora abaixou o tronco, apoiou as mãos no<br />

chão e flexionou os joelhos, entendi imediatamente qual<br />

movimento ia seguir-sabia que ia ser o movimento rápido baseado<br />

no passo de Xangô, com o contratempo dos pés, e jogando um<br />

braço e depois o outro para a frente.”(25 Agosto 2009).<br />

Neste caso um pequeno gesto corporal da instrutora de dança foi<br />

suficiente para meu corpo já reagir e executar o movimento que ela ia<br />

mostrar ainda. Isso mostra como o corpo possui uma memória e uma<br />

inteligência em si, como Lakoff e Johnson afirmam ao mostrar como<br />

“reason is fundamentally embodied” (Lakoff and Johnson, 1999, p. 17).


Neste capítulo “The Embodied Mind”, parte da obra Philosophy in the<br />

Flesh, os autores escrevem que não existe uma plena capacidade<br />

autônoma da razão como separada e independente de capacidades<br />

corporais tais quais a percepção e o movimento (Lakoff and Johnson,<br />

1999). Eles continuam dizendo que nossas categorias são formadas<br />

através do embodiment, ou seja, elas são parte da nossa experiência. O<br />

corpo está portanto envolvido em construir e formar a própria natureza<br />

da conceptualização (Ibidem, p. 37).<br />

Segundo esta teoria do embodiment, alguma coisa que aprendemos<br />

se encarna, se transforma em corpo. O corpo é flúido e forma uma rede<br />

de conexões com o ambiente, “envolvendo aspectos sensório-motores,<br />

emocionais e racionais” (Meyer, 2007, p. 144). Como Sandra Meyer<br />

continua escrevendo, “o corpomente é um auto-organizador e<br />

transformador de processos que ocorrem em seu próprio meio e nas<br />

relações que estabelece com o ambiente” (Ibidem). Esta perspectiva nos<br />

permite de deixar do lado o entendimento dualista entre corpo e mente e<br />

pensar “o pensamento e a cognição enquanto processos encarnados”<br />

(Ibidem, p. 145); assim, acaba a concepção de uma separação entre<br />

pensamento e movimento, entre razão, percepção e ação. Cabe aqui<br />

lembrar o exemplo vindo da minha etnografia analisado no capítulo 3,<br />

sobre o caso do corpo de A. dançando na sala de aula e enquanto seu<br />

Oxaguiã estava incorporado no ritual de Candomblé. Após ter<br />

apresentados as teorias fenomenológicas do corpo e a noção de<br />

embodiment neste capítulo, podemos melhor compreender a<br />

possibilidade do corpo de A. estar trazendo sua própria memória ao<br />

dançar na sala de dança Afro, mostrando o que ele aprendeu<br />

corporalmente ao longo dos anos no terreiro de Candomblé.


