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Memória em Movimento - UFPE - Universidade Federal de ...

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Sumário<br />

EDITORIAL 1<br />

DIREITO À COMUNICAÇÃO<br />

Luiz Anastácio Momesso<br />

SEMIÓTICA DA VIOLÊNCIA NA CULTURA<br />

BRASILEIRA<br />

Dacier <strong>de</strong> Barros e Silva<br />

Arthur Grupillo<br />

CULTURA E DEMOCRACIA: GÊNESE DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO<br />

DIREITO À INFORMAÇÃO NO BRASIL<br />

Renata Ribeiro Rolim<br />

FISSURAS NA COMUNICAÇÃO GLOBALIZADA: A EXPERIÊNCIA DOS<br />

AGENTES DE COMUNICAÇÃO EM PERNAMBUCO<br />

Patrícia Paixão <strong>de</strong> Oliveira Leite<br />

Raimunda Aline Lucena Gomes<br />

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO TEMPO: 1995 E A LEITURA DO JORNAL<br />

DO COMMERCIO SOBRE O ATENTADO A BOMBA NO AEROPORTO<br />

DOS GUARARAPES<br />

Francisco Sá Barreto<br />

5<br />

18<br />

31<br />

65<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

EDITORIAL<br />

A Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> é o transitório, o efêmero, o contingente, é a meta<strong>de</strong> da<br />

arte, sendo a outra meta<strong>de</strong> o eterno e o imutável.<br />

Charles Bau<strong>de</strong>laire<br />

Além do efêmero, herdou-se da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> o culto à insensatez.<br />

Herdou-se o apreço pela busca da novida<strong>de</strong> <strong>em</strong> si e por ser novida<strong>de</strong> será<br />

s<strong>em</strong>pre transitória. Assim, o foco da produção foi <strong>de</strong>slocado para tudo<br />

aquilo que po<strong>de</strong> vir a existir. O saber científico está aplicado na construção<br />

das coisas possíveis <strong>de</strong> se tornar<strong>em</strong> úteis. Coisas que serão inseridas no<br />

cotidiano, subutilizadas e <strong>de</strong>scartadas para que então sejam substituídas<br />

por outras mais novas, porque somente assim será realmente explorada a<br />

capacida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong> criação. Isso é fato. No entanto, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>ssa<br />

mesma “ord<strong>em</strong>” <strong>de</strong>senvolveram-se, imensamente, faculda<strong>de</strong>s intelectuais.<br />

A humanida<strong>de</strong> fez da aplicação <strong>de</strong> seu conhecimento um instrumento<br />

gerador <strong>de</strong> inteligência e, ao <strong>de</strong>senvolver-se, ofereceu a inquietos círculos<br />

criativos a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contestar.<br />

A partir da esqu<strong>em</strong>atização <strong>de</strong> procedimento do raciocínio lógico,<br />

traduzido <strong>em</strong> processos inicialmente mecânicos, teve início a produção <strong>de</strong><br />

máquinas inteligentes. O hom<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ntificou o esqu<strong>em</strong>a lógico, por meio do<br />

qual processa intelectualmente seus símbolos, e reduziu esse esqu<strong>em</strong>a a<br />

um microambiente, criando sist<strong>em</strong>as físicos capazes <strong>de</strong> interpretar<br />

<strong>de</strong>terminados impulsos por analogia. Capacitando as máquinas para<br />

operacionalizar esses procedimentos, o hom<strong>em</strong> po<strong>de</strong>, enfim, focar-se <strong>em</strong><br />

outros símbolos, sínteses <strong>de</strong> novas razões. Com o avanço dos estudos da<br />

eletrônica, os procedimentos foram complexificados até que as máquinas<br />

assumiram um papel <strong>de</strong> extensoras da própria inteligência humana, como<br />

se, sendo capazes <strong>de</strong> realizar algumas funções lógicas, permitiss<strong>em</strong> que<br />

outras novas faculda<strong>de</strong>s foss<strong>em</strong> <strong>de</strong>senvolvidas por seus criadores. A<br />

utilização da parafernália eletrônica inteligente transformou algumas<br />

práticas produtivas <strong>em</strong> sub-tarefas e re<strong>de</strong>finiu outras mais abstratas. Ao<br />

incorporar o conhecimento técnico aos processos sociais, a humanida<strong>de</strong><br />

adquiriu a “capacida<strong>de</strong> tecnológica <strong>de</strong> utilizar, como força produtiva direta,<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

aquilo que caracteriza a espécie como uma singularida<strong>de</strong> biológica: a<br />

capacida<strong>de</strong> superior <strong>de</strong> processar símbolos.” (Manuel Castells, A Socieda<strong>de</strong><br />

<strong>em</strong> Re<strong>de</strong>, 1998). Enfim, o aproveitamento tecnológico acelerou o ciclo<br />

produtivo, fazendo com que o que seria o resultado final <strong>de</strong> um processo<br />

fosse inserido como etapa criativa <strong>de</strong> outro, e, além <strong>de</strong> otimizar a utilização<br />

do conhecimento, potencializou a reflexivida<strong>de</strong> característica da lógica social<br />

mo<strong>de</strong>rna.<br />

A especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse fenômeno tecnológico resi<strong>de</strong> no caráter<br />

renovado que assume a informação, diante dos processos produtivos e,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, comunicativos. Com a chamada revolução<br />

informacional, a mensag<strong>em</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> consistir apenas <strong>em</strong> um “objeto” da<br />

tecnologia enquanto meio <strong>de</strong> transmissão. A partir <strong>de</strong> então, a própria<br />

tecnologia torna-se mensag<strong>em</strong>, pois admite significado simbólico enquanto<br />

utilida<strong>de</strong>. Além do fato <strong>de</strong> que os investimentos <strong>de</strong>spendidos no<br />

<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> aparatos tecnológicos cada vez mais mo<strong>de</strong>rnos<br />

traduz<strong>em</strong>-se <strong>em</strong> um custo final que incorpora valor social, t<strong>em</strong>-se,<br />

sobretudo, a evolução dos aparatos tecnológicos <strong>em</strong> prol da aceleração do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento socioeconômico, que se tornam símbolo e ferramenta da<br />

transformação da estrutura social. O conceito <strong>de</strong> mensag<strong>em</strong> se expan<strong>de</strong> do<br />

conteúdo textual ao conteúdo referente ao ambiente <strong>de</strong> troca da<br />

informação. Os mediadores “tecno-máquinas” da comunicação se<br />

transformam <strong>em</strong> signos, porque implicam <strong>em</strong> re<strong>de</strong>finições do significado do<br />

que é mediado. É exatamente por permitir a renovação do caráter da<br />

mensag<strong>em</strong> que o meio tecnológico se incorpora a ela na condição <strong>de</strong><br />

símbolo do <strong>de</strong>senvolvimento do qual é resultado.<br />

Socieda<strong>de</strong>, expressão corrente para o significado do conjunto dos<br />

seres humanos organizados e estruturados por suas culturas, agrega<br />

instituições, idéias e valores. Por socieda<strong>de</strong> subentend<strong>em</strong>-se relações <strong>de</strong><br />

caráter prepon<strong>de</strong>rant<strong>em</strong>ente econômico e cultural, sedimentadas por<br />

normas contratuais in<strong>de</strong>terminadas e impessoais, mas também orientadas a<br />

partir <strong>de</strong> interesses individuais. Por meio das singularida<strong>de</strong>s construídas<br />

pelas comunida<strong>de</strong>s humanas, organizadas <strong>em</strong> bases territoriais<br />

geograficamente <strong>de</strong>limitadas, surg<strong>em</strong> vonta<strong>de</strong>s com forças que, ao<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

simbolizar e aglutinar tipologias históricas, <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> e caracterizam o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das interações sociais diss<strong>em</strong>inadas no inconsciente<br />

coletivo.<br />

Filosoficamente, compreen<strong>de</strong>-se a socieda<strong>de</strong> dicotomizada <strong>em</strong> duas<br />

funções fundamentais: socieda<strong>de</strong> civil e socieda<strong>de</strong> política. Respaldada<br />

nessa singularida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>senvolve essas duas naturezas para alicerçar o<br />

Estado mo<strong>de</strong>rno.<br />

A socieda<strong>de</strong> política nas mo<strong>de</strong>rnas d<strong>em</strong>ocracias caracteriza-se como o<br />

instante <strong>em</strong> que <strong>em</strong>erg<strong>em</strong> as instituições pelas quais tanto a regulação<br />

quanto a coerção assum<strong>em</strong> um caráter <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> nas relações sociais,<br />

<strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar<strong>em</strong> subsidiadas por um discernimento <strong>de</strong> valores<br />

culturais que dão suporte ético, coberto por um sentimento coletivo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ver.<br />

É a socieda<strong>de</strong> civil, no entanto, a responsável pela imag<strong>em</strong> refletida<br />

na esfera pública, que se preocupa com a elaboração do consentimento -<br />

não com a coerção ou a dominação formal. São instituições da socieda<strong>de</strong><br />

civil a escola, a igreja, os mass media, entre outras, que asseguram a<br />

educação formal e sedimenta a cultura, tornando-se símbolos dinâmicos da<br />

heg<strong>em</strong>onia e da construção e realização do consenso.<br />

O Estado mo<strong>de</strong>rno, orientado pela razão histórica,<br />

prepon<strong>de</strong>rant<strong>em</strong>ente alicerçado <strong>em</strong> dois pilares básicos - socieda<strong>de</strong> civil e<br />

socieda<strong>de</strong> política -, assentou a lógica inerente à racionalida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal.<br />

Essa lógica é responsável, <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> crises históricas, pela substituição<br />

dos valores tradicionais por relacionamentos entre indivíduos<br />

institucionalizados <strong>em</strong> padrões <strong>de</strong> comportamentos relacionais mais<br />

impessoais e <strong>em</strong> segmentados vínculos das d<strong>em</strong>ocracias <strong>de</strong> massa urbana e<br />

<strong>de</strong> consumo. A maior tradução <strong>de</strong>sse fenômeno é a universalização <strong>de</strong><br />

padrões <strong>de</strong> comportamentos, genericamente <strong>de</strong>nominado <strong>de</strong> globalização.<br />

Nesse aspecto específico, os meios <strong>de</strong> comunicação assum<strong>em</strong> papel<br />

dinâmico na re<strong>de</strong>finição e construção dos novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Assim, a comunicação caracteriza-se, basicamente, pela produção <strong>de</strong><br />

uma enorme massa <strong>de</strong> bens culturais, indutora, <strong>em</strong> vasto aspecto, pela<br />

indústria criativa. Para alguns teóricos, esses bens são padronizados e<br />

estereotipados e assum<strong>em</strong> valores simbólicos pelos quais os indivíduos<br />

sociais <strong>de</strong>bilitam a sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> formular críticas<br />

autônomas. Para outros “teóricos da mídia”, no entanto, é essa massa <strong>de</strong><br />

bens simbólicos produzidos e diss<strong>em</strong>inados pelos meios <strong>de</strong> comunicação<br />

que influencia positivamente a natureza e as novas formas <strong>de</strong> organização<br />

da sociabilida<strong>de</strong> e da sensibilida<strong>de</strong> humana.<br />

Nas socieda<strong>de</strong>s mo<strong>de</strong>rnas, o <strong>de</strong>senvolvimento dos meios <strong>de</strong><br />

comunicação criou um novo ambiente cultural <strong>em</strong> que o primado da visão<br />

foi <strong>de</strong>slocado por uma interação unificadora dos sentidos. Os indivíduos<br />

passaram a ser unidos <strong>em</strong> re<strong>de</strong>s globais <strong>de</strong> comunicação instantânea e,<br />

nesse caso, po<strong>de</strong>rá estar implícita a s<strong>em</strong>ente que germinará um novo<br />

hom<strong>em</strong> <strong>em</strong> busca da realização <strong>de</strong> um novo padrão <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>.<br />

E é essa a pretensão que os editores da Revista M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong><br />

<strong>Movimento</strong>, na condição <strong>de</strong> um “meio virtual”, pretend<strong>em</strong>. Ou seja, criar<br />

um ambiente ativo <strong>de</strong> discussão filosófica, privilegiando quatro enfoques<br />

básicos: <strong>Movimento</strong>s Sociais, Direitos Humanos, I<strong>de</strong>ologias do<br />

Desenvolvimento e Comunicação.<br />

Sejam b<strong>em</strong>-vindos todos que <strong>de</strong>sejam participar <strong>de</strong>ssas discussões.<br />

Dacier <strong>de</strong> Barros<br />

Editor Geral<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

DIREITO À COMUNICAÇÃO<br />

Luiz Anastácio Momesso ∗<br />

Introdução<br />

No conjunto do <strong>de</strong>bate sobre direitos humanos, a comunicação cada vez<br />

mais v<strong>em</strong> se tornando um t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> interesse, com propostas <strong>de</strong><br />

elaboração <strong>de</strong> direitos específicos. Por um lado, isso se <strong>de</strong>ve à importância<br />

que ela v<strong>em</strong> assumindo internacionalmente, especialmente a partir das<br />

guerras mundiais e do <strong>de</strong>senvolvimento das novas tecnologias da<br />

informação. Por outro, por ser uma área <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> <strong>em</strong> que os direitos das<br />

gran<strong>de</strong>s maiorias são amplamente violados, sob a capa da legalida<strong>de</strong>, da<br />

institucionalida<strong>de</strong>, da ação do próprio Estado.<br />

Os antece<strong>de</strong>ntes do direito à comunicação r<strong>em</strong>ontam ao século XVIII<br />

e encontram-se expressos na Declaração Universal dos Direitos do Hom<strong>em</strong>.<br />

“Todo indivíduo t<strong>em</strong> direito à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> opinião e <strong>de</strong> expressão. Esse<br />

direito inclui o <strong>de</strong> não ser molestado por causa <strong>de</strong> suas opiniões, o <strong>de</strong><br />

buscar e receber informações e opiniões e o <strong>de</strong> difundi-las s<strong>em</strong> limitação <strong>de</strong><br />

fronteiras por qualquer meio <strong>de</strong> expressão”.<br />

Esse enunciado coloca a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa: difundir informações<br />

e opiniões s<strong>em</strong> limitação <strong>de</strong> fronteiras... Tratava-se <strong>de</strong> uma exigência da<br />

Revolução Francesa. Apresentava-se com um caráter universal, pois se<br />

tratava <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> para todo indivíduo, s<strong>em</strong> exceção. Na realida<strong>de</strong>, o<br />

conjunto da Declaração é marcado pelo caráter do individual, da liberda<strong>de</strong><br />

para o indivíduo. O capitalismo se estrutura tendo por base a livre iniciativa,<br />

que permite êxito para indivíduos na medida <strong>em</strong> que consegu<strong>em</strong> acesso ao<br />

capital. A burguesia queria liberda<strong>de</strong> para agir, para se organizar,<br />

<strong>de</strong>senvolver sua potencialida<strong>de</strong> e garantir a posição <strong>de</strong> classe heg<strong>em</strong>ônica.<br />

Seu sucesso estava condicionado à liberda<strong>de</strong> individual. Qualquer indivíduo<br />

po<strong>de</strong>ria ser b<strong>em</strong> sucedido, e ser apontado como vencedor, digno <strong>de</strong> mérito.<br />

Criaram-se filosofias, i<strong>de</strong>ologias e até crenças religiosas que apontavam<br />

como abençoada por Deus toda pessoa economicamente b<strong>em</strong> sucedida, ou<br />

seja, que se tornasse burguesa.<br />

∗ Professor <strong>de</strong> Comunicação da <strong>UFPE</strong> e m<strong>em</strong>bro da Comissão <strong>de</strong> Direitos Humanos Dom Hel<strong>de</strong>r Câmara.<br />

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A burguesia queria ter liberda<strong>de</strong> para <strong>em</strong>itir suas opiniões, para se<br />

expressar e construir sua heg<strong>em</strong>onia. A imprensa era a porta-voz dos<br />

<strong>de</strong>bates acalorados sobre política, filosofia, economia, arte, entre outros,<br />

que se realizavam <strong>em</strong> espaços públicos como cafés, clubes, associações,<br />

círculos e praças. Ali, constituíam-se opiniões socialmente elaboradas, que,<br />

por meio da imprensa, ganhavam a socieda<strong>de</strong> e se transformavam <strong>em</strong><br />

opiniões públicas. Elaborou-se uma racionalida<strong>de</strong> que elevou a opinião<br />

pública à condição <strong>de</strong> expressão máxima da socieda<strong>de</strong>, à qual as<br />

autorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>veriam se submeter, inclusive o rei (A voz do povo é a voz <strong>de</strong><br />

Deus). Era um momento revolucionário no qual foram superados<br />

dogmatismos e preconceitos arraigados, que se arrastavam respaldados na<br />

i<strong>de</strong>ologia da nobreza e do clero.<br />

Foi no bojo <strong>de</strong>sse movimento revolucionário que se conquistou a<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa. S<strong>em</strong> dúvida, um valor universal. Basta dizer que nas<br />

ditaduras no Brasil, na <strong>de</strong> Vargas e na dos militares, quando a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

imprensa foi suprimida e instalou-se a censura, toda a socieda<strong>de</strong> protestou<br />

contra a medida. A liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa propicia uma certa<br />

d<strong>em</strong>ocratização das informações. Porém, na socieda<strong>de</strong> capitalista, ela se<br />

estrutura nos mol<strong>de</strong>s do capital, resultando <strong>em</strong> limites <strong>de</strong>correntes do modo<br />

<strong>de</strong> produção capitalista. As informações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início do jornalismo,<br />

tornaram-se acessíveis como mercadorias, privilegiando os que a elas<br />

tinham acesso e discriminando o restante da população. Constituiu-se um<br />

público privilegiado, comprador <strong>de</strong> jornais, revistas, literatura... A gran<strong>de</strong><br />

maioria da população ficou excluída.<br />

Acompanhando as tendências <strong>de</strong> concentração e centralização do<br />

capital, os veículos <strong>de</strong> comunicação - inicialmente os jornais, <strong>de</strong>pois o rádio<br />

e a televisão - tornaram-se cada vez <strong>em</strong>presas maiores, comandadas por<br />

um grupo reduzido <strong>de</strong> pessoas, monopolizando as informações.<br />

Constituíram-se as gran<strong>de</strong>s agências internacionais <strong>de</strong> notícias. A liberda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> imprensa cada vez mais foi se tornando liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>em</strong>presa.<br />

Essa situação vinha se agravando <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as guerras mundiais. No esforço<br />

<strong>de</strong> guerra, houve um gran<strong>de</strong> aperfeiçoamento das técnicas e da produção<br />

<strong>de</strong> novos equipamentos. O rádio, cuja tecnologia vinha se <strong>de</strong>senvolvendo<br />

especialmente <strong>de</strong>ntro dos quartéis, tornou-se fundamental para o setor <strong>de</strong><br />

informações. Teve um gran<strong>de</strong> aperfeiçoamento durante a Primeira Guerra<br />

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Mundial, mas continuou confinado à área militar, às navegações e a<br />

ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> informação <strong>em</strong> outros setores. A partir do início da década <strong>de</strong><br />

20 começam a surgir as rádios com caráter social. Na Europa, <strong>de</strong>senvolveuse<br />

principalmente vinculada aos governos, adquirindo feições públicas. Em<br />

alguns países, como na Al<strong>em</strong>anha, proliferou rapidamente no meio operário,<br />

que inicialmente ajustou o novo veículo às suas lutas, sofrendo violentas<br />

repressões com o avanço do nazismo. Nos Estados Unidos, adquiriram<br />

feições comerciais. Por questões <strong>de</strong>correntes das condições <strong>de</strong> cada País,<br />

por conta da conjuntura da guerra, o rádio se <strong>de</strong>senvolveu <strong>de</strong> forma<br />

diferente. Nos Estados Unidos, muitos dos que trabalharam nos setores <strong>de</strong><br />

informação dos exércitos, <strong>de</strong>pois da guerra, <strong>de</strong> posse da técnica,<br />

transformaram-na <strong>em</strong> meios <strong>de</strong> exploração comercial, criando o que<br />

inicialmente chamavam <strong>de</strong> caixinha <strong>de</strong> música, que <strong>de</strong>pois se tornou um<br />

veículo da chamada comunicação <strong>de</strong> massa.<br />

No período “entre guerras”, o rádio já era um veículo bastante<br />

popularizado. Foi utilizado amplamente na sua preparação e no seu<br />

<strong>de</strong>senrolar, sendo integrado como parte das estratégias <strong>de</strong> mobilização das<br />

populações, da busca <strong>de</strong> aliados. Adquiriu amplitu<strong>de</strong> internacional com a<br />

construção <strong>de</strong> potentes transmissoras <strong>em</strong> ondas curtas, sendo a pioneira a<br />

Rádio Moscou, criada <strong>em</strong> 1922, a primeira <strong>de</strong> alcance internacional, que a<br />

partir <strong>de</strong> 1929 transmitia <strong>em</strong> várias línguas, com objetivo <strong>de</strong> expandir e<br />

unificar a luta pelo socialismo. Em 1933, a Al<strong>em</strong>anha inaugurava suas<br />

<strong>em</strong>issões <strong>em</strong> ondas curtas; <strong>em</strong> 1938, a BBC <strong>de</strong> Londres e a Paris-Mondial;<br />

<strong>em</strong> 1942, a Voz da América, dos Estados Unidos, e assim por diante,<br />

alimentando o conflito mundial, buscando construir heg<strong>em</strong>onias entre os<br />

povos, <strong>de</strong>smoralizar os adversários, dar apoio moral às tropas e às<br />

populações, estabelecer elo <strong>de</strong> ligação com batalhões entrincheirados <strong>em</strong><br />

campo inimigo ou com focos <strong>de</strong> resistência isolados.<br />

Passada a guerra, ficou a perplexida<strong>de</strong> com a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

manipulação <strong>de</strong> populações inteiras realizada com os recursos da<br />

comunicação, além <strong>de</strong> seu uso direto como arma <strong>de</strong> guerra, compondo o<br />

conjunto das estratégias. Enquanto para os impérios e os novos mercados<br />

<strong>em</strong>ergentes da comunicação havia um gran<strong>de</strong> otimismo e uma expansão<br />

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crescente, alguns intelectuais e setores da socieda<strong>de</strong><br />

pessimismo.<br />

manifestavam<br />

Segue-se a Guerra Fria, cuja ação fundamental estava associada à<br />

estratégia comunicacional. Tratava-se <strong>de</strong> uma guerra não <strong>de</strong>clarada, que<br />

pendia como ameaça, po<strong>de</strong>ndo <strong>de</strong>sabar a qualquer momento. Uma<br />

estratégia para <strong>de</strong>sestimular as lutas dos povos, apresentando-as como<br />

possíveis <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adoras <strong>de</strong> conflitos catastróficos, num mundo polarizado<br />

<strong>em</strong> dois blocos - socialista e capitalista. A principal arma <strong>de</strong>sse conflito<br />

eram os meios <strong>de</strong> comunicação, sobretudo os jornais, o cin<strong>em</strong>a, as rádios e,<br />

posteriormente, a TV. Uma chantag<strong>em</strong> infindável. Uma ação <strong>de</strong> permanente<br />

<strong>de</strong>srespeito aos direitos humanos.<br />

A televisão, <strong>de</strong>senvolvida a partir da década <strong>de</strong> 50, expandiu-se no<br />

Brasil no período da ditadura, principalmente a partir do final dos anos 60.<br />

Foi também o período <strong>em</strong> que foram construídas infra-estruturas, como<br />

torres <strong>de</strong> transmissão, satélites, entre outros, possibilitando a integração<br />

nacional a partir <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões econômica, política, militar, com<br />

criação <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s gerenciadas. Os militares tinham gran<strong>de</strong>s preocupações<br />

com a integrida<strong>de</strong> e com o que <strong>de</strong>nominam <strong>de</strong> segurança nacional. O Brasil<br />

era um País continental, com imensas florestas, carência <strong>de</strong> estradas, vias<br />

férreas, aeroportos, o que dificultava o controle do território nacional pelos<br />

militares. Era recente a revolução cubana, chinesa, o Vietnã sinalizava<br />

<strong>de</strong>rrotar os EUA, havia guerrilha por toda parte. O <strong>de</strong>senvolvimento dos<br />

meios <strong>de</strong> comunicação tornava-se fundamental para a “conquista das<br />

mentes”. Nesse período, que as escolas <strong>de</strong> comunicação foram criadas no<br />

Brasil, com o objetivo <strong>de</strong> formar profissionais e pesquisadores moldados<br />

pela ótica das teorias funcionalistas importadas dos Estados Unidos,<br />

<strong>de</strong>senvolvidas, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte, por pessoas que trabalharam no setor <strong>de</strong><br />

informação durante as guerras.<br />

No aspecto econômico, a comunicação seguiu a mesma reestruturação<br />

mo<strong>de</strong>rnizadora e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte dos d<strong>em</strong>ais ramos da economia. Basta citar a<br />

Re<strong>de</strong> Globo <strong>de</strong> Televisão, que cresceu tendo vínculos com <strong>em</strong>presa<br />

estaduni<strong>de</strong>nse. Os EUA tinham gran<strong>de</strong> produção <strong>de</strong> bens culturais e a<br />

expansão da TV no Brasil abria um imenso mercado. Vê-se, assim, que toda<br />

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a lógica da implantação <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>rno sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> comunicação obe<strong>de</strong>cia a<br />

interesses econômicos, políticos, i<strong>de</strong>ológicos e militares.<br />

Em setores dos meios intelectuais, estudantis, religiosos, <strong>em</strong> algumas<br />

entida<strong>de</strong>s e organizações <strong>de</strong> esquerda <strong>de</strong> toda a América Latina começam a<br />

se manifestar preocupações com os direitos à comunicação, com sua<br />

distribuição <strong>de</strong>sigual, com a agressão aos povos, com a invasão cultural.<br />

Assim, os <strong>de</strong>bates sobre os direitos humanos da comunicação não<br />

começaram hoje. R<strong>em</strong>ontam à década <strong>de</strong> 50. Mas é principalmente a partir<br />

da década <strong>de</strong> 60 que tomam corpo. Coincid<strong>em</strong> com o período <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>scolonização da África e da Ásia.<br />

Estava-se <strong>em</strong> plena Guerra Fria. As organizações <strong>de</strong> esquerda, <strong>de</strong><br />

forma geral, analisavam essa situação como <strong>de</strong>corrente do conjunto das<br />

ações do capitalismo e do imperialismo. Outras forças, que se aglutinavam<br />

principalmente a partir das concepções social-d<strong>em</strong>ocratas e a chamada<br />

igreja progressista - que rejeitavam o socialismo, mas se contrapunham às<br />

práticas do capitalismo imperialista, sobretudo diante do caráter agressivo e<br />

expansionista que marcava o crescente império do Norte -, propunham uma<br />

terceira via. Havia se criado o conceito <strong>de</strong> terceiro mundo, que englobava os<br />

países recém-saídos da colonização e os países pobres, fora do bloco<br />

socialista. D<strong>em</strong>andava-se alívio da dívida externa, melhores condições <strong>de</strong><br />

comercialização e apoio ao <strong>de</strong>senvolvimento. Muitos ainda viam os Estados<br />

Unidos como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> d<strong>em</strong>ocracia e <strong>de</strong>senvolvimento e acreditavam na<br />

possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma terceira via.<br />

A comunicação fazia parte <strong>de</strong>sse contexto. Com o <strong>de</strong>senvolvimento<br />

<strong>de</strong> tecnologias da comunicação, crescia a produção <strong>de</strong> bens simbólicos. As<br />

multinacionais da cultura, a maioria situada nos Estados Unidos, abriam<br />

mercado para seus produtos <strong>em</strong> todo o planeta. Estabeleceu-se o que os<br />

opositores a essa situação chamaram <strong>de</strong> invasão cultural. A televisão foi o<br />

veículo privilegiado <strong>de</strong>ssa invasão. Rapidamente tratou-se <strong>de</strong> sua expansão<br />

e <strong>de</strong> torná-la popular on<strong>de</strong> se pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> constituir novos mercados para os<br />

bens simbólicos por ela veiculados. Já no final da década <strong>de</strong> 60, qualquer<br />

cida<strong>de</strong>zinha afastada dos centros <strong>de</strong>senvolvidos, no Brasil, mantinha um<br />

aparelho <strong>de</strong> TV nas praças, on<strong>de</strong> o povo se aglomerava para ver a magia da<br />

telinha.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Enquanto os Estados Unidos dispunham <strong>de</strong> vasta produção para<br />

exportação, os países pobres tinham uma produção incipiente. Importavam<br />

todo tipo <strong>de</strong> produto cultural, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos animados, seriados, filmes,<br />

programas “educativos”. Nos centros <strong>de</strong>senvolvidos, eram comuns as<br />

manifestações públicas nas quais muitos discursos protestavam contra a<br />

“enxurrada <strong>de</strong> enlatados culturais”. Culturas <strong>de</strong> países eram invadidas e<br />

<strong>de</strong>scaracterizadas, quando não <strong>de</strong>struídas, como diversas culturas<br />

indígenas. Não se tratava apenas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condições, mas <strong>de</strong><br />

agressão aos povos. Os limites éticos ou políticos eram r<strong>em</strong>ovidos por essas<br />

multinacionais e pelo governo dos Estados Unidos, por diferentes meios,<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a diplomacia até a violência e <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> governantes. A<br />

comunicação era s<strong>em</strong>pre um componente importante <strong>de</strong>ssas práticas.<br />

Apesar <strong>de</strong> os gran<strong>de</strong>s avanços na comunicação ser<strong>em</strong> uma<br />

importante conquista da humanida<strong>de</strong>, ocorreram num contexto do<br />

capitalismo e imperialismo que, sob a ótica dos direitos humanos, causou<br />

sérias violações para gran<strong>de</strong> parte das populações do globo. Constituiu-se<br />

uma séria contradição <strong>de</strong>ntro do mundo capitalista. Mesmo os que não viam<br />

com bons olhos uma saída pelo socialismo, não podiam concordar com essa<br />

situação. Cresceu uma pressão <strong>em</strong> amplos setores da socieda<strong>de</strong> mundial,<br />

fortalecendo-se ainda mais uma perspectiva <strong>de</strong> terceira via. Na década <strong>de</strong><br />

70, o <strong>de</strong>bate estava presente na UNESCO e criou-se a NOMIC (Nova Ord<strong>em</strong><br />

Mundial da Informação e Comunicação), que alimentou esperanças <strong>de</strong><br />

mudanças substanciais.<br />

Mas a UNESCO passou a sofrer pressões dos Estados Unidos. As<br />

verbas <strong>de</strong> diversos órgãos, <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong> projetos por ela<br />

impl<strong>em</strong>entadas nesse setor, foram sendo reduzidas ou cortadas, como<br />

ocorreu também com o CIESPAL (Centro <strong>de</strong> Estudos <strong>de</strong> Jornalismo para a<br />

América Latina), com se<strong>de</strong> <strong>em</strong> Quito, Equador, que formava profissionais e<br />

pesquisadores para abastecer <strong>de</strong> recursos humanos o crescente mercado<br />

das comunicações, quando a maioria <strong>de</strong> seus intelectuais começaram a se<br />

manifestar contrários às teorias funcionalistas da comunicação, geradas nos<br />

Estados Unidos, e propunham uma comunicação horizontal e dialógica,<br />

tendo como referenciais a teoria critica e as idéias do educador brasileiro<br />

Paulo Freire.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Apesar disso, a UNESCO criou uma Comissão Internacional para o<br />

Estudo da Comunicação, com participação <strong>de</strong> 15 países, composta por<br />

estudiosos do t<strong>em</strong>a e personagens respeitados, entre eles, o conhecido<br />

escritor Gabriel Garcia Marques, da Colômbia. O presi<strong>de</strong>nte da comissão foi<br />

Sean Mcbri<strong>de</strong> e, como resultado do trabalho, a comissão publicou um<br />

relatório que ficou conhecido por Relatório Mcbri<strong>de</strong>, tendo como título: Um<br />

Só Mundo, Vozes Múltiplas 1 . Foi publicado <strong>em</strong> 1980 e a UNESCO, ce<strong>de</strong>ndo a<br />

pressões, negou autorização para uma segunda edição.<br />

No <strong>de</strong>bate atual sobre direitos humanos e comunicação, o relatório<br />

Mcbri<strong>de</strong> continua sendo uma referência. T<strong>em</strong> uma contribuição importante,<br />

especialmente pela sist<strong>em</strong>atização do t<strong>em</strong>a, que serve <strong>de</strong> base para a<br />

continuida<strong>de</strong> da discussão.<br />

1. A difícil tarefa <strong>de</strong> garantir os direitos humanos da comunicação<br />

Para a comunicação cont<strong>em</strong>porânea, na socieda<strong>de</strong> complexa e<br />

globalizada, cada vez mais se aperfeiçoam técnicas. A inter-relação entre<br />

seres humanos fica mediada por máquinas. Toda técnica é uma conquista<br />

humana. Para sua aquisição entram <strong>em</strong> ação <strong>de</strong>s<strong>de</strong> cientistas,<br />

pesquisadores, engenheiros, operários, até o trabalhador que produz o<br />

alimento para que essas pessoas possam se <strong>de</strong>dicar a seu trabalho. Mas<br />

estamos numa socieda<strong>de</strong> capitalista e a técnica, nesse sist<strong>em</strong>a, se torna<br />

proprieda<strong>de</strong> privada. A comunicação é <strong>de</strong>finida como um b<strong>em</strong> público. Mas<br />

os equipamentos <strong>de</strong> comunicar e o conhecimento sobre seu manuseio são<br />

apropriados por <strong>em</strong>presas capitalistas. No Brasil, <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> escala, apenas<br />

a TV Cultura, <strong>de</strong> São Paulo, e raras TVs universitárias se aproximam do<br />

exercício <strong>de</strong> comunicação pública.<br />

As rádios, com a expansão da TV, passaram para segundo plano no<br />

interesse do gran<strong>de</strong> capital. A maioria <strong>de</strong>las se constitui como pequenas e<br />

médias <strong>em</strong>presas, associadas a grupos maiores, integradas e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />

1 Hacia um nuevo ord<strong>em</strong> mundial más justo y eficaz <strong>de</strong> la Información e la comunicación –<br />

UN SOLO MUNDO, MULTIPLES VOCES Comunicación e Información en nuestro ti<strong>em</strong>po.<br />

Fondo <strong>de</strong> Cultura Econômica, México/UNESCO, Paris. 1980. Com 508 páginas, está dividido<br />

<strong>em</strong> cinco partes e apêndice: I- Comunicación y Sociedad; II – La Comunicación hoy; III –<br />

Probl<strong>em</strong>ática: preocupaciones comunes; IV – El Marco Institucional y Professional; V – La<br />

Comunicación, Manãna; Apédices: 1 – Comentarios Gerales; 2 – Notas; Comissión<br />

Internacional <strong>de</strong> Estudio <strong>de</strong> los Probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong> la Comunicación.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

<strong>de</strong> re<strong>de</strong>s para sobreviver. Sobre elas, cada vez mais se expan<strong>de</strong> o domínio<br />

