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Tribunal de Justiça do Estado do Rio - Emerj

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ApresentaçãoChegamos ao n. 56, que ora apresentamos, com o qual a REVISTADA EMERJ completa 14 anos <strong>de</strong> circulação, como uma das ferramentas daativida<strong>de</strong> profissional da Escola da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> Janeiro.A partir da REVISTA DA EMERJ n. 53, instituiu-se a versão on-line,o que se constituiu num marco para a concretização <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s nossosprojetos prioritários, estabeleci<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> assumimos esta Escola, no início<strong>de</strong>ste ano: <strong>de</strong>mocratizar o conhecimento produzi<strong>do</strong>, com sua difusãosustentável.Esta edição, encerran<strong>do</strong> o quarto trimestre <strong>de</strong> 2011, está mais afinadacom as normas <strong>de</strong> publicações eletrônicas que as três anteriores, namedida em fomos nos aprimoran<strong>do</strong> para “navegar” on-line, em conformida<strong>de</strong>com a NBR 6032: mesmo conservan<strong>do</strong> a imagem <strong>do</strong> Cristo Re<strong>de</strong>ntor,que marcou o lançamento da Revista no primeiro trimestre <strong>de</strong> 1998,mudanças foram executadas - e continuarão acorren<strong>do</strong> - na diagramaçãoda folha <strong>de</strong> rosto, nas legendas <strong>de</strong> rodapé <strong>do</strong> miolo e, já na próximaedição, no layout da capa, até atingirmos a meta <strong>de</strong> renovação <strong>de</strong> nossapublicação como um to<strong>do</strong>.E, para que a REVISTA DA EMERJ continue se evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> útil comoveículo próprio à difusão das teses jurídicas – além <strong>de</strong> passar a albergartextos sobre multidisciplinas importantes para a entrega da jurisdiçãonos tempos atuais -, torna-se imprescindível a colaboração <strong>do</strong>s nossosbrilhantes expositores. Portanto, renovamos o <strong>de</strong>safio aos juristas eestudiosos que se ocupam também das ciências afins para que atendama nossa próxima chamada <strong>de</strong> artigos. Agra<strong>de</strong>cemos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já a to<strong>do</strong>s - colabora<strong>do</strong>rese leitores.Vejam as “Normas para apresentação <strong>de</strong> artigos” na última página.Desembarga<strong>do</strong>ra Leila MarianoDiretora-Geral da EMERJ6R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 6, out.-<strong>de</strong>z. 2011


agra<strong>de</strong>cer à própria Escola, na pessoa <strong>de</strong> seu Diretor-Geral, o Desembarga<strong>do</strong>rManoel Alberto Rebêlo <strong>do</strong>s Santos. Em segun<strong>do</strong> lugar, cabe o agra<strong>de</strong>cimentoaos dirigentes que autorizaram e coor<strong>de</strong>naram minhas ativida<strong>de</strong>sno seio da Escola, o Sr. José Renato Teixeira Vi<strong>de</strong>ira e a Sra. RosângelaMal<strong>do</strong>na<strong>do</strong>. E, last but not least, ten<strong>do</strong> em vista que os da<strong>do</strong>s analisa<strong>do</strong>sneste trabalho foram colhi<strong>do</strong>s na Secretaria Acadêmica da Escola, é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>também agra<strong>de</strong>cimento ao chefe <strong>do</strong> serviço, Sr. Odinal<strong>do</strong> Correa Santose sua equipe, formada pelos Srs. Cristiano, Léa, Augusto, Diego, Jorge,Francisco e Ionara. A mim, um outsi<strong>de</strong>r, surpreen<strong>de</strong>u a abertura e o grau<strong>de</strong> tolerância e carinho com que fui trata<strong>do</strong>, pois além da crítica científicaser por vezes <strong>de</strong>sconfortável, um estranho ao serviço efetivamente atrapalhao cotidiano <strong>de</strong> trabalho.2 – Meto<strong>do</strong>logia, coleta <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s e amostragemConforme já menciona<strong>do</strong>, este trabalho trata da sistematização ebreve análise <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s colhi<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>z dias <strong>de</strong> pesquisas nos arquivos daSecretaria Acadêmica da EMERJ. Os arquivos escolhi<strong>do</strong>s para a pesquisasão as “pastas” <strong>do</strong>s alunos, aquelas que têm por objetivo <strong>do</strong>cumentar apassagem <strong>do</strong> aluno pela EMERJ. Cumpre especificar que os alunos aosquais me refiro são os que frequentam o “Curso <strong>de</strong> Especialização emDireito para a Carreira da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro” 1 . Oque existe na Secretaria Acadêmica em relação aos alunos <strong>de</strong>ste curso éo conjunto <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os arquivos daqueles que estudam ou estudaram naEscola. Para traçar o “Perfil <strong>do</strong> aluno da EMERJ” eu <strong>de</strong>cidi analisar apenasas “pastas” <strong>do</strong>s alunos e ouvintes inscritos entre o CP1 e CP 5 (sigla para“classe preparatória) em junho <strong>de</strong> 2009, também aqueles com matrículatrancada ou cancelada, que, caso estivessem ativos, pertenceriam à uma<strong>de</strong>stas turmas neste perío<strong>do</strong> 2 .Os da<strong>do</strong>s colhi<strong>do</strong>s serão trata<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma quantitativa, no fito <strong>de</strong>se estabelecerem estatísticas capazes <strong>de</strong> instituir referências que tornem1 Este curso tem o condão <strong>de</strong> preparar seus alunos para os concursos <strong>de</strong> acesso à carreira da magistratura fluminense.Esta Preparação é regular, feita na forma <strong>de</strong> aulas presenciais e tem como méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> avaliação provasescritas, trabalhos (casos concretos) e a elaboração <strong>de</strong> uma monografia <strong>de</strong> conclusão <strong>de</strong> curso. A duração <strong>do</strong> cursoé <strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos e meio, mas a partir <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> semestre <strong>de</strong> 2009 passou a ser feita em três anos. O curso chama-se“especialização” pois recentemente foi assim reconheci<strong>do</strong> pelo Ministério da Educação e Cultura - MEC, não sen<strong>do</strong>mais necessário o convênio com a Universida<strong>de</strong> Estacio <strong>de</strong> Sá para tanto. Cabe citar também que o referi<strong>do</strong> curso,ainda que seja a ativida<strong>de</strong> que mais mobiliza a EMERJ, não é a única. A Escola ainda promove a formação inicial econtinuada <strong>de</strong> magistra<strong>do</strong>s bem como eventos jurídicos abertos ao público em geral.2 Uma breve explicação é necessária. As turmas <strong>do</strong> curso são divididas em cinco CP’s (em breve seis), numera<strong>do</strong>s <strong>de</strong>1 à 5, um referente à cada semestre. O curso possui três turmas por semestre, duas pela manhã, que levam o sufixo“a” e “b”, e uma à noite, que leva o sufixo “c”.8R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


essa população <strong>de</strong>scritível e analisável. Para se compreen<strong>de</strong>r como fizemosesta coleta é necessário <strong>de</strong>screver a estrutura básica e comum a to<strong>do</strong>s osarquivos consulta<strong>do</strong>s. Tratamos aqui <strong>de</strong> pastas suspensas conten<strong>do</strong> umaor<strong>de</strong>m <strong>de</strong>terminada <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos, organiza<strong>do</strong>s em or<strong>de</strong>m cronológica.O primeiro <strong>de</strong>les é a “Ficha <strong>de</strong> inscrição” no concurso <strong>de</strong> seleção 3 e seusanexos. Desta ficha pu<strong>de</strong> extrair as seguintes informações sobre os alunos:a opção <strong>de</strong> turno, o sexo, a data <strong>de</strong> nascimento, o esta<strong>do</strong> civil, a data<strong>de</strong> emissão da carteira da OAB, o en<strong>de</strong>reço resi<strong>de</strong>ncial, a instituição on<strong>de</strong>concluiu o bacharela<strong>do</strong> em direito 4 , a data da colação <strong>de</strong> grau e a data <strong>de</strong>inscrição na prova <strong>de</strong> seleção. Em seguida encontrei os curriculum vitae<strong>do</strong>s candidatos, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> pu<strong>de</strong> extrair suas experiências profissionais e formaçõesacadêmicas. Em seguida encontrei o “Contrato <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong>serviços educacionais”, <strong>do</strong> qual não extraí qualquer informação; e a seguiro “Requerimento <strong>de</strong> matrícula”, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> coletei as informações referentesà profissão e empresa on<strong>de</strong> trabalha. Em seguida encontrei os diversostipos <strong>de</strong> requerimentos <strong>do</strong>s alunos, em or<strong>de</strong>m cronológica <strong>de</strong> protocolo.Ainda resta uma última consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> caráter meto<strong>do</strong>lógico. Conformecompromisso firma<strong>do</strong> entre mim e a direção da EMERJ, este trabalho nãoconterá quaisquer informações que possam levar à i<strong>de</strong>ntificação pessoal<strong>de</strong> qualquer <strong>do</strong>s alunos da Escola. Assim, a amostragem tem por universoos arquivos referentes a setecentos e quatro (704) alunos.A primeira tendência que os números confirmam é a da feminização<strong>do</strong> meio jurídico e judiciário. Em países como a França, os homens já sãomenos <strong>de</strong> 25% na magistratura. A tendência, no Brasil, já perceptível nasfaculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Direito e nos tribunais, estimula a hipótese <strong>de</strong> uma transformaçãonão apenas quantitativa, mas também qualitativa, em meiossociais tradicionalmente hegemoniza<strong>do</strong>s por homens. Por outro la<strong>do</strong>, ahipótese segun<strong>do</strong> a qual a preparação para o(s) concurso(s) jurídicos <strong>de</strong>manda<strong>de</strong>dicação exclusiva ou quase 5 e muito tempo, po<strong>de</strong>ria ser revela<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> uma maior pressão sobre os homens (cultural e\ou familiar)no senti<strong>do</strong> da sua pronta integração no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho logo apósa formatura, o que excluiria com mais intensida<strong>de</strong> o concurso público <strong>do</strong>seu rol <strong>de</strong> opções profissionais. Há que se consi<strong>de</strong>rar também o caráterobjetivo <strong>de</strong> tais pressões. Se sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong> caráter parental, nos lançaria3 Ver o capítulo 11 <strong>de</strong>ste trabalho.4 Para ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> apto a participar <strong>do</strong> exame <strong>de</strong> seleção é necessário o bacharela<strong>do</strong> em Direito ou, ao menos,a matrícula no último semestre <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> Direito.5 Hipótese que será reforçada ao longo <strong>de</strong>ste trabalho.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 9


Gráfico 4 - Ida<strong>de</strong>As estatísticas relativas à ida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s alunos da EMERJ aponta paraum perfil majoritariamente jovem, ten<strong>do</strong> em vista que é necessário completarou estar em vias <strong>de</strong> completar um curso superior jurídico <strong>de</strong>, nomínimo cinco anos, para então po<strong>de</strong>r se inscrever no exame <strong>de</strong> seleção. Ai<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a maioria <strong>do</strong>s alunos da EMERJ a integra logo após (e não necessariamenteimediatamente após) a formatura revelaria uma estratégia<strong>de</strong> carreira <strong>de</strong>finida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a faculda<strong>de</strong>, em que o cargo público a ser ocupa<strong>do</strong>após o sucesso no(s) concurso(s) seria o primeiro emprego. A EMERJseria, assim, inserida num contexto <strong>de</strong> preparação para concursos. As ida<strong>de</strong>smais avançadas seriam menos revela<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> que, por vezes ,décadassão necessárias à preparação <strong>de</strong> concursos e mais revela<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> estratégias<strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> carreira, seja <strong>de</strong> mudanças endógenas (outra carreirajurídica) ou exógenas (outra carreira ligada à área não jurídica).Relativamente ao esta<strong>do</strong> civil, uma maioria que aponta para a jovialida<strong>de</strong>também se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> a partir da questão <strong>do</strong> planejamento familiar.Dos alunos da EMERJ, 590 são solteiros, 97 casa<strong>do</strong>s, 12 separa<strong>do</strong>s, 4divorcia<strong>do</strong>s e um viúvo, como se vê no Gráfico 5 abaixo:Gráfico 5 - Esta<strong>do</strong> CivilEvi<strong>de</strong>ntemente, os da<strong>do</strong>s não permitem mapear situações intermediáriascomo solteiros que mantêm relacionamentos estáveis, e <strong>de</strong>ntreestes quantos moram juntos, quantos já têm filhos, quantos já possuemrenda própria e <strong>de</strong>la subsistem. Porém, as duas hipóteses principais queemergem da leitura <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s são: (1) o sucesso no(s) concurso(s) é <strong>de</strong>terminantepara o planejamento familiar e (2) a maioria <strong>do</strong>s concursan<strong>do</strong>sé <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte economicamente, <strong>do</strong>s pais ou <strong>do</strong> cônjuge, por esta razãoR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 11


este trabalho menciona que a estratégia <strong>do</strong>(s) concurso(s) é majoritariamente<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um projeto familiar, <strong>de</strong> suporte moral e sobretu<strong>do</strong>financeiro.4 – Inscrição e tempo <strong>de</strong> inscrição na OABOutro da<strong>do</strong> interessante é a questão da inscrição <strong>do</strong>s alunos daEMERJ nos quadros da Or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Brasil – OAB. Como ésabi<strong>do</strong>, a condição profissional <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong> se adquire com a inscrição<strong>do</strong> indivíduo nos quadros <strong>de</strong>ste órgão, o que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>is fatores: aconclusão <strong>de</strong> um bacharela<strong>do</strong> em Direito reconheci<strong>do</strong> pelo MEC, seguidada aprovação no “Exame <strong>de</strong> Or<strong>de</strong>m”, uma prova <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong> jurídico emduas fases, a primeira conten<strong>do</strong> questões <strong>de</strong> múltipla escolha e a segunda,questões discursivas e a elaboração <strong>de</strong> uma peça jurídica.O primeiro da<strong>do</strong> fundamental sobre esta questão é o <strong>de</strong> que apenasa meta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s alunos da EMERJ são inscritos na OAB (352). Ainda <strong>de</strong>stes352 que possuem inscrição na OAB, 61 a possuem há menos <strong>de</strong> um ano,79 entre um e <strong>do</strong>is anos, 97 entre <strong>do</strong>is e três anos, 70 entre três e quatroanos, 24 entre quatro e cinco anos, 18 entre seis e <strong>de</strong>z anos e 3 a possuemhá mais <strong>de</strong> 10 anos. Conforme <strong>de</strong>monstra o Gráfico 6 abaixo:Gráfico 6 - Tempo <strong>de</strong> OABEste da<strong>do</strong> apontaria ainda para o perfil jovem <strong>do</strong>s alunos da EMERJ.Porém, <strong>de</strong>ve se consi<strong>de</strong>rar qual é a utilida<strong>de</strong> da profissão <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>para um concursan<strong>do</strong>. É sabi<strong>do</strong> que para o ingresso em muitas carreiras(como a magistratura e o Ministério Público) é necessária a prática jurídica,sen<strong>do</strong> o exercício efetivo da advocacia uma das suas formas. É sabi<strong>do</strong>também que outras carreiras, ainda que não exijam tempo <strong>de</strong> prática jurídica,exigem a condição <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong> inscrito (como as <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong> daPetrobras ou BNDES). Po<strong>de</strong>ríamos, portanto, concluir que a carteira daOAB é um gran<strong>de</strong> trunfo nas mãos <strong>de</strong> um concursan<strong>do</strong>, e que boa parte<strong>de</strong>les ou não tem ida<strong>de</strong> ou tempo <strong>de</strong> forma<strong>do</strong> para ser advoga<strong>do</strong> ou nãoenxerga este plus estratégico.12R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Por outro la<strong>do</strong>, algumas questões não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>ixadas <strong>de</strong> la<strong>do</strong>,tais como: há concursan<strong>do</strong>s que se preparam concomitantemente como exercício <strong>de</strong> profissão impeditiva <strong>do</strong> exercício da advocacia? Existemoutras formas <strong>de</strong> adquirir a prática jurídica senão pelo exercício efetivo daadvocacia? O custo financeiro da manutenção da inscrição na OAB inibiriaparte <strong>do</strong>s concursan<strong>do</strong>s que se <strong>de</strong>dicam exclusivamente à preparação?Voltarei a estas questões nos capítulos 6 e 7.5 – Origem geográficaO campo “en<strong>de</strong>reço” da “Ficha <strong>de</strong> Inscrição” po<strong>de</strong> nos fornecerda<strong>do</strong>s interessantes sobre a origem geográfica <strong>do</strong>s alunos da EMERJ. Paraefeitos <strong>de</strong> sistematização, as localida<strong>de</strong>s indicadas foram agrupadas emseis categorias, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> 215 alunos <strong>de</strong>claram morar na Zona Sul <strong>do</strong> Município<strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 149 na Zona Norte <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 133 na Zona Oeste<strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 8 no Centro <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 183 fora <strong>do</strong> Município <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> mas <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro e 16 fora <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>. Nenhum aluno<strong>de</strong>clarou como en<strong>de</strong>reço localida<strong>de</strong> exterior ao Brasil. Assim <strong>de</strong>monstra oGráfico 7 abaixo:Gráfico 7 - Origem GeográficaSen<strong>do</strong> mais específico: <strong>do</strong>s que <strong>de</strong>claram morar na Zona Sul <strong>do</strong> Município<strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 38 indicaram Botafogo, 3 o Catete, 51 Copacabana,23 Flamengo, 5 Gávea, 3 Glória, 8 Humaitá, 18 Ipanema, 8 Jardim Botânico,7 Lagoa, 18 Laranjeiras, 26 Leblon, 1 Leme, 2 São Conra<strong>do</strong> e 4 Urca;<strong>do</strong>s que <strong>de</strong>claram morar na Zona Norte <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 1 indicou Anchieta, 2 Andaraí,1 Benfica, 2 bento Ribeiro, 1 Bonsucesso, 2 Cachambi, 1 Campinho,5 Engenho Novo, 4 Engenho <strong>de</strong> Dentro, 11 Grajaú, 14 Ilha <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r,5 Jardim Guanabara, 1 Jardim América, 2 Lins, 1 Madureira, 1 Maracanã,18 Méier, 1 Pieda<strong>de</strong>, 1 Portuguesa - Ilha <strong>do</strong> Governa<strong>do</strong>r, 1 Ramos, 1 RochaMiranda, 2 São Cristóvão, 56 Tijuca, 1 To<strong>do</strong>s os Santos, 1 Usina, 1 Vila daPenha, 9 Vila Isabel e 3 Vila Kosmos; <strong>do</strong>s que <strong>de</strong>clararam morar na ZonaR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 13


Oeste <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 68 indicaram Barra da Tijuca, 4 Campo Gran<strong>de</strong>, 2 Freguesia,1 Itanhangá, 21 Jacarepaguá, 1 Joá, 2 Praça Seca, 1 Pechincha, 1 Realengo,16 Recreio, 2 <strong>Rio</strong> Bonito, 1 <strong>Rio</strong> Centro, 1 Santa Cruz, 1 Sulacap, 4 Taquara,1 Vargem Gran<strong>de</strong> e 1 Vargem Pequena; <strong>do</strong>s que <strong>de</strong>clararam morar no Centro<strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 1 indicou o Bairro <strong>de</strong> Fátima, 2 o Centro, 1 Cida<strong>de</strong> Nova, 2 <strong>Rio</strong>Compri<strong>do</strong> e 2 Santa Teresa; <strong>do</strong>s que <strong>de</strong>clararam morar fora <strong>do</strong> Município<strong>do</strong> <strong>Rio</strong> mas, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 1 indicou o município <strong>de</strong>Angra <strong>do</strong>s Reis, 3 o <strong>de</strong> Barra Mansa, 2 Cambuci, 3 Duque <strong>de</strong> Caxias, 1 Itaboraí,1 Macaé, 1 Mesquita, 1 Miracema, 122 Niterói, 9 Nova Iguaçu, 8 Petrópolis,2 Quatis, 1 Resen<strong>de</strong>, 2 São João <strong>de</strong> Meriti, 1 São Pedro da Al<strong>de</strong>ia,1 São Fidélis, 6 São Gonçalo, 5 Teresópolis, 1 Valença e 4 Volta Re<strong>do</strong>nda;e <strong>do</strong>s que <strong>de</strong>clararam morar fora <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 1 indicou a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong>Além Paraíba, 6 <strong>de</strong> Aracaju, 7 Juiz <strong>de</strong> Fora, 1 Viçosa e 1 Vitória.A primeira hipótese que estes da<strong>do</strong>s revelam é a da origem <strong>de</strong>classe <strong>do</strong>s alunos, visto que 57,53% <strong>de</strong>les <strong>de</strong>clararam morar na Zona Sul<strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, na Barra da Tijuca ou em Niterói, origem <strong>de</strong> classe capaz <strong>de</strong> financiarum perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> tempo em que a preparação para o(s) concurso(s)impe<strong>de</strong> o ganho material e gera muitas <strong>de</strong>spesas. Outra hipótese interessanteé a da extensão das re<strong>de</strong>s sociais que legitimam a EMERJ nomerca<strong>do</strong> da preparação para concursos, no tocante à sua extensão geográfica.Isto se po<strong>de</strong> afirmar pela atração (ainda que tímida) <strong>de</strong> concursan<strong>do</strong>s<strong>de</strong> fora das adjacências da Cida<strong>de</strong> ou mesmo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong><strong>de</strong> Janeiro.6 – Faculda<strong>de</strong> on<strong>de</strong> se formou e tempo <strong>de</strong> forma<strong>do</strong>O primeiro da<strong>do</strong> a ser exposto neste capítulo é o seguinte: <strong>do</strong>s 704alunos da EMERJ, 549 se inscreveram no exame <strong>de</strong> seleção <strong>de</strong>pois da formaturaem Direito e 155 o fizeram antes, como <strong>de</strong>monstra o Gráfico 8abaixo:Gráfico 8 - Formatura e inscrição14R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Este da<strong>do</strong> me permite afirmar com eleva<strong>do</strong> grau <strong>de</strong> precisão que,no mínimo, mais <strong>de</strong> um quinto <strong>do</strong>s alunos da EMERJ já saiu da faculda<strong>de</strong>com a estratégia profissional que visa à preparação para o(s) concurso(s).O que resta saber, para os <strong>de</strong>mais, é se (1) a EMERJ se encaixa em umaestratégia contínua <strong>de</strong> preparação, a qual também teve início antes oucom a colação <strong>de</strong> grau, (2) em uma estratégia paralela <strong>de</strong> preparação, emque outro ofício é exerci<strong>do</strong> concomitantemente ou (3) em uma estratégia<strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> carreira (fican<strong>do</strong> claro que as estratégias 2 e 3 po<strong>de</strong>m secombinar).Para afinar minhas hipóteses prévias, vale citar da<strong>do</strong>s sobre otempo <strong>de</strong> formatura em Direito <strong>do</strong>s alunos da EMERJ. A média é <strong>de</strong> 3,7anos, haven<strong>do</strong> alunos ainda não gradua<strong>do</strong>s 6 e tem 28 anos <strong>de</strong> forma<strong>do</strong> oaluno gradua<strong>do</strong> há mais tempo. Dos 704 alunos da Escola, 27 ainda nãosão forma<strong>do</strong>s, 117 são forma<strong>do</strong>s até um ano, 187 forma<strong>do</strong>s entre um e<strong>do</strong>is anos, 123 alunos entre <strong>do</strong>is e três anos, 88 entre três e quatro, 38entre quatro e cinco, 24 entre cinco e seis, 22 entre seis e sete, 23 entresete e oito, 17 entre oito e nove, 6 entre nove e <strong>de</strong>z, 28 entre onze e vinteanos e 4 entre 21 e 28 anos, como se vê no Gráfico 9 abaixo:Gráfico 9 - Tempo <strong>de</strong> Forma<strong>do</strong>Na ausência <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s sobre o tempo médio <strong>de</strong> duração da preparação<strong>de</strong> um concursan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu início efetivo até a aprovação parao cargo que ele ocupará <strong>de</strong>finitivamente, as evidências no Gráfico 9 acimapo<strong>de</strong>m ser revela<strong>do</strong>ras. Se consi<strong>de</strong>rarmos que um tempo razoável <strong>de</strong>preparação oscila até quatro anos <strong>de</strong>pois da formatura, para mais <strong>de</strong> 75%<strong>do</strong>s alunos a EMERJ se encaixa num contexto <strong>de</strong> preparação que começoucom a formatura ou a (segunda ou terceira) formatura em Direito e já fazparte da mudança <strong>de</strong> carreira, enquanto os <strong>de</strong>mais <strong>de</strong>sistiram da profissãojurídica a qual vinham exercen<strong>do</strong>. Há que se especular também sobreos casos em que o exercício <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> profissional é necessário àmanutenção financeira da preparação.6 A data <strong>de</strong> referência para este da<strong>do</strong> é junho <strong>de</strong> 2009.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 15


Com relação à instituição on<strong>de</strong> os alunos da EMERJ obtiveram seubacharela<strong>do</strong> em Direito os da<strong>do</strong>s são os seguintes: 217 (30,82) alunos oobtiveram em instituições públicas <strong>de</strong> ensino superior e 487 (69,18%) eminstituições privadas. O Gráfico 10 abaixo enumera todas as Instituições<strong>de</strong> Ensino Superior apontadas pelos alunos e quantos se graduaram emcada uma <strong>de</strong>las:Gráfico 10 - Instituição <strong>do</strong> Bacharela<strong>do</strong>16R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


A incidência das instituições mencionadas, seu grau e a ausência <strong>de</strong>outras, po<strong>de</strong> nos fornecer muitas pistas sobre a organização das re<strong>de</strong>s sociaisque legitimam a EMERJ no merca<strong>do</strong> da preparação para concursos. Muitoembora não tenhamos os da<strong>do</strong>s referentes a to<strong>do</strong>s os participantes <strong>do</strong> processo<strong>de</strong> seleção, o que nos permitiria especular sobre sua performance emrelação ao curso <strong>de</strong> origem, o fato <strong>de</strong> quase 40% <strong>do</strong>s alunos da EMERJ seremgradua<strong>do</strong>s pelas Universida<strong>de</strong>s Candi<strong>do</strong> Men<strong>de</strong>s e Estácio <strong>de</strong> Sá é um forteindício <strong>de</strong> que o intercâmbio entre alunos e professores e alunos e ex-alunosé intenso entre a Escola e estas duas instituições. Não tenho acesso tambémaos da<strong>do</strong>s referentes ao número <strong>de</strong> bacharéis em Direito que cada uma<strong>de</strong>stas instituições graduam por semestre ou ano, <strong>de</strong> forma que o Gráfico10 acima não chega a provar um grau <strong>de</strong> parentesco institucional, pela circulação<strong>de</strong> professores e alunos, entre a EMERJ e as mencionadas Faculda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Direito, mas <strong>de</strong>monstra <strong>de</strong> certa forma que ele existe.7 – Profissão e empresa on<strong>de</strong> trabalhaOs da<strong>do</strong>s referentes ao preenchimento <strong>do</strong> campo “profissão” no“Requerimento <strong>de</strong> Matrícula” também são revela<strong>do</strong>res. Dos 704 alunosda Escola, 450 <strong>de</strong>clararam a profissão <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>, 120 a <strong>de</strong> estudante<strong>de</strong> direito, 55 servi<strong>do</strong>res públicos não pertencentes ao Po<strong>de</strong>r Judiciário,23 alunos não preencheram, 22 servi<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Judiciário (Técnicos,Analistas e Oficiais <strong>de</strong> Justiça Avalia<strong>do</strong>res), 15 bacharéis em Direito, 9 profissionaisliberais (carreiras não jurídicas), 4 militares, 3 advoga<strong>do</strong>s públicos(procura<strong>do</strong>res fe<strong>de</strong>rais, estaduais ou municipais) e 3 estagiários <strong>de</strong>Direito. É o que <strong>de</strong>monstra o Gráfico 11 abaixo:Gráfico 11 - ProfissãoA gran<strong>de</strong> disparida<strong>de</strong> entre os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Gráfico 11 e apenas meta<strong>de</strong><strong>do</strong>s alunos da EMERJ possuírem inscrição na OAB (da<strong>do</strong> veicula<strong>do</strong> no capítulo4) po<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ver a <strong>do</strong>is fatores: (1) no interregno entre a inscrição para oexame <strong>de</strong> seleção e a primeira matrícula alguns obtêm a inscrição na OAB, eR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 17


(2) mesmo sem a inscrição, a profissão <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong> é <strong>de</strong>clarada, seja porquea inscrição está em vias <strong>de</strong> ser obtida, seja porque se quer ocultar a condição<strong>de</strong> estudante, <strong>de</strong> estagiário ou <strong>de</strong> bacharel. Frise-se que esta suposta condutaapenas reforça minha hipótese <strong>de</strong> que uma maioria <strong>do</strong>s concursan<strong>do</strong>s se preparapara o(s) concurso(s) em tempo integral com suporte familiar, portanto anão posse <strong>de</strong> registro na OAB os levaria à condição formal <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprega<strong>do</strong>,e a posse apenas faria evi<strong>de</strong>nciar a distinção entre a profissão <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>e seu efetivo exercício. No tocante à estratégia <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> carreira,os que se <strong>de</strong>clararam servi<strong>do</strong>res externos ao judiciário, profissionais liberaisnão jurídicos e militares evi<strong>de</strong>nciam sua forma exógena, enquanto os servi<strong>do</strong>res<strong>do</strong> judiciário e, sobretu<strong>do</strong> os advoga<strong>do</strong>s públicos, evi<strong>de</strong>nciariam uma<strong>de</strong> suas formas endógenas: o que se chama hodiernamente <strong>de</strong> “escadinha”.Ou seja, uma estratégia em que se ingressa progressivamente em carreira(s)diferente(s) daquela planejada, porém que também garanta(m) estabilida<strong>de</strong>e sustento material, ainda que em menor grau.No campo seguinte, “empresa on<strong>de</strong> trabalha”, os da<strong>do</strong>s não são menosinteressantes, a começar pelo fato <strong>de</strong> 504 <strong>do</strong>s 704 alunos da EMERJ (71,59%)terem <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> este campo em branco. Vejamos o Gráfico 12 abaixo:Gráfico 12 - Empresa on<strong>de</strong> trabalha18R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Em certa medida o Gráfico 12 ajuda a refinar ainda mais o Gráfico11. Inicialmente, po<strong>de</strong>ríamos nos indagar acerca <strong>do</strong>s muitos motivos quelevam alguém a <strong>de</strong>ixar em branco um campo quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> preenchimento <strong>de</strong>um formulário. Isso apenas relativiza ainda mais a minha hipótese segun<strong>do</strong>a qual o alto grau <strong>de</strong> não preenchimentos <strong>do</strong> campo “empresa on<strong>de</strong>trabalha” apenas revela o fato <strong>de</strong> que a imensa maioria <strong>do</strong>s concursan<strong>do</strong>s<strong>de</strong>dica-se exclusivamente a essa ativida<strong>de</strong>, e, ainda que advoga<strong>do</strong>sinscritos não possuem um local <strong>de</strong> trabalho. No tocante às mudanças <strong>de</strong>carreira, é interessante notar que 59 alunos indicaram como emprega<strong>do</strong>rum órgão judiciário, <strong>do</strong>s quais 50 indicaram o <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> <strong>Rio</strong><strong>de</strong> Janeiro, 4 a Justiça Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 3 o <strong>Tribunal</strong> Regional <strong>do</strong>Trabalho e 2 o <strong>Tribunal</strong> regional Eleitoral. Ainda, se consi<strong>de</strong>rarmos o conjuntodas instituições on<strong>de</strong> se pratica o Direito, posso elencar 101 alunosindican<strong>do</strong> como emprega<strong>do</strong>r órgão afim ao judiciário, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> 65 indicaramum escritório <strong>de</strong> advocacia, 15 o <strong>de</strong>partamento jurídico <strong>de</strong> uma empresa 7 ,12 a Procura<strong>do</strong>ria <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ou <strong>do</strong> Município <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 3 o INSS, 2 o <strong>Tribunal</strong><strong>de</strong> Contas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong>, 1 a Advocacia Geral da União, 1 o BNDES, 1 aDefensoria Pública, e 1 o PROCON.8 – O currIculum vitaeConsi<strong>de</strong>ro que o exame <strong>do</strong> curriculum vitae <strong>do</strong>s alunos da EMERJ épeça fundamental para afinar as nossas hipóteses acerca <strong>do</strong> seu perfil. Ocurriculum vitae apresenta<strong>do</strong> pelos alunos possui em geral a forma empresarialcorporativa 8 , ten<strong>do</strong> um tamanho médio <strong>de</strong> uma página e meia,produzi<strong>do</strong> em editor <strong>de</strong> texto e impresso, e dividi<strong>do</strong> nas partes: da<strong>do</strong>spessoais, formação acadêmica, experiência profissional e línguas\informática.Além <strong>de</strong>ste padrão, muitos <strong>de</strong>dicaram boa parte à apresentação<strong>de</strong> quantos e quais cursos preparatórios frequentaram (módulos, intensivos,regulares...). Alguns também acrescentaram o campo “aprovaçõesem concursos”. Outros campos recorrentes em menor grau são: “outrasqualificações”, “motivações”, “referências pessoais”, “trabalhos voluntários”e “perfil psicológico”. Apenas cinco alunos se valeram <strong>de</strong> uma formadiferente: quatro apresentaram o curriculum vitae impresso a partir daplataforma Lattes\CNPq e um a partir da plataforma da Aeronáutica. Quarentae seis alunos não possuem curriculum vitae nas suas “pastas”.7 Sen<strong>do</strong> estes 80 talvez os inscritos na OAB que realmente exerçam a advocacia.8 Um aluno inclusive <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> suprimir a menção: “Pretensão salarial: a combinar”.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 19