Aplicando esta noção mais ao campo da dança, e tomando a idéia<br />

principal da tese de doutorado de Helena Katz podemos pensar a dança<br />

como um “pensamento do corpo”. Katz escreve que é como se o corpo<br />

desenvolvesse uma própria inteligência e diz que a qualidade de<br />

movimento mais completa, que pode ser identificada como pensamento<br />

do corpo, é a dança (Katz, 1994). Retomando e complementando esta<br />

idéia, Helena Bastos escreve que “o movimento é o fundamento do<br />

conhecimento, e a dança ganha existência no corpo a partir de<br />

movimentos. É na ação que a dança constrói o corpo para que possamos<br />

entender o seu funcionamento e, consequentemente, conhecer” (Bastos,<br />

2007, p. 213). Corpo e movimento portanto interagem e criam<br />

conhecimento na dança.<br />

Um aspecto interessante de se analisar a respeito, sugerido por<br />

um artigo de Airton Tomazzoni, é ver como “os movimentos do corpo<br />

impõem sua materialidade, sua fisicalidade” (Tomazzoni, 2007, p. 170).<br />

Ele escreve que na dança os signos são determinados pelas qualidades<br />

do corpo em movimento e “pela aparência desse corpo, pela sua forma”.<br />

Ou seja, ”antes de qualquer coisa, é o nível sensórial que fala” (Op. Cit:<br />

170), pois os sentidos dos movimentos remetem a suas qualidades. Nas<br />

palavras de Tomazzoni “o movimento não depende do enredo ou da<br />

história, mas das qualidaes dos corpos em movimento” (Ibidem, p. 171)<br />

e é então no próprio movimento corporal que se funda o significado.<br />

Este conceito pode ser aplicado à experiência do dançarino durantre a<br />

execução de movimentos de orixás. Durante um ensaio no Centro<br />

Coreográfico, por exemplo, Eliete colocou um CD com músicas de<br />

orixás e começamos a seguir ela, executando os movimentos típicos de<br />

cada um. Começamos por dançar Iemanjá, a deusa das águas salgadas,


depois Omolu, deus que espanta as doenças, e enfim Iansã, rainha dos<br />

ventos e da tempestade. Além da diferença nos movimentos próprios de<br />

cada orixá, o que pude reparar foi a diferença na qualidade do<br />

movimento e do corpo ao dançar:<br />

“Na hora de dançar Iemanjá, foi como se a sensação do<br />

movimento da água tivesse entrado dentro do corpo. Cada passo e<br />

cada gesto era sinuoso, tinha uma qualidade de leveza e sutileza, e<br />

tinha um aspeto ondulatório, como se fossem as próprias ondas do<br />

mar. Ao mudar para a dança de Omolu, o corpo começou a se<br />

movimentar diferentemente. Mais do que ondulação, agora era<br />

um certo tremor a caracterizar os movimentos. O tronco e os<br />

joelhos assumiram um molejo intenso e os braços, mãos e coluna,<br />

ficavam se tremendo, como se fosse para deixar sair as doenças.<br />

Finalmente, a dança de Iansã fez o corpo se movimentar com<br />

extrema rapidez, força e energia, parecendo ser carregado pelo<br />

vento e mostrando a qualidade de ar presente na dança de Oya.”<br />

(5 Setembro 2009).<br />

É aqui evidente como os mitos e as qualidades de cada orixá são<br />

incorporadas no corpo dançante. Na dança, o sentido do movimento<br />

pode-se entender diretamente pela qualidade do movimento, seja esta<br />

sutil e ondulatória, firme no chão, ou rápida e aeréa que nem uma<br />

ventania. Ao mesmo tempo é esta qualidade do movimento que produz o<br />

significado de um certo mito ao re-atuá-lo e incorporá-lo.<br />

Este capítulo visou fazer uma viagem através de várias teorias<br />

sociológicas e antropológicas do corpo, enriquecidas e exemplificadas<br />

por casos etnográficos e de auto-etnografias, bem como experiências<br />

corporais vividas no campo da dança Afro. Começou-se por analisar as<br />

visões construtivistas do corpo, que consideram este último como<br />

produto da sociedade, instrumento do homem e suporte das<br />

classificações sociais. Vimos como, mesmo não inteiramente, estas


teorias começaram a quebrar com o dualismo cartesiano que vê o corpo<br />

como objeto totalmente separado de uma mente ativa. Para<br />

desconstruir mais este pensamento dualista, explorou-se o conceito de<br />

habitus de Bourdieu, que levou às abordagens fenomenológicas de<br />

Merleau-Ponty e Sartre. Aqui viu-se a importância das sensações e das<br />

percepções no entendimento e na produção do conhecimento. A<br />

proposta neste nível da análise é de um corpo-próprio que possui uma<br />

inteligência em si capaz de compreender e produzir significados.<br />

Sempre analisando este discurso com referência ao campo da<br />

dança, continuou-se a ver a centralidade do corpo através do papel<br />

fundamental que o gesto tem na comunicação e na produção de<br />

conhecimento. Tomando as teorias de Mead como base, analisou-se<br />

como o significado se produz na interação entre os atores e a audience.<br />

Vários exemplos práticos foram trazidos para exemplificar este conceito<br />

presente nos textos de Goffman, Schieffelin, Scheub e Schechner,<br />

retomando e aprofundando a discussão sobre performance iniciada no<br />

capítulo 1, focando-se sobre a performance da dança Afro e sua<br />

proximidade com rituais sagrados.<br />

Fazendo a conecção entre profano e sagrado, viu-se como o corpo<br />

é protagonista tanto na performance quanto no ritual, não somente ao<br />

nível de comunicador e produtor de significados, mas também como<br />

sede de memórias incorporadas. Inspirando-se nas obras de Csordas,<br />

Stoller e Lakoff e Johnson, explicou-se e aplicou-se o conceito de<br />

embodiment à prática da dança Afro, onde os corpos re-atuam e reproduzem<br />

os mitos ao incorporar os gestos mantedores de memórias.<br />

Trazendo esta análise neste capítulo quis demonstrar como o corpo é<br />

um sujeito pensante, comunicador e produtor de significados, e como os


gestos incorporados na memória corporal mantém, comunicam e<br />

produzem a história oral de um povo através da prática da dança Afro,<br />

em particular da dança de Orixás. Para concluir este trabalho,<br />

apresentarei no próximo e último capítulo a discussão sobre corpo e<br />

identidade, analisando em específico as categorias e as noções racias<br />

envolvidas no campo da dança Afro.


CAPITULO 6 – Sentir na Pele<br />

(Corpo, Identidade e Alteridade)<br />

Precisamos vencer o preconceito do corpo discriminado.<br />

Eliete Miranda<br />

Ao longo deste trabalho falou-se do corpo como agente<br />

protagonista da comunicação e produção de significados na dança Afro.<br />

Viu-se como certos gestos, movimentos e elementos corporais específicos<br />

são capazes de contar e recriar os mitos e as histórias de um povo da<br />

diáspora africana no Brasil. Abordou-se também o tema da busca de<br />

identidade que o dançarino procura na dança Afro, e da manutenção de<br />

certa memória e identidade através dos gestos e da dança. Quero agora,<br />

neste último capítulo, aprofundar mais a questão sobre a ligação entre<br />

corpo e identidade na dança Afro, trazendo ao mesmo tempo uma<br />

discussão sobre a situação de alteridade experienciada pessoalmente no<br />

campo da minha pesquisa. Começarei portanto por apresentar como a<br />

dança Afro é uma forma de resgate e de se identificar com um passado<br />

ancestral de matriz africana. Após isso, mostrarei como a categoria do<br />

dançarino de dança Afro é uma categoria essencializada e repleta de<br />

estereótipos. Analisarei, por fim, o preconceito contra a dança Afro


assim como o estigma atribuido aos dançarinos brancos de dança Afro,<br />

considerados como não pertencentes à categoria, trazendo uma<br />

discussão sobre categorias e identidade racial no contexto da dança Afro<br />

no Brasil.<br />

Resgate e Identidade<br />

Já evidenciei no capítulo anterior, trazendo a obra de Leda<br />

Martins e outros autores, a importância da performance da dança Afro,<br />

e das performances afro-brasileiras em geral, com respeito ao resgate da<br />

memória ancestral, da sabedoria e do conhecimento. As performances<br />

afro-brasileiras fazem parte da bagagem que veio com os africanos<br />

trazidos à força para o novo mundo. No seu texto “Memória e<br />

Performance nas Culturas Afro-brasileiras”, Florentina Souza escreve:<br />

“Na diáspora forçada, fugindo à coisificação, os africanos e<br />

afrodescendentes costuraram e teceram identidades e, a partir da<br />

memória, reorganizaram suas vidas desenhando novas<br />

configurações culturais advindas da sua situação em terras<br />

estrangeiras. Enfaticamente, no campo da música, da dança e da<br />

religiosidade, as tradições culturais permaneceram como espaços<br />

privilegiados de memória e de recriação, o que faz das<br />

performances um dos elementos significativos na transmissão,<br />

circulação e reconfiguração da memória dos afrodescendentes”<br />

(Souza, 2007, p. 31).<br />

A dança portanto, assim como a música e a religiosidade, é uma das<br />

performances onde a “transmissão, circulação e reconfiguração” da<br />

memória dos afrodescendentes acontece. É através deste resgate da<br />

memória que novas identidades se tecem. A arte de dançar Afro faz com<br />

que a construção destas identidades seja positiva, estimulando e<br />

viabilizando o conhecimento da riqueza cultural afro-brasileira para os


afrodescendentes e para todos os que entram em contato com a dança<br />

Afro. As performances afro-brasileiras como a dança Afro agregam e<br />

reproduzem informações sobre as culturas africanas e as da diáspora,<br />

“fundem mito e história, experiência e criação, intensificando a<br />

produção de discursos identitários” (Souza, 2007, p.37).<br />

Como já vimos no primeiro capítulo ao analisar as razões pelas<br />

quais as pessoas dançam, a busca de identidade aparece entre as<br />

motivações. Trago aqui novamente alguns depoimentos dos alunos de<br />

dança Afro:<br />

“È uma coisa muito enraizada na cultura brasileira. Tem uma identidade forte<br />