<strong>de</strong> religiões. As concessões públicas têm sido moedas <strong>de</strong> barganha <strong>de</strong><br />

governos para conseguir aliados ou a<strong>de</strong>sões, ou feitas sob pressões do<br />

po<strong>de</strong>r econômico e político <strong>de</strong> setores da burguesia. No interior dos estados<br />

do Norte e Nor<strong>de</strong>ste, a gran<strong>de</strong> maioria das <strong>em</strong>issoras pertence a<br />

latifundiários ou seus testas <strong>de</strong> ferro. Quando não, seus proprietários têm<br />

que se curvar ao po<strong>de</strong>r local para sobreviver.<br />

Para a socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma geral, as rádios não atend<strong>em</strong> aos<br />

requisitos colocados pelos direitos humanos, mesmo as tentativas <strong>de</strong><br />

criação e manutenção <strong>de</strong> rádios comunitárias - estas têm sido perseguidas<br />

sist<strong>em</strong>aticamente, com exceção das “rádios comunitárias” <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> igrejas conservadoras ou <strong>de</strong> políticos <strong>de</strong> direita ou as que mantêm o<br />

nome <strong>de</strong> “comunitária”, mas são pequenas <strong>em</strong>presas comerciais.<br />

O acesso à técnica do rádio, já bastante conhecida no meio popular,<br />

continua negado ao povo. As conquistas legais, que a pressão dos<br />

movimentos sociais conseguiu realizar, são inviabilizadas no momento da<br />

execução. As rádios verda<strong>de</strong>iramente comunitárias, que insist<strong>em</strong> <strong>em</strong> se<br />

manter <strong>em</strong> funcionamento, continuam sendo fechadas, com raras exceções.<br />

Para esse impedimento, alegam-se razões técnicas. Na realida<strong>de</strong>, são<br />

principalmente motivos políticos e econômicos. Elas representam um<br />

potencial para a organização popular e os movimentos sociais. On<strong>de</strong><br />

consegu<strong>em</strong> se manter por algum t<strong>em</strong>po, tornam-se um canal <strong>de</strong> discussão<br />

<strong>de</strong> idéias, <strong>de</strong> orientação, organização, mobilizações. Por meio <strong>de</strong>las, lí<strong>de</strong>res<br />

comunitários passam a ocupar espaços na política local. Do ponto <strong>de</strong> vista<br />

da economia, o fato <strong>de</strong> conquistar<strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s audiências locais reduz o<br />

público dos veículos comerciais, <strong>de</strong>svalorizando seus espaços publicitários.<br />

A proliferação <strong>de</strong> rádios verda<strong>de</strong>iramente comunitárias provavelmente<br />

inviabilizaria muitas rádios comerciais.<br />

Assim, no Brasil, o acesso direto da população às rádios comunitárias<br />

continua na pauta <strong>de</strong> luta dos movimentos sociais, apesar <strong>de</strong> já estarmos<br />

no início da era da cibernética, ou dos sist<strong>em</strong>as, caracterizada pelo<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das telecomunicações, satélites geo-estacionários e<br />

informática, que interligam o globo instantaneamente.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Apesar <strong>de</strong> todos os mecanismos <strong>de</strong> controle, da negação do acesso e<br />

dos objetivos das classes dominantes para o rádio, o povo e os movimentos<br />

sociais têm conseguido, ora por meio da compra <strong>de</strong> horário, sobretudo <strong>em</strong><br />

<strong>em</strong>presas radiofônicas menores, <strong>de</strong> rádios comunitárias e <strong>de</strong> outros<br />

mecanismos, transformar o rádio no veículo mais acessível e disponível<br />

para os interesses da população.<br />

Na comunicação cont<strong>em</strong>porânea, portanto, com a socieda<strong>de</strong><br />

complexa e <strong>em</strong> processo <strong>de</strong> globalização, a comunicação humana se torna<br />

cada vez mais intermediada por máquinas e equipamentos. O direito à<br />

comunicação fica condicionado às relações sociais que <strong>de</strong>terminam a posse<br />

e uso <strong>de</strong>ssas máquinas e <strong>de</strong>sses equipamentos e ao acesso e domínio das<br />

técnicas <strong>de</strong> seu manuseio. Em relação ao consumo das mensagens, os<br />

equipamentos são amplamente popularizados. Toda residência t<strong>em</strong><br />

aparelhos <strong>de</strong> rádio e TV. Mas quanto à produção e distribuição dos bens<br />

simbólicos, por ser<strong>em</strong> realizadas por <strong>em</strong>presas capitalistas (indústria<br />

cultural), torna a participação da socieda<strong>de</strong> quase inacessível.<br />

Principalmente com a crescente concentração e centralização do capital.<br />

Assim, sob a lógica do capital, há um contra-senso entre as práticas<br />

comunicativas da socieda<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> comunicação como um b<strong>em</strong><br />

público, b<strong>em</strong> como a atribuição das tecnologias da informação e da<br />

comunicação como patrimônios da humanida<strong>de</strong>. Há uma contradição que<br />

exige mudanças radicais. A UNESCO <strong>de</strong>fine a comunicação como um b<strong>em</strong><br />

público e social, um direito público. A concessão <strong>de</strong> canais é prerrogativa do<br />

governo. Mas, na realida<strong>de</strong>, toda a estrutura é privada e as concessões têm<br />

sido realizadas sob pressão econômica ou como moeda <strong>de</strong> barganha nas<br />

negociações políticas.<br />

A comunicação como inter-relação da socieda<strong>de</strong> fica prejudicada.<br />

Com tanta máquina <strong>de</strong> comunicar, o que v<strong>em</strong>os é a incomunicação<br />

intermediada por essas máquinas. O direito à proprieda<strong>de</strong> suplanta e anula<br />

os direitos à comunicação. A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> do acesso aos meios é<br />

condizente com a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> geral da nossa socieda<strong>de</strong>. O mesmo se diga<br />

da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> do acesso aos bens culturais. Os limites do exercício dos<br />

direitos são impostos pelas relações econômicas e políticas.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

2. Sujeitos ou objetos da comunicação?<br />

Do ponto <strong>de</strong> vista econômico, os bens <strong>de</strong> comunicação são tratados<br />

como mercadorias produzidas pela indústria cultural, ou indústria da<br />

cultura. Na verda<strong>de</strong>, o que essas indústrias vend<strong>em</strong> não são propriamente<br />

os produtos culturais ou <strong>de</strong> lazer: novelas, filmes, shows, informações,<br />

futebol... O que vend<strong>em</strong> são os espaços publicitários, que são pagos pelas<br />

<strong>em</strong>presas anunciantes para, por meio dos anúncios, ven<strong>de</strong>r<strong>em</strong> suas<br />

mercadorias. Em última instância, os meios <strong>de</strong> comunicação vend<strong>em</strong><br />

mercadorias através dos anúncios publicitários. A programação <strong>de</strong> um canal<br />

<strong>de</strong> TV, <strong>de</strong> uma <strong>em</strong>issora <strong>de</strong> rádio, as informações <strong>de</strong> um jornal têm o<br />

objetivo <strong>de</strong> conquistar público ou audiência. É a isca para fisgar o<br />

comprador dos produtos anunciados. O tamanho e qualida<strong>de</strong> (capacida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> compra) do público ou da audiência é que <strong>de</strong>termina a d<strong>em</strong>anda e o<br />

valor dos espaços publicitários. O que os veículos <strong>de</strong> comunicação vend<strong>em</strong><br />

para as <strong>em</strong>presas são públicos, ou seja, o nosso t<strong>em</strong>po como telespectador,<br />

como ouvinte <strong>de</strong> rádio ou leitor <strong>de</strong> um jornal.<br />

A gran<strong>de</strong> preocupação se torna a conquista <strong>de</strong> audiência, a obtenção<br />

<strong>de</strong> uma boa posição no IBOPE. Para atingir gran<strong>de</strong>s públicos, os meios<br />

traçam suas estratégias, <strong>de</strong>finindo um indivíduo médio, genérico, tratado<br />

como um el<strong>em</strong>ento da massa, organizado apenas como público receptivo do<br />

veículo, ou seja, como objeto a ser conquistado. Buscam <strong>de</strong>tectar<br />

tendências <strong>de</strong>sse público e nivelam por baixo a programação. Para se<br />

tornar<strong>em</strong> atrativos, os meios buscam transformar tudo <strong>em</strong> espetáculo,<br />

porque o espetáculo atrai público. Até as notícias perd<strong>em</strong> a característica <strong>de</strong><br />

informação. A notícia, nesse contexto, po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>finida como a informação<br />

tratada como mercadoria, com objetivo <strong>de</strong> ren<strong>de</strong>r lucro e manter o controle<br />

i<strong>de</strong>ológico. Bons programas veiculados pela TV também obe<strong>de</strong>c<strong>em</strong> à lógica<br />

do lucro. Destinam-se a constituir e manter segmentos <strong>de</strong> audiência. Isso<br />

caracteriza um aspecto contraditório que po<strong>de</strong> ser explorado.<br />

Dessa forma, os veículos <strong>de</strong> comunicação, <strong>em</strong> última instância,<br />

constitu<strong>em</strong> uma estrutura que serve <strong>de</strong> suporte para as forças produtivas<br />

na sua relação com o mercado, além <strong>de</strong> zelar<strong>em</strong> pela construção e<br />

manutenção da i<strong>de</strong>ologia burguesa. Apesar disso, constitu<strong>em</strong> um campo <strong>de</strong><br />

disputa para a contra-heg<strong>em</strong>onia. A socieda<strong>de</strong>, que é qu<strong>em</strong> paga pela<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

manutenção da publicida<strong>de</strong>, cujo preço v<strong>em</strong> <strong>em</strong>butido no custo dos<br />

produtos anunciados, não t<strong>em</strong> nenhuma ascendência sobre as <strong>de</strong>cisões, os<br />

conteúdos, a linha editorial dos meios. T<strong>em</strong> apenas a opção <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong><br />

um canal para outro, s<strong>em</strong> influir na programação <strong>de</strong> nenhum <strong>de</strong>les, <strong>de</strong><br />

trocar <strong>de</strong> estação <strong>de</strong> rádio, <strong>de</strong> mudar <strong>de</strong> jornal ou não comprar. É<br />

consumidora <strong>de</strong> bens simbólicos e nada <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre eles, como é<br />

contrariamente alar<strong>de</strong>ado pelos meios. Diz<strong>em</strong> que o consumidor é o rei. Na<br />

verda<strong>de</strong>, é apenas objeto <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> tendências, pelas quais os veículos<br />

orientam os programas e a publicida<strong>de</strong>. E essas tendências, <strong>em</strong> geral,<br />

também são construídas pelos meios, pela própria publicida<strong>de</strong>.<br />

Atualmente, trabalha-se com a teoria <strong>de</strong> que a audiência não é<br />

passiva, pelo contrário, é sujeito da recepção. Isso t<strong>em</strong> algum fundo <strong>de</strong><br />

veracida<strong>de</strong>, porém a TV não propicia condições para uma audiência crítica.<br />

Na recepção certamente há uma oscilação entre conformismo e resistência,<br />

uma seleção do que interessa, uma interpretação que freqüent<strong>em</strong>ente foge<br />

do conteúdo <strong>em</strong>itido e se orienta pelos interesses do receptor. Porém, nas<br />

condições do Brasil, a carga <strong>de</strong> informações sobre uma massa <strong>de</strong> indivíduos<br />

isolados, <strong>de</strong>senraizados <strong>de</strong> suas culturas pela migração interna,<br />

<strong>de</strong>sorganizados socialmente, torna muito limitado o campo da resistência.<br />

Quando o indivíduo está integrado <strong>em</strong> organizações nas quais elabora<br />

coletivamente sua visão <strong>de</strong> mundo ou a interpretação <strong>de</strong> acontecimentos,<br />

organiza a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses. Quando isso ocorre, certamente que a<br />

recepção das mensagens da mídia é realizada com mais possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

ingredientes <strong>de</strong> crítica.<br />

O probl<strong>em</strong>a cresce ainda mais nos finais <strong>de</strong> s<strong>em</strong>ana, <strong>em</strong> que a TV se<br />

tornou o lazer <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte da população. Fica-se muito t<strong>em</strong>po diante<br />

das telas. Para atrair gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> pessoas que nesse dia gozam do<br />

ócio, as programações são niveladas <strong>em</strong> padrões mais baixos ainda, para<br />

não dizer <strong>em</strong> futilida<strong>de</strong>s. Ocupam um t<strong>em</strong>po enorme das pessoas com<br />

espetáculos medíocres, s<strong>em</strong> valor cultural, s<strong>em</strong> qualquer conteúdo que<br />

contribua para a elevação do espírito. Contribu<strong>em</strong>, isto sim, para a<br />

produção <strong>de</strong> um vazio nas pessoas e o <strong>em</strong>brutecimento humano. Isolam o<br />

indivíduo do contato social, quando po<strong>de</strong>riam proporcionar um lazer que<br />

estimulasse a cultura, a sociabilida<strong>de</strong>, ativida<strong>de</strong>s lúdico-educativas, <strong>de</strong><br />

formação esportiva, entre outros.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Dessa forma, as telinhas entretêm a população isentando os po<strong>de</strong>res<br />

públicos <strong>de</strong> provi<strong>de</strong>nciar outros tipos <strong>de</strong> ócio por meio <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s lúdicas,<br />

esportivas, culturais e <strong>de</strong> promover a sociabilida<strong>de</strong> das pessoas.<br />

Os padrões da TV são colocados a partir dos proprietários dos meios,<br />

<strong>em</strong> acordo com outros centros <strong>de</strong> influência, as <strong>em</strong>presas patrocinadoras.<br />

Nesses padrões estão <strong>em</strong>butidos interesses e i<strong>de</strong>ologias. Interfer<strong>em</strong> <strong>em</strong><br />

outros centros <strong>de</strong> organização da socieda<strong>de</strong>, como a família, escola,<br />

religião, associações, movimentos, e afetam a vida das pessoas, das<br />

organizações sociais, das instituições.<br />

O acesso pleno ao direito à comunicação por toda a socieda<strong>de</strong> só se<br />

torna possível com sua transformação real <strong>em</strong> meios públicos, assegurados<br />

legalmente, com gestão e controle públicos efetuados pela socieda<strong>de</strong><br />

através <strong>de</strong> conselhos e outros mecanismos. Isso implica na construção <strong>de</strong><br />

uma socieda<strong>de</strong> com ampla participação e, pelo menos, redução drástica das<br />

<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s econômicas e sociais.<br />

Enquanto solução <strong>de</strong>sse tipo parece ainda distante, por diversas<br />

formas as organizações da socieda<strong>de</strong>, tanto <strong>em</strong> âmbito nacional como mais<br />

geral, travam uma disputa constante pelo acesso a esse direito. Exist<strong>em</strong><br />

fóruns pela d<strong>em</strong>ocratização da comunicação, organizações, movimentos,<br />

são realizados <strong>de</strong>bates, s<strong>em</strong>inários, campanhas, tudo visando limitar essa<br />

falsa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa. Além disso, os movimentos e organizações<br />

sociais, <strong>em</strong>bora <strong>em</strong> condições <strong>de</strong>sfavoráveis, buscam alguma presença nos<br />

meios <strong>de</strong> comunicação, muitas vezes por meio da compra <strong>de</strong> espaços para<br />

programação própria, especialmente <strong>em</strong> rádios. Essa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

presença também está muito relacionada à dinâmica dos movimentos<br />

sociais, à sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar fatos socialmente importantes que ger<strong>em</strong><br />

interesse para que os meios os transform<strong>em</strong> <strong>em</strong> notícias. Aqui se faz<br />

importante a ação <strong>de</strong> comunicadores i<strong>de</strong>ntificados com os movimentos<br />

sociais, tanto agindo <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les como a partir <strong>de</strong> seu trabalho nos<br />

meios. É a luta da contra-heg<strong>em</strong>onia.<br />

Em âmbito mais restrito, tanto <strong>em</strong> relação aos limites <strong>de</strong> um local<br />

como pela circunscrição a uma organização, partido, movimento, entre<br />

outros, constrói-se uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pequenos veículos pelos quais esses<br />

públicos restritos se comunicam, constituídos especialmente por pequenos<br />

jornais e rádios comunitárias. Em muitos casos, esses veículos não<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

consegu<strong>em</strong> superar o mo<strong>de</strong>lo dominante <strong>de</strong> comunicação unidirecional.<br />

Mas, <strong>em</strong> muitos <strong>de</strong>les, já se <strong>de</strong>senvolveram mecanismos, como conselhos<br />

ou outras formas <strong>de</strong> participação, por meio das quais a recepção <strong>de</strong>fine,<br />

orienta ou controla a produção das mensagens, quebrando o mo<strong>de</strong>lo<br />

unidirecional implantado pela comunicação-<strong>em</strong>presa. Ali, no âmbito <strong>de</strong>sses<br />

micro-universos, o direito à comunicação realiza-se plenamente. Esses<br />

mo<strong>de</strong>los pod<strong>em</strong> servir <strong>de</strong> referência para se pensar à comunicação para<br />

toda a socieda<strong>de</strong>.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

SEMIÓTICA DA VIOLÊNCIA NA CULTURA BRASILEIRA<br />

Dacier <strong>de</strong> Barros e Silva 2<br />

Arthur Grupillo 3<br />

Introdução<br />

O filósofo e jurista Solón, por volta <strong>de</strong> 590 a.C., tendo sido<br />

perguntado sobre a maneira mais eficaz <strong>de</strong> diminuir os crimes <strong>em</strong> uma<br />

socieda<strong>de</strong>, disse: “Isso ocorrerá se eles causar<strong>em</strong> tanto ressentimento nas<br />

pessoas que não são vítimas dos mesmos quanto nas que são” (LAÊRTIOS,<br />

1987, p. 28). Por mais el<strong>em</strong>entar que pareça a sabedoria do filósofo,<br />

pod<strong>em</strong>os tecer elucubrações e aprofundar pontos singulares que a frase<br />

po<strong>de</strong> aludir. A linha <strong>de</strong> raciocínio conduzida por Solón diz respeito à<br />

interiorização <strong>de</strong> significados da natureza negativa do crime, por meio do<br />

sentimento <strong>de</strong> vítima. Em outras palavras, somente quando a socieda<strong>de</strong><br />

interioriza e interpreta o real significado dos valores, quer sejam positivos<br />

ou negativos – isso significa percebê-los <strong>de</strong> fato –, po<strong>de</strong>-se falar da<br />

apreciação individual dos mesmos.<br />

Ora, no que diz respeito à violência, <strong>de</strong> forma alguma a interiorização<br />

do seu significado será possível s<strong>em</strong> a interpolação s<strong>em</strong>iótica da natureza<br />

negativa dos fatos e estados. Somente se houver uma i<strong>de</strong>ntificação do<br />

crime enquanto crime e da ignorância <strong>de</strong> suas lacunas, que se pod<strong>em</strong> valer<br />

<strong>de</strong> seus significados socialmente aceitáveis, será possível a aplicação do<br />

exercício do b<strong>em</strong> pela Justiça. No entanto, os sinais a que se <strong>de</strong>v<strong>em</strong> referir<br />

os fatos e estados moralmente inaceitáveis constitu<strong>em</strong>, para nós, um<br />

contingente <strong>de</strong> ruídos que intercepta muito b<strong>em</strong> as lacunas e as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu preenchimento com valores positivos.<br />

Des<strong>de</strong> a monumental relação kantiana causa-conseqüência à<br />

plenitu<strong>de</strong> da lógica dialética, pareceu insuficiente o estudo para o<br />

2<br />

Dacier <strong>de</strong> Barros e Silva é Doutor <strong>em</strong> Sociologia do Desenvolvimento pela Friedrich Alexan<strong>de</strong>r Universität<br />

(Al<strong>em</strong>anha) e professor do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação <strong>em</strong> Comunicação da <strong>UFPE</strong>.<br />

3<br />

Arthur Grupillo é aluno do Curso <strong>de</strong> Jornalismo da <strong>UFPE</strong> e bolsista CNPq/PIBIC.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

discernimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados fenômenos sociais. O que se po<strong>de</strong>, então,<br />

dizer da relação crime-castigo é que, no mínimo, representa <strong>em</strong> alto grau a<br />

dinâmica do processo antitético. Na cultura brasileira, estamos habituados<br />

às formas <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação do crime pelo castigo, ou melhor, tratando-se da<br />

personalização da vida pública, à i<strong>de</strong>ntificação do criminoso antes pelo<br />

castigo a que foi submetido do que pelo crime <strong>em</strong> si mesmo. Agrega-se a<br />

essa lógica a disfuncionalida<strong>de</strong> da Justiça brasileira que endossa, enquanto<br />

assimilação cultural <strong>de</strong> bens simbólicos, o incentivo à criminalida<strong>de</strong>. Não é<br />

difícil encontrar práticas ilegais sob a justificativa <strong>de</strong> não haver punição para<br />

as mesmas, sendo, portanto, suportável e até “justificável” a manutenção<br />

do crime. Se não há materialização da Justiça, <strong>em</strong> sentido universalizante,<br />

sine ira et studio, não há punição e, para nós, isso implica a não<br />

i<strong>de</strong>ntificação do fator negativo nas práticas do crime.<br />

A repercussão do caso do juiz Nicolau dos Santos Neto traz à tona<br />

nossa discussão. De maneira alguma o criminoso pareceu se sentir<br />

“constrangido” n<strong>em</strong> a socieda<strong>de</strong> “aturdida” pelas representações que seu<br />

crime carregava – o roubo <strong>de</strong> milhões dos cofres públicos –; ou seja, pelo<br />

significado que o ato tinha <strong>em</strong> si mesmo. No entanto, tendo sido<br />

<strong>de</strong>scoberto, fugiu, iniciando um processo <strong>de</strong> “negociação diplomática” com a<br />

Justiça brasileira, e ficou ignorado pela opinião pública por algum t<strong>em</strong>po.<br />

Mais tar<strong>de</strong>, cassado, a fim <strong>de</strong> garantir sua volta ao País e conseqüente<br />

rendição, com um menor constrangimento, o juiz fez diversas exigências:<br />

não ser transportado <strong>em</strong> camburão, não ser alg<strong>em</strong>ado, não ser filmado,<br />

entre outras. Pod<strong>em</strong>os inferir daí a preocupação do crime na i<strong>de</strong>ntificação<br />

<strong>de</strong> si mesmo por meio do castigo.<br />

Em outras palavras, não parecia tão vergonhoso à opinião pública o<br />

crime cometido quanto pareceria qualquer i<strong>de</strong>ntificação do criminoso pelo<br />

zurzir <strong>de</strong> sua imag<strong>em</strong>. O público, por sua vez, não distingue o significado do<br />

crime pelo crime, mas do crime pelo castigo. Conseqüent<strong>em</strong>ente, fica<br />

implícito que n<strong>em</strong> o castigo n<strong>em</strong> o crime po<strong>de</strong>riam ser reconhecidos pelas<br />

instâncias <strong>de</strong> natureza pública, como as alg<strong>em</strong>as e o camburão po<strong>de</strong>riam<br />

ser o endosso do <strong>de</strong>lito - negando-se estes, <strong>de</strong>squalifica-se o crime. A<br />

autorida<strong>de</strong> do indivíduo singular se sobrepõe às representações do po<strong>de</strong>r<br />

público enquanto guardião público.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

É verda<strong>de</strong> que não se po<strong>de</strong> falar <strong>de</strong> um significado que o crime tenha<br />

<strong>em</strong> si mesmo, porquanto seja uma negação <strong>de</strong> um significado moral<br />

positivo, <strong>de</strong>sejável por si mesmo. Nesse caso, o progresso moral dá-se no<br />

entendimento do significado do não-ser do crime como negação <strong>de</strong> um ser:<br />

o “b<strong>em</strong>”. Na cultura brasileira, porém, o entendimento não repousa sobre o<br />

positivo, o b<strong>em</strong>, mas na negação da negação, o castigo, que, no entanto,<br />

não é <strong>de</strong>sejável por si mesmo. O nível <strong>de</strong> progresso moral, representado<br />

pelas socieda<strong>de</strong>s protestantes nos mol<strong>de</strong>s da moral do <strong>de</strong>ver kantiano na<br />

instância máxima do “imperativo categórico”, interiorizado <strong>em</strong> lei, é, entre<br />

nós, substituído por uma moral do não-castigo, que não só esquece o<br />

significado que o b<strong>em</strong> <strong>de</strong>ve ter <strong>em</strong> si mesmo, como também o significado<br />

do mal como sua negação. É por isso que b<strong>em</strong> e mal estão para nós num<br />

cadinho violento, que nos permite atribuir valores a essa negação <strong>em</strong> cuja<br />

base encontram-se o autoritarismo e a internalização do sentido estatal. 4<br />

4 Na sua opinião, qu<strong>em</strong> pratica crime bárbaro <strong>de</strong>veria ser morto pelos policiais?<br />

Classes Sociais A B C D<br />

T<br />

o<br />

e<br />

t<br />

a<br />

E<br />

l<br />

Deveria 6<br />

7<br />

4<br />

4<br />

5<br />

7<br />

6<br />

5<br />

6<br />

0<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

Não <strong>de</strong>veria 3<br />

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5<br />

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3<br />

4<br />

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0<br />

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%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

Não sabe não<br />

0<br />

0<br />

4<br />

4<br />

3<br />

respon<strong>de</strong>u<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

Um estuprador <strong>de</strong>veria apanhar da polícia?<br />

Classes Sociais A B C D<br />

T<br />

o<br />

e<br />

t<br />

a<br />

E<br />

l<br />

20


M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

É, a partir <strong>de</strong> agora, <strong>de</strong> fundamental importância enten<strong>de</strong>r que o<br />

conselho <strong>de</strong> Solón aplica-se somente se houver a i<strong>de</strong>ntificação do crime a<br />

um nível indireto; isto é, àqueles que não são vítimas diretas do fato. Para<br />

isso, é necessário chegar ao parâmetro do discurso da humanização das<br />

penas por meio dos sinais, ou seja, fazer com que cada castigo represente<br />

um sinal do crime que o reporte <strong>em</strong> significação e promova as<br />

sensibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> punição e <strong>de</strong> esquecimento natural frente à idéia da<br />

transgressão. À medida que a discussão do castigo nos aparecerá propícia<br />

para o entendimento da lógica do discurso transgressor, a idéia <strong>de</strong> b<strong>em</strong> e<br />

mal se revelará no ciclo hermenêutico da i<strong>de</strong>ntificação do crime.<br />

1. O punir e a reportação dos sinais na socieda<strong>de</strong> relacional<br />

A fim <strong>de</strong> não submeter o leitor a uma elucidação <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> filosófica<br />

sobre a natureza do b<strong>em</strong>, enten<strong>de</strong>r<strong>em</strong>os a lógica da i<strong>de</strong>ntificação da<br />

violência <strong>em</strong> sua relação direta com a socieda<strong>de</strong> brasileira, sobretudo a<br />

partir dos chamados estudos <strong>de</strong> caráter nacional. Está claro que, para nós,<br />

todos os apontamentos relativos à ética filosófica, feitos até aqui no encalço<br />

da i<strong>de</strong>ntificação do b<strong>em</strong> por meio do castigo, e as lacunas que<br />

possivelmente se abr<strong>em</strong> aos significados socialmente aceitáveis, cujo<br />

Deveria 3<br />

8<br />

8<br />

8<br />

8<br />

3<br />

8<br />

2<br />

5<br />

3<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

Não <strong>de</strong>veria 6<br />

1<br />

1<br />

1<br />

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8<br />

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%<br />

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%<br />

%<br />

Não sabe não<br />

0<br />

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0<br />

2<br />

1<br />

respon<strong>de</strong>u<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

%<br />

Essas duas tabelas foram retiradas do estudo, ainda <strong>em</strong> andamento, O significado da violência nos meios <strong>de</strong><br />

comunicação. Os dados reflet<strong>em</strong> que na ausência da funcionalida<strong>de</strong> da justiça pública, os indivíduos, ao que<br />

parece, tend<strong>em</strong> a interiorizar os significados do Estado, revelando um nível <strong>de</strong> justiça individual. A violência<br />

simbólica, então, seria a manifestação inconsciente do exercício <strong>de</strong>ssa justiça íntima materializada no consumo <strong>de</strong><br />

bens simbólicos nos periódicos policiais, nas piadas, nos costumes da Casa Gran<strong>de</strong> e outras manifestações<br />

culturais <strong>em</strong> que a autorida<strong>de</strong> do indivíduo <strong>de</strong>lega valores aos fatos e estados.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

processo estamos chamando violência, estão <strong>em</strong> íntima relação com as<br />

interpretações socioantropológicas, consolidadas pelas ciências humanas do<br />

País e, ao mesmo t<strong>em</strong>po, alicerçadas nos conteúdos <strong>em</strong>píricos <strong>de</strong>stacados,<br />

que dão sustentação àquela intuição filosófica a que fiz<strong>em</strong>os alusão no início<br />

<strong>de</strong>ste artigo.<br />

É <strong>de</strong> fundamental importância enten<strong>de</strong>r que todo amálgama da<br />

plasticida<strong>de</strong> que permite a agregação <strong>de</strong> valores positivos aos fatos e<br />

estados indiferentes é fruto <strong>de</strong> um sist<strong>em</strong>a social <strong>em</strong> que a palavra <strong>de</strong><br />

ord<strong>em</strong> <strong>de</strong>svia-se do indivíduo e do cidadão enquanto repousa na relação<br />

mesma; isto é, na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mediar conflitos, <strong>de</strong> relacionar partes<br />

opostas. Mais importante do que os el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong> relação é a própria<br />

relação. “A socieda<strong>de</strong> brasileira é relacional; nela <strong>de</strong>scobre-se a mediação e<br />

estabelece-se a gradação, incluindo, jamais excluindo” (DaMatta, 1991, p.<br />

45). A participação inclusiva na totalida<strong>de</strong> da relação só é permitida à<br />

medida que incluindo, sinteticamente, ignora-se aquela racionalida<strong>de</strong> que<br />

submete o ente à objetivação, analiticamente. Enquanto nos sist<strong>em</strong>as<br />

mo<strong>de</strong>rnos o sujeito social é o indivíduo, nas socieda<strong>de</strong>s tradicionais, por seu<br />

turno, caracteriza-se o todo ou as relações entre os indivíduos como<br />

instância social que prevalece sobre os valores individualistas.<br />

As socieda<strong>de</strong>s tradicionais são relacionais porque todas são fundadas na<br />

i<strong>de</strong>ologia <strong>em</strong> que o indivíduo não existe como ser moral, como sujeito do<br />

sist<strong>em</strong>a, a não ser <strong>em</strong> momentos especiais. A morte é um <strong>de</strong>sses<br />

momentos. Neste caso, a individualização torna-se um estado social positivo<br />

que <strong>de</strong>ve ser adotado por todo. (p.65)<br />

Enquanto espaço social completamente distinto, o “outro mundo” não<br />

nos interessa diretamente, porquanto, entend<strong>em</strong>os que, na cultura<br />

brasileira, a violência no âmbito da propensão à morte, “morbi<strong>de</strong>z”, até<br />

on<strong>de</strong> o seu fim não está consumado, não é percebida. Se é na morte o<br />

momento <strong>em</strong> que o sujeito individual aparece e alcança conotação <strong>de</strong><br />

sujeito moral respeitável, não se po<strong>de</strong> dizer o mesmo do espaço a que<br />

chamamos vulgarmente “este mundo”. Isso se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que “neste<br />

mundo” o processo <strong>de</strong> síntese e conciliação <strong>de</strong> opostos é a representação<br />

das lacunas <strong>de</strong> cada substância como veias dilatadas, abertas e<br />

superexpostas ao capricho da autorida<strong>de</strong>.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Pod<strong>em</strong>os assinalar vários ex<strong>em</strong>plos para mostrar como ocorre o<br />

processo <strong>de</strong> representação mencionado, tendo, inclusive, múltiplas<br />

dimensões que, ao cabo, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>bocarão no fenômeno singular da violência<br />

simbólica como instância do po<strong>de</strong>r punitivo. Essas representações serão<br />

tomadas como objeto <strong>de</strong> discussão a partir <strong>de</strong>ste momento.<br />

O sujeito moral como significado do agente social mo<strong>de</strong>rno<br />

personifica o fim a que r<strong>em</strong>ete todo sist<strong>em</strong>a contratual da jurisprudência<br />

iluminista. Essa é uma característica exclusiva dos países que alcançaram<br />

um nível <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico e que se reflete num mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r dominante, a partir da aplicação <strong>de</strong> códigos jurídicos<br />

fixos. Em síntese, é o que Max Weber <strong>de</strong>nominava <strong>de</strong> “regulamentos<br />

abstratos”, normas e expressão <strong>de</strong> valor impessoal, típicos das ações<br />

societárias. Esse tipo <strong>de</strong> atitu<strong>de</strong>, no entanto, não condiz com o po<strong>de</strong>r<br />

totalitário do rei que, na Justiça clássica, tinha a lei ou era a lei, consi<strong>de</strong>rada<br />

na formulação weberiana como “Justiça do Cadi”. Na Justiça mo<strong>de</strong>rna, no<br />

entanto, o rei abre mão do po<strong>de</strong>r arbitrário, inclusive da indulgência, a fim<br />

<strong>de</strong> realizar uma economia dos suplícios que se revelou mais eficaz e menos<br />

arriscada para a estabilida<strong>de</strong> do exercício real.<br />

A partir <strong>de</strong>ssas fundamentações teóricas, é <strong>de</strong> particular relevância a<br />

unanimida<strong>de</strong> dos estudos <strong>de</strong> caráter nacional <strong>em</strong> apontar a ausência <strong>de</strong>sse<br />

tipo <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z formal na aplicação da Justiça no Brasil. Sérgio Buarque <strong>de</strong><br />

Holanda (1995, p. 55) atesta como uma das aversões às virtu<strong>de</strong>s<br />

econômicas a “constituição <strong>de</strong> entrave contra a rígida aplicação <strong>de</strong> normas<br />

<strong>de</strong> justiça e <strong>de</strong> quaisquer prescrições legais”, como forma <strong>de</strong> apreço aos<br />

vínculos <strong>de</strong> amiza<strong>de</strong> <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento da calculabilida<strong>de</strong> do espírito capitalista.<br />

Enquanto este adquire um sentido quase religioso <strong>de</strong> obtenção do fim, que<br />

Holanda chama <strong>de</strong> finis operis - incluindo uma re<strong>de</strong> complexa <strong>de</strong> cálculos <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>s limites que inclu<strong>em</strong> os meios –, qualquer processo para nós é<br />

um fim <strong>em</strong> si mesmo, finis operantis, satisfazendo-se no mecanismo mesmo<br />

e não <strong>em</strong> seu resultado.<br />

Para Gilberto Freyre, a unificação moral e política <strong>de</strong>ve-se à<br />

solidarieda<strong>de</strong> dos mais diversos grupos, inclusive antagônicos, contra os<br />

povos heréticos – franceses, ingleses e holan<strong>de</strong>ses. Aqui pod<strong>em</strong>os perceber<br />

uma nítida hipertrofia da ord<strong>em</strong> relacional. A prova maior <strong>de</strong> que ela<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

mesma constitui um fim é o fato atestado por Freyre (1964, p. 86): “o ar<br />

africano, <strong>em</strong> Portugal, foi amolecendo as instituições, a rigi<strong>de</strong>z moral e<br />

doutrinária da igreja”.<br />

Não se t<strong>em</strong> nada novo nesse ponto, somente que a causa <strong>de</strong>ssa<br />

ausência <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z formal na aplicação da Justiça é, <strong>em</strong> última análise, um<br />

fator relacional como b<strong>em</strong> ressalta DaMatta (1991, p. 65):<br />

no caso brasileiro há s<strong>em</strong>pre uma superestrutura i<strong>de</strong>ológica e jurídica<br />

plenamente coerente e oficial, interpretada por uma infra-estrutura formada<br />

pela teia <strong>de</strong> relações pessoais imperativas que, na prática, modificam muito<br />

os termos do probl<strong>em</strong>a porque introduz<strong>em</strong> precisamente mais um el<strong>em</strong>ento<br />

no esqu<strong>em</strong>a: [...] o elo entre simpatias pessoais e formulações jurídicas<br />

universalizantes.<br />

A falta <strong>de</strong> aplicação imediata <strong>de</strong> um código formal exige a intervenção<br />

arbitrária <strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong>. Frente ao rei, que ao mesmo t<strong>em</strong>po é lei,<br />

qualquer criminoso, na medida <strong>em</strong> que atenta contra a lei, atenta contra o<br />

rei. Em toda infração há um crimen majestatis. Contra esse pequeno<br />

regicida, exige-se que se aplique o po<strong>de</strong>r soberano a fim <strong>de</strong> que não só o<br />

crime seja punido, mais ainda, que o rei d<strong>em</strong>onstre seu po<strong>de</strong>r absoluto<br />