A hipótese que me ocorre é <strong>de</strong> que entre os estudantes <strong>de</strong> Direito omo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>scrito anteriormente como majoritário é o que circula, e sua necessida<strong>de</strong>nasce e se afirma como mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>ntre aqueles que buscam estágioem escritórios ou empresas, enfim, no universo liberal-priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> Direito.8a – Experiência profissionalDe to<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>s pelos alunos em seus curriculum vitae,os concernentes à experiência profissional me pareceram os mais interessantes.Agrupamos os diferentes tipos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s mencionadas em quinzecategorias, a saber: estágio jurídico em órgão público, estágio jurídico emescritório <strong>de</strong> advocacia ou <strong>de</strong>partamento jurídico <strong>de</strong> empresa, advocacialiberal (autônomos, associa<strong>do</strong>s, sócios ou contrata<strong>do</strong>s em escritório <strong>de</strong> advocaciae contrata<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>partamentos jurídicos <strong>de</strong> empresas), estágiojurídico em núcleos <strong>de</strong> prática jurídica universitários (escritórios-mo<strong>de</strong>lo),vínculo profissional em órgão judiciário (analistas, técnicos e oficiais <strong>de</strong> justiçaavalia<strong>do</strong>res), aqueles sem indicações <strong>de</strong> experiência profissional no curriculumvitae ou sem o mesmo na pasta, ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conciliação judicial,monitoria em Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, vínculo profissional em órgão públiconão jurídico, assessoria direta a <strong>de</strong>sembarga<strong>do</strong>res, ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisaem Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito, ensino jurídico superior, advocacia pública (procura<strong>do</strong>res<strong>de</strong> ente fe<strong>de</strong>rativo ou órgão público), experiência militar e experiênciasprofissionais em Organizações Não Governamentais. O grau <strong>de</strong> incidência<strong>de</strong> cada uma das categorias é <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> no Gráfico 13 abaixo:Gráfico 13 - Experiência Profissional20R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


O que há <strong>de</strong> mais evi<strong>de</strong>nte nos da<strong>do</strong>s, inicialmente, é a pre<strong>do</strong>minânciadas ativida<strong>de</strong>s práticas sobre as acadêmicas nos históricos profissionais<strong>do</strong>s alunos. À exceção das ativida<strong>de</strong>s em escritórios-mo<strong>de</strong>lo (que já se situamna fronteira entre o ensino e a prática <strong>do</strong> Direito), as incidências <strong>do</strong>sestágios e da advocacia superam consi<strong>de</strong>ravelmente as da monitoria, pesquisae ensino em Direito. Nossa primeira hipótese no tocante à experiênciaprofissional da maioria <strong>do</strong>s alunos da EMERJ é, portanto, a <strong>de</strong> que as Faculda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> Direito cumprem um papel coadjuvante na sua formação profissional,fican<strong>do</strong> o protagonismo com o aprendiza<strong>do</strong> prático (entenda-se, comos práticos). Isto não po<strong>de</strong> me levar à afirmação <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong> que para amaioria <strong>do</strong>s concursan<strong>do</strong>s a estratégia <strong>de</strong> preparação para concursos vem<strong>de</strong> longa data e começa mesmo antes da formatura, e que o aprendiza<strong>do</strong>prático é seu elemento constitutivo, mas permanece como hipótese forte.Em segun<strong>do</strong> lugar, chama à atenção o fato <strong>de</strong> que alguns alunos indicamcomo experiência profissional ativida<strong>de</strong>s internas ao Po<strong>de</strong>r Judiciário,que necessitam da confiança direta <strong>de</strong> um magistra<strong>do</strong>, como a conciliaçãoe a assessoria a <strong>de</strong>sembarga<strong>do</strong>res. Tais ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>monstram umaafinida<strong>de</strong> prévia com a profissão judicial, não apenas pela familiarida<strong>de</strong>com o trabalho jurisdicional, mas pela familiarida<strong>de</strong> com magistra<strong>do</strong>s.Ainda, reforçan<strong>do</strong> a hipótese da estratégia da “escadinha”, encontramosas incidências <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> serventuário da justiça e advoga<strong>do</strong>público. Por fim, as incidências <strong>de</strong> serviço público não jurídico e <strong>de</strong> militares,além <strong>de</strong> reforçarem a hipótese da mudança exógena <strong>de</strong> carreira aindavinculam esta estratégia à afinida<strong>de</strong> ao serviço público.8b – Outros bacharela<strong>do</strong>sUm da<strong>do</strong> ainda extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong>s curriculum vitae <strong>do</strong>s alunos no tocanteà formação acadêmica é o referente a outros cursos <strong>de</strong> graduação além<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direito. Dos 704 alunos da EMERJ, 37 (5,25%) possuem outros cursos<strong>de</strong> graduação, a saber: Engenharia (6), História (3), Administração <strong>de</strong>Empresas (3), Ciências Sociais (3), Letras (3), O<strong>do</strong>ntologia (2), Psicologia(2), Arquitetura (1), Medicina (1), Artes Cênicas (1), Contabilida<strong>de</strong> (1), Enfermagem(1), Física (1), Astronomia (1), Teologia (1), Relações Internacionais(1), Comunicação (1), Formação Militar Superior (1), Geografia (1),Arquivologia (1) e Pedagogia (1). Este da<strong>do</strong>, ainda que <strong>de</strong> forma mitigada,contribui para o estabelecimento da diferença entre as estratégias endógenae exógena <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> carreira.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 21


8c – Estu<strong>do</strong>s jurídicos no exteriorDos 704 alunos da EMERJ, 21 (2,98%) possuem estu<strong>do</strong>s jurídicos noexterior, notadamente cursos <strong>de</strong> curta duração e o que conhecemos comograduação “sanduíche” 9 . Os países on<strong>de</strong> estes estu<strong>do</strong>s foram efetua<strong>do</strong>ssão os seguintes: Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s (8), Portugal (4), Inglaterra (4), França(2), Canadá (1), Alemanha (1) e Holanda (1).8d – Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> línguas no exteriorDos 704 alunos da EMERJ, 29 (4,12%) possuem estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> línguasno exterior, notadamente cursos <strong>de</strong> curta duração e o que conhecemospor “intercâmbio”. Os países on<strong>de</strong> estes estu<strong>do</strong>s foram efetua<strong>do</strong>s são osseguintes: Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s (11), Inglaterra (9), França (3), Espanha (2) Canadá(1), Alemanha (2) e Argentina (1).8e – Pós-Graduação, Especialização e MBADos 704 alunos da EMERJ, 53 (7,53%) possuem um título <strong>de</strong> Pós-Graduação lato sensu, Especialização ou MBA. As instituições responsáveispor estas titulações são as seguintes: Universida<strong>de</strong> Gama Filho (11),Universida<strong>de</strong> Estácio <strong>de</strong> Sá (10), Fundação Getúlio Vargas (7), Universida<strong>de</strong>Candi<strong>do</strong> Men<strong>de</strong>s (6), Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro – UERJ(5), Universida<strong>de</strong> Veiga <strong>de</strong> Almeida (4), Pontifícia Universida<strong>de</strong> Católica<strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro (2), Univercida<strong>de</strong> (2), Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense– UFF (2), Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Juiz <strong>de</strong> Fora (2), Universida<strong>de</strong> Católica<strong>de</strong> Petrópolis (1), Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (1).8f – Mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>Dos 704 alunos da EMERJ, 9 (1,28%) possuem títulos <strong>de</strong> mestre e<strong>do</strong>utor. Dos que possuem título <strong>de</strong> mestre, apenas quatro o são em Direito,sen<strong>do</strong> as <strong>de</strong>mais áreas Educação (1), Morfologia (1), História (1), Física(1 – mestra<strong>do</strong> e <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>), Mestra<strong>do</strong> em Instituição Militar (1). Estesda<strong>do</strong>s reforçam ainda mais a hipótese formulada no item 8b acima.9 – Diferenças entre os alunos das turmas da manhã e da noiteA afirmação frequente acerca das diferenças <strong>de</strong> perfil <strong>do</strong>s alunosem cursos em que a mesma formação é ministrada nos turnos diurno e9 Consiste no cumprimento <strong>de</strong> um semestre <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> graduação no Brasil em Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito no exterior.22R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


noturno é a <strong>de</strong> que nas turmas da manhã encontramos um público maisjovem e motiva<strong>do</strong>, enquanto nas turmas da noite um público <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>mais avançada e que estuda concomitantemente a outras ativida<strong>de</strong>sdiurnas. Este não é exatamente o caso da EMERJ. Por esta razão <strong>de</strong>cidi<strong>de</strong>dicar um capítulo <strong>de</strong>ste trabalho às diferenças <strong>de</strong> perfil entre os alunosda manhã (CPs “a” e “b”) e da noite (CPs “c”). É preciso informar ao leitorque as pastas <strong>do</strong>s alunos são organizadas por turma, portanto os da<strong>do</strong>sapresenta<strong>do</strong>s neste capítulo são referentes ao esta<strong>do</strong> atual da divisãoentre manhã e noite. Esta informação é necessária uma vez que a EMERJpossibilita aos seus alunos a transferência <strong>de</strong> turno, haven<strong>do</strong> justificativae disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vagas no turno <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>.Assim, o primeiro da<strong>do</strong> a ser trazi<strong>do</strong> é a questão da opção inicial<strong>de</strong> turno. A primeira informação a ser preenchida na “Ficha <strong>de</strong> inscrição”<strong>do</strong> concurso <strong>de</strong> seleção é a opção <strong>de</strong> turno. A própria ficha indica queos campos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a cada um <strong>do</strong>s turnos <strong>de</strong>vem ser preenchi<strong>do</strong>s emor<strong>de</strong>m <strong>de</strong> preferência usan<strong>do</strong> os números “1” e “2”. A maioria <strong>do</strong>s alunospreencheu a ficha <strong>de</strong>sta forma, porém alguns <strong>de</strong>les apenas marcaram um“x” no único turno <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>. Dos 704 alunos da EMERJ, 19 marcaram apenaso turno da manhã, 566 marcaram o turno da manhã como primeiraopção e o da noite como segunda, 5 marcaram apenas o turno da noite e114 marcaram o turno da noite como primeira opção e o da manhã comosegunda. É o que mostra o Gráfico 14 abaixo:Gráfico 14 - Opção <strong>de</strong> TurnoA primeira diferença a ser analisada é a relativa à ida<strong>de</strong>. Na verda<strong>de</strong>a diferença entre as médias <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s alunos da manhã e da noite émínima. Os alunos da manhã têm ida<strong>de</strong> média <strong>de</strong> 28,67 anos e os da noite29,91 anos, <strong>de</strong>smentin<strong>do</strong> a premissa da visível diferença <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> entre osturnos. No tocante ao gênero, a feminização é a regra para ambos os turnos,sen<strong>do</strong> a concentração <strong>de</strong> mulheres maior no turno da manhã (73,68%) queno da noite (58,57%), como <strong>de</strong>monstra o Gráfico 15 abaixo:R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 23


Gráfico 15 - Gênero x TurnoEstes da<strong>do</strong>s em parte corroboram a hipótese formulada no capítulo2 acima, segun<strong>do</strong> a qual seria mais difícil para os homens abrir mão<strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> profissional remunerada em prol <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicação exclusivaà preparação para o(s) concurso(s), o que os tornaria mais concentra<strong>do</strong>sno turno da noite. No tocante ao esta<strong>do</strong> civil, veja-se o Gráfico16 abaixo:Gráfico 16 - Esta<strong>do</strong> Civil x TurnoO gráfico acima não aponta diferenças consi<strong>de</strong>ráveis na distribuição<strong>do</strong>s divorcia<strong>do</strong>s e separa<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> em ambos os turnos a hiperconcentração<strong>de</strong> solteiros a regra. No tocante aos casa<strong>do</strong>s é que o mais interessanteda<strong>do</strong> é revela<strong>do</strong>. Ao contrário <strong>do</strong> que se po<strong>de</strong>ria imaginar, os alunoscasa<strong>do</strong>s são pouco mais concentra<strong>do</strong>s no turno da manhã (13,97%) queno turno da noite (13,33%). Este da<strong>do</strong> reforça a hipótese levantada nocapítulo 3 acima, segun<strong>do</strong> a qual a <strong>de</strong>dicação exclusiva à preparação aosconcursos é <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> um projeto familiar <strong>de</strong> suporte moral e sobretu<strong>do</strong>financeiro, <strong>do</strong>s pais ou <strong>do</strong> cônjuge.No que concerne à inscrição na OAB, as diferenças são pouco significativas,uma vez que no turno da manhã 48,78% <strong>do</strong>s alunos possui a inscriçãoe no turno da noite, 53,33%. É o que <strong>de</strong>monstra o Gráfico 17 abaixo:24R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Não po<strong>de</strong>ria terminar este capítulo sem um da<strong>do</strong> fundamental paraa compreensão das (poucas) diferenças <strong>de</strong> perfil entre os alunos da manhãe da noite: exatamente (50%) <strong>do</strong>s alunos atualmente matricula<strong>do</strong>s ànoite marcaram em suas fichas <strong>de</strong> inscrição no exame <strong>de</strong> seleção o turnoda noite como primeira ou única opção, enquanto uma imensa maioria(97,17%) <strong>do</strong>s alunos atualmente matricula<strong>do</strong>s no turno da manhã marcaramem suas fichas <strong>de</strong> inscrição no exame <strong>de</strong> seleção o turno da manhãcomo primeira ou única opção. É o que mostra o Gráfico 18 abaixo:Gráfico 18 - Opção <strong>de</strong> Turno x TurnoIsto se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que não há espaço no turno da manhã parato<strong>do</strong>s que o têm como preferencial. Por outro la<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se afirmar queo perfil <strong>do</strong> concursan<strong>do</strong> mais jovem, optan<strong>do</strong> pela estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicaçãoexclusiva à preparação para o(s) concurso(s) sem outra ativida<strong>de</strong>profissional prévia e com suporte familiar, seja o perfil marcadamentemajoritário. Cumpre explicar que a realização das preferências <strong>de</strong> turnoestá condicionada à performance <strong>de</strong> cada aluno no exame <strong>de</strong> seleçãopara o ingresso na EMERJ, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> também ocorrer, durante o curso, atransferência <strong>de</strong> turno, que tem como justificativa pre<strong>do</strong>minante a mudança<strong>de</strong> situação profissional no fluxo manhã-noite e a violência nofluxo noite-manhã.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 25


10 – O “aluno-tipo” da EMERJComo vimos, é possível i<strong>de</strong>ntificar tendências majoritárias e minoritárias,isolar fluxos <strong>de</strong> regularida<strong>de</strong> e traçar elementos <strong>de</strong>scritivos sobreos alunos da EMERJ. Os da<strong>do</strong>s não apontam para uma direção, mas paraum perfil multifacetário, <strong>de</strong> forma a impossibilitar a construção <strong>de</strong> umtipo <strong>de</strong> aluno da EMERJ, mas sim <strong>de</strong> tipos <strong>de</strong> aluno da EMERJ. No entanto,a aplicação <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> tipo-i<strong>de</strong>al para a construção <strong>do</strong> “aluno-tipo”po<strong>de</strong> representar um exercício interessante a este ponto <strong>do</strong> trabalho,muito embora seja um uso vulgariza<strong>do</strong> da ferramenta teórica weberiana.Desta forma, o “aluno-tipo” da EMERJ é uma mulher <strong>de</strong> 29 anos,solteira, resi<strong>de</strong>nte na Zona Sul <strong>do</strong> município <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, formadaem Direito há três anos e meio pela Universida<strong>de</strong> Candi<strong>do</strong> Men<strong>de</strong>s, estudan<strong>do</strong>na EMERJ pela manhã com matrícula ativa e regular, inscrita naOAB mas não pratican<strong>do</strong> a advocacia, já ten<strong>do</strong> exerci<strong>do</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> estágiojurídico em instituições públicas e privadas, e frequenta<strong>do</strong> algunsoutros cursos preparatórios para concurso(s). Des<strong>de</strong> que se formou, ela<strong>de</strong>dica-se exclusivamente às ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> preparação <strong>do</strong>(s) concurso(s),para o que conta com suporte familiar.11 – A concorrência para o ingresso na EMERJConforme já menciona<strong>do</strong>, para integrar o “Curso <strong>de</strong> Especializaçãoem Direito para a Carreira da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong>Janeiro” 10 é necessário passar por um processo <strong>de</strong> seleção 11 . Este processoconsiste na aplicação <strong>de</strong> provas escritas das seguintes disciplinas:Direito Constitucional, Direito Civil, Direito Processual Civil, DireitoEmpresarial, Direito Penal, Direito Processual Penal, Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>re Língua Portuguesa.Os da<strong>do</strong>s sobre esta seleção foram colhi<strong>do</strong>s na própria SecretariaAcadêmica. Dentro da pasta <strong>de</strong> cada aluno, encontra-se uma folha informan<strong>do</strong>,além <strong>do</strong> seu resulta<strong>do</strong> no exame <strong>de</strong> seleção, os da<strong>do</strong>s gerais referentesao mesmo. Há um <strong>de</strong>staque a ser feito sobre a organização <strong>de</strong>stes10 Este curso não é gratuito, sua mensalida<strong>de</strong> atualmente monta o valor aproxima<strong>do</strong> <strong>de</strong> R$ 700,00 (setecentosReais). Embora não possua uma política <strong>de</strong> bolsas, a EMERJ, mediante requerimento justifica<strong>do</strong> e analisa<strong>do</strong> caso acaso, conce<strong>de</strong> bolsas <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> cujos valores oscilam entre 5% e 100% <strong>do</strong> valor da mensalida<strong>de</strong>.11 Já se nota no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro a existência <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> uma instituição que oferece curso preparatório para o exame<strong>de</strong> seleção da EMERJ.26R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


da<strong>do</strong>s: como a pesquisa foi efetuada no final <strong>do</strong> primeiro semestre <strong>de</strong>2009, já se possuía o resulta<strong>do</strong> da seleção para o CP1 a começar nosegun<strong>do</strong> semestre.Nos seis últimos processos <strong>de</strong> seleção, 3.854 pessoas se inscreveram,1.345 foram aprovadas e 970 classificadas, numa concorrência média<strong>de</strong> 25,17%, sen<strong>do</strong> a concorrência a razão entre o número <strong>de</strong> classifica<strong>do</strong>se o número total <strong>de</strong> candidatos inscritos. Portanto, nas últimas seisseleções, em média, para cada quatro concorrentes apenas um conseguiuintegrar a EMERJ. A Tabela 1 abaixo <strong>de</strong>monstra os números referentes àcada uma das seleções:Seleção EMERJ Candidatos aprova<strong>do</strong>s Classifica<strong>do</strong>s Concorrência2009.12008.22008.12007.22007.12006.256351664755192964817313527218635222717013016017017017030,20%25,19%24,73%30,85%18,30%26,23%Total 3854 1345 970 25,17%12 – A performance nos concursos da magistratura fluminense(1997-2008)Por fim, os últimos da<strong>do</strong>s a serem trazi<strong>do</strong>s são os referentes à performance<strong>do</strong>s alunos da EMERJ nos concursos <strong>de</strong> seleção para o ingresso nacarreira da magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro. A compilação <strong>de</strong>stesda<strong>do</strong>s é <strong>do</strong> próprio <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça, o que me coube foi apenas sua organizaçãoe apresentação. Inicialmente o que me cumpre informar é que osda<strong>do</strong>s em questão são referentes ao número total <strong>de</strong> classifica<strong>do</strong>s e, <strong>de</strong>ntreeles, quantos são da EMERJ, nos 16 concursos realiza<strong>do</strong>s entre 1997 e 2008.Cabe <strong>de</strong>stacar que o critério utiliza<strong>do</strong> para quantificar quais <strong>de</strong>ntre os classifica<strong>do</strong>ssão “da” EMERJ consi<strong>de</strong>rou (1) to<strong>do</strong>s aqueles que já terminaramo curso, (2) to<strong>do</strong>s aqueles que se encontram matricula<strong>do</strong>s no curso e (3)to<strong>do</strong>s aqueles que, mesmo não ten<strong>do</strong> termina<strong>do</strong> o curso, tiveram por elealguma passagem. O Gráfico 19 abaixo apresenta os resulta<strong>do</strong>s:R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 27


Gráfico 19 - Desempenho no Concurso <strong>do</strong> TJRJ (1997-2008) - Fonte EMERJNo tocante à performance, po<strong>de</strong>mos dizer que a cada <strong>do</strong>is juízesestaduais recruta<strong>do</strong>s no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro entre os anos <strong>de</strong> 1997 e 2008, um<strong>de</strong>les “vem da” EMERJ, numa variação que oscila entre 25% e 76,92%,sen<strong>do</strong> a performance a razão entre o número <strong>de</strong> classifica<strong>do</strong>s “da” EMERJe o número total <strong>de</strong> classifica<strong>do</strong>s, como <strong>de</strong>monstra a Tabela 2 abaixo:13 – ConclusãoPor que alguém <strong>de</strong>dica tempo consi<strong>de</strong>rável da sua vida e muitosrecursos financeiros para se preparar para concursos, especialmente para28R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


as carreiras <strong>de</strong> nível superior na área <strong>de</strong> Direito? Porque passar por provaçõese restrições <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a um elevadíssimo grau <strong>de</strong> concorrência? Seriapelos eleva<strong>do</strong>s salários? Pela estabilida<strong>de</strong>? Pelos vários benefícios? Pelostatus social <strong>do</strong> cargo? Ou ainda, pela combinação <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s estes fatores?Para mim, este “porquê” interessa muito pouco.O que interessa é, uma vez que tratamos <strong>de</strong> pessoas que voluntariamentese inserem e se mantêm 12 nesta situação social, COMO elasmobilizam meios na consecução <strong>de</strong>ste fim. Preparar-se para um concursonão é apenas acumular conhecimentos técnicos <strong>do</strong> Direito capazes <strong>de</strong>incrementar a realização <strong>de</strong> exames <strong>de</strong> seleção. Preparar-se para um concursosignifica inserir-se em um contexto específico, em um emaranha<strong>do</strong><strong>de</strong> interações interpessoais on<strong>de</strong> há acumulação e troca <strong>de</strong> recursostécnicos, sociais, financeiros e cognitivos a serem mobiliza<strong>do</strong>s na persecução<strong>do</strong> fim pretendi<strong>do</strong>: passar.Assim, o que sustento é que toda esta economia <strong>de</strong> recursos, estruturante<strong>de</strong> um contexto social não é simplesmente aban<strong>do</strong>nada ou convertidaquan<strong>do</strong> <strong>do</strong> ingresso efetivo na carreira, mas tem forte incidênciasobre a formação <strong>do</strong> perfil profissional da mesma. Assim, tomar os concursan<strong>do</strong>s– grupo que ganha homogeneida<strong>de</strong> na medida em que comungae se mantém coeso por circunstâncias <strong>de</strong> fato – como objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>é também um passo importante para a construção <strong>de</strong> uma sociologia dasprofissões jurídicas. É evi<strong>de</strong>nte que os alunos da EMERJ não generalizamesta enorme população, mas servem <strong>de</strong> campo fértil para o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> ferramental meto<strong>do</strong>lógico e formulação <strong>de</strong> hipóteses.Portanto, categorias como motivação e vocação importam poucopara a compreensão <strong>do</strong> agir <strong>do</strong>s concursan<strong>do</strong>s. A dimensão subjetiva oumesmo psicológica da orientação que amalgama seus meios e fins apenasganha interesse na medida em que se objetiva em cursos <strong>de</strong> ação, escolhi<strong>do</strong>sdiante <strong>de</strong> uma paleta <strong>de</strong> opções possíveis. Estes é que dão inteligibilida<strong>de</strong>sociológica à ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preparação para concursos, uma vez quesão eles que são observáveis e <strong>de</strong>scritíveis.No tocante à dinâmica envolvida nas interações em questão, consi<strong>de</strong>rooportuno o uso da teoria <strong>do</strong>s jogos como plano compreensivo. Eunão estou me referin<strong>do</strong> ao equilibrium <strong>de</strong> Nash ou ao optimum <strong>de</strong> Pareto,tampouco à aplicação jurídica <strong>de</strong>ste último por Posner e toda a corrente<strong>do</strong> law and economics. Refiro-me ao uso da metáfora <strong>do</strong> jogo que faz12 Evi<strong>de</strong>ntemente, existem aqueles que <strong>de</strong>sistem <strong>de</strong>ste curso <strong>de</strong> ação.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 29


Goffman para compreen<strong>de</strong>r interações sociais envolven<strong>do</strong> concorrênciaentre atores em situações <strong>de</strong> risco e consequencialida<strong>de</strong>. Por esta razãome permito tratar estes cursos <strong>de</strong> ação como estratégias.Desta forma, as estratégias mapeadas neste trabalho são basicamenteduas: a da <strong>de</strong>dicação exclusiva e a da mudança <strong>de</strong> carreira. A estratégiada <strong>de</strong>dicação exclusiva po<strong>de</strong> possuir a forma pura ou progressiva(a “escadinha”) e a estratégia da mudança <strong>de</strong> carreira po<strong>de</strong> possuir a formaendógena ou exógena. A distinção básica entre as duas é o momentoem que são a<strong>do</strong>tadas. A estratégia da <strong>de</strong>dicação exclusiva é a<strong>do</strong>tadalogo após à formatura e mantida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, quan<strong>do</strong> o ator aban<strong>do</strong>na acondição <strong>de</strong> estudante e a<strong>do</strong>ta diretamente a <strong>de</strong> concursan<strong>do</strong>. A estratégiada mudança <strong>de</strong> carreira ocorre durante o curso <strong>de</strong> outra ativida<strong>de</strong>profissional. A incidência <strong>de</strong> cada uma das estratégias, suponho, possuicaráter numericamente <strong>de</strong>crescente, em que uma maioria a<strong>do</strong>taria a estratégiada <strong>de</strong>dicação exclusiva pura e uma minoria, a da mudança <strong>de</strong> carreiraexógena.A estratégia da <strong>de</strong>dicação exclusiva pura implica a a<strong>do</strong>ção da preparaçãodireta para a(s) carreira(s) <strong>de</strong>sejada(s) imediatamente após a formatura,fican<strong>do</strong> claro que durante o curso <strong>de</strong> graduação vários outros cursos<strong>de</strong> ação po<strong>de</strong>m ter si<strong>do</strong> toma<strong>do</strong>s no objetivo <strong>de</strong> preparar esta estratégia.Nesta modalida<strong>de</strong> o suporte financeiro importa sobremaneira, pois não épossível calcular o tempo necessário para o ingresso na carreira pretendida,único fato capaz <strong>de</strong> fazer cessar a situação <strong>de</strong> ganho material zero eelevadas <strong>de</strong>spesas.A estratégia da <strong>de</strong>dicação exclusiva progressiva apenas difere dapura na medida em que múltiplas tentativas <strong>de</strong> acesso a carreiras diferentesda pretendida funcionam como elemento <strong>de</strong> compactação <strong>do</strong> temponecessário à alteração da situação financeira, uma vez que às outras carreirasque compõem a “escadinha” o acesso apresenta menos concorrênciae provas menos complexas. Esta estratégia é a<strong>do</strong>tada para compensaras restrições econômicas <strong>de</strong> um menor suporte familiar e\ou a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> outras fontes <strong>de</strong> financiamento como crédito ou uso <strong>de</strong> economias.Esta estratégia comporta até aqueles que realizam uma ativida<strong>de</strong> remuneradadurante a preparação, se tiver o fim exclusivo <strong>de</strong> financiá-la.A estratégia <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> carreira endógena é aquela em que umprofissional jurídico, no curso <strong>de</strong> uma carreira (ainda que pública), <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>aban<strong>do</strong>ná-la para se preparar para concursos. É importante notar que a30R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011


partir <strong>de</strong>sse momento os <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos são os mesmos das duas estratégiasanteriores, e po<strong>de</strong> também ocorrer a manutenção da ativida<strong>de</strong>anterior para financiar a preparação.Por fim, a estratégia da mudança <strong>de</strong> carreira exógena é aquelaem que um profissional <strong>de</strong> área diferente da jurídica (ainda que pública)<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> aban<strong>do</strong>ná-la para se preparar para concursos jurídicos. Nestecaso, o curso <strong>de</strong> Direito não seria uma fase preparatória da estratégia,mas parte integrante <strong>de</strong>la. A partir daqui é importante notar que, além<strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> ação já previstos anteriormente, <strong>de</strong>ve-se adicionar a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> manutenção da ativida<strong>de</strong> anterior como financia<strong>do</strong>ra daestratégia ou mesmo uma mudança para uma ativida<strong>de</strong> jurídica remuneradapara tanto.Uma última distinção é cabível a este ponto. O trabalho mencionatrês categorias que não po<strong>de</strong>m se confundir, quais sejam: projeto familiar,suporte familiar e planejamento familiar. Projeto familiar é a participaçãoda família no processo <strong>de</strong> avaliação das chances <strong>de</strong> concorrência, feitopor cada concursan<strong>do</strong>, bem como na própria ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> preparação,fornecen<strong>do</strong> ao mesmo vários recursos, não apenas financeiros, mas tambémmorais e psicológicos. Suporte familiar é a simples transferência <strong>de</strong>recursos financeiros da família para o concursan<strong>do</strong> durante a preparação.Planejamento familiar é a perspectiva <strong>do</strong> concursan<strong>do</strong> <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong>status, como casar-se, ter filhos... enfim, toda a <strong>de</strong>cisão íntima que impliqueacréscimo <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> e in<strong>de</strong>pendência.Evi<strong>de</strong>ntemente são muitas as nuances que po<strong>de</strong>m ser imaginadasacerca das estratégias aqui <strong>de</strong>scritas, até mesmo a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cursos<strong>de</strong> ação que, por seu caráter <strong>de</strong>sestrutura<strong>do</strong>, não configurariam umaverda<strong>de</strong>ira estratégia, o que apenas é possível melhor mapear medianteo uso complementar <strong>de</strong> abordagens <strong>de</strong> pesquisa qualitativa. Como já tivea oportunida<strong>de</strong> lecionar e <strong>de</strong> observar aulas na EMERJ, realizar grupos focaiscom alunos e entrevistas com dirigentes, é um trabalho que preten<strong>do</strong>realizar em breve.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 7-31, out.-<strong>de</strong>z. 2011 31


Breves Apontamentos Acercada Proteção Contratual <strong>do</strong>Consumi<strong>do</strong>r Vista à Luzda Lei n. 8.078/90Adriano Roberto VancimAdvoga<strong>do</strong> licencia<strong>do</strong>. Professor colabora<strong>do</strong>r, conteudistada disciplina Direito Administrativo no curso<strong>de</strong> Pós-Graduação da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação SãoLuís/SP.1 - IntroduçãoCom efeito, surgiram as lições e traduções <strong>do</strong> Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>rpelas disposições Constitucionais <strong>do</strong> art. 5°, inciso XXXII, art. 170, inciso Ve art. 48 <strong>do</strong> ADCT, robustecen<strong>do</strong>-se a tais normas o art. 1° <strong>do</strong> CDC.Seguin<strong>do</strong> melhor <strong>do</strong>utrina, gran<strong>de</strong> maioria das normas jurídicasprescritas pela legislação consumerista possuem natureza <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mpública, in<strong>de</strong>rrogáveis e intangíveis, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se inferir, mediante a edição<strong>do</strong> CDC, o que se <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> “dirigismo contratual”, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, aintervenção estatal, visan<strong>do</strong> apenas “manter a or<strong>de</strong>m”, buscou proteger oconsumi<strong>do</strong>r, reconhecen<strong>do</strong>-o como parte sensível na relação.Segun<strong>do</strong> pontifica<strong>do</strong> no art. 1° <strong>do</strong> CDC, “o presente Código estabelecenormas <strong>de</strong> proteção e <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública e interessesocial, nos termos <strong>do</strong> art. 5°, inc. XXXII, 170, inciso V, da ConstituiçãoFe<strong>de</strong>ral e art. 48 <strong>de</strong> suas Disposições Transitórias”.A necessida<strong>de</strong> da tutela legal <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r emergiu da imensaexpansão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> consumo, produtivo em larga escala, robusteci<strong>do</strong>com suas normas técnicas daquele que <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>rio econômicoe financeiro imperante, ten<strong>do</strong> havi<strong>do</strong> a obrigação <strong>de</strong> forte intervençãoestatal direcionada a estabelecer equilíbrio nas relações contratuais compactuadas,sobretu<strong>do</strong> ante a vulnerabilida<strong>de</strong> técnica <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.32R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Deu-se a intervenção sob a nomenclatura <strong>de</strong> dirigismo ou <strong>de</strong>limitaçãocontratual, como atuação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r estatal para a mantença da or<strong>de</strong>mjurídica perfeita, ante o liberalismo econômico vigorante.Assim, pautou-se em reequilibrar a relação <strong>de</strong> consumo, ora estabelecen<strong>do</strong>vigas mestras a direitos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, ora coibin<strong>do</strong> ou repreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>práticas abusivas <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> perpetradas pelos fornece<strong>do</strong>res.A codificação das disposições advindas da ‘relação <strong>de</strong> consumo’buscou inspiração nos mesmos mo<strong>de</strong>los intervencionistas estatais, <strong>do</strong>Projet <strong>de</strong> Co<strong>de</strong> <strong>de</strong> La Consommation, das leis gerais espanholas (Leygeneral para La Defensa <strong>de</strong> los Consumi<strong>do</strong>res y Usuarios) das or<strong>de</strong>nações<strong>de</strong> Portugal, México, especificamente em algumas matérias, das DiretivasEuropeias, <strong>de</strong> legislações alemãs e americanas, preferin<strong>do</strong> a meras disposiçõesem leis esparsas como “mo<strong>de</strong>lo priva<strong>do</strong>”.A sustentação à legislação consumerista foi tratada constitucionalmentecomo cláusula pétrea <strong>de</strong> imutabilida<strong>de</strong>, dada a premente necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> codificação em favor <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, pelo qual o Constituinte Origináriooptou e fez constar pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> qualquer ato ou fatosuperveniente possível a repelir a garantia <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r,dispon<strong>do</strong> no art. 5° que “o Esta<strong>do</strong> promoverá, na forma da lei, a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r”.Assim proce<strong>de</strong>u, fixan<strong>do</strong> prazo para a elaboração da codificaçãoconsumerista, no prazo <strong>de</strong> 120 dias a contar da promulgação da ConstituiçãoFe<strong>de</strong>ral, consoante art. 48 <strong>do</strong> ADCT: “O Congresso Nacional, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código <strong>de</strong><strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r”.Ainda que i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> como ramo <strong>do</strong> Direito Priva<strong>do</strong>, compõe-se oCDC <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública e cogentes, imperativas por expressão,inafastáveis e intangíveis, sob pena <strong>de</strong>, ocorren<strong>do</strong> disposição contratualem contrário, estas serem reconhecidas como nulas <strong>de</strong> pleno direito,como se dá, v.g. em casos <strong>de</strong> restrição ao direito <strong>de</strong> arrependimento.Tais normas são também consi<strong>de</strong>radas <strong>de</strong> interesse social, in<strong>de</strong>rrogáveispor vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s interessa<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>terminada relação <strong>de</strong> consumo,não produzin<strong>do</strong> efeito.Estamos diante <strong>de</strong> uma das maiores legislações evolutivas, queaten<strong>de</strong> aos anseios daquele que mais se utiliza <strong>do</strong> CDC, sen<strong>do</strong> incessantementeaplica<strong>do</strong> e verifica<strong>do</strong> seu senti<strong>do</strong> teleológico na prática forense, emque pese sua jovialida<strong>de</strong> legislativa.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 33