porque a cultura africana aqui é muito forte”<br />

“Trabalhar nosso corpo e nossa identidade ao mesmo tempo-a aula refletiu<br />

isso”<br />

“Cada vez que eu danço é que nem encontrar a mim mesmo”<br />

“Entrei para a dança para me encontrar como mulher negra; a<br />

dança não é só uma questão de corpo mas de identidade afrobrasileira,<br />

de resgate, de resistência”<br />

Estes comentários mostram como a dança e o corpo estão<br />

profundamente ligados à questão identitária e ao resgate da memória.<br />

As pessoas definem a dança como algo que tem uma identidade forte, e<br />

como uma maneira para trabalhar a identidade. Uma das alunas, por<br />

exemplo, dança para “encontrar a si mesma”. No último depoimento,<br />

uma outra aluna, uma mulher negra, procura se encontrar e resgatar<br />

sua identidade, quem ela é e com que ela se identifica. Antes de


prosseguir, acho importante clarificar o que se entende por “se<br />

identificar”, e explicar como a identidade pessoal depende tanto de um<br />

grupo ou categoria específica.<br />

Ao longo deste trabalho foram apresentadas discussões de autores a respeito da<br />

construção da noção de pessoa. Com Mead e Goffman em particular, vimos como a<br />

interação social entre pessoas é fundamental na construção de significados e dos próprios<br />

indivíduos. Esta abordagem que concentra seus estudos sobre a inter-relação entre<br />

pessoas chama-se de interacionismo simbólico, que surgiu no começo do século XX nos<br />

EUA, principalmente com as obras de George Herbert Mead e de Charles Cooley. O<br />

maior argumento desta abordagem é que os selves são produtos sociais, mas que ao<br />

mesmo tempo eles são também criativos e agentes na sociedade. Os indivíduos agem<br />

segundo os significados que as coisas têm para eles, e estes significados provêm da<br />

interação social e são modificados através da interpretação. Cooley escreve sobre o que<br />

ele chama de “looking glass self”, dizendo que o indivíuo não pode ter uma idéia de self<br />

sem interagir e confrontar-se com os outros. Cooley também nos lembra que, como nos<br />

percebemos e fazemos sentido de quem somos através da mente dos outros, somos<br />

influenciados pelas outras pessoas (Cooley, 2001). É portanto extremamente importante<br />

para os indivíduos ser aceitos pelos outros e, muitas vezes, isso acontece pertencendo a<br />

um grupo específico. Cada indivíduo pode escolher de se afiliar a vários grupos<br />

diferentes, assumindo múltiplas identidades dependendo da situação. Um exemplo<br />

prático desta assumpção de identidade pode se ver no texto de Barth Os Grupos Étnicos e<br />

suas Fronteiras, onde o autor fala de identidades e grupos étnicos. Barth escreve que “a<br />

identidade étnica implica uma série de retições quanto aos tipos de papel que um<br />

indivíduo pode assumir” (Barth, 2000, p. 36); esta identidade faz parte do “eu”, e é uma<br />

das múltiplas identidades que a pessoa tem. Cada situação exige que esta identidade seja<br />

mais ou menos representada. Assim, ela também pode ser escolhida como identidade<br />

principal para se afiliar a certos grupos específicos. Barth diz: “quando os atores usam<br />

identidades étnicas para se categorizar e categorizar os outros, passam a formar grupos<br />

étnicos”; esta afirmação implica que os atores escolhem usar a identidade étnica em<br />

certas situações e para certos fins.


A autora Marilyn Strathern no seu ensaio O Gênero da Dádiva fornece uma<br />

ulterior contribuição com respeito à construção de identidade. Ao analisar as relações de<br />

gênero na Melanesia, ela e afirma que as categorias antropológicas ocidentais não servem<br />

para analisar a categoria de pessoa em outras sociedades. Na Melanesia, por exemplo,<br />

não existe uma divisão definida de sexo e gênero e as diferenças entre as identidades<br />

masculina e feminina só se formam quando os dois entram em contato, na ação. A<br />

identidade não é então substancial, mas se constitui na interação; ela é construída pelo<br />

que se faz, não pelo que se é (Strathern, 2006). As afirmações de Barth e de Strathern<br />

remetem ao que Goffman teoriza no seu livro A Representação do Eu na Vida Cotidiana,<br />

já analisado em vários momentos neste trabalho, ou seja, o self é construído nas relações<br />

sociais e não é uma categoria pré-existente. Se constitui nas interações sociais em um<br />

determinado contexto, e é portanto múltiplo e variável. Tomando em conta as<br />

considerações apresentadas, é possível ver como a dança, neste caso a dança Afro, é uma<br />

maneira prática de se construir uma identidade, em específico uma identidade étnica,<br />

afiliando-se às origens africanas da dança. Os dançarinos de dança Afro, portanto,<br />

resgatam certa identidade afro-brasileira, assumindo um orgulho racial e uma autoimagem<br />

positiva devido aos exemplos positivos que a dança fornece da cultura negra,<br />

valorizando seus mitos, sua história, os gestos e indumentária de um povo que foi<br />

historicamente retratado como inferior e com imagens negativas. Afirmei também que as<br />

identidades são construídas e flexíveis e em constante mudança. Entretanto, as pessoas<br />

mantém umas categorias mentais fixas e determinadas, rendendo a questão da identidade<br />

motivo de descriminação. Para entender melhor o que estou tentando dizer, começarei<br />

por apresentar uma breve explicação sociológica sobre os termos categorias e<br />

estereótipos.<br />

Categorias e Estereótipos<br />

Berger e Luckmann escrevem no texto “A Construção Social da Realidade” que, o<br />

que torna possível a criação do mundo social é o exercício de reificação de categorias.<br />