(FOUCAULT, 1998). Com qualquer tibieza nas formas <strong>de</strong> organização, no<br />

caso do Brasil, “não é possível acordo coletivo durável, a não ser por uma<br />

força exterior respeitável e t<strong>em</strong>ida” (HOLANDA, 1991, p. 67). Da mesma<br />

forma, no campo político, “representou a formação <strong>de</strong> ditaduras militares,<br />

como alternativa à autarquia do indivíduo e à falta <strong>de</strong> coesão social” (p.<br />

80).<br />

Em Casa Gran<strong>de</strong> & Senzala, obt<strong>em</strong>os uma riqueza infinita <strong>de</strong><br />

ex<strong>em</strong>plos <strong>em</strong> que a representação da figura autoritária coinci<strong>de</strong> com a<br />

estranha percepção <strong>de</strong> um fato indiferente ou claramente negativo <strong>em</strong> sua<br />

valorização socialmente aceitável. É o caso da epid<strong>em</strong>ia <strong>de</strong> sífilis no interior<br />

dos mocambos e muitas vezes estendida à sacada patriarcal. O fato <strong>de</strong> ser<br />

a sífilis uma doença sexualmente transmitida carregava consigo um valor<br />

falocêntrico, no qual o sifilítico d<strong>em</strong>onstrava virilida<strong>de</strong> e ostentava<br />

masculinida<strong>de</strong>, sendo a enfermida<strong>de</strong> muitas vezes estampada como “ferida<br />

<strong>de</strong> guerra”. Como afirma Freyre (1964), acontecia <strong>de</strong> algum jov<strong>em</strong> ser<br />

ridicularizado por não possuir marca <strong>de</strong> sífilis, provando ser “donzelo”.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Havia, ainda, <strong>de</strong> acordo com o autor, a mórbida crença <strong>de</strong> que um<br />

hom<strong>em</strong> se curava da sífilis transmitindo-a a uma menina.<br />

Ao mesmo t<strong>em</strong>po, os significados <strong>de</strong> ord<strong>em</strong> religiosa parec<strong>em</strong> ser os<br />

únicos que resist<strong>em</strong> a uma perversão mais acentuada; isto é, suas lacunas<br />

apresentam um nível relativo <strong>de</strong> rigi<strong>de</strong>z, que não se dispõe facilmente à<br />

inclusão passiva <strong>de</strong> valores – não sendo, no entanto, imunes à autorida<strong>de</strong><br />

individual, já que a capela era uma simples extensão <strong>de</strong> um cômodo da<br />

casa gran<strong>de</strong>. Enquanto era fundamental a saú<strong>de</strong> religiosa do imigrante, com<br />

particular ódio a mouros e protestantes, a sífilis e a lepra, entre outras<br />

doenças, entraram livr<strong>em</strong>ente no País. Em Portugal, a religiosida<strong>de</strong> como<br />

fundamento <strong>de</strong>ssa agregação violenta <strong>de</strong> valores já está <strong>em</strong> íntima relação<br />

com o suplício como forma <strong>de</strong> castigo, apresentando uma s<strong>em</strong>iótica do<br />

crime completamente disforme. “Enquanto qu<strong>em</strong> adoestasse os santos e<br />

praticasse feitiçaria tinha a língua tirada pelo pescoço e era <strong>de</strong>gradado para<br />

s<strong>em</strong>pre para a África ou para o Brasil; pelo crime <strong>de</strong> matar, estuprar etc.<br />

bastava pagar <strong>de</strong> multa uma galinha” (FREYRE, 1964, p. 94).<br />

Mas, nenhuma <strong>de</strong>ssas representações <strong>de</strong> violência caracteriza mais<br />

fort<strong>em</strong>ente o que tentamos encontrar do que as formas <strong>de</strong> vida e cultura do<br />

índio brasileiro. A educação dos curumins era ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> significados<br />

violentos. Em danças, era comum observar figuras macabras, d<strong>em</strong>oníacas,<br />

a fim <strong>de</strong> amedrontar as crianças. Essas danças, muitas vezes, terminavam<br />

na morte <strong>de</strong> um dos indiozinhos - ritual com fim moral e pedagógico. As<br />

cantigas <strong>de</strong> ninar estão cheias <strong>de</strong> bichos, d<strong>em</strong>ônios, carrapatos. As crianças<br />

eram muitas vezes mutiladas, <strong>de</strong>sfiguradas para afastar os maus espíritos.<br />

Em certa ida<strong>de</strong>, o menino índio era segregado e submetido a provas <strong>de</strong><br />

iniciação tão rigorosas que muitas vezes causavam a morte. Cerimônias <strong>de</strong><br />

penitência e autoflagelação também eram muito comuns. Esses traços da<br />

cultura primitiva atestam não só a conciliação <strong>de</strong> opostos e a agregação <strong>de</strong><br />

valores culturais, mas práticas sociais naturalmente in<strong>de</strong>sejáveis como<br />

ainda o efeito pedagógico e moral por meio do castigo e da dor.<br />

Posteriormente, ainda, a insensibilida<strong>de</strong> do ameríndio à noção <strong>de</strong><br />

proprieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> roubo veio influenciar a relativa “suavida<strong>de</strong>” com que esse<br />

tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>lito era punido (FREYRE, 1964).<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

2. Trabalho e aventura: tipologias da violência<br />

As referências <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los i<strong>de</strong>ais adotados brilhant<strong>em</strong>ente por<br />

Buarque <strong>de</strong> Holanda são <strong>de</strong> particular importância para o entendimento da<br />

lógica social, que dá sentido ao relevo verda<strong>de</strong>iramente trágico que t<strong>em</strong> a<br />

cultura ibérica, católica, tradicional. Antes, porém, será preciso chamar a<br />

atenção para os principais pontos que <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> esses tipos. Enquanto o<br />

trabalhador enxerga o processo intermediário, preza pelo esforço lento,<br />

me<strong>de</strong> as possibilida<strong>de</strong>s e realiza pequenos esforços s<strong>em</strong> perspectiva<br />

imediata, o aventureiro ignora as fronteiras, transforma o obstáculo <strong>em</strong><br />

trampolim, enxerga o fim como recompensa imediata, numa frase: seu<br />

objetivo é colher o fruto s<strong>em</strong> plantar a árvore (HOLANDA, 1995).<br />

Obviamente <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os enten<strong>de</strong>r a perspectiva da aventura, que ignora o<br />

processo intermediário, junto à noção do finis operantis, isto é, ter a<br />

satisfação do fazer com o próprio fim sua recompensa instantânea.<br />

O fatalismo que pontuamos previamente revela-se como sentido<br />

capital da ausência <strong>de</strong> esforço calculado na obtenção <strong>de</strong> segurança no<br />

t<strong>em</strong>po. A operação não é constant<strong>em</strong>ente renovada <strong>em</strong> processo<br />

automatizado <strong>de</strong> prevenção ou manutenção no t<strong>em</strong>po, mas <strong>de</strong>legada ao<br />

acaso, s<strong>em</strong> cálculo intermediário, a um suposto fim que, tragicamente, não<br />

po<strong>de</strong>ria ser diferente. A<strong>de</strong>ntramos, então, a terra <strong>de</strong> ninguém do “outro<br />

mundo” a que DaMatta (1991) chama atenção como lugar <strong>de</strong> significados<br />

melhor <strong>de</strong>finidos, não tão facilmente abertos à intervenção da autorida<strong>de</strong><br />

mundana.<br />

Recent<strong>em</strong>ente, a equipe <strong>de</strong> gerenciamento do sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> energia<br />

elétrica do País, incluindo o Presi<strong>de</strong>nte da República, não poupou injúrias a<br />

“São Pedro” como principal responsável pela crise <strong>de</strong> energia <strong>em</strong> quase todo<br />

o Brasil. Enquanto ajuste regular no t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> operação pré-crise, faltaram<br />

iniciativas que evitass<strong>em</strong> o referido inci<strong>de</strong>nte, certificando, então, a<br />

preservação da atitu<strong>de</strong> tradicional <strong>de</strong> esperar as chuvas rogando ao santo<br />

milagroso.<br />

Não é difícil também perceber, numa outra dimensão fatalista, a<br />

posição dos acusados, inclusive <strong>de</strong> parte da opinião pública, no episódio <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>sabamento do Edifício Palace II, que provocou a morte <strong>de</strong> oito pessoas,<br />

no Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>em</strong> 22 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1998. Nesse episódio, o então<br />

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<strong>de</strong>putado Sérgio Naya, dono da construtora do imóvel, foi responsabilizado.<br />

A acusação a Naya teve como base um termo <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> técnica<br />

na construção do edifício, apontando irregularida<strong>de</strong>s. O mais<br />

impressionante foram as <strong>de</strong>clarações do acusado, veiculadas na imprensa,<br />

<strong>em</strong> que ele revelava ter usado material <strong>de</strong> baixo padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.<br />

Essa falsa “dialética” da crença e risco é a conseqüência imediata da<br />

ausência da calculabilida<strong>de</strong> racional. Primeiro porque nada levaria o<br />

construtor a acreditar que não haveria probl<strong>em</strong>as <strong>em</strong> trabalhar com<br />

material ina<strong>de</strong>quado, senão a crença <strong>de</strong> que o risco não seria fatal, a menos<br />

que o fosse, no sentido <strong>de</strong> inevitável, e isso aconteceria mesmo usando<br />

material a<strong>de</strong>quado. Segundo porque, mesmo s<strong>em</strong> a liberação do “habitese”,<br />

registro que permite a ocupação <strong>de</strong>finitiva dos apartamentos, e tendo<br />

sido o edifício interditado dois anos antes, famílias lá moravam<br />

efetivamente. Os significados do fatalismo na cultura brasileira parec<strong>em</strong>,<br />

então, generalizados nas relações do cotidiano.<br />

Essas são as principais características da aventura, um mo<strong>de</strong>lo i<strong>de</strong>al,<br />

mas que se materializa <strong>em</strong> proporções fundamentais e que repousa na<br />

crença e no risco, <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do cálculo formal e da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

autocertificação, que correspon<strong>de</strong> à consciência <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

(HABERMAS, 2000), que pressupõe uma cultura profana ocorrida<br />

inicialmente na Europa, <strong>em</strong> oposição à fisionomia religiosa que está na base<br />

do espírito fatalista <strong>de</strong> nossas raízes tradicionais. A violência é a figuração<br />

das lacunas <strong>de</strong> valores que r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> à inconsciência do processo total do<br />

finis operantis e do esquecimento da valorização da <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> do fazer<br />

tanto quanto do objeto <strong>de</strong> seu resultado.<br />

3. O caso Folha <strong>de</strong> Pernambuco<br />

A ostentação do suplício simbólico nas páginas policiais dos jornais <strong>de</strong><br />

cada cida<strong>de</strong> brasileira nos mostra, <strong>em</strong> estampa clara e a preço mínimo, o<br />

retrato da mais competente - no sentido pragmático e ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

imoral, no sentido do <strong>de</strong>senvolvimento social - da realização da justiça. O<br />

noticiário televisivo é, s<strong>em</strong> dúvida, o <strong>de</strong> maior alcance na satisfação estética<br />

do prazer da imag<strong>em</strong>. Certamente, ainda, a imediação com a qual se dá o<br />

veículo audiovisual faz trazer com mais clareza e crueza a i<strong>de</strong>ntificação com<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

o que estamos chamando <strong>de</strong> violência. No entanto, as páginas do jornal<br />

Folha <strong>de</strong> Pernambuco são <strong>de</strong> particular importância, pelo fenômeno editorial<br />

que caracterizaram nos últimos anos da imprensa brasileira.<br />

Estudos do instituto <strong>de</strong> pesquisa Marplan, realizados no primeiro<br />

trimestre <strong>de</strong> 2001, <strong>em</strong> todo mercado do gran<strong>de</strong> Recife, apontaram o jornal<br />

Folha <strong>de</strong> Pernambuco como o periódico diário mais lido da região. De um<br />

total <strong>de</strong> 1.049 leitores, 60% lê<strong>em</strong> a Folha <strong>de</strong> Pernambuco, segundo o<br />

instituto. A mesma enquete afirma que 60% são leitores exclusivos. Embora<br />

não seja o jornal <strong>de</strong> maior tirag<strong>em</strong> no Estado, a Folha caracteriza fenômeno<br />

editorial porque <strong>de</strong> três a seis pessoas chegam a ler um único ex<strong>em</strong>plar.<br />

Os dados da Marplan a respeito da classe social dos leitores da Folha<br />

fundamentam nossa hipótese <strong>de</strong> que a classe C representa a maior fatia <strong>de</strong><br />

leitores, seguida das classes D e B respectivamente. Erra-se ao pensar que<br />

esse tipo <strong>de</strong> periódico policial interessa somente às classes baixas,<br />

enquanto pod<strong>em</strong>os ressaltar que as fatias representadas pelas classes A e E<br />

coincid<strong>em</strong> <strong>em</strong> número.<br />

Conclusão<br />

O que tentamos elucidar a todo o t<strong>em</strong>po diz respeito aos seguintes<br />

pontos cristalizados na cultura brasileira. Em primeiro lugar, o amálgama <strong>de</strong><br />

significados que caracteriza uma socieda<strong>de</strong> sintética, que inclui, jamais<br />

exclui, e, assim, agrega valores às lacunas existentes entre a ausência <strong>de</strong><br />

rigi<strong>de</strong>z formal na aplicação da justiça e o po<strong>de</strong>r autoritário do indivíduo que<br />

ten<strong>de</strong> a resgatar a moralida<strong>de</strong> íntima. Em segundo lugar, as duas<br />

dimensões que pod<strong>em</strong>os <strong>de</strong>stacar do que tentamos chamar “violência<br />

simbólica”.<br />

De um lado, o <strong>de</strong>lito que representa lacunas expostas com facilida<strong>de</strong>,<br />

incluindo o aproveitamento estético e industrial, à justiça do indivíduo-rei,<br />

como nosso ex<strong>em</strong>plo do caso juiz Nicolau, ou formas clássicas já bastante<br />

estudadas do banditismo rural nos mitos <strong>de</strong> Antônio Conselheiro ou<br />

Lampião. De outro, a mornidão s<strong>em</strong> epopéia dos crimes banalizados ou<br />

consi<strong>de</strong>rados esteticamente normais, praticados por <strong>de</strong>linqüentes <strong>de</strong> classes<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

baixas, estigmatizados pelo estereótipo do criminoso criado pela classe alta,<br />

mantidos pela classe média e pelos meios <strong>de</strong> comunicação.<br />

O consumo <strong>de</strong> bens simbólicos proporcionado pela violência po<strong>de</strong> ser<br />

dividido <strong>em</strong> dois mercados. Primeiramente, o consumo da “arte” do crime<br />

ou da i<strong>de</strong>ntificação com o criminoso beneficiado com o estereótipo, por<br />

meio dos significados que são agregados ao fenômeno, <strong>em</strong> virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua<br />

potencialida<strong>de</strong> socialmente aceitável, consumível. De outra forma, o<br />

consumo da ostentação do suplício do criminoso “simples”. Do <strong>de</strong>linqüente<br />

marginalizado socialmente, antes <strong>de</strong> cometer o crime, o corpo supliciado<br />

estendido nas páginas policiais como outrora nas praças públicas, durante a<br />

justiça penal clássica, até fins do século XVIII e primeira meta<strong>de</strong> do século<br />

XIX.<br />

A intimida<strong>de</strong>, o espaço privado, a casa enquanto mantenedora dos<br />

valores <strong>em</strong>otivos que orientam o espaço público, a rua e a Justiça<br />

representam o antigo soberano absoluto que personifica a lei e diz quando e<br />

como algo <strong>de</strong>ve ou não ser feito. Os valores que são agregados às lacunas<br />

dos sinais do crime são obras da coletivida<strong>de</strong> íntima, <strong>em</strong>otiva, que dita <strong>de</strong><br />

qual dos crimes se po<strong>de</strong> rir e <strong>de</strong> qual se <strong>de</strong>ve punir. O <strong>de</strong>lito que se abre a<br />

esse po<strong>de</strong>r é recebido com alegria, entusiasmo. A mais cruel das guerras é<br />

facilmente tornada <strong>em</strong> samba. Do contrário, o <strong>de</strong>lito <strong>de</strong> cuja ilegalida<strong>de</strong> se<br />

preserva a classe média, <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus bens e da vida simples que<br />

acompanha o consumo, está longe do domínio honroso da estética do crime<br />

ou da ilegalida<strong>de</strong> dos direitos.<br />

Direitos são facilmente <strong>de</strong>srespeitados com o apreço socialmente<br />

aceitável dos processos incompreendidos, mas carregados do bacharelismo<br />

que a cultura valoriza. A ilegalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que são objetos os pequenos bens<br />

da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consumo, contudo, não é tolerada. E sua punição, sim,<br />

esteticamente ornada <strong>em</strong> sentimentos que chamamos violência mórbida,<br />

trazida como suplício simbólico – castigo pelo crime contra o rei –, que<br />

instala novo ciclo <strong>de</strong> aceitação social do punir como i<strong>de</strong>ntificação do<br />

criminoso, escoamento da pulsão agressiva do direito do indivíduo,<br />

sedimentado na interiorização dos significados do Estado. T<strong>em</strong>-se, então,<br />

novo impulso <strong>de</strong> agregação <strong>de</strong> valores e perpetuação da violência, s<strong>em</strong><br />

dúvida, entre nós, um probl<strong>em</strong>a <strong>de</strong> sinais; um <strong>de</strong>safio à justiça pública e,<br />

principalmente, à instância penal.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

REFERÊNCIAS<br />

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Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Rocco.<br />

FOUCAULT, M. 1998. Microfísica do Po<strong>de</strong>r. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Graal.<br />

FREYRE, G. 1964. Casa Gran<strong>de</strong> e Senzala. Rio <strong>de</strong> Janeiro, José Olympio.<br />

HABERMAS, J. 2000. O Discurso Filosófico da Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. São Paulo:<br />

Martins Fontes.<br />

HOLANDA, S. B. 1984. Raízes do Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro, José Olympio.<br />

LAÉRTIOS, D. 1987. Vidas e Doutrinas dos Filósofos Ilustres. Brasília, UnB<br />

WEBER, M. 1965. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo,<br />

Pioneira.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

CULTURA E DEMOCRACIA: GÊNESE DA INSTITUCIONALIZAÇÃO DO<br />

DIREITO À INFORMAÇÃO NO BRASIL<br />

Renata Ribeiro Rolim ∗<br />

Introdução<br />

Nos últimos anos, o direito à comunicação <strong>em</strong>ergiu como t<strong>em</strong>a<br />

central na discussão sobre os direitos humanos no Brasil. À medida <strong>em</strong> que<br />

a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão passa a ser cada vez mais i<strong>de</strong>ntificada com a<br />

exploração comercial dos meios <strong>de</strong> comunicação e o direito à informação<br />

vincula-se a uma certa ativida<strong>de</strong> passiva do receptor, o direito à<br />

comunicação <strong>em</strong>erge como um direito novo, capaz <strong>de</strong> englobar e dar<br />

solução a todos os probl<strong>em</strong>as que <strong>de</strong>safiam os projetos <strong>de</strong> d<strong>em</strong>ocracia do<br />

espaço midiático brasileiro: concentração e cruzamento da proprieda<strong>de</strong> dos<br />

veículos, favorecimento político no processo <strong>de</strong> distribuição das freqüências<br />

para <strong>em</strong>issoras privadas e comunitárias, <strong>de</strong>ficiência do controle social dos<br />

conteúdos do rádio e da televisão e dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso às novas<br />

tecnologias <strong>de</strong> informação, especialmente à Internet e aos softwares.<br />

Se, por um lado, a introdução <strong>de</strong> um novo termo ajuda a mobilizar<br />

discussões a respeito da organização da comunicação social no Brasil, por<br />

outro, corre-se o risco <strong>de</strong> reduções simplistas, <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> “antes” e<br />

“<strong>de</strong>pois”, <strong>em</strong> prejuízo do enfoque dialético mais atento às rupturas e<br />

continuida<strong>de</strong>s operadas na complexificação social e nas formas <strong>de</strong> teorizálas.<br />

Surge, portanto, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um estudo sobre a constituição do<br />

espaço midiático brasileiro, tendo como norte o processo histórico que<br />

tornou possível a institucionalização do direito à informação neste País.<br />

Estudar a gênese <strong>de</strong>sse espaço se mostra <strong>de</strong> fato relevante para o <strong>de</strong>bate<br />

atual sobre o direito à comunicação.<br />

Nesse sentido, as contribuições <strong>de</strong> Yves <strong>de</strong> la Haye (1984, p. 11-19)<br />

sobre a gênese do aparelho <strong>de</strong> informação francês mostram-se relevantes.<br />

∗<br />

Doutora <strong>em</strong> Direitos Humanos pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Pablo <strong>de</strong> Olavi<strong>de</strong>, Espanha,<br />

pesquisadora do Núcleo <strong>de</strong> Documentação dos <strong>Movimento</strong>s Sociais da <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Pernambuco e professora <strong>de</strong> Direito Internacional Público da Faculda<strong>de</strong><br />

Maurício <strong>de</strong> Nassau.<br />

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No estudo, o autor i<strong>de</strong>ntificou um triângulo <strong>de</strong> forças - a do Estado,<br />

do movimento do capital e dos movimentos sociais – cuja compenetração e<br />

ação recíprocas dão à comunicação social sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e sua<br />

complexida<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lada pela História. Tal maneira <strong>de</strong> ver o espaço da<br />

comunicação social, apesar <strong>de</strong> se <strong>de</strong>bruçar sobre a formação do setor<br />

comunicacional <strong>de</strong> um País específico, dispõe <strong>de</strong> ampla abrangência, pois,<br />

ao não se limitar à mera <strong>de</strong>scrição da evolução das técnicas e <strong>de</strong> suas<br />

regulamentações, procura captar sua estrutura global.<br />

S<strong>em</strong> conceber a dinâmica <strong>de</strong>ssas três forças como separadas ou<br />

justapostas, mas <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> combinações e confrontos, Yves <strong>de</strong> la Haye<br />

(Id<strong>em</strong>, p. 16) pô<strong>de</strong> especificar como sendo expressão do Estado <strong>em</strong> matéria<br />

<strong>de</strong> comunicação, essencialmente, a busca pela conservação da heg<strong>em</strong>onia,<br />

enquanto o capital se move basicamente pelo lucro, e os movimentos<br />

sociais se expressam pela mobilização <strong>de</strong>fensiva e ofensiva, também<br />

proporcionada pela forma <strong>de</strong> conceber e praticar a informação que<br />

engendra ação.<br />

Assim, como o Estado brasileiro proce<strong>de</strong>u na constituição <strong>de</strong> uma<br />

esfera <strong>de</strong>veras importante para a consolidação da heg<strong>em</strong>onia, quais as<br />

relações significativas mantidas com as <strong>em</strong>presas <strong>de</strong> comunicação<br />

audiovisual, <strong>de</strong> que forma essas se <strong>de</strong>senvolveram e como atuaram os<br />

movimentos sociais nesse setor? Como foi possível, por outro lado, a<br />

compatibilida<strong>de</strong> entre os princípios da doutrina da Segurança Nacional e a<br />

expansão da cultura <strong>de</strong> massas?<br />

Essas e outras questões pod<strong>em</strong> ser melhor compreendidas quando se<br />

observa a consolidação <strong>de</strong> uma sólida infra-estrutura <strong>em</strong> telecomunicação,<br />

o alargamento do mercado cultural, o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> práticas<br />

“alternativas” <strong>em</strong> comunicação e o reconhecimento constitucional dos<br />

princípios do direito à informação.<br />

1. Milagre e mirag<strong>em</strong> na periferia<br />

Industrialização pesada, acesso mais facilitado aos bens <strong>de</strong> consumo,<br />

urbanização e ampliação do sist<strong>em</strong>a educacional. Quais seriam as<br />

implicações políticas, econômicas, sociais e culturais da “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>” <strong>em</strong><br />

um País periférico, cuja herança <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> econômico-social e <strong>de</strong><br />

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autoritarismo nas relações pessoais, sociais e políticas sustentou tanto os<br />

governos militares quanto a nascente indústria cultural?<br />

1.1. Tradição e mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />

A articulação pouco equilibrada entre Estado, capital privado interno e<br />

capital externo imprimiu a marca do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento adotado<br />

pelo Brasil para consolidar sua industrialização <strong>em</strong> meados da década <strong>de</strong> 50<br />

e que permitiu transformá-lo, <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po, sob a égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma<br />

ditadura militar, <strong>em</strong> um dos países mais industrializados do Terceiro Mundo.<br />

O reverso <strong>de</strong>sse impressionante crescimento econômico, que <strong>em</strong> cada crise<br />

alertava para seus verda<strong>de</strong>iros limites, mostrava-se na gran<strong>de</strong> influência do<br />

capital estrangeiro e na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se romper com a hierarquia da<br />

divisão internacional do trabalho, pelo qual não se logrou um padrão<br />

autônomo <strong>de</strong> acumulação.<br />

De fato, a internacionalização do gran<strong>de</strong> capital monopolista das<br />

economias centrais nos anos posteriores à Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra ensejou<br />

o avanço da industrialização <strong>em</strong> alguns países periféricos. A marca<br />

distintiva <strong>de</strong> tal processo nesses países <strong>de</strong>u-se nos êxitos dos esforços <strong>em</strong><br />

constituir uma base industrial pesada. No entanto, como <strong>em</strong> nenhum <strong>de</strong>les<br />

havia suficiente concentração e centralização do capital e como a simples<br />

penetração do capital estrangeiro nos setores <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> produção não<br />

po<strong>de</strong>ria garantir o avanço da industrialização, a atuação do Estado como<br />

agente fundamental da monopolização do capital seria <strong>de</strong>cisiva.<br />

No Brasil não foi diferente. Chegando tardiamente à industrialização e<br />

incorporando <strong>em</strong> um curto período <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po os padrões <strong>de</strong> reprodução e <strong>de</strong><br />

transformação do capitalismo monopolista na fase do pós-guerra, o Estado<br />

cumpriu o papel que cabia ao capital financeiro nos países <strong>de</strong><br />

industrialização avançada; isto é, aglutinou o processo <strong>de</strong> monopolização do<br />

capital para viabilizar, diretamente por meio <strong>de</strong> <strong>em</strong>presas públicas e<br />

indiretamente por um sist<strong>em</strong>a financeiro público, a constituição do setor <strong>de</strong><br />

bens <strong>de</strong> produção.<br />

A ociosida<strong>de</strong> produtiva, o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego e o aumento da inflação, que<br />

<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>aram uma crise econômica <strong>em</strong> 1962 que se prolongou até 1967,<br />

foram resolvidos politicamente por meio <strong>de</strong> um golpe <strong>de</strong> Estado,<br />

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consolidando a aliança entre certos setores do capital privado nacional e o<br />

capital estrangeiro, dando novo impulso ao processo <strong>de</strong> acumulação.<br />

Para Maria da Conceição Tavares e Luiz Gonzaga Belluzzo (1998, p.<br />

140-154), o período do “milagre brasileiro” representou um impacto<br />

expansivo apenas momentâneo sobre a economia, cujo auge se <strong>de</strong>u entre<br />

1970 e 1973. A industrialização pesada - li<strong>de</strong>rada pelos setores <strong>de</strong> bens <strong>de</strong><br />

consumo duráveis e <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> capital, uma vez instalados e tendo passado<br />

posteriormente por um período <strong>de</strong> aceleração dos investimentos - não<br />

po<strong>de</strong>ria garantir por si só o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> d<strong>em</strong>anda industrial. Foi nesse<br />

momento que se tornou prepon<strong>de</strong>rante a indústria <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo<br />

não-duráveis, na qual a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sustentação estava intimamente<br />

relacionada à taxa <strong>de</strong> crescimento <strong>de</strong> <strong>em</strong>prego e <strong>de</strong> salário. Devido aos<br />

limites <strong>de</strong>ssas variáveis, comuns <strong>em</strong> países periféricos, o investimento<br />

público, por sua vez, po<strong>de</strong>ria intervir para reequilibrar o sist<strong>em</strong>a econômico,<br />

permitindo a sustentação das taxas <strong>de</strong> investimento e <strong>de</strong> produção da<br />

indústria <strong>de</strong> base, mas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o fizesse in<strong>de</strong>finidamente.<br />

Dada essa impossibilida<strong>de</strong>, os efeitos negativos <strong>de</strong>sestabilizadores do<br />

investimento público prevaleceram s<strong>em</strong> que as taxas <strong>de</strong> investimento<br />

privado pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> ser verificadas <strong>em</strong> médio prazo. Ficou mais claro, com<br />

isso, que a ampla intervenção do Estado na economia não o fez forte no<br />

sentido <strong>de</strong> ser capaz <strong>de</strong> dar rumo autônomo ao processo <strong>de</strong> industrialização<br />

mais avançada. Como a introdução do progresso tecnológico que se dá<br />

<strong>de</strong>ntro do sist<strong>em</strong>a das <strong>em</strong>presas internacionais é monopolizada pelas<br />

economias dominantes e, como tal, a incorporação só se efetua <strong>em</strong> setores<br />

<strong>de</strong> bens <strong>de</strong> produção nacionalmente mais privilegiados pelo po<strong>de</strong>r público,<br />

além da hierarquização da divisão internacional do trabalho se impor, a<br />

articulação entre os interesses do capital estrangeiro e do capital privado<br />

nacional realizada pelo Estado distingue-se pela instabilida<strong>de</strong>.<br />

Essa é a regra. Contudo, o governo militar do general Geisel, que<br />

daria início ao processo <strong>de</strong> abertura do regime <strong>de</strong> forma “lenta, gradual e<br />

segura”, foi responsável pela adoção <strong>de</strong> medidas para reforçar a indústria<br />

<strong>de</strong> bens <strong>de</strong> capital e reequilibrar o balanço <strong>de</strong> pagamentos. O II Plano<br />

Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento, posto <strong>em</strong> prática <strong>em</strong> 1974, tinha <strong>em</strong> vista tal<br />

projeto, repetindo o mecanismo <strong>de</strong> endividamento público, mas, <strong>de</strong>sta vez,<br />

redirecionando a economia para as exportações. Entre os setores<br />

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cont<strong>em</strong>plados por esse plano nacional, o da informática recebeu atenção<br />

especial <strong>em</strong> razão dos interesses <strong>em</strong> manter a soberania nacional, que, à<br />

época, combinava com os princípios da Doutrina da Segurança. Mediante<br />

acordos com <strong>em</strong>presas estrangeiras, que previam a transferência <strong>de</strong><br />

tecnologias, foi possível construir um microcomputador nacional. Na<br />

preparação para a “era pós-industrial”, com ênfase na pesquisa tecnológica,<br />

organismos públicos foram criados, como a <strong>em</strong>presa COBRA, e o mercado<br />

<strong>de</strong> microcomputadores foi posto <strong>em</strong> reserva nacional (MATTELART E<br />

SCHUMUCLER, 1983, p. 124-141).<br />

Apesar <strong>de</strong>sses esforços, o mo<strong>de</strong>lo da industrialização brasileira, que<br />

<strong>de</strong>pendia largamente da composição dos interesses estrangeiros e nacionais<br />

por parte do Estado, novamente imprimiu seus limites. Se internamente tal<br />

projeto contava apenas com apoio <strong>de</strong> parte do setor produtivo nacional e<br />

estrangeiro mais relacionado com as exportações, além do <strong>de</strong>scrédito da<br />

população que via o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra real do salário diminuir,<br />

externamente o avanço do II PND restou comprometido pela paralisação<br />

dos <strong>em</strong>préstimos internacionais, <strong>de</strong> que se tornou <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, na década<br />

seguinte. Na esteira <strong>de</strong>sse processo, porém, os interesses do sist<strong>em</strong>a<br />

financeiro, que se privilegiava do endividamento do Estado, consolidavamse<br />

no País. (BENJAMIN AT AL, 1998, p. 27/28).<br />

No entanto, não foram apenas tais dificulda<strong>de</strong>s que o País teve que<br />

enfrentar no processo <strong>de</strong> reestruturação produtiva mundial a partir dos<br />

anos 70. A chamada “questão social”, expressa numa das mais <strong>de</strong>siguais<br />

distribuições <strong>de</strong> renda do planeta, também exigiu sua parcela <strong>de</strong> fator<br />

complicador e <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ador da crise dos anos 80. Mas antes caberia uma<br />

pergunta: como foi social e politicamente possível um crescimento<br />

econômico tão elevado, incomparável a qualquer outro naquele contexto,<br />

<strong>em</strong> um período menor do que <strong>de</strong>z anos, mantendo as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s que<br />

caracterizam o País historicamente?<br />

Entre 1930 e 1980, quando o Brasil abandonava o mo<strong>de</strong>lo agrárioexportador<br />

para se transformar <strong>em</strong> um dos maiores sist<strong>em</strong>as produtivos do<br />

Terceiro Mundo, contando com elevado porte industrial e grau <strong>de</strong><br />

articulação interindustrial, a produção foi multiplicada <strong>em</strong> quase trinta<br />

vezes. Nesse período, acompanhando o crescimento da industrialização,<br />

t<strong>em</strong>-se a urbanização, a expansão da classe operária e das camadas<br />

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médias, o aumento populacional, o <strong>de</strong>senvolvimento do setor terciário <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>trimento do agrário e o incr<strong>em</strong>ento da burocracia.<br />

É certo que ao fim do último ciclo expansivo o financiamento <strong>de</strong><br />

nossa economia estava estreitamente afetado por <strong>de</strong>cisões tomadas no<br />

exterior, dado o endividamento do po<strong>de</strong>r público e o controle que as<br />

transnacionais exerciam sobre os setores mais dinâmicos da indústria. No<br />

entanto, o que se mostrou mais grave foi a incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> socialização dos<br />

produtos do crescimento típicos <strong>de</strong>ssa fase <strong>de</strong> acumulação. Na realida<strong>de</strong>, o<br />

processo <strong>de</strong> crescimento industrial brasileiro não se dissociou da lógica da<br />

concentração <strong>de</strong> renda. O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento se voltou para os<br />

interesses estrangeiros e para o consumo <strong>de</strong> uma pequena parte mais<br />

privilegiada da população.<br />

Claro que houve certos avanços sociais, especialmente a partir do<br />

período do “milagre brasileiro”, lastreados <strong>em</strong> uma transformação radical<br />

pela qual passou a política social brasileira, permitindo a implantação <strong>de</strong><br />

políticas <strong>de</strong> massa e <strong>de</strong> significativa cobertura s<strong>em</strong> prece<strong>de</strong>ntes na América<br />

