perfil | angeli Ao pressentir que <strong>de</strong>terminado tema atinge seu ponto <strong>de</strong> saturação, ele simplesmente passa uma borracha por cima. Como bom punk da periferia, <strong>Angeli</strong> tem Ph.D. em tocar o foda-se. <strong>Trinta</strong> <strong>an<strong>os</strong></strong> <strong><strong>de</strong>pois</strong> <strong>de</strong> <strong>revolucionar</strong> <strong>os</strong> quadrinh<strong>os</strong> brasileir<strong>os</strong>, <strong>Angeli</strong> <strong>faz</strong> revisão <strong>de</strong> sua tragetória
"Estou numa bagunça mental e emocional, numa fase <strong>de</strong> transição", confessa <strong>Angeli</strong> sobre seu momento atual. Para quem conhece o cartunista, é bom não acreditar: daqui a pouco ele explo<strong>de</strong> − ou se autoimplo<strong>de</strong> TEXTO ronaldo bressane FOTO andré seiti Foi embranquecendo, embranquecendo.... até dar branco total: do cabelo ao traço, <strong>Angeli</strong> <strong>de</strong>sapareceu <strong>de</strong> suas tiras. “Implodiu”, para usar a expressão <strong>de</strong> Ruy Castro em referência ao modo como <strong>Angeli</strong> <strong>de</strong>sconstrói o discurso d<strong>os</strong> personagens: uma corr<strong>os</strong>ão que parte <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro. O homem que “suicidou” seu maior sucesso − a doidona Rê Bord<strong>os</strong>a, cujas histórias serão reunidas em breve em um álbum a ser lançado pela Cia. das Letras − não tem o mínimo pudor em armar para que seus personagens direcionem ranzinzice, mediocrida<strong>de</strong>, raiva e loucura contra si mesm<strong>os</strong>. Foi assim com Os Skrotinh<strong>os</strong>, com Bob Cuspe, com Meia-Oito, com Bibelô, para citar somente alguns d<strong>os</strong> inúmer<strong>os</strong> anti-heróis criad<strong>os</strong> pelo mais iconoclasta d<strong>os</strong> cartunistas brasileir<strong>os</strong>. Ao pressentir que <strong>de</strong>terminado tema atinge seu ponto <strong>de</strong> saturação, ele simplesmente passa uma borracha por cima. Como bom punk da periferia, <strong>Angeli</strong> tem Ph.D. em tocar o foda-se. Liga/<strong>de</strong>sliga Sempre foi assim com esse paulistano nascido no bairro da Casa Ver<strong>de</strong>, há 55 <strong>an<strong>os</strong></strong>. Filho <strong>de</strong> itali<strong>an<strong>os</strong></strong> calabreses e sicili<strong>an<strong>os</strong></strong>, sob o signo <strong>de</strong> Virgem com ascen<strong>de</strong>nte em Virgem, o sanguíneo <strong>Angeli</strong> <strong>de</strong>fine-se como ultracontrolador, metódico, meticul<strong>os</strong>o – daí a paúra ao sentir que um caminho criativo se esgota: ele mata suas criaturas no auge. Daí ter parado com as charges “fofas” <strong>de</strong> personagens controvers<strong>os</strong> como Delfim Netto, Paulo Maluf e J<strong>os</strong>é Sarney, na época em que seu traço reinava na po<strong>de</strong>r<strong>os</strong>a página 2 da Folha <strong>de</strong> S.Paulo. “Esses caras estavam ficando muito simpátic<strong>os</strong>, eu estava dando espaço <strong>de</strong>mais pra eles”, explica. Daí também ter parado com as charges para inventar o espaço <strong>de</strong> tiras adultas em jornais. Hoje, na Folha, divi<strong>de</strong> esse espaço com Laerte, Fernando Gonsales, Fabio Moon & Gabriel Bá, além d<strong>os</strong> discípul<strong>os</strong> confess<strong>os</strong> Allan Sieber, Caco Galhardo e Adão Iturrusgarai. A influência <strong>de</strong> <strong>Angeli</strong> – e seu modus operandi liga/<strong>de</strong>sliga – é gigantesca. Ele editou a revista <strong>de</strong> quadrinh<strong>os</strong> <strong>de</strong> maior circulação no país, a Chiclete com Banana, que vendia 120 mil exemplares mensais e frutificou n<strong>os</strong> títul<strong>os</strong> Circo (<strong>de</strong> Laerte e Luiz Gê) e Geraldão (<strong>de</strong> Glauco), sem falar n<strong>os</strong> filh<strong>os</strong> bastard<strong>os</strong> Animal e General, lendárias publicações do udigrúdi paulista, e ainda respingou sua semente n<strong>os</strong> cariocas Planeta Diário e Casseta Popular. Uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> publicações que emana do espírito multiplamente anárquico do gênio Millôr Fernan<strong>de</strong>s – mentor das Pif-Paf que <strong>Angeli</strong> lia alucinado quando criança e do Pasquim, que movimentou sua adolescência. A crise pela qual passa <strong>Angeli</strong> – a ponto <strong>de</strong> até mesmo <strong>de</strong>tonar a Série <strong>Angeli</strong> em Crise – tem fundo estético e emocional. Cada vez mais, ele prefere resguardar seu fôlego para trabalh<strong>os</strong> gran<strong>de</strong>s, em <strong>de</strong>trimento das tiras-em-três-quadrinh<strong>os</strong> e da charge. Os personagens das tiras foram rareando. Mesmo estas transitaram <strong>de</strong> séries seminarrativas, como Lovestórias ou Duas Coisas que Eu O<strong>de</strong>io e Uma Coisa que Eu Adoro, a retângul<strong>os</strong> abstrat<strong>os</strong>, como o Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Esboç<strong>os</strong> ou tiras em que tão somente exibe o traço inconfundível em retrat<strong>os</strong> <strong>de</strong> jazzmen ou reproduções d<strong>os</strong> álbuns favorit<strong>os</strong>. Curi<strong>os</strong>amente, para um cartunista ligado ao punk e ao rock ‘n’roll, ele diz já não ter o hábito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar ouvindo música − com ressalva para Bob Dylan, seu ídolo maior (ao lado <strong>de</strong> Gerald Scarfe e, é claro, Robert Crumb, amb<strong>os</strong> <strong>de</strong>senhistas). Ou seja: ele tem passado horas e horas em silêncio sobre a amada prancheta − “adoro ficar sozinho”, diz −, em estado <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração: se <strong>de</strong> um lado a tira narrativa progressivamente limpou traço e mensagem, como na série O Imundo Animal, por outro, as charges ganharam impacto, síntese e conceito. O artista <strong>de</strong>fine seu momento como uma “dolor<strong>os</strong>a” revisão. “Estou em plena andropausa. Eu me orgulho muito <strong>de</strong> ter resistido ao tempo sem abrir mão <strong>de</strong> meus i<strong>de</strong>ais. Mas não escondo que estou em banho-maria”, assume. Para quem conhece sua alma rebel<strong>de</strong>, é certo que, em breve, ele vai pular do banho-maria para aumentar o fogo no máximo – sem o menor medo <strong>de</strong> se autofritar. [Entrevista concedida a Claudiney Ferreira] CONTINUUM 20 21