Por reificação os autores intendem a “aprensão dos fenômenos humanos como se<br />

fossem coisas, como se fossem fatos da natureza”. A categoria, por sua vez é a<br />

estrutura de todo o universo de significados do sistema e é aceita pela inteiridade da<br />

sociedade exatamente porque é reificada (Berger e Luckmann, 1973). Como cientista<br />

social, é muito importante estar ciente desta construção social das categorias, as quais


se tornam naturalizadas. A cada categoria estão associadas características e qualidades<br />

que se consideram adequadas e próprias da categoria. Para pertencer ou ser inserido<br />

nestes grupos aos olhos da sociedade, os membros precisam ter qualidades e exercer<br />

papeis que sejam congruentes e coerentes com a definição da categoria. E é essa<br />

atitude que conduz à formação de estereótipos. Segundo a leitura de Stuart Hall, a ação<br />

de estereotipar reduz as pessoas a poucas características simples e essenciais,<br />

representadas como se fossem fixadas na natureza (Hall, 1997, p. 256). A análise de<br />

Hall se foca nas categorias raciais e na construção da exclução e descriminação do<br />

“outro”. O primeiro passo para que isso aconteça é a prática dos estereótipos, pois as<br />

pessoas usam os “tipos” para fazer sentido das coisas. Hall escreve: “nós entendemos<br />

o mundo referindo objetos, pessoas ou eventos particulares aos esquemas de<br />

classificação geral nos quais, segundo nossa cultura, eles se inscrevem” (Ibidem, p.<br />

257). Existem portanto expectativas de membros de cada categoria, e construiram-se<br />

diferenciações raciais naturalizadas. Como escreve também o antropólogo Livio<br />

Sansone no seu livro Negritude sem Etnicidade construiram-se “visões<br />

essencializantes da diferença pautada pela cor, que associam a cada fenótipo certas<br />

características psicológicas e culturais peculiares” (Sansone, 2004, p. 160).<br />

Continuando o argumento, Sansone escreve que os membros da comunidade negra<br />

têm enfatizado estas diferenças “intrínsecas” e “naturais” dos pretos, como a de<br />

“dançar melhor” (Ibidem, p. 161).<br />

No caso da dança Afro a expectativa é do que os negros saibam dançar melhor do que<br />

os brancos. Um dançarino branco que dance muito bem o Afro é considerado uma<br />

exceção e é reconhecido com surpresa e incredulidade. A dissertação de mestrado de<br />

Nelson Lima sobre dança Afro evidencia a questão racial. Escreve o autor que, na hora<br />

de aprender os movimentos e as coreografias, o professor de dança Afro “exigia mais<br />

dos alunos negros, que aprendessem mais rápido e que dançassem melhor” (Lima,<br />

1995, p. 63). Além disso, a pesquisa do referido antropólogo aponta que os dançarinos<br />

brancos “dão conta do recado” quando conseguem mostrar as habilidade esperadas<br />

“naturalmente” dos negros (Ibidem, p. 76). Tais dados mostram a essencialização do<br />

conceito de raça e a expectativa de qualidades inatas nos dançarinos de dança Afro.<br />

Outro estudo antropológico de Natasha Pravaz da York University mostra a<br />

construção social da “mulata” e em várias ocasiões mostra a idéia do que os brancos<br />

não sabem sambar. Ao trazer uma entrevista com uma dançarina do “Samba Tropical<br />

Girl”, esta afirmou que “a mulher brança não traz o samba na raça. Não importa<br />

quanto sambe, ela não sabe sambar, pois não tem nada a ver. Pode até saber sambar<br />

mas não tem nada a ver com o samba” (Pravaz, 2003, p. 18). O estudo de Pravaz<br />

apresenta a idéia tanto da incapacidade da branca de sambar, quanto do seu não<br />

pertencimento a este mundo, indicando uma impossibilidade do branco se identificar<br />

com o samba.<br />

Minha experiência no campo confirma as afirmações de Lima e de Pravaz, e a<br />

presença de estereótipos raciais na dança Afro. Muitas vezes ouvi e anotei comentários<br />

refletindo a noção do que as pessoas não esperam que os brancos saibam dançar Afro.<br />

Um dia, depois de uma aula no Circo Voador, eu e Eliete fomos passear pela Lapa<br />

conversando sobre dança e comentando a aula. Eliete contou suas experiências como<br />

coreógrafa na Bahia e comentou que ela sempre colocava dançarinos ou atores brancos<br />

no palco se eles fossem bons, apesar da atitude de desconfiança dos outros,


especialmente do Zebrinha (coreógrafo de dança Afro, atualmente coreógrafo do<br />

Ballet Folclórtico da Bahia). Ela contou de uma vez na qual “estas meninas brancas<br />

arrasaram no show e no final Zebrinha foi até dar os parabéns!” (diário, 27 Abril<br />

2009). Mudando de assunto, Eliete comentou sobre a aula de hoje no Circo, e falou<br />

que “o povo da aula é realmente interessado na dança Afro; parece que eles estão<br />

buscando uma identidade mesmo, apesar de ser todo mundo branquinho!” (diário, 27<br />

Abril 2009). A primeira história da Eliete mostra o preconceito que se há contra<br />

colocar dançarinos brancos em shows de dança Afro, especialmente na Bahia, onde<br />

quer-se manter e mostrar a dança Afro como o mais “pura” e “autêntica” possível.<br />

Durante uma entrevista com o professor de dança Afro Pakito em Salvador, ele contou<br />

de uma audição que ele fez para o Ballet Folclórico, e disse “a cor da pele me ajudou<br />

na audição; eu passei e outro loiro não” (Pakito, 26 Agosto 2009). A cor da pele na<br />

dança Afro aparentemente simboliza a capacidade de saber dançar ou não. O segundo<br />

comentário da Eliete evidencia como a cor da pele aparentemente deveria estar ligada<br />

a uma noção de identidade. A surpresa no afirmar que os alunos estão buscando uma<br />

identidade “apesar” de ser branco mostra a pre-noção do que somente os negros<br />

poderiam se identificar com a dança Afro.<br />

Durante minha vivência como dançarina branca de dança Afro senti muito os<br />

estereótipos raciais na pele, sendo muitas vezes classificadas como a que “dá conta do<br />

recado” ao dançar Afro. Após uma aula no Circo Voador um dia, uma das alunas,<br />

negra e baiana, comentou: “Você é italiana, não é negona e dança tão bonito. Acho<br />

isso tão legal!” (diário, 14 Setembro 2009). O tom surpreso do comentário feito indica<br />

a crença em uma incongruência entre as identidades “italiana e não negona”, e alguém<br />

que “dance bonito” o Afro. Outro exemplo mostra um comentário parecido:<br />

“Hoje a gente ensaiou no Centro Coreográfico, nos preparando para a<br />

apresentação. Ensaiamos muito a dança de Orixás e a coreografia do xirê, na qual<br />

eu danço para Nanã. No final do ensaio, algumas das meninas comentaram: “Ela é<br />

ótima dançando Nanã! Dança tão bem e é branca!” (diário, 30 Maio 2009).<br />

Mais uma vez o comentário indica o tom de incredulidade diante de uma branca<br />

dançando bem para Orixá. A naturalização das categorias é evidente, sendo a de<br />

“branco” ou “italiana” associada com a incapacidade de dançar o Afro, coisa que<br />

deveria ser natural para uma “negona”.<br />

Experiências como essas foram múltiplas ao longo do meu tempo no círculo da<br />

dança Afro. Em outra ocasião senti como a categoria de raça, junto com a de gênero<br />

são repletas de noções estereótipadas:<br />

“Um dia nosso grupo ensaiou na UERJ para se preparar para uma apresentaçãao.<br />

Após o ensaio eu e A. ainda ficamos para a aula da Eliete na mesma UERJ. Ao<br />

entrar na sala de aula juntos e suados, explicamos para os outros alunos que nós<br />

estávamos vindo de um ensaio de 3 horas com a Eliete, eles comentaram se<br />

referindo a mim: “como você aguenta?”. Mas ninguém falou nada para o A.”<br />

(diário, 3 Junho 2009)


Nesse caso, houve um comentário surpreso diante da minha pessoa conseguir aguentar<br />

um ensaio de 3 horas de dança Afro e ainda ter força para enfrentar uma aula de mais<br />

3 horas; este comentário entretanto não foi feito com o meu companheiro de dança que<br />

estava na mesma situação do que eu. Foi inevitável pensar que a diferença nas<br />

respostas diante das duas pessoas fosse porque eu sou uma mulher branca enquanto ele<br />

é um homem negro. O que isso quer dizer na nossa sociedade é que a mulher é<br />

geralmente considerada como uma categoria mais fraca do que o homem, e o branco é<br />

considerado ter menos força e resistência do que o negro.<br />

Cabe aqui sinalizar as estratégias e as consequências políticas que muitas vezes se<br />

escondem atrás deste essencialismo que acredita em categorias biológicas<br />

naturalizadas e que as reproduz na linguagem e nos atos cotidianos. As afirmações<br />

sobre habilidades ou direitos exclusivos de dado grupo reflletem o que Gayatri Spivak<br />

chamou de “essencialismo estratégico” , utilizado como arma política por um grupo<br />

específico, neste caso um grupo étnico, para defender sua territorilidade e afirmar seu<br />

controle sobre certa área de conhecimento. Apesar de ter seus motivos, tal<br />

essencialismo revela-se uma ferramenta perigosa, tanto do lado dos grupos<br />

hegemônicos quanto do lado dos suballternos, conduzindo à prática de estigma e<br />

preconceito, como veremos na próxima parte deste capítulo.<br />

Estigma e Preconceito Racial<br />

Além dos estereótipos, a prática das diferenciações naturalizadas entre categorias<br />

cria uma separação entre “nós” e “eles”, facilitando uma formação de grupos, e<br />

definindo quem é “de dentro” e quem é “de fora”. Durante a minha pesquisa surgiram<br />

muitas vezes ocasiões nas quais houve a prática de estereotipar e formar grupos<br />

dividindo quem pertence e quem não. Principalmente, apareceram três tipos de<br />

classificações identitárias e de alteridade. Primeiro, experimentei uma condição de<br />

alteridade atribuída pelos outros, tanto por brancos como por negros, tanto por<br />

integrantes da dança Afro como por quem não está próximo a este universo, sendo<br />

considerada como alguém que não pertence à prática da dança Afro. Segundo,<br />

experienciei fazer parte da dança Afro e do universo Afro-brasileiro, sendo incluída<br />

especialmente pelos integrantes do meu grupo de dança e por quem me conhece<br />

pessoalmente além da minha aparência. Terceiro, devido à proximidade com meus<br />

companheiros de dança Afro e com a realidade Afro-brasileira, senti na pele a<br />

desqualificação e o preconceito contra a arte de dançar Afro.<br />

Começando pela minha experiência de exclusão, segue um exemplo do que aconteceu<br />

durante um encontro casual na Lapa com o professor de dança Afro Charles Nelson:<br />

“Durante nossa conversa, uma das pessoas que estava lá no grupo entrou na<br />

conversa, enquanto estava explicando para Charles Nelson que precisa ter mais<br />

pesquisa sobre dança afro e cultura negra. Esta outra pessoa, um brasileiro negro<br />

estudante de música, interveio falando que depende de quem pesquisa e de como<br />

pesquisa. Pelo olhar dele pude reparar que estava se referindo a mim como<br />

pesquisadora, com um tom de não aceitação. Eu não conhecia esta pessoa,<br />

somente hoje, nesta ocasião, ele me viu e escutou que era uma pesquisadora<br />

italiana de dança afro. Reparando o tom de irritação na sua voz, pedi para ele


explicar mais o que ele queria dizer com isso e ele disse: “você não tem direito de<br />

pesquisar a dança afro, pois a cultura é nossa; o problema está exatamente no fato<br />

que somente quem é de fora estuda nossa cultura”. Ao tentar explicar para ele que<br />

estava talvez sendo preconceituoso, ele disse “vocês foram agressivos contra a<br />

gente e portanto a gente para se defender agora precisa ser agressivos com<br />

vocês”. (15 Abril 2009)<br />

Os fortes comentários deste afro-brasileiro deixaram clara a construção de dois grupos e<br />

culturas separadas, a dos brancos e a dos negros. Apenas a minha aparência e a cor clara<br />

da minha pele despertaram uma reação distanciadora, afirmando que “não tenho direito<br />

de pesquisar a dança afro”, pois isso faz parte de uma cultura que ele definiu como<br />

”nossa”, ou seja, exclusiva dos afro-brasileiros. Além disso, ele me chamou abertamente<br />

de “quem é de fora”. Por fim, o discurso dele evidenciou mais uma forma de<br />

descriminação e divisão ao definir “vocês”, ou seja “os brancos” “contra a gente”, ou seja<br />

“os negros”. Neste momento me senti como “o outro” sendo excluído e descriminado<br />

por estar onde não deveria. Segundo a definição de Muniz Sodré em sua obra “Claros e<br />

Escuros”, o “Outro” é o intruso que não conhece seu lugar e se aproxima demais onde<br />

não deveria, ocupando o espaço do “Mesmo” (Sodré, 2000, p. 261). Historicamente o<br />

“outro” sempre foi um membro de grupos étnicos não hegemônicos, como indios ou<br />

negros. Neste caso entretanto, como pesquisadora branca e européia fui considerada uma<br />

intrusa no campo da dança afro-brasileira.<br />

Cabe aplicar a teoria do “estigma” de Erving Goffman a esta situação vivenciada no campo. Segundo o sociólogo o<br />

estigma é um atributo incongruente com o estereótipo criado para um particular tipo de indivíduo. O estigma é uma característica<br />

que entra em discrepância com a identidade social do indivíduo, ou seja, com aquelas características estereotipadas que definem<br />

dada categoria de pertencimento do indivíduo (Goffman, 2008, p. 13). No exemplo trazido do campo, minha nacionalidade e minha<br />

cor foram considerados como atributos incongruentes com a categoria de dança Afro ou cultura afro-brasileira em geral. Quando<br />

afirmo que fui estigmatizada por causa da cor da minha pele, as pessoas não sempre acreditam, pois o ser branco é considerado um<br />

atributo de vantagem e de quem não sofre discriminação. Por isso é importante esclarecer, com ajuda de Goffman, que não existem<br />

dois papéis fixos e específico, o do normal e do estigmatizado. Simplesmente, cada um pode desempenhar cada um desses papéis<br />

dependendo da situação. Portanto, alguém que é estigmatizado em determinado aspecto ou contexto, pode exibir os preconceitos<br />

normais contra outra pessoa em dada circumstância (Goffman, 2008, p. 149). Outras vezes vivenciei o mesmo sentimento de exclusão<br />

devido aos comentários de outras pessoas. Ao explicar o tema da minha pesquisa para uma professora universitária de dança, ela<br />

respondeu: “Como você se interessou por algo tão distante e diferente de você? Porque está pesquisando isso?” (16 Junho 2009). A<br />

pergunta da professora de dança evidencia o seu entendimento do que, somente pelo fato de ser branca e italiana, únicas informações<br />

pessoais que ela possuia de mim, o tema da dança Afro seria algo totalmente “distante” e “diferente” de mim. Agora eu pergunto:<br />

depois de três anos de intenso envolvimento com a dança Afro, quer como dançarina, quer como pesquisadora, onde todo dia fiz<br />

questão de aprender mais e mais sobre este tema e de praticar os ensinamentos do campo, será que minha realidade é tão distante e<br />

diferente do tema da minha pesquisa? Será que qualquer afro-brasileiro que nunca praticou nem se interessou pela dança Afro deve


ser considerado mais próximo desse contexto? Em outra ocasião uma aluna de dança Afro, que fez umas aulas de dança Afro na<br />

Europa, comentou após uma aula no Circo Voador:<br />

“Lá era um monte de branco querendo ensinar e não sabe nada. Tinha uma mulher<br />

brasileira, do sul, branca que passa tudo errado, a meu custo, da minha história.<br />

Eles se apropriam e passam errado. Tenho preconceito mesmo.” (14 Setembro<br />

2009)<br />

Utilizando termos como “minha história” e “eles”, a aluna cria uma clara separação entre<br />

grupos, entre “nós” e “o outro”, confessando de ter preconceito contra o branco que não<br />

sabe nada de dança Afro.<br />

Assim como fui estigmatizada e senti o preconceito na pele durante meu<br />

envolvimento no campo, experienciei também um sentimento de inclusão e de<br />

mesmificação dentro de um grupo ao qual não pertenço “naturalmente”. Em vários<br />

momentos minha professora de dança e meus amigos me incluiram na categoria de<br />

“preta” e na questão da identidade negra. Antes de uma apresentação no Centro<br />

Coreográfico, nosso grupo CorpAfro se reuniu no camarim e formou uma roda, um<br />

segurando a mão do outro para passar energia. Enquanto isso, Eliete disse:<br />

“Somos o único grupo Afro a dançar, precisamos representar nossa luta, nossa<br />

identidade, pois somos negros.” (5 Junho 2009).<br />

Nesse comentário eu, única branca do grupo, fui completamente incluida na categoria de<br />

negro e no grupo de afro-brasileiros, representando junto com os outros “nossa luta” e<br />

“nossa identidade”. Neste caso, minha pessoa não só foi aceita e incluida como alguém<br />

“de dentro”, mas minha própria identidade sofreu uma mudança e me senti realmente<br />

parte do grupo, igual aos outros, lutando e acreditando pela e na mesma causa e sentindo<br />

minha pele negra, pois a identidade depende muito da relação que se há com o corpo.<br />

Através da dança Afro e da convivência do meu corpo com a cultura e a realidade afrobrasileira<br />

assumi muitas vezes uma identidade que é vista como incongruente e distante<br />

da categoria racial à qual pertenço. Por causa dessa incongruência fui estigmatizada e<br />

excluída pelos que conhecem somente meus atributos mais superficiais.<br />

Como membro do grupo CorpoAfro e convivendo com o universo da dança Afro,<br />

a terceira condição experimentada foi o preconceito que aflige a dança Afro e os afrobrasileiros.<br />

Primeiro, através das discussões que Eliete sempre promove nas aulas de<br />

dança, lembrou-se várias vezes o sofrimento do povo negro, escravizado e abusado de


maneiras diferentes desde o periódo colonial até hoje. Antes de uma aula no Circo<br />

Voador, lemos e comentamos uma poesia de Solano Trindade falando sobre o navio<br />

negreiro cujos versos lembram o sofrimento, a melancolia e a resistência dos negros<br />

escravizados:<br />

Vamos Olhar o Navio Negreiro<br />

Trazendo carga humana.<br />

Lá vem cheio de melancolia,<br />

Cheio de inteligência<br />

Cheio de resistência.<br />

Comentando sobre esta poesia Eliete ressaltou que essa resistência é o que a gente<br />

experiencia todo dia para sobreviver. Nós alunos expressamos o sentimento provocado<br />

por esta poesia através de desenhos. Surgiram desenhos como o de um navio cheio de<br />

lágrimas e gotas vermelhas simbolizando o sofrimento, mas com a presença de estrelas<br />

amarelas simbolizando a esperança. Outra aluna formou um coração de papel e rasgou-o,<br />

simbolizando o que foi feito com o coração e a alma dos negros trazidos como escravos,<br />

rasgados de seu continente natal. Outro aluno comentou: “tudo é tão confuso e doloroso<br />

ao se falar de escravidão que eu não entendo até hoje. Se alguém quiser explicar, por<br />

favor, porque eu não entendo, to muito confuso”. As palavras deste afro—brasileiro<br />

mostram a incapacidade de entender e se conformar com as atrocidades sofridas pelo<br />

povo negro. Após os comentários de todos nós, Eliete disse chorando: “o que a gente<br />

sente tá aqui dentro de nós. É preciso buscar e resgatar nossa identidade e não é fácil”<br />

(diário, 27 Abril 2009). Esses momentos de conscientização e de conversa sobre o<br />

assunto da identidade negra e do sofrimento do povo negro rendem possível uma maior<br />

identificação e um maior entendimento da questão por parte de quem não faz parte<br />

oficialmente desse grupo étnico.<br />

Além disso, através da convivência com Eliete e meus amigos da dança Afro, me<br />

foi possível ver e sentir o preconceito que existe contra o corpo Afro. O ano passado<br />

nosso grupo foi convidado para participar de uma série de apresentações de dança no<br />

Centro Coreográfico para celebrar o dia da dança no 29 de Abril. No fim de semana após<br />

a apresentação, durante nosso ensaio no CCRJ, discutimos a apresentação do grupo e o


fato de ser o único grupo de dança Afro presente, que foi recebido com muita resistência<br />

e preconceito:<br />

“As pessoas não sabiam o que esperar da gente, tinha muita resistência. Quando<br />

nos viram nos arrumarmos começaram a olhar torto para nossa roupa. Éramos os<br />

únicos e éramos diferentes” (2 Maio 2009).<br />

O olhar preconceituoso dos outros é algo vivenciado muitas vezes por Eliete e nosso grupo, assim como por outros grupos de dança<br />

Afro. Essa resistência contra a dança Afro cria várias dificuldades em conseguir praticar essa arte. Durante uma entrevista em<br />

Salvador, a professora de dança Afro Tatiana disse:<br />

“A gente passa por muito preconceito. Se se falar que faz-se afro aqui, você nem imagina. Pra conseguir espaço é difícil<br />

porque nos falam que a gente faz barulho”(26 Agosto 2009).<br />

Neste caso, Tatiana nos informa da dificuldade em conseguir um espaço para dar aula de dança Afro, por causa da concepção do que<br />

durante uma aula de dança Afro se faz “barulho”. Nosso grupo CorpAfro sofreu um preconceito parecido quando, ao ensaiar nosso<br />

espetáculo na Escola de Arte Martins Pena, uma professora de música que estava na sala de baixo, entrou na nossa sala gritando<br />

“parem de fazer barulho!” (2 Outubro 2009). Se prestarmos atenção a este vocabulário usado, “fazer barulho”, pode-se ver o<br />

desprezo e a não consideração existentes com o som dos tambores e com a arte de dançar Afro. Muitas vezes, a origem do<br />

preconceito vem de causas religiosas, como analisei no capítulo 3, ao confundir a dança Afro com “macumba”, a qual também sofre<br />

muito preconceito no Brasil. Outras vezes, a discriminação é racial, coisa que o povo brasileiro custa admitir mas que está muito<br />

presente nesta sociedade.<br />

Quis trazer essa minha experiência no campo onde o corpo sentiu na pele as<br />

consequências das divisões e categorias raciais, com a esperança de quebrar alguns<br />

preconceitos e estereótipos. Afinal, o racismo não se combate com mais racismo.<br />

Concluo este capítulo expressando um desejo de igualdade, tolerância e entendimento das<br />

diversidades, usando as palavras de Franz Fanon no seu livro Pele Negra Máscaras<br />

Brancas:<br />

“Eu, homem de cor, só quero uma coisa: que jamais o instrumento domine o<br />

homem. Que cesse para sempre o domínio do homem pelo homem…<br />

Ambos (o negro e o branco) têm que se liberar das vozes desumanas de seus<br />

ancestrais para que nasça uma autêntica comunicação…<br />

Superioridade? Inferioridade? Por que, simplesmente, não tentar alcançar o outro<br />

sentir o outro, revelar-me ao outro?” (Fanon, 1983, p.189)<br />

Com a esperança e a crença do que a dança Afro contribua para uma autêntica<br />

comunicação, para que se possa e se queira realmente alcançar o outro, sentir o outro<br />

e se entregar ao outro.


CONCLUSÃO<br />

Este trabalho procurou promover uma viagem pela experiência dos sentidos<br />

corporais envolvidos na performance da dança Afro. Analisou-se a performance<br />

evidenciando seu caráter ritual, as interações presentes, a formação de identidades através<br />

dela, assim como importância do corpo, da sua linguagem e da sua inteligência própria.<br />

Através da observação e experiência como dançarina na dança Afro, procurei entender e<br />

mostrar como o corpo, com seus gestos e movimentos, carrega uma memória ancestral,<br />

produzindo e transmitindo significados que fazem parte de um legado afro-brasileiro,<br />

cuja riqueza e importância cultural nunca foram suficientemente e adequadamente<br />

valorizadas<br />

Juntando as experiências do campo, por intermédio do material etnográfico, com<br />

a teoria antropológica e sociológica mostrou-se a quantidade e variedade dos símbolos<br />

presentes tanto nas performances sagradas do candomnlé quanto nas performances<br />

profanas da dança. A interação, cooperação e comunicação entre os atores da<br />

performance é o que produz significados, que são transmitidos pela linguagem do corpo,<br />

através de gestos, indumentária, cores, movimentos, adereços, olhares e energias<br />

incorporadas.<br />

Ao dançar e interagir com o outro, o corpo utiliza-se da memória e inteligência<br />

próprias, sendo capaz de pensar e agir automaticamente, promovendo uma aprendizagem<br />

que acontece na prática e um conhecimento corporal e sensorial. Além disso, no caso da<br />

dança Afro, o performer constrói identidades e lida com questões raciais, culturais e<br />

religiosas que muitas vezes são erroneamente entendidas e reproduzidas.<br />

Espero, através desta pesquisa ter mostrado a “infinita beleza” da dança Afro e da<br />

cultura afro-brasileira, assim como espero que este estudo colabore para um maior<br />

entendimento da cultura, religiosidade e estética afro-brasileiras. Neste projeto de<br />

valorização da cultura Afro e de luta contra o preconceito com essa cultura, a dança é um<br />

instrumento valioso, pois pode promover a abertura para a alteridade, e pode ser o meio<br />

do ensino de histórias e tradições que compõem grande parte da cultura brasileira mas<br />

que infelizmente sempre foram ignoradas e não valorizadas. Com a implementação da lei<br />

10.639, que torna obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira nas escolas, a


dança Afro merece entrar como ferramenta de ensino dessa história e cultura que precisa<br />

ser resgatada e e levada para a frente. Como resposta à pergunta que Gayatri Spivak faz<br />

no texto “Can the Subaltern Speak”, e discordando com a resposta negativa da autora que<br />

afirma que os subalternos não falam pois alguém fala por eles (Spivak, 2007), acho que a<br />

dança Afro pode ser uma forma de expressão e uma maneira do subalterno falar,<br />

divulgando sua história e sua cultura. Os corpos dançantes falam e se comunicam,<br />

mostrando a capacidade do grupo subalterno de se representar. Ao mesmo tempo, os<br />

postulados de Spivak valem para evidenciar como esse grupo sempre foi esquecido e<br />

discriminado pelas forças dominantes.<br />

Do ponto de vista antropológico, espero ter promovido uma discussão focada no<br />

campo da performance, contribuindo para a consideração da importância do corpo como<br />

meio de comunicação, produtor de significados, locus de memória e dono de uma<br />

inteligência própria, capaz de compreender através dos sentidos, mostrando que não<br />

temos uma separação entre corpo e mente, mas uma fusão e cooperação entre todas as<br />

partes do “eu”. As sensações, os pensamentos e as emoções são todos envolvidos na<br />

performance do dia a dia, assim como na performance da dança, promovendo um<br />

entendimento e um conhecimento completos, variados e dinâmicos. Além dessa questão<br />

corpórea, espero ter desconstruído alguns dos estereótipos e categorias raciais que levam<br />

à prática da discriminação e que não permitem escutar, sentir e se entregar ao outro. É<br />

preciso nos abrirmos mais, nos entregarmos e aguçarmos nossos sentidos para que<br />

póssamos perceber e experienciar a infinita beleza do outro e da dança Afro.


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LISTA DE IMAGENS<br />

I. Apresentações<br />

1. Dança de Yemanjá-Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de<br />

Janeiro.<br />

2. Dança de Nanã- Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de<br />

Janeiro.<br />

3. Dança de Oxum- Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de<br />

Janeiro.<br />

4. Mulheres Guerreiras- Forum Social Mundial 2008, Aterro do Flamengo, Rio de<br />

Janeiro.<br />

5. Ibidem<br />

6. Dança da Beleza Negra- Casa da Gávea, Rio de Janeiro (30 Abril 2008).<br />

7. Formação da àrvore Baobá- Formatura da Eliete na UFRJ (14 Dezembro 2007).<br />

8. Puxada de Rede- Formatura da Eliete na UFRJ (14 Dezembro 2007).<br />

9. Samba de Roda-Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (8 Setembro 2007).<br />

10. Dança de Yemanjá- Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (28 Outubro<br />

2007).<br />

11. Dança de Xangô- Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (28 Outubro 2007).<br />

12. Ibidem<br />

13. Confraternização após espetáculo- Messan Orun, Santa Teresa, Rio de Janeiro (28<br />

Outubro 2007).<br />

14. Instrumentos Percussivos.<br />

15. Dança da Beleza Negra – Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12 Dezembro<br />

2007).<br />

16. Dança de Yemanjá - Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12 Dezembro 2007).<br />

17. Dança das Iabás\movimento de Oxum- Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12<br />

Dezembro 2007).<br />

18. Samba de Roda- Hotel Scorial, Catete, Rio de Janeiro (12 Dezembro 2007).<br />

19. Arrumação no camarim- Viradão Cultural no Centro Coreográfico do Rio de<br />

Janeiro (5 Junho 2009).


20. Dança de Omolu- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro<br />

2009).<br />

21. Dança de Nanã- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro<br />

2009).<br />

22. Dança de Ogum- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro<br />

2009).<br />

23. Afro Primitivo- Casa e Construção, Botafogo, Rio de Janeiro (19 Setembro 2009).<br />

24. Mulheres Guerreiras (movimentos de Iansã) - Casa e Construção, Botafogo, Rio<br />

de Janeiro (19 Setembro 2009).<br />

II. Festas Públicas de Candomblé<br />

25. Omolu- Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha (3 Maio 2008).<br />

26. Oxaguiã- Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha (3 Maio 2008)<br />

27. Xirê antes dos Orixás se manifestarem- Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha (18<br />

Novembro 2007)<br />

28. Oxalá em primeiro plano e outros Orixás no Xirê- Ilê do Pai Jobi, Coelho da<br />

Rocha (18 Novembro 2007).<br />

III. Aulas e Ensaios<br />

29. Gestual de Iansã- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)<br />

30. Gestual de Ogum- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)<br />

31. Gestual de Oxumarê- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)<br />

32. Gestual de Omolu- Martins Pena, Rio de Janeiro (2 Setembro 2009)<br />

33. Afro Primitivo- UERJ (30 Setembro 2009)<br />

34. Movimento de Ijexá - UERJ (30 Setembro 2009)<br />

35. Percussão - UERJ (30 Setembro 2009)<br />

36. Alongamento – Circo Voador, Rio de Janeiro (30 Novembro 2009)<br />

37. Àrvore Baoba – Centro Coreográfico do Rio de Janeiro (10 Maio 2009)<br />

38. Movimento de Ijexá – Escola de dança, Pelourinho, Salvador (25 Agosto 2009)<br />

39. Alongamento Afro- Escola de dança, Pelourinho, Salvador (27 Agosto 2009)<br />

40. Ilê do Pai Jobi, Coelho da Rocha, 18 Novembro 2007.

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