Latina. Observou-se maior capacitação educativa da população, diminuição<br />

da pobreza urbana e rural, baixas taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil, expansão<br />

do saneamento básico etc. (SOARES, 2001, p. 196-209).<br />

No entanto, essas mudanças não <strong>de</strong>ixavam camuflar o retrato mais<br />

nítido da mo<strong>de</strong>rnização à brasileira: o esforço do <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico se <strong>de</strong>u às custas da opressão dos trabalhadores e do controle<br />

estatal <strong>de</strong> suas entida<strong>de</strong>s representativas; a renda dos 10% mais ricos era<br />

34 vezes maior que a dos 10% mais pobres <strong>em</strong> 1960, passando para 40 e<br />

47 vezes <strong>em</strong> 70 e 80, respectivamente (BENJAMIN ET AL, 1998, p. 91); o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento industrial concentrou-se nas regiões Sul e Su<strong>de</strong>ste, a<br />

ponto <strong>de</strong> tornar-se corriqueira a afirmação <strong>de</strong> que são vigentes no País até<br />

hoje etapas históricas diferentes; a estrutura da proprieda<strong>de</strong> agrária<br />

permaneceu intocada levando milhares <strong>de</strong> pessoas a migrar<strong>em</strong> e se<br />

instalar<strong>em</strong> precariamente nas gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s; o sist<strong>em</strong>a educacional e <strong>de</strong><br />

saú<strong>de</strong> eram (e são) insuficientes e <strong>de</strong>ficitários, entre outros.<br />

As profundas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais existentes não se <strong>de</strong>ixam<br />

<strong>de</strong>screver facilmente, assim como suas diversas origens. Apesar <strong>de</strong> o golpe<br />

<strong>de</strong> 1964 ter dado continuida<strong>de</strong> a esse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>sigual,<br />

marcado pela centralização do po<strong>de</strong>r no Executivo, não seria incorreto<br />

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afirmar que o autoritarismo presente na socieda<strong>de</strong> brasileira foi “apenas”<br />

com ele reforçado, tomando feições mais explícitas.<br />

O autoritarismo nessa socieda<strong>de</strong> se expressa, segundo Marilena<br />

Chauí (1989, p. 47-62), não só na intermitência da “concessão” <strong>de</strong> direitos<br />

políticos, sociais, econômicos e culturais à população nos vários períodos da<br />

história brasileira, mas também, e principalmente, na hierarquia que<br />

predomina nas relações sociais e pessoais, na ausência <strong>de</strong> distinção entre o<br />

público e o privado, na dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> efetivar o princípio formal e abstrato<br />

da igualda<strong>de</strong> perante a lei, na repressão às formas <strong>de</strong> luta e <strong>de</strong> organização<br />

sociais e populares, discriminação racial, sexual e <strong>de</strong> classe.<br />

Pod<strong>em</strong>os ir mais além e, seguindo o pensamento da autora,<br />

i<strong>de</strong>ntificar, a partir <strong>de</strong> uma matriz teológico-política, as dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />

instituição e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> relações d<strong>em</strong>ocráticas no País. Para<br />

Marilena Chauí (1984, 28-30), a estrutura autoritária da socieda<strong>de</strong><br />

brasileira, baseada na forma como se realiza a divisão <strong>de</strong> classes – na qual<br />

n<strong>em</strong> as carências n<strong>em</strong> os privilégios consegu<strong>em</strong> se generalizar <strong>em</strong> interesse<br />

comum n<strong>em</strong> se universalizar <strong>em</strong> direito, s<strong>em</strong> abandonar as marcas da<br />

particularida<strong>de</strong> e da especificida<strong>de</strong> –, afasta a constituição da esfera pública<br />

da lei e do direito como fundamentos coletivos do po<strong>de</strong>r, mantendo, por<br />

isso mesmo, a teologia política.<br />

Não haveria espaço aqui para seguirmos com a análise sobre<br />

populismo como matriz teológica-política no Brasil, mas, talvez, não seja<br />

d<strong>em</strong>ais enfatizar que tal forma <strong>de</strong> expressão política só se torna possível<br />

quando o po<strong>de</strong>r se realiza afastando a mediação das instituições políticas,<br />

b<strong>em</strong> como por intermédio do estímulo a uma visão messiânica do<br />

governante, que é a forma pela qual as classes populares tradicionalmente<br />

tomam contato com a política: o <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> todas as esperanças <strong>em</strong> um<br />

salvador que antece<strong>de</strong>rá o juízo final (Id<strong>em</strong>, p. 24).<br />

A alimentação recíproca entre autoritarismo social e matriz teológica<br />

do po<strong>de</strong>r político encontrará, na década <strong>de</strong> 90, novo impulso, como<br />

ver<strong>em</strong>os mais adiante, com a consolidação do projeto neoliberal no País.<br />

Mas por hora basta assinalarmos que os meios <strong>de</strong> comunicação, ao t<strong>em</strong>po<br />

que tiveram seus papéis re<strong>de</strong>finidos, participaram <strong>de</strong>cisivamente da<br />

organização <strong>de</strong>ssa socieda<strong>de</strong> - econômica, política, social e culturalmente.<br />

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1.2 .“Integrar para não entregar”<br />

Enquanto predominava no País a economia agrária, que tinha como<br />

norte alimentar os mercados centrais <strong>de</strong> matérias-primas, as infraestruturas<br />

<strong>de</strong> transporte <strong>de</strong> informação eram precárias e pouco atendiam às<br />

necessida<strong>de</strong>s internas da população. Prestavam-se, <strong>em</strong> geral, a criar<br />

condições para a inserção internacional da economia e, <strong>de</strong> forma<br />

secundária, aten<strong>de</strong>r as camadas mais abastadas, além <strong>de</strong> ser<strong>em</strong><br />

controladas por <strong>em</strong>presas estrangeiras. (DANTAS, 2002, p. 129-135).<br />

Com o início da “industrialização restringida”, <strong>em</strong> que a expansão do<br />

capitalismo se realizou apenas <strong>em</strong> alguns setores, tal situação começou a<br />

mudar. Rodovias foram construídas, o sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> telefonia se ampliou, o<br />

rádio passou a fazer parte do cotidiano das classes médias urbanas e a<br />

televisão dava seus primeiros passos. No entanto, a incipiente<br />

industrialização dava os limites da extensão das comunicações no território.<br />

Apesar <strong>de</strong> Getúlio Vargas utilizar o rádio como principal meio <strong>de</strong><br />

propaganda política, comunicando-se diretamente com as massas com o fim<br />

<strong>de</strong> sustentar seu po<strong>de</strong>r na aliança com os setores populares, sua intenção<br />

<strong>de</strong> alcançar os lugares mais r<strong>em</strong>otos do País não passava <strong>de</strong> um sonho.<br />

É certo que anteriormente aos anos 40 os jornais já circulavam<br />

diariamente nas maiores cida<strong>de</strong>s e também havia revistas ilustradas e<br />

histórias <strong>em</strong> quadrinhos, mas, como afirma Renato Ortiz (2001, p. 38),<br />

apesar <strong>de</strong> encontrarmos mesmo antes <strong>de</strong>ssa época a existência <strong>de</strong> meios <strong>de</strong><br />

comunicação, é necessário que toda a socieda<strong>de</strong> se reestruture para que<br />

eles adquiram um novo significado e uma amplitu<strong>de</strong> social, como ocorreu<br />

nessa década com o início da consolidação da socieda<strong>de</strong> urbano-industrial.<br />

Mesmo antes do golpe militar <strong>de</strong> 64, que colocou por terra a<br />

confiança <strong>de</strong>positada por certos setores da esquerda <strong>em</strong> uma suposta<br />

burguesia progressista nacionalista, os rumos da ampliação e da<br />

consolidação do processo <strong>de</strong> industrialização exigiam a estruturação <strong>de</strong> um<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> comunicação mais eficaz. A edição do Código Brasileiro <strong>de</strong><br />

Telecomunicações (CBT), <strong>em</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1962, foi o sinal <strong>de</strong> que,<br />

acompanhando os esforços <strong>de</strong> instituição <strong>de</strong> indústrias <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> capital, a<br />

organização da infra-estrutura comunicacional não seria <strong>de</strong>ixada <strong>em</strong> mãos<br />

estrangeiras.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Coube ao Estado autoritário, após alterar os dispositivos do CBT<br />

relacionados à ativida<strong>de</strong> jornalística e <strong>de</strong> entretenimento dos meios<br />

audiovisuais <strong>de</strong> modo a ajustá-los aos princípios da doutrina da Segurança<br />

Nacional, construir a base material necessária para integrar o mercado<br />

nacional, dando oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vazão aos novos bens produzidos. Criouse<br />

a Embratel com o objetivo <strong>de</strong> interligar todo o País <strong>em</strong> uma re<strong>de</strong> nacional<br />

<strong>de</strong> troncos <strong>de</strong> microondas, expandiu-se o telex que foi o gran<strong>de</strong> auxiliar da<br />

época na troca <strong>de</strong> informações <strong>em</strong>presariais e entre as agências <strong>de</strong> notícias<br />

regionais, nacionais e internacionais, ampliou-se a telefonia urbana, <strong>em</strong>bora<br />

se tenha privilegiado o suporte técnico do sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong><br />

massa <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento do resi<strong>de</strong>ncial.<br />

De fato, o CBT, no que diz respeito ao modo <strong>de</strong> exploração do<br />

sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> radiodifusão, não precisou <strong>de</strong> modificações. O sist<strong>em</strong>a<br />

comercial, i<strong>de</strong>alizado à s<strong>em</strong>elhança do mo<strong>de</strong>lo estaduni<strong>de</strong>nse, servia ao<br />

mesmo t<strong>em</strong>po para transformar os meios audiovisuais <strong>em</strong> um ramo para a<br />

aplicação e valorização do capital, para a expansão da indústria eletrônica e<br />

<strong>de</strong> outros bens duráveis incentivados pela publicida<strong>de</strong> e para a mobilização<br />

da opinião pública necessária à adoção <strong>de</strong> um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>senvolvimento baseado na internacionalização do mercado interior e que,<br />

por isso, não podia mais se assentar na aliança populista entre o Estado e<br />

os setores populares. (CAPPARELLI E SANTOS, 2002, p. 73-86).<br />

O rádio e especialmente a televisão tiveram enorme expansão da<br />

produção, distribuição e consumo <strong>de</strong> massa nessa fase, sendo a televisão<br />

impulsionada também pelo aparecimento do ví<strong>de</strong>o. A indústria editorial,<br />

apesar dos altos índices <strong>de</strong> analfabetismo, prosperou com o incentivo para a<br />

fabricação do papel e a facilitação <strong>de</strong> importação <strong>de</strong> máquinas; o cin<strong>em</strong>a<br />

ampliou sua produção com a criação da estatal EMBRAFILME, baseada <strong>em</strong><br />

uma política pública <strong>de</strong> proteção do mercado nacional; e o mercado<br />

fonográfico se <strong>de</strong>senvolveu com maiores facilida<strong>de</strong>s para a aquisição <strong>de</strong><br />

eletrodomésticos.<br />

Acompanhando e dando suporte ao crescimento do mercado cultural,<br />

a concepção da ativida<strong>de</strong> gerencial das <strong>em</strong>presas se modificou, o<br />

relacionamento entre <strong>em</strong>presa e <strong>em</strong>pregado precisou se ajustar, como<br />

também houve maior especialização das profissões para aten<strong>de</strong>r às diversas<br />

fases <strong>de</strong> produção e distribuição dos bens culturais.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que essas transformações no mercado cultural se<br />

<strong>de</strong>ram, <strong>em</strong> seus traços gerais, <strong>de</strong> forma s<strong>em</strong>elhante nos países que<br />

experimentaram os avanços das relações capitalistas. No entanto, se <strong>em</strong><br />

cada um <strong>de</strong>les caberia relacionar uma série <strong>de</strong> fatores específicos, talvez no<br />

Brasil seria apropriado colocar como principal nota distintiva a presença <strong>de</strong><br />

um Estado autoritário como agente impulsionador do processo <strong>de</strong><br />

industrialização.<br />

Com efeito, a afinação da estrutura organizacional das <strong>em</strong>presas<br />

culturais não raras vezes era insuficiente para ensejar seu <strong>de</strong>senvolvimento<br />

e manutenção no mercado. Se entre militares e <strong>em</strong>presários pairava o<br />

interesse comum <strong>de</strong> integrar o mercado e a nação, havia alguns choques na<br />

concepção <strong>de</strong> fazê-lo, não tanto no que diz respeito à <strong>de</strong>spolitização dos<br />

conteúdos dos produtos culturais; antes, no que se refere à subordinação<br />

aos princípios da doutrina da Segurança Nacional que, <strong>em</strong> última análise,<br />

<strong>de</strong>veria servir <strong>de</strong> guia para mitigar a diversida<strong>de</strong> social, abafando as<br />

disfunções, isto é, práticas sociais dissi<strong>de</strong>ntes. Ainda que houvesse conflitos<br />

pontuais, os governos militares e a lógica mercantil se compl<strong>em</strong>entavam e,<br />

<strong>em</strong> muitos pontos, eram concordantes, já que os <strong>em</strong>presários tinham<br />

consciência <strong>de</strong> que não podiam prescindir do Estado autoritário, promotor<br />

do <strong>de</strong>senvolvimento, e este necessitava do suporte da indústria cultural<br />

para conservar sua dominação. O equilíbrio seria abalado, <strong>em</strong> meados dos<br />

anos 80, à medida que se operavam mudanças econômicas nas conjunturas<br />

internacional e nacional, b<strong>em</strong> como com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lidar com o<br />

fortalecimento <strong>de</strong> outros sujeitos sociais na cena política.<br />

Aprofundando-se o movimento que transformaria a esfera cultural <strong>em</strong><br />

um importante campo <strong>de</strong> valorização do capital, é interessante notar a<br />

mudança <strong>de</strong> orientação das <strong>em</strong>presas. Mais visível nas <strong>em</strong>presas<br />

jornalísticas do que no rádio, que nas décadas <strong>de</strong> 40 e 50 também foi<br />

importante incentivador do consumo das camadas médias urbanas, a noção<br />

<strong>de</strong> imprensa como uma missão política a ser cumprida foi <strong>de</strong>ixada para<br />

segundo plano, <strong>em</strong>ergindo a idéia, que se tornará cada vez mais central, <strong>de</strong><br />

prestação privada <strong>de</strong> um serviço público que <strong>de</strong>veria, por isso mesmo, se<br />

apoiar na satisfação dos interesses dos leitores. Daí que a criação e o<br />

incentivo da d<strong>em</strong>anda se orientam pelas pesquisas <strong>de</strong> audiências para<br />

justificar os gran<strong>de</strong>s investimentos realizados no setor. Entre as <strong>em</strong>presas<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

e os consumidores, as agências <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>em</strong>penharão papel<br />

fundamental na <strong>de</strong>finição do público-alvo.<br />

Na verda<strong>de</strong>, esse foi um movimento mais geral seguido por todos os<br />

ramos do nascente mercado cultural. Racionalida<strong>de</strong> <strong>em</strong>presarial na<br />

administração dos negócios, maior profissionalização e especialização <strong>em</strong><br />

ramos industriais, formação <strong>de</strong> conglomerados que englobavam não só<br />

áreas da indústria cultural, mas também outros ramos da indústria<br />

propriamente dita, <strong>de</strong> um lado, e, <strong>de</strong> outro, diversificação dos produtos<br />

culturais segundo as faixas <strong>de</strong> consumidores e produção e distribuição <strong>em</strong><br />

massa orientada pela lógica mercantil.<br />

Tornou-se, assim, possível falar pela primeira vez no Brasil <strong>de</strong><br />

indústria cultural à maneira como Adorno e Horkeheimer (1985 e 1996) a<br />

conceberam ao estudar a <strong>em</strong>ergência da aplicação da racionalida<strong>de</strong><br />

tecnológica no campo da cultura e sua transformação <strong>em</strong> mercadoria entre<br />

os anos 30 e 40 nos EUA. Se a introdução da lógica do lucro não<br />

transforma a cultura <strong>em</strong> simples mercadoria, se a crítica feita pela Escola <strong>de</strong><br />

Frankfurt revela uma preocupação com o <strong>de</strong>stino das formas “superiores”<br />

da cultura, se a idéia <strong>de</strong> sist<strong>em</strong>a ou <strong>de</strong> controle total dificultou ver as<br />

possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> resistência, para além das diversas críticas <strong>de</strong> que foram<br />

objeto as teses <strong>de</strong> Adorno e Horkeheimer, o que importa <strong>de</strong>stacar aqui são<br />

as implicações que resultaram da presença <strong>de</strong> novas forças no campo<br />

cultural da socieda<strong>de</strong> brasileira, que, como vimos, teve seu autoritarismo<br />

reforçado pelos governos militares, eles mesmos indutores do processo <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnização.<br />

Nesse sentido, po<strong>de</strong>-se dizer, com Renato Ortiz (2001, p. 155), que o<br />

ajustamento dos brasileiros às novas formas <strong>de</strong> organização da socieda<strong>de</strong><br />

se <strong>de</strong>u mais rapidamente <strong>em</strong> razão <strong>de</strong> ter se realizado <strong>em</strong> um período cuja<br />

valorização dos imperativos econômicos na esfera da cultura, e a<br />

conseqüente <strong>de</strong>spolitização <strong>de</strong> seus conteúdos, e foi reforçado pela<br />

tendência do Estado <strong>em</strong> eliminar as formas críticas <strong>de</strong> expressão cultural<br />

dos setores que lhe po<strong>de</strong>riam oferecer resistência.<br />

Contudo, parece que não foi apenas esse fato que <strong>de</strong>u singularida<strong>de</strong><br />

à atuação da indústria cultural brasileira. Houve um aspecto mais cruel no<br />

processo <strong>de</strong> ajustamento dos indivíduos à nova racionalida<strong>de</strong> econômica, à<br />

normalização das subjetivida<strong>de</strong>s. Se entre nós, como vimos, permeia um<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

código autoritário nas relações sociais e pessoais - ao contrário <strong>de</strong> países<br />

como a França, no qual o reconhecimento da igualda<strong>de</strong> jurídica foi uma<br />

conquista histórica - os programas <strong>de</strong> rádio e <strong>de</strong> televisão, por ex<strong>em</strong>plo, ao<br />

privilegiar o estilo <strong>de</strong> vida “dos iguais”, aumentam ainda mais a separação<br />

hierárquica, porque criam a ilusão ou o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> que todos possam<br />

participam <strong>de</strong>sse mundo.<br />

Outra questão que merece ser abordada se refere às limitações das<br />

análises sobre o “colonialismo cultural” que prevaleceram nas décadas <strong>de</strong><br />

60 e 70. Quando cultura popular e cultura nacional passaram a ser<br />

i<strong>de</strong>ntificadas por meio do <strong>de</strong>nominador comum do mercado, não houve<br />

como se contrapor ao “livre fluxo <strong>de</strong> informação”, mantendo o referencial<br />

nacional, s<strong>em</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po, resvalar-se para a <strong>de</strong>fesa do mercado<br />

interno <strong>de</strong> bens culturais. Dessa forma, para que as diferenças entre<br />

produto estrangeiro e nacional não foss<strong>em</strong> diluídas, seria necessário que na<br />

consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>ste último a lógica mercantil não tivesse sido o referencial<br />

<strong>de</strong>terminante.<br />

Certamente não foi essa a postura que acompanhou o crescimento<br />

dos diversos setores da indústria cultural brasileira, especialmente a<br />

televisão, que passou a investir seriamente na produção “nacional”. O<br />

gran<strong>de</strong> êxito da Re<strong>de</strong> Globo, <strong>de</strong> fato, se consubstanciou <strong>em</strong> uma<br />

programação elaborada nos gran<strong>de</strong>s centros do País, mas logo repassada<br />

para as inúmeras retransmissoras espalhadas por todo território nacional.<br />

A ênfase na cultura popular (<strong>de</strong> massa), ao ser imediatamente reconhecida<br />

como cultura nacional, servia não apenas para manter a noção <strong>de</strong><br />

comunida<strong>de</strong> indivisa - a Nação - mas também para localizar a divisão fora<br />

do território nacional. Não é <strong>de</strong> se surpreen<strong>de</strong>r, portanto, que a i<strong>de</strong>ologia<br />

nacionalista transportada para a cultura tenha <strong>em</strong>basado o crescimento da<br />

indústria cultural no Brasil, a <strong>de</strong>speito da economia estar se<br />

internacionalizando, e que <strong>em</strong>presas brasileiras se aventurass<strong>em</strong> a explorar<br />

mercados culturais <strong>de</strong> países centrais, como foi o caso da Globo, que<br />

chegou a adquirir a Tel<strong>em</strong>ontecarlo, <strong>em</strong> 1985, e a exportar novelas para<br />

televisão.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

2. A mídia não é tudo, mas é 100%<br />

Os meios <strong>de</strong> comunicação seriam realmente capazes <strong>de</strong> conformar<br />

irr<strong>em</strong>ediavelmente as consciências no sentido <strong>de</strong> uma integração e coesão<br />

social ou, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> outra perspectiva, para a alienação e a dominação? A<br />

partir dos anos 70, alguns analistas passaram, nas antípodas dos integrados<br />

e dos apocalípticos, a subestimar o po<strong>de</strong>r das mídias, atribuindo aos<br />

receptores capacida<strong>de</strong> quase ilimitada <strong>de</strong> <strong>de</strong>svio e <strong>de</strong> resistência. No<br />

entanto, nesse mesmo período, quando novas práticas <strong>de</strong> apropriação <strong>de</strong><br />

tecnologias <strong>de</strong> comunicação foram inseridas <strong>em</strong> lutas sociais para a<br />

construção <strong>de</strong> uma heg<strong>em</strong>onia popular e/ou como forma <strong>de</strong> contestação do<br />

regime <strong>de</strong> representação política corrente, as análises sobre a comunicação<br />

social também tomaram outros rumos. Para os que não tinham acesso aos<br />

meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa, po<strong>de</strong>r contar com veículos próprios era<br />

uma questão fundamental.<br />

2.1. Contra a “peste da insônia”, a m<strong>em</strong>ória<br />

No final dos anos 70, após tentativas mal-sucedidas <strong>de</strong> revitalização<br />

do “milagre econômico”, o regime militar passou a enfrentar sérias<br />

dificulda<strong>de</strong>s para se legitimar. Tal <strong>de</strong>bilida<strong>de</strong> reforçou os vários<br />

movimentos <strong>de</strong> oposição que se construíam lentamente. Mas, se o objetivo<br />

<strong>de</strong> impor o retorno dos militares à caserna os unia, a forma <strong>de</strong> fazê-lo e o<br />

mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> d<strong>em</strong>ocracia que se pretendia implantar estavam muito longe <strong>de</strong><br />

um consenso.<br />

De parte das lutas populares, por ter<strong>em</strong> se constituído sob um Estado<br />

autoritário e <strong>em</strong> meio a transformações econômico-sociais expressivas<br />

experimentadas nas últimas décadas, observaram-se algumas novida<strong>de</strong>s<br />

<strong>em</strong> relação às lutas dos períodos anteriores, seja no que diz respeito às<br />

estratégias e aos modos <strong>de</strong> concebê-las, seja <strong>em</strong> relação à constituição dos<br />

agentes sociais e a forma <strong>de</strong> se relacionar<strong>em</strong> entre si.<br />

Mais amplamente, tais lutas expressavam o questionamento do estilo<br />

da luta política dos partidos <strong>de</strong> esquerda no período populista, que,<br />

colocando-se como vanguarda revolucionária, renunciavam a qualquer<br />

estratégia heg<strong>em</strong>ônica baseada <strong>em</strong> um processo <strong>de</strong> organização autônoma<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

por parte dos setores populares, como também abriam possibilida<strong>de</strong>s para<br />

a politização <strong>de</strong> “novos” t<strong>em</strong>as e “novos” sujeitos sociais que antes não<br />

cabiam <strong>em</strong> uma visão “estreita” da luta <strong>de</strong> classes.<br />

No que diz respeito à <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong>sses “novos” sujeitos sociais, as<br />

críticas se dirigiam ao chamado <strong>de</strong>terminismo economicista, que reduzia<br />

todo conflito social a tão-somente uma expressão das posições dos sujeitos<br />

nas relações <strong>de</strong> produção, e, conseqüent<strong>em</strong>ente, à estratégia política <strong>de</strong><br />

mudança social que nele tivera lugar: a concepção <strong>de</strong> que a ação coletiva se<br />

dava <strong>em</strong> função <strong>de</strong> uma consciência homogênea <strong>de</strong>terminada pela posição<br />

dos atores sociais na estrutura econômica, a perspectiva diacrônicoevolucionária<br />

do processo no qual a História não tinha propriamente lugar,<br />

porque baseada <strong>em</strong> certezas pre<strong>de</strong>terminadas (a <strong>de</strong>struição do capitalismo<br />

pelo proletariado), a representação da classe dominada através do partido<br />

único e, por fim, <strong>em</strong> síntese, a visão <strong>de</strong> que a <strong>em</strong>ancipação política passava<br />

necessariamente pela tomada do Estado. (LARANJEIRA, 1990, p. 19-29).<br />

As “novas” lutas, fundadas nas d<strong>em</strong>andas da socieda<strong>de</strong> civil e na<br />

ampliação da esfera política, foram abraçadas com gran<strong>de</strong> entusiasmo.<br />

Tratava-se, afinal, da reelaboração prática e teórica do exercício do po<strong>de</strong>r,<br />

não apenas i<strong>de</strong>ntificado com o do Estado, <strong>em</strong> direção a uma dimensão<br />

antiautoritária e libertária. Por isso, participação e busca <strong>de</strong> autonomia<br />

eram as palavras mais pronunciadas.<br />

Como a resistência não se efetuava apenas contra um po<strong>de</strong>r<br />

estreitamente localizado, mas <strong>em</strong> direção às formas <strong>de</strong> controle social<br />

assentadas na racionalida<strong>de</strong> organizacional e administrativa do capitalismo<br />

mo<strong>de</strong>rno, tratava-se <strong>de</strong> construir espaços <strong>de</strong> autonomia. Daí que tal<br />

mudança <strong>de</strong> perspectiva ensejou novas formas <strong>de</strong> organização da<br />

resistência, que, ao contrário <strong>de</strong> beneficiar a centralização e a <strong>de</strong>legação da<br />

autorida<strong>de</strong> aos dirigentes, estimulará a participação d<strong>em</strong>ocrática interna,<br />

valorizando o indivíduo e seu potencial como agente da História. Por outro<br />

lado, a construção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos agentes coletivos <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> privilegiar<br />

as posições na estrutura econômica para suscitar questões relacionadas<br />

com as dimensões culturais e simbólicas, entre elas, a subjetivida<strong>de</strong> e a<br />

vida cotidiana.<br />

Se nos países centrais, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década anterior, os chamados “novos<br />

movimentos sociais” contrapunham-se à “antiga” luta da classe<br />

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trabalhadora e à sua teorização, mais aptos a dar conta dos conflitos da<br />

“socieda<strong>de</strong> industrial”, as reflexões <strong>em</strong> torno da ascensão da “socieda<strong>de</strong><br />

pós-industrial” 5 <strong>de</strong>cretavam a invalida<strong>de</strong> dos paradigmas tradicionais, <strong>em</strong><br />

especial <strong>de</strong> uma certa visão estreita da teoria marxista, no Brasil, as<br />

características do mo<strong>de</strong>lo econômico <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que marginalizou<br />

gran<strong>de</strong> parte da população e <strong>de</strong> um Estado que resistia <strong>em</strong> reconhecer<br />

direitos <strong>de</strong> cidadania e, portanto, a <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> “novos” sujeitos sociais<br />

na cena política, suscitou dúvidas quanto ao abandono precoce <strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>terminadas categorias do “antigo” paradigma.<br />

Novas formas <strong>de</strong> organização e <strong>de</strong> repertórios <strong>de</strong> ação; mobilização<br />

coletiva baseada <strong>em</strong> valores e reivindicações <strong>de</strong> relações que se propõ<strong>em</strong><br />

escapar da racionalida<strong>de</strong> quantitativa do capitalismo cont<strong>em</strong>porâneo;<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente, novas relações com o político na tentativa <strong>de</strong> construir<br />

espaços <strong>de</strong> autonomia contra o Estado; e, por fim, a construção <strong>de</strong><br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s que negam a consciência homogênea <strong>de</strong> classe. Essas são as<br />

quatro dimensões <strong>de</strong> ruptura com os movimentos proletários, i<strong>de</strong>ntificadas<br />

por Érik Neveu (2002, p. 66-68), operadas pelos “novos” movimentos<br />

sociais que <strong>em</strong>ergiram na Europa e nos Estados Unidos nos anos 60 e 70 e<br />

que <strong>de</strong>ram marg<strong>em</strong> à criação <strong>de</strong> movimentos estudantis, ecológicos,<br />

antinucleares, homossexuais, f<strong>em</strong>inistas, entre outros.<br />

Como se <strong>de</strong>u esse mais novo paradigma da ação social no Brasil?<br />

Quais seriam suas particularida<strong>de</strong>s <strong>em</strong> um País marcado pelas condições <strong>de</strong><br />

miserabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> sua população? Em que medida valorizar<br />

os fatos conjunturais “micro”, do cotidiano, esquecendo-se do po<strong>de</strong>r das<br />

“<strong>de</strong>terminações” macroestruturais <strong>em</strong> um País que não conseguiu se livrar<br />

<strong>de</strong> sua condição <strong>de</strong> periferia? Quais as conseqüências <strong>de</strong> se erigir a<br />

“socieda<strong>de</strong> civil” como campo privilegiado da luta pela autonomia quando o<br />

Estado ainda exercia um importante papel político e econômico na<br />

5 Muitos autores se <strong>de</strong>dicaram ao estudo do que passou a ser chamado “socieda<strong>de</strong><br />

pós-industrial” (ou para alguns pós-capitalista), tentando resumir com esse termo<br />

as profundas mudanças sociais, políticas, culturais e, sobretudo, econômicas que<br />

ocorreram após a década <strong>de</strong> 60. Assim não nada é fácil caracterizá-la <strong>em</strong> poucas<br />

palavras, mas po<strong>de</strong>-se dizer que t<strong>em</strong> estreita vinculação com a tese do fim da<br />

i<strong>de</strong>ologia, lastreia-se na história das doutrinas organizacionais e que se assenta na<br />

idéia da <strong>em</strong>ergência <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> s<strong>em</strong> classes, na qual o conhecimento e as<br />

tecnologias da informação toma lugar central nos conflitos sociais. Atualmente, tal<br />

expressão foi transposta para a <strong>de</strong> “Socieda<strong>de</strong> da Informação”. Para maiores<br />

informações ver MATTELART, 2002.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

manutenção <strong>de</strong> interesses das classes dominantes? Se as ban<strong>de</strong>iras<br />

levantadas pela esquerda tradicional – <strong>de</strong>senvolvimento do aparelho estatal<br />

e nacionalismo – ruíram com o golpe militar, <strong>de</strong>spertando-se para o<br />

autoritarismo interno das organizações e para a estreiteza <strong>de</strong> tal projeto,<br />

não seria o caso <strong>de</strong> relativizar a pertinência da dicotomia socieda<strong>de</strong><br />

civil/Estado e, mais, s<strong>em</strong> que isso implique <strong>em</strong> ce<strong>de</strong>r a um <strong>de</strong>terminismo<br />

economicista, que a dimensão da formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos atores<br />

coletivos não é in<strong>de</strong>terminada? 6<br />

Tanto aqui como alhures, a tendência <strong>de</strong> se etiquetar as práticas<br />

sociais coletivas <strong>em</strong> termos <strong>de</strong> “antes” e “<strong>de</strong>pois”, <strong>em</strong> prejuízo do enfoque<br />

dialético mais atendo às rupturas e continuida<strong>de</strong>s operadas na<br />

complexificação social e nas formas <strong>de</strong> teorizá-las, dará muitas vezes<br />

margens a uma concepção estrita e formal do Estado, tal como se<br />

acusavam os movimentos “antecessores”, ao mesmo t<strong>em</strong>po enfraquecerá a<br />

m<strong>em</strong>ória das lutas <strong>de</strong> <strong>em</strong>ancipação e, com ela, se relegará uma série <strong>de</strong><br />

questões que, suscitadas <strong>em</strong> época distinta, po<strong>de</strong>riam iluminar probl<strong>em</strong>as<br />

“cont<strong>em</strong>porâneos”. Especialmente no que se refere aos “novos”<br />

movimentos sociais <strong>de</strong> certos países europeus, um caso ex<strong>em</strong>plar é o lugar,<br />

que segundo Lênin (1973, p. 37), o jornal Iskra <strong>de</strong>veria ocupar no<br />

movimento operário e na luta contra a burguesia. Isto é, não apenas como<br />

propagandista e agitador coletivo, mas especialmente como organizador<br />

coletivo, influindo <strong>de</strong>cisivamente na construção simbólica da mobilização<br />

<strong>de</strong>sses agentes.<br />

Da mesma forma, a ênfase nos “novos” movimentos sociais e na<br />

proliferação das lutas político-sociais freqüent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong>ixou à sombra<br />

questões cruciais, tais como as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> persistência dos<br />

movimentos <strong>em</strong> atuar não apenas <strong>de</strong>fensivamente, mas também intervindo<br />

na correlação <strong>de</strong> forças dos sist<strong>em</strong>as políticos dominantes (o que colocaria<br />

<strong>em</strong> questão o grau <strong>de</strong> autonomia <strong>de</strong>sses movimentos); a presença <strong>de</strong><br />

práticas antid<strong>em</strong>ocráticas internas e as conseqüências práticas <strong>de</strong> ter<strong>em</strong><br />

sido legitimados como interlocutores do Estado. Quanto a este último<br />

aspecto, chama a atenção o fato <strong>de</strong> que, na medida <strong>em</strong> que são<br />

reconhecidas como interlocutoras do Estado, as d<strong>em</strong>andas dos movimentos<br />

6 Para uma discussão sobre os paradigmas dos “novos” movimentos sociais e suas<br />

contribuições para analisar os movimentos brasileiros ver GONH, 1997.<br />

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populares pod<strong>em</strong> ser facilmente absorvidas por ele, a partir <strong>de</strong> soluções<br />

cujas finalida<strong>de</strong>s e resultados escapariam não só ao controle do movimento,<br />

mas também <strong>de</strong> uma discussão mais ampla da socieda<strong>de</strong> civil.<br />

Não se trata <strong>de</strong> menosprezar a importância dos movimentos sociais,<br />

especialmente <strong>em</strong> um País como o Brasil, cuja matriz teológico-política,<br />

como vimos, trabalha constant<strong>em</strong>ente no sentido <strong>de</strong> barrar a expressão<br />

política <strong>de</strong> sujeitos sociais, porém, <strong>de</strong> analisar as probl<strong>em</strong>áticas que<br />

suscitam sua presença no seio da socieda<strong>de</strong>. Apesar <strong>de</strong> a estratégia política<br />

<strong>de</strong> distensão, iniciada por Geisel e prosseguida no governo <strong>de</strong> Figueiredo,<br />

estabelecer rigidamente seus interlocutores, a atuação dos grupos <strong>de</strong><br />

oposição (como a Ord<strong>em</strong> dos Advogados do Brasil, a Conferência Nacional<br />

dos Bispos do Brasil e a Associação Brasileira <strong>de</strong> Imprensa) e a própria<br />

disputa interna no seio do regime, com a tentativa <strong>de</strong> golpe <strong>de</strong> Estado do<br />

General Sylvio Frota, ensejaram o fortalecimento do chamado “novo<br />

sindicalismo”, dos movimentos populares <strong>de</strong> base, seculares e os ligados às<br />

alas da Igreja Católica que se i<strong>de</strong>ntificavam com a Teologia da Libertação, e<br />

dos movimentos sociais (ALVES, 1989, p. 225-227).<br />

Como se tratava da tentativa <strong>de</strong> ampliação da esfera política, os<br />

meios <strong>de</strong> comunicação constituíram-se <strong>em</strong> um palco privilegiado <strong>de</strong>ssas<br />

lutas.<br />

2.2. Comunicação popular e a luta no terreno dos segredos<br />

“Voltarei nos braços do povo”. O <strong>de</strong>sabafo <strong>de</strong> Getúlio Vargas, feito<br />

diante da certeza - posteriormente comprovada - <strong>de</strong> que retornaria por<br />

escrutínio popular ao cargo <strong>de</strong> Chefe do Executivo nacional <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um<br />

longo período como ditador, po<strong>de</strong> nos dizer muitas coisas a respeito do que<br />

na América Latina se pensava sobre os meios <strong>de</strong> comunicação, tanto à<br />

direita como à esquerda. Para esta última, lastreada nas análises da teoria<br />

da <strong>de</strong>pendência, os meios <strong>de</strong> comunicação eram vistos como instrumentos<br />

praticamente diretos da “invasão cultural”, perpetrada principalmente pelos<br />

Estados Unidos por meio <strong>de</strong> suas transnacionais. Contra a onipotência<br />

<strong>de</strong>sses dispositivos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, era quase impossível resistir. Suas<br />

mensagens, que se imaginava penetrar na consciência como uma espécie<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

<strong>de</strong> “bala mágica”, não <strong>de</strong>ixavam ninguém imune, anulavam quaisquer<br />

chances <strong>de</strong> o receptor se insurgir ou simplesmente se <strong>de</strong>sviar.<br />

Contraditoriamente, as esquerdas latino-americanas pediam a esses<br />

receptores resignados que <strong>de</strong>ixass<strong>em</strong> <strong>de</strong> lado tal estrutura monolítica <strong>de</strong><br />

po<strong>de</strong>r e se entregass<strong>em</strong> à construção <strong>de</strong> um território autônomo, paralelo,<br />

no seio da própria socieda<strong>de</strong>, com o objetivo <strong>de</strong> levar adiante a luta<br />

revolucionária que os conduziria ao assalto do Estado. Para tanto, bastava<br />

que se <strong>de</strong>ixass<strong>em</strong> guiar pela ação pedagógica persuasiva das vanguardas<br />

do partido monoclassista.<br />

A questão, portanto, se resumia à posse dos meios <strong>de</strong> comunicação e<br />

ao conteúdo por eles transmitidos - uma vez <strong>em</strong> mãos revolucionárias e<br />

<strong>em</strong>itindo mensagens subversivas, as potencialida<strong>de</strong>s <strong>em</strong>ancipatórias <strong>de</strong>sses<br />

veículos estariam <strong>de</strong> pronto garantidas. 7<br />

Certamente, tal concepção fazia parte das estratégias tradicionais <strong>de</strong><br />

luta que há pouco mencionamos. Em linguag<strong>em</strong> gramsciana, seria o<br />

mesmo que dizer que se enfatizava a luta militar e política diretamente<br />

contra a socieda<strong>de</strong> política <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> uma estratégia mais longa <strong>de</strong><br />

criação da heg<strong>em</strong>onia popular, engendrando ou se aproveitando <strong>de</strong> uma<br />

crise orgânica do bloco histórico concreto. 8<br />

No Brasil, houve uma chance <strong>de</strong> se pôr à prova os limites das<br />

concepções clássicas acerca dos usos e do papel da mídia. Nos anos 70, os<br />

7<br />

Recuperando as contribuições <strong>de</strong> Brecht, principalmente <strong>em</strong> suas análises<br />

<strong>de</strong>senvolvidas no texto Teoria do Rádio, Hans Magnus Enzesberger (1979) fazia<br />

recordar a uma certa esquerda as potencialida<strong>de</strong>s libertadoras dos novos meios <strong>de</strong><br />

comunicação.<br />

8<br />

Afastando-se dos intermináveis <strong>de</strong>bates entre os marxistas <strong>de</strong> sua época a<br />

respeito da prevalência da estrutura ou da superestrutura, Gramsci <strong>de</strong>svia essa<br />

questão para analisar o vínculo existente entre esses dois momentos. A função <strong>de</strong><br />

manutenção do vínculo orgânico, responsável pela <strong>em</strong>ergência e concretização <strong>de</strong><br />

um bloco histórico, foi atribuindo a um grupo social, <strong>de</strong>signado por ele como<br />

intelectuais orgânicos que, sendo “funcionários da superestrutura”, fariam a gestão<br />

da heg<strong>em</strong>onia <strong>em</strong> prol da classe fundamental dirigente com vistas à integração <strong>em</strong><br />

um sist<strong>em</strong>a social segundo valores culturais (i<strong>de</strong>ologia, para Gramsci). Para<br />

Gramsci, os meios <strong>de</strong> comunicação teriam importância vital porque fariam parte da<br />

“estrutura i<strong>de</strong>ológica”, cuja tarefa precisa seria a <strong>de</strong> difundir a i<strong>de</strong>ologia e criar<br />

consenso <strong>em</strong> torno <strong>de</strong>la (PORTELLI, 1977, p. 44-50). Acrescentaria ainda que<br />

esses meios também são cruciais, mas <strong>em</strong> outro sentido – para <strong>de</strong>sagregação da<br />

heg<strong>em</strong>onia da classe dirigente. Nesse sentido, pod<strong>em</strong> ser compreendidos os<br />

argumentos que afirmam a necessida<strong>de</strong> do monopólio público <strong>de</strong> radiodifusão para<br />

melhor gestão do espaço radioelétrico - b<strong>em</strong> coletivo -, como também aqueles que<br />

se apóiam nas limitações técnicas para justificar a não concessão <strong>de</strong> licenças para<br />

<strong>em</strong>itir aos sindicatos <strong>de</strong> trabalhadores, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

movimentos <strong>de</strong> base ressurgiriam lentamente, produzindo uma rica<br />

interação entre educação, cultura e comunicação popular, cujo mo<strong>de</strong>lo<br />

transbordou os limites <strong>de</strong>sses movimentos. No entanto, para compreen<strong>de</strong>r a<br />

noção <strong>de</strong> comunicação popular é preciso ir à matriz teórica que a inspirou e<br />

ao lugar on<strong>de</strong> foi primordialmente posta <strong>em</strong> prática – as idéias <strong>de</strong> Paulo<br />

Freire e as Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais <strong>de</strong> Base (CEBs) 9 .<br />

Uma das maiores contribuições <strong>de</strong> Paulo Freire (1992 e 2003) para o<br />

pensamento comunicacional latino-americano consistiu <strong>em</strong> uma crítica<br />

epist<strong>em</strong>ológica radical da tradição difusionista, submetida à rubrica geral <strong>de</strong><br />

“comunicação e <strong>de</strong>senvolvimento”, engendrada pelos estudos <strong>de</strong><br />

comunicação estaduni<strong>de</strong>nses e posta <strong>em</strong> prática especialmente nas<br />

pequenas comunida<strong>de</strong>s rurais. Com efeito, ao equiparar educação e<br />

comunicação no plano epist<strong>em</strong>ológico, a transmissão <strong>de</strong> “conhecimentos”<br />

tornava-se invasão, implicava tratar como objeto aquele que os recebe, ao<br />

invés <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iros sujeitos, porque a razão <strong>de</strong> ser do ato <strong>de</strong> pensamento,<br />

para Paulo Freire, está na relação entre homens, mediatizado pelo objeto do<br />

conhecimento.<br />

É essa condição <strong>de</strong> sujeito que é negada pela ação dos meios <strong>de</strong><br />

comunicação <strong>de</strong> massa e é exatamente essa dimensão que a teoria da<br />

comunicação participativa, lastreada <strong>em</strong> diferentes práticas ocorridas nas<br />

décadas <strong>de</strong> 70 e 80, irá tentar resgatar. No entanto, confrontadas as<br />

implicações do Estado autoritário com os meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa,<br />

essas experiências, como também suas análises teóricas, ten<strong>de</strong>ram a<br />

contrapor “meios ativos” aos “meios <strong>de</strong> passivos”, estes últimos<br />

consi<strong>de</strong>rados como estruturas monolíticas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r por on<strong>de</strong> não<br />

perpassava qualquer contradição; aqueles igualmente como lugares<br />

“puros”, excluídos portanto da “contaminação” pelas lógicas mercantil e<br />

estatal 10 .<br />

9<br />

No Brasil, a orig<strong>em</strong> imediata das CEBs <strong>de</strong>ve ser buscada <strong>em</strong> três trabalhos<br />

convergentes, segundo Pedro Gilberto Gomes (1990, p. 8): “a) a preocupação<br />

evangelizadora comunitária, expressa através dos catequistas populares da diocese<br />

<strong>de</strong> Barra do Piraí (RJ); b) o <strong>Movimento</strong> <strong>de</strong> Educação <strong>de</strong> Base (MEB), com a<br />

catequese radiofônica, na diocese <strong>de</strong> Natal (RN); c) experiências <strong>de</strong> apostolado dos<br />

leigos e os esforços <strong>de</strong> renovação paroquial, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um amplo movimento <strong>de</strong><br />

renovação que se codificou nos Planos Nacionais <strong>de</strong> Pastoral”.<br />

10 Para maiores informações sobre o antagonismo meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong><br />

massa/meios alternativos ver PERUZZO, 1999.<br />

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Por isso, avaliar a contribuição das CEBs se mostra tão importante.<br />

Além <strong>de</strong> ter<strong>em</strong> influenciado vários movimentos populares, sindicatos<br />

urbanos e rurais e até mesmo partidos <strong>de</strong> oposição (BETTO, 1985, p.<br />

24/25), nelas, a comunicação popular nas ass<strong>em</strong>bléias, por meio do rádio<br />

ou <strong>de</strong> folhetins, foi muito praticada e estimulada. 11 Apesar <strong>de</strong> as CEBs<br />

ter<strong>em</strong> surgido com o objetivo <strong>de</strong> alcançar interesses específicos, concretos e<br />

imediatos da população (melhores condições <strong>de</strong> vida, <strong>de</strong> trabalho <strong>de</strong> lazer<br />

etc), a participação <strong>de</strong> seus integrantes, na maioria <strong>de</strong>las, era formulada<br />

como prática transformadora <strong>em</strong> que se preparava para o acesso aos<br />

processos <strong>de</strong>cisórios, perpassando os limites da comunida<strong>de</strong>. Nessas<br />

práticas, não se pretendia dicotomizar a participação, reforçar a i<strong>de</strong>ologia<br />

dominante, provocar uma mudança cultural dirigida, integrar os grupos<br />

marginais ao sist<strong>em</strong>a vigente, ou subsidiar – com trabalho gratuito – os<br />

planos oficiais. Ao invés disso, realizava-se um trabalho <strong>de</strong> conscientização<br />

e organização das classes subalternas, tendo <strong>em</strong> vista a conquista <strong>de</strong><br />

espaço político e pressão por mudança das estruturas globais da socieda<strong>de</strong>.<br />

Nos anos 90, ver<strong>em</strong>os alguns dos integrantes <strong>de</strong>ssas CEBs e da Ação<br />

Popular (AP) migrar<strong>em</strong> para o movimento das rádios comunitárias, como foi<br />

o caso <strong>de</strong> Sebastião Santos, um dos fundadores da Associação Brasileira <strong>de</strong><br />

Rádios Comunitárias.<br />

Contudo, na transição d<strong>em</strong>ocrática esse “amadurecimento” das bases<br />

e suas reivindicações <strong>de</strong> participação política serão reinterpretados <strong>em</strong> um<br />

projeto <strong>de</strong> uma “d<strong>em</strong>ocracia participativa, comunitária ou fe<strong>de</strong>ralista”, tal<br />

como propôs o senador Franco Montoro (1982), no qual o “povo” seria a<br />

comunida<strong>de</strong> nacional feita da integração <strong>de</strong> todas as comunida<strong>de</strong>s menores<br />

- o Estado apenas uma instituição entre outras. Dessa forma, também a<br />

<strong>em</strong>presa seria uma comunida<strong>de</strong>, tal como as outras, na qual todos <strong>de</strong>v<strong>em</strong><br />

po<strong>de</strong>r participar das <strong>de</strong>cisões que se refiram ao interesse comum, <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />

que, claro está, cada m<strong>em</strong>bro cumpra com responsabilida<strong>de</strong> a função que<br />

lhe foi atribuída.<br />

Além da comunicação popular praticada nas CEBs, as rádios livres,<br />

especialmente <strong>em</strong> São Paulo, foram dos últimos movimentos a aparecer<br />

11 Em 1981 estimava-se que existiam aproximadamente 80.000 CEBs que se<br />

concentravam principalmente nas regiões rurais e nas periferias pobres das<br />

cida<strong>de</strong>s. ALVES, 1989, p. 231.<br />

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naqueles anos <strong>de</strong> efervescência política e atingiu o auge <strong>em</strong> 1985. Entre<br />

outros objetivos, propuseram-se a servir <strong>de</strong> meio divulgador das<br />

informações dos movimentos sociais e populares, a auxiliar na construção<br />

<strong>de</strong> equipamentos para transmissão, a questionar a privatização do espaço<br />

radiofônico e o seu controle pelo Estado. As contínuas apreensões dos<br />

equipamentos, as pressões dos grupos privados da mídia e o refluxo geral<br />

das lutas sociais o fizeram diminuir, mas não significou uma saída <strong>de</strong> cena.<br />

Na década <strong>de</strong> 90, quando outras experiências <strong>em</strong> rádio, como as<br />

evangélicas e as locais comerciais, também começaram a <strong>de</strong>safiar a<br />

autorida<strong>de</strong> do Estado na concessão das autorizações, o movimento<br />

contribuiu para mudar a jurisprudência sobre a apreensão dos<br />

equipamentos pela polícia, s<strong>em</strong> mandado judicial, além <strong>de</strong> atuar na<br />

elaboração da lei que instituiu o Serviço <strong>de</strong> Radiodifusão Comunitária,<br />

alertando para os perigos da recuperação das diversas experiências por<br />

parte do Estado e das práticas clientelistas <strong>de</strong> outros grupos e associações<br />

que se mobilizavam para legalizar as rádios <strong>de</strong> curto alcance.<br />

Por outro lado, a opção pelo fortalecimento <strong>de</strong> instâncias na<br />

socieda<strong>de</strong> civil foi também o que motivou a criação do Instituto Brasileiro <strong>de</strong><br />

Análises Sociais e Econômicas (Ibase) no final dos anos 70. Esse instituto<br />

nasceu, nas palavras <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus fundadores, Herbert José <strong>de</strong> Souza<br />

(1996, p. 3), com o projeto <strong>de</strong> acompanhar políticas públicas e ajudar na<br />

d<strong>em</strong>ocratização da informação.<br />

Tratava-se, assim, do projeto <strong>de</strong> uma entida<strong>de</strong> voltada para a<br />

informação (sua produção, sist<strong>em</strong>atização e divulgação) a serviço dos<br />

movimentos populares, que contava com um instrumento tecnológico <strong>de</strong><br />

que poucos haviam ouvido falar até então no País: o computador. Os<br />

trabalhos do Ibase estavam concentrados nas questões sindicais e políticas<br />

trabalhistas, na estrutura agrária e política agrícola, na atuação do Banco<br />

Mundial no Brasil, nos gran<strong>de</strong>s projetos governamentais, na dívida externa,<br />

entre outros. A preocupação com a forma pela qual os meios <strong>de</strong><br />

comunicação elaboravam e distribuíam as notícias, <strong>em</strong> especial a imprensa,<br />

também estava presente – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1983 notícias eram selecionadas,<br />

sintetizadas e posteriormente distribuídas na forma <strong>de</strong> boletins para os<br />

movimentos, principalmente para os do interior do país. (FICO, 1999, p. 45-<br />

56).<br />

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Batizado pelos jornais da época como “SNI dos pobres”, o instituto<br />

também abrigava o Centro <strong>de</strong> Treinamento Audiovisual (CETA), <strong>de</strong>dicado,<br />

<strong>de</strong>ntre outras tarefas, a supervisionar um projeto <strong>de</strong> informação alternativa<br />

para as <strong>em</strong>issoras <strong>de</strong> rádio. O CETA <strong>de</strong>senvolvia um trabalho <strong>de</strong> formação<br />

e treinamento audiovisual junto aos grupos populares, sobretudo por meio<br />

<strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> treinamento e da produção <strong>de</strong> audiovisuais sobre diferentes<br />

t<strong>em</strong>as, com o objetivo <strong>de</strong> possibilitar a produção <strong>de</strong> material audiovisual a<br />

partir da própria realida<strong>de</strong> local <strong>de</strong>sses grupos. (Id<strong>em</strong>, p. 62).<br />

Como se não bastass<strong>em</strong> essas ativida<strong>de</strong>s, a introdução da Internet no<br />

Brasil é indissociável da história do Ibase. O banco <strong>de</strong> dados <strong>de</strong>sse instituto<br />

era amplamente informatizado, o que lhe permitia maior agilida<strong>de</strong> no<br />

atendimento das d<strong>em</strong>andas por informações, mas sua intenção era ainda a<br />

<strong>de</strong> instalar um serviço <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> dados, s<strong>em</strong> fins lucrativos,<br />

<strong>de</strong>stinados prioritariamente a entida<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong> civil, para que<br />

pu<strong>de</strong>ss<strong>em</strong> trocar informações, até mesmo com outras organizações fora do<br />

País. O Alternex, nome que foi dado a esse projeto, foi instalado <strong>em</strong> 1988 e<br />

no ano seguinte o Ibase se associou à re<strong>de</strong> internacional <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong><br />

dados operada apenas por organizações não-governamentais (ONGs),<br />

constituindo-se no maior provedor <strong>de</strong> acesso à Internet do Brasil. Na ECO<br />

92, o Alternex fez o intercâmbio eletrônico <strong>de</strong> informações entre o local dos<br />

eventos oficiais e os locais dos eventos das ONGs no Rio <strong>de</strong> Janeiro<br />

(Ibid<strong>em</strong>, p. 31).<br />

3. Um país retardatário?<br />

Em 1988, o direito à informação foi reconhecido constitucionalmente<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um processo político que precisou levar <strong>em</strong> conta vários <strong>de</strong>safios<br />

internos relacionados à ausência <strong>de</strong> um projeto econômico mais <strong>de</strong>finido<br />

para o retorno do crescimento e, principalmente, à presença <strong>de</strong> novas<br />

forças sociais que não po<strong>de</strong>riam mais ser ignoradas. Como o Brasil está<br />

situado na periferia do capital, iniciar tal análise pela conjuntura<br />

internacional que influenciou esse período da História brasileira parece ser o<br />

melhor caminho. Essa afirmação, longe <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r vincular diretamente<br />

o nacional e o global, aponta para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relacionar, i<strong>de</strong>ntificando<br />

as possíveis mediações e articulações, esses dois pólos, constatando que as<br />

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manifestações particulares ocorridas no País não pod<strong>em</strong> ser compreendidas<br />

s<strong>em</strong> levar <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração um movimento mais geral, internacionalmente<br />

situado.<br />

3.1. Crise mundial: a busca por saídas<br />

Queda nos lucros, aumento da ociosida<strong>de</strong> produtiva, endividamento<br />

internacional, <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego e inflação. Essas são algumas das expressões<br />

do esgotamento do mo<strong>de</strong>lo fordista-keynesiano <strong>de</strong> crescimento,<br />

responsável pelas taxas <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong> econômica nos países centrais e<br />

<strong>em</strong> alguns periféricos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra. Compondo esse<br />

cenário pouco animador, o questionamento da heg<strong>em</strong>onia da potência<br />

econômico-militar que havia li<strong>de</strong>rado internacionalmente tal padrão <strong>de</strong><br />

acumulação, pois seus esforços para recuperá-la diminuíram as chances dos<br />

países periféricos, <strong>em</strong> especial os da América Latina, <strong>de</strong> se integrar<strong>em</strong> <strong>de</strong><br />

maneira favorável na ord<strong>em</strong> econômica mundial que se reestruturava.<br />

Os primeiros mecanismos adotados pelos países capitalistas para<br />

contornar a crise econômica - apesar <strong>de</strong> tímidos, se levarmos <strong>em</strong><br />

consi<strong>de</strong>ração o seu caráter estrutural - <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo produziram<br />

transformações no modo <strong>de</strong> produção vigente. Pensando tratar-se <strong>de</strong><br />

probl<strong>em</strong>as conjunturais, as políticas monetárias <strong>de</strong>senvolvidas visavam o<br />

combate à inflação e o equilíbrio do balanço <strong>de</strong> pagamentos com taxas <strong>de</strong><br />

câmbio flutuante. Muito cedo se percebeu que tais ajustes <strong>de</strong> curto prazo<br />

não seriam eficazes (TAVARES, p. 25-31).<br />

De fato, a amplitu<strong>de</strong> da crise exigiria reorganização e sincronização<br />

entre produção e circulação <strong>em</strong> escala mundial. Em outras palavras, apenas<br />

para citar algumas condições, a reestruturação do processo <strong>de</strong> trabalho e o<br />

<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico aplicados na produção e na circulação, a fim<br />

<strong>de</strong> comprimir a relação espaço/t<strong>em</strong>po, garantindo e esten<strong>de</strong>ndo a<br />

rentabilida<strong>de</strong> do capital. Assim, além <strong>de</strong> ajustes macroeconômicos<br />

interligados entre os países, tratava-se <strong>de</strong> alargar a internacionalização do<br />

capital, <strong>de</strong>rrubando os entraves que dificultass<strong>em</strong> seu livre fluxo.<br />

Nos inícios da crise, no entanto, a política monetária mostrava-se<br />

como o principal instrumento <strong>de</strong> resposta flexível para os probl<strong>em</strong>as <strong>de</strong><br />

superacumulação que o mo<strong>de</strong>lo fordista-keynesiano já não era capaz <strong>de</strong> dar<br />

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conta. Certamente, a natureza <strong>de</strong> tal processo não se <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong>senvolver<br />

s<strong>em</strong> uma reformulação igualmente abrangente, mas n<strong>em</strong> por isso<br />

concomitante ou simultânea, no âmbito político e cultural. Tratava-se, com<br />

efeito, <strong>de</strong> uma transformação do Estado e, conseqüent<strong>em</strong>ente, <strong>de</strong> sua<br />

relação com o cidadão, <strong>de</strong>safio que dizia respeito à construção <strong>de</strong> um novo<br />

equilíbrio entre as forças sociais <strong>em</strong> cada País e na ord<strong>em</strong> mundial. Nos<br />

países <strong>em</strong> que o Estado <strong>de</strong> B<strong>em</strong>-Estar Social se fez mais presente, as<br />

mudanças se esten<strong>de</strong>riam à perda <strong>de</strong> direitos sociais, econômicos, políticos<br />

e culturais, duramente conquistados e, também por essa via, a mudança do<br />

que se entendia por d<strong>em</strong>ocracia.<br />

Se faz sentido o questionamento sobre as articulações entre os<br />

campos econômico-social e político-cultural, especialmente nas situações <strong>de</strong><br />

crise quando então eles se <strong>de</strong>ixam transparecer com maior facilida<strong>de</strong>, o<br />

setor da indústria da informação <strong>de</strong>veria merecer atenção especial <strong>em</strong> pelo<br />

menos dois sentidos: <strong>de</strong> um lado, a informação passará a participar, já<br />

diziam os estudiosos estaduni<strong>de</strong>nses <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 70, como fator<br />

essencial da produção, facilitada pela a convergência entre informática,<br />

telecomunicações e audiovisual, que permitirá seu <strong>de</strong>slocamento <strong>em</strong> menor<br />

t<strong>em</strong>po a qualquer lugar do globo, <strong>de</strong> outro, dando suporte à<br />

internacionalização do capital, será principalmente por intermédio <strong>de</strong>ssa<br />

po<strong>de</strong>rosa indústria, aliada aos novos interesses heg<strong>em</strong>ônicos internacionais,<br />

que a catilinária neoliberal será difundida e buscará legitimação.<br />

Em países como a França, a solidificação da “comunicação” <strong>em</strong> mito,<br />

<strong>em</strong> um discurso or<strong>de</strong>nador do social, apesar das variantes e incoerências,<br />

permitiu a Érik Neveu (1997, p. 51-63) <strong>de</strong>tectar suas promessas<br />

fundamentais: d<strong>em</strong>ocracia cultural e política pela abundância <strong>de</strong> programas,<br />

canais e diversificação <strong>de</strong> títulos, d<strong>em</strong>ocracia participativa e direta por<br />

intermédio das novas tecnologias da informação, autonomia e interativida<strong>de</strong><br />

dos indivíduos, mundialização e inter<strong>de</strong>pendência harmoniosa entre povos e<br />

nações com a contração espaço-t<strong>em</strong>po mediante re<strong>de</strong>s físicas e eletrônicas<br />

<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po real. Pelo que diz respeito a esse trabalho, interessa aqui<br />

<strong>de</strong>stacar especialmente a promessa <strong>de</strong> autonomia dos indivíduos, fazendo<br />

<strong>de</strong>les sujeitos interativos e não objetos impotentes na maquinaria social.<br />

De fato, conforme Neveu (Id<strong>em</strong>, p. 57-60), tal promessa encerrava quatro<br />

significações: <strong>de</strong>scentralização como padrão <strong>de</strong> organização, à s<strong>em</strong>elhança<br />

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da nova organização interna da <strong>em</strong>presa <strong>em</strong> células autônomas;<br />

horizontalida<strong>de</strong>, permitindo ao receptor passar <strong>de</strong> um status passivo para<br />

intervir sobre a programação da televisão, por ex<strong>em</strong>plo; convivialida<strong>de</strong>, na<br />

qual a ferramenta tecnológica não estaria mais a serviço <strong>de</strong> especialistas,<br />

mas da pessoa integrada à coletivida<strong>de</strong>; d<strong>em</strong>ocracia como promessa <strong>de</strong><br />

eliminar o po<strong>de</strong>r dos especialistas pelas tecnologias domiciliares; e<br />

transparência, associando publicida<strong>de</strong> à conquista <strong>de</strong> espaço <strong>de</strong> autonomia<br />

dos indivíduos face aos po<strong>de</strong>res e suas práticas <strong>de</strong> segredo.<br />

No entanto, para fazer <strong>de</strong> todos “especialistas” seria necessária uma<br />

socieda<strong>de</strong> mais homogênea e alargar os direitos da socieda<strong>de</strong> civil. Em<br />

uma e outra condição, não se inscrevia o Brasil, on<strong>de</strong> ainda se vivia sob a<br />

i<strong>de</strong>ologia da Segurança Nacional. Contudo, não foram apenas esses<br />

aspectos que fizeram com que o discurso da “socieda<strong>de</strong> comunicacional”<br />

não repercutisse neste País. Seguramente, n<strong>em</strong> todos po<strong>de</strong>riam abraçar a<br />

via da “indústria da informação” para sair da crise econômica, da mesma<br />

forma que n<strong>em</strong> todos seriam chamados, como b<strong>em</strong> l<strong>em</strong>bra os <strong>de</strong>bates<br />

sobre a NOMIC, a interferir na elaboração <strong>de</strong> seu conteúdo, ainda que seus<br />

efeitos foss<strong>em</strong>, diferent<strong>em</strong>ente, sentidos <strong>de</strong> maneira abrangente. Na nova<br />

divisão internacional do trabalho que se avizinhava nos países da América<br />

Latina não seriam protagonistas, mas coadjuvantes cobiçáveis.<br />

A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maior internacionalização do capital tornou os<br />

mercados dos países latino-americanos importantes para o processo <strong>de</strong><br />

reorganização produtiva e <strong>de</strong> ajustes nos países centrais - seja para a<br />

expansão dos investimentos das transnacionais que, além <strong>de</strong> retirar lucros<br />

<strong>de</strong> setores outrora protegidos nacionalmente, solapa os mecanismos sociais<br />

e políticos que permitiram o equilíbrio entre as d<strong>em</strong>andas dos trabalhadores<br />

e a acumulação no mo<strong>de</strong>lo fordista-keynesiano nos países centrais, seja<br />

para contribuir com o financiamento, por intermédio do pagamento da<br />

dívida externa, contraída como condição para a reinserção dos países<br />

latino-americanos na nova divisão internacional do trabalho, da “corrida”<br />

tecnológica que busca diferenciais vantajosos da produtivida<strong>de</strong> do trabalho<br />

no mercado internacional (TAVARES, p. 25-31).<br />

Tendo por fonte inspiradora as medidas neoliberais aplicadas nos<br />

Estados Unidos e Grã-Bretanha ao longo da década <strong>de</strong> 70 e, <strong>de</strong> forma mais<br />

próxima, no estado ditatorial chileno, paradigma do Consenso <strong>de</strong><br />

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Washington, a pressão para a <strong>de</strong>sregulação e abertura comercial e<br />

financeira não será <strong>de</strong> pequena monta. Mais contun<strong>de</strong>nte ficou, à medida<br />

<strong>em</strong> que, notadamente nos anos 80, o ciclo econômico recessivo<br />

internacional se afirmou e a resistência política e social paulatinamente foi<br />

minada.<br />

Se na década <strong>de</strong> 60 os movimentos <strong>de</strong> resistência alimentaram a<br />

idéia <strong>de</strong> que o capitalismo não era o único horizonte e mo<strong>de</strong>lo social, tanto<br />

que se po<strong>de</strong> dizer que mudanças mais profundas não tiveram espaço<br />

quando dos primeiros indícios da crise econômica, nos anos 80 tal<br />

referencial tendia a se esfumaçar nas consciências, fortalecendo, ao mesmo<br />

t<strong>em</strong>po, os ataques às bases <strong>de</strong> sustentação do Estado <strong>de</strong> B<strong>em</strong> Estar Social.<br />

Apesar dos ajustes globais das economias centrais ter<strong>em</strong> modificado<br />

amplamente a ord<strong>em</strong> econômica mundial, lastreados na reestruturação<br />

industrial e na intermediação financeira, não se po<strong>de</strong> dizer, a não ser que se<br />

queira camuflar as mediações e articulações entre o global e o nacional, que<br />

a crise vivenciada pelos países da América Latina, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 70,<br />

seria o resultado mais ou menos direto <strong>de</strong> tal reformulação. É certo que<br />

para esses países será mais difícil encontrar mecanismos para se proteger,<br />

já que <strong>de</strong>pend<strong>em</strong>, <strong>de</strong>ntre outras variantes, do mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />

econômico vigente até então, como também do estado das forças sociais.<br />

Não se po<strong>de</strong> negar, assim, o peso da influência da conjuntura interna no<br />

ingresso na nova divisão internacional do trabalho. Com o Brasil não<br />

po<strong>de</strong>ria ser diferente.<br />

3.2. Os <strong>de</strong>safios do consenso nacional<br />

Uma das formas utilizadas nos anos <strong>de</strong> 1970 para contornar a crise<br />

<strong>de</strong> superprodução nos países centrais, e especialmente <strong>em</strong> razão da disputa<br />

entre Japão, Al<strong>em</strong>anha e Estados Unidos pela heg<strong>em</strong>onia mundial, foi a<br />

ampliação do crédito internacional. O curto período <strong>de</strong> recuperação <strong>de</strong>ssas<br />

economias foi <strong>em</strong> gran<strong>de</strong> parte sustentado pela integração funcional <strong>de</strong><br />

países periféricos na economia mundial. No entanto, a superficialida<strong>de</strong> da<br />

retomada do crescimento não tardou <strong>em</strong> se manifestar e já <strong>em</strong> fins <strong>de</strong>ssa<br />

década a via da expansão do crédito tornou-se inviável.<br />

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A década <strong>de</strong> 80 trazia para o Brasil alguns <strong>de</strong>safios que diziam<br />

respeito à forma <strong>de</strong> integração do País na nova ord<strong>em</strong> econômica mundial,<br />

até então não <strong>de</strong>finida totalmente, e, simultaneamente, às probl<strong>em</strong>áticas<br />

internas relacionadas com o esgotamento <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> acumulação<br />

<strong>de</strong>finido <strong>em</strong> 1950, reformulado com o golpe <strong>de</strong> 1° <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1964, e a<br />

resolução da chamada “questão social”.<br />

No entanto, a convergência da crise mundial com as fragilida<strong>de</strong>s<br />

internas fez acelerar a crise fiscal e a cambial, o processo inflacionário<br />

alcançou a casa dos três dígitos <strong>em</strong> média ao ano e o <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego se<br />

alastrou por todo País. As perspectivas para a saída da estagnação<br />

econômica estavam, porém, intimamente entrelaçadas com o<br />

reor<strong>de</strong>namento das relações entre o centro heg<strong>em</strong>ônico do capitalismo e os<br />

d<strong>em</strong>ais países, operando-se basicamente mediante uma nova divisão<br />

internacional do trabalho, centrada na reestruturação industrial e na<br />

intermediação financeira. Em outras palavras, para se entrar <strong>em</strong> uma fase<br />

produtiva qualitativamente nova, <strong>em</strong> meio a profundas transformações na<br />

ord<strong>em</strong> econômica internacional, o Brasil teria que resolver questões<br />

relacionadas com o peso <strong>de</strong> seu processo industrial e social.<br />

Para a América Latina, os Estados Unidos e o Fundo Monetário<br />

Internacional elaboraram um conjunto <strong>de</strong> medidas condicionantes <strong>de</strong> seus<br />

apoios econômicos e financeiros. O Consenso <strong>de</strong> Washington previa a<br />

adoção <strong>de</strong> políticas macroeconômicas <strong>de</strong> estabilização para o ajuste<br />

automático do balanço <strong>de</strong> pagamentos e reformas estruturais liberalizantes,<br />

cujas coor<strong>de</strong>nadas se atinham à <strong>de</strong>sregulamentação dos mercados, à<br />

abertura comercial e financeira, à privatização do setor público e redução do<br />

Estado. Estas últimas, tomando como paradigma o mo<strong>de</strong>lo anglo-saxônico,<br />

já vinham sendo amplamente adotadas pelo Chile, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os anos 70. No<br />

entanto, o Brasil, seja pela ausência <strong>de</strong> consenso entre os principais setores<br />

da economia, seja por uma conjuntura política <strong>de</strong> “abertura d<strong>em</strong>ocrática”,<br />

opôs-se a aplicá-las durante toda a década <strong>de</strong> 80, apesar das pressões do<br />

Banco Mundial.<br />

Foram necessários oito novos planos <strong>de</strong> estabilização, quatro moedas<br />

distintas, onze índices diferentes <strong>de</strong> cálculo da inflação, cinco<br />

congelamentos <strong>de</strong> preço, quatorze políticas salariais, <strong>de</strong>zoito mudanças das<br />

regras <strong>de</strong> câmbio, 54 modificações das regras <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> preços, 21<br />

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propostas <strong>de</strong> negociação da dívida externa e <strong>de</strong>zenove <strong>de</strong>cretos<br />

governamentais a propósito da austerida<strong>de</strong> fiscal (FIORI, 1996, p. 159)<br />

para, após o fracasso do Plano Collor, perceber-se que a estratégia das<br />

políticas <strong>de</strong> ajuste automático do balanço <strong>de</strong> pagamentos não po<strong>de</strong>ria dar<br />

conta da envergadura estrutural da crise.<br />

Certo é que, àquela altura das transformações na ord<strong>em</strong> econômica<br />

internacional, processos <strong>de</strong> liberalização comercial e financeira pareciam<br />

imprescindíveis, mas a maneira <strong>de</strong> <strong>em</strong>preendê-las – se acompanhadas <strong>de</strong><br />

políticas industriais, tecnológicas e comerciais que permitiss<strong>em</strong> transformar<br />

a proteção e incentivos às exportações e <strong>de</strong> novas políticas <strong>de</strong> proteção<br />

social ou se <strong>de</strong>ixadas mais nas mãos dos mecanismos “reguladores” do<br />

próprio mercado – não estavam politicamente <strong>de</strong>finidas.<br />

Tratava-se, <strong>de</strong> fato, da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> profunda reforma do Estado.<br />

Mas se <strong>de</strong> um lado a resistência às medidas <strong>de</strong> cunho liberalizante se<br />

colocavam <strong>em</strong> favor do crescimento nacional e do resgate da dívida social,<br />

<strong>de</strong> outro, os motivos eram menos nobres, vinculando-se aos interesses<br />

r<strong>em</strong>anescentes que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento agonizante favoreceu,<br />

permitindo acesso privilegiado aos recursos do Estado, especialmente<br />

abundantes quando o financiamento externo era barato. Daí que, diante da<br />

<strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> certos interesses particulares <strong>de</strong> curto prazo que contavam com a<br />

complacência do Estado, não po<strong>de</strong>ria haver coor<strong>de</strong>nação entre os vários<br />

grupos econômicos, n<strong>em</strong> entre estes e o sist<strong>em</strong>a bancário como ocorreu <strong>em</strong><br />

alguns países centrais.<br />

O consenso dos grupos econômicos privados somente será construído<br />

na década <strong>de</strong> 90, quando então começam a prevalecer os interesses do<br />

sist<strong>em</strong>a financeiro e dos setores ligados à exportação, com o concomitante<br />

enfraquecimento dos setores produtivos, golpeados pelos sucessivos<br />

fracassos dos planos econômicos e pela permanência da inflação elevada.<br />

Chegará ao Executivo com a eleição <strong>de</strong> Fernando Henrique Cardoso, <strong>em</strong><br />

1993, após a aposta frustrada <strong>em</strong> Collor, e no Congresso Nacional<br />

encontrará o respaldo necessário para dar início ao <strong>de</strong>smonte do Estado.<br />

Antes, porém, seria necessário adaptar aos novos t<strong>em</strong>pos os<br />

mecanismos <strong>de</strong> ajustamento social, levando <strong>em</strong> consi<strong>de</strong>ração o estágio da<br />

organização política e social dos setores da socieda<strong>de</strong> civil. Longe da<br />

imposição como era <strong>de</strong> costume, avizinhava-se a construção <strong>de</strong> um<br />

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dispositivo muito mais refinado para conquistar não só o consentimento,<br />

mas, principalmente, a a<strong>de</strong>são dos setores populares a um mecanismo <strong>de</strong><br />

“saída da crise”, que já se vinha surtindo efeitos extra muros.<br />

3.3. A funcionalização dos <strong>de</strong>svios<br />

Dos anos 80, costuma-se dizer no Brasil que foi uma década perdida,<br />

privilegiando nesta qualificação apenas os aspectos econômicos <strong>de</strong> uma<br />

conjuntura nacional grave, que se expressava na estagnação do<br />

crescimento econômico e no agravamento das condições <strong>de</strong> vida da<br />

população. Contudo, para que se pu<strong>de</strong>sse dar alcance real à situação que o<br />

País vivia naquele momento e, a partir daí, formular caminhos para seu<br />

equacionamento, seria necessário especificar <strong>de</strong> ant<strong>em</strong>ão a qualida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong>ssas perdas e, só então, qu<strong>em</strong> seriam os que <strong>de</strong>ixariam <strong>de</strong> ganhar.<br />

Foram questionamentos como esses que uma certa noção <strong>de</strong> “crise” 12<br />

abafou e cujo uso político tornou possível, <strong>de</strong>ntre outros fatores, a<br />

construção <strong>de</strong> um projeto nacional liso e s<strong>em</strong> fissuras, que só mostraria sua<br />

verda<strong>de</strong>ira face nos anos <strong>de</strong> 1990. O tratamento indiferenciado da crise,<br />

afirmando-se que se tratava <strong>de</strong> uma questão que afeta toda socieda<strong>de</strong><br />

brasileira e que <strong>de</strong>la se requer frentes indiferenciadas <strong>de</strong> ação, aponta para<br />

a diluição <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> classe <strong>em</strong> favor <strong>de</strong> modos operativos <strong>de</strong><br />

enfrentamento da crise, que implicam consensos <strong>de</strong> classe (FERNANDES,<br />

2000).<br />

Assim, a luta pela socialização do po<strong>de</strong>r político, levada a cabo nos<br />

últimos anos da ditadura e do período <strong>de</strong> transição, parece ter sido<br />

direcionada para um <strong>de</strong>sses modos conjunturais e operativos <strong>de</strong><br />

enfrentamento da crise, as divisões sociais e os diferentes interesses<br />

expressos na cena pública, camuflando as contradições e os impactos<br />

diferenciados da crise sobre as classes sociais. Ora, se a socieda<strong>de</strong> é<br />

percebida como uma formação que contém apenas divisões, cujo<br />

funcionamento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria da harmonização <strong>de</strong> cada uma das partes e<br />

<strong>de</strong>las entre si, t<strong>em</strong>porariamente submetidas a uma <strong>de</strong>sord<strong>em</strong> ou <strong>de</strong>svio, a<br />

restauração <strong>de</strong> sua funcionalida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria ser resolvida por meio <strong>de</strong> ajustes<br />

12 A respeito da imag<strong>em</strong> da “crise” como t<strong>em</strong>a <strong>de</strong> mobilização popular consultar<br />

CHAUI, 1985.<br />

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entre os interesses igualmente afetados, arranjos que, por sua vez, só<br />

teriam lugar se se <strong>de</strong>ixasse que os “conflitos” viess<strong>em</strong> à tona. Não havia<br />

mais lugar para a censura, a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão parecia tornar-se<br />

necessida<strong>de</strong> para garantir a formação da “opinião pública”.<br />

Apesar <strong>de</strong> os partidos <strong>de</strong> oposição ter<strong>em</strong> tentado garantir alguns<br />

mecanismos para a “livre” formação <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> coletiva, para tanto,<br />

prevendo a criação <strong>de</strong> um órgão d<strong>em</strong>ocrático, representativo dos setores da<br />

socieda<strong>de</strong> civil, que teria por encargo não apenas <strong>de</strong>liberar sobre as<br />

concessões das licenças radiofônicas como também atuar no sentido <strong>de</strong><br />

coibir os monopólios, já na Ass<strong>em</strong>bléia Constituinte estava claro que não<br />

haveria gran<strong>de</strong>s mudanças na comunicação social. Juntamente com a<br />

reafirmação do sist<strong>em</strong>a <strong>de</strong> exploração privada da radiodifusão e das<br />

garantias dos profissionais contra os mecanismos da censura estatal, tudo<br />

para que o público recebesse informações plurais e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, muitas<br />

matérias foram aprovadas <strong>em</strong> troca da outorga <strong>de</strong> licenças para <strong>em</strong>issões<br />

nacionais, regionais e locais.<br />

O uso político da crise, funcionalizando as conquistas <strong>de</strong> socialização<br />

do po<strong>de</strong>r político dos trabalhadores e <strong>de</strong> amplos setores na socieda<strong>de</strong> civil,<br />

ainda estimulou a restrição do espaço público ao colocar nas mãos <strong>de</strong><br />

alguns salvadores po<strong>de</strong>res miraculosos para a restauração da ord<strong>em</strong>. O<br />

primeiro <strong>de</strong>les foi Trancredo Neves, cuja morte inesperada comoveu o País.<br />

O segundo, exacerbando a valorização <strong>de</strong> seu po<strong>de</strong>r pessoal <strong>em</strong> <strong>de</strong>trimento<br />

das instituições políticas, não conseguiu levar a termo seu mandato, mas<br />

iniciou as reformas neoliberais. Qu<strong>em</strong> não se recorda da entrada triunfal <strong>de</strong><br />

Fernando Collor, com os punhos lançados ao ar, no Congresso Nacional no<br />

dia <strong>de</strong> sua posse como Presi<strong>de</strong>nte da República, ou das apoteóticas corridas<br />

<strong>em</strong> que ele d<strong>em</strong>onstrava juventu<strong>de</strong>, força física e disposição para resolver<br />

todos os probl<strong>em</strong>as da nação? O projeto do neoliberalismo <strong>de</strong> encolhimento<br />

do espaço público e do alargamento do espaço privado encontrou no Brasil<br />

um terreno muito fértil para se <strong>de</strong>senvolver. Parece não haver coincidência<br />

maior <strong>de</strong> propósitos entre uma matriz teológico-personalista do po<strong>de</strong>r e<br />

uma i<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> tipo neoliberal.<br />

A retomada do projeto neoliberal, <strong>em</strong> 1994, com o governo <strong>de</strong><br />

Fernando Henrique Cardoso, não se furtará ao uso do marketing político, se<br />

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b<strong>em</strong> que <strong>de</strong> maneira b<strong>em</strong> menos teatral, conseguindo manter as aparências<br />

do <strong>de</strong>bate na adoção das medidas <strong>de</strong> ajuste econômico.<br />

Ao lado do enfraquecimento das forças <strong>de</strong> resistência (à exceção do<br />

<strong>Movimento</strong> dos S<strong>em</strong>-Terra), <strong>em</strong> razão especialmente dos efeitos <strong>de</strong> um<br />

longo período <strong>de</strong> inflação e <strong>de</strong>s<strong>em</strong>prego, aliados aos mais <strong>de</strong> seis planos<br />

econômicos mal-sucedidos, o apelo à “opinião pública” será constante e<br />

com ela se reforçará a privatização do espaço social e sua <strong>de</strong>spolitização<br />

pelos mecanismos da indústria política. Apoiada nas pesquisas <strong>de</strong> opinião,<br />

que buscam captar as d<strong>em</strong>andas “populares”, a racionalida<strong>de</strong> técnicoadministrativa<br />

reafirma-se na cena política quando esta é consi<strong>de</strong>rada <strong>em</strong><br />

termos <strong>de</strong> práticas idênticas às do mercado, <strong>de</strong> adaptação entre oferta e<br />

d<strong>em</strong>anda. Foi assim que os cidadãos não pu<strong>de</strong>ram dar lugar à massa dos<br />

d<strong>em</strong>andantes <strong>de</strong> solução que se entregam ao padrão <strong>de</strong> espetáculo dos<br />

meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa.<br />

Conclusões<br />

A gênese da ativida<strong>de</strong> social “comunicação” <strong>de</strong>ve ser encontrada no<br />

modo <strong>de</strong> produção capitalista. Sua função e perenida<strong>de</strong> histórica, das quais<br />

se originam os princípios que informam as práticas comunicacionais<br />

heg<strong>em</strong>ônicas, não pod<strong>em</strong> ser apanhadas, pois, por uma lógica formal, como<br />

preten<strong>de</strong> a dogmática tradicional dos direitos humanos. Ao contrário, tal<br />

ativida<strong>de</strong> t<strong>em</strong> sua forma organizacional e seus objetivos econômicos,<br />

políticos, sociais e culturais <strong>de</strong>stinados à manutenção e regulação do modo<br />

<strong>de</strong> produção capitalista nesse momento da História humana e do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento das forças produtivas, b<strong>em</strong> como parte dos dispositivos<br />

legais é posta com o objetivo <strong>de</strong> colocá-la sob ferrenho controle do Estado<br />

brasileiro e a serviço <strong>de</strong> uma classe social específica. Obviamente, isso não<br />

faz da “comunicação” uma ativida<strong>de</strong> social s<strong>em</strong> contradições que não<br />

possam ser exploradas, n<strong>em</strong> das normas que garant<strong>em</strong> o direito à<br />

comunicação letras mortas.<br />

Por outro lado, o espaço radioelétrico é, s<strong>em</strong> dúvida, limitado. Ainda<br />

que a futura impl<strong>em</strong>entação da tecnologia digital prometa ampliar<br />

significativamente o número dos <strong>em</strong>issores, eliminando quase por completo<br />

as interferências entre eles, nada permite imaginar que esse espaço seja<br />

simplesmente franqueado a todos. Os vários grupos que ao longo das<br />

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últimas décadas constituíram <strong>em</strong>issoras populares sent<strong>em</strong>, ainda com o<br />

sist<strong>em</strong>a analógico, tais dificulda<strong>de</strong>s. Sabe-se, porém, que essa limitação<br />

real t<strong>em</strong> sido utilizada como um po<strong>de</strong>roso argumento para legitimar o<br />

monopólio estatal na distribuição das freqüências <strong>de</strong> radiotelevisão, como<br />

também, no caso brasileiro, para a <strong>de</strong>fesa da prepon<strong>de</strong>rância do regime<br />

privado, e que, ao contrário, o controle público e a transparência <strong>de</strong>sse<br />

processo constitu<strong>em</strong> uma das primeiras exigências <strong>de</strong> um espaço midiático<br />

d<strong>em</strong>ocrático. Assim, a qu<strong>em</strong> po<strong>de</strong>ria ser dado o direito <strong>de</strong> <strong>em</strong>itir e com<br />

base <strong>em</strong> que finalida<strong>de</strong>s? Essas não são probl<strong>em</strong>áticas recentes. Como<br />

vimos, suas <strong>de</strong>finições acompanharam a história da radiodifusão <strong>em</strong> nosso<br />

País e estiveram estreitamente vinculadas a complexos <strong>em</strong>bates <strong>em</strong> que os<br />

campos político, econômico, social e cultural dificilmente po<strong>de</strong>riam ser<br />

isolados.<br />

Certamente, não se trata <strong>de</strong> uma simples questão tecnológica, não<br />

bastam freqüências radioelétricas. A relevância <strong>em</strong> abordarmos o espaço<br />

midiático brasileiro, a partir <strong>de</strong> sua gênese, está, entre outras questões, <strong>em</strong><br />

explicitar que as três lógicas comunicacionais não correspond<strong>em</strong><br />

mecanicamente às <strong>em</strong>issoras. Isto é, não confer<strong>em</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a cada uma<br />

<strong>de</strong>las, mas <strong>em</strong> todas, sejam elas privadas, públicas, livres ou comunitárias.<br />

Perpassam por elas práticas que correspond<strong>em</strong> a objetivos distintos e que<br />

tend<strong>em</strong> a predominar, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r do contexto no qual se dão os <strong>em</strong>bates.<br />

As <strong>em</strong>issoras privadas, portanto, não realizam exclusivamente a<br />

lógica do capital, como também as <strong>em</strong>issoras públicas não se <strong>de</strong>fin<strong>em</strong> pela<br />

lógica estatal, n<strong>em</strong> as livres e comunitárias seriam a representação da<br />

lógica dos movimentos sociais. É, ao contrário, na articulação entre as<br />

lógicas estatal/mercantil, mercantil/movimentos sociais e<br />

estatal/movimentos sociais que pod<strong>em</strong>os apanhar as práticas concretas que<br />

são <strong>de</strong>senvolvidas na apropriação e nos usos dos meios <strong>de</strong> comunicação e,<br />

a partir daí, pensarmos um mo<strong>de</strong>lo d<strong>em</strong>ocrático <strong>de</strong> comunicação para toda<br />

a socieda<strong>de</strong> brasileira.<br />

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a mo<strong>de</strong>rnização conservadora In (Des)ajuste global e mo<strong>de</strong>rnização<br />

conservadora. Maria da Conceição Tavares e José Luís Fiori, Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 21-73.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

FISSURAS NA COMUNICAÇÃO GLOBALIZADA: A EXPERIÊNCIA DOS<br />

AGENTES DE COMUNICAÇÃO EM PERNAMBUCO 13<br />

Patrícia Paixão <strong>de</strong> Oliveira Leite 14<br />

Raimunda Aline Lucena Gomes 15<br />

1. Introdução<br />

Os discursos que circulam tendo como base a palavra globalização<br />

apontam uma diversida<strong>de</strong> infinita <strong>de</strong> análises, sejam elas econômicas,<br />

políticas, i<strong>de</strong>ológicas, culturais, sociais e, sobretudo, comunicacionais. No<br />

entanto, s<strong>em</strong>pre houve a tentação <strong>de</strong> classificar esses discursos <strong>de</strong> forma<br />

dicotômica: conservadores e mo<strong>de</strong>rnos; aristocratas e liberais; burgueses e<br />

socialistas; alinhados e não-alinhados; direita e esquerda; apocalípticos e<br />

integrados; globalizantes e globalizados; tradicionais e pós-mo<strong>de</strong>rnos. Isso<br />

permitiu uma maior diss<strong>em</strong>inação do primado das reflexões mais dualistas e<br />

menos dialéticas - estas últimas buscando enveredar pelas inter-relações<br />

que ambas as palavras reclamam.<br />

No caso específico do pensamento científico sobre a comunicação<br />

social e seu processo <strong>de</strong> globalização, duas correntes <strong>de</strong> pensamento<br />

terminaram praticamente por dividir esse campo <strong>de</strong> conhecimento: a<br />

dimensão humanista 16 da comunicação como um processo dialógico e<br />

13 Trabalho apresentado ao GT <strong>de</strong> Práticas Sociais <strong>de</strong> Comunicação, do IX Congresso <strong>de</strong> Ciências da Comunicação na<br />

Região Nor<strong>de</strong>ste, <strong>em</strong> 2007.<br />

14 Mestra <strong>em</strong> Comunicação pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Pernambuco (<strong>UFPE</strong>), Especialista <strong>em</strong> Propaganda e<br />

Marketing, pela <strong>UFPE</strong>, e Especialista <strong>em</strong> Jornalismo Cultural pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> Católica <strong>de</strong> Pernambuco (Unicap). É<br />

pesquisadora auxiliar do Núcleo <strong>de</strong> Documentação dos <strong>Movimento</strong>s Sociais <strong>de</strong> Pernambuco, da <strong>UFPE</strong>, e<br />

Coor<strong>de</strong>nadora <strong>de</strong> Comunicação da ONG Sinos. E-mail: ppaixao@hotlink.com.br<br />

15 Mestra <strong>em</strong> Comunicação pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Pernambuco (<strong>UFPE</strong>) e Especialista <strong>em</strong> História e Estética da<br />

Cin<strong>em</strong>atografia pela <strong>Universida<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Valladolid/Espanha. É pesquisadora auxiliar do Núcleo <strong>de</strong> Documentação dos<br />

<strong>Movimento</strong>s Sociais <strong>de</strong> Pernambuco, da <strong>UFPE</strong>, e Coor<strong>de</strong>nadora Executiva da ONG Sinos. E-mail:<br />

aline.lucena@gmail.com<br />

16 [...] a propósito do aspecto humanista <strong>em</strong> que <strong>de</strong>ve estar inspirado o trabalho <strong>de</strong> comunicação [...] Aspecto<br />

humanista <strong>de</strong> caráter concreto, rigorosamente científico, e não abstrato. Humanismo que não se nutra <strong>de</strong> visões <strong>de</strong> um<br />

hom<strong>em</strong> i<strong>de</strong>al, fora do mundo; <strong>de</strong> um perfil <strong>de</strong> hom<strong>em</strong> fabricado pela imaginação, por melhor intencionado que seja<br />

qu<strong>em</strong> o imagine. Humanismo que não leve à procura <strong>de</strong> concretização <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo int<strong>em</strong>poral, uma espécie <strong>de</strong><br />

idéia ou <strong>de</strong> mito, ao qual o hom<strong>em</strong> concreto se aliene. Humanismo que, não tendo uma visão crítica do hom<strong>em</strong><br />

concreto, preten<strong>de</strong> um será para ele; ele que, tragicamente, está sendo uma forma <strong>de</strong> quase não ser. Pelo contrário, o<br />

humanismo que se impõ<strong>em</strong> ao trabalho <strong>de</strong> comunicação entre [ ] sujeitos, se baseia na ciência, e não na ‘doxa’, e não<br />

no ‘eu gostaria que fosse’ ou <strong>em</strong> gestos puramente humanitários. Neste humanismo científico (que n<strong>em</strong> por isso <strong>de</strong>ixa<br />

<strong>de</strong> ser amoroso) <strong>de</strong>ve estar apoiada a ação comunicativa do agronônomo-educador. (FREIRE, 2002, p. 73 - 74)<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

dialético, inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e correlacionado com as relações sociais,<br />

políticas, econômicas, i<strong>de</strong>ológicas e culturais, ou seja, como um direito<br />

humano; e a dimensão instrumental, focada no <strong>de</strong>terminismo tecnológico,<br />

na onipotência do meio, no fluxo livre <strong>de</strong> informação como fator<br />

prepon<strong>de</strong>rante para o <strong>de</strong>senvolvimento.<br />

A história das teorias da comunicação reflete os vários momentos <strong>de</strong><br />

disputa entre esses dois discursos: das pesquisas <strong>em</strong>píricas nos Estados<br />

Unidos (Escola <strong>de</strong> Chicago, Mass Communication Research, sociologia<br />

funcionalista da mídia, a Teoria da Informação); a teoria cibernética <strong>de</strong><br />

Norbert Wiener, a ciência do controle tecnicista; passando pela teoria crítica<br />

frankfurtiana, pelo estruturalismo francês dos aparelhos i<strong>de</strong>ológicos <strong>de</strong><br />

Estado e dos dispositivos <strong>de</strong> vigilância; pelos Cultural Studies, pela<br />

economia política da comunicação, pela teoria crítica latino-americana, indo<br />

até os teóricos do ciberespaço e cibercultura. (MATTELART; MATTELART,<br />

1999)<br />

Este trabalho propõe não mais uma disputa entre as diferentes visões<br />

sobre a globalização, principalmente a comunicacional, mas uma relação<br />

dialógica, buscando construir sentidos outros, ou, qu<strong>em</strong> sabe, novas<br />

utopias. No campo do pensamento crítico sobre o processo <strong>de</strong> globalização,<br />

o artigo propõe um diálogo entre Bauman e Beck. Na parte específica das<br />

teorias sobre a globalização da comunicação estão Mattelart e Dênis <strong>de</strong><br />

Moraes. A reflexão sobre as possíveis fissuras na globalização da<br />

comunicação baseia-se nos argumentos <strong>de</strong> Moreiras e Foucault. E a análise<br />

da experiência <strong>em</strong>pírica será realizada à luz da pesquisa <strong>de</strong> Peruzzo e Freire<br />

sobre a comunicação como processo libertador.<br />

A proposta central, então, é refletir sobre essas vertentes teóricas,<br />

<strong>de</strong>stacando suas principais divergências (como também possíveis<br />

convergências), a partir <strong>de</strong> uma análise dialética entre a globalização da<br />

comunicação e fissuras que se apresentam como contraponto ao<br />

pensamento e à prática tradicionais nas mídias industrializadas. É trazer ao<br />

<strong>de</strong>bate as discussões sobre uma práxis da comunicação que valoriza as<br />

pessoas como sujeitos políticos, com ou para além da mídia tradicional. Ou<br />

seja, na perspectiva <strong>de</strong> que é possível trabalhar a comunicação, na<br />

globalização, como aliada das classes subalternas na busca por<br />

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<strong>em</strong>ancipação social, econômica, política e cultural, <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>s<br />

violadoras <strong>de</strong>sses direitos e que sonegam a justiça a todos e todas.<br />

Para isso, além do estabelecimento <strong>de</strong> um diálogo com o arcabouço<br />

teórico sobre a globalização da comunicação, fissuras na globalização e o<br />

exercício do direito humano à comunicação 17 , será apresentado um estudo<br />

<strong>de</strong> caso da experiência do projeto Formação <strong>de</strong> Agentes <strong>de</strong> Comunicação da<br />

Socieda<strong>de</strong> Civil, da ONG Sinos, <strong>de</strong> Pernambuco, que visa a sensibilizar e<br />

capacitar multiplicadores para a promoção, proteção e reparação do direito<br />

humano à comunicação.<br />

Reafirma-se aqui a possibilida<strong>de</strong> da experiência dos agentes <strong>de</strong><br />

comunicação ser uma das possíveis fissuras no processo aparent<strong>em</strong>ente<br />

unívoco <strong>de</strong> “mercadologização” da comunicação na era global, apontando<br />

para o caminho da efetivação do exercício do direito humano à<br />

comunicação. Esse estudo está <strong>em</strong> conformida<strong>de</strong> com as pesquisas<br />

<strong>de</strong>senvolvidas pelos estudos <strong>de</strong> cultura ingleses e latino-americanos,<br />

quando comprovam a insurgência das culturas locais no ambiente global. E<br />

também <strong>de</strong> acordo com as teorias <strong>de</strong> Michael Foucault sobre a circulação do<br />

po<strong>de</strong>r, mesmo <strong>de</strong>sigual, construindo micropo<strong>de</strong>res.<br />

2. Algumas Teorias sobre a Globalização da Comunicação<br />

Felizmente, mais perguntas que respostas amontoam-se ao longo da<br />

trajetória dos pensamentos que tentam <strong>de</strong>finir os diferentes impactos da<br />

globalização. De acordo com Ulrich Beck (1998, p. 26-29, tradução nossa),<br />

por ex<strong>em</strong>plo, existe o globalismo, a globalida<strong>de</strong> e a globalização. Por<br />

globalismo, o autor <strong>de</strong>fine como o processo <strong>em</strong> que o mercado mundial<br />

substitui o fazer político, ou seja, como a i<strong>de</strong>ologia do liberalismo. Já<br />

globalida<strong>de</strong> significa a totalida<strong>de</strong> das relações sociais que não estão<br />

integradas na política do Estado nacional n<strong>em</strong> estão <strong>de</strong>terminadas através<br />

<strong>de</strong>sta. Essa concepção <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que se vive numa socieda<strong>de</strong> mundial, há<br />

bastante t<strong>em</strong>po, <strong>de</strong> maneira que a tese dos espaços fechados é fictícia. E<br />

globalização representa os processos pelos quais os Estados nacionais<br />

17 Embora ainda sendo um conceito <strong>em</strong> construção, o direito humano à comunicação figura como um discurso<br />

político da socieda<strong>de</strong> civil internacional, reivindicatório <strong>de</strong> uma nova ord<strong>em</strong> da informação e da comunicação, forjada<br />

<strong>em</strong> uma maior participação das diversida<strong>de</strong>s na produção, difusão e recepção. (GOMES, 2007)<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

soberanos estão imbricados, mediante atores transnacionais e suas<br />

respectivas probabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, orientações e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.<br />

Portanto, para Beck (1998, p. 73, tradução nossa), a globalização –<br />

que inclui relações sociais, econômicas, políticas, culturais e i<strong>de</strong>ológicas –<br />

não pôs fim à informação livre e rebel<strong>de</strong>. E questões como local e global;<br />

universalismo e particularismo; centralização e <strong>de</strong>scentralização; conflito e<br />

conciliação não <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser analisadas pela lógica do “ou isto ou aquilo”.<br />

Propõe, ao contrário, uma diferenciação inclusiva. Isto é, que possibilite<br />

outro conceito <strong>de</strong> limite mais flexível, b<strong>em</strong> como mais cooperativo.<br />

Bauman, por sua vez, acredita que:<br />

Assim que examinarmos as causas e conseqüências <strong>de</strong>ssa<br />

compressão, ficará evi<strong>de</strong>nte que os processos globalizadores<br />

não têm a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> efeitos que se supõe comumente. [...]<br />

A globalização tanto divi<strong>de</strong> como une; divi<strong>de</strong> enquanto une –<br />

e as causas da divisão são idênticas às que promov<strong>em</strong> a<br />

uniformida<strong>de</strong> do globo. [...] O que para alguns parece<br />

globalização, para outro significa localização; o que para<br />

alguns é sinalização <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, para muitos outros é um<br />

<strong>de</strong>stino in<strong>de</strong>sejado e cruel. [...] Alguns <strong>de</strong> nós tornam-se<br />

plena e verda<strong>de</strong>iramente ‘globais’; alguns se fixam na sua<br />

‘localida<strong>de</strong>’ – transe que não é n<strong>em</strong> agradável n<strong>em</strong><br />

suportável no mundo <strong>em</strong> que os globais dão o tom e faz<strong>em</strong><br />

as regras do jogo da vida. (BAUMAN, 1999, p. 7-8, grifo do<br />

autor)<br />

O autor reforça a existência, sim, <strong>de</strong> um brutal conflito <strong>de</strong> interesses<br />

entre os incluídos e os excluídos da globalização. E, diferent<strong>em</strong>ente <strong>de</strong><br />

Beck, Bauman ratifica a esfera econômica como sendo o foco principal<br />

<strong>de</strong>sses conflitos. Po<strong>de</strong>-se trazer essa discussão para a globalização da<br />

comunicação. Na arqueologia que elabora acerca da comunicação, Mattelart<br />

também vincula o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da comunicação à<br />

mo<strong>de</strong>rnização industrial e tecnológica do capitalismo.<br />

Os sist<strong>em</strong>as <strong>de</strong> comunicação <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po real <strong>de</strong>terminam a<br />

estrutura <strong>de</strong> organização do planeta. O que se convencionou<br />

chamar <strong>de</strong> mundialização/globalização [...] combina com a<br />

flui<strong>de</strong>z dos intercâmbios e fluxos imateriais transfronteiriços.<br />

[...] A interconexão generalizada das economias e das<br />

socieda<strong>de</strong>s é, com efeito, o resultado do movimento <strong>de</strong><br />

integração mundial que foi iniciado na virada do século XIX.<br />

Ampliando progressivamente o campo <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong><br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

pessoas, como também <strong>de</strong> bens materiais e simbólicos, os<br />

instrumentos <strong>de</strong> comunicação têm acelerado a incorporação<br />

das socieda<strong>de</strong>s particulares <strong>em</strong> grupos cada vez maiores,<br />

re<strong>de</strong>finindo continuamente as fronteiras físicas, intelectuais e<br />

mentais. (MATTELART, 2002, p. 11)<br />

Essa re<strong>de</strong>finição contínua, ainda muito assimétrica, reforça e amplia<br />

as diferenças <strong>de</strong> acesso e participação no fluxo das informações, do<br />

conhecimento e da comunicação. Ainda existe uma <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> muito<br />

gran<strong>de</strong> na <strong>em</strong>issão e recepção <strong>de</strong> informações, uma centralida<strong>de</strong> na<br />

produção do domínio tecnológico e uma forte unilateralida<strong>de</strong> na<br />

comunicação. Essa ord<strong>em</strong> da informação, do saber e da comunicação na era<br />

global está relacionada à lógica da concentração <strong>de</strong> capital, à ausência do<br />

Estado como gestor <strong>de</strong> políticas públicas e à negação da comunicação como<br />

direito humano.<br />

Seria miopia enxergar apenas manipulações no que a mídia<br />

difun<strong>de</strong>, ou supor que as audiências submerg<strong>em</strong> na<br />

passivida<strong>de</strong> crônica, pois sab<strong>em</strong>os que há <strong>em</strong>issões e<br />

respostas diferenciadas e heterogêneas – inclusive as que, às<br />

vezes, contrariam, reelaboram ou rebat<strong>em</strong> certas visões e<br />

intenções difundidas pelos dispositivos midiáticos. Não há,<br />

pois, um mo<strong>de</strong>lo único, que se imponha, mecanicamente,<br />

aos receptores. Entretanto, <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os examinar atentamente<br />

o outro lado da moeda. Em face da concentração monopólica<br />

e transnacional das indústrias culturais, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

interferência do público (ou <strong>de</strong> frações <strong>de</strong>le) nas<br />

programações <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> não somente da capacida<strong>de</strong> criativa e<br />

reativa dos indivíduos, como também <strong>de</strong> direitos coletivos e<br />

controles sociais sobre a produção e circulação <strong>de</strong><br />

informações e entretenimento. (CANCLINI, 2004, p. 148<br />

apud MORAES, 2006, p. 45-46)<br />

3. Fissuras na Globalização: o Exercício do Direito Humano à<br />

Comunicação<br />

O conceito <strong>de</strong> fissura adotado neste trabalho se valeu dos estudos <strong>de</strong><br />

Alberto Moreiras, no artigo A globalida<strong>de</strong> negativa e o regionalismo crítico<br />

(2001). Embora nesse estudo o autor discorra sobre os processos <strong>de</strong><br />

globalização a partir <strong>de</strong> uma perspectiva latino-americana, é possível<br />

<strong>em</strong>pregar a idéia <strong>de</strong> fissura <strong>em</strong> outras situações <strong>de</strong> contraponto à<br />

globalização, mais localizadas. Para Moreiras, as fissuras surg<strong>em</strong> pela<br />

reação a uma certa imposição globalizadora para a homogeneização e<br />

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integração <strong>de</strong> culturas, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e saberes. Ou seja, o próprio processo<br />

<strong>de</strong> globalização favorece o surgimento <strong>de</strong> fissuras: à medida que tenta<br />

homogeneizar há uma reação para d<strong>em</strong>arcar as heterogeneida<strong>de</strong>s. Ou seja,<br />

a própria globalização cria as bases para a <strong>em</strong>ergência das fissuras. Afinal,<br />

a percepção da diferença só <strong>em</strong>erge quando se tenta unificar. Para a ação<br />

globalizadora há uma reação dos subalternos.<br />

A fissura narrativa, <strong>em</strong> um sentido mais geral, t<strong>em</strong> produzido,<br />

segundo uma lógica <strong>de</strong> negativida<strong>de</strong>, uma reivindicação da diferença<br />

e uma rejeição da uniformida<strong>de</strong>, cuja sincronia com a integração<br />

global pós-mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>veria nos fazer ver como elas são na verda<strong>de</strong><br />

apenas uma contraparte da última, no nível local.(MOREIRAS, 2001,<br />

p. 82)<br />

Como se sabe, o direito humano à comunicação ainda é um direito<br />

<strong>em</strong> busca (e luta) pela efetivação, por setores organizados da socieda<strong>de</strong>. No<br />

Brasil, ações não-governamentais recorr<strong>em</strong> a dispositivos que visam a<br />

sensibilizar e capacitar atores sociais para ser<strong>em</strong> gestores da promoção,<br />

proteção e reparação <strong>de</strong>sse direito, com a criação <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong><br />

controle social da mídia e da d<strong>em</strong>ocratização dos meios <strong>de</strong> comunicação, o<br />

incentivo ao surgimento <strong>de</strong> canais alternativos <strong>de</strong> difusão <strong>de</strong> informações, a<br />

valorização das rádios comunitárias, entre outros. O trabalho <strong>de</strong>senvolvido<br />

pela ONG Sinos no projeto <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Agentes <strong>de</strong> Comunicação da<br />

Socieda<strong>de</strong> Civil é entendido como uma <strong>de</strong>ssas fissuras narrativas.<br />

As fissuras narrativas são assim um el<strong>em</strong>ento constituinte dos novos<br />

regimes <strong>de</strong> governo – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o pós-mo<strong>de</strong>rnismo até o<br />

fundamentalismo <strong>em</strong> suas várias formas. O anúncio <strong>de</strong> uma<br />

heterogeneida<strong>de</strong> histórica ou totalida<strong>de</strong> latino-americana é assim<br />

apenas o reconhecimento <strong>de</strong> tais fissuras narrativas: e é, na verda<strong>de</strong>,<br />

<strong>em</strong> um certo nível crítico uma forma previsível <strong>de</strong> reconhecimento<br />

crítico, ‘pois o progresso da integração global e as lutas a ele<br />

relacionadas entre supostos lí<strong>de</strong>res têm persistent<strong>em</strong>ente liberado<br />

disputas sobre a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> (...) e pela autonomia que, repetidas<br />

vezes, têm renovado a diferença diante da integração e assim<br />

continuado a fragmentar o mundo mesmo à medida que ele se<br />

tornou um só.(GEYER; BRIGHT apud MOREIRAS, 2001, p. 82)<br />

No entendimento <strong>de</strong>sta análise, é quando se luta pela efetivação do<br />

direito humano à comunicação, é nesse caminhar, nesse passo a passo, que<br />

vão se abrindo fissuras no atual mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> comunicação globalizada. São as<br />

brechas abertas pelas camadas populares. Diante <strong>de</strong>ssa percepção, é<br />

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previsível contextualizar a mídia tradicional – os veículos <strong>de</strong> comunicação –<br />

como um representante <strong>de</strong>sse bojo <strong>de</strong> processos que incid<strong>em</strong> <strong>de</strong> cima para<br />

baixo, dos países ricos para os países pobres, dos governos para as<br />

socieda<strong>de</strong>s, dos opressores para os oprimidos, dos patrões para os<br />

<strong>em</strong>pregados, dos po<strong>de</strong>rosos para os subalternos. A mídia são os oligopólios<br />

na esfera da comunicação.<br />

Entr<strong>em</strong>entes, é salutar a compreensão <strong>de</strong> Foucault (1999, p.34-35)<br />

quando chama atenção para o fato <strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r não ser algo que po<strong>de</strong> ser<br />

passado, <strong>de</strong>positado, transferido. Ao contrário, o po<strong>de</strong>r envolve, circula,<br />

movimenta-se, <strong>em</strong>bora possa continuar <strong>de</strong>sigual. As fissuras representam,<br />

aqui, justamente, os micropo<strong>de</strong>res, as tentativas contra-heg<strong>em</strong>ônicas, as<br />

janelas abertas por on<strong>de</strong> pod<strong>em</strong> atravessar outras novas formas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

O po<strong>de</strong>r, acho eu, <strong>de</strong>ve ser analisado como uma coisa que<br />

circula, ou melhor, como uma coisa que só funciona <strong>em</strong><br />

ca<strong>de</strong>ia. Jamais ele está localizado aqui ou ali, jamais está<br />

entre as mãos <strong>de</strong> alguns, jamais é apossado como uma<br />

riqueza ou um b<strong>em</strong>. O po<strong>de</strong>r funciona. O po<strong>de</strong>r se exerce <strong>em</strong><br />

re<strong>de</strong> e, nessa re<strong>de</strong>, não só os indivíduos circulam, mas estão<br />

s<strong>em</strong>pre <strong>em</strong> posição <strong>de</strong> ser submetidos a esse po<strong>de</strong>r e<br />

também <strong>de</strong> exercê-lo. Jamais eles são o alvo inerte ou<br />

consentidor do po<strong>de</strong>r, são s<strong>em</strong>pre seus intermadiários. Em<br />

outras palavras, o po<strong>de</strong>r transita pelos indivíduos, não se<br />

aplica a eles. (FOUCAULT, 1999, p.35)<br />

4. A Experiência dos Agentes <strong>de</strong> Comunicação <strong>em</strong> Pernambuco<br />

Vários autores já pesquisaram e divulgaram experiências <strong>de</strong> fissuras<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>s que vivenciam a comunicação globalizada. A utilização<br />

da internet pelo movimento Zapatista, no México; a importância das rádios<br />

comunitárias nas periferias dos centros urbanos do Brasil; assim como a<br />

ampla difusão das estratégias <strong>de</strong> ação do <strong>Movimento</strong> dos Trabalhadores<br />

S<strong>em</strong>-Terra; além <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plos da atuação <strong>de</strong> articulações políticas como a<br />

que impulsionou a campanha Qu<strong>em</strong> Financia a Baixaria é Contra a<br />

Cidadania, entre outros. “Se esta crença nos falha, abandonamos a idéia,<br />

ou não a t<strong>em</strong>os, do diálogo, da reflexão, da comunicação e caímos nos<br />

slogans, nos comunicados, nos <strong>de</strong>pósitos, no dirigismo.”(FREIRE, 1987, p.<br />

53, grifo do autor)<br />

Aqui procura-se relatar uma crença (mais do que uma experiência)<br />

na comunicação como práxis, como direito humano. “Precisamente por isto,<br />

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ninguém po<strong>de</strong> dizer a palavra verda<strong>de</strong>ira sozinho, ou dizê-la para os outros,<br />

num ato <strong>de</strong> prescrição, com o qual rouba a palavra aos d<strong>em</strong>ais.” (FREIRE,<br />

1987, p. 78, grifo do autor). Trata-se <strong>de</strong> uma fissura narrativa peculiar: o<br />

projeto <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Agentes <strong>de</strong> Comunicação da Socieda<strong>de</strong> Civil,<br />

encampado pela ONG Sinos – Organização para o Desenvolvimento da<br />

Comunicação Social 18 , com o apoio da Coor<strong>de</strong>nadoria Ecumênica <strong>de</strong> Serviço<br />

(CESE) e do Serviço Al<strong>em</strong>ão <strong>de</strong> Cooperação Técnica e Social (DED).<br />

O projeto foi iniciado <strong>em</strong> 2005, com o objetivo principal <strong>de</strong><br />

impl<strong>em</strong>entar um programa <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> sujeitos políticos multiplicadores<br />

para atuar<strong>em</strong> na promoção, proteção e reparação do direito humano à<br />

comunicação, nos mais diversos segmentos da socieda<strong>de</strong> civil organizada 19 .<br />

Além disso, o programa preten<strong>de</strong> auxiliar a construção <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong><br />

comunicação (institucional e externa) que contribuam para o fortalecimento<br />

das organizações e para o <strong>de</strong>senvolvimento econômico, social e cultural das<br />

comunida<strong>de</strong>s. A primeira fase <strong>de</strong> execução <strong>de</strong>sse programa compreen<strong>de</strong>u a<br />

realização <strong>de</strong> oficinas <strong>de</strong> sensibilização e capacitação, que traziam<br />

conteúdos visando a:<br />

D<strong>em</strong>ocratizar o acesso às informações e ao conhecimento<br />

sobre o direito humano à comunicação; mobilizar a socieda<strong>de</strong><br />

civil para a exigibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse direito; contribuir para a<br />

presença e participação das diversida<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> forma<br />

quantitativa e qualitativa, na esfera pública da comunicação;<br />

fomentar e disponibilizar instrumentos para análise crítica da<br />

mídia <strong>em</strong> relação às violações <strong>de</strong> direitos humanos cometidas<br />

por esta; disponibilizar suporte teórico e técnico sobre<br />

assessoria <strong>de</strong> comunicação e para a produção <strong>de</strong> mídias<br />

radicais (teatro <strong>de</strong> rua, fanzines, jornais murais, mobilizações<br />

<strong>de</strong> rua, conteúdos para rádio, TV, internet etc); capacitar<br />

para a fala pública; sensibilizar para a valorização da<br />

comunicação no processo <strong>de</strong> fortalecimento das organizações<br />

da socieda<strong>de</strong> civil; difundir a importância da construção <strong>de</strong><br />

uma política <strong>de</strong> comunicação para as organizações da<br />

socieda<strong>de</strong> civil; articular uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> agentes <strong>de</strong><br />

comunicação da socieda<strong>de</strong> civil comprometidos com a luta<br />

pelo reconhecimento e efetivação do direito humano à<br />

comunicação; e disponibilizar com a gran<strong>de</strong> mídia e<br />

socieda<strong>de</strong> civil um guia <strong>de</strong> fontes dos Agentes <strong>de</strong><br />

Comunicação da Socieda<strong>de</strong> Civil. (SINOS, 2005)<br />

18 A Sinos é uma associação da socieda<strong>de</strong> civil, <strong>de</strong> direito privado, s<strong>em</strong> fins lucrativos, constituída <strong>em</strong> maio <strong>de</strong> 2002,<br />

que t<strong>em</strong> como missão contribuir para o reconhecimento e a efetivação do direito humano à comunicação, enten<strong>de</strong>ndo<br />

este como um direito universal, inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e indivisível dos d<strong>em</strong>ais direitos humanos, imprescindíveis para a<br />

radicalização d<strong>em</strong>ocrática da socieda<strong>de</strong>.<br />

19 Organizações não-governamentais e movimentos <strong>de</strong> luta social.<br />

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O público beneficiado, 116 agentes, integrava organizações da<br />

socieda<strong>de</strong> civil e movimentos sociais que realizavam experiências <strong>em</strong> <strong>de</strong>fesa<br />

dos direitos humanos no macro e micro universo das comunida<strong>de</strong>s pobres<br />

da cida<strong>de</strong> do Recife e do Interior <strong>de</strong> Pernambuco, cuja realida<strong>de</strong> é marcada<br />

pelas diferentes formas <strong>de</strong> violência e, <strong>em</strong> especial, pela criminalida<strong>de</strong><br />

envolvendo o segmento jov<strong>em</strong> da população. Essas localida<strong>de</strong>s são os<br />

principais alvos dos programas policiais locais, que sist<strong>em</strong>aticamente violam<br />

os direitos humanos na televisão e no rádio. As turmas eram formadas por<br />

pessoas <strong>de</strong> ambos os sexos, adolescentes, jovens e adultos.<br />

Entre os conteúdos trabalhados estavam a análise crítica da mídia<br />

(tratamento dado pela mídia às organizações da socieda<strong>de</strong> civil e às<br />

t<strong>em</strong>áticas sociais; ética nos veículos <strong>de</strong> comunicação; a violação dos direitos<br />

humanos por parte da mídia; a inserção das t<strong>em</strong>áticas sociais nos veículos<br />

<strong>de</strong> comunicação; e sensibilização para os conteúdos sociais); a realida<strong>de</strong><br />

das redações dos jornais e telejornais (o perfil <strong>de</strong> cada ca<strong>de</strong>rno dos jornais<br />

impressos, cada editoria; releases e sugestões <strong>de</strong> pautas; o funcionamento<br />

<strong>de</strong> uma redação); o direito humano à comunicação e seus conceitos básicos<br />

(comunicação e os direitos humanos; d<strong>em</strong>ocratização da comunicação;<br />

liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão e liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa; instrumentos <strong>de</strong> controle<br />

social da mídia; e a comunicação como campo <strong>de</strong> ação política); as<br />

estratégias da assessoria <strong>de</strong> comunicação (telefon<strong>em</strong>a/envio <strong>de</strong> pautas/as<br />

notinhas nas colunas; como fazer um release diferenciado; as visitas às<br />

redações; a importância do clipping; como construir uma política <strong>de</strong><br />

comunicação institucional); mídia radical (apresentação <strong>de</strong> experiências <strong>de</strong><br />

mídia radical e como produzir mídias); autonomia para a fala pública <strong>em</strong><br />

cada veículo; e midiatraining.<br />

A metodologia baseava-se na socialização <strong>de</strong> conteúdos teóricopráticos;<br />

trabalhos <strong>em</strong> grupo para análise <strong>de</strong> produtos midiáticos;<br />

exercícios; <strong>de</strong>bates; produção <strong>de</strong> conteúdos; confecção <strong>de</strong> sugestões <strong>de</strong><br />

pauta e releases (tv, rádio, jornal, internet); relatos <strong>de</strong> experiências,<br />

artigos, fanzines, programas <strong>de</strong> rádio, esquetes para tv, e teatro <strong>de</strong> rua;<br />

entrega <strong>de</strong> um paper (mínimo <strong>de</strong> cinco laudas), abordando questões<br />

relacionadas ao direito humano à comunicação, no que se refere ao<br />

contexto da organização/comunida<strong>de</strong> a que pertence; palestra com<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

convidados; e visitação a veículos <strong>de</strong> comunicação tradicionais e<br />

comunitários.<br />

A segunda fase do programa, <strong>em</strong> 2007, visa a fortalecer a Re<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

Agentes <strong>de</strong> Comunicação da Socieda<strong>de</strong> Civil 20 , dar continuida<strong>de</strong> à formação<br />

dos agentes, com a realização <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> comunicação, com 150<br />

horas, para trinta integrantes da Re<strong>de</strong>, com foco no direito humano à<br />

comunicação, política <strong>de</strong> comunicação institucional, comunicação e<br />

advocacy, assessoria <strong>de</strong> comunicação e mobilização <strong>de</strong> recursos por meio<br />

da comunicação. Preten<strong>de</strong> também fomentar a produção e o intercâmbio <strong>de</strong><br />

conhecimentos e informações sobre o direito humano à comunicação,<br />

através <strong>de</strong> uma Agência <strong>de</strong> Notícias experimental; mobilizar a socieda<strong>de</strong><br />

civil, <strong>em</strong>presas privadas e o Estado, por uma Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agentes, para o<br />

reconhecimento e exigibilida<strong>de</strong> do direito humano à comunicação. Visa a<br />

oferecer, ainda, suporte teórico para os agentes, por meio <strong>de</strong> um centro <strong>de</strong><br />

documentação na Sinos, e contribuir para a elaboração, pelos trinta agentes<br />

do curso, <strong>de</strong> projetos voltados para a impl<strong>em</strong>entação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong><br />

comunicação e <strong>de</strong> mobilização <strong>de</strong> recursos nas suas organizações e<br />

movimentos sociais.<br />

Espera-se, com a finalização do projeto, <strong>em</strong> 2008, um maior<br />

conhecimento sobre o direito humano à comunicação pelos agentes; a Re<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> Agentes fortalecida e preparada para dar continuida<strong>de</strong> às suas ações,<br />

b<strong>em</strong> como articulada com outros movimentos <strong>de</strong> luta pelo direito humano à<br />

comunicação; o funcionamento da primeira Agência <strong>de</strong> Notícias do direito<br />

humano à comunicação, totalmente gerenciada pelos trinta agentes<br />

formados, mas aberta aos integrantes da socieda<strong>de</strong> civil organizada.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que o trabalho <strong>de</strong>senvolvido com os agentes <strong>de</strong><br />

comunicação foi e é construído a partir <strong>de</strong> uma prerrogativa <strong>de</strong> valorização<br />

do qualitativo e não do quantitativo. Explica-se. O principal indicador <strong>de</strong><br />

resultados constitui-se na comprovação da habilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> todas as pessoas<br />

envolvidas, como potenciais sujeitos da comunicação. Ou seja, aptos a<br />

produzir, difundir e socializar informações e conhecimento com ou para<br />

20 No intervalo entre a primeira e a segunda parte do programa, iniciou-se a formação <strong>de</strong> uma Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agentes <strong>de</strong><br />

comunicação. As dificulda<strong>de</strong>s encontradas para a efetiva articulação da re<strong>de</strong> foi um dos indicadores da necessida<strong>de</strong><br />

<strong>de</strong> continuar com a formação dos agentes, agora <strong>em</strong> 2007, <strong>de</strong> uma forma mais aprofundada e com apenas trinta<br />

pessoas do universo inicial <strong>de</strong> 116. O objetivo é <strong>de</strong> que esses trinta agentes <strong>de</strong> comunicação retom<strong>em</strong> a articulação da<br />

re<strong>de</strong>.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

além da mídia tradicional, fomentando a efetivação <strong>de</strong> um novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

comunicação, a partir <strong>de</strong> uma perspectiva dialética <strong>de</strong> relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.<br />

Na verda<strong>de</strong>, não existe consenso n<strong>em</strong> estão encerrados os<br />

<strong>de</strong>bates quanto à questão da participação popular na<br />

comunicação. Alguns argumentam que ela é inviável <strong>de</strong>vido<br />

às características dos próprios meios, sendo difícil, por<br />

ex<strong>em</strong>plo, <strong>em</strong>penhar todo um grupo social na produção <strong>de</strong> um<br />

jornal. Para nós, é evi<strong>de</strong>nte que isso seria improdutivo!<br />

Contudo, não se po<strong>de</strong> prescindir <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong><br />

representativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> metodologias apropriadas para sua<br />

efetivação. [...] achamos certo que nenhuma socieda<strong>de</strong><br />

sobrevive e se organiza s<strong>em</strong> estruturas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A questão<br />

não é acabar com ele, mas, pela participação, d<strong>em</strong>ocratizálo.(PERUZZO,<br />

1998, p. 147)<br />

5. Consi<strong>de</strong>rações Finais<br />

O importante <strong>de</strong>ste trabalho foi evi<strong>de</strong>nciar que a experiência dos<br />

agentes <strong>de</strong> comunicação é uma fissura narrativa e a real possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

caminho à efetivação do direito humano à comunicação, portanto, <strong>de</strong><br />

d<strong>em</strong>ocratização do po<strong>de</strong>r, nas suas mais amplas inserções: social,<br />

econômica, política, cultural e i<strong>de</strong>ológica. De igual maneira, foi relevante<br />

dialogar sobre a forma mais construtiva <strong>de</strong> analisar o po<strong>de</strong>r, questionando,<br />

portanto, a idéia <strong>de</strong> que as mudanças sociais só acontec<strong>em</strong> <strong>de</strong> forma<br />

totalizadora, a partir das macro revoluções.<br />

A dinâmica das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, por si só um fazer histórico, nãolinear,<br />

com imbricações entre o local e global, <strong>de</strong>termina e condiciona uma<br />

diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos e espaços. Embora s<strong>em</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar os inúmeros<br />

pontos <strong>de</strong> confluência, as d<strong>em</strong>andas <strong>de</strong> informação e comunicação<br />

assum<strong>em</strong> distintas matizes no âmbito internacional, entre os países, e<br />

nacional, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>les. Daí também ser rechaçado o discurso totalizador <strong>de</strong><br />

um só mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> globalização: o neoliberal. Justamente pela insurreição da<br />

exaustão da diferença, por meio das fissuras narrativas. A universalida<strong>de</strong><br />

dos discursos avança até o limite da alterida<strong>de</strong>, quando o outro passa a ter<br />

voz.<br />

É fato que não é possível fazer uma avaliação simplista da força e<br />

po<strong>de</strong>r das indústrias das mídias, dos oligopólios <strong>de</strong> comunicação, dos<br />

gran<strong>de</strong>s conglomerados econômicos. Por outro lado, é importante chamar a<br />

atenção para as mudanças <strong>em</strong> curso na socieda<strong>de</strong>, buscando garantir a<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

participação das pessoas, com suas diversida<strong>de</strong>s, como produtoras e<br />

difusoras <strong>de</strong> conhecimento e informação, enquanto sujeitos políticos, como<br />

também disponibilizando instrumentos teóricos e práticos para a produção<br />

<strong>de</strong> novas mídias.<br />

As fissuras narrativas – a ex<strong>em</strong>plo dos agentes <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong><br />

Pernambuco – lançam luz sobre um paradigma <strong>de</strong> comunicação dialético e<br />

dialógico, agregador das dimensões humanista e instrumental. Acima <strong>de</strong><br />

tudo, revelam que é possível <strong>de</strong>senvolver políticas <strong>de</strong> comunicação visando<br />

a transformações profundas na socieda<strong>de</strong>, reconhecendo a comunicação<br />

como el<strong>em</strong>ento essencial da construção <strong>de</strong> novas utopias.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as conseqüências humanas. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Jorge Zahar, 1999.<br />

BECK, Ulrick. Qué es la Globalización? Falacias <strong>de</strong>l globalismo,<br />

respuestas a la globalización. Barcelona: Paidós, 1998.<br />

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17. ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e<br />

Terra, 1987.<br />

FOUCAUT, Michel. Em Defesa da Socieda<strong>de</strong>. São Paulo: Martins Fontes,<br />

1999.<br />

GOMES, Raimunda Aline Lucena. A comunicação como direito humano:<br />

um conceito <strong>em</strong> construção. Recife, 2007. Dissertação (Mestrado <strong>em</strong><br />

Comunicação). Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação <strong>em</strong> Comunicação, <strong>Universida<strong>de</strong></strong><br />

<strong>Fe<strong>de</strong>ral</strong> <strong>de</strong> Pernambuco.<br />

MATTELART, Armand. A globalização da comunicação. 2 ed. São Paulo:<br />

EDUSC, 2002.<br />

MATTELART, Armand; MATTELART, Michele. História das teorias da<br />

comunicação. 8. Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.<br />

MOREIRAS, Alberto. A globalida<strong>de</strong> negativa e o regionalismo crítico. In:<br />

MOREIRAS, Alberto. A exaustão da diferença: A política dos Estudos<br />

Culturais latino-americanos. Belo Horizonte: UFMG, 2001.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

MORAES, Denis. A tirania do fugaz: mercantilização cultural e saturação<br />

midiática. In: MORAES, Dênis (Org). Socieda<strong>de</strong> Midiatizada. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Mauad, 2006.<br />

PERUZZO,Cicília M. K. Comunicação nos movimentos populares: a<br />

participação na construção da cidadania. Petrópolis: Vozes, 1998.<br />

SINOS, Organização para o Desenvolvimento da Comunicação Social.<br />

Formação <strong>de</strong> Agentes <strong>de</strong> Comunicação da Socieda<strong>de</strong> Civil. Recife,<br />

2005. (Projeto Social)<br />

SINOS, Organização para o Desenvolvimento da Comunicação Social.<br />

Fortalecendo a Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Agentes <strong>de</strong> Comunicação da Socieda<strong>de</strong><br />

Civil. Recife, 2007. (Projeto Social)<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO TEMPO:<br />

1995 E A LEITURA DO JORNAL DO COMMERCIO<br />

SOBRE O ATENTADO A BOMBA NO AEROPORTO DOS GUARARAPES<br />

Francisco Sá Barreto 21<br />

Introdução<br />

Em 25 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1966, uma bomba explodiu no Aeroporto dos<br />

Guararapes, <strong>em</strong> Recife. Os jornais pernambucanos <strong>em</strong> circulação naquela<br />

época – Jornal do Commercio e Diario <strong>de</strong> Pernambuco – cobriram o evento<br />

com perplexida<strong>de</strong> e raiva teoricamente incomuns na construção da notícia.<br />

A passag<strong>em</strong> ficaria conhecida como “O atentado da bomba do Aeroporto”.<br />

Quase dois anos e meio <strong>de</strong>pois, <strong>em</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro <strong>de</strong> 1968, dois jovens<br />

engenheiros foram apresentados pela polícia como responsáveis pelo<br />

planejamento e execução daquele atentado. Os jornais consolidaram a<br />

versão policial como uma verda<strong>de</strong> – erguida sobre uma socieda<strong>de</strong> já<br />

violentada pelo regime militar –, que edificou um perfil público perturbador<br />

para os dois acusados. Em 1995, uma série <strong>de</strong> reportagens organizada pelo<br />

Jornal do Commercio propôs novas leituras para o evento, substituindo os<br />

nomes dos dois jovens engenheiros pelo grupo chefiado pelo ex-padre Alípio<br />

<strong>de</strong> Freitas.<br />

Neste trabalho, analisamos a articulação existente entre a publicação<br />

da série jornalística <strong>em</strong> 1995 e a construção social das expectativas <strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> durante aquele período.<br />

1. O t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> datas<br />

Os últimos cinco séculos expressam a construção <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong><br />

or<strong>de</strong>namento t<strong>em</strong>poral pensado a partir <strong>de</strong> seqüências-mo<strong>de</strong>lo que, por sua<br />

vez, são estruturadas <strong>em</strong> um conjunto <strong>de</strong> causas e efeitos para um<br />

<strong>de</strong>terminado evento. Esse mo<strong>de</strong>lo – que parece ser concretizado com o que<br />

chamamos tradicionalmente <strong>de</strong> Ida<strong>de</strong> Cont<strong>em</strong>porânea – é a marca do<br />

<strong>de</strong>sejo humano <strong>de</strong> construir conexões para as múltiplas leituras sobre o<br />

t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> todo o planeta. A construção <strong>de</strong> uma t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> planetária<br />

21 Historiador e Mestre <strong>em</strong> Comunicação pela <strong>UFPE</strong>.<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

<strong>de</strong>veria confirmar – como já <strong>de</strong>sejavam os calendários, as festas, e a<br />

edificação <strong>de</strong> um mundo cotidiano pensado a partir do binômio dia/noite –<br />

um sujeito capaz <strong>de</strong> operacionalizar as experiências do cotidiano, <strong>de</strong><br />

construir funções mecânicas para a socieda<strong>de</strong>.<br />

Parece muito simples compreen<strong>de</strong>r que essa mesma humanida<strong>de</strong> é o<br />

sujeito da Revolução Industrial. Naquele mundo, o relógio das gran<strong>de</strong>s<br />

catedrais, resquícios ainda da socieda<strong>de</strong> medieval, <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> “marcar” o<br />

t<strong>em</strong>po do centro das gran<strong>de</strong>s metrópoles; não faria isso, somente. Marcaria<br />

a vida no pulso dos homens. Estes, por sua vez, transformaram o dia-a-dia<br />

numa marcha que acompanha os segundos, os minutos e as horas do dia,<br />

or<strong>de</strong>nando causas e efeitos, pensando nos acontecimentos como eventos<br />

fatais, medidos <strong>de</strong> acordo com o impacto causado <strong>em</strong> uma <strong>de</strong>terminada<br />

socieda<strong>de</strong> e, a partir disso, consi<strong>de</strong>rados ou não m<strong>em</strong>oráveis. O sujeito<br />

humano que planejara se fazer centro do mundo que percebia <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> leitura das questões sociais baseado no acaso,<br />

parecia concentrar essa capacida<strong>de</strong> naqueles poucos homens capazes <strong>de</strong><br />

comandar as seqüências, como observamos no trecho abaixo:<br />

Foi certamente Carlos IX, rei da França, qu<strong>em</strong> <strong>de</strong>cidiu, <strong>em</strong> 1563,<br />

após alguma discussão, impor uma única data – ou seja, o dia 1º<br />

<strong>de</strong> janeiro – para o começo do ano. O edito entrou <strong>em</strong> vigor <strong>em</strong><br />

1566 e rompeu com uma tradição mais ou menos oficial, que<br />

associava o começo do ano com a festa da Páscoa. O ano <strong>de</strong> 1566,<br />

que começou <strong>em</strong> 14 <strong>de</strong> abril e terminou <strong>em</strong> 31 <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro, teve<br />

apenas 8 meses e 17 dias (ELIAS, 1998, p.46).<br />

Por mais que o 1º <strong>de</strong> janeiro nos pareça natural, é também uma<br />

construção da socieda<strong>de</strong> – neste caso, concentrada na figura do rei da<br />

França, Carlos IX. Os meses <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro, outubro, nov<strong>em</strong>bro e <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

que, antes <strong>de</strong> 1566, representavam, respectivamente, o sétimo, oitavo,<br />

nono e décimo meses do ano, per<strong>de</strong>ram, completamente, a relação com<br />

seus nomes, mas funcionam, <strong>em</strong> nossos dias, como períodos naturais <strong>de</strong><br />

um ano que consi<strong>de</strong>ramos ainda mais irreversível.<br />

O funcionamento das estações <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>s diferentes, mesmo<br />

orientadas por mo<strong>de</strong>los t<strong>em</strong>porais similares, também <strong>de</strong>nota o caráter<br />

simbólico do t<strong>em</strong>po. Assim, verão e inverno alternam leituras dos múltiplos<br />

grupos sociais no mundo sobre os meses que representam cada uma das<br />

estações que, aliás, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre são quatro. Orientamos, <strong>de</strong>ssa maneira, a<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

nossa vida, individual e coletiva, a partir <strong>de</strong> padrões que são, também,<br />

produtos <strong>de</strong> expectativas sociais.<br />

... o papa Gregório XIII resolveu proce<strong>de</strong>r a uma revisão do<br />

calendário juliano, porque, no <strong>de</strong>correr dos séculos, o equinócio da<br />

primavera, do qual, no ano <strong>de</strong> 325, o concílio <strong>de</strong> Nicéia fizera<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r a festa <strong>de</strong> Páscoa, havia-se <strong>de</strong>slocado paulatinamente <strong>de</strong><br />

21 para 11 <strong>de</strong> março. Uma bula papal suprimiu <strong>de</strong>z dias do ano <strong>de</strong><br />

1552, <strong>de</strong>cidindo que o dia seguinte a 4 <strong>de</strong> outubro seria 15 <strong>de</strong><br />

outubro, e não 5 (ELIAS, 1998, p.47).<br />

Por mais que nos pareça curiosa a supressão <strong>de</strong> <strong>de</strong>z dias <strong>de</strong> um ano<br />

<strong>em</strong> nome <strong>de</strong> um ajuste do calendário <strong>em</strong> relação a um evento natural, não<br />

foi simplesmente o inusitado que chamou a atenção da população naqueles<br />

dias. As pessoas po<strong>de</strong>riam sentir que suas vidas estavam sendo lesadas <strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>z dias, ou seja, que viveriam um pouco mais <strong>de</strong> uma s<strong>em</strong>ana a menos<br />

<strong>de</strong>vido a uma <strong>de</strong>cisão arbitrária do papa. Tinham suas leituras tão ajustadas<br />

ao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> funcionamento do t<strong>em</strong>po naquela socieda<strong>de</strong>, que entendiam<br />

suas vidas a partir da repetição <strong>de</strong> dias e noites.<br />

... <strong>em</strong> 1752, quando o governo britânico <strong>de</strong>cidiu alterar o<br />

calendário <strong>de</strong> modo a fazê-lo coincidir com o que fora previamente<br />

adotado pela maioria dos outros países da Europa Oci<strong>de</strong>ntal, e<br />

<strong>de</strong>cretou que o dia seguinte a 2 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro <strong>de</strong>veria ser registrado<br />

como 14 <strong>de</strong> set<strong>em</strong>bro, muita gente pensou que, com isso, suas<br />

vidas estavam sendo encurtadas. Alguns trabalhadores,<br />

acreditando <strong>de</strong> fato que per<strong>de</strong>riam o pagamento referente a 11<br />

dias, amotinaram-se, clamando: “Devolvam nossos 11 dias!”<br />

(WHITROW, 1993, p.15).<br />

Parec<strong>em</strong>os não fazer muito diferente disso. As festas <strong>de</strong> aniversário ou<br />

as brinca<strong>de</strong>iras com o ganho/perda <strong>de</strong> horas com fusos e horários <strong>de</strong> verão,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente chamam atenção, <strong>em</strong> nossos dias, para a íntima relação<br />

que estabelec<strong>em</strong>os com o mo<strong>de</strong>lo mecânico <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po que rege a nossa<br />

socieda<strong>de</strong>. Deixamos <strong>de</strong> lado, quase s<strong>em</strong>pre, a idéia <strong>de</strong> que são<br />

sobrepostas a esse funcionamento mecânico do nosso t<strong>em</strong>po expectativas<br />

<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> – que, marcada pela <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, expressa uma<br />

disputa.<br />

O gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento técnico do hom<strong>em</strong> nos últimos duzentos<br />

anos marca intensamente a construção <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po ainda mais veloz,<br />

pautado nos gran<strong>de</strong>s inventos e na fantástica visão do que se chamou <strong>de</strong><br />

al<strong>de</strong>ia global: um mundo inteiro conectado não somente por fios <strong>de</strong><br />

telefone, fibras óticas, aviões supersônicos ou trens-bala, mas por um<br />

projeto <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po violentamente único. Em outras palavras, o sujeito<br />

humano, ao final do século XX, parece ter chegado à conclusão <strong>de</strong> que<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

conhece completamente o seu t<strong>em</strong>po e, portanto, já que compreen<strong>de</strong> o<br />

passado enquanto uma construção do presente, domina a História. Essa<br />

seria simplesmente uma linha que narra as experiências <strong>de</strong> todos.<br />

As socieda<strong>de</strong>s, entretanto, não são somente produtos <strong>de</strong> seus avanços<br />

técnicos, das mentes inspiradas <strong>de</strong> seus gran<strong>de</strong>s inventores. Todos esses<br />

sujeitos faz<strong>em</strong> parte <strong>de</strong> expectativas construídas socialmente. Assim, só é<br />

possível inventar aquilo com que uma socieda<strong>de</strong> já é capaz <strong>de</strong> sonhar.<br />

Nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a<br />

imaginação quanto a ferrovia, como test<strong>em</strong>unha o fato <strong>de</strong> ter sido<br />

o único produto da industrialização do século XIX totalmente<br />

absorvido pela imagística da poesia erudita e popular (HOBSBAWM,<br />

1977, p.61).<br />

O espanto que a ferrovia po<strong>de</strong> ter causado naquelas socieda<strong>de</strong>s não se<br />

funda na magnitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua construção, na quilometrag<strong>em</strong> dos trilhos ou na<br />

velocida<strong>de</strong> – comparada aos trens <strong>de</strong> hoje, b<strong>em</strong> pequena – <strong>de</strong> suas<br />

locomotivas, mas enquanto materialização do novo. Se nos apresentávamos<br />

um mundo renovado, a ferrovia, enquanto meio <strong>de</strong> transporte que encurta<br />

medidas tidas como irreversíveis, seria a representação material <strong>de</strong> uma<br />

expectativa <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po; confirmaria a velocida<strong>de</strong> dos relógios e uma única<br />

ord<strong>em</strong> <strong>de</strong> t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> para a socieda<strong>de</strong> industrial.<br />

A estrada <strong>de</strong> ferro, arrastando sua enorme serpente <strong>em</strong>plumada <strong>de</strong><br />

fumaça, à velocida<strong>de</strong> do vento, através <strong>de</strong> países e continentes,<br />

com suas obras <strong>de</strong> engenharia, estações e pontes formando um<br />

conjunto <strong>de</strong> construções que fazia as pirâmi<strong>de</strong>s do Egito e os<br />

aquedutos romanos e até mesmo a Gran<strong>de</strong> Muralha da China<br />

<strong>em</strong>pali<strong>de</strong>cer<strong>em</strong> <strong>de</strong> provincianismo, era o próprio símbolo do triunfo<br />

do hom<strong>em</strong> pela tecnologia (HOBSBAWM, 1977, p.61).<br />

O próprio historiador inglês parece suficient<strong>em</strong>ente entorpecido pelo<br />

fascínio das ferrovias. Assim, reflete muito pouco sobre um sujeito também<br />

renovado que t<strong>em</strong> no <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico a concretização <strong>de</strong> uma<br />

expectativa <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po. “Os <strong>de</strong>uses e os reis do passado eram impotentes<br />

diante dos homens <strong>de</strong> negócio e das máquinas a vapor do presente”<br />

(HOBSBAWM, 1977, p.69), não por ter<strong>em</strong> seu t<strong>em</strong>po encerrado,<br />

simplesmente, e, por isso, substituídos por um hom<strong>em</strong> supostamente ainda<br />

melhor e mais forte – o hom<strong>em</strong> do presente –, mas por fazer<strong>em</strong> parte <strong>de</strong><br />

outra seqüência-mo<strong>de</strong>lo, uma experiência <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po pautada <strong>em</strong><br />

expectativas diferentes <strong>de</strong>sse sujeito <strong>de</strong> negócios. A construção <strong>de</strong> novas<br />

expectativas <strong>de</strong> t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> no Brasil, a partir do final do regime militar<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

até o ano <strong>de</strong> 1995, é o objeto <strong>de</strong> nossa análise da segunda parte <strong>de</strong>ste<br />

trabalho.<br />

2. A Guerra Fria, a “abertura” d<strong>em</strong>ocrática e a reforma do t<strong>em</strong>po<br />

... as idéias <strong>de</strong> ser breve e ser d<strong>em</strong>orado eram vividas <strong>de</strong> maneira<br />

específica, no contexto existencial daquelas pessoas. Porque cada<br />

grupo social, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> cada momento histórico e <strong>em</strong>ocional,<br />

possui uma vivência com o t<strong>em</strong>po. Compartilhar do universo <strong>de</strong><br />

cada um <strong>de</strong>sses grupos é também compartilhar <strong>de</strong> seu T<strong>em</strong>po<br />

(DUARTE, 2000, p.43).<br />

O ano <strong>de</strong> 1995 não <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>stacado neste trabalho como a<br />

retomada do caso do atentado a bomba no aeroporto dos Guararapes quase<br />

trinta anos antes. Po<strong>de</strong>ríamos dizer que, <strong>de</strong>pois do afastamento <strong>de</strong> quase<br />

três décadas, seria possível construir uma análise mais equilibrada e sólida<br />

sobre tal passag<strong>em</strong>, mas não é isso que nos faz <strong>de</strong>stacar a série <strong>de</strong><br />

reportagens do Jornal do Commercio que se iniciava <strong>em</strong> 23 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />

1995.<br />

A socieda<strong>de</strong> fala seu t<strong>em</strong>po. O surgimento <strong>de</strong> uma versão nova para<br />

um fato marcante da história recente da cida<strong>de</strong> do Recife é marca <strong>de</strong> um<br />

<strong>de</strong>sejo renovado, ansieda<strong>de</strong>s que, nesse caso, se resolv<strong>em</strong> no aparecimento<br />

<strong>de</strong> nomes novos para a organização e realização do atentado e que,<br />

necessariamente, se projetam para um futuro melhor que o sufocante<br />

passado do regime militar e que o <strong>de</strong>sconfiado presente da década <strong>de</strong> 1990<br />

no Brasil.<br />

Em 1988, o país ganhara uma nova Constituição. Esse fato daria mais<br />

consistência ao projeto d<strong>em</strong>ocrático que nunca se afastara das imagens e<br />

vozes urbanas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1960. A rejeição da <strong>em</strong>enda das “Diretas<br />

Já” tinha <strong>de</strong>cepcionado a população, mas representaria o capítulo final da<br />

chamada abertura “lenta, gradual e segura” do regime militar brasileiro. Um<br />

presi<strong>de</strong>nte civil, escolhido indiretamente – Tancredo Neves, substituído por<br />

José Sarney –, seria o responsável pela recondução do País às mãos <strong>de</strong> um<br />

chefe <strong>de</strong> Estado escolhido pelo voto direto e universal. Para isso, a<br />

Ass<strong>em</strong>bléia Constituinte elaborou, contando, inclusive, com a participação<br />

direta da população, o livro <strong>de</strong> leis que <strong>de</strong>veria ser o produto final do <strong>de</strong>sejo<br />

brasileiro da red<strong>em</strong>ocratização.<br />

O Brasil que foi às urnas <strong>em</strong> 1989 representava, necessariamente, o<br />

<strong>de</strong>safio da reunião <strong>de</strong>, pelo menos, dois países vivendo <strong>em</strong> t<strong>em</strong>pos<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

distintos: um, oficial; o outro, proibido, secreto, sonhador. Fernando Collor<br />

<strong>de</strong> Melo, do pequeno PRN, foi eleito presi<strong>de</strong>nte, no segundo turno,<br />

vencendo o socialista Luiz Inácio Lula da Silva <strong>em</strong> um pleito que contara<br />

com mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>z candidatos.<br />

Lula era o representante da macronarrativa marxista, ligado aos<br />

movimentos sociais silenciados pelo regime ao longo <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po muito<br />

mais que cronológico. Collor era um <strong>de</strong>sconhecido ex-governador <strong>de</strong><br />

Alagoas, auto-apresentado midiaticamente como “o Caçador <strong>de</strong> Marajás”.<br />

Com o final da Segunda Guerra Mundial, observaríamos fenômenos<br />

interessantes. Mesmo concentrada na Europa, a guerra tinha ganhado<br />

proporções mundiais por, pelo menos, duas razões: envolvia Estados-Nação<br />

<strong>de</strong> quase todos os continentes do globo – visto que batalhas se travaram<br />

<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os gelados campos soviéticos até os escaldantes <strong>de</strong>sertos africanos,<br />

passando pela Ásia japonesa e a América (no Havaí) –; e, além disso, era<br />

um conflito instantâneo, ou seja, uma guerra disputada <strong>em</strong> diversos lugares<br />

do globo, e lida, entendida, <strong>em</strong> sua totalida<strong>de</strong>, ao mesmo t<strong>em</strong>po.<br />

Ainda que, somente <strong>em</strong> 1991 – na Guerra do Golfo – as gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s<br />

<strong>de</strong> televisão tenham transmitido, ao vivo, as batalhas no Oriente Médio, a<br />

Segunda Guerra Mundial, <strong>em</strong> proporções b<strong>em</strong> maiores que a Primeira, foi<br />

uma guerra midiatizada. As mortes fotografadas e a <strong>de</strong>tonação das bombas<br />

atômicas <strong>em</strong> território japonês – mesmo após a Al<strong>em</strong>anha e a Itália ter<strong>em</strong><br />

sido completamente liquidadas pelos exércitos aliados –, transmitidas por<br />

uma televisão ainda pouco <strong>de</strong>senvolvida, transformaram um mundo inteiro<br />

<strong>em</strong> uma re<strong>de</strong> conectada pelo medo <strong>de</strong> uma nova guerra, <strong>de</strong>sta vez, nuclear.<br />

Os anos que seguiram àquele agosto <strong>de</strong> 1945 marcam o surgimento <strong>de</strong><br />

um novo tipo <strong>de</strong> conflito: a chamada Guerra Fria – uma disputa s<strong>em</strong> front<br />

entre dois mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> funcionamento para o mundo, o capitalista dos EUA e<br />

o socialista da então URSS. Sustentada pelo receio <strong>de</strong> um conflito com<br />

armas capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o mundo inteiro <strong>em</strong> pouco t<strong>em</strong>po, a Guerra Fria<br />

ativou ainda mais a idéia do medo, reforçado por um ambiente midiatizado.<br />

Soviéticos e americanos iniciaram uma corrida pela conquista do espaço,<br />

narrando para o mundo inteiro, através das imagens já coloridas <strong>de</strong><br />

televisões <strong>em</strong> gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s, formas e cores <strong>de</strong> um planeta até então só<br />

visto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro.<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Em 1989, mesmo ano da eleição <strong>de</strong> Collor <strong>de</strong> Melo no Brasil, confirmase<br />

(com a queda do muro <strong>de</strong> Berlim) a <strong>de</strong>sconstrução do Estado (s<strong>em</strong><br />

nação) mais forte do bloco socialista, orientando o mundo para um único<br />

pólo. Fica para trás o regime extr<strong>em</strong>amente rigoroso da União Soviética;<br />

sobrevive e ganha novo fôlego o capitalismo e a sedução da imag<strong>em</strong> e da<br />

velocida<strong>de</strong> dos avanços tecnológicos.<br />

Po<strong>de</strong>-se dizer que, <strong>de</strong>sse mundo sedutor, Collor é um dos produtos.<br />

Um candidato amplamente favorecido por uma campanha publicitária<br />

pautada na imag<strong>em</strong> da juventu<strong>de</strong>, virilida<strong>de</strong>, limpeza e novida<strong>de</strong>;<br />

campanha que se contrapôs ao discurso ligado à envelhecida proposta<br />

marxista para o mundo do candidato petista – que não usava terno, n<strong>em</strong><br />

cuidava da barba, além <strong>de</strong> enorme insistência dos grupos <strong>de</strong> mídia sobre<br />

seu analfabetismo.<br />

O <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> d<strong>em</strong>ocracia da socieda<strong>de</strong> brasileira se abateu com as<br />

<strong>de</strong>núncias <strong>de</strong> corrupção contra Collor <strong>de</strong> Melo, porém, foi às ruas, forjado<br />

pelas gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> notícia do País, <strong>em</strong> 1992, com os rostos<br />

estampando as cores da ban<strong>de</strong>ira brasileira – os “caras-pintadas” –, ocupar<br />

um espaço violentamente esvaziado nas três décadas anteriores. O Brasil<br />

liberal provocou a renúncia <strong>de</strong> seu presi<strong>de</strong>nte, fazendo chegar a tal cargo o<br />

também <strong>de</strong>sconhecido Itamar Franco, até então vice <strong>de</strong> Fernando Collor.<br />

O novo chefe <strong>de</strong> Estado, que logo se tornaria folclórico por seu topete e<br />

pela ressurreição do Fusca, nomeou, para o cargo <strong>de</strong> ministro da Fazenda, o<br />

benquisto sociólogo Fernando Henrique Cardoso. No dia 1º <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />

1994, o Brasil passa a ter uma nova moeda: o Real. Esta <strong>de</strong>veria ser<br />

responsável pelo equilíbrio <strong>de</strong> uma inflação galopante e pelo suposto<br />

esquecimento, supressão, <strong>de</strong> um País literalmente falido.<br />

A cida<strong>de</strong> dos <strong>de</strong>sejos <strong>em</strong> conflito, on<strong>de</strong> a ânsia do ser mo<strong>de</strong>rno era<br />

o catalisador das reformas, pegou <strong>de</strong>sprevenido a muitos que<br />

tiveram <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finir seus laços com o espaço, não s<strong>em</strong> antes<br />

manifestar<strong>em</strong> sua indignação com os governantes. Mas esse era o<br />

preço da mo<strong>de</strong>rnização s<strong>em</strong> a vivência da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> (DUARTE,<br />

2000, p.35).<br />

O esforço <strong>de</strong> Eduardo Duarte para nos narrar o projeto <strong>de</strong><br />

mo<strong>de</strong>rnização da cida<strong>de</strong> do Recife na década <strong>de</strong> 1920 nos é muito útil para<br />

pensar o Brasil <strong>em</strong> meados dos anos 1990. O nome da nova moeda não<br />

parece uma coincidência. O novo Brasil real a<strong>de</strong>riu ao projeto neoliberal,<br />

construindo uma longa agenda <strong>de</strong> privatizações e diminuição do papel do<br />

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Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

Estado nas obras sociais. Planejou fazer parte do grupo <strong>de</strong> países <strong>de</strong> um<br />

mundo <strong>de</strong>senvolvido, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado as reformas <strong>de</strong> base, como uma<br />

melhor distribuição da renda, por ex<strong>em</strong>plo, ou o combate à pobreza.<br />

Os veículos <strong>de</strong> mídia não ficaram fora<br />

<strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> reconstrução, <strong>em</strong> um<br />

primeiro momento, do Estado brasileiro e, <strong>em</strong><br />

um segundo, da nacionalida<strong>de</strong> - objetivo mais<br />

ousado do governo duplo <strong>de</strong> FHC que se<br />

iniciara a 1º <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1995,<br />

permanecendo até o último dia <strong>de</strong> <strong>de</strong>z<strong>em</strong>bro<br />

<strong>de</strong> 2002. O mundo <strong>de</strong> uma ord<strong>em</strong> só não<br />

po<strong>de</strong>ria mais ter na mídia um espaço <strong>de</strong><br />

disputas dos antigos blocos socialista e<br />

capitalista. O discurso da neutralida<strong>de</strong>, já<br />

freqüente nas ciências sociais ao longo dos<br />

séculos XIX e XX, se transforma no gran<strong>de</strong><br />

escudo dos jornais, revistas, <strong>em</strong>issoras <strong>de</strong><br />

rádio e re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> televisão.<br />

Figura 1 - Jornal do Commercio (25/07/1995)<br />

O simulacro da neutralida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> nosso<br />

t<strong>em</strong>po, exime boa parte das gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s,<br />

das gran<strong>de</strong>s fábricas <strong>de</strong> notícias, indústrias <strong>de</strong><br />

real, da autoria e parcialida<strong>de</strong> com tudo aquilo<br />

que faz<strong>em</strong> público, tornam visto, perceptível,<br />

realida<strong>de</strong>. Nomes e datas que surg<strong>em</strong> e<br />

<strong>de</strong>saparec<strong>em</strong> como as imagens <strong>de</strong> nosso<br />

t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>v<strong>em</strong> ser vinculados aos contextos<br />

das socieda<strong>de</strong>s às quais são apresentadas,<br />

s<strong>em</strong>, portanto, retirar das mesmas a<br />

competência <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> conhecimento<br />

sobre o que é reportado.<br />

Apoiados na ausência operacional <strong>de</strong> autores, a cobertura jornalística<br />

ganha aspectos <strong>de</strong> um supersujeito, capaz <strong>de</strong> narrar com precisão uma<br />

suposta verda<strong>de</strong> dos fatos. Estes seriam observados com cautela pelo olhar<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

mecânico do sujeito anônimo e onipresente <strong>em</strong> que se transformara o<br />

jornalista. Assim, freqüent<strong>em</strong>ente, nos <strong>de</strong>paramos com peças jornalísticas<br />

da época – e também <strong>em</strong> nossos dias – utilizando-se da névoa simbólica<br />

construída pelo discurso da neutralida<strong>de</strong> para apontar, a partir <strong>de</strong> imagens,<br />

sons, cores e vozes, nomes, corpos <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po que ainda sofre com a<br />

herança do regime militar.<br />

Séries jornalísticas – da qual a retomada do caso do atentado a bomba<br />

no Aeroporto dos Guararapes, <strong>em</strong> 1966, faz parte – sobre passagens do<br />

regime militar tornaram-se freqüentes, confirmando, ao mesmo t<strong>em</strong>po, o<br />

<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> um País cada vez mais livre daqueles anos <strong>de</strong> ditadura e um tom<br />

novo para o sentido <strong>de</strong> justiça dos jornais, agora supostamente neutros.<br />

Assim, os gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong> mídia ven<strong>de</strong>riam milhares <strong>de</strong> ex<strong>em</strong>plares<br />

estampando fotos <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nados públicos, culpados por crimes contra a<br />

nacionalida<strong>de</strong> – a corrupção, por ex<strong>em</strong>plo – e, no dia seguinte, corrigiria<br />

tudo o que fosse preciso. Não seria necessária a preocupação com o ônus<br />

da edição do dia anterior, pois a velocida<strong>de</strong> do novo t<strong>em</strong>po seria<br />

responsável por uma confusão <strong>de</strong> imagens cujos sentidos seriam<br />

organizados pelas indústrias <strong>de</strong> notícia.<br />

A reprodução mecânica do t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> nossos dias é, <strong>de</strong>ssa forma,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente, caracterizada por aberturas e encerramentos <strong>de</strong> t<strong>em</strong>pos<br />

que não se faz<strong>em</strong> <strong>em</strong> datas e nomes. O caso do atentado a bomba no<br />

aeroporto – <strong>de</strong>ntro do fenômeno “regime militar brasileiro” – é, <strong>em</strong> diversas<br />

perspectivas, um bom ex<strong>em</strong>plo disso. A construção <strong>de</strong> Edinaldo Miranda e<br />

Ricardo Zarattini enquanto terroristas, máxima reproduzida com freqüência<br />

pelos jornais recifenses na década <strong>de</strong> 60, edifica uma <strong>de</strong>ssas or<strong>de</strong>ns<br />

t<strong>em</strong>porais estruturadas a partir <strong>de</strong> uma operação, <strong>de</strong> uma seqüênciamo<strong>de</strong>lo.<br />

Esta faz ser compreensível a responsabilização dos dois jovens<br />

engenheiros pela explosão da bomba que vitimou duas pessoas e feriu<br />

algumas outras.<br />

Essa passag<strong>em</strong> é registrada como uma peça t<strong>em</strong>poral do regime<br />

militar que não po<strong>de</strong> ser questionada ou modificada (figura 1). A lei da<br />

anistia parece reforçar esse princípio, transformando aqueles pouco mais <strong>de</strong><br />

vinte anos <strong>em</strong> duas décadas mudas, presas <strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po supostamente<br />

esquecido, obliterado das m<strong>em</strong>órias coletivas. Para isso, construímos a idéia<br />

<strong>de</strong> que o presente é a marca <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po que impera sobre qualquer outro<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

recorte, expectativa t<strong>em</strong>poral, <strong>de</strong>sprezando o princípio <strong>de</strong> que <strong>de</strong>ntro do<br />

presente coexist<strong>em</strong> diferentes concepções, leituras, <strong>de</strong>sejos do agora.<br />

Assim, freqüent<strong>em</strong>ente, diz<strong>em</strong>os que<br />

... a experiência do t<strong>em</strong>po como um fluxo uniforme e contínuo só<br />

se tornou possível através do <strong>de</strong>senvolvimento social e da medição<br />

do t<strong>em</strong>po, pelo estabelecimento progressivo <strong>de</strong> uma gra<strong>de</strong><br />

relativamente b<strong>em</strong> integrada <strong>de</strong> reguladores t<strong>em</strong>porais, como<br />

relógios <strong>de</strong> movimento contínuo, a sucessão contínua dos<br />

calendários e as eras que enca<strong>de</strong>iam os séculos (ELIAS, 1998,<br />

p.36).<br />

Figura 2 - Jornal do Commercio (25/07/1995)<br />

3. A reconstrução midiática do atentado<br />

Não <strong>de</strong>v<strong>em</strong>os observar o <strong>de</strong>bate sobre o t<strong>em</strong>po, ocupando, por<br />

construirmos o presente, um lugar supostamente superior <strong>em</strong> relação aos<br />

povos da Antigüida<strong>de</strong> Oriental ou os brasileiros da década <strong>de</strong> 60, por<br />

ex<strong>em</strong>plo. É necessário reconhecer que a socieda<strong>de</strong> do presente se confun<strong>de</strong><br />

com o seu t<strong>em</strong>po e, portanto, faz refletir suas expectativas não somente<br />

para um futuro <strong>de</strong>sejado, mas também para um passado ainda <strong>em</strong> projeto.<br />

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Assim, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nt<strong>em</strong>ente das leis, dos acordos sociais construídos<br />

<strong>em</strong> um t<strong>em</strong>po, revisitamos e reconstruímos seqüências t<strong>em</strong>porais, or<strong>de</strong>ns<br />

sobre acontecimentos, l<strong>em</strong>branças e esquecimentos. Sobre uma lei <strong>de</strong><br />

anistia que, ao mesmo t<strong>em</strong>po, reconstrói um lugar para os presos políticos<br />

<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> e torna impunes os sujeitos, ainda s<strong>em</strong> nomes, do<br />

regime militar, existe uma expectativa renovada – marca também do<br />

esforço pela construção <strong>de</strong> uma d<strong>em</strong>ocracia, ainda que insatisfatória –<br />

sobre o t<strong>em</strong>po presente, o vivido e o <strong>em</strong> projeto (figura 2).<br />

Em 1995, o Jornal do Commercio recuperou a passag<strong>em</strong> do atentado a<br />

bomba no aeroporto <strong>de</strong> 29 anos antes. Essa iniciativa chama nossa atenção<br />

<strong>em</strong> duas perspectivas: <strong>em</strong> um primeiro momento, reconstrói, <strong>em</strong> uma<br />

seqüência diferente, um mo<strong>de</strong>lo t<strong>em</strong>poral – da história recente do Brasil –<br />

violentamente esquecido; <strong>de</strong>pois, ainda que para lançar uma nova versão<br />

para os fatos <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> duas décadas antes, vincula ao atentado,<br />

novamente, mesmo eximindo-os <strong>de</strong> culpa, os nomes <strong>de</strong> Edinaldo Miranda e<br />

Ricardo Zarattini.<br />

Aqueles dias da série <strong>de</strong> reportagens do Jornal do Commercio<br />

marcavam o primeiro ano do governo do sociólogo-presi<strong>de</strong>nte Fernando<br />

Henrique Cardoso. O regime d<strong>em</strong>ocrático parecia substituir <strong>de</strong>finitivamente<br />

a <strong>de</strong>sagradável experiência da ditadura militar das duas décadas anteriores.<br />

Ainda que repleto <strong>de</strong>ssas seqüelas – oligarquias que se mantiveram vivas<br />

pelo País inteiro – o novo regime servia para que os brasileiros pensass<strong>em</strong><br />

sobre sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construção da instituição Brasil.<br />

Os pouco mais <strong>de</strong> vinte anos <strong>de</strong> governos militares no País se<br />

efetivam, por um lado, como um t<strong>em</strong>po violento d<strong>em</strong>ais para ser<br />

reconstruído ou, por outro lado, <strong>em</strong> mote, t<strong>em</strong>a central para os estudos,<br />

documentários, séries jornalísticas, programas televisivos que recuperariam<br />

passagens da ditadura, das mais variadas maneiras, para dizer coisas novas<br />

sobre um t<strong>em</strong>po reconhecido enquanto já muito velho.<br />

Se uma pesquisa tradicional <strong>em</strong> ciências sociais exige o afastamento<br />

t<strong>em</strong>poral medido pela seqüência <strong>de</strong> anos, décadas entre o sujeito<br />

investigador e o objeto, o regime militar foi, então, precoc<strong>em</strong>ente<br />

envelhecido para que servisse aos mais diversos estudos <strong>em</strong> História,<br />

Sociologia, Antropologia e Comunicação Social, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

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No caso específico da série <strong>de</strong> reportagens do Jornal do Commercio,<br />

iniciada <strong>em</strong> 23 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1995, é publicada uma versão nova para o<br />

atentado <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1966, construindo perfis públicos diferentes para<br />

sujeitos até então <strong>de</strong>sconhecidos,<br />

Figura 3 - Jornal do Commercio (26/07/1995 - parte I)<br />

b<strong>em</strong> como para aqueles que ficaram conhecidos como terroristas dos<br />

Guararapes, Edinaldo e Zarattini. O JC lançaria naqueles dias o nome <strong>de</strong><br />

Alípio <strong>de</strong> Freitas, ex-padre católico, como suposto responsável pelo<br />

planejamento e execução do atentado a bomba no aeroporto.<br />

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Freitas tinha estudado técnicas <strong>de</strong> guerrilha <strong>em</strong> Cuba e participado da<br />

construção Figura 4 - Jornal do Commercio (26/07/1995 - parte II) <strong>de</strong> um centro <strong>de</strong><br />

treinamento com explosivos <strong>em</strong> Salvador, Bahia. Lá, teria recrutado jovens<br />

envolvidos com a causa revolucionária e rumado para o Recife, on<strong>de</strong><br />

tentariam impedir que o general Arthur da Costa e Silva chegasse à<br />

presidência. Isso representaria o endurecimento do regime.<br />

Alípio <strong>de</strong> Freitas<br />

era ligado a um braço<br />

da Ação Popular, que<br />

entendia a luta<br />

armada como uma<br />

alternativa muito<br />

viável para a<br />

expansão<br />

do<br />

movimento<br />

revolucionário.<br />

Compreendiam que o<br />

cidadão comum era<br />

um sujeito tão<br />

violentado pelo<br />

regime que se tornava<br />

incapaz <strong>de</strong> fazer parte<br />

<strong>de</strong> uma mobilização<br />

geral e pacífica pela<br />

construção da<br />

d<strong>em</strong>ocracia. Assim,<br />

atentados a bomba<br />

eram entendidos por<br />

seus supostos novos<br />

autores como um ato<br />

<strong>de</strong> guerra, como observamos na manchete da capa do Jornal do Commercio<br />

<strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1995 (“Padre afirma que atentado no Guararapes foi ato<br />

<strong>de</strong> guerra”).<br />

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O Jornal do Commercio publicou uma entrevista com Alípio <strong>de</strong> Freitas,<br />

na qual perceb<strong>em</strong>os um jornalista e um entrevistado falando <strong>de</strong> or<strong>de</strong>ns<br />

t<strong>em</strong>porais bastante diferentes. O ex-padre retoma o período do regime<br />

militar guardando códigos, máximas, nomes ligados a uma seqüênciamo<strong>de</strong>lo<br />

que não se reproduz <strong>em</strong> nossos dias – algo muito comum <strong>em</strong> excombatentes<br />

que transformam a seqüência t<strong>em</strong>poral <strong>de</strong> uma guerra <strong>em</strong><br />

mo<strong>de</strong>lo para ler toda a História (figura 3).<br />

Quando Freitas afirma que a História será responsável pela análise<br />

lenta e correta sobre os fatos, apresenta uma socieda<strong>de</strong> pensada a partir <strong>de</strong><br />

uma História transformada <strong>em</strong> monumento. Dela participamos muito pouco.<br />

Coletamos seus nomes, suas datas tidas como mais importantes, seus<br />

principais personagens. O t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>ssa História é o t<strong>em</strong>po <strong>de</strong>finido pelos<br />

vencedores, silenciando as múltiplas leituras, padrões <strong>de</strong> l<strong>em</strong>brança e<br />

esquecimento que surg<strong>em</strong> das mais diversas expectativas <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po sobre<br />

os eventos percebidos diariamente (figura 4).<br />

O t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> que fala Alípio <strong>de</strong> Freitas não é um t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> processo,<br />

<strong>em</strong> construção. Ele se refere à História enquanto algo fixo, estável e<br />

cauteloso o suficiente para avaliar os “erros” do passado e para que esses<br />

não se reproduzam <strong>em</strong> um futuro próximo.<br />

4. Consi<strong>de</strong>rações finais: o t<strong>em</strong>po enquanto construção social<br />

... o que chamamos <strong>de</strong> ‘t<strong>em</strong>po’ significa, antes <strong>de</strong> mais nada, um<br />

quadro <strong>de</strong> referência do qual um grupo humano – mais tar<strong>de</strong> a<br />

humanida<strong>de</strong> inteira – se serve para erigir, <strong>em</strong> meio a uma<br />

seqüência contínua <strong>de</strong> mudanças, limites reconhecidos pelo grupo,<br />

ou então para comparar uma certa fase, num dado fluxo <strong>de</strong><br />

acontecimentos, com fases pertencentes a outros fluxos, ou ainda<br />

para muitas outras coisas (ELIAS, 1998, p.60).<br />

Alípio parece distante do sujeito humano que inventou o t<strong>em</strong>po para<br />

explicar suas expectativas que não exist<strong>em</strong> no mundo que ele consegue ver<br />

e, por isso, o ex-guerrilheiro, ou está preso ainda na década <strong>de</strong> 60, ou se<br />

r<strong>em</strong>ete para o conflito ditadura/resistência a fim <strong>de</strong> perpetuar sentidos para<br />

um mundo ainda real para ele.<br />

O t<strong>em</strong>po, efetivamente, <strong>de</strong>ve representar um ambiente on<strong>de</strong> o hom<strong>em</strong><br />

faz reais seus <strong>de</strong>sejos. Dessa maneira, edificamos os princípios <strong>de</strong> passado,<br />

presente e futuro. Construímos, para compreen<strong>de</strong>r o próprio t<strong>em</strong>po,<br />

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seqüências, padrões sociais sobre os acontecimentos, que funcionam como<br />

referência para medir o t<strong>em</strong>po.<br />

Nesse sentido, a expectativa do t<strong>em</strong>po é fundamentalmente<br />

estruturada a partir <strong>de</strong> uma m<strong>em</strong>ória que sinaliza sobre o “antes” e o<br />

“<strong>de</strong>pois”, ainda que não obe<strong>de</strong>çam a nossas leituras presentes sobre a<br />

seqüência <strong>de</strong> datas e nomes, minutos e anos. A m<strong>em</strong>ória transforma<br />

qualquer visita a qualquer t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> um diálogo entre o vivo e o ainda vivo.<br />

Não existe, <strong>de</strong>ssa forma, um t<strong>em</strong>po morto sobre o qual po<strong>de</strong>ríamos<br />

simplesmente falar.<br />

O esforço da série <strong>de</strong> reportagens do Jornal do Commercio <strong>em</strong> 1995<br />

não <strong>de</strong>ve ser lido como uma exumação <strong>de</strong> um evento passado,<br />

supostamente esquecido. É uma reconstrução presente <strong>de</strong> um outro t<strong>em</strong>po.<br />

Não se trata <strong>de</strong> um t<strong>em</strong>po mais sofisticado, estudando uma organização <strong>de</strong><br />

t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> mais simples, como freqüent<strong>em</strong>ente se pensam os contatos<br />

entre diferentes t<strong>em</strong>pos.<br />

Em Whitrow (1993), encontrar<strong>em</strong>os um estudo sobre o t<strong>em</strong>po focado<br />

<strong>em</strong> crianças da socieda<strong>de</strong> industrial, pois, segundo o autor, não é possível<br />

<strong>de</strong>senvolver tais leituras <strong>em</strong> socieda<strong>de</strong>s s<strong>em</strong> seqüências-mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>finidas,<br />

<strong>em</strong> que crianças, supostamente, não teriam leituras sobre o t<strong>em</strong>po.<br />

Esta <strong>de</strong>scrição do modo como as crianças aprend<strong>em</strong> a <strong>de</strong>senvolver<br />

seu sentido do t<strong>em</strong>po aplica-se somente às que viv<strong>em</strong> na<br />

civilização industrial, e não às <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s menos sofisticadas. P.<br />

M. Bell relatou, por ex<strong>em</strong>plo, que, quando lecionava para crianças<br />

na Uganda, <strong>de</strong>scobriu que, <strong>em</strong>bora não <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> inteligência,<br />

tinham muito mais dificulda<strong>de</strong> que crianças oci<strong>de</strong>ntais da mesma<br />

ida<strong>de</strong> para avaliar quanto t<strong>em</strong>po durava alguma coisa – uma<br />

viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ônibus <strong>de</strong> duas horas teria durado, segundo algumas,<br />

somente <strong>de</strong>z minutos e, segundo outras, seis horas! (WHITROW,<br />

1993, p.19).<br />

O que o autor <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> lado foi o fato <strong>de</strong> que o t<strong>em</strong>po é <strong>de</strong>finido a<br />

partir da experiência. Isso faz que, nas múltiplas socieda<strong>de</strong>s do mundo, a<br />

relação que as pessoas estabelec<strong>em</strong> com os relógios, por mais complexo<br />

que isso possa parecer, seja diferente. Assim, as crianças <strong>de</strong> Uganda, <strong>em</strong><br />

um primeiro momento, pod<strong>em</strong> não precisar <strong>de</strong> expectativas precisas <strong>em</strong><br />

relação ao t<strong>em</strong>po referente a uma viag<strong>em</strong> <strong>de</strong> ônibus. Talvez elas possam<br />

ter noções bastante convencionais se perguntadas sobre a duração <strong>de</strong> uma<br />

partida <strong>de</strong> futebol, por ex<strong>em</strong>plo.<br />

Em um segundo momento, as mesmas crianças <strong>de</strong> Uganda, como<br />

qualquer criança do planeta – qualquer pessoa, aliás – pensa uma viag<strong>em</strong><br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

<strong>de</strong> ônibus com duração <strong>de</strong> duas horas <strong>de</strong> acordo com a forma como viveu<br />

aqueles instantes. Dessa maneira, parece muito justo, por ex<strong>em</strong>plo, que<br />

uma criança que observa a paisag<strong>em</strong> e se diverte com os seus, perceba o<br />

quão curta foi aquela viag<strong>em</strong>. O ex<strong>em</strong>plo <strong>de</strong> Bergson (2006, pp.4-5),<br />

abaixo, <strong>de</strong>ve ilustrar essa idéia:<br />

No momento <strong>em</strong> que escrevo estas linhas, um relógio na<br />

vizinhança dá as horas; mas minha orelha distraída só percebe isso<br />

<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> várias pancadas já se ter<strong>em</strong> feito ouvir; portanto, não as<br />

contei. E, no entanto, basta-me um esforço <strong>de</strong> atenção<br />

retrospectiva para fazer a soma das quatro pancadas que já<br />

soaram e adicioná-las às que ouço. Se, entrando <strong>em</strong> mim mesmo,<br />

interrogar-me então cuidadosamente sobre o que acabou <strong>de</strong><br />

acontecer, percebo que os quatro primeiros sons tinham atingido<br />

meu ouvido e até impressionado minha consciência, mas que as<br />

sensações produzidas por cada um <strong>de</strong>les, <strong>em</strong> vez <strong>de</strong> se<br />

justapor<strong>em</strong>, tinham-se fundido umas às outras <strong>de</strong> maneira que<br />

dotass<strong>em</strong> o todo <strong>de</strong> um aspecto próprio, <strong>de</strong> maneira que fizess<strong>em</strong><br />

<strong>de</strong>le uma espécie <strong>de</strong> frase musical.<br />

O t<strong>em</strong>po que se manifesta para Bérgson, no ex<strong>em</strong>plo citado, não é o<br />

dos relógios, não somente. Existe uma mecânica sobre sua percepção<br />

t<strong>em</strong>poral, mas o sentido da mesma é dado pela relação que ele estabelece<br />

com aquelas badaladas – que insist<strong>em</strong> <strong>em</strong> dizer que o t<strong>em</strong>po é um só.<br />

Dessa maneira, pod<strong>em</strong>os afirmar que há um t<strong>em</strong>po manifestado <strong>em</strong><br />

qualida<strong>de</strong>, <strong>em</strong> expectativa, e um outro/compl<strong>em</strong>entar, que funciona a partir<br />

da quantida<strong>de</strong>, da mecânica.<br />

“Em suma, o número <strong>de</strong> pancadas dadas foi percebido como qualida<strong>de</strong><br />

e não como quantida<strong>de</strong>” (BERGSON, 2006, p.5). A duração <strong>de</strong>ssa<br />

t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong> qualitativa se <strong>de</strong>fine a partir <strong>de</strong> como representamos as<br />

seqüências-mo<strong>de</strong>lo que julgamos importantes. O t<strong>em</strong>po, que se repete ou<br />

não, é estruturado, portanto, a partir <strong>de</strong>ssa vivência qualitativa <strong>de</strong> si<br />

mesmo.<br />

O t<strong>em</strong>po <strong>de</strong> datas e nomes é também uma representação do t<strong>em</strong>po. A<br />

inflexibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse símbolo t<strong>em</strong>po reproduz uma socieda<strong>de</strong> que se move<br />

muito pouco no sentido <strong>de</strong> reconstruir suas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> t<strong>em</strong>poralida<strong>de</strong>.<br />

Assim, parec<strong>em</strong>os incapazes <strong>de</strong> subverter os acontecimentos que fundam<br />

suas seqüências-mo<strong>de</strong>lo.<br />

REFERÊNCIAS<br />

BERGSON, Henri. M<strong>em</strong>ória e Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006;<br />

DUARTE, Eduardo. Sob a luz do projetor imaginário. Recife: Editora<br />

universitária da <strong>UFPE</strong>, 2000;<br />

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M<strong>em</strong>ória <strong>em</strong> <strong>Movimento</strong><br />

Revista <strong>de</strong> Comunicaçao, Política e Direitos Humanos ano 1 n o 0 2 o s<strong>em</strong>estre <strong>de</strong> 2007<br />

ELIAS, Norbert. Sobre o t<strong>em</strong>po. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998;<br />

HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: Europa – 1789-1848. Rio <strong>de</strong><br />

Janeiro: Paz e Terra, 1977;<br />

WHITROW, G. J. O t<strong>em</strong>po na história: concepções <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po da préhistória<br />

aos nossos dias. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993;<br />

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