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Trinta anos depois de revolucionar os quadrinhos, Angeli faz ...

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REPORTAGEM | cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> goiás<br />

Vila boa da humanida<strong>de</strong><br />

Ex-capital goiana conserva suas tradições, mas se abre para o mundo através da cultura<br />

TEXTO rogério borges FOTOS ricardo rafael<br />

Casa das Raízes, Mercado Municipal <strong>de</strong> Goiás.<br />

Ali, um homem com autorida<strong>de</strong> adquirida e<br />

inconteste recebe seus clientes, alguns há décadas.<br />

“Mexo com ervas naturais há 32 <strong>an<strong>os</strong></strong>.<br />

Aprendi com meu pai, que apren<strong>de</strong>u com meu<br />

avô, que era escravo”, diz Heli<strong>os</strong> Gomes do Carmo.<br />

Ele anda com dificulda<strong>de</strong> <strong><strong>de</strong>pois</strong> que quebrou<br />

o joelho, mas é conhecido por curar <strong>os</strong> males<br />

alhei<strong>os</strong>. “Aqui tem remédio para <strong>os</strong> rins, para<br />

o diabetes, para o estômago”, afirma, m<strong>os</strong>trando<br />

uma prateleira abarrotada <strong>de</strong> rabo <strong>de</strong> tatu, casca<br />

<strong>de</strong> ipê-roxo, cipó do índio. “Fui o único da família<br />

a continuar no ramo. Faço tudo sozinho. Vou<br />

ao campo colher as ervas, coloco para secar,<br />

preparo as receitas. E ensino todo mundo que<br />

me pergunta porque não quero que esse conhecimento<br />

morra comigo.”<br />

A Cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Goiás é assim, cheia <strong>de</strong> personagens<br />

que a fizeram manter tradições, crenças,<br />

c<strong>os</strong>tumes e p<strong>os</strong>sibilitaram que essa joia colonial<br />

encravada no sertão goiano sobrevivesse a tudo<br />

e a tod<strong>os</strong> e, <strong>de</strong>z <strong>an<strong>os</strong></strong> atrás, recebesse da Unesco<br />

o título <strong>de</strong> Patrimônio Cultural da Humanida<strong>de</strong>.<br />

Quando Heli<strong>os</strong> nasceu, há 65 <strong>an<strong>os</strong></strong>, um trauma<br />

persistia: capital do estado até 1937, caiu no <strong>os</strong>tracismo<br />

quando per<strong>de</strong>u o p<strong>os</strong>to para Goiânia.<br />

Fundada pelo ban<strong>de</strong>irante Bartolomeu Bueno da<br />

Silva, a cida<strong>de</strong>, que nasceu Arraial <strong>de</strong> Sant’Ana<br />

em 1727, é emoldurada pela beleza da Serra Dourada<br />

e cortada pelo Rio Vermelho − <strong>de</strong> cujo leito<br />

saíram incontáveis quil<strong>os</strong> <strong>de</strong> ouro. O lugar, que<br />

também se chamou Vila Boa, foi capital da Província<br />

<strong>de</strong> Goyaz em temp<strong>os</strong> antig<strong>os</strong>, cujas marcas<br />

se mantiveram no centro histórico − com ruas <strong>de</strong><br />

pedra, casario <strong>de</strong> telhad<strong>os</strong> irregulares, prédi<strong>os</strong> e<br />

logradour<strong>os</strong> públic<strong>os</strong> que guardam tesour<strong>os</strong> do<br />

passado. Antes do título <strong>de</strong> Patrimônio da Humanida<strong>de</strong>,<br />

foi tombada pelo Patrimônio Histórico<br />

Nacional, em 1978. N<strong>os</strong> <strong>an<strong>os</strong></strong> 1980 a cida<strong>de</strong> ganhou<br />

mais visibilida<strong>de</strong> fora do estado. A cultura<br />

local, sobretudo a literatura e as artes plásticas,<br />

funcionou como o maior cartão <strong>de</strong> visitas.<br />

O artesanato <strong>de</strong> Goiás permanece fam<strong>os</strong>o graças<br />

às mã<strong>os</strong> <strong>de</strong> gente como Alice Noronha, a “Alicinha”,<br />

<strong>de</strong> 65 <strong>an<strong>os</strong></strong>, fada d<strong>os</strong> potes e panelas <strong>de</strong><br />

barro. “Essa é a minha profissão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1970. Criei<br />

meus filh<strong>os</strong> assim.” Ela integra a Associação d<strong>os</strong><br />

Artesã<strong>os</strong> <strong>de</strong> Goiás, fundada em 1977. “N<strong>os</strong>so trabalho<br />

é todo manual. A gente preserva as raízes<br />

do ofício. Hoje, fabrico cerca <strong>de</strong> 50 mo<strong>de</strong>l<strong>os</strong> <strong>de</strong><br />

peças.” Ela é mais um exemplo <strong>de</strong> como a terra<br />

move esse povo. “Hoje é muito mais fácil. Antes<br />

a gente tinha <strong>de</strong> caminhar vári<strong>os</strong> quilômetr<strong>os</strong> e<br />

trazer o barro na cabeça. E, o que era pior, não<br />

tinha venda <strong><strong>de</strong>pois</strong> <strong>de</strong> tudo pronto. Agora não. A<br />

gente fica até apertada com tanta encomenda.”<br />

Essa força popular que Goiás soube valorizar,<br />

com raízes portuguesas, negras e indígenas, se<br />

m<strong>os</strong>trou fundamental para que a cida<strong>de</strong> se tornasse<br />

patrimônio mundial. Obras <strong>de</strong> infraestrutura<br />

foram realizadas, como a instalação <strong>de</strong> fiação<br />

subterrânea e a revitalização da iluminação<br />

pública, além da restauração <strong>de</strong> prédi<strong>os</strong>, igrejas e<br />

praças. Ao todo, a área tombada compreen<strong>de</strong> cerca<br />

<strong>de</strong> 800 imóveis e monument<strong>os</strong>, bem preservad<strong>os</strong><br />

em razão da constante atuação do Instituto<br />

do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional<br />

(Iphan) e <strong>de</strong> parcerias governamentais.<br />

Turismo e ecologia<br />

A 140 quilômetr<strong>os</strong> <strong>de</strong> Goiânia e a 330 <strong>de</strong> Brasília,<br />

Goiás ainda tem <strong>de</strong>safi<strong>os</strong> pela frente. N<strong>os</strong> últim<strong>os</strong><br />

<strong>de</strong>z <strong>an<strong>os</strong></strong>, a frequência <strong>de</strong> turistas em seus principais<br />

museus mais que dobrou. Até 2001, o Museu<br />

da Boa Morte, um d<strong>os</strong> mais importantes, recebia<br />

perto <strong>de</strong> 8 mil visitantes por ano. Hoje chegam a<br />

18 mil. Pelo Museu Casa <strong>de</strong> Cora Coralina − antiga<br />

residência da poeta e o local mais visitado da cida<strong>de</strong><br />

− em 2011 passaram cerca <strong>de</strong> 25 mil turistas<br />

ante <strong>os</strong> pouco mais <strong>de</strong> 10 mil <strong>de</strong> uma década atrás.<br />

Nesse período, também aumentou o número <strong>de</strong><br />

leit<strong>os</strong> na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 800 para cerca <strong>de</strong> 1.500.<br />

Event<strong>os</strong> importantes começaram a ser realizad<strong>os</strong><br />

e a antiga capital recebe hoje gente <strong>de</strong> todo o<br />

Brasil e do exterior. Um d<strong>os</strong> pic<strong>os</strong> <strong>de</strong>ssa visitação<br />

ocorre durante a Semana Santa em razão da secular<br />

Procissão do Fogaréu − encenação da perseguição<br />

a Cristo que ocorre nas ruas <strong>de</strong> pedra<br />

do município. À meia-noite da Quarta-Feira Santa<br />

as luzes da antiga capital são todas apagadas e 40<br />

mascarad<strong>os</strong>, chamad<strong>os</strong> <strong>de</strong> farricoc<strong>os</strong>, iluminam a<br />

cida<strong>de</strong> com tochas e percorrem as principais igrejas,<br />

representando <strong>os</strong> soldad<strong>os</strong> <strong>de</strong>stacad<strong>os</strong> para<br />

capturar Jesus. A cerimônia termina no adro da<br />

Igreja <strong>de</strong> São Francisco, quando o Messias é encontrado.<br />

Goiás também c<strong>os</strong>tuma atrair turistas<br />

por seu carnaval, em que predominam as marchinhas,<br />

e pelo festival gastronômico, que ocorre no<br />

início <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro.<br />

Após a gran<strong>de</strong> enchente <strong>de</strong> 2001, pouc<strong>os</strong> dias<br />

<strong><strong>de</strong>pois</strong> da conquista do título internacional, Goiás,<br />

que sedia o Festival Internacional <strong>de</strong> Ví<strong>de</strong>o<br />

e Cinema Ambiental (Fica) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1999, percebeu<br />

que o meio ambiente, sobretudo no entorno<br />

da cida<strong>de</strong>, necessita <strong>de</strong> mais cuidad<strong>os</strong> − o que<br />

ainda não acontece como <strong>de</strong>veria. Mas isso não<br />

chega a tirar o charme <strong>de</strong> um lugar que parece<br />

ter parado no tempo, preserva seu bucolismo,<br />

mantém uma cozinha caseira genuína e sabe<br />

dar valor à sua história.<br />

Pessoas como o raizeiro Heli<strong>os</strong> e a artesã Alicinha<br />

representam uma faceta importante da cida<strong>de</strong>,<br />

aquela que dá vida à antiga Vila Boa e a <strong>faz</strong><br />

ser do jeito que é. Eles e tant<strong>os</strong> outr<strong>os</strong> anônim<strong>os</strong>:<br />

<strong>os</strong> que falam d<strong>os</strong> vári<strong>os</strong> governadores que habitaram<br />

o Palácio Con<strong>de</strong> d<strong>os</strong> Arc<strong>os</strong>, <strong>os</strong> que passeiam<br />

<strong>de</strong> chapéu <strong>de</strong> aba larga em frente às fachadas<br />

históricas, <strong>os</strong> que cuidam d<strong>os</strong> intermináveis<br />

quintais e seus pomares, <strong>os</strong> que dão aula no centenário<br />

Colégio Sant’Ana. No Largo do Chafariz,<br />

na Praça do Coreto, na Casa da Ponte, em seus<br />

bec<strong>os</strong> estreit<strong>os</strong> e tort<strong>os</strong>, n<strong>os</strong> adr<strong>os</strong> das igrejas,<br />

Goiás convida tod<strong>os</strong> para mergulhar num passado<br />

belo, poético, rico em sua simplicida<strong>de</strong>.

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