23.10.2014 Views

Trinta anos depois de revolucionar os quadrinhos, Angeli faz ...

Trinta anos depois de revolucionar os quadrinhos, Angeli faz ...

Trinta anos depois de revolucionar os quadrinhos, Angeli faz ...

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

Enquanto dormem as crianças ladronas<br />

Há 74 <strong>an<strong>os</strong></strong>, Capitães da Areia anuncia que “a revolução é uma pátria e uma família”<br />

TEXTO micheliny verunschk<br />

ILUSTRAÇÃO arthur d’araujo<br />

Rio <strong>de</strong> Janeiro, 30 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1937. O general Goes Monteiro anuncia a <strong>de</strong>scoberta <strong>de</strong> um<br />

plano comunista <strong>de</strong> tomada do po<strong>de</strong>r. Nesse mesmo dia, no Palácio do Catete, se<strong>de</strong> do governo<br />

fe<strong>de</strong>ral, o presi<strong>de</strong>nte Getúlio Vargas <strong>de</strong>creta estado <strong>de</strong> guerra contra a ameaça golpista. Cerca <strong>de</strong><br />

40 dias <strong><strong>de</strong>pois</strong> dá, ele mesmo, um golpe e implanta o Estado Novo, regime ditatorial que ambicionava<br />

manter a paz e a unida<strong>de</strong> da nação perturbada pela ameaça vermelha. O documento que <strong>de</strong>talhava<br />

a ação entrou para a história com o nome <strong>de</strong> Plano Cohen, um relato falso cujo objetivo real não era outro<br />

senão esten<strong>de</strong>r a permanência <strong>de</strong> Vargas no po<strong>de</strong>r.<br />

Salvador, Bahia, 19 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1937. Numa gran<strong>de</strong> fogueira em frente à Escola <strong>de</strong> Aprendizes-Marinheir<strong>os</strong><br />

e sob <strong>os</strong> olhares d<strong>os</strong> agentes do Departamento Estadual <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m Política e Social (Deops) ar<strong>de</strong>m<br />

mais <strong>de</strong> 1.500 livr<strong>os</strong>, tod<strong>os</strong> exemplares <strong>de</strong> um mesmo autor, e, entre eles, aquele que havia acendido a faísca<br />

da perseguição: a história <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong>linquentes ou, antes, sobre dias <strong>de</strong> revolução que se aproximam.<br />

O autor é Jorge Amado e o livro em questão é Capitães da Areia, lançado em setembro daquele ano, num<br />

momento <strong>de</strong> efervescência e tensão no cenário político brasileiro.<br />

Cartas à Redação<br />

É sob esse título, “Cartas à Redação”, que o romance se inicia. O autor contextualiza o cenário social <strong>de</strong> sua<br />

obra por meio <strong>de</strong> notícias e <strong>de</strong> cartas publicadas no periódico baiano Jornal da Tar<strong>de</strong>. As manchetes falam<br />

das ações crimin<strong>os</strong>as <strong>de</strong> um bando <strong>de</strong> crianças <strong>de</strong> rua e contrapõem a elas suas vítimas, sempre honradas,<br />

trabalhadoras, exemplares. Durante todo o <strong>de</strong>senrolar da trama, o discurso jornalístico ci<strong>os</strong>o da moral e d<strong>os</strong><br />

bons c<strong>os</strong>tumes surgirá como porta-voz das forças opressoras, o Estado, a religião, a família burguesa.<br />

O núcleo da ação é representado pelo lí<strong>de</strong>r Pedro Bala, filho <strong>de</strong> um grevista morto em confronto, por Volta<br />

Seca, afilhado <strong>de</strong> Lampião, e ainda pel<strong>os</strong> menin<strong>os</strong> Professor, Sem-Pernas, Gato, Pirulito, Querido-<strong>de</strong>-Deus,<br />

entre outr<strong>os</strong>. Única menina do grupo, Dora <strong>os</strong> agregará em torno <strong>de</strong> si representando múltiplas personas:<br />

mãe, irmã, amiga, noiva e esp<strong>os</strong>a. Não é p<strong>os</strong>sível ler Capitães da Areia e não relacioná-lo a outra obra que<br />

trata <strong>de</strong> “menin<strong>os</strong> perdid<strong>os</strong>”. Escrito para teatro por J. M. Barrie, Peter Pan conta a história <strong>de</strong> crianças<br />

perdidas em uma Terra do Nunca em que as regras são dadas por elas mesmas sempre em op<strong>os</strong>ição ao<br />

mundo adulto e suas representações na lei, na or<strong>de</strong>m e n<strong>os</strong> valores burgueses. Se na obra <strong>de</strong> Barrie, Peter<br />

Pan recusa-se a ingressar no mundo adulto, na obra <strong>de</strong> Jorge Amado, Pedro Bala o <strong>faz</strong> levando consigo a<br />

centelha da liberda<strong>de</strong> da infância.<br />

À parte a violência e a erotização implícitas na narrativa, o romance apresenta a humanida<strong>de</strong> d<strong>os</strong> personagens.<br />

Em várias passagens reiteradamente a voz narrativa afirma: são crianças. Os menin<strong>os</strong>, heróis romanesc<strong>os</strong>,<br />

não se configuram como marginais, mas como um grupo coletivamente organizado, movido por um<br />

i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> justiça social, regido por uma ética própria e em harmonia com a natureza ao seu redor.<br />

No romance, o embate entre po<strong>de</strong>r<strong>os</strong><strong>os</strong> e oprimid<strong>os</strong> tem um contexto político bem <strong>de</strong>finido. Assim, não é à<br />

toa que o <strong>de</strong>stino <strong>de</strong> Pedro Bala é o <strong>de</strong> se tornar um lí<strong>de</strong>r revolucionário ao abraçar a causa do operariado.<br />

Num Brasil paranoico com sup<strong>os</strong>tas ameaças comunistas e às vésperas <strong>de</strong> um golpe <strong>de</strong> Estado, nenhum<br />

livro po<strong>de</strong>ria ter sido mais perig<strong>os</strong>o.<br />

Companheir<strong>os</strong>, vam<strong>os</strong> pra luta!<br />

Obra <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> (seu autor não contava mais <strong>de</strong> 25 <strong>an<strong>os</strong></strong> quando a escreveu), Capitães da Areia surge<br />

como um livro do seu tempo e para além do seu tempo. Jorge Amado, que para escrever o romance foi<br />

dormir n<strong>os</strong> trapiches junto com crianças abandonadas, estava fora do país durante o lançamento e o episódio<br />

da queima d<strong>os</strong> livr<strong>os</strong>. Foi preso ao retornar. Com Capitães da Areia ele não só antecipa “<strong>os</strong> <strong>an<strong>os</strong></strong> em<br />

que todas as bocas foram impedidas <strong>de</strong> falar”, para citar uma expressão da obra, como <strong>de</strong>nuncia o olhar<br />

equivocado que as políticas públicas teriam para as crianças pobres brasileiras por todo o século XX. Profundamente<br />

humano e repleto <strong>de</strong> lirismo, o romance mantém intact<strong>os</strong>, 74 <strong>an<strong>os</strong></strong> <strong><strong>de</strong>pois</strong> <strong>de</strong> lançado, sua força<br />

e apelo por liberda<strong>de</strong>.<br />

Vári<strong>os</strong> event<strong>os</strong> vão comemorar o centenário <strong>de</strong> Jorge Amado em 2012. Confira Capitães da Areia, filme da cineasta e neta do escritor Cecília Amado, em<br />

cartaz; a Cia. das Letras lança livro com as cartas que Jorge trocou com Zélia Gattai no exílio. Veja mais em .<br />

Saiba mais sobre Jorge Amado na Enciclopédia Itaú Cultural <strong>de</strong> Literatura Brasileira, disponível em .<br />

CONTINUUM<br />

16 17

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!