Em específico, a proteção <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r é hoje vista como norma<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública, o que significa <strong>de</strong>terminar que qualquer cláusula ounorma que eventualmente contravenha, afaste ou aniquile o direito <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r será reputada nula <strong>de</strong> pleno direito, não surtin<strong>do</strong> os espera<strong>do</strong>sefeitos que recomendaram sua edição.Inegavelmente, a finalida<strong>de</strong> teleológica consumerista é exatamente osuprimento e incondicional garantia ao consumi<strong>do</strong>r, compreendi<strong>do</strong> como<strong>de</strong>stinatário final <strong>do</strong> produto ou serviço disponibiliza<strong>do</strong>.A par <strong>do</strong> exposto, pautaremos em apresentar, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> singelo e <strong>de</strong>forma sintética, as principais circunstâncias legais regidas pela lei 8.078/90atinentes à proteção contratual <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.2. Princípios Imanentes2.1. Princípio da Conservação <strong>do</strong> Contrato (art. 6, V e 51 § 2)Deste princípio emerge a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revisão das cláusulascontratuais ante a ocorrência <strong>de</strong> fatos supervenientes que as tornemexcessivamente onerosas, bem assim a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modificação dascláusulas contratuais que estabeleçam prestações excessivamente <strong>de</strong>sproporcionais,observan<strong>do</strong>-se o caráter teleológico da relação <strong>de</strong> consumo.Neste ínterim, em favor <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, há certa mitigação ao princípio<strong>do</strong> “pacta sunt servanda”, sobretu<strong>do</strong> em regra por se materializaremos contratos em a<strong>de</strong>são.Registre-se que a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revisão e modificação das cláusulascontratuais, encontra arrimo na vulnerabilida<strong>de</strong> a que se expõe oconsumi<strong>do</strong>r, na boa-fé e equilíbrio que <strong>de</strong>vem reger a relação, e principalmentena incessante busca pela isonomia contratual entre as partes.2.2. Princípio da Boa-Fé (art. 4, III)Embora inicialmente prevista no capítulo “da política nacional <strong>de</strong>relações <strong>de</strong> consumo” e em seção “das cláusulas abusivas”, há que compreen<strong>de</strong>ra boa-fé como cláusula geral contratual, sen<strong>do</strong> presente na relação<strong>de</strong> consumo a boa-fé objetiva, como um standard, que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> comprovação<strong>de</strong> má-fé subjetiva <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r ou mesmo <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.Conforme outrora assinala<strong>do</strong>, as partes contratantes <strong>de</strong>vem pautarcom probida<strong>de</strong> e lealda<strong>de</strong> suas condutas, como <strong>de</strong>ver inerente à honestida<strong>de</strong>,buscan<strong>do</strong> conferir equilíbrio nas posições contratuais.34R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Agin<strong>do</strong> assim, garante-se a contratação sem abuso, sem obstruçãoe sem constrangimento e prejuízo a qualquer das partes, coliman<strong>do</strong> <strong>de</strong>stemo<strong>do</strong> ao fim perquiri<strong>do</strong> com a <strong>de</strong>sejada contratação.A boa-fé, <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>, atua como instrumento <strong>de</strong> regra <strong>de</strong> condutae interpretação contratual, tornan<strong>do</strong> viável a garantia <strong>do</strong>s direitos básicos<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, como ocorre com a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana e garantiasconstitucionais como a da or<strong>de</strong>m econômica.Tem-se seus sub-princípios:a) Dever <strong>de</strong> cooperação ou solidarieda<strong>de</strong> – Estabelece-se o <strong>de</strong>ver<strong>de</strong> as partes cooperarem umas com as outras no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> atingir oalmeja<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo contratual firma<strong>do</strong>.b) Dever <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong> – Expressa o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> segurança que umaparte <strong>de</strong>ve ter com relação à outra, em harmonioso respeito, <strong>de</strong> sorte aevitar a ocorrência <strong>de</strong> danos nas esferas moral e material.2.3. Princípio da EquivalênciaSen<strong>do</strong> o consumi<strong>do</strong>r reconhecidamente parte vulnerável e hipossuficiente,mister a manutenção <strong>do</strong> equilíbrio existente entre prestações econtraprestações firmadas.2.4. Princípio da Igualda<strong>de</strong> (art. 6, II)Há que se estabelecer e garantir tratamento igual às partes, sen<strong>do</strong>admitidas iguais condições. A ressalva existente impera quanto a privilégiosa consumi<strong>do</strong>res que necessitem <strong>de</strong> condições especiais.2.5. Princípio <strong>do</strong> Dever <strong>de</strong> Prestar (arts. 6, III, 30 e 31)Constitui o mandamento por meio <strong>do</strong> qual o fornece<strong>do</strong>r está obriga<strong>do</strong>a prestar, <strong>de</strong> maneira clara e precisa, em linguagem objetiva e acessível,todas as informações <strong>de</strong>vidas referentes aos produtos e serviçospostos na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> consumo, atinentes a suas características, composição,qualida<strong>de</strong>s, quantida<strong>de</strong>s, preço, garantia, prazo <strong>de</strong> valida<strong>de</strong>, riscosque apresentem, <strong>de</strong>ntre outras.Frise-se, também, o caráter vinculante da oferta, apresentação oupublicida<strong>de</strong>, no exato termo <strong>de</strong> sua divulgação ou publicação.Apresenta o seguinte sub-princípio:R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 35


a) Princípio ou <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> transparência – Aqui, o fornece<strong>do</strong>r estáadstrito a dar conhecimento ao consumi<strong>do</strong>r <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato antesmesmo <strong>de</strong> sua conclusão, sob pena <strong>de</strong> não vinculação à sua execução.2.6. Princípio da Execução Específica da Oferta (arts. 35, I e 84§1)Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a oferta, sob mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> informação precisa eclara, vincula o fornece<strong>do</strong>r nos termos em que realizada, é da dicção legala sua execução forçada e específica para cumprimento. Diversamente <strong>do</strong>que ocorre na legislação civil, em direito <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r à recusa in<strong>de</strong>vidaem satisfazer a oferta livremente veiculada exsurge obrigação <strong>de</strong> fazer,resolven<strong>do</strong>-se apenas subsidiariamente em perdas e danos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quefrustrada a execução proposta.3. Aspectos Gerais da Contratação ConsumeristaRecomenda o art. 46 <strong>do</strong> CDC, que “os contratos que regulam asrelações <strong>de</strong> consumo não obrigarão os consumi<strong>do</strong>res, se não lhes for dadaa oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar conhecimento prévio <strong>de</strong> seu conteú<strong>do</strong> ou se osrespectivos instrumentos forem redigi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a dificultar a compreensão<strong>de</strong> seu senti<strong>do</strong> e alcance”.Nesse diapasão, necessário discorrermos quanto ao senti<strong>do</strong> impostopor tal or<strong>de</strong>nação:3.1. Espécies <strong>de</strong> contratos regula<strong>do</strong>s pelo CDCTo<strong>do</strong> e qualquer contrato po<strong>de</strong>rá ser regi<strong>do</strong> pelo CDC, basta apenasque se caracterize a relação <strong>de</strong> consumo, vale dizer, relação jurídica firmadaentre consumi<strong>do</strong>r e fornece<strong>do</strong>r, o primeiro como <strong>de</strong>stinatário finalna aquisição <strong>de</strong> produto ou serviços. Cumpre, entretanto, dispor, que taiscontratos, em boa parte das vezes, se revestem <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são, haja vista ascláusulas estarem prévia e unilateralmente estabelecidas pelo fornece<strong>do</strong>r,sem que seja possível a discussão e recusa pelo consumi<strong>do</strong>r <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong><strong>do</strong> contrato, bastan<strong>do</strong> apenas que adira sua vonta<strong>de</strong>.Ocorre igualmente, quan<strong>do</strong> da prévia aprovação das cláusulas pelaautorida<strong>de</strong> competente, em casos em que o Po<strong>de</strong>r Público é o fornece<strong>do</strong>r,mais presente nas hipóteses <strong>de</strong> fornecimento <strong>de</strong> serviços.Conforme admiti<strong>do</strong> pelo art. 54, seus parágrafos estipulam algumasregras específicas e protetivas ao consumi<strong>do</strong>r. a) a inserção <strong>de</strong> cláusula noformulário não <strong>de</strong>snatura o contrato <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são; b) em contratos <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são,36R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


é admissível a inserção <strong>de</strong> cláusula resolutória, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que alternativa, caben<strong>do</strong>a escolha ao consumi<strong>do</strong>r; c) os contratos <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são po<strong>de</strong>rão serverbais ou escritos, ressaltan<strong>do</strong>, no segun<strong>do</strong> caso, a necessária redaçãoem termos claros e precisos, ostensivos e legíveis, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a facilitar acompreensão <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r; d) a inserção <strong>de</strong> cláusulas limitativas aodireito <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r <strong>de</strong>verão ser redigidas com <strong>de</strong>staque, facilitan<strong>do</strong>sua fácil compreensão.Cumpre assinalar, aten<strong>do</strong>-se às regras específicas à contratação pora<strong>de</strong>são, o seu conceito legal a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo CDC, pelo qual, “contrato <strong>de</strong>a<strong>de</strong>são é aquele cujas cláusulas tenham si<strong>do</strong> aprovadas pela autorida<strong>de</strong>competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> produtosou serviços, sem que o consumi<strong>do</strong>r possa discutir ou modificar substancialmenteseu conteú<strong>do</strong>”.Não se olvi<strong>de</strong>, por conseguinte, que o contrato <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são não induznovo tipo contratual ou categoria autônoma <strong>de</strong> contratação, mas apenasresplan<strong>de</strong>ce nova técnica <strong>de</strong> formação contratual, em oposição aos nomina<strong>do</strong>scontratos <strong>de</strong> comum acor<strong>do</strong>, em que se presencia negociaçãoentre as partes.3.2. Interpretação das cláusulas <strong>de</strong> maneira mais favorável ao consumi<strong>do</strong>rTal dispositivo não fere a regente igualda<strong>de</strong>, porquanto trata aquida igualda<strong>de</strong> substancial das partes (isonomia), <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, em regra,pronto a avença, a interpretação <strong>de</strong>ve ser dada sob contra <strong>do</strong> negócio jurídico.Entrementes, dada a reconhecida vulnerabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r,tida e protegida como direito básico, somada a casos <strong>de</strong> ambiguida<strong>de</strong>,contradição e dúvida das cláusulas, a coesa interpretação <strong>de</strong>ve ser postaa favor <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.Em lição <strong>de</strong> Nelson Nery Júnior 1 , “os princípios da teoria da interpretaçãocontratual se aplicam aos contratos <strong>de</strong> consumo, coma ressalva<strong>do</strong> maior favor ao consumi<strong>do</strong>r, por ser a parte débil da relação <strong>de</strong> consumo.Po<strong>de</strong>mos extrair os seguintes princípios específicos da interpretação <strong>do</strong>scontratos <strong>de</strong> consumo: a) a interpretação é sempre mais favorável ao consumi<strong>do</strong>r;b) <strong>de</strong>ve-se aten<strong>de</strong>r mais à intenção das partes <strong>do</strong> que à literalida<strong>de</strong>da manifestação <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>; c) a cláusula geral da boa-fé reputa-se1 In, Código brasileiro <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r comenta<strong>do</strong> pelos autores <strong>do</strong> anteprojeto. 5 ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro:Forense Universitária, 1998, p. 388.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 37


3.3. Conhecimento prévio <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> contratoEm extensão ao princípio da informação e da transparência, o fornece<strong>do</strong>restá obriga<strong>do</strong> a precisar ao consumi<strong>do</strong>r, antes da celebração <strong>do</strong>contrato, seu conteú<strong>do</strong> e implicações que possam advir, sob pena <strong>de</strong> nãovinculação contratual.Assim, o fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve propiciar meios ao consumi<strong>do</strong>r, previamenteà conclusão da avença, <strong>de</strong> acesso e efetivo conhecimento <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong><strong>do</strong> contrato, com todas as implicações atinentes a direitos e <strong>de</strong>veres<strong>do</strong>s contratantes, especialmente quanto a cláusulas restritivas <strong>de</strong> direitos<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r e consequências sancionatórias emergidas por eventualinadimplemento.Isto, sobretu<strong>do</strong>, revela, <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong>, ser interesse próprio <strong>do</strong>fornece<strong>do</strong>r, haja vista o consumi<strong>do</strong>r ter a seu favor a inversão <strong>do</strong> ônus daprova, que será transferi<strong>do</strong> ao fornece<strong>do</strong>r, o qual somente po<strong>de</strong>rá pautarsua escusa na oportunida<strong>de</strong> conferida ao consumi<strong>do</strong>r em tomar prévio oconhecimento das cláusulas.Já posicionou a jurisprudência:“SERVIÇO TELEFÔNICO PÚBLICO – CÓDIGO 0900 – INEXISTÊN-CIA DE OBRIGAÇÃO DE PAGAMENTO – CONTRATO LACUNOSO– ÔNUS DA PROVA – APLICAÇÃO DO CDC – Os contratos <strong>de</strong>prestação <strong>de</strong> serviço telefônico público subordinam-se à disciplina<strong>do</strong> CDC, pelo que não obrigarão os consumi<strong>do</strong>res, senão lhes for dada oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tomar conhecimento prévio<strong>de</strong> seu conteú<strong>do</strong>, ou se os respectivos instrumentos foremredigi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a dificultar a compreensão <strong>de</strong> seu senti<strong>do</strong> ealcance (art. 46). – Fundan<strong>do</strong>-se o pedi<strong>do</strong> <strong>do</strong> usuário em queas ligações constantes da fatura mensal não se originaram<strong>de</strong> seu aparelho, o ônus da prova, nesse passo, transfere-seà empresa concessionária <strong>de</strong> telecomunicações. Exceção àregra geral <strong>do</strong> art. 333 <strong>do</strong> CPC e aplicação <strong>do</strong> art. 6º, VIII,<strong>do</strong> CDC, posto que, estan<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os elementos da provaem po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> réu, o autor fica impossibilita<strong>do</strong> <strong>de</strong> provar ofato constitutivo <strong>do</strong> seu direito”. (TAMG – Ap 0302338-3 –(31398) – 6ª C.Cív. – Rel. Juiz Dárcio Lopardi Men<strong>de</strong>s – J.06.04.2000)R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 39


3.4. Efeito vinculante da <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong>Corolário ao princípio acima cita<strong>do</strong> e ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> prestar as <strong>de</strong>clarações<strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> vinculam o fornece<strong>do</strong>r nos termos em que perpetradas,o que enseja, para seu fiel cumprimento, execução específica, resultan<strong>do</strong>apenas perdas e danos, subsidiariamente.3.5. Denúncia vazia <strong>do</strong> contratoÉ conferi<strong>do</strong> ao consumi<strong>do</strong>r, segun<strong>do</strong> prescrito no art. 49 <strong>do</strong> CDC,“<strong>de</strong>sistir <strong>do</strong> contrato no prazo <strong>de</strong> 7 dias a contar <strong>de</strong> sua assinatura ou <strong>do</strong>ato <strong>de</strong> recebimento <strong>do</strong> produto ou serviço, sempre que a contratação <strong>de</strong>fornecimento <strong>de</strong> produtos e serviços ocorrer fora <strong>do</strong> estabelecimentocomercial, especialmente por telefone ou a <strong>do</strong>micílio”.Permite-se ao consumi<strong>do</strong>r o direito <strong>de</strong> arrepen<strong>de</strong>r-se da contrataçãopactuada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que firmada fora <strong>do</strong> estabelecimento mercantil <strong>do</strong>fornece<strong>do</strong>r, sobretu<strong>do</strong> se ocasionada via telefone ou em <strong>do</strong>micílio, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<strong>de</strong> motivação própria a justificar o arrependimento.Assegura-se ainda ao consumi<strong>do</strong>r o direito à <strong>de</strong>volução das quantias pagas,corrigidas monetariamente, sen<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rada abusiva e nula <strong>de</strong> plenodireito, cláusula contratual que restrinja tal direito (parágrafo único).Igualmente, incumbe exclusivamente ao fornece<strong>do</strong>r arcar com osgastos advin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> negócio, como <strong>de</strong>spesas com frete, entrega <strong>do</strong> materiale outros encargos mais, sen<strong>do</strong> também consi<strong>de</strong>rada abusiva e nulacláusula em senti<strong>do</strong> contrário, haja vista a obstaculização gerada ao direito<strong>de</strong> arrependimento <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.Discriminam-se como exceções a esta regra:a) o fato <strong>de</strong> o consumi<strong>do</strong>r, já conhece<strong>do</strong>r <strong>do</strong> produto ou serviço aser contrata<strong>do</strong>, simplesmente perfazer a contratação via telefone, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que não ocorram mudanças nas condições usuais <strong>do</strong> negócio;b) o fato daqueles negócios jurídicos que, essencialmente, se efetivamfora <strong>do</strong> estabelecimento <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r.3.6. Garantias contratuaisInduvi<strong>do</strong>samente diversa da garantia legal, norma cogente e <strong>de</strong> or<strong>de</strong>mpública, faculta o CDC em seu art. 50, a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>rem esten<strong>de</strong>r esta garantia, em complementação à legal, quanto aos prazose condições <strong>do</strong> negócio.40R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Nos termos assinala<strong>do</strong>, “a garantia contratual é complementar àlegal e será conferida mediante termo escrito”. Como dito, a garantialegal é obrigatória e in<strong>de</strong>rrogável, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, <strong>de</strong> forma alguma, sersubstituída pelo fornece<strong>do</strong>r, ainda que sob pretexto contratual, <strong>de</strong> outramodalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> garantia. (“garantia mais favorável”)Destarte, consoante prescrição inserta no art. 24 <strong>do</strong> CDC, a garantialegal <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação, qualida<strong>de</strong> e segurança <strong>do</strong>s produtos e serviços, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong><strong>de</strong> termo próprio, sen<strong>do</strong> abusiva cláusula que exonere o fornece<strong>do</strong>r<strong>de</strong> prestá-la, proibida ainda, a exoneração quanto ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizaçãopelo fato ou vício <strong>do</strong> produto ou serviço.É <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r precisá-la, (seus termos e por escrito), sen<strong>do</strong>-aparte integrante <strong>do</strong> contrato celebra<strong>do</strong>. Deve também ser padronizada,atingin<strong>do</strong> com uniformida<strong>de</strong> os consumi<strong>do</strong>res. Respectivo termo,preenchi<strong>do</strong> com to<strong>do</strong>s os esclarecimentos que se fizerem necessáriospara a efetivação da informação e garantia concedida, <strong>de</strong>ve ser entregueao consumi<strong>do</strong>r juntamente com o manual <strong>de</strong> instalação e instrução <strong>do</strong>produto ou serviço.O termo escrito, como substância <strong>do</strong> ato, conterá, via <strong>de</strong> regra, indicaçõesquanto a forma, prazo e lugar em que po<strong>de</strong> ser exercida a garantia,e em que consistem eventuais ônus a cargo <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>ntreoutras informações a critério <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r que possibilitem maior análisee compreensão.4. Práticas AbusivasSão práticas viciosas e irregulares inci<strong>de</strong>ntes na relação <strong>de</strong> consumo,abusivas contra o consumi<strong>do</strong>r, que afrontam seus direitos básicos eprincípios regentes da legislação consumerista, e que geram forte e interminável<strong>de</strong>sequilíbrio contratual.A prática abusiva refletida pelo CDC é aquela que inci<strong>de</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>direto e vertical na relação <strong>de</strong> consumo, afetan<strong>do</strong>, nas mais diversas formas,o bem-estar <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Nem sempre as práticas abusivas sãoexpressadas por publicida<strong>de</strong> enganosa, às vezes vêm carreadas <strong>de</strong> imoralida<strong>de</strong>econômica e premiadas <strong>de</strong> danos ao consumi<strong>do</strong>r. Algumas hipótesessão <strong>de</strong>scritas, exemplificativamente, pelo art. 39, o que importa frisara existência <strong>de</strong> outras práticas previstas em esparsas disposições <strong>do</strong> CDC.Po<strong>de</strong>m se manifestar na fase pré-contratual, contratual e pós-contratual,sen<strong>do</strong> o rol <strong>do</strong> art. 39, meramente exemplificativo, vislumbran<strong>do</strong>-sefacilmente em outras disposições <strong>do</strong> CDC e em leis extravagantes.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 41


4.1. Hipóteses legais <strong>do</strong> art. 39 <strong>do</strong> CDC4.1.1. Condicionamento <strong>do</strong> fornecimento <strong>do</strong> produto ou serviçoProíbem-se, neste inciso, duas espécies <strong>de</strong> condicionamento ao direitoe exercício <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r:a) Venda casada – Ocorre ante a negativa <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r em ven<strong>de</strong>ro produto ou prestar serviço <strong>de</strong>seja<strong>do</strong> pelo consumi<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que esteadquira outro produto ou serviço seu. Não se dá apenas quanto à comprae venda, e sim, em qualquer outra modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contratação, ten<strong>do</strong> emvista o conceito “fornecimento” ser muito mais amplo e abrangente.b) Condição quantitativa – Verifica-se a partir <strong>do</strong> momento em queo fornece<strong>do</strong>r condiciona o negócio apenas sobre a quantida<strong>de</strong> por eledisposta a interesse <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, que diga respeito ao mesmo produtoou serviço objeto <strong>do</strong> fornecimento.Pacífico hoje que referida restrição não possui caráter absoluto,sen<strong>do</strong> relativiza<strong>do</strong> mediante “justa causa” apresentada pelo fornece<strong>do</strong>r,porém, não lhe confere o direito <strong>de</strong> obrigar o consumi<strong>do</strong>r a adquirir quantida<strong>de</strong>superior às suas necessida<strong>de</strong>s, ou seja, a “justa causa” apenas imperae releva limites quantitativos inferiores à <strong>de</strong>sejada pelo consumi<strong>do</strong>r.4.1.2. Recusa <strong>de</strong> atendimento à <strong>de</strong>manda <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rHaven<strong>do</strong> estoque <strong>de</strong> produtos e esteja o fornece<strong>do</strong>r habilita<strong>do</strong> aprestar o serviço, não po<strong>de</strong> ele, injustificadamente, recusar-se a aten<strong>de</strong>ra <strong>de</strong>manda <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.4.1.3. Fornecimento não solicita<strong>do</strong>To<strong>do</strong> e qualquer produto ou serviço somente vincula o consumi<strong>do</strong>rse por ele foi previamente solicitada a prestação. Muito embora a presenteregra, são comuns e corriqueiras as situações em que o consumi<strong>do</strong>r ésurpreendi<strong>do</strong> com o fornecimento sem que tenha manifesta<strong>do</strong> qualquer<strong>de</strong>sejo quanto à sua aquisição.Quan<strong>do</strong> assim o for, correspon<strong>de</strong>nte fornecimento é interpreta<strong>do</strong>a título <strong>de</strong> “amostra grátis”, não caben<strong>do</strong> ao consumi<strong>do</strong>r qualquer pagamentoou ressarcimento <strong>de</strong> verba in<strong>de</strong>nizatória.42R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


4.1.4. Aproveitamento da hipossuficiência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rA reconhecida vulnerabilida<strong>de</strong> a que está exposto o consumi<strong>do</strong>r, étratada a hipossuficiência com maior rigor ainda, pois se refere a consumi<strong>do</strong>resque possuem vulnerabilida<strong>de</strong> superior à média, em plena hipossuficiência.É protegi<strong>do</strong>, assim, mediante tratamento mais rígi<strong>do</strong>, o consentimento<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r hipossuficiente, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, ainda que ele“assine” o contrato, aparentemente se vinculan<strong>do</strong> a seu conteú<strong>do</strong> e cumprimento,este será <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> rescindi<strong>do</strong> ante a vulnerabilida<strong>de</strong> reconhecidacomo tratamento diferencia<strong>do</strong>, que recomenda, sobretu<strong>do</strong>, inversão<strong>do</strong> ônus da prova.4.1.5. Exigência <strong>de</strong> vantagem excessivaA mera exigência <strong>de</strong> vantagem excessiva, exagerada e <strong>de</strong>sproporcionalé o suficiente para caracterizar prática abusiva ao direito <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.4.1.6. Serviços sem orçamento e autorização <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rMister para a prestação <strong>do</strong> serviço, o <strong>de</strong>ti<strong>do</strong> orçamento, acompanha<strong>do</strong>porém, <strong>de</strong> expressa autorização <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. A simples apresentação<strong>do</strong> orçamento não é o bastante para início <strong>do</strong> serviço. Caso sejapresta<strong>do</strong> o serviço sem a autorização <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, sem a sua solicitação,analogicamente será aplicada a esse serviço que confere a esse serviçoa natureza <strong>de</strong> amostra grátis.4.1.7. Divulgação <strong>de</strong> informações negativas sobre o consumi<strong>do</strong>rÉ veda<strong>do</strong> ao fornece<strong>do</strong>r divulgar qualquer informação <strong>de</strong>preciativa arespeito <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, mesmo até como afronta aos direitos da personalida<strong>de</strong>,o que, se assim verifica<strong>do</strong>, possibilita a aplicação <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizaçãocorrespon<strong>de</strong>nte.4.1.8. Colocação no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> produtos ou serviços em <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> comas normas técnicasHaven<strong>do</strong> normas técnicas obrigatórias a serem atendidas e respeitadas,o fornece<strong>do</strong>r está adstrito à sua observância, pena <strong>de</strong> caracterização<strong>de</strong> prática ofensiva.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 43


a) Normalização – Busca-se estabelecer uniformida<strong>de</strong> entre produtose serviços, compatibilizan<strong>do</strong>-os com normas <strong>de</strong> regramento <strong>de</strong>produção e comercialização, visan<strong>do</strong>, assim, a mantença da “política <strong>de</strong>qualida<strong>de</strong>” em favor <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r e o bom funcionamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong><strong>de</strong> consumo.Decorre <strong>de</strong> trabalho híbri<strong>do</strong>, entre Esta<strong>do</strong> e entida<strong>de</strong>s particulares.b) Regulamentação – proveniente <strong>de</strong> ato estatal, possui a mesmafinalida<strong>de</strong> da normalização, sob o gravame <strong>de</strong> imposição <strong>de</strong> pleno direito,como caráter <strong>de</strong> obrigatorieda<strong>de</strong> absoluta, não apenas ao fornece<strong>do</strong>r,mas a to<strong>do</strong>s agentes econômicos participantes, direta ou indiretamenteda relação <strong>de</strong> consumo.4.1.9. Inexistência ou <strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> prazo para cumprimento da obrigaçãoNão apenas ao consumi<strong>do</strong>r, como <strong>de</strong> costume se verifica, masem to<strong>do</strong> contrato <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong>ve ser fixa<strong>do</strong> prazo para que o fornece<strong>do</strong>rcumpra a obrigação contratual, mencionan<strong>do</strong> prazo inicial efinal <strong>de</strong> execução.5. Outras Hipóteses Previstas no CDC5.1. Elevação <strong>do</strong> preço sem justa causaMesmo diante da vigorante liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> preços operantes emesta<strong>do</strong>s capitalistas, busca-se assegurar que po<strong>de</strong>r Público e mesmoo Judiciário tenham mecanismos <strong>de</strong> controle à incidência <strong>de</strong> preçosabusivos.Não se trata em tabelar ou engessar o preço, e sim, estabelecerjusta causa e parâmetros para sua majoração, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ficar livrementea único e exclusivo critério <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r sua abusiva elevação.5.2. Reajuste diverso <strong>do</strong> previsto em lei ou contratoÉ vedada a aplicação <strong>de</strong> vários índices alternativos <strong>de</strong> preços aomesmo contrato, notadamente quan<strong>do</strong> já previsto pelas partes índice<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ou quan<strong>do</strong> pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> observação normativa.44R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Repele-se, por conseguinte, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> índicesou fórmulas <strong>de</strong> reajustes <strong>de</strong> preço, da<strong>do</strong>, muitas das vezes, até <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>unilateral.5.3. Recusa <strong>de</strong> venda diretaVeda-se a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitação contratual por intermediação,a não ser em casos regula<strong>do</strong>s em lei especial.Refere-se, pois, à imposição pelo fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> intermediários, aoconsumi<strong>do</strong>r que se dispõe a adquirir, diretamente, produtos ou serviços.6. Cláusulas AbusivasCaracteriza-se por ser a ocorrência <strong>de</strong> cláusulas opressivas à contratação,gera<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> <strong>de</strong>sequilíbrio contratual, inegavelmente <strong>de</strong>sfavoráveisao consumi<strong>do</strong>r, parte sensivelmente vulnerável e mais fraca na relação<strong>de</strong> consumo, o qual está blinda<strong>do</strong> pelo manto <strong>do</strong>s direitos básicoselenca<strong>do</strong>s no CDC.Sua incidência torna inválida a relação contratual estan<strong>do</strong> eivada<strong>de</strong> nulida<strong>de</strong>, exposta a qualquer contratação <strong>de</strong> consumo, expresso ouverbal, <strong>de</strong> comum acor<strong>do</strong> ou em forma <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são.Buscou o CDC registrar tais ocorrências no art. 51, porém, consoanteoutrora assinala<strong>do</strong> e pautan<strong>do</strong> sempre na lídima posição jurispru<strong>de</strong>nciala respeito, outras po<strong>de</strong>m ser as cláusulas leoninas aos contratos <strong>de</strong>consumo firma<strong>do</strong>s.A nulida<strong>de</strong> gerada é reconhecida <strong>de</strong> pleno direito, em <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>cunho constitutiva negativa, alegada em ação direta, em <strong>de</strong>fesa substancialou <strong>de</strong> ofício, não estan<strong>do</strong> sujeita ao instituto da preclusão, face ajurídica natureza <strong>de</strong> norma <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser alegada emqualquer juízo e grau <strong>de</strong> jurisdição.Deve-se mencionada característica à ofensa provocada à supremaproteção e <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, retroagin<strong>do</strong> a <strong>de</strong>cisão que a reconheceao esta<strong>do</strong> anterior negociativo e conclusivo <strong>do</strong> contrato. O efeito ex tuncoperante, como mecanismo mantene<strong>do</strong>r <strong>do</strong> “status quo ante”, reconhecea eiva preexistente à contratação.Já assentou a jurisprudência algumas hipótese e situações <strong>de</strong> incidência<strong>de</strong> cláusulas abusivas:R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 45


Por fim, nula também é a cláusula <strong>de</strong> renúncia ao benefício <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> da fiança, em qualquer relação contratual <strong>de</strong> consumo,e não somente nos casos <strong>de</strong> contrato <strong>de</strong> locação.6.1.3. Cláusula <strong>de</strong> limitação da in<strong>de</strong>nização e o consumi<strong>do</strong>r pessoajurídicaHá certa atenuação e suavização quanto à limitação in<strong>de</strong>nizatóriaem se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>r pessoa jurídica. A norma consumeristapermite certa limitação em casos que tais, ressalvan<strong>do</strong>, entretanto, serinadmissível cláusula exonerativa a tal direito.Na prática, <strong>de</strong>ve ser verificável quan<strong>do</strong> será possível a limitação adireito básico, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> existir juízo <strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong> da medidaestampada, sen<strong>do</strong> permiti<strong>do</strong>, consoante entendimento <strong>do</strong>utrinário, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que presentes situações justificáveis <strong>de</strong>terminantes, pena <strong>de</strong> não serválida cláusula limitativa <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> civil.6.1.4. Cláusula obstativa ao reembolso das quantias pagas pelo consumi<strong>do</strong>rVárias disposições permitem ao consumi<strong>do</strong>r o irrestrito direito aver-se reembolsa<strong>do</strong> <strong>de</strong> verbas pagas a negociações não concretizadas,<strong>de</strong>ntre as quais, nas situações <strong>de</strong>scritas <strong>de</strong> arrependimento, posto o ônuse risco da mercantilização serem atribuí<strong>do</strong>s a quem <strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>rio econômico-financeiro,como assim ocorre com o fornece<strong>do</strong>r.6.1.5. Cláusula <strong>de</strong> transferência da responsabilida<strong>de</strong> a terceirosConforme princípio basilar contratual, não diferente nas relações <strong>de</strong>consumo, os efeitos advin<strong>do</strong>s da contratação vinculam apenas as partescontratantes, no caso vertente, fornece<strong>do</strong>r e consumi<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong> vedadaa transferência <strong>de</strong> responsabilização a terceiros estranhos à contratação.Apenas na hipótese <strong>de</strong> seguro permite-se respectiva responsabilização,estan<strong>do</strong>, porém, garanti<strong>do</strong> o direito ao consumi<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandar contrafornece<strong>do</strong>r e segura<strong>do</strong>ra, em vista da solidarieda<strong>de</strong> legal prevista.6.1.6. Cláusula que estabeleça obrigações iníquas e vantagem exageradaDe difícil precisão, são nulas as cláusulas que fixem obrigações evantagens <strong>de</strong>sproporcionais, exorbitantes e <strong>de</strong>strutivas em face <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.48R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


6.1.7. Cláusula incompatível com a boa-fé e a equida<strong>de</strong>Cláusula que subtraia a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interpretação contratualsob a égi<strong>de</strong> da boa-fé e da equida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>sprezada pelo julga<strong>do</strong>r,posto a boa-fé ser representada como princípio mo<strong>de</strong>la<strong>do</strong>r das atuaisnegociações perpetradas, compreendida como cláusula geral contratualimperante.Pela equida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>termina-se o encontro e a mantença das partesem pleno equilíbrio com o contrato estabeleci<strong>do</strong>, buscan<strong>do</strong> assegurarjustiça contratual ao caso concreto.6.1.8. Cláusula “surpresa”Muito embora vetada <strong>do</strong> texto original, referida cláusula encontraimplícito escoro nos princípios da boa-fé e ao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> informação <strong>do</strong>fornece<strong>do</strong>r.Por ela, protege-se o consumi<strong>do</strong>r sobre <strong>de</strong>terminada circunstânciacontratual não informada pelo fornece<strong>do</strong>r, não somente advin<strong>do</strong> daconclusão e esclarecimentos quanto ao conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato, mas tambémdada a dúbia e obscura informação preexistente.Nos dizeres <strong>de</strong> Nelson Nery Júnior 2 , “para caracterizar-se a estipulaçãocomo cláusula-surpresa, não basta que o contrato tenha conteú<strong>do</strong>complica<strong>do</strong> ou complexo. É preciso que <strong>de</strong>le exsurja um efeito surpresaou efeito <strong>de</strong> burla, que ocorra, por exemplo, por falta <strong>de</strong> esclarecimentoa<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r sobre o conteú<strong>do</strong> e conseqüências <strong>do</strong> contrato,tarefa a cargo <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r (art. 46 <strong>do</strong> CDC). Importará aqui, sobremo<strong>do</strong>,a experiência negocial e o estágio <strong>de</strong> conhecimento <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, bemcomo o contexto da economia e o tipo <strong>de</strong> contrato”.6.1.9. Cláusula <strong>de</strong> inversão prejudicial <strong>do</strong> ônus da provaSen<strong>do</strong> o consumi<strong>do</strong>r parte estritamente vulnerável na relação <strong>de</strong>consumo, dada ainda sua hipossuficiência, a inversão probatória nãopo<strong>de</strong> ser concedida prejudiciosamente ao consumi<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a constituirprova em seu <strong>de</strong>sfavor.6.1.10. Cláusula <strong>de</strong> arbitragem compulsóriaA legislação consumerista no inciso VII <strong>do</strong> art. 51 <strong>de</strong>fine como cláusulaabusiva, nula <strong>de</strong> pleno direito, a inserção no contrato relativo ao for-2 I<strong>de</strong>m., p. 414.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 49


necimento <strong>de</strong> produtos e serviços, a cláusula que <strong>de</strong>termine a utilizaçãocompulsória da arbitragem.De outra sorte, o art. 1º da Lei da Arbitragem admite-a sem fazerqualquer ressalva ou sem qualquer condição especial a ser observada,bastan<strong>do</strong>, para tanto, que se trate <strong>de</strong> direito patrimonial disponível e firma<strong>do</strong>o contrato por pessoa capaz.O que se extrai da Lei consumerista é a proibição da inserção dacláusula compromissória, como mecanismo <strong>de</strong> solução <strong>de</strong> conflitos futuros,ainda não surgi<strong>do</strong>s, que disserem respeito ao fornecimento <strong>de</strong> produtosou serviços, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que não tomada a iniciativa <strong>do</strong> a<strong>de</strong>rente eminstituir a arbitragem, ou quan<strong>do</strong> presente sua expressa concordância(par. 2º, art. 4º da Lei da Arbitragem). Assim o é caracteriza<strong>do</strong> como cláusulaabusiva, pois uma vez estipula<strong>do</strong> inicialmente no contrato, vincula oa<strong>de</strong>rente-consumi<strong>do</strong>r e o proíbe <strong>de</strong> se socorrer às vias judiciais quan<strong>do</strong>necessário.A partir <strong>do</strong> instante em que é estipulada unilateralmente a cláusulacompromissória nos contratos <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são, o a<strong>de</strong>rente está submisso a vero litígio <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> por árbitros escolhi<strong>do</strong>s particularmente pela parte maisforte na relação contratual, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> mais ser ampara<strong>do</strong> pela justiçaordinária; algo que o coloca, indubitavelmente, em posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>svantageme <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> jurídica.Neste mesmo senti<strong>do</strong>, ao mencionar a proibição à arbitragem,aufere-se que o inc. VII <strong>do</strong> art. 51 <strong>do</strong> CDC refere-se tão só à cláusula compromissóriaimposta sem o consentimento expresso <strong>do</strong> a<strong>de</strong>rente. Não éimposta qualquer vedação ao compromisso arbitral, uma vez que o cita<strong>do</strong>dispositivo legal, em conjunto com o art. 1º da Lei da Arbitragem, nãoadmite interpretação extensiva ou analogia.A<strong>de</strong>mais, sen<strong>do</strong> o compromisso arbitral estabeleci<strong>do</strong> posteriormenteao nascimento da controvérsia jurídica atual, presente, nenhumprejuízo será experimenta<strong>do</strong> pelo a<strong>de</strong>rente, pois até então, não lheé tira<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma alguma o direito <strong>de</strong> se utilizar da via judicial. Estabelece-seque, na verda<strong>de</strong>, houve <strong>de</strong>rrogação <strong>de</strong> normas, e não ab-rogação.Dera-se a revogação parcial, quan<strong>do</strong> o inc. VII <strong>do</strong> art. 51 <strong>do</strong> CDC criouexceção quanto à inserção da cláusula compromissória nas relações contratuais<strong>de</strong> consumo, atingin<strong>do</strong> o art. 1037 <strong>do</strong> Código Civil <strong>de</strong> 1916, que50R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


fora manti<strong>do</strong> integralmente, quanto aos seus <strong>de</strong>stinatários, pelo art. 1º daLei da Arbitragem.Interpreta<strong>do</strong> estritivamente, como assim <strong>de</strong>ve ser a legislação consumerista,tem-se que esta norma continua em plena vigência, atinenteunicamente à cláusula compromissória imposta unilateralmente, em relaçãoaos contratos <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são referentes a consumo, não sen<strong>do</strong> extensivo<strong>de</strong> maneira alguma esta vedação ao compromisso arbitral.6.1.11. Cláusula que apresente “representante imposto”Tem-se clarivi<strong>de</strong>nte a proibição da inserção <strong>de</strong> cláusula <strong>de</strong> representaçãonegocial, para conclusão ou execução <strong>do</strong> contrato por representante<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.A razão para <strong>de</strong>tida vedação está na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> haver conflito<strong>de</strong> interesses entre representante e representa<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> em vista o representanteagir em nome alheio, como substituto <strong>do</strong> representa<strong>do</strong>, bemassim a seu livre e exclusivo interesse.6.1.12. Cláusula permissiva <strong>de</strong> opção exclusiva pelo fornece<strong>do</strong>rNula é a cláusula que permita ao fornece<strong>do</strong>r, a seu livre sabor, concluirou não o contrato, obrigan<strong>do</strong> o consumi<strong>do</strong>r a aceitar sua opção. Isto,claramente, evi<strong>de</strong>nciaria <strong>de</strong>sequilíbrio na relação <strong>de</strong> consumo, tambémexpressamente veda<strong>do</strong>.6.1.13. Cláusula permissiva <strong>de</strong> alteração unilateral <strong>do</strong> preçoO consumi<strong>do</strong>r não po<strong>de</strong> ser compeli<strong>do</strong> a aceitar acréscimos <strong>de</strong> preçofixa<strong>do</strong>s unilateralmente pelo fornece<strong>do</strong>r, sem qualquer parâmetro legal.A mesma proibição é extensiva à majoração <strong>de</strong> taxas <strong>de</strong> juros e outrosencargos, sen<strong>do</strong> recomendável, caso existentes modificações <strong>de</strong> situaçãoeconômica, bilateral discussão em volto da inserção ou não <strong>de</strong> novo preço.6.1.14. Cláusula permissiva <strong>de</strong> cancelamento unilateral <strong>do</strong> contratoAdmite-se o cancelamento <strong>do</strong> contrato <strong>de</strong> consumo por expressamanifestação bilateral <strong>do</strong>s contratantes, que diante <strong>de</strong> certas circunstâncias,optaram por sua resilição.A contrário, porém, é terminantemente proibi<strong>do</strong> a resilição unilateral,por parte <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> contrato outrora pactua<strong>do</strong>.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 51


6.1.15. Cláusula <strong>de</strong> ressarcimento unilateral <strong>do</strong>s custos <strong>de</strong> cobrançaO CDC permite a estipulação na avença <strong>de</strong> cláusula <strong>de</strong> ressarcimento<strong>de</strong> custos <strong>de</strong> cobrança, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que amplamente conferida a consumi<strong>do</strong>r efornece<strong>do</strong>r, estan<strong>do</strong> proibida a inclusão <strong>de</strong> cláusula que confira apenas aofornece<strong>do</strong>r o direito <strong>de</strong> se ver ressarci<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas com cobrança.6.1.16. Cláusula que possibilite a modificação unilateral <strong>do</strong> contratoIgualmente fundada na igualda<strong>de</strong>, equilíbrio e proteção aos direitos<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, proibe-se sobremaneira a possibilida<strong>de</strong> unilateral <strong>do</strong>fornece<strong>do</strong>r em alterar o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato fixa<strong>do</strong>, observan<strong>do</strong>-se apenassituações motiva<strong>do</strong>ras que lhes enten<strong>de</strong> favoráveis e prejudiciais aoconsumi<strong>do</strong>r.Toda e qualquer disposição contratual <strong>de</strong>ve ser apreciada pelas partescontratantes, <strong>de</strong> sorte que, qualquer modificação <strong>de</strong>ve ser favorável e<strong>de</strong> interesse <strong>de</strong> ambas as partes.6.1.17. Cláusula que viole normas ambientaisToda cláusula contratual que possibilitar, em tese, infração ao meioambiente, é consi<strong>de</strong>rada nula pelo CDC, bastan<strong>do</strong>, para tanto, a simplespotencialida<strong>de</strong> lesiva, sen<strong>do</strong>, portanto, irrelevante para a <strong>de</strong>cretação <strong>de</strong>nulida<strong>de</strong>, a comprovação <strong>de</strong> ocorrência <strong>de</strong> dano real. Compreen<strong>de</strong>m-seas proibições gera<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> infração ao meio ambiente natural, cultural,urbanístico e <strong>do</strong> trabalho.6.1.18. Cláusula ofensiva aos princípios fundamentais da lei <strong>de</strong> consumoDe per si, toda e qualquer cláusula que trouxer a concessão <strong>de</strong> vantagensao fornece<strong>do</strong>r em plena <strong>de</strong>sarmonia aos princípios fundamentaise in<strong>de</strong>rrogáveis da legislação consumerista será nula <strong>de</strong> pleno direito, nãosurtin<strong>do</strong> os espera<strong>do</strong>s efeitos motiva<strong>do</strong>res <strong>de</strong> sua inserção.6.1.19. Cláusula que importe onerosida<strong>de</strong> excessiva ao consumi<strong>do</strong>rEm sintonia ao princípio da equivalência contratual, incidin<strong>do</strong>extrema onerosida<strong>de</strong> excessiva ao contrato <strong>de</strong> consumo, geran<strong>do</strong> mórbi<strong>do</strong><strong>de</strong>sequilíbrio e colocan<strong>do</strong> o consumi<strong>do</strong>r em posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>svantagem,esta cláusula será nula.52R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Sen<strong>do</strong>, entretanto, a excessiva onerosida<strong>de</strong>, superveniente e extraordinária,não <strong>de</strong>sejada pelas partes, mas provocada por agentes externos,<strong>de</strong>correntes sobretu<strong>do</strong> da álea administrativa, po<strong>de</strong> o consumi<strong>do</strong>rrequerer a revisão <strong>do</strong> contrato ou a modificação da cláusula, amoldan<strong>do</strong>-aà nova realida<strong>de</strong> e possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu cumprimento.6.1.20. Cláusula que proíba a resolução contratual por ônus excessivo auma das partesOcorren<strong>do</strong> excessiva e <strong>de</strong>sproporcional vantagem a uma das partescontratantes, permite-se sua resolução, sen<strong>do</strong> vedada a manutenção daavença que acarrete ônus excessivo em <strong>de</strong>trimento da outra parte.7. Da Publicida<strong>de</strong> Enganosa e AbusivaÉ textualmente induvi<strong>do</strong>so o § 1° <strong>do</strong> art. 37, dispon<strong>do</strong> ser “enganosaqualquer modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação ou comunicação <strong>de</strong> caráterpublicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro mo<strong>do</strong>,mesmo por omissão, capaz <strong>de</strong> induzir em erro o consumi<strong>do</strong>r a respeito danatureza, características, qualida<strong>de</strong>, quantida<strong>de</strong>, proprieda<strong>de</strong>s, origem,preços e quaisquer outros da<strong>do</strong>s sobre produtos e serviços”.Inserto até como direito básico <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, houve a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> normatizar as hipóteses e situações em que evi<strong>de</strong>nte a publicida<strong>de</strong>enganosa, produzida como afronta à or<strong>de</strong>m pública e ao interesse social.Visa-se igualmente, ante a liberda<strong>de</strong> econômica atuante e frequente,assegurar uma livre concorrência justa e condigna aos ditames da or<strong>de</strong>meconômica.A publicida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser total ou parcialmente enganosa, bem assimpo<strong>de</strong> se manifestar <strong>de</strong> forma ativa, quan<strong>do</strong> v.g, afirma características ouapresenta qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produtos inverídicas, capazes <strong>de</strong> induzir a erro oconsumi<strong>do</strong>r, ou omissiva, quan<strong>do</strong> o consumi<strong>do</strong>r é induzi<strong>do</strong> a erro pelofornece<strong>do</strong>r ter <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> <strong>de</strong> afirmar ou apresentar algo relevante e essencialà percepção condutora à avença.Basta para a caracterização que o consumi<strong>do</strong>r “seja induzi<strong>do</strong> aerro”, ou seja, a publicida<strong>de</strong> que tem por fim a simples capacida<strong>de</strong> indutivaa erro, melhor dizen<strong>do</strong>, a tendência a induzir a erro. Se o foi efetivaou concretamente engana<strong>do</strong>, ter-se-á o mero exaurimento <strong>do</strong> ato, poucoimportan<strong>do</strong> os efeitos reais da publicida<strong>de</strong> enganosa.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 53


Como pontifica<strong>do</strong> por Antônio Herman <strong>de</strong> Vasconcellos e Benjamin3 , “a proteção <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r contra a publicida<strong>de</strong> enganosa leva emconta somente sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> indução ao erro. Inexigível, por conseguinte,que o consumi<strong>do</strong>r tenha, <strong>de</strong> fato e concretamente, si<strong>do</strong> engana<strong>do</strong>.A capacida<strong>de</strong> é aferida, pois, em abstrato. O que se busca é sua ‘capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> induzir ao erro o consumi<strong>do</strong>r’, não sen<strong>do</strong>, por conseguinte, exigívelqualquer prejuízo individual. O difuso – pela simples utilização da publicida<strong>de</strong>enganosa -, presumi<strong>do</strong> jure et <strong>de</strong> jure, já é suficiente”.Também não se exige para tipificação da publicida<strong>de</strong> enganosa, areal intenção <strong>do</strong> anunciante/fornece<strong>do</strong>r em enganar o consumi<strong>do</strong>r. Nãose afere <strong>do</strong>lo ou culpa, visto que o que se põe em voga é a efetiva proteçãoe garantia <strong>do</strong>s direitos básicos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, e não a repressão aocomportamento enganoso.O puffing, ou exageros publicitários, configura hipótese <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>enganosa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que preste a induzir o consumi<strong>do</strong>r a erro. De outromo<strong>do</strong>, se for inofensivo, inepto a gerar qualquer benefício negocial, isenta<strong>de</strong> tipificação enganosa.Quanto a anúncios ambíguos, se <strong>de</strong>ntre os mais varia<strong>do</strong>s senti<strong>do</strong>s,<strong>de</strong>notar um que possa ter conteú<strong>do</strong> enganoso, toda a mensagem, em suaintegralida<strong>de</strong>, passará a ser consi<strong>de</strong>rada enganosa.A seu turno, a publicida<strong>de</strong> abusiva expressa “i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> exploraçãoou opressão ao consumi<strong>do</strong>r”, muito mais imponente e nefasta <strong>do</strong> que apublicida<strong>de</strong> enganosa. Há verda<strong>de</strong>iro abuso <strong>de</strong> direito, ao explorar apublicida<strong>de</strong> além <strong>do</strong>s limites fixa<strong>do</strong>s em lei, viola<strong>do</strong>ras da or<strong>de</strong>m jurídicae da or<strong>de</strong>m pública, causa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> prejuízos ao consumi<strong>do</strong>r.Diz o § 2° <strong>do</strong> art. 37, em lição meramente exemplificativa, ser “abusiva,<strong>de</strong>ntre outras, a publicida<strong>de</strong> discriminatória <strong>de</strong> qualquer natureza,a que incite a violência, explore o me<strong>do</strong> ou a superstição, se aproveite da<strong>de</strong>ficiência <strong>de</strong> julgamento e experiência da criança, <strong>de</strong>srespeita valoresambientais, ou que seja capaz <strong>de</strong> induzir o consumi<strong>do</strong>r a se comportar <strong>de</strong>forma prejudicial ou perigosa à sua saú<strong>de</strong> ou segurança”.Do contexto legal apresenta<strong>do</strong>, são hipóteses <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>abusiva:3 In, Código brasileiro <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r comenta<strong>do</strong> pelos autores <strong>do</strong> anteprojeto. 5ª ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro:Forense Universitária, 1998, p. 274.54R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


a) Publicida<strong>de</strong> discriminatória - É abusiva a publicida<strong>de</strong> que apresentefatores ou condições discriminatórias, i<strong>de</strong>ntificadas, sobretu<strong>do</strong>, comnacionalida<strong>de</strong>, profissão, sexo, raça, preferência sexual, <strong>de</strong>ntre outras.b) Publicida<strong>de</strong> explora<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> me<strong>do</strong> ou superstição - Basta a utilização<strong>de</strong> tais recursos, como meio <strong>de</strong> persuadir o consumi<strong>do</strong>r à aquisição<strong>de</strong> produtos ou serviços, para a caracterização da abusiva publicida<strong>de</strong>.c) Publicida<strong>de</strong> incita<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> violência - Proíbe-se a publicida<strong>de</strong> queincite qualquer prática <strong>de</strong> violência, contra quem quer que seja, contrahomem ou animal, e mesmo contra bens públicos.Repele-se, pois, a divulgação <strong>de</strong> mensagem publicitária que contenhampráticas agressivas <strong>de</strong> violência.d) Publicida<strong>de</strong> antiambiental - O meio ambiente foi eleva<strong>do</strong> à maisalta proteção jurídica, inclusive no seio da legislação consumerista, integran<strong>do</strong>a esteira <strong>do</strong> “patrimônio público”. Deve-se garantir o <strong>de</strong>senvolvimentoeconômico com capacitação e responsabilização socioambiental.e) Publicida<strong>de</strong> indutora <strong>de</strong> insegurança - Veda-se qualquer possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong>, através da publicida<strong>de</strong>, induzir o consumi<strong>do</strong>r a se comportar <strong>de</strong>forma prejudicial ou perigosa à sua saú<strong>de</strong> ou segurança.f) Publicida<strong>de</strong> direcionada aos hipossuficientes - De per si, consoantetratamento impingi<strong>do</strong> pelo CDC, vulnerável são to<strong>do</strong>s os consumi<strong>do</strong>res;enquanto que hipossuficentes, correspon<strong>de</strong>m a certa e <strong>de</strong>terminadacategoria <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>res, sen<strong>do</strong> um plus em relação à vulnerabilida<strong>de</strong>,como ocorre com as crianças, i<strong>do</strong>sos, índios, <strong>do</strong>entes, rurícolas, etc. A estaspessoas, a publicida<strong>de</strong> não produz o mesmo efeito espera<strong>do</strong>, correntecom consumi<strong>do</strong>res não hipossuficientes.8. Consi<strong>de</strong>rações FinaisFrente a singela apresentação colacionada, induvi<strong>do</strong>so que o consumi<strong>do</strong>r,reconhecidamente parte mais frágil e vulnerável na relação contratual,foi contempla<strong>do</strong> em sua mais ampla integralida<strong>de</strong> em seus direitoscontratuais, <strong>de</strong> sorte que não se po<strong>de</strong> negar o caráter social e imperativodas regras prescritas pelo CDC.Goza o consumi<strong>do</strong>r <strong>de</strong> direitos sequer previstos em outra legislaçãocorrespon<strong>de</strong>nte, muito até em vista <strong>do</strong> fator <strong>de</strong> socialização impingi<strong>do</strong>pela Constituição Fe<strong>de</strong>ral, que previu entre suas balizas funcionais, comoprincípio geral da ativida<strong>de</strong> econômica inserta no art. 170, a “<strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r”.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011 55


Bem por isso, <strong>de</strong> mais a mais, nossos Tribunais vêm sinalizan<strong>do</strong> commáxima efetivida<strong>de</strong> e eficiência a busca pela consagração <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r, muito até nas relações contratuais “em massa” a que hodiernamentese submetem, sen<strong>do</strong> oportuno alongar o caráter <strong>de</strong> contrato <strong>de</strong>a<strong>de</strong>são da avença, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> impossibilita<strong>do</strong> está o consumi<strong>do</strong>r em discutiras cláusulas postas a exame.Sob este vértice, também se mostra <strong>de</strong> bom alvitre o dirigismo ou<strong>de</strong>limitação contratual havida, intervin<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> na manutenção daor<strong>de</strong>m, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> o individualismo ante prevalente, herda<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong>, <strong>do</strong>Código Civil Napoleônico, ce<strong>de</strong> espaço ao socialismo humanístico, levan<strong>do</strong>consigo à morte da teoria contratual burguesa, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a liberda<strong>de</strong>jurídica após a Revolução Francesa ser <strong>de</strong>finida na célebre explanação <strong>de</strong>Lacordaire, segun<strong>do</strong> o qual “entre o forte e o fraco é a liberda<strong>de</strong> queescraviza e a lei que liberta”.Cumpre ressaltar, assim, que a autonomia negocial passou a teruma nova concepção, diversa daquela enraizada no liberalismo econômico,em que prevalecia a aplicação plena <strong>do</strong> “pacta sunt servanda”. Hoje,procura-se consolidar uma concepção social, que, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> contínuo,busque amenizar o <strong>de</strong>scompasso estabeleci<strong>do</strong> em tempos anteriores.Destarte, a autonomia negocial é exercida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> parâmetros<strong>de</strong> socialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Direito, fixa<strong>do</strong>s, hoje, em normas positivadas, <strong>de</strong> formaa se estabelecerem as “condições gerais”, que procuram afastar as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>sprevalecentes nos contratos e que, obviamente, adaptam taiscontratos à realida<strong>de</strong> social existente. Busca-se, <strong>de</strong>ssa maneira, restabelecerum tratamento igualitário na interpretação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato,em virtu<strong>de</strong> da supremacia socioeconômica <strong>de</strong> um <strong>do</strong>s contratantes em<strong>de</strong>trimento <strong>do</strong> outro.Conclusivamente, está a se aplicar o que Luigi Ferri <strong>de</strong>fine <strong>de</strong>Direito Preceptivo, vale dizer, o direito subjetivo somente tem eficácia seestiver em plena consonância com o direito objetivo, em casos que tais,a consagrada legislação consumerista.56R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 32-56, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Reflexões Constitucionaissobre o Estatuto <strong>de</strong> Romae o <strong>Tribunal</strong> PenalInternacional nosCrimes Ambientais *INTRODUÇÃOAlexandre <strong>de</strong> Souza Lastres SilvaAdvoga<strong>do</strong> militante nas Áreas <strong>de</strong> Direito Penal, <strong>de</strong>Direito Penal Econômico e <strong>de</strong> Direito Ambiental.O presente trabalho enfoca o art. 8º, letra b, IV, <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong>Roma, incorpora<strong>do</strong> ao or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiro pelo Decreto4388/02, que trata <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> alguém lançar intencionalmente um ataquebélico contra uma <strong>de</strong>terminada área, ciente <strong>de</strong> que po<strong>de</strong>rá causar perdasaci<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong> vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos embens <strong>de</strong> caráter civil ou prejuízos extensos, dura<strong>do</strong>uros e graves no meioambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagemmilitar global concreta e direta que se previa. A pena para esse crime é<strong>de</strong> prisão <strong>de</strong> até, no máximo, 30 anos ou prisão perpétua. Assim, como aConstituição da República Fe<strong>de</strong>rativa <strong>do</strong> Brasil proíbe a prisão perpétua,po<strong>de</strong>ria o Brasil entregar um cidadão brasileiro para ser submeti<strong>do</strong> a julgamentopelo <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional pelo cometimento <strong>de</strong> referidainfração penal? Seria possível a extradição <strong>de</strong> brasileiro em tais condições,mesmo diante da norma constitucional que proíbe a extradição <strong>de</strong>qualquer nacional? A essência <strong>do</strong> trabalho é abordar tais problemáticas,apontar as correntes <strong>do</strong>utrinárias e jurispru<strong>de</strong>nciais sobre o tema e sugeriruma solução jurídica, social e humana para referidas questões.* Artigo científico apresenta<strong>do</strong> à Escola da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, como exigência para obtenção<strong>do</strong> título <strong>de</strong> Pós-Graduação. Orienta<strong>do</strong>res: Profª. Néli Fetzner e Prof. Nelson Tavares.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 57


Com a globalização, a aproximação <strong>do</strong>s povos e o crescimento <strong>do</strong>terrorismo, as reservas ambientais mundiais, patrimônios da humanida<strong>de</strong>,correm sérios riscos <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecerem. Os ataques <strong>do</strong> dia 11 <strong>de</strong> setembro<strong>de</strong> 2001 mostraram ao mun<strong>do</strong> como a natureza está vulnerável àsações bélicas <strong>do</strong> Homem, ainda mais, com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uso <strong>de</strong>armas nucleares, químicas ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição em massa. O meio ambienteé forma<strong>do</strong> pela natureza e por tu<strong>do</strong> aquilo que o Homem constrói emseu habitat urbano e rural. As cida<strong>de</strong>s interagem com a natureza e comonão bastasse a <strong>de</strong>vastação ambiental sofrida pelo planeta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o surgimento<strong>do</strong> Homem, ten<strong>do</strong> seu ápice na Revolução Industrial – fim <strong>do</strong>século XVIII - até os dias atuais, o meio ambiente ganha um novo inimigo.O terrorismo é a mais nova criação <strong>de</strong>strutiva <strong>do</strong> Homem. Age<strong>de</strong>liberadamente e <strong>de</strong> surpresa. Causa me<strong>do</strong>, insegurança e seus efeitossão <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>res e irreversíveis. A prevenção surge como a luz no fim <strong>do</strong>túnel na esperança <strong>de</strong> salvar as últimas reservas ambientais mundiais eos monumentos históricos, arquitetônicos e urbanísticos que ainda existem.Assim, o Estatuto <strong>de</strong> Roma, ao criar o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacionale ao tipificar como crime ambiental contra a humanida<strong>de</strong> o fato <strong>de</strong> alguémlançar intencionalmente um ataque bélico contra uma <strong>de</strong>terminadaárea, ciente <strong>de</strong> que o mesmo causará perdas aci<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong> vidashumanas ou ferimentos na população civil, danos em bens <strong>de</strong> carátercivil ou prejuízos extensos, dura<strong>do</strong>uros e graves no meio ambiente quese revelem claramente excessivos em relação à vantagem militar globalconcreta e direta que se previa, traz o fio <strong>de</strong> esperança que esse planetaprecisa para continuar sua jornada na história.Busca-se, assim, analisar referida norma constante <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> Internacionalchama<strong>do</strong> <strong>de</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma, à luz <strong>do</strong>s princípios constitucionaisda vedação da extradição <strong>de</strong> qualquer nacional e da proibição <strong>de</strong> cominação<strong>de</strong> penas <strong>de</strong> caráter perpétuo.Com isso, objetiva-se esclarecer aos leitores sobre a nova roupagem<strong>do</strong> cenário político mundial em face <strong>do</strong>s crescentes ataques terroristas,que hoje ultrapassam fronteiras, vencem distâncias e, assim, colocamem risco não só a humanida<strong>de</strong> como também o planeta inteiro. Daí a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma punição global mais severa e uma Justiça Internacionalem tais casos, pois o assunto engloba um interesse mundial.Ao longo <strong>do</strong> artigo, serão analisa<strong>do</strong>s os seguintes tópicos: 1) a aplicabilida<strong>de</strong>da norma <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> Internacional chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> Estatuto <strong>de</strong>58R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Roma que versa sobre crime ambiental no or<strong>de</strong>namento jurídico nacional,em face <strong>do</strong>s princípios constitucionais da vedação <strong>de</strong> extradição <strong>de</strong> qualquernacional e da proibição <strong>de</strong> cominação <strong>de</strong> penas <strong>de</strong> caráter perpétuo;2) A soberania <strong>do</strong>s povos e o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional; 3) O Terrorismoe seu impacto em questões ambientais; 4) A nova or<strong>de</strong>m mundial e ainternacionalização <strong>do</strong> Direito Penal Ambiental.A meto<strong>do</strong>logia para o tema proposto exige uma abordagem investigativa,científica e parcialmente exploratória, a ser realizada pela pesquisaqualitativa, uma vez que falta na <strong>do</strong>utrina brasileira material didático específico,já que apenas a professora Flávia Piovesan e o Professor CarlosEduar<strong>do</strong> Japiassú abordam superficialmente o tema.1. O ESTATUTO DE ROMA E O TRIBUNAL PENAL INTERNACIONALApós o término da Segunda Guerra mundial o mun<strong>do</strong> aspirava poruma Corte Internacional capaz <strong>de</strong> julgar crimes contra a humanida<strong>de</strong>. Arespeito <strong>do</strong> tema, Carlos Eduar<strong>do</strong> Adriano Japiassú (2004) leciona que narealida<strong>de</strong> foi somente a partir da Segunda Guerra Mundial e <strong>do</strong>s julgamentos<strong>de</strong> Nuremberg e <strong>de</strong> Tóquio que o Direito Penal Internacional efetivamentese consoli<strong>do</strong>u como ciência unitária e autônoma em relação àssuas origens históricas. Referi<strong>do</strong> autor sustenta que embora já houvessenormas e <strong>do</strong>cumentos que tratavam da matéria penal internacional, suasistematização somente se consoli<strong>do</strong>u com os surgimento <strong>do</strong>s TribunaisAd Hoc posteriores à guerra <strong>de</strong> 1939 a 1945 (JAPIASSÚ, 2004).A i<strong>de</strong>ia era criar uma corte permanente para a tutela penal internacional<strong>de</strong> crimes contra a humanida<strong>de</strong>. Com o advento da Guerra Fria, issonão foi possível. Todavia, com a queda <strong>do</strong> socialismo soviético e a ascensãoda nova or<strong>de</strong>m mundial tornou-se possível reacen<strong>de</strong>r as discussões.A ONU convocou, então, uma Conferência Diplomática, que ocorreu<strong>de</strong> 15 a 17 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1998, em Roma e o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacionalfoi aprova<strong>do</strong> com 120 votos a favor, 7 contra e 21 abstenções. JAPIASSÚ(2004). O Estatuto prevê sanções penais para aqueles que, em conflitosarma<strong>do</strong>s, seja em situação <strong>de</strong> guerra seja <strong>de</strong> paz, cometerem os crimes ali<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, vale dizer, o crime <strong>de</strong> genocídio, os crimes contra a humanida<strong>de</strong>,os crimes <strong>de</strong> guerra e os crimes <strong>de</strong> agressão, conforme preceitua oart. 5º, 1, <strong>do</strong> aludi<strong>do</strong> diploma legal.O Brasil ratificou o Estatu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Roma por meio <strong>do</strong> Decreto nº 4.388,<strong>de</strong> 25 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2002. Flávia Piovensan, ao discorrer sobre o pro-R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 59


cesso <strong>de</strong> formação <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s internacionais, leciona que a simples assinatura<strong>do</strong> trata<strong>do</strong> traduz um aceite precário e provisório, que não produzefeitos jurídicos vinculantes. O Esta<strong>do</strong> apenas concorda com a forma e oconteú<strong>do</strong> final <strong>do</strong> trata<strong>do</strong>. PIOVESAN (2007).Após a assinatura pelo Po<strong>de</strong>r Executivo, o trata<strong>do</strong> internacional<strong>de</strong>verá ser submeti<strong>do</strong> ao po<strong>de</strong>r Legislativo para sua apreciação e aprovação.Uma vez aprova<strong>do</strong> o trata<strong>do</strong> pelo Legislativo, o ato seguinte éo da ratificação pelo Po<strong>de</strong>r Executivo. Flávia Piovesan sustenta que aratificação significa a subsequente confirmação formal por um Esta<strong>do</strong><strong>de</strong> que está obriga<strong>do</strong> ao trata<strong>do</strong>, ou seja, é o aceite <strong>de</strong>finitivo, pelo qualum Esta<strong>do</strong> se obriga pelo trata<strong>do</strong> no plano internacional. A ratificação éo ato jurídico que vai produzir efeitos necessariamente no plano internacional.PIOVESAN (2007).O Estatuto <strong>de</strong> Roma, por versar sobre direitos humanitários, incorporou-seao direito positivo brasileiro como norma materialmente constitucional,por força <strong>do</strong> art. 5º, § 2º, da CR/88. Insta acentuar que a normacontida no § 3º, <strong>do</strong> art. 5º, da CR/88, vai dar à norma materiamenteconstitucional, já incorporada ao bloco <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> pelo § 2º,a característica <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada, também, como norma formalmenteconstuitucional, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o trata<strong>do</strong> seja aprova<strong>do</strong> em cada Casa <strong>do</strong> CongressoNacional, em <strong>do</strong>is turnos, por três quintos <strong>do</strong>s votos <strong>do</strong>s respectivosmembros. Nesse caso, dispõe o § 3, <strong>do</strong> art. 5º, da CR/88, que ostrata<strong>do</strong>s internacionais serão equivalentes às emendas constitucionais.Flávia Piovesan (2007), ao citar Canotilho e Jorge Miranda, apontaa natureza materialmente constitucional <strong>do</strong> direitos fundamentais e ahierarquia constitucional <strong>do</strong>s direitos enuncia<strong>do</strong>s em trata<strong>do</strong>s internacionais.A Constituição da República reconhece explicitamente o conteú<strong>do</strong>constitucional <strong>do</strong>s direitos constantes <strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s internacionais <strong>do</strong>squais o Brasil é parte, conforme preceitua o seu art. 5, § 2º. A<strong>de</strong>mais,assevera a autora em questão, mesmo que referi<strong>do</strong>s direitos não estejamna constituição, é a própria carta que lhes confere o status <strong>de</strong> normasconstitucionais, pois passam a ser consi<strong>de</strong>radas como tais em razão <strong>do</strong>art. 5º, § 2º, da CR/88.Nesse senti<strong>do</strong> afirma Canotilho (2003) que a constituição não po<strong>de</strong>ser reduzida a um simples texto escrito. Deve ser analisada a profundida<strong>de</strong><strong>de</strong> cada norma e <strong>de</strong> cada princípio para que seja alarga<strong>do</strong> o bloco<strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Desse mo<strong>do</strong>, princípios não escritos tomam seus60R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011


assentos constitucionais em igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> condições com aqueles já positiva<strong>do</strong>s.Os direitos internacionais integram, portanto, o chama<strong>do</strong> bloco<strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> e, por isso, vão <strong>de</strong>nsificar a regra constitucionalpositivada no § 2º, <strong>do</strong> art. 5º, caracterizada como cláusula constitucionalaberta. PIOVESAN (2007).Nessa linha <strong>de</strong> raciocínio indaga-se: e se o trata<strong>do</strong> que versar sobredireitos humanos contrariar expressamente a CR/88? Prevalece o trata<strong>do</strong>ou a Constituição? Po<strong>de</strong> o Estatuto <strong>de</strong> Roma prevalecer sobre matériaoriunda da Constituição?Cumpre salientar, <strong>de</strong> início, que o processo penal internacionalinicia-se com a <strong>de</strong>núncia oferecida por um Esta<strong>do</strong>-membro ou pelo Conselho<strong>de</strong> Segurança à Promotoria, conforme arts. 13, 14 e 15 <strong>do</strong> Estatuto.Todavia, o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional é complementar à jurisdiçãobrasileira, ou seja, nos termos <strong>do</strong> art. 17, <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma, somentepreenchi<strong>do</strong>s os requisitos <strong>de</strong> admissibilida<strong>de</strong> da ação penal internacionalé que o <strong>Tribunal</strong> Internacional iniciará seus trabalhos.Tal dispositivo prevê,em síntese, que prevalece a jurisdição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-membro em face dajurisdição internacional, que só será exercida em casos <strong>de</strong> omissão ou negligênciadaquele e nos casos expressamente especifica<strong>do</strong>s no Estatuto.Assim, o art. 17, <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma, dispõe que o caso não seráadmiti<strong>do</strong> se o mesmo for objeto <strong>de</strong> inquérito ou <strong>de</strong> procedimento criminalpor parte <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> que tenha jurisdição sobre a causa, salvose este não tiver vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> levar a cabo o inquérito ou o procedimentoou, não tenha capacida<strong>de</strong> para o fazer. Também não será admitida a açãopenal internacional se o caso tiver si<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> inquérito por um Esta<strong>do</strong>com jurisdição sobre ele e tal Esta<strong>do</strong> tenha <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> não dar seguimentoao procedimento criminal contra a pessoa em causa, a menos que esta<strong>de</strong>cisão resulte <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> esse Esta<strong>do</strong> não ter vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r criminalmenteou da sua incapacida<strong>de</strong> real para fazer. O terceiro requisito <strong>de</strong>admissibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina que o <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> não tenha si<strong>do</strong> julga<strong>do</strong> pelaconduta a que se refere a <strong>de</strong>núncia, ou seja, é a aplicação <strong>do</strong> princípio<strong>do</strong> ne bis in i<strong>de</strong>m. Outro requisito é ser o fato suficientemente grave parajustificar a ulterior intervenção <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong>.Em matéria penal ambiental, o Estatuto <strong>de</strong> Roma tipicifou comocrime <strong>de</strong> guerra, em seu art. 8º, Item 2, Letra b, IV, o fato <strong>de</strong> alguém lançarintencionalmente um ataque, saben<strong>do</strong> que o mesmo causará perdasaci<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong> vidas humanas ou ferimentos na população civil, danos emR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 61


ens <strong>de</strong> caráter civil ou prejuízos extensos, dura<strong>do</strong>uros e graves no meioambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagemmilitar global concreta e direta que se previa.Na realida<strong>de</strong>, o crime previsto no art. 8º, Item 2, letra b, IV, é tipifica<strong>do</strong>como crime <strong>de</strong> guerra. Todavia, uma das condutas previstas no tipoé justamente causar prejuízos extensos, graves e dura<strong>do</strong>uros ao meio ambiente.Assim, se a norma em questão <strong>de</strong> alguma maneira visa protegero meio ambiente com a previsão <strong>de</strong> uma sanção penal, esse dispositivointeressa ao Direito Penal Ambiental.As penas estão previstas no art. 77, <strong>do</strong> Estatuto e po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>prisão por um número <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> <strong>de</strong> anos, até ao limite máximo <strong>de</strong> 30anos, ou pena <strong>de</strong> prisão perpétua, se o eleva<strong>do</strong> grau <strong>de</strong> ilicitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> fato eas condições pessoais <strong>do</strong> con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> o justificarem. Além da pena <strong>de</strong> prisão,o <strong>Tribunal</strong> po<strong>de</strong>rá aplicar, também, uma multa, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os critériosprevistos no Regulamento Processual e a perda <strong>de</strong> produtos, bense haveres provenientes, direta ou indiretamente, <strong>do</strong> crime, sem prejuízo<strong>do</strong>s direitos <strong>de</strong> terceiros que tenham agi<strong>do</strong> <strong>de</strong> boa-fé.2. O DIREITO PENAL AMBIENTAL INTERNACIONALApesar <strong>do</strong> art. 8º, Item 2, Letra b, IV, <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma, ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>Crime <strong>de</strong> Guerra, não há como <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rá-lo como aprimeira norma Penal Internacional <strong>de</strong> caráter ambiental. É que <strong>de</strong>ntre osbens jurídicos protegi<strong>do</strong>s pela norma está o meio ambiente. Houve, portanto,uma preocupação <strong>do</strong>s tratadistas na proteção ambiental. Qualquernorma que diga respeito ao meio ambiente faz parte <strong>do</strong> direito ambiental.Se houver previsão inclusive <strong>de</strong> crime, estar-se-á diante <strong>de</strong> um tipo penalambiental.O meio ambiente está disciplina<strong>do</strong> na Constituição Brasileira, emseu art. 225. Trata-se <strong>de</strong> um direito fundamental, individual e coletivo, nosenti<strong>do</strong> <strong>de</strong> garantir a qualquer ser humano o direito a um ambiente sadio.É uma norma que tem projeção para o futuro, pois protege-se não só apresente geração, como também as futuras.3. A MACROCRIMINALIDADE E O TERRORISMO E SEUS IMPACTOS NOMEIO AMBIENTECom a globalização, a aproximação <strong>do</strong>s povos e o crescimento <strong>do</strong>terrorismo, as reservas ambientais mundiais, patrimônios da humanida<strong>de</strong>,62R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011


correm sérios riscos <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecerem. Os ataques <strong>do</strong> dia 11 <strong>de</strong> setembro<strong>de</strong> 2001 mostraram ao mun<strong>do</strong> como a natureza está vulnerável às açõesbélicas <strong>do</strong> Homem, ainda mais, com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uso <strong>de</strong> armas nucleares,químicas ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição em massa.O meio ambiente não é apenas aquele natural, mas também tu<strong>do</strong>aquilo que o Homem constrói em seu habitat urbano e rural. As cida<strong>de</strong>sinteragem com a natureza e como não bastasse a <strong>de</strong>vastação ambientalsofrida pelo planeta <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o surgimento <strong>do</strong> Homem, ten<strong>do</strong> seu ápice naRevolução Industrial até os dias atuais, o meio ambiente ganha um novoinimigo. O terrorismo é a mais nova criação <strong>de</strong>strutiva <strong>do</strong> Homem. Age<strong>de</strong>liberadamente e <strong>de</strong> surpresa. Causa me<strong>do</strong>, insegurança e seus efeitossão <strong>de</strong>vasta<strong>do</strong>res e irreversíveis. A prevenção surge como a luz no fim <strong>do</strong>túnel na esperança <strong>de</strong> salvar as últimas reservas ambientais mundiais e osmonumentos históricos, arquitetônicos e urbanísticos que ainda existem.Assim, o Estatuto <strong>de</strong> Roma, ao criar o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacionale ao tipificar como crime ambiental contra a humanida<strong>de</strong> o fato <strong>de</strong> alguémlançar intencionalmente um ataque, saben<strong>do</strong> que o mesmo causaráperdas aci<strong>de</strong>ntais <strong>de</strong> vidas humanas ou ferimentos na populaçãocivil, danos em bens <strong>de</strong> caráter civil ou prejuízos extensos, dura<strong>do</strong>uros egraves no meio ambiente que se revelem claramente excessivos em relaçãoà vantagem militar global concreta e direta que se previa, traz o fio<strong>de</strong> esperança <strong>de</strong> que esse planeta, tão colori<strong>do</strong> visto <strong>do</strong> espaço, mas quetem seus pontos ver<strong>de</strong>s diminuí<strong>do</strong>s a cada ano, precisa para continuarsua jornada na história.4. REFLEXÕES E IMPLICAÇÕES NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRAA norma constante no Estatuto <strong>de</strong> Roma, Decreto nº 4388/02, noart. 8º, Item 2, letra b, IV, em princípio, possui certos pontos <strong>de</strong> atritocom a Constituição da República Fe<strong>de</strong>rativa <strong>do</strong> Brasil. Em primeiro lugar<strong>de</strong>staca-se o princípio da soberania <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Brasileiro perante o cenáriomundial, constante no art. 1º, I, da CR/88. Logo em seguida, o Estatuto<strong>de</strong> Roma choca-se com a questão da in<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res (art. 2º,da CR/88), com a vedação <strong>de</strong> extradição <strong>de</strong> cidadão brasileiro (art. 5º,LI), com a vedação <strong>de</strong> prisão perpétua (art. 5º, XLVII), com o princípio <strong>do</strong>nullum crimen sine praevia lege (art. 5º XXXIX) e com a função institucional<strong>do</strong> Ministério Público em promover privativamente a ação penalpública (art. 129, I, da CR/88).R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 63


Deve-se indagar se a prisão perpétua po<strong>de</strong>ria ser aceita pelo Esta<strong>do</strong>Brasileiro, uma vez que a CR/88, em seu art. 5º, XLVII, proíbe expressamenteas penas <strong>de</strong> caráter perpétuo. Portanto, se o Brasil ratificou o Estatuto<strong>de</strong> Roma e reconheceu a Jurisdição <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional,po<strong>de</strong>ria este submeter um brasileiro a um processo criminal que po<strong>de</strong>riafindar em uma pena perpétua?O art. 5º, XLVII, da CR/88 também prevê a pena <strong>de</strong> morte, salvonos casos <strong>de</strong> guerra <strong>de</strong>clarada. O Código Penal Militar prevê a pena <strong>de</strong>morte em caso <strong>de</strong> guerra em seus artigos 55, “a” e 56. Todavia, não previuem nenhuma hipótese a pena perpétua. Todavia, caso previsse, a prisãoperpétua seria inconstitucional, em razão da proibição constitucional que,em cujo texto, não fez nenhuma ressalva como o fez para os casos <strong>de</strong> pena<strong>de</strong> morte.Flávia Piovesan (2007) sustenta que <strong>de</strong>vem prevalecer os Trata<strong>do</strong>sInternacionais sobre Direito Humanos sobre as normas internas, constitucionaisou não. Isso por força <strong>do</strong> dispositivo <strong>do</strong> parágrafo 2º, <strong>do</strong> art. 5º, daCR/88. Assim, os Trata<strong>do</strong>s Internacionais que versem sobre direitos humanosingressam automaticamente no direito brasileiro, sem necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> edição normativa pelo legislativo.Referida autora leciona, assim, que com relação aos trata<strong>do</strong>s internacionais<strong>de</strong> proteção <strong>do</strong>s direitos humanos, a Constituição Brasileira<strong>de</strong> 1988, em seu art. 5º, §1º, acolhe a sistemática da incorporação automática<strong>do</strong>s mesmos , razão pela qual há a a<strong>do</strong>ção da concepção monista.A<strong>de</strong>mais, a Constituição <strong>de</strong> 1988 confere aos trata<strong>do</strong>s internacionaisque versarem sobre direitos humanos o status <strong>de</strong> norma constitucional,por força <strong>do</strong> art. 5º, §§ 2º e 3º. Todavia, esse regime jurídico diferencia<strong>do</strong>não é aplicável aos <strong>de</strong>mais trata<strong>do</strong>s. No que concerne a estes, a<strong>do</strong>tasea sistemática da incorporação legislativa, ou seja, após a ratificação,exige-se um ato com força <strong>de</strong> lei, vale dizer, um Decreto legislativo, nostermos <strong>do</strong> art. 49, I, da CR/88. Desse mo<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> se tratar <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong>sInternacionais gerais, haverá a sistemática da concepção dualista. Aindano que tange a esses trata<strong>do</strong>s tradicionais e nos termos <strong>do</strong> art. 102, III, b,da Carta Maior, o texto lhes atribui natureza <strong>de</strong> norma infraconstitucional.PIOVESAN (2007).Essa posição se filia no fundamento <strong>de</strong> que o Estatuto <strong>de</strong> Roma,por versar exclusivamente sobre direitos humanos, estaria incorpora<strong>do</strong>à própria Constituição por força <strong>do</strong> parágrafo 2º, <strong>do</strong> art. 5º, da CR/88.64R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Assim, existem duas sistemáticas para a incorporação <strong>do</strong> Direito Internacionalà or<strong>de</strong>m interna, vale dizer, a incorporação legislativa e a incorporaçãoautomática. Na incorporação automática, os trata<strong>do</strong>s internacionaisincorporam-se <strong>de</strong> imediato ao Direito Nacional mediante o ato da ratificação.É a chamada teoria ou concepção monista, para a qual, uma vezcelebra<strong>do</strong> o Trata<strong>do</strong>, este produzirá efeitos na or<strong>de</strong>m interna. Já na incorporaçãolegislativa, os enuncia<strong>do</strong>s <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m necessariamente<strong>de</strong> legislação posterior. É a chamada teoria ou concepção dualista, emque existem duas órbitas distintas, a saber, uma interna e outra externa.Assim, para que a norma <strong>de</strong> Direito Internacional tenha eficácia no Brasilé necessário um ato legislativo <strong>de</strong> recepção. PINTO FERREIRA (1992).Carlos Eduar<strong>do</strong> Japiassú (2004), com respal<strong>do</strong> <strong>de</strong> Celso <strong>de</strong> AlbuquerqueMello, sustenta que, no que tange à prisão perpétua, não encontraamparo a norma internacional, por ser a mesma mais severa, ou seja,não po<strong>de</strong> ter valida<strong>de</strong> a norma que menos protege os direitos humanos,em <strong>de</strong>trimento daquele que mais protege.Realmente não há como aceitar a pena <strong>de</strong> prisão perpétua no or<strong>de</strong>namentobrasileiro. O art. 60, § 4º, da CR/88 dispõe que não será objeto<strong>de</strong> <strong>de</strong>liberação a proposta <strong>de</strong> emenda ten<strong>de</strong>nte a abolir a forma fe<strong>de</strong>rativa<strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, o voto direito, secreto, universal e periódico, a separação<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res e os direitos e garantias fundamentais.Dessa maneira, conclui-se que norma oriunda <strong>de</strong> Trata<strong>do</strong> que a<strong>de</strong>reao or<strong>de</strong>namento pátrio, seja por incorporação legislativa seja por incorporaçãoautomática, não po<strong>de</strong>rá jamais contrariar qualquer das matériasprevistas no art. 60, § 4º, da Constituição, ou seja, as cláusulas pétreas.A<strong>de</strong>mais, o próprio Estatuto <strong>de</strong> Roma respeita a soberania <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>ssignatários quan<strong>do</strong>, em seu preâmbulo afirma que a jurisdição <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong>Penal Internacional será complementar à jurisdição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s.Todavia, a questão é outra, pois não é a Justiça brasileira que vaiaplicar a pena perpétua no caso <strong>de</strong> infração prevista no Estatuto <strong>de</strong> Roma,mas, sim, o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional. Ao assinar o Trata<strong>do</strong> e ratificá-lo,o Brasil repassou parte <strong>de</strong> sua soberania para um ente imparcial e intergovernamental,<strong>de</strong> natureza jurídica internacional, integra<strong>do</strong> ao sistema dasNações Unidas, que passou, assim, a ter jurisdição global complementarpara os crimes previstos no art. 5º, <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma.As Nações Unidas são a máxima organização mundial intergovernamental.Fundada em 1945 pelos 51 representantes das Nações AliadasR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 65


na Segunda Guerra Mundial, a ONU é a sucessora legal da Socieda<strong>de</strong> dasNações que surgiu <strong>de</strong>pois da Primeira Guerra mundial. A ONU é uma associação<strong>de</strong> nações que se comprometeram a manter a paz e a segurançainternacionais e cooperar no âmbito internacional para criar as condiçõespolíticas, econômicas e sociais para consegui-las. A Carta das Nações Unidasnão autoriza a organização a intervir em assuntos que estiverem essencialmentesob a jurisdição interna <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s. MENENDEZ (2002).Dessa maneira, por exemplo, se um brasileiro, em apoio a uma <strong>de</strong>terminadanação beligerante, lançar intencionalmente um ataque com armasquímicas em um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> país e que, em consequência disso,venha a acarretar perdas <strong>de</strong> vidas humanas e danos irreversíveis no meioambiente que se revelem claramente excessivos em relação à vantagemmilitar global concreta e direta que se previa, este brasileiro <strong>de</strong>verá sersubmeti<strong>do</strong> a julgamento por crime <strong>de</strong> guerra pelo <strong>Tribunal</strong> InternacionalPenal. Todavia, ficará sujeito também à lei brasileira, conforme preceituao art. 7º, I, “b”, <strong>do</strong> Código Penal que consagrou o princípio da extraterritorialida<strong>de</strong>e será puni<strong>do</strong> segun<strong>do</strong> a lei brasileira, ainda que absolvi<strong>do</strong> oucon<strong>de</strong>na<strong>do</strong> no estrangeiro.Suponha-se que, hipoteticamente no exemplo acima, o Esta<strong>do</strong> brasileiro,seja por qual razão for, não apure o crime. Um Esta<strong>do</strong> estrangeiropo<strong>de</strong> <strong>de</strong>nunciar o infrator perante o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional. Casocon<strong>de</strong>na<strong>do</strong> à prisão perpétua, o Governo brasileiro po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> algummo<strong>do</strong> interce<strong>de</strong>r? Se o indivíduo estiver em território brasileiro, não po<strong>de</strong>ráser entregue à Justiça Internacional, em razão <strong>de</strong> vedação constitucional.Trata-se <strong>de</strong> uma garantia individual que trata<strong>do</strong> nenhum po<strong>de</strong>contrariar. Se o indivíduo já estiver con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> e preso no exterior, o Brasilpo<strong>de</strong> pedir a vinda <strong>do</strong> mesmo para que este cumpra a pena em territórionacional. Todavia, não po<strong>de</strong>rá cumprir a pena perpétua, pois o indivíduoestará protegi<strong>do</strong> pelo manto constitucional que a veda expressamente.A seguir passa-se à análise da questão da vedação <strong>de</strong> extradição<strong>de</strong> cidadão brasileiro (art. 5º, LI, da CR/88). A controvérsia que surge ése po<strong>de</strong> ou não haver a entrega <strong>do</strong> acusa<strong>do</strong> para submetê-lo ao <strong>Tribunal</strong>Penal Internacional. Note-se que se o indivíduo for brasileiro e estiver emterritório nacional não po<strong>de</strong>rá ser extradita<strong>do</strong>, em razão <strong>de</strong> norma constitucionalexpressa prevista na CR/88, em seu art. 5º, LI. Por outro la<strong>do</strong>, oEstatuto <strong>de</strong> Roma, em seu artigo 89, prevê a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o <strong>Tribunal</strong><strong>de</strong>terminar a prisão e a entrega <strong>de</strong> indivíduos aos Esta<strong>do</strong>s signatários <strong>do</strong>66R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Estatuto. Para viabilizar as duas normas, a <strong>do</strong>utrina aponta duas soluções.A primeira é o princípio da complementarida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> os Esta<strong>do</strong>s têm aobrigação <strong>de</strong> investigar, processar e punir seus nacionais <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> comsuas leis. A segunda diz respeito à distinção entre extradição e entrega <strong>de</strong>nacionais. JAPIASSÚ (2004).A extradição importa em entregar um indivíduo submeti<strong>do</strong> a umasentença penal <strong>de</strong> uma jurisdição soberana a outra. Já a entrega <strong>de</strong> nacionaisé entrega sui generis, em que o país irá entregar o indivíduo paraser julga<strong>do</strong> perante um <strong>Tribunal</strong> Penal que aju<strong>do</strong>u a construir ao entregarparcela <strong>de</strong> sua soberania. Assim, a Corte Internacional não seria umajurisdição estrangeira. DALMASO JARDIM (2004).Todavia, não parece acertada a tese <strong>de</strong> que um estrangeiro possaser extradita<strong>do</strong> e um brasileiro simplesmente ser entregue à JurisdiçãoInternacional. A extradição é um processo híbri<strong>do</strong>, ou seja, possui umafase judicial e uma fase administrativa. Assim, para um estrangeiro serextradita<strong>do</strong> é necessária a observância <strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> processo legal para aextradição. Dessa maneira, haverá um processo judicial perante o Supremo<strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, conforme art. 102, I, letra g, da CR/88. Em caso <strong>de</strong> oSTF <strong>de</strong>cidir pela extradição, os autos são encaminha<strong>do</strong>s para o Presi<strong>de</strong>nteda República para, discricionariamente, <strong>de</strong>cidir se entrega o estrangeiroou não. Dessa maneira, não parece ser razoável enten<strong>de</strong>r que um estrangeiro,para ser extradita<strong>do</strong>, tenha que ser submeti<strong>do</strong> a um processo judicial<strong>de</strong> extradição, com posterior <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte da Repúblicaacerca da entrega ou não, e um brasileiro seja simplesmente entregue àjurisdição internacional. Por isso, é que não é essa a linha <strong>de</strong> raciocínio.Entregar um nacional para ser submeti<strong>do</strong> ao <strong>Tribunal</strong> Penal Internacionalnão se relaciona com extradição, mas, sim, com soberania e cooperaçãointernacional.Insta acentuar que a intenção <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma, no que concerneà sua viabilida<strong>de</strong> e efetivida<strong>de</strong>, é a <strong>de</strong> estabelecer um regime <strong>de</strong>cooperação entre os Esta<strong>do</strong>s signatários quan<strong>do</strong> o crime cometi<strong>do</strong> foruma daquelas condutas graves apontadas nos artigos 5º e 8º <strong>de</strong> referi<strong>do</strong>Trata<strong>do</strong> Internacional.Vislumbra-se, <strong>de</strong>ssa maneira, que o conceito <strong>de</strong> soberania vem per<strong>de</strong>n<strong>do</strong>sua força com a realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> atual. Quan<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntese soberanos repassam parcela <strong>de</strong> sua soberania para um entemaior, estar-se-á diante <strong>de</strong> uma fe<strong>de</strong>ração. Veja-se, por exemplo, comoR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 67


aconteceu com as treze colônias inglesas que formaram os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>sda América. Naquela ocasião, as treze colônias inglesas que se <strong>de</strong>clararamin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes chegaram à conclusão <strong>de</strong> que seriam vulneráveis sepermanecessem separadas. Porém, se unidas, po<strong>de</strong>riam construir umanação mais forte. Assim, cada uma das treze colônias in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, calcadasna <strong>do</strong>utrina <strong>de</strong> Thomas Jefferson, repassou parcela <strong>de</strong> sua soberaniapara a criação <strong>de</strong> um ente maior, vale dizer, a União, e resguar<strong>do</strong>upara si a autonomia necessária para a autoadministração, autolegislaçãoe autogoverno. Daí nasceu o fe<strong>de</strong>ralismo em sua forma mais pura. NoBrasil, o fe<strong>de</strong>ralismo se mostrou <strong>de</strong> forma inversa. Não havia Esta<strong>do</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,mas, sim, um Esta<strong>do</strong> Unitário, que repassou parcelas <strong>de</strong> suasoberania para a criação <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>s membros. Por isso, é que se diz quenos EUA houve uma força centrípeta na criação da fe<strong>de</strong>ração e no Brasil,uma força centrífuga.A globalização e a aproximação <strong>do</strong>s povos acabaram por <strong>de</strong>terminarum interesse global <strong>de</strong> união e cooperação. Não há como fugir disso.A Organização das Nações Unidas e o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional estão aindicar que o mun<strong>do</strong> caminha para uma Fe<strong>de</strong>ração Global, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntee harmônica com os Esta<strong>do</strong>s-membros, <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> autoadministração,autoorganização, autolegislação e autojurisdição. Hoje já se fala até mesmoem um Ministério Público Internacional, conforme a obra <strong>de</strong> BrunoFerolla (2002), intitulada: Rumo ao Ministério Público Mundial. Po<strong>de</strong>-sedizer, assim, que a Carta da ONU po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como uma verda<strong>de</strong>iraconstituição em sua essência, mas, instrumentalmente, é um trata<strong>do</strong>.MELLO (2004).A natureza jurídica da ONU não é um assunto que os <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>restenham encara<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> pacífico. Alguns <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res afirmam queela é uma confe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> vocação universal. Outros preferem qualificálacomo um simples núcleo <strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ração, uma vez que os princípios quenorteiam o fe<strong>de</strong>ralismo são <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s somente <strong>de</strong> forma parcial, poisnão foi organiza<strong>do</strong> um Po<strong>de</strong>r Legislativo. Na verda<strong>de</strong>, a Carta da ONU,apesar <strong>de</strong> ser um trata<strong>do</strong>, possui características <strong>de</strong> uma constituição,como bem assinala Celso <strong>de</strong> Albuquerque Mello (op. Cit. 2004). Este aspectoé ressalta<strong>do</strong> no fato <strong>de</strong> que nenhum Trata<strong>do</strong> Internacional po<strong>de</strong>violar os dispositivos imperativos da Carta da ONU, pois, diferentemente<strong>do</strong>s Trata<strong>do</strong>s, não está sujeita a reservas e as emendas são aplicadas a to-68R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011


<strong>do</strong>s, uma vez aprovadas (A. Moreno López). Salienta este jurista espanholque a Carta é essencialmente uma constituição e só instrumentalmenteum trata<strong>do</strong>.Diante <strong>de</strong>sse fato, ou seja, a similitu<strong>de</strong> da Carta da ONU com asConstituições estatais, é que os <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res têm procura<strong>do</strong> assimilar aorganização a uma das formas <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> conhecidas. Entretanto, po<strong>de</strong>mosassinalar que ela não se enquadra a nenhuma <strong>de</strong>las. Por exemplo, nãoexiste confe<strong>de</strong>ração mundial, e algumas das <strong>de</strong>cisões da ONU são obrigatóriaspara os Esta<strong>do</strong>s, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> “ratificação” ou “aceitação”,como é o caso <strong>do</strong> orçamento. A ONU não po<strong>de</strong> ser comparada a umEsta<strong>do</strong>, uma vez que ela não preten<strong>de</strong> alcançar os fins a que se <strong>de</strong>stinamos Esta<strong>do</strong>s, como, por exemplo, uma unida<strong>de</strong> política. Além disso, ambospossuem elementos constitutivos distintos. Talvez a melhor posição sejaa <strong>de</strong> Quadri, ao falar em núcleo <strong>de</strong> fe<strong>de</strong>ração, isto é, um ponto <strong>de</strong> partidapara um fe<strong>de</strong>ralismo. Entretanto, o fe<strong>de</strong>ralismo nos parece ser ainda umaverda<strong>de</strong>ira miragem na socieda<strong>de</strong> internacional, entendida <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong>global. A ONU é simplesmente uma organização internacional, intergovernamental.Esta é sua natureza jurídica. Não há qualquer vantagem emprocurar assimilá-la a uma forma <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> já existente, à qual ela só seadaptará com certos argumentos força<strong>do</strong>s. MELLO, (2004).Outra questão a ser analisada é o princípio <strong>do</strong> nullem crimen sinelege, ou seja, não há crime sem lei anterior que o <strong>de</strong>fina. A norma queincorporou o Estatuto <strong>de</strong> Roma ao direito brasileiro é um Decreto, emana<strong>do</strong><strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte da República, que foi previamente aprova<strong>do</strong> no CongressoNacional mediante Decreto Legislativo. Ora, o art. 5º XXXIX, daCR/88, <strong>de</strong>termina que para uma conduta ser consi<strong>de</strong>rada crime, é necessáriouma lei formal anterior que <strong>de</strong>fina como típico aquele comportamento.Assim sen<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>ria um Decreto Presi<strong>de</strong>ncial ou um DecretoLegislativo tipificar crimes?Segun<strong>do</strong> a professora Flávia Piovesan, o Trata<strong>do</strong>, após a aprovaçãopelo Congresso Nacional e posterior Decreto <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte da República, éincorpora<strong>do</strong> ao Direito brasileiro como Lei Ordinária. Todavia, se o Trata<strong>do</strong>Internacional versar sobre direitos humanos, ingressará como norma materialmenteconstitucional por força <strong>do</strong> art. 5º, § 3º, da CR/88. PIOVESAN(2007). Mas, em Direito Penal <strong>de</strong>ve ser aplica<strong>do</strong> o princípio da legalida<strong>de</strong>estrita, ou seja, somente a lei em senti<strong>do</strong> formal po<strong>de</strong> tipificar crimes.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 69


Todavia, o art. 8º, Item 2, letra b, IV, <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma não seaplica em território nacional, ou seja, não po<strong>de</strong> o Po<strong>de</strong>r Judiciário Brasileiroaplicar referi<strong>do</strong> dispositivo para con<strong>de</strong>nar quem quer que seja.Isso porque tal competência é <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional. A<strong>de</strong>mais,referi<strong>do</strong> dispositivo fere a legalida<strong>de</strong>, pois um crime não po<strong>de</strong> ser tipifica<strong>do</strong>via Decreto Legislativo ou Decreto Presi<strong>de</strong>ncial. O sujeito vairespon<strong>de</strong>r <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a legislação interna, vale dizer, Código Penal,Código Penal Militar ou Legislação Penal Extravagante, conforme art. 7º,<strong>do</strong> Código Penal c/c art. 5º, XXXIX, da CR/88. Caso, o Brasil não apure ofato, o <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional será competente para julgar a matériacom base no art. 8º, Item 2, letra b, IV, <strong>do</strong> Decreto 4.388/02, valedizer, o Estatuto <strong>de</strong> Roma.5. O PANORAMA GLOBAL DIANTE DA NOVA ORDEM MUNDIALA Nova Or<strong>de</strong>m Mundial é uma linha <strong>de</strong> pensamento político quetem por base a Governança Global. É <strong>de</strong> suma importância que os aspectoscontrários à referida teoria, a maior parte <strong>de</strong>les lança<strong>do</strong>s por teoriasconspiratórias sem qualquer fundamento, sejam postos <strong>de</strong> la<strong>do</strong> para umaanálise séria da questão.Com efeito, a globalização é um fato notório. O mun<strong>do</strong> tornou-sepequeno. As distâncias foram vencidas e, aos poucos, antigos <strong>do</strong>gmas,outrora intangíveis, estão sen<strong>do</strong> revistos. A soberania <strong>do</strong>s povos é contestadahoje em dia. Não há mais espaço para uma nação absolutamente<strong>de</strong>stacada <strong>do</strong> resto <strong>do</strong> contexto mundial. A i<strong>de</strong>ia é a <strong>de</strong> que a gran<strong>de</strong>maioria <strong>do</strong>s países já possuem o Constitucionalismo como viga mestra<strong>de</strong> seus or<strong>de</strong>namentos, assim como a proteção aos direitos humanos ea valorização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático e <strong>de</strong> Direito. Não existe mais lugarno mun<strong>do</strong> para as Ditaduras Militares e para os Esta<strong>do</strong>s Absolutistas. Areligião <strong>de</strong>ve ser separada da política e a tendência é que cada vez maispaíses a<strong>do</strong>tem o sistema da economia <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, da livre iniciativa erespeitem os direitos fundamentais.Assim, as relações entre países <strong>de</strong>mocráticos tornam-se cada vezmais estreitas e surge a necessida<strong>de</strong> da criação <strong>de</strong> um ente internacionalcom po<strong>de</strong>res suficientes para administrar, legislar e julgar os conflitos <strong>de</strong>interesses. Em um futuro próximo, os países <strong>de</strong>verão repassar parcela <strong>de</strong>suas soberanias para esse ente internacional, assim, como as treze colôniasin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes norte-americanas fizeram ao criar os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s70R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011


da América. É o fe<strong>de</strong>ralismo global em sua versão mais pura. Haverá umGoverno Central, um Po<strong>de</strong>r Legislativo Central e um Po<strong>de</strong>r JudiciárioCentral, tu<strong>do</strong> em nível global. Daí falar-se em Governança Global.Esse pensamento político não é algo novo. É uma linha que vemsen<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os Iluministas e tem início com a RevoluçãoFrancesa e a in<strong>de</strong>pendência norte-americana no fim <strong>do</strong> século XVIII. Paraos filósofos iluministas, assim como John Locke, Voltaire, Montesquieu eDennis Di<strong>de</strong>rot, o homem era naturalmente bom, porém, era corrompi<strong>do</strong>pela socieda<strong>de</strong> com o passar <strong>do</strong> tempo. Eles acreditavam que se to<strong>do</strong>sfizessem parte <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> justa, com direitos iguais a to<strong>do</strong>s, a felicida<strong>de</strong>comum seria alcançada. ROBERTS (2004).CONCLUSÃOTodas as questões constitucionais propostas resolvem-se pela Teoria<strong>do</strong> Constitucionalismo Global <strong>de</strong> Canotilho. É que as nações que sãopartes no Trata<strong>do</strong> repassam parcela <strong>de</strong> sua competência para uma entida<strong>de</strong>maior. Por isso é que as normas <strong>do</strong> Estatuto <strong>de</strong> Roma são preeminentesem relação às normas. Canotilho (2003) sustenta, assim, que ospreceitos constitucionais internos incompatíveis com normas oriundas <strong>do</strong>Direito Comunitário, ou seja, da União Europeia, não são nulos ou anuláveis,mas apenas inaplicáveis no caso concreto.Assim sen<strong>do</strong>, o Brasil, se quiser, po<strong>de</strong> entregar um Nacional paraser julga<strong>do</strong> pelo <strong>Tribunal</strong> Penal Internacional, pois faz parte <strong>de</strong> um pactomundial para prevenção e combate à macrocriminalida<strong>de</strong>.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 57-71, out.-<strong>de</strong>z. 2011 71


A Extinção da Prisão <strong>do</strong> Deve<strong>do</strong>r<strong>de</strong> Alimentos será a Solução <strong>de</strong>que Problema Social?Daniel Roberto HertelProfessor titular <strong>de</strong> Direito Processual Civil <strong>do</strong> CentroSuperior <strong>de</strong> Ciências Sociais <strong>de</strong> Vila Velha/ES e daEscola da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Espírito Santo.Está sen<strong>do</strong> discutida uma alteração legislativa que extinguirá a pena<strong>de</strong> prisão <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> alimentos ou a tratará apenas como uma medidaresidual. Para aqueles que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que ela <strong>de</strong>verá ser uma medidaresidual, primeiramente <strong>de</strong>verá ser utiliza<strong>do</strong> o protesto da <strong>de</strong>cisão judicialque estabeleceu a pensão alimentícia. Caso insuficiente o protesto, será<strong>de</strong>terminada a prisão em regime bem atenua<strong>do</strong>, bem bran<strong>do</strong>, como sefosse um regime semiaberto. A prisão <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s alimentos seria,assim, a última medida a ser utilizada.Cumpre esclarecer que a prisão <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> alimentos está previstano or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiro há décadas. De fato, a legislaçãoautoriza a prisão daquele que não paga os alimentos pelo prazo <strong>de</strong> um atrês meses. Trata-se <strong>de</strong> uma forma <strong>de</strong> coagir o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r ao pagamento dasprestações alimentícias. Por outras palavras: o seu escopo não é punir o<strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, mas constrangê-lo, coagi-lo ao adimplemento da sua obrigação.Particularmente, não comungo com a proposta <strong>de</strong> alteração normativa.A prisão <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> alimentos, na prática, é extremamenteútil e eficaz. De fato, muitos <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>res <strong>de</strong> alimentos <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> cumprirvoluntariamente com o pagamento da prestação alimentícia, somentecumprin<strong>do</strong>-o quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>cretada a medida coercitiva.Não se po<strong>de</strong> olvidar que a prisão <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> alimentos, emúltima análise, visa a preservar a própria vida e a própria dignida<strong>de</strong> <strong>do</strong>cre<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s alimentos. Para ilustrar essa assertiva, basta imaginar umasituação na qual um pai não pague pensão para um filho que está acometi<strong>do</strong><strong>de</strong> alguma <strong>do</strong>ença gravíssima. Como ficaria a dignida<strong>de</strong> e a vida<strong>de</strong>ssa criança? É justo afastar-se a pena <strong>de</strong> prisão para o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r que72R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 72-73, out.-<strong>de</strong>z. 2011


não honra com a sua obrigação legal <strong>de</strong> manutenção da vida <strong>de</strong> outrem?Não me parece que possam existir dúvidas quanto à resposta.A propósito, gostaria <strong>de</strong> saber qual será o proveito que a socieda<strong>de</strong>terá com a extinção da prisão <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> alimentos ou mesmo com asua manutenção apenas a título residual. A prisão <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> alimentosnão ofen<strong>de</strong> a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana: ao contrário, ela preservaa vida e a dignida<strong>de</strong> <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s alimentos.Nem se argumente que, preso, o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r não terá como honrarcom o pagamento. É que a sua prisão foi <strong>de</strong>cretada exatamente pelo fato<strong>de</strong> ele, quan<strong>do</strong> solto, não ter honra<strong>do</strong> com a obrigação respectiva. A<strong>de</strong>mais,caso o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> alimentos tenha alguma dificulda<strong>de</strong> financeirapara honrar com o respectivo cumprimento da sua obrigação alimentar,<strong>de</strong>verá ele mover a respectiva ação revisional. Nessa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação,o Juiz po<strong>de</strong>rá modificar o valor da pensão alimentícia, com base num critério<strong>de</strong> proporcionalida<strong>de</strong> entre as necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r e as possibilida<strong>de</strong>s<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.Sou completamente contrário à modificação legislativa proposta.Não vejo qualquer vantagem nessa intenção <strong>de</strong> modificação legislativa.Não me parece, com efeito, que ela propiciará qualquer benefício à socieda<strong>de</strong><strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral, assim como às classes menos favorecidas ouhipossuficientes, como são, geralmente, os cre<strong>do</strong>res <strong>de</strong> alimentos. Aocontrário, ao que tu<strong>do</strong> indica, a modificação legislativa beneficiará apenasaqueles que são obriga<strong>do</strong>s a pagar os alimentos e não estão honran<strong>do</strong>com as suas obrigações.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 72-73, out.-<strong>de</strong>z. 2011 73


O Neoprocessualismo,o Formalismo Valorativo esuas influências no novo CPC1. IntroduçãoHarol<strong>do</strong> LourençoMestran<strong>do</strong> na Universidad <strong>de</strong> Jaén (Espanha). Pós-gradua<strong>do</strong>em Direito Processual Civil (UFF), em ProcessoConstitucional (UERJ). Professor <strong>de</strong> Direito ProcessualCivil nos seguintes cursos (presencial, telepresencial eon-line): Re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ensino LFG, Praetorium/BH, Forum,Lexus, atualização e capacitação profissional na advocaciacível da OAB-RJ, Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s, Pesquisae Atualização em Direito (CEPAD), Ênfase Praetorium,Foco Treinamento Jurídico, Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Guerra<strong>de</strong> Moraes, Multiplus Cursos e Concursos.Des<strong>de</strong> a celebração <strong>do</strong> I Pacto Republicano (2004) iniciou-se, incisivamente,a busca por um sistema <strong>de</strong> justiça mais acessível, ágil e efetiva,a partir <strong>do</strong> qual foram aprovadas inúmeras reformas legislativas. A harmoniaentre as funções, na acepção jurídica, é uma cláusula pétrea, contu<strong>do</strong>,<strong>de</strong> maneira mais profunda, <strong>de</strong>ve significar uma estreita colaboração entreLegislativo, Judiciário e Executivo.Nessa linha, foi nomeada, no final <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2009, pelo Sena<strong>do</strong>,uma comissão <strong>de</strong> juristas com a incumbência <strong>de</strong> elaborar o anteprojeto<strong>de</strong> novo Código <strong>do</strong> Processo Civil, presidida pelo Ministro Luiz Fux, à épocapertencente ao Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça.O menciona<strong>do</strong> projeto foi apresenta<strong>do</strong> ao Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral, ten<strong>do</strong>si<strong>do</strong> <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> pelo nº 166/10. A principal justificativa para tal empreitada,apesar <strong>de</strong> inúmeros juristas entendê-la ser <strong>de</strong>snecessária 1 , foi o fato1 Nesse senti<strong>do</strong> já se manifestaram diversos juristas. Gilmar Men<strong>de</strong>s: “Não tenho muita segurança <strong>de</strong> que sejanecessário um novo CPC. Mas é preciso simplificar ritos, como já é feito nos Juiza<strong>do</strong>s Especiais. Além disso, asocieda<strong>de</strong> brasileira precisa encontrar formas alternativas, como conciliação e arbitragem”. Ada Pellegrini Grinover:“...a simples edição <strong>de</strong> um novo CPC não bastará para dar maior celerida<strong>de</strong> aos processos, porque se trata <strong>de</strong> umproblema <strong>de</strong> mentalida<strong>de</strong>. Segun<strong>do</strong> ela, seriam necessários estu<strong>do</strong>s para i<strong>de</strong>ntificar os problemas que atrasam oandamento <strong>do</strong>s processos nos cartórios, o que até hoje não foi feito.” Fonte: http://www.portal<strong>do</strong>holanda.com/noticia/44231-ministros-<strong>do</strong>-stf-e-advoga<strong>do</strong>s-discutem-a-necessida<strong>de</strong>-<strong>de</strong>-um-novo-cpc, acessa<strong>do</strong> em 20.09.2011.74R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


<strong>de</strong> que o CPC vigente, após inúmeras reformas e alterações legislativas,teria perdi<strong>do</strong> a sistematicida<strong>de</strong>.Nota-se pela exposição <strong>de</strong> motivos <strong>do</strong> menciona<strong>do</strong> projeto que ameta é estabelecer uma maior celerida<strong>de</strong> processual, a fim <strong>de</strong> evitar o<strong>de</strong>sprestígio <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Judiciário, <strong>de</strong>tectan<strong>do</strong> barreiras para a prestação <strong>de</strong>uma justiça rápida, bem como legitimar <strong>de</strong>mocraticamente as soluções,extirpan<strong>do</strong> o formalismo excessivo, e promoven<strong>do</strong> um enxugamento <strong>do</strong>sistema recursal.Realmente é notório que o projeto busca reestruturar o CPC à luz<strong>do</strong>s paradigmas <strong>do</strong>utrinários e jurispru<strong>de</strong>nciais, corrigin<strong>do</strong> ou eliminan<strong>do</strong>os institutos vistos como ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s e acrescentan<strong>do</strong> novos.Tenho, contu<strong>do</strong>, dúvida em afirmar que está sen<strong>do</strong> cria<strong>do</strong> um “NovoCPC”; sem amesquinhar o projeto, mais parece que o Código Buzaid estásen<strong>do</strong>, somente, organiza<strong>do</strong> e sistematiza<strong>do</strong>.Agora, não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> mencionar que há uma gran<strong>de</strong> falhano projeto, não <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong>, mas no caminho trilha<strong>do</strong> para a suaelaboração. Melhor explican<strong>do</strong>, com as <strong>de</strong>vidas vênias, o Judiciário seaproximou exageradamente <strong>do</strong> Legislativo e Executivo, submeten<strong>do</strong> seustrabalhos ao calendário político <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral, ten<strong>do</strong> o texto si<strong>do</strong>feito às pressas, sem a realização <strong>de</strong> um autêntico <strong>de</strong>bate 2 .Há, inclusive, protestos por parte <strong>de</strong> membros da Comissão 3 , bemcomo por comunida<strong>de</strong>s jurídicas que afirmam que as audiências públicasforam realizadas antes da conclusão <strong>do</strong>s trabalhos, sem a divulgação prévia<strong>de</strong> um texto base para orientar as sugestões. Um ponto é inequívoco,o que por si só já permite questionar a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> menciona<strong>do</strong>projeto: o texto, com exceção <strong>de</strong> uns poucos trechos, foi manti<strong>do</strong>em sigilo, até a sua apresentação no Sena<strong>do</strong>.De igual mo<strong>do</strong>, com conclusão semelhante: "Relatório com a síntese das conclusões e sugestões <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong>discussões no I Encontro nacional <strong>do</strong>s jovens processualistas". Faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong> Largo <strong>de</strong> São Francisco, 04 e 05 <strong>de</strong><strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2008. Relator: Fredie Didier Jr. (BA - relator). Demais membros: Dierle José Coelho Nunes (MG), GracielaMarins (PR), Heitor Vitor Men<strong>do</strong>nça Sica (SP), Marcos André Franco Montoro (SP), Paulo Magalhães Nasser (SP), RitaQuartieri (SP), Mirna Cianci (SP), Roberto Gouveia Filho (PE), Sandro Gilbert Martins (PR), Sidnei Amen<strong>do</strong>eira Jr.(SP), Valéria Lagrasta (SP), Robson Godinho (RJ), Antônio <strong>do</strong> Passo Cabral (RJ) e Alexandre Bahia (MG). Fonte: www.frediedidier.com.br. MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIEIRO, Daniel. O projeto <strong>do</strong> CPC: crítica e propostas. SãoPaulo: Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2010, p. 56.2 Com a mesma impressão: BORRING, Felipe. "Consi<strong>de</strong>rações iniciais sobre a teoria geral <strong>do</strong>s recursos no NovoCódigo <strong>de</strong> Processo Civil". Revista Eletrônica <strong>de</strong> Direito Processual – REDP. Ano 5. Volume VII. Janeiro a Junho <strong>de</strong>2011. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, p. 27-28.3 DONIZETTI, Elpídio. Reflexões <strong>de</strong> um juiz cristão - sobre os meandros da Comissão <strong>do</strong> Novo CPC. Fonte: www.elpidio<strong>do</strong>nizetti.com.br, acessa<strong>do</strong> em 20.09.2011. No mesmo senti<strong>do</strong>, Ricar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Barros Leonel, fonte: www.professorcostamacha<strong>do</strong>.com.br,acessa<strong>do</strong> em 20.09.2011, mesmo sem ser integrante da Comissão.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 75


Enfim, a proposta <strong>do</strong> presente trabalho não é criticar, mas analisaro material apresenta<strong>do</strong> à luz <strong>do</strong> neoprocessualismo e <strong>do</strong> formalismo valorativo,buscan<strong>do</strong>, tão somente, colaborar.É níti<strong>do</strong> que a Comissão procurou alinhar o novo Código ao Esta<strong>do</strong>constitucional e ao mo<strong>de</strong>lo constitucional <strong>de</strong> processo civil, como seextrai <strong>do</strong>s coman<strong>do</strong>s enfeixa<strong>do</strong>s nos dispositivos iniciais <strong>do</strong> NCPC (art. 1ºao 11), o que, por si só, já é digno <strong>de</strong> aplausos. Há, contu<strong>do</strong>, algumas falhas,as quais serão melhor analisadas em separa<strong>do</strong>.No intento <strong>de</strong>ssa sintonia fina, busca-se uma harmonia da lei ordináriacom a Constituição, incluin<strong>do</strong>-se no Código princípios constitucionaisprocessuais. Por outro la<strong>do</strong>, muitas regras foram concebidas dan<strong>do</strong>concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, as que preveemum procedimento, com contraditório e produção <strong>de</strong> provas, prévio à<strong>de</strong>cisão que <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra a pessoa jurídica, em sua versão tradicional, ou“às avessas” 4 .Está expressamente formulada a regra no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que o fato <strong>de</strong>o juiz estar diante <strong>de</strong> matéria <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública não dispensa a obediênciaao princípio <strong>do</strong> contraditório. Além disso, criou-se um inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>julgamento conjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas repetitivas, com inspiração no direitoalemão 5 , a fim <strong>de</strong> se atingir segurança jurídica e evitar a dispersão da jurisprudência,ren<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se o legisla<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>finitivamente, às influências <strong>do</strong>common law, pois a jurisprudência <strong>do</strong> STF e <strong>do</strong>s Tribunais Superiores <strong>de</strong>venortear as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os Tribunais e Juízos singulares <strong>do</strong> país, <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> a concretizar plenamente os princípios da legalida<strong>de</strong> e da isonomia.Diante <strong>de</strong> tal postura da Comissão, percebemos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>abordar alguns comentários sobre as influências sofridas pelo nosso or<strong>de</strong>namentojurídico, caminhan<strong>do</strong> pelas fases meto<strong>do</strong>lógicas <strong>do</strong> processocivil até a era <strong>do</strong> neoconstitucionalismo, <strong>do</strong> neoprocessualismo, <strong>do</strong> formalismovalorativo (ou formalismo ético), as quais, provavelmente, em muitoinfluenciaram os membros da Comissão.4 Informações extraídas da Exposição <strong>de</strong> Motivos <strong>do</strong> Anteprojeto <strong>de</strong> Lei 166/10.5 No direito alemão a figura se chama Musterverfahren e gera <strong>de</strong>cisão que serve <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo (= Muster) para aresolução <strong>de</strong> uma quantida<strong>de</strong> expressiva <strong>de</strong> processos em que as partes estejam na mesma situação, não se tratan<strong>do</strong>necessariamente, <strong>do</strong> mesmo autor nem <strong>do</strong> mesmo réu. (RALF-THOMAS WITTMANN. II “contenzioso di massa” inGermania, in GIORGETTI ALESSANDRO e VALERIO VALLEFUOCO, II Contenzioso di massa in Italia, in Europa e nelmon<strong>do</strong>, Milão, Giuffrè, 2008, p. 178).76R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


2. Fases Meto<strong>do</strong>lógicas <strong>do</strong> direito processualO processo civil, em uma análise evolutiva, passou por algumas fasesmeto<strong>do</strong>lógicas nas quais prevaleciam i<strong>de</strong>ias que, com o tempo, foramse mostran<strong>do</strong> anacrônicas. Nesse contexto histórico, é importante estabaleceruma visão razoável sobre essas etapas, para que possamos compreen<strong>de</strong>ra fase atual, <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> neoprocessualismo ou formalismovalorativo, que emerge da influência sofrida pelo processo civil <strong>do</strong> direitoconstitucional ou uma constitucionalização <strong>do</strong> processo civil. A rigor, osmo<strong>de</strong>los processuais são representa<strong>do</strong>s por quatro fases.2.1. Praxismo (ou fase sincretista)Ocorria uma confusão entre o direito material e o processual; oprocesso era estuda<strong>do</strong> apenas em seus aspectos práticos, sem preocupaçõescientíficas. A ação era o direito material em movimento, ou seja, umavez lesa<strong>do</strong> o direito material, este adquiria forças para que fosse obtidaem juízo a reparação da lesão sofrida. Nessa fase, ainda não se visualizavaa autonomia da relação jurídica processual em confronto com a relaçãojurídica material. O direito processual não era um ramo autônomo <strong>do</strong> direitoe, tampouco, havia estu<strong>do</strong>s para uma pretensa autonomia científica.O que havia era um conjunto <strong>de</strong> formas para o exercício <strong>do</strong> direito, sobuma condução pouco participativa <strong>do</strong> juiz.No século XIX, com estu<strong>do</strong>s alemães sobre natureza jurídica daação, bem como sobre natureza jurídica <strong>do</strong> processo, tal fase começou aruir, pois os conhecimentos eram empíricos, sem nenhuma consciência <strong>de</strong>princípios ou embasamento científico.2.2. Processualismo (ou fase <strong>do</strong> autonomismo)O processo passou a ser estuda<strong>do</strong> autonomamente, ganhou relevoa sua afirmação científica <strong>do</strong> processo. Durante praticamente um séculotiveram lugar as gran<strong>de</strong>s teorias processuais, especialmente sobre a naturezajurídica da ação e <strong>do</strong> processo, as condições da ação e os pressupostosprocessuais 6 .6 BÜLOW, Oskar. La teoria <strong>de</strong> las excepcionais Procesales y los Presupuestos Procesales. Trad. Miguel Angel RosasLichtschein. Buenos Aires: Ejea, 1964. Tal obra é tida como “certidão <strong>de</strong> nascimento <strong>do</strong> processo civil” (DINAMARCO.Instituições..., v. 1, p. 258), todavia, o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo como relação jurídica vem <strong>de</strong> Hegel, sen<strong>do</strong> mais tar<strong>de</strong>lembra<strong>do</strong> por Bethmann-Holweg para só então ser trabalhada por Bülow (PONTES DE MIRANDA, FranciscoCavalcanti, Comentários ao Código <strong>de</strong> Processo Civil. 4. ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 1997, tomo III, p. 435), apud DANIELMITIDIEIRO, "Bases para construção <strong>de</strong> um processo civil cooperativo: o direito processual civil no marco teórico <strong>do</strong>formalismo-valorativo". Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> UFRS, Porto Alegre, 2007, p. 20, nota 64.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 77


A afirmação da autonomia científica <strong>do</strong> direito processual foi umagran<strong>de</strong> preocupação <strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong>, em que as gran<strong>de</strong>s estruturas <strong>do</strong> sistemaforam traçadas e os conceitos largamente discuti<strong>do</strong>s e amadureci<strong>do</strong>s.Tal fase caracterizou-se por ser muito introspectiva; era o processopelo processo. E, a rigor, tornou-se autofágica, distanciada da realida<strong>de</strong>,geran<strong>do</strong> um culto exagera<strong>do</strong> as formas processuais, no afã <strong>de</strong> enfatizar aautonomia científica.2.3. InstrumentalismoO processo, embora autônomo, passa a ser encara<strong>do</strong> como instrumento<strong>de</strong> realização <strong>do</strong> direito material, a serviço da paz social. Como aprimeira fase meto<strong>do</strong>lógica não visualizava o processo como instituiçãoautônoma, a segunda fase acabou enfatizan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>masiadamente, a técnica,o formalismo.Nesse senti<strong>do</strong>, surgiu a instrumentalida<strong>de</strong>, negan<strong>do</strong> o caráter puramentetécnico <strong>do</strong> processo, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> que o processo não é umfim em si mesmo, mas um meio para se atingir um fim, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> umai<strong>de</strong>ologia <strong>de</strong> acesso à justiça. Essa fase é, eminentemente, crítica, poiso processualista mo<strong>de</strong>rno sabe que a sua ciência atingiu níveis expressivos<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, porém o sistema ainda é falho na sua missão <strong>de</strong>produzir justiça. O processo passou a ser analisa<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> resulta<strong>do</strong>spráticos, levan<strong>do</strong> em conta o consumi<strong>do</strong>r <strong>do</strong> serviço judiciário.Cumpre registrar que tal fase ainda não exauriu o seu potencial reformista,mas já se formou a consciência <strong>do</strong> relevante papel <strong>do</strong> sistemaprocessual e <strong>de</strong> sua complexa missão perante a socieda<strong>de</strong> e o Esta<strong>do</strong>.Para tanto, basta recordarmos <strong>do</strong>s Juiza<strong>do</strong>s Especiais Cíveis, da ação civilpública, <strong>do</strong> manda<strong>do</strong> <strong>de</strong> segurança individual e coletivo, da DefensoriaPública, <strong>do</strong> CDC etc.Não obstante se reconheçam as diferenças funcionais entre o direitoprocessual e o direito material, estabelece-se entre eles uma relação circular<strong>de</strong> inter<strong>de</strong>pendência: o direito processual concretiza e efetiva o direitomaterial, que confere ao primeiro o seu senti<strong>do</strong>. É a chamada teoria circular<strong>do</strong>s planos processual e material, na visão <strong>de</strong>senvolvida por Carnelutti naqual o processo serve ao direito material, ao mesmo tempo em que é servi<strong>do</strong>por ele.78R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


2.4. Neoprocessualismo ou formalismo valorativo ou formalismo éticoA partir da evolução <strong>de</strong>ssas fases meto<strong>do</strong>lógicas, sob a influência<strong>do</strong> neoconstitucionalismo, começou-se a cogitar no neoprocessualismo,que se interage com o instrumentalismo, também <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> por umaparte <strong>do</strong>utrina <strong>de</strong> formalismo valorativo ou formalismo ético.Fato é que o direito processual civil está viven<strong>do</strong> uma nova fase,uma quarta 7 , não importan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>nominação que se utilize. Para umamaior clareza, abordaremos o estu<strong>do</strong> da quarta fase isoladamente, caminhan<strong>do</strong>pelo neoconstitucionalismo, neoprocessualismo, instrumentalida<strong>de</strong>e formalismo valorativo.3. Algumas consi<strong>de</strong>rações sobre o neoconstitucionalismoNosso or<strong>de</strong>namento jurídico, tradicionalmente, é positivista 8 . Nele,o papel <strong>do</strong> juiz é o <strong>de</strong> tão somente <strong>de</strong>scobrir e revelar a solução contida nanorma; em outras palavras, o juiz formula juízo <strong>de</strong> fato para o conhecimentoda realida<strong>de</strong>, porém não faz juízo <strong>de</strong> valor, o que envolve uma tomada <strong>de</strong>posição diante da realida<strong>de</strong>. No positivismo jurídico a análise <strong>do</strong> juiz conduzao entendimento acerca da imposição das leis como verda<strong>de</strong> única e suaconfiguração como expressão máxima <strong>do</strong> direito. Fundadas na obediênciaà lei, barbáries foram cometidas, como no nazismo e no fascismo.Atualmente, é crescente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um direito processual civil queconsagre a teoria <strong>do</strong>s direitos fundamentais, bem como a força normativada Constituição. Tal fenômeno é <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> por renoma<strong>do</strong>s autores <strong>de</strong>neoconstitucionalismo ou pós-positivismo 9 . Processualmente, seguin<strong>do</strong> aacepção <strong>do</strong> neoconstitucionalismo, atualmente se fala em neoprocessualismo,como se verá adiante.Ocorre que, ten<strong>do</strong> como premissa o neoconstitucionalismo, tais méto<strong>do</strong>se resulta<strong>do</strong>s, ainda que auxilia<strong>do</strong>s pelos meios <strong>de</strong> integração, nãopo<strong>de</strong>m mais ser avalia<strong>do</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong> Texto Constitucional.7 Nesse senti<strong>do</strong>: DIDIER Jr., Fredie. "Teoria <strong>do</strong> Processo e Teoria <strong>do</strong> Direito: o neoprocessualismo". fonte: www.aca<strong>de</strong>mia.edu/, p. 6.8 Para o Positivismo jurídico o Direito é aquilo que é posto pelo Esta<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> então esse o objeto que <strong>de</strong>ve ser<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, cujos esforços sejam volta<strong>do</strong>s à reflexão sobre a sua interpretação.9 As expressões não são unânimes, principalmente em razão da sua vagueza. Não é por outra razão que alguns autoresreferem-se a vários “neoconstitucionalismos”. Nesse senti<strong>do</strong>: DIDIER Jr., Fredie. “Teoria <strong>do</strong> Processo e Teoria <strong>do</strong>Direito: o neoprocessualismo”. fonte: www.aca<strong>de</strong>mia.edu/, p. 2, citan<strong>do</strong> Daniel Sarmento.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 79


Essa afirmação po<strong>de</strong> soar ao leitor como um truísmo. Daniel Sarmento10 , comentan<strong>do</strong> o ponto, afirma que o que hoje parece uma obvieda<strong>de</strong> eraquase revolucionário numa época em que a nossa cultura jurídica hegemônicanão tratava a Constituição como norma, mas como pouco mais <strong>do</strong> queum repositório <strong>de</strong> promessas grandiloquentes, cuja efetivação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>riaquase sempre da boa vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>s governantes <strong>de</strong> plantão.Para o constitucionalismo da efetivida<strong>de</strong>, a incidência da Constituição sobrea realida<strong>de</strong> social, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> qualquer mediação legislativa,contribuiria para tirar <strong>do</strong> papel as proclamações generosas <strong>de</strong> direitos contidasna Carta <strong>de</strong> 88, promoven<strong>do</strong> justiça, igualda<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong>.Nesse novo mo<strong>de</strong>lo, o magistra<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve estar prepara<strong>do</strong> para constatarque a solução não está integralmente na norma, o que <strong>de</strong>manda umpapel criativo na formulação da solução para o problema, tornan<strong>do</strong>-se,assim, coparticipante <strong>do</strong> papel <strong>de</strong> produção <strong>do</strong> direito, mediante integração,com suas próprias valorações e escolhas, das cláusulas abertas constantes<strong>do</strong> sistema jurídico.Não é <strong>de</strong>mais lembrar importante lição <strong>de</strong> renomada <strong>do</strong>utrina <strong>de</strong>que o processo, na sua condição <strong>de</strong> autêntica ferramenta <strong>de</strong> natureza públicaindispensável para a realização da justiça e da pacificação social, nãopo<strong>de</strong> ser compreendi<strong>do</strong> como mera técnica, mas sim como instrumento<strong>de</strong> realização <strong>de</strong> valores e, especialmente, <strong>de</strong> valores constitucionais;impõe-se, portanto, consi<strong>de</strong>rá-lo como direito constitucional aplica<strong>do</strong> 11 .A relação entre a Constituição e o processo se dá <strong>de</strong> forma direta eindireta. Diretamente ocorre quan<strong>do</strong> a Lei Fundamental estabelece quaissão os direitos e garantias processuais fundamentais, quan<strong>do</strong> estrutura asinstituições essenciais à realização da justiça ou, ainda, ao estabelecer mecanismosformais <strong>de</strong> controle constitucional. Será, porém, indireta quan<strong>do</strong>,tutelan<strong>do</strong> diversamente <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> bem jurídico (por exemplo, os direitosda personalida<strong>de</strong> ou os direitos coletivos ou difusos) ou uma <strong>de</strong>terminadacategoria <strong>de</strong> sujeitos (crianças, a<strong>do</strong>lescentes, i<strong>do</strong>sos, consumi<strong>do</strong>res etc.),dá ensejo a que o legisla<strong>do</strong>r infraconstitucional preveja regras processuaisespecíficas para que o juiz concretize a norma jurídica no caso concreto 12 .10 SARMENTO, Daniel. O neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilida<strong>de</strong>s. Leituras complementares <strong>de</strong> DireitoConstitucional – Teoria da Constituição. Marcelo Novelino (org.) Salva<strong>do</strong>r: Editora Jus Podivm, 2009, p. 31-32.11 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro <strong>de</strong>. "O Processo Civil Na Perspectiva Dos Direitos Fundamentais". Fonte: www.alvaro<strong>de</strong>oliveira.com.br.12 CAMBI, Eduar<strong>do</strong>. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44.Disponível em: , p. 1.80R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Nessa linha, o processo é um importante mecanismo <strong>de</strong> afirmação<strong>do</strong>s direitos reconheci<strong>do</strong>s na Constituição. A expressão “neo” (novo)chama a atenção <strong>do</strong> opera<strong>do</strong>r para mudanças paradigmáticas, pois oDireito não po<strong>de</strong> ficar engessa<strong>do</strong> aos méto<strong>do</strong>s arcaicos, engendra<strong>do</strong>spelo pensamento iluminista <strong>do</strong> século XVIII 13 , <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser foca<strong>do</strong>, emsua concretização, em pensamentos contemporâneos, não se dissocian<strong>do</strong>da realida<strong>de</strong> e das múltiplas relações sociais, políticas e econômicas.Esse é o <strong>de</strong>safio <strong>do</strong>s estudiosos ao combater o imobilismo conceitual,buscan<strong>do</strong> práticas mais a<strong>de</strong>quadas àquilo que a Constituição põe comoobjetivo fundamental, que é a construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> livre, justae solidária (art. 3°, I da CF/88).Basicamente, os direitos foram assegura<strong>do</strong>s, ou seja, formalmenteexistiam, porém, isso não é suficiente. Devem ser materialmente concretiza<strong>do</strong>s.Busca-se a melhor forma <strong>de</strong> interpretá-lo ou digeri-lo.Luis Roberto Barroso sintetiza que vivemos a perplexida<strong>de</strong> e a angústiada aceleração da vida, pois os tempos não andam propícios a <strong>do</strong>utrinas,mas para mensagens <strong>de</strong> consumo rápi<strong>do</strong>. Para jingles, e não para sinfonias.O Direito vive uma grave crise existencial. Não consegue entregaros <strong>do</strong>is produtos que fizeram sua reputação ao longo <strong>do</strong>s séculos. De fato,a injustiça passeia pelas ruas com passos firmes e a insegurança é a característicada nossa era. Na aflição <strong>de</strong>ssa hora, imerso nos acontecimentos,não po<strong>de</strong> o intérprete beneficiar-se <strong>do</strong> distanciamento crítico em relaçãoao fenômeno que lhe cabe analisar. Ao contrário, precisa operar em meioà fumaça e à espuma. Talvez esta seja uma boa explicação para o recursorecorrente aos prefixos pós e neo: pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, pós-positivismo, neoliberalismo,neoconstitucionalismo. Sabe-se que veio <strong>de</strong>pois e que tem apretensão <strong>de</strong> ser novo. Mas ainda não se sabe bem o que é. Tu<strong>do</strong> é aindaincerto. Po<strong>de</strong> ser avanço. Po<strong>de</strong> ser uma volta ao passa<strong>do</strong>. Po<strong>de</strong> ser apenasum movimento circular, uma <strong>de</strong>ssas guinadas <strong>de</strong> 360 graus 14 .13 Trata-se <strong>de</strong> um movimento cultural europeu, que ocupa o século que corre entre a Revolução Inglesa (1688) e aRevolução Francesa (1789). Foi uma teoria filosófica que, em termos práticos, insurgiu-se com a Revolução Francesa.Tinha por fundamento a razão acima <strong>de</strong> todas às coisas. E, mais especificamente, fazer com que fosse assegura<strong>do</strong> naCarta Política <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s – sua Constituição -, princípios fundamentais inerentes à pessoa humana, os quais são ínsitosao Direito Natural. Como forma <strong>de</strong> garantir aos cidadãos direito coletivos e individuais perante o Esta<strong>do</strong>, ocorreuuma divisão <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res, facilitan<strong>do</strong> o controle <strong>do</strong>s governantes, repudian<strong>do</strong>, assim, o absolutismo <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.Criou-se o Esta<strong>do</strong> Democrático <strong>de</strong> Direito, organiza<strong>do</strong> e controla<strong>do</strong> por um <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> Constituição,com o po<strong>de</strong>r na mão <strong>do</strong> povo, asseguran<strong>do</strong> a igualda<strong>de</strong>, liberda<strong>de</strong> e fraternida<strong>de</strong>.14 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização <strong>do</strong> Direito. O triunfo tardio <strong>do</strong> DireitoConstitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 25 <strong>de</strong>z. 2010, p. 1.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 81


O neoconstitucionalismo po<strong>de</strong> ser dividi<strong>do</strong> em três aspectos distintos:(i) histórico, (ii) filosófico e (iii) teórico.(i) Sobre o aspecto histórico, as transformações mais importantesno Direito Constitucional contemporâneo se <strong>de</strong>ram apartir da 2ª Gran<strong>de</strong> Guerra Mundial, na Europa, pois, com a<strong>de</strong>rrota <strong>do</strong>s regimes totalitários, verificou-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>serem cria<strong>do</strong>s catálogos <strong>de</strong> direitos e garantias fundamentaispara a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> cidadão, frente aos abusos que po<strong>de</strong>riamvir a ser cometi<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong> ou por quaisquer <strong>de</strong>tentores<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r em quaisquer <strong>de</strong> suas manifestações (político, econômico,intelectual etc.), bem como mecanismos efetivos <strong>de</strong>controle da Constituição (jurisdição constitucional).Assim, a era da valida<strong>de</strong> meramente formal <strong>do</strong> direito foi superada,não bastan<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> cumprir o processo legislativopara que a lei viesse a ser expressão <strong>do</strong> direito. Foram estreita<strong>do</strong>sos vínculos entre Direito e Política, na medida em queconceitos como os <strong>de</strong> razoabilida<strong>de</strong>, senso comum, interessepúblico etc. são informa<strong>do</strong>s por relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. A dignida<strong>de</strong>da pessoa humana passa a ser o núcleo axiológico da tutelajurídica, não se restringin<strong>do</strong> ao vínculo entre governantese governa<strong>do</strong>s, mas se esten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> para toda e qualquer relação,mesmo entre <strong>do</strong>is sujeitos priva<strong>do</strong>s.Os reflexos das alterações constitucionais, ocorridas na Europa,foram senti<strong>do</strong>s, significativamente, no Brasil, com o adventoda Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988, que marca, historicamente,a transição para o Esta<strong>do</strong> Democrático <strong>de</strong> Direito.(ii) No aspecto filosófico a expressão “vonta<strong>de</strong> da lei” foi superadapela hermenêutica jurídica, distinguin<strong>do</strong> regras e osprincípios, para dar força normativa a estes, com o escopo <strong>de</strong>ampliar a efetivida<strong>de</strong> da Constituição.Seriam <strong>de</strong> pouca valia os direitos fundamentais se não dispusessem<strong>de</strong> aplicabilida<strong>de</strong> imediata, porque não passariam<strong>de</strong> meras e vagas promessas. A tal raciocínio <strong>de</strong>nomina-se<strong>de</strong> pós-positivismo, na medida em que os princípios jurídicos82R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


<strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> ter aplicação meramente secundária, como forma<strong>de</strong> preencher lacunas, para ter relevância jurídica na conformaçãojudicial <strong>do</strong>s direitos.Nessa linha, por exemplo, o artigo 126 <strong>do</strong> CPC, reprodução<strong>do</strong> art. 4º da Lei <strong>de</strong> Introdução às normas <strong>do</strong> Direito Brasileiro15 , que é <strong>de</strong> 1942, consagra a proibição ao non liquet,impon<strong>do</strong> ao magistra<strong>do</strong> ter que <strong>de</strong>cidir o litígio, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>abster-se. Tal artigo <strong>de</strong>monstra esse resquício, pois nãoresiste às interpretações evolutivas <strong>do</strong> direito nem as teológicas<strong>do</strong> papel <strong>do</strong> juiz, na medida em que a norma jurídica,enquanto resulta<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo hermenêutico, não mais seenquadra na arcaica visão da <strong>de</strong>cisão enquanto um silogismojurídico (premissa maior: a regra jurídica; premissa menor:os fatos; e conclusão), seja porque se a<strong>do</strong>ta no Brasil,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Constituição Republicana <strong>de</strong> 1891, o judicial review(isto é, o controle difuso da constitucionalida<strong>de</strong>), nos mol<strong>de</strong>snorte-americanos, <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> caso Marbury vs. Madison(1803), com a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se negar – no plano formale/ou material - valida<strong>de</strong> à regra jurídica por se opor a umprincípio constitucional, seja porque a técnica legislativa seampara cada vez mais nas cláusulas gerais (p. ex., art. 421,CC/02, ao tratar da função social <strong>do</strong> contrato; art. 1228 §1°CC/02, ao prever a função social da proprieda<strong>de</strong>; art. 113 <strong>do</strong>CC/02, preven<strong>do</strong> que os contratos <strong>de</strong>vem ser interpreta<strong>do</strong>s àluz da boa-fé etc.), sen<strong>do</strong> os textos legislativos polissêmicos,a possibilitar mais <strong>de</strong> uma interpretação possível.Em conformida<strong>de</strong> com esse artigo, os “princípios gerais <strong>do</strong>direito” são a última fonte <strong>de</strong> integração das lacunas legislativas.Há uma grave imprecisão, ina<strong>de</strong>quada à nova realida<strong>de</strong><strong>do</strong> pensamento jurídico. Em 1942, norma era a lei, entendidacomo regra; princípios não tinham eficácia normativa;<strong>de</strong>pendiam das regras para concretizar-se. O pensamentomu<strong>do</strong>u; a interpretação há <strong>de</strong> mudar, também. O juiz não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>a “li<strong>de</strong>” com base na lei; o juiz <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a “li<strong>de</strong>” conforme15 Redação dada pela Lei n. 12.376/10, em que foi substituída a vetusta expressão “Lei <strong>de</strong> Introdução ao CódigoCivil”, que notoriamente estava equivocada.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 83


o “Direito”, que se compõe <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o conjunto <strong>de</strong> espéciesnormativas, inclusive os princípios. Os princípios não estão“fora” da legalida<strong>de</strong>, entendida essa como o Direito positivo:os princípios a compõem 16 .(iii) O aspecto teórico reflete três vertentes: o reconhecimentoda força normativa da constituição, a expansão da jurisdiçãoconstitucional e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma nova <strong>do</strong>gmáticada interpretação constitucional.Afirmar a força normativa da Constituição é afastar o mo<strong>de</strong>loque vigorou na Europa até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, noqual a Constituição era vista como um <strong>do</strong>cumento essencialmentepolítico. Sua concretização ficava, invariavelmente,condicionada à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conformação <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r ouà discricionarieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r. Ao Judiciário não sereconhecia qualquer papel relevante na realização <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong>da Constituição 17 .Daí se extrai a vetusta expressão <strong>de</strong> que a Constituição é umacarta <strong>de</strong> intenções. A vinculação positiva <strong>de</strong> todas as normasconstitucionais, inclusive aquelas que a <strong>do</strong>utrina clássica taxava<strong>de</strong> programáticas, implica, consequentemente, na expansãoda jurisdição constitucional.A expansão da jurisdição constitucional nunca esteve tão emvoga, principalmente com a explosão da litigiosida<strong>de</strong>, bemcomo <strong>do</strong> acesso à justiça. A difusão das causas <strong>de</strong> menorcomplexida<strong>de</strong> (principalmente com os Juiza<strong>do</strong>s Especiaiscíveis e criminais), os litígios <strong>de</strong> massa (regulamentação daação popular e da ação civil pública) e a ampliação da atuação<strong>do</strong> Ministério Público, possibilitaram que questões relevantesficassem mais em evidência e pu<strong>de</strong>ssem possibilitarum melhor acesso à justiça, efetivan<strong>do</strong> direitos fundamentais,colocan<strong>do</strong> o Judiciário no centro das atenções e dasperspectivas da socieda<strong>de</strong>.16 Fredie Didier Jr. Editorial 72, <strong>de</strong> 26.10.2009.17 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização <strong>do</strong> Direito. O triunfo tardio <strong>do</strong> DireitoConstitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 25 <strong>de</strong>z. 2010, p. 3.84R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Como dito, o judicial review aproxima o Judiciário da política,pois ações governamentais po<strong>de</strong>m ser contestadas judicialmente.Nesse contexto, surgem críticas ao neoconstitucionalismo,em que se questiona o papel <strong>do</strong> juiz como um protagonista<strong>do</strong> sistema, eis que o magistra<strong>do</strong> não teria legitimida<strong>de</strong><strong>de</strong>mocrática para tanto. Todavia, diante da crise da <strong>de</strong>mocraciarepresentativa, pois, na maioria das hipóteses, a vonta<strong>de</strong><strong>do</strong> representante não coinci<strong>de</strong> com a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> representa<strong>do</strong>,bem como pela falência <strong>do</strong> parlamento, pelo excessivonúmero <strong>de</strong> Medidas Provisórias, mesmo os membros <strong>do</strong> Judiciárionão ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> eleitos pelo povo, isso não lhes retiraa missão constitucional <strong>de</strong> efetivar direitos fundamentais.A reserva <strong>do</strong> possível, a reserva <strong>de</strong> consistência 18 , o princípioda motivação e da proporcionalida<strong>de</strong> são os principais limitesda atuação judicial. Logo, a postura <strong>do</strong> ativismo judicial<strong>de</strong>ve ser reservada à concretização das condições materiaismínimas <strong>de</strong> tutela da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana (mínimoexistencial). A questão, por fim, <strong>do</strong> que vem a compor a esfera<strong>do</strong> mínimo existencial não está posta <strong>de</strong> forma explícita naConstituição, não prescindin<strong>do</strong> da necessária interação entrea Política e o Direito.Posturas <strong>do</strong> Judiciário, que <strong>de</strong>monstram claramente um ativismojudicial, como a concessão <strong>de</strong> remédio para aidéticos,<strong>de</strong>vem sempre ser lembradas 19 .Como última barreira à atuação <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Judiciário, impõeseo mito <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r positivo, pelo qual o juiz po<strong>de</strong>, nosmol<strong>de</strong>s <strong>do</strong> pensamento iluminista, apenas <strong>de</strong>clarar a vonta<strong>de</strong>concreta da lei ou, no máximo, atuar como legisla<strong>do</strong>rnegativo <strong>de</strong>claran<strong>do</strong> a inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma lei contráriaà Constituição, não ten<strong>do</strong> ampla liberda<strong>de</strong> para a concretização<strong>de</strong> direitos. Tal compreensão não se compatibilizacom o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> previsto na Constituição Brasileira<strong>de</strong> 1988, requeren<strong>do</strong>, além das prestações negativas para a18 O Judiciário, ao proce<strong>de</strong>r a interpretação judicial, <strong>de</strong>ve apresentar argumentos substanciais <strong>de</strong> que o ato ou aomissão <strong>do</strong> agente público é incompatível com a Constituição.19 STF, AgRgRE n. 271.286-RS, 2ª T., rel. Min. Celso <strong>de</strong> Mello, julga<strong>do</strong> em 12.09.2000.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 85


garantia <strong>do</strong>s direitos <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, também prestações positivasinerentes à implementação <strong>de</strong> direitos fundamentais àsubsistência, à alimentação, ao trabalho, à educação, à saú<strong>de</strong>e à moradia 20 .As críticas são indispensáveis. A história <strong>do</strong> pensamento jurídicocostuma <strong>de</strong>senvolver-se em movimento pendular: essastransformações puxam para um la<strong>do</strong>; as críticas, para o outro;no final <strong>do</strong> “cabo <strong>de</strong> guerra”, chega-se ao equilíbrio 21 .3.1. Nova <strong>do</strong>gmática interpretativaNesse contexto, gradualmente, a lei <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser o centro <strong>do</strong> or<strong>de</strong>namentojurídico. Algumas mudanças fundamentais po<strong>de</strong>m ser apontadas:princípios ao invés <strong>de</strong> regras (ou mais princípios <strong>do</strong> que regras);pon<strong>de</strong>ração no lugar <strong>de</strong> subsunção (ou mais pon<strong>de</strong>ração <strong>do</strong> que subsunção);justiça particular em vez <strong>de</strong> justiça geral (ou mais análise individuale concreta <strong>do</strong> que geral e abstrata); Po<strong>de</strong>r Judiciário em vez <strong>de</strong> Po<strong>de</strong>r Executivoou Legislativo (ou mais Po<strong>de</strong>r Judiciário e menos Po<strong>de</strong>r Legislativoou Executivo); Constituição em substituição à lei (ou maior, ou direta, aplicaçãoda constituição em vez da lei) 22 .Tanto é que o Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça já reconheceu que “a dignida<strong>de</strong>da pessoa humana, um <strong>do</strong>s fundamentos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Democrático<strong>de</strong> Direito, ilumina a interpretação da lei ordinária” 23 .Sob a Constituição <strong>de</strong> 1988, o Direito Constitucional no Brasil passouda <strong>de</strong>simportância ao apogeu em menos <strong>de</strong> uma geração. O surgimento<strong>de</strong> um sentimento constitucional no País é algo que merece sercelebra<strong>do</strong>. Trata-se <strong>de</strong> um sentimento ainda tími<strong>do</strong>, mas real e sincero, <strong>de</strong>maior respeito pela Lei Maior, a <strong>de</strong>speito da volubilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu texto 24 .20 CAMBI, Eduar<strong>do</strong>. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44.Disponível em: , p. 15.21 DIDIER Jr., Fredie. "Teoria <strong>do</strong> Processo e Teoria <strong>do</strong> Direito: o neoprocessualismo". fonte: www.aca<strong>de</strong>mia.edu/, p. 6.22 ÁVILA, Humberto. "'Neoconstitucionalismo': entre a 'ciência <strong>do</strong> direito' e o 'direito da ciência'". Revista Eletrônica<strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> (REDE), Salva<strong>do</strong>r, Instituto Brasileiro <strong>de</strong> Direito Público, n° 17, janeiro/fevereiro/março 2009,disponível na internet: . acesso em 26.04.2010.23 Cfr. HC 9.892-RJ, 6ª T., rel. Min. Fontes <strong>de</strong> Alencar, julga<strong>do</strong> em 16.12.1999.24 BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização <strong>do</strong> Direito. O triunfo tardio <strong>do</strong> DireitoConstitucional no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 851, 1 nov. 2005. Disponível em: . Acesso em: 25 <strong>de</strong>z. 2010, p. 3.86R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Assim, não há controvérsia quan<strong>do</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>, em tese, a dignida<strong>de</strong>da pessoa humana. Mas quan<strong>do</strong>, por exemplo, discute-se se, em<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> caso concreto, é possível a interrupção da gravi<strong>de</strong>z <strong>de</strong> umfeto com anencefalia 25 , alguns <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rão, sob o argumento da tutela dadignida<strong>de</strong> humana, a vida <strong>do</strong> feto (bem indisponível e acima <strong>de</strong> qualqueroutro direito contraposto), já outros, com o mesmo argumento da dignida<strong>de</strong>,em favor da gestante, argumentarão que <strong>de</strong>ve ser preservada aintegrida<strong>de</strong> física e psíquica da mulher, evitan<strong>do</strong> um sofrimento imensoe inútil, saben<strong>do</strong>-se que a gestação é, cientificamente, inviável. Po<strong>de</strong>-seafirmar que ambas as argumentações são simultaneamente válidas; contu<strong>do</strong>,isto torna a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana uma fórmula vazia, semnenhum valor argumentativo.Para dar conteú<strong>do</strong> ao referi<strong>do</strong> valor, uma das duas interpretações<strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada, necessariamente, falsa, tornan<strong>do</strong> a dignida<strong>de</strong> humanaum valor relativo às circunstâncias situacionais importas pelo casoconcreto. Nesse contexto, quanto ao papel da norma, verificou-se que asolução <strong>do</strong>s problemas jurídicos nem sempre se encontra no relato abstrato<strong>do</strong> texto normativo, bem como o papel <strong>do</strong> juiz não é apenas o <strong>de</strong> conhecimentotécnico, volta<strong>do</strong> para revelar a solução contida no enuncia<strong>do</strong>normativo 26 .3.2. Constitucionalização <strong>do</strong> processoA Constituição, portanto, é o ponto <strong>de</strong> partida para a interpretação ea argumentação jurídica, assumin<strong>do</strong> um caráter fundamental na construção<strong>do</strong> neoprocessualismo. A partir <strong>do</strong> momento em que se contemplaram amplosdireitos e garantias, tornaram-se constitucionais os mais importantesfundamentos <strong>do</strong>s direitos material e processual, surgin<strong>do</strong> a <strong>de</strong>nominadaconstitucionalização <strong>do</strong> direito infraconstitucional. Deste mo<strong>do</strong>, alterou-se,radicalmente, o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> construção (exegese) da norma jurídica.A lei (e sua visão codificada <strong>do</strong> século XIX) per<strong>de</strong>u sua posiçãocentral como fonte <strong>do</strong> direito e passou a ser subordinada à Constituição,não valen<strong>do</strong> por si só, mas somente se conformada com a Constituiçãoe, especialmente, se a<strong>de</strong>quada aos direitos fundamentais. A função <strong>do</strong>sjuízes, pois, ao contrário <strong>do</strong> que <strong>de</strong>senvolvia Giuseppe Chiovenda, no25 Cfr. STF, ADPF n° 54.26 CAMBI, Eduar<strong>do</strong>. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44.Disponível em: , p. 20-21.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 87


início <strong>do</strong> século XX, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser apenas atuar (<strong>de</strong>clarar) a vonta<strong>de</strong> concretada lei e assumiu o caráter constitucional, possibilitan<strong>do</strong>, a partirda judicial review, o controle da constitucionalida<strong>de</strong> das leis e <strong>do</strong>s atosnormativos.Atualmente já se fala que a jurisdição é uma ativida<strong>de</strong> criativa danorma jurídica <strong>do</strong> caso concreto, bem como cria, muitas vezes, a própriaregra abstrata que <strong>de</strong>ve regular o caso concreto 27 . Deve-se <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> la<strong>do</strong>a opinião <strong>de</strong> que o Po<strong>de</strong>r Judiciário só exerce a função <strong>de</strong> legisla<strong>do</strong>r negativo,para compreen<strong>de</strong>r que ele concretiza o or<strong>de</strong>namento jurídico diante<strong>do</strong> caso concreto 28 - 29 .O direito fundamental <strong>de</strong> acesso à justiça, previsto no artigo 5º, incisoXXXV, da CF significa o direito à or<strong>de</strong>m jurídica justa 30 . Assim, a <strong>de</strong>signaçãoacesso à justiça não se limita apenas à mera admissão ao processoou à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ingresso em juízo, mas, ao contrário, essa expressão<strong>de</strong>ve ser interpretada extensivamente, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a noção ampla<strong>do</strong> acesso à or<strong>de</strong>m jurídica justa, que abrange: (i) o ingresso em juízo; (ii) aobservância das garantias compreendidas na cláusula <strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> processolegal; (iii) a participação dialética na formação <strong>do</strong> convencimento <strong>do</strong> juiz,que irá julgar a causa (efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> contraditório); (iv) a a<strong>de</strong>quada etempestiva análise, pelo juiz, natural e imparcial, das questões discutidasno processo (<strong>de</strong>cisão justa e motivada); (v) a construção <strong>de</strong> técnicas processuaisa<strong>de</strong>quadas à tutela <strong>do</strong>s direitos materiais (instrumentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>processo e efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s direitos) 31 .Assim, para uma perfeita compreensão <strong>de</strong> acesso à or<strong>de</strong>m jurídicajusta faz-se necessário examinar o conjunto <strong>de</strong> garantias e <strong>do</strong>s princípiosconstitucionais fundamentais ao direito processual, o qual se insere no<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> direito fundamental ao processo justo.Nesse conjunto <strong>de</strong> garantais e princípios constitucionais processuaisincluem-se o direito <strong>de</strong> ação, a ampla <strong>de</strong>fesa, a igualda<strong>de</strong> e o contra-27 DIDIER JR., Fredie. Curso <strong>de</strong> Direito Processual Civil. Editora Jus Podivm. 11ª Ed. v. I. p. 70.28 ÁVILA, Humberto. Teoria <strong>do</strong>s princípios – da <strong>de</strong>finição à aplicação <strong>do</strong>s princípios jurídicos. 7ª Ed. São Paulo:Malheiros Ed., 2007, p. 34.29 No mesmo senti<strong>do</strong>, imprescindível leitura <strong>de</strong> MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional. GilmarFerreira Men<strong>de</strong>s, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva,2008. p. 94-97, em que clama que o estudioso, com serenida<strong>de</strong>, discuta o problema da criação judicial <strong>do</strong> direito,enumeran<strong>do</strong> várias proposições em sua <strong>de</strong>fesa.30 Cfr. Kazuo Watanabe. "Acesso à justiça e socieda<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rna". In: Participação e processo. Coord. Ada PellegriniGrinover, Cândi<strong>do</strong> Rangel Dinamarco e Kazuo Watanabe. São Paulo: RT, 1988. P. 135.31 CAMBI, Eduar<strong>do</strong>. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44.Disponível em: , p. 25.88R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


ditório efetivo, o juiz natural, a publicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s atos processuais, in<strong>de</strong>pendênciae imparcialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> juiz, a motivação das <strong>de</strong>cisões judiciais, apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle recursal das <strong>de</strong>cisões etc. Desse mo<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-seafirmar que o direito ao processo justo é sinônimo <strong>do</strong> direito fundamentalà tutela jurisdicional efetiva, célere e a<strong>de</strong>quada.Essa constitucionalização <strong>do</strong>s direitos e garantias processuais torna-serelevante, pois, além <strong>de</strong> retirar o Código <strong>de</strong> Processo da centralida<strong>de</strong><strong>do</strong> or<strong>de</strong>namento processual, fenômeno <strong>de</strong>signa<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scodificação,ressalta o caráter publicístico <strong>do</strong> processo.O Direito processual está, atualmente, divorcia<strong>do</strong> da visão privatista,<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> ser um mecanismo <strong>de</strong> utilização pessoal, para ser vistocomo um meio <strong>de</strong> realização da justiça.4. Algumas consi<strong>de</strong>rações sobre O neoprocessualismo 32A conformação da legislação processual ao texto constitucional não<strong>de</strong>ve ficar apenas no plano teórico, exigin<strong>do</strong> <strong>do</strong> opera<strong>do</strong>r novas práticas,para que seja possível resistir a toda a forma <strong>de</strong> retrocessos, para a concretizaçãoda consciência constitucional e a formação <strong>de</strong> uma silenciosacultura <strong>de</strong>mocrática <strong>de</strong> proteção <strong>do</strong>s direitos e garantias fundamentais.Nessa linha, sobressai o neoprocessualimo, termo polissêmico,como interessante função didática <strong>de</strong> remeter imediatamente ao neoconstitucionalismo.Sen<strong>do</strong> a tutela jurisdicional um direito fundamental (art. 5°, XXXVda CF/88), que <strong>de</strong>ve ser presta<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> efetivo, célere e a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> (art. 5°,LXXVIII da CF/88), há uma vinculação <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r e <strong>do</strong>juiz, pois os direitos fundamentais possuem uma dimensão objetiva, constituin<strong>do</strong>um conjunto <strong>de</strong> valores básicos e diretivos da ação positiva <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> 33 . Como cediço, os direitos fundamentais geram influência sobreto<strong>do</strong> o or<strong>de</strong>namento, servin<strong>do</strong> <strong>de</strong> norte para a ação <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os po<strong>de</strong>resconstituí<strong>do</strong>s 34 .32 CAMBI, Eduar<strong>do</strong>. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44.Disponível em: . MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral <strong>do</strong> processo. São Paulo: RT,2006. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro <strong>de</strong>. "O Processo Civil na Perspectiva <strong>do</strong>s Direitos Fundamentais". Fonte: www.alvaro<strong>de</strong>oliveira.com.br.33 Cfr. Ingo Wolfgang Sarlet. A eficácia <strong>do</strong>s direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s, 1998.P. 140.34 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional. Gilmar Ferreira Men<strong>de</strong>s, Inocêncio Mártires Coelho,Paulo Gustavo Gonet Branco. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 266.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 89


Nessa linha, é possível afastarmos a clássica dicotomia entre direitoe processo, passan<strong>do</strong>-se a cogitar na instrumentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> processo e emtécnicas processuais. A instrumentalida<strong>de</strong>, na visão <strong>de</strong> Dinamarco 35 , possuiaspectos negativos e positivos.Negativamente, com a instrumentalida<strong>de</strong> se combate o formalismo,afastan<strong>do</strong> a visão <strong>do</strong> processo como um conjunto <strong>de</strong> armadilhas ardilosamentepreparadas pela parte mais astuta em <strong>de</strong>trimento da mais incauta,todavia, sem gerar alternativismo <strong>de</strong>strambelha<strong>do</strong>, capaz <strong>de</strong> produzir ainsegurança jurídica. Positivamente, com a instrumentalida<strong>de</strong> o processotorna-se apto a produzir to<strong>do</strong>s os seus escopos institucionais (jurídicospolíticos-sociais),como na ampliação <strong>do</strong>s Juiza<strong>do</strong>s Especiais, ampliaçãodas <strong>de</strong>fensorias públicas, consolidação <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> Ministério Público, nodinamismo <strong>do</strong> processo na relação entre as partes, entre elas e o juiz,como entre o juiz e o processo, na plenitu<strong>de</strong> e na restrição das garantiasprocessuais, <strong>de</strong>ntro da proporcionalida<strong>de</strong>, na justiça das <strong>de</strong>cisões, na efetivida<strong>de</strong>das <strong>de</strong>cisões (como a melhor distribuição <strong>do</strong> ônus <strong>do</strong> tempo, aampliação das sentenças mandamentais e executivas lato sensu, a concretização<strong>do</strong>s provimentos urgentes basea<strong>do</strong>s em cognição sumária, o aban<strong>do</strong>noda rígida separação entre cognição e execução, a <strong>de</strong>smitificação daverda<strong>de</strong> processual “obtida” formalmente com a coisa julgada etc.).Assim, a construção <strong>de</strong> técnicas processuais hábeis a tutelar direitosmateriais tornou-se o gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r e <strong>do</strong> juiz na concretização<strong>do</strong> direito a tutela jurisdicional a<strong>de</strong>quada. Aquilo que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r<strong>do</strong> processo civil, da técnica processual, <strong>de</strong>ve ser soluciona<strong>do</strong> <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>.Nesse contexto, alguns pontos assumem gran<strong>de</strong> relevância: o princípioda a<strong>de</strong>quação <strong>do</strong> procedimento à causa; a i<strong>de</strong>ia da tutela <strong>de</strong> interessescoletivos 36 , pois o CPC foi i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> em uma visão individualista,bastan<strong>do</strong> consultar o seu art. 6° (que disciplina que a regra é ir a juiz emnome próprio, na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> direito próprio) e 472 (limites subjetivos dacoisa julgada material); a melhor distribuição <strong>do</strong> tempo como um ônus aser <strong>do</strong>sa<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma isonômica entre as partes; a aproximação da cogniçãoà execução, incentivan<strong>do</strong> po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> efetivação da <strong>de</strong>cisão, comoo previsto no art. 461, § 5°, <strong>do</strong> CPC (princípio da atipicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s meios35 Cfr. Cândi<strong>do</strong> Rangel Dinamarco. "Relativizar a coisa julgada material". Revista <strong>de</strong> processo, v. 109, p. 9-38.36 Nesse senti<strong>do</strong>, merece crítica a postura <strong>do</strong> STJ a chancelar a redação <strong>do</strong> art. 16 da Lei n° 7.347/85, bem como ainovação legislativa (Lei n° 9.494/97 que alterou o menciona<strong>do</strong> dispositivo), limitan<strong>do</strong> a tutela coletiva. STJ, 1ª T.,AgRg nos EDcl no REsp. 639.158/SC, rel. Min. José Delga<strong>do</strong>, julga<strong>do</strong> em 22.03.2005.90R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


executivos) 37 ; a ampliação das chamadas cláusulas gerais ou conceitos jurídicosin<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s, superan<strong>do</strong> o princípio da congruência (art. 128c/c 460), permitin<strong>do</strong>-se, mesmo sem pedi<strong>do</strong> expresso, que o juiz apliqueo meio necessário à efetivida<strong>de</strong> da tutela jurisdicional.A EC 45/04 ressaltou a necessida<strong>de</strong> da razoável duração <strong>do</strong> processo,enfatizan<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong> técnicas como as <strong>do</strong> art.273, 461 e 84 <strong>do</strong> CPC, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong>-se meios <strong>de</strong> coerção diretos e indiretos 38 ,bem como uma maior a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> sincretismo processual, extinguin<strong>do</strong>-seo processo autônomo <strong>de</strong> execução, transforman<strong>do</strong>-o em uma fase executiva(cumprimento <strong>de</strong> sentença, na forma <strong>do</strong> art. 475-I).Superou-se, ainda, o princípio da unida<strong>de</strong> e da unicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> julgamento,que havia si<strong>do</strong> formula<strong>do</strong> por Giuseppe Chiovenda com fundamentona sua preocupação com a oralida<strong>de</strong> no processo e os seus <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos(concentração <strong>do</strong>s atos processuais, imediatida<strong>de</strong> <strong>do</strong> contatoentre o juiz com as partes e com as testemunhas, além da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> física<strong>do</strong> juiz <strong>do</strong> começo ao fim <strong>do</strong> processo), os quais, na prática tanto brasileiraquanto italiana, não resultaram na maior celerida<strong>de</strong> processual. Assimsen<strong>do</strong>, a efetivação <strong>do</strong> direito fundamental à tutela jurisdicional célere e àrealida<strong>de</strong> forense implicou a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cisão <strong>do</strong> julgamento <strong>do</strong> mérito,ao contrário <strong>do</strong> que propugnava o mo<strong>de</strong>lo processual clássico 39 .Ocorre, porém, que to<strong>do</strong> esse afã por celerida<strong>de</strong> esbarra no garantismo.Mal comparan<strong>do</strong>, mas é fato: toda vez que muito se acelera, muitose per<strong>de</strong> em segurança. Construir técnicas processuais a<strong>de</strong>quadas e efetivasé a<strong>de</strong>quar o sistema à efetivida<strong>de</strong>, porém, é preciso compatibilizartal processo com o respeito aos direitos e garantias fundamentais <strong>do</strong> <strong>de</strong>manda<strong>do</strong>.Des<strong>de</strong> as lições <strong>de</strong> Luigi Ferrajoli 40 , o garantismo se sustenta em trêspilares: o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direito, a teoria <strong>do</strong> direito e a crítica <strong>do</strong> direito e, por37 Tais po<strong>de</strong>res, por óbvio, não po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>smedi<strong>do</strong>s, para não se gerar arbitrarieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser controla<strong>do</strong>,pela proporcionalida<strong>de</strong>: (i) <strong>de</strong>ve ser a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> (compatibilizan<strong>do</strong>-se com o or<strong>de</strong>namento); (ii) <strong>de</strong>ve ser necessário(<strong>de</strong>ve ser indaga<strong>do</strong> se há outro meio menos oneroso); (iii) as vantagens da a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> meio executivo <strong>de</strong>vem se sobreporas <strong>de</strong>svantagens. Cfr. Luiz Guilherme Marinoni. "Controle <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r executivo <strong>do</strong> juiz". Revista <strong>de</strong> processo,v. 127, p. 54-74.38 Fala-se em meios <strong>de</strong> coerção indireta quan<strong>do</strong> se mostra necessário contar com a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> obriga<strong>do</strong>; fala-seem meios <strong>de</strong> coerção direitos quan<strong>do</strong> a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> obriga<strong>do</strong> é irrelevante. Maiores consi<strong>de</strong>rações no capítulo sobreexecução, mas po<strong>de</strong>mos exemplificar o primeiro com as astreintes e o segun<strong>do</strong>, também <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> meios<strong>de</strong> subrogação, como a execução <strong>de</strong> uma sentença <strong>de</strong> <strong>de</strong>spejo, em que o magistra<strong>do</strong> requisita força policial paraefetivar a sua <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> <strong>de</strong>salijo.39 Cfr. Luiz Guilherme Marinoni. Técnica processual e tutela <strong>do</strong>s direitos. Cit. p. 141-4.40 Cfr. Derecho e razón. Teoria <strong>de</strong>l garantismo penal. Madri: Editorial Trotta, 2001, p. 851 e seg.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 91


último, a filosofia e a crítica da política. Enfim, busca-se um aporte teóricoda <strong>de</strong>mocracia, em senti<strong>do</strong> substancial, que só se realiza com respeito aosdireitos fundamentais, influencian<strong>do</strong> na construção <strong>do</strong> neoprocessualismo.Por exemplo, a inversão <strong>do</strong> ônus da prova, bem como da teoria dinâmica<strong>do</strong> ônus da prova, são bons exemplos <strong>de</strong> técnicas processuais parauma melhor tutela jurisdicional. Todavia, a <strong>de</strong>cisões que invertem o ônusda prova na sentença ferem a garantia <strong>do</strong> contraditório, inviabilizan<strong>do</strong> aampla <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> fornece<strong>do</strong>r em juízo.Também inviabilizam a ampla <strong>de</strong>fesa, <strong>de</strong>cisões que condicionamsempre a antecipação <strong>de</strong> tutela à prévia realização da garantia <strong>do</strong> contraditório,ignoran<strong>do</strong> a urgência <strong>do</strong> pedi<strong>do</strong>; bem como aquelas que tornamimpossível a aplicação <strong>de</strong> presunções probatórias, exigin<strong>do</strong>, <strong>de</strong> forma rígida,que o <strong>de</strong>mandante se <strong>de</strong>sincumba da prova <strong>de</strong> um fato, cuja <strong>de</strong>monstraçãoseria facilmente realizada pelo <strong>de</strong>manda<strong>do</strong>, o que contraria amo<strong>de</strong>rna teoria <strong>do</strong> ônus dinâmico da prova.Portanto, a justa medida entre as tendências instrumentalista egarantista que, como acima observa<strong>do</strong>, complementam-se, pela a<strong>do</strong>ção<strong>do</strong> princípio da proporcionalida<strong>de</strong>, permitirá que os conflitos <strong>de</strong> direitosfundamentais sejam resolvi<strong>do</strong>s, à luz <strong>do</strong> caso concreto, sem posturas inflexíveisque negariam tanto o neoconstitucionalismo quan<strong>do</strong> o neoprocessualismo41 .Neste senti<strong>do</strong>, o neoconstitucionalismo e o neoprocessualismo servem<strong>de</strong> suporte crítico para a construção não somente <strong>de</strong> “novas” teoriase práticas, mas, sobretu<strong>do</strong> para a construção <strong>de</strong> técnicas que tornem maisefetivas, rápidas e a<strong>de</strong>quadas a prestação jurisdicional.4.1. Instrumentalida<strong>de</strong> e formalismo valorativoCom o reconhecimento da autonomia da ciência processual, a partir,principalmente, da obra <strong>de</strong> Büllow, iniciou-se um movimento <strong>de</strong> radicalautonomia em relação ao direito material. O escopo <strong>do</strong> processo foire<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, relacionan<strong>do</strong>-se com a atuação <strong>do</strong> direito e na realização dajustiça ou com a justa composição da li<strong>de</strong>.Liebman fun<strong>do</strong>u a Escola Paulista <strong>de</strong> Processo, contan<strong>do</strong> com ilustresdiscípulos como Alfre<strong>do</strong> Buzaid, Moacir Amaral Santos, José Fre<strong>de</strong>ricoMarques (1ª fase da escola)e também com Dinamarco e Ada Pelegrini41 CAMBI, Eduar<strong>do</strong>. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo. Panóptica, Vitória, ano 1, n. 6, fev. 2007, p. 1-44.Disponível em: , p. 42.92R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Grinover (2ª fase da escola), inauguran<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> da instrumentalida<strong>de</strong><strong>do</strong> processo, em que o direito processual civil passou a regular o mo<strong>do</strong><strong>de</strong> atuação em concreto <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> das normas jurídicas. O processopassou a objetivar aspectos jurídicos, sociais e políticos.A instrumentalida<strong>de</strong> tem vasta aplicação na <strong>do</strong>utrina pátria, passan<strong>do</strong>a ser o núcleo e a síntese <strong>do</strong>s movimentos <strong>de</strong> aprimoramento<strong>do</strong> sistema processual. O processo é instrumento e “to<strong>do</strong> instrumento,como tal, é meio; e to<strong>do</strong> meio só é tal e se legitima, em função <strong>do</strong>s finsa que se <strong>de</strong>stina” 42 .Nesse senti<strong>do</strong>, a visão <strong>do</strong> formalismo valorativo, tema muito poucodiscuti<strong>do</strong> nos manuais, ainda não recebeu a merecida atenção e reconhecimentoda <strong>do</strong>utrina processual brasileira, que é muito focada no conceito<strong>de</strong> instrumentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> processo. De igual mo<strong>do</strong>, a jurisprudência é muitotímida sobre o assunto.Desenvolvida na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, sob ali<strong>de</strong>rança <strong>de</strong> Carlos Alberto Alvaro <strong>de</strong> Oliveira 43 que busca combater o excesso<strong>de</strong> formalismo, pois, diante <strong>do</strong> atual ambiente em que se processaa administração da justiça no Brasil, em que muitas vezes, para facilitar oseu trabalho, o órgão jurisdicional a<strong>do</strong>ta uma rigi<strong>de</strong>z excessiva, não condizentecom o estágio atual <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> processo,ou então a parte insiste em levar às últimas conseqüências as exigênciasformais <strong>do</strong> processo.Nesse senti<strong>do</strong>:Para Dinamarco, a instrumentalida<strong>de</strong> é o núcleo e a síntese<strong>do</strong>s movimentos pelo aprimoramento <strong>do</strong> sistema processual;para Alvaro <strong>de</strong> Oliveira, este núcleo e essa síntese consistemno entrechoque <strong>do</strong>s valores efetivida<strong>de</strong> e segurança jurídica.De um la<strong>do</strong>, temos um valor (instrumentalida<strong>de</strong>) que <strong>de</strong>finea concepção <strong>do</strong> processo e seu aprimoramento (Dinamarco).De outro, uma dinâmica e conflituosa relação entre <strong>do</strong>is valores(efetivida<strong>de</strong> versus segurança), é que resultará nessaconcepção e aprimoramento (Alvaro <strong>de</strong> Oliveira).42 DINAMARCO, Cândi<strong>do</strong> Rangel. A instrumentalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> processo. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 206.43 Em obra premiada com a medalha mérito Pontes <strong>de</strong> Miranda da Aca<strong>de</strong>mia Brasileira <strong>de</strong> Letras Jurídicas: OLIVEIRA,Carlos Alberto Alvaro <strong>de</strong>. Do formalismo no processo civil: proposta <strong>de</strong> um formalismo-valorativo. 4ª ed. Ver. atual.e aumentada. São Paulo: Saraiva, 2010. Posteriormente, o mesmo autor, com o objetivo <strong>de</strong> refinar as i<strong>de</strong>ias lançadasno menciona<strong>do</strong> livro: OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. "O formalismo valorativo no confronto com o formalismoexcessivo", In: Revista Forense, v. 388, p. 11-28.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 93


Tais visões inauguram caminhos distintos a trilhar no quetoca à evolução <strong>do</strong> processo civil. Tanto que, na visão instrumentalista<strong>de</strong> Dinamarco, as formas seriam “apenas meiospreor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s aos objetivos específicos em cada momentoprocessual”. Não se distinguem forma em senti<strong>do</strong> estrito eforma em senti<strong>do</strong> amplo. Para Alvaro <strong>de</strong> Oliveira, o formalismo-valorativo,ou forma em senti<strong>do</strong> amplo, é muito mais<strong>do</strong> que estes meios preor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s: é limite <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, faculda<strong>de</strong>se <strong>de</strong>veres <strong>do</strong>s sujeitos processuais, coor<strong>de</strong>nação dasativida<strong>de</strong>s processuais, or<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> procedimento e organização<strong>do</strong> processo. E, tu<strong>do</strong> isso, marca<strong>do</strong> por profunda influênciacultural, e talha<strong>do</strong> pelo constante conflito entre efetivida<strong>de</strong>e segurança 44 .A rigor, cremos ser o formalismo-valorativo um neoprocessualismocom o reforço da ética e da boa-fé no processo, em original pon<strong>de</strong>raçãoentre efetivida<strong>de</strong> e segurança jurídica 45 . As premissas <strong>de</strong>sse pensamentosão as mesmas <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> neoprocessualismo, que, aliás, já foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>um formalismo ético 46 .Em apertada síntese, apregoa o menciona<strong>do</strong> autor que formalismoou forma no senti<strong>do</strong> amplo não se confun<strong>de</strong> com forma <strong>do</strong> ato processualindividualmente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>. Formalismo diz respeito à totalida<strong>de</strong> formal<strong>do</strong> processo, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> não só a forma, ou as formalida<strong>de</strong>s, mas especialmentea <strong>de</strong>limitação <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res, faculda<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>veres <strong>do</strong>s sujeitosprocessuais, coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>, or<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> procedimentoe organização <strong>do</strong> processo, com vistas a que sejam atingidas suas finalida<strong>de</strong>sprimordiais.Forma em senti<strong>do</strong> amplo investe-se, assim, da tarefa <strong>de</strong> indicar asfronteiras para o começo e o fim <strong>do</strong> processo, circunscrever o material aser forma<strong>do</strong>, e estabelecer <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> quais limites <strong>de</strong>vem cooperar e agiras pessoas atuantes no processo para o seu <strong>de</strong>senvolvimento.44 Extraí<strong>do</strong> da tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> <strong>de</strong> Guilherme Rizzo Amaral, que teve como orienta<strong>do</strong>r Carlos Alberto Alvaro <strong>de</strong>Oliveira, "A efetivida<strong>de</strong> das sentenças sob a ótica <strong>do</strong> formalismo-valorativo: um méto<strong>do</strong> e sua aplicação". UFRS,Porto Alegre, 2006, p. 16.45 Com a mesma conclusão: Nesse senti<strong>do</strong>: DIDIER Jr., Fredie. "Teoria <strong>do</strong> Processo e Teoria <strong>do</strong> Direito: o neoprocessualismo".fonte: www.aca<strong>de</strong>mia.edu/, p. 7.46 URIBES, José Manuel Rodriguez. Formalismo ético y nostitucionalismo. Valencia: Tirant lo Blanch, 2002, p. 101 esegs., apud DIDIER Jr., Fredie. "Teoria <strong>do</strong> Processo e Teoria <strong>do</strong> Direito: o neoprocessualismo". fonte: www.aca<strong>de</strong>mia.edu/, p. 7.94R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


O formalismo processual contém, portanto, a própria i<strong>de</strong>ia <strong>do</strong> processocomo organização da <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m, emprestan<strong>do</strong> previsibilida<strong>de</strong> ato<strong>do</strong> o procedimento. Se o processo não obe<strong>de</strong>cesse a uma or<strong>de</strong>m <strong>de</strong>terminada,cada ato <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser pratica<strong>do</strong> a seu tempo e lugar, fácil enten<strong>de</strong>rque o litígio <strong>de</strong>sembocaria em uma disputa <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>nada, sem limitesou garantias para as partes, prevalecen<strong>do</strong> ou po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> prevalecer a arbitrarieda<strong>de</strong>e a parcialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> órgão judicial ou a chicana <strong>do</strong> adversário.A forma assegura, ainda, uma disciplina na atuação judicial, garantin<strong>do</strong> aliberda<strong>de</strong> contra o arbítrio <strong>do</strong>s órgãos que exercem o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Se o processo fosse organiza<strong>do</strong> discricionariamente pelo juiz não sepo<strong>de</strong>ria prever o seu curso, faltan<strong>do</strong> as garantias necessárias para o seu<strong>de</strong>senvolvimento.De igual mo<strong>do</strong>, o formalismo controla os eventuais excessos <strong>de</strong>uma parte em face <strong>de</strong> outra, atuan<strong>do</strong> como po<strong>de</strong>roso fator <strong>de</strong> igualação<strong>do</strong>s conten<strong>do</strong>res entre si, ou seja, uma parida<strong>de</strong> <strong>de</strong> armas.Assim, o formalismo é elemento funda<strong>do</strong>r tanto da efetivida<strong>de</strong>quanto da segurança <strong>do</strong> processo; gera um po<strong>de</strong>r organiza<strong>do</strong>r e or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r,bem como um po<strong>de</strong>r disciplina<strong>do</strong>r. Ocorre, porém, que, com o passar<strong>do</strong> tempo, esse formalismo sofreu <strong>de</strong>sgaste e passou a simbolizar um formalismoexcessivo, <strong>de</strong> caráter essencialmente negativo.De notar, ainda, que os verbos or<strong>de</strong>nar, organizar e disciplinar são<strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> se não direciona<strong>do</strong>s a uma finalida<strong>de</strong>. O formalismo,como o processo, é sempre polariza<strong>do</strong> pelo fim 47 .O processo é fruto <strong>do</strong> homem, não se encontra na natureza; portanto,a criação não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> qualquer valor. O direitoprocessual é o direito constitucional aplica<strong>do</strong>, a significar que o processonão se esgota <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s quadros da mera realização <strong>do</strong> direito material,constituin<strong>do</strong>, mais amplamente, a ferramenta <strong>de</strong> natureza pública indispensávelpara a realização <strong>de</strong> justiça e pacificação social.O po<strong>de</strong>r or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r não é oco, vazio ou cego; não há formalismo porformalismo 48 , o qual <strong>de</strong>ve ser pensa<strong>do</strong> para a organização <strong>de</strong> um processojusto, alcançan<strong>do</strong> suas finalida<strong>de</strong>s em tempo razoável e, principalmente,colaborar para justiça material da <strong>de</strong>cisão.47 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. "O formalismo valorativo no confronto com o formalismo excessivo", In: RevistaForense, v. 388, p. 10.48 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro <strong>de</strong>. Do formalismo no processo civil: proposta <strong>de</strong> um formalismo-valorativo.4ª ed. Ver. atual. e aumentada. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 87.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 95


A efetivida<strong>de</strong> e a segurança apresentam-se como valores essenciaispara a conformação <strong>do</strong> processo a valores constitucionais, todavia, ambosse encontram em permanente conflito, em relação proporcional, poisquanto maior a efetivida<strong>de</strong> menor a segurança, e vice-versa 49 .É, porém, importante visualizar que a segurança não é o único valorpresente no ambiente processual, pois o processo, como dito, é polariza<strong>do</strong>no fim <strong>de</strong> realizar a justiça material <strong>do</strong> caso, por meio <strong>de</strong> um processoequânime e efetivo. De tal sorte, o formalismo excessivo po<strong>de</strong>, inclusive,inibir o <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong>s direitos fundamentais <strong>do</strong> jurisdiciona<strong>do</strong>.A efetivida<strong>de</strong>, por sua vez, está consagrada na CR/88 (art. 5º, XXXVe LXXVII), pois não é suficiente abrir as portas <strong>do</strong> Judiciário, mas prestara jurisdição tanto quanto possível eficiente, efetiva e justa, mediante umprocesso sem dilações temporais ou formalismos excessivos, que concedaao vence<strong>do</strong>r no plano jurídico e social tu<strong>do</strong> a que faça jus.Nos dias atuais, vários fatores têm <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> uma maior prevalênciada efetivida<strong>de</strong> sobre a segurança, principalmente pela mudançaqualitativa <strong>do</strong>s litígios trazi<strong>do</strong>s ao Judiciário, em uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> massa,com interesse <strong>de</strong> amplas camadas da população, a tornar imperativa umasolução rápida <strong>do</strong> processo e a efetivida<strong>de</strong> das <strong>de</strong>cisões judiciais.Após a 2ª Guerra Mundial, aban<strong>do</strong>nou-se a tramitação fechada ea minúcia <strong>do</strong>s procedimentos, para a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> princípios e a sua constitucionalização.O direito passou a ser mais flexível, menos rígi<strong>do</strong>, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong>uma alteração no que concerne à segurança jurídica, que passa<strong>de</strong> um esta<strong>do</strong> estático para esta<strong>do</strong> dinâmico. A segurança jurídica é umanorma que se me<strong>de</strong> pela estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua finalida<strong>de</strong>, abrangida emcaso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> pelo seu próprio movimento. A segurança <strong>de</strong>ve serum coeficiente <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong>, permitin<strong>do</strong> a efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s direitos egarantias <strong>do</strong> processo.A visão positivista <strong>do</strong> processo foi sen<strong>do</strong>, gradualmente, aban<strong>do</strong>nada;o problema enfrenta<strong>do</strong> é posto como o centro das preocupações hermenêuticas.O emprego <strong>de</strong> princípios, conceitos jurídicos in<strong>de</strong>termina<strong>do</strong>se juízos <strong>de</strong> equida<strong>de</strong> em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> uma visão puramente formalistana aplicação <strong>do</strong> direito geraram reflexos no processo.A lógica argumentativa foi <strong>de</strong>finitivamente a<strong>do</strong>tada, incentiva<strong>do</strong> odiálogo judicial na formação <strong>do</strong> convencimento, na cooperação das partes49 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. "O formalismo valorativo no confronto com o formalismo excessivo", In: RevistaForense, v. 388, p. 13.96R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


com o órgão judicial e <strong>de</strong>ste com as partes. O contraditório, nesse contexto,passou a ser essencial para um processo justo. A sentença <strong>de</strong>veresultar <strong>do</strong> trabalho conjunto <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os sujeitos <strong>do</strong> processo, exigin<strong>do</strong>um juiz ativo e leal, coloca<strong>do</strong> no centro da controvérsia.Não se po<strong>de</strong> admitir uma valorização excessiva <strong>do</strong> rito, como afastamentocompleto ou parcial da substância, conduzin<strong>do</strong> à ruptura com osentimento <strong>de</strong> justiça.4.2. Combate ao formalismo excessivoPo<strong>de</strong> acontecer <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r organiza<strong>do</strong>r e disciplina<strong>do</strong>r gera<strong>do</strong> peloformalismo, ao invés <strong>de</strong> concorrer na realização <strong>do</strong> direito, aniquilá-lo ougerar um retardamento irrazoável da solução <strong>do</strong> litígio.Essa é, exatamente, a proposta. O jurista <strong>de</strong>ve estar apto para afastaras nefastas consequências <strong>do</strong> formalismo pernicioso ou negativo, impedin<strong>do</strong>esse <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> perspectiva 50 .Não há mais espaço para a aplicação mecanicista <strong>do</strong> direito, o opera<strong>do</strong>r<strong>de</strong> se atentar às particularida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> caso concreto no trabalho <strong>de</strong>adaptação da norma. A rigor, o processo <strong>de</strong> aplicação <strong>do</strong> direito mostrase,necessariamente, obra <strong>de</strong> acomodação <strong>do</strong> geral ao concreto, a requererincessante trabalho <strong>de</strong> adaptação e criação. O legisla<strong>do</strong>r não é onipotentena previsão <strong>de</strong> todas e inumeráveis possibilida<strong>de</strong>s oferecidas pelainesgotável riqueza da vida.No direito processual, mais ainda <strong>do</strong> que em outros ramos <strong>do</strong> direito,seu caráter finalístico é evi<strong>de</strong>nte; finalismo esse que não po<strong>de</strong> ser volta<strong>do</strong>para si, pois inexiste finalismo em si, senão direciona<strong>do</strong> para os fins últimosda jurisdição. Visa-se atingir a um processo equânime, peculiar <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> direito, que sirva à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> um equilíbrio i<strong>de</strong>al entre as partese ao fim material <strong>do</strong> processo: a realização da justiça material.Se a finalida<strong>de</strong> da prescrição foi atingida na sua essência, sem prejuízoa interesses dignos <strong>de</strong> proteção da contraparte, o <strong>de</strong>feito <strong>de</strong> formanão <strong>de</strong>ve prejudicar a parte. A forma não po<strong>de</strong>, assim, ser colocada “alémda matéria”, por não possuir valor próprio, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> por razões <strong>de</strong> equida<strong>de</strong>a essência sobrepujar a forma. A não observância <strong>de</strong> formas vazias nãoimplica prejuízo, pois a lei não reclama uma finalida<strong>de</strong> oca e vazia.50 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. "O formalismo valorativo no confronto com o formalismo excessivo", In: RevistaForense, v. 388, p. 19.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 97


O <strong>Tribunal</strong> Constitucional espanhol <strong>de</strong>cidiu que “(...) as normas quecontém os requisitos formais <strong>de</strong>vem ser aplicadas ten<strong>do</strong>-se sempre presenteo fim pretendi<strong>do</strong> ao se estabelecer ditos requisitos, evitan<strong>do</strong> qualquerexcesso formalista que os converteria em meros obstáculos processuaise em fonte <strong>de</strong> incerteza e imprevisibilida<strong>de</strong> para a sorte das pretensõesem jogo.” 51Nesse senti<strong>do</strong>, por exemplo, em direito processual, o nome atribuí<strong>do</strong>à parte ao ato processual, embora equivoca<strong>do</strong>, nenhuma influênciahaverá <strong>de</strong> ter, importan<strong>do</strong> apenas o seu conteú<strong>do</strong>. De outro la<strong>do</strong>, o seuinvólucro exterior, a maneira como se exterioriza, também per<strong>de</strong>u terrenopara o teor interno 52 . Seguin<strong>do</strong> a visão finalística, um <strong>do</strong>s pontos mais importantes<strong>de</strong> um código <strong>de</strong> processo mo<strong>de</strong>rno encontra-se nos “preceitosrelativizantes das nulida<strong>de</strong>s”, pois prestigiam, atualmente, o formalismovalorativo.O formalismo excessivo <strong>de</strong>ve, portanto, ser combati<strong>do</strong> com empregoda equida<strong>de</strong> com função interpretativa-individualiza<strong>do</strong>ra, toman<strong>do</strong>-sesempre como medidas as finalida<strong>de</strong>s essenciais <strong>do</strong> instrumento processual,os princípios e valores que são sua base, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que respeita<strong>do</strong>s osdireitos fundamentais da parte e na ausência <strong>de</strong> prejuízo 53 .O autor tantas vezes aqui cita<strong>do</strong> aponta alguns casos <strong>de</strong> aplicação<strong>do</strong> formalismo-valorativo 54 : a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> rito ordinário, em uma causa que<strong>de</strong>veria tramitar pelo sumário, pois será atingida <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais cabal afinalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> procedimento sumário; a sublevação <strong>do</strong> prazo da ação rescisória,para uma melhor interpretação da lei e a busca <strong>de</strong> uma soluçãojusta; a <strong>de</strong>cisão que evitar a extinção <strong>do</strong> processo sem resolução <strong>de</strong> mérito,após toda a instrução probatória; a <strong>de</strong>cisão que admite <strong>de</strong>nunciaçãoda li<strong>de</strong>, mesmo em hipótese <strong>de</strong> garantia imprópria, para se evitar umaação regressiva autônoma; a visualização da existência <strong>de</strong> interesse <strong>de</strong>51 Sentença 57, <strong>de</strong> 08.05.1984, na linha <strong>de</strong> outros prece<strong>de</strong>ntes, como ressalta Francisco Chamorro Bernal, La tutelajudicial efectiva (Derechos y garantias procesales <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>de</strong>l artículo 24.1 <strong>de</strong> La Constitución), Barcelona: Bosch,1994, p. 315. No mesmo senti<strong>do</strong>, o menciona<strong>do</strong> tribunal enten<strong>de</strong>u haver excesso <strong>de</strong> formalismo na inadmissão<strong>de</strong> recurso por faltar 360 pesetas, em um preparo <strong>de</strong> 327.846.52 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. "O formalismo valorativo no confronto com o formalismo excessivo", In: RevistaForense, v. 388, p. 24.53 Nesse senti<strong>do</strong> o STJ afirma que não há nulida<strong>de</strong> pela não manifestação <strong>do</strong> MP em feito que atua incapaz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que não haja prejuízo: STJ, 2ª T., Resp 818.978/ES, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, julga<strong>do</strong> em 9/8/2011.Prece<strong>de</strong>ntes cita<strong>do</strong>s <strong>do</strong> STF: RE 96.899-ES, DJ 5/9/1986; RE 91.643-ES, DJ 2/5/1980; <strong>do</strong> STJ: REsp 1.010.521-PE, DJe9/11/2010, e REsp 814.479-RS, DJe 14/12/2010.54 OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro. "O formalismo valorativo no confronto com o formalismo excessivo", In: RevistaForense, v. 388, p. 26-28.98R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


agir, mesmo quan<strong>do</strong> o autor ajuíza ação <strong>de</strong> conhecimento, muito emboradisponha <strong>de</strong> título executivo extrajudicial; as raríssimas <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> STJ 55que, aplican<strong>do</strong> o princípio da cooperação, <strong>de</strong>terminar que seja suprida afalha na formação <strong>do</strong> instrumento que acompanha o recurso <strong>de</strong> agravo,quan<strong>do</strong> se trate <strong>de</strong> peça não obrigatória.O formalismo valorativo informa a aplicação da lealda<strong>de</strong> e da boafé,não somente para as partes, mas para to<strong>do</strong>s os sujeitos <strong>do</strong> processo,inclusive o órgão jurisdicional com as partes e <strong>de</strong>stas com aquele. Exatamenteo emprego da lealda<strong>de</strong> nessa liberda<strong>de</strong> valorativa é que po<strong>de</strong>justificar a confiança atribuída ao juiz na aplicação <strong>do</strong> direito justo. Ora,tanto a boa-fé quanto a lealda<strong>de</strong> <strong>do</strong> órgão jurisdicional seriam flagrantemente<strong>de</strong>srespeitadas sem um esforço efetivo para salvar o instrumento<strong>de</strong> vícios formais.De igual mo<strong>do</strong>, trata-se <strong>de</strong> formalismo excessivo a inadmissão <strong>de</strong>recurso por estar ilegível um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> carimbo ou certidão lavradapela serventia, bem como a informação processual prestada <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>equivoca<strong>do</strong>, por meio <strong>do</strong> sítio <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> tais fatosinviabilizar, por exemplo, um recurso da parte. À evidência, não po<strong>de</strong>a parte pagar por erro da secretaria <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong>.Como dito, ainda são poucas as <strong>de</strong>cisões aplican<strong>do</strong> o formalismovalorativo, todavia, a a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong> ponto tem si<strong>do</strong> crescente.Exemplificativamente na hipótese <strong>de</strong> agravo <strong>de</strong> instrumento interpostovia fax, perante o tribunal <strong>de</strong> origem, sem as cópias que formamo instrumento, posteriormente apresentadas juntamente com o original,o STJ 56 , aplican<strong>do</strong> o formalismo-valorativo, afirmou que, como a Lei n°9.800/99 não disciplina nem o <strong>de</strong>ver nem a faculda<strong>de</strong> <strong>do</strong> advoga<strong>do</strong>, aousar o protocolo via fac-símile, este <strong>de</strong>ve transmitir, além da petição <strong>de</strong>razões <strong>do</strong> recurso, cópia <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos que o instruem, a interpretaçãoque <strong>de</strong>ve ser orientada pelas diretrizes que levaram o legisla<strong>do</strong>r a editá-la,agregan<strong>do</strong>-lhe os princípios gerais <strong>do</strong> direito.Observa<strong>do</strong> o motivo e a finalida<strong>de</strong> da referida lei, que <strong>de</strong>vem serpreserva<strong>do</strong>s acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, vários foram o motivos aponta<strong>do</strong>s: (i) nãohouve prejuízo para a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> recorri<strong>do</strong>, porque só será intima<strong>do</strong> paracontrarrazoar após a juntada <strong>do</strong>s originais aos autos; (ii) o recurso remeti<strong>do</strong>por fac-símile <strong>de</strong>verá indicar o rol <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos que o acompanham,sen<strong>do</strong> veda<strong>do</strong> ao recorrente fazer qualquer alteração ao juntar os55 STJ, Corte Especial, EREsp 433.687-PR, rel. Min. Fernan<strong>do</strong> Gonçalves, julga<strong>do</strong> em 05.05.2004.56 STJ, Resp 901556/SP, Corte Especial, Rel. Min. Nancy Andrigui, julga<strong>do</strong> em 21.05.2008.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 99


originais; (iii) evita-se um congestionamento no trabalho da secretaria <strong>do</strong>sgabinetes nos fóruns e tribunais, que terão <strong>de</strong> disponibilizar um funcionáriopara montar os autos <strong>do</strong> recurso, especialmente quan<strong>do</strong> o recurso vieracompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> muitos <strong>do</strong>cumentos; (iv) evita-se discussão <strong>de</strong> disparida<strong>de</strong><strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos envia<strong>do</strong>s com <strong>do</strong>cumentos recebi<strong>do</strong>s; (v) evita-se ocongestionamento nos próprios aparelhos <strong>de</strong> fax disponíveis para recepção<strong>do</strong> protocolo; (vi) é veda<strong>do</strong> ao intérprete da lei editada para facilitaro acesso ao Judiciário fixar restrições, criar obstáculos, eleger mo<strong>do</strong>s quedificultem sua aplicação.Aplican<strong>do</strong> a tendência meto<strong>do</strong>lógica <strong>do</strong> formalismo-valorativo, há<strong>de</strong>cisões sobre o vício <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> citação <strong>de</strong> litisconsortes necessários,a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o formalismo valorativo para superar a controvérsia entre ocabimento <strong>de</strong> ação rescisória (art. 485) ou ação anulatória (art. 486), nahipótese <strong>de</strong> sentença homologatória 57 .De igual mo<strong>do</strong>, foi reconheci<strong>do</strong> ser um excesso <strong>de</strong> formalismo cogitarem ilegitimida<strong>de</strong> da comissão <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r <strong>de</strong> assembleialegislativa estadual para ajuizar ação civil pública em <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s interessese direitos individuais homogêneos <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, relativamente ao aumentoefetua<strong>do</strong> pela recorrida das mensalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> plano <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>ssegura<strong>do</strong>s com mais <strong>de</strong> 60 anos, pois, nos termos <strong>do</strong>s arts. 81, parágrafoúnico, 82, III, e 83, to<strong>do</strong>s <strong>do</strong> CDC, e 21 da Lei n. 7.347/1985, a legislaçãosomente exige a atuação em prol <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res, motivopelo qual exigir que o regimento interno da referida comissão preveja expressamente,à época da propositura da ACP, sua competência para <strong>de</strong>mandarem juízo constitui excesso <strong>de</strong> formalismo 58 .Há, porém, inúmeros casos em que se <strong>de</strong>veria aplicar o formalismovalorativo, mas isso, emblematicamente, não ocorre. Trago à baila ocaso <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong> agravo <strong>de</strong> instrumento. A falta <strong>de</strong> procuraçãono recurso interposto na instância especial é causa <strong>de</strong> sua inadmissão,sen<strong>do</strong> é inaplicável o disposto no art. 13 <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Processo Civil, nãose admitin<strong>do</strong>, inclusive, a juntada da procuração no agravo interno 59 . Deigual mo<strong>do</strong>, se não comprova<strong>do</strong> no agravo <strong>de</strong> instrumento a existência <strong>de</strong>feria<strong>do</strong> local, não se admite a comprovação em embargos <strong>de</strong> <strong>de</strong>claração,tampouco em agravo interno 60 .57 STJ, Resp 1.028.503/MG, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julga<strong>do</strong> em 26/10/2010.58 STJ, Resp 1.098.804/RJ, 3ª T., Rel. Min. Nancy Andrighi, julga<strong>do</strong> em 2/12/2010.59 AgRg no Ag 1215835/SO, 4ª T., Rel. Min. Raul Araújo, julgamento 21.10.2010.60 EDcl no Ar 852908/RJ, 4ª T., Rel. Min. Honil<strong>do</strong> Amaral (convoca<strong>do</strong> <strong>do</strong> TJ/AP), julga<strong>do</strong> em 01.06.2010.100R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


5. Influências <strong>de</strong> tais postula<strong>do</strong>s no Novo CPCUm <strong>do</strong>s pontos reconheci<strong>do</strong>s pela comissão <strong>de</strong> juristas responsáveispela elaboração <strong>do</strong> Novo CPC é que, com a ineficiência <strong>do</strong> sistemaprocessual, to<strong>do</strong> o or<strong>de</strong>namento jurídico passa a carecer <strong>de</strong> real efetivida<strong>de</strong>.A coerência substancial há <strong>de</strong> ser vista como objetivo fundamentale mantida em termos absolutos, no que tange à Constituição da República.Afinal, é na lei ordinária e em outras normas <strong>de</strong> escalão inferiorque se explicita a promessa <strong>de</strong> realização <strong>do</strong>s valores encampa<strong>do</strong>s pelosprincípios constitucionais.Vejamos um trecho da exposição <strong>de</strong> motivos, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>monstra apreocupação com uma conformação constitucional:“Com evi<strong>de</strong>nte redução da complexida<strong>de</strong> inerente ao processo<strong>de</strong> criação <strong>de</strong> um novo Código <strong>de</strong> Processo Civil, po<strong>de</strong>r-se-iadizer que os trabalhos da Comissão se orientaramprecipuamente por cinco objetivos: 1) estabelecer expressae implicitamente verda<strong>de</strong>ira sintonia fina com a ConstituiçãoFe<strong>de</strong>ral; 2) criar condições para que o juiz possa proferir<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> forma mais rente à realida<strong>de</strong> fática subjacenteà causa; 3) simplificar, resolven<strong>do</strong> problemas e reduzin<strong>do</strong> acomplexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> subsistemas, como, por exemplo, o recursal;4) dar to<strong>do</strong> o rendimento possível a cada processo em simesmo consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>; e, 5) finalmente, sen<strong>do</strong> talvez este últimoobjetivo parcialmente alcança<strong>do</strong> pela realização daquelesmenciona<strong>do</strong>s antes, imprimir maior grau <strong>de</strong> organicida<strong>de</strong>ao sistema, dan<strong>do</strong>-lhe, assim, mais coesão.”O primeiro objetivo lista<strong>do</strong> reflete, exatamente, o anseio <strong>do</strong>utrinárioatual: a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que fique evi<strong>de</strong>nte a harmonia da lei ordináriaem relação à Constituição Fe<strong>de</strong>ral da República.A meto<strong>do</strong>logia jurídica atual, contemporânea, reconhece a força normativa<strong>do</strong>s princípios e tal ponto não po<strong>de</strong>ria ser ignora<strong>do</strong> pela Comissão.Linhas fundamentais <strong>do</strong> CPC realmente só po<strong>de</strong>m ser atingidas se pautadasnas premissas <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> Constitucional e no mo<strong>de</strong>lo constitucional <strong>de</strong>processo civil, refletin<strong>do</strong> princípios <strong>de</strong> segurança jurídica, igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>sperante o Direito e o direito <strong>de</strong> participação no processo.Um ponto é digno <strong>de</strong> nota: somente se mostra necessária a consagraçãoexpressa na legislação infraconstitucional em virtu<strong>de</strong> <strong>do</strong> nosso ine-R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 101


gável ranço positivista, pois, <strong>do</strong> contrário, bastaria a Constituição. A previsão<strong>de</strong> cita<strong>do</strong>s direitos fundamentais na legislação infraconstitucional, arigor, <strong>de</strong>sempenha um papel simbólico, pois, ainda que se não houvesseprevisão, <strong>de</strong>veriam ser aplica<strong>do</strong>s.Enfim, o problema não é legislativo, e sim cultural; ainda somosmuito <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da lei.Observe-se a redação <strong>do</strong> art. 1º <strong>do</strong> Anteprojeto:Art. 1º O processo civil será or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>, disciplina<strong>do</strong> e interpreta<strong>do</strong>conforme os valores e os princípios fundamentaisestabeleci<strong>do</strong>s na Constituição da República Fe<strong>de</strong>rativa <strong>do</strong>Brasil, observan<strong>do</strong>-se as disposições <strong>de</strong>ste Código.Em uma primeira leitura po<strong>de</strong> parecer uma exposição <strong>do</strong> óbvio,contu<strong>do</strong>, como dito, talvez tal dispositivo <strong>de</strong>sperte a atenção <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res<strong>do</strong> direito, forçan<strong>do</strong> uma mudança cultural.Estão sen<strong>do</strong> incluí<strong>do</strong>s, expressamente, princípios constitucionais,na sua versão processual. Por outro la<strong>do</strong>, muitas regras foram concebidas,dan<strong>do</strong> concreção a princípios constitucionais, como, por exemplo, asque preveem um procedimento, com contraditório e produção <strong>de</strong> provas,prévio à <strong>de</strong>cisão que <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra da pessoa jurídica, em sua versão tradicional,ou “às avessas” 61 ; a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>, mesmo diante <strong>de</strong> questões<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública, ser observa<strong>do</strong> o contraditório.A razoável duração <strong>do</strong> processo está consubstanciada na melhor regulamentação<strong>do</strong> julgamento conjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas que gravitavam emtorno da mesma questão <strong>de</strong> direito.Como forma <strong>de</strong> uma melhor organização, o Novo CPC irá ganhar, inclusive,uma parte geral, on<strong>de</strong>, ab initio, serão disciplina<strong>do</strong>s os princípiose garantias fundamentais <strong>do</strong> processo civil (art. 1°).Cumpre, inclusive, registrar que o art. 6° <strong>do</strong> Novo CPC enfatiza essavisão neoconstitucional, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> claro que a ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> juiz, ao aplicara lei, <strong>de</strong>verá aten<strong>de</strong>r aos fins sociais a que ela se dirige, às exigências <strong>do</strong>bem comum, observan<strong>do</strong> sempre os princípios da dignida<strong>de</strong> da pessoahumana, da razoabilida<strong>de</strong>, da legalida<strong>de</strong>, da impessoalida<strong>de</strong>, da moralida<strong>de</strong>,da publicida<strong>de</strong> e da eficiência.61 O Novo CPC prevê expressamente que, antecedida <strong>de</strong> contraditório e produção <strong>de</strong> provas, haja <strong>de</strong>cisão sobrea <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração da pessoa jurídica, com o redirecionamento da ação, na dimensão <strong>de</strong> sua patrimonialida<strong>de</strong>, etambém sobre a consi<strong>de</strong>ração dita inversa, nos casos em que se abusa da socieda<strong>de</strong>, para usá-la in<strong>de</strong>vidamente como fito <strong>de</strong> camuflar o patrimônio pessoal <strong>do</strong> sócio.102R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Observe-se que o atual art. 126 <strong>do</strong> CPC (non liquet) é reescrito como níti<strong>do</strong> propósito <strong>de</strong> “atualizá-lo” meto<strong>do</strong>logicamente, apesar <strong>de</strong> alguns<strong>de</strong>sacertos redacionais, como, por exemplo, a afirmação <strong>de</strong> que princípioé fonte <strong>de</strong> integração <strong>de</strong> lacuna (princípio é uma norma); o art. 108 <strong>do</strong>NCPC afirma que “o juiz não se exime <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir alegan<strong>do</strong> lacuna ou obscurida<strong>de</strong>da lei, caben<strong>do</strong>-lhe, no julgamento da li<strong>de</strong>, aplicar os princípiosconstitucionais e as normas legais; não as haven<strong>do</strong>, recorrerá à analogia,aos costumes e aos princípios gerais <strong>de</strong> direito” 62 .5.1. Algumas notas positivas sobre a consagração <strong>do</strong>s princípiosO anteprojeto consagra, explicitamente, alguns princípios constitucionaisprocessuais, como o da inafastabilida<strong>de</strong> da tutela jurisdicional (art.3º), a razoável duração <strong>do</strong> processo (art. 4º e 8º), princípio <strong>do</strong> contraditórioe seus <strong>de</strong>correntes, como o da cooperação e o da participação (art. 5º,8º, 9º e 10º) e da publicida<strong>de</strong> (art. 11).Consagra, ainda, uma cláusula geral em que o magistra<strong>do</strong>, ao aplicara lei, aten<strong>de</strong>rá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências <strong>do</strong>bem comum, observan<strong>do</strong> sempre os princípios da dignida<strong>de</strong> da pessoahumana, da razoabilida<strong>de</strong>, da legalida<strong>de</strong>, da impessoalida<strong>de</strong>, da moralida<strong>de</strong>,da publicida<strong>de</strong> e da eficiência (art. 6º). Nesse ponto, o projeto, para oestudioso <strong>do</strong> direito, é literalmente truísta, mas, como dito, ainda temosmuito para evoluir; talvez tal redação atinja o incauto, que ainda não sefamiliarizou com o neoprocessualismo ou com o formalismo valorativo.Observe-se que o projeto consagra a técnica da tutela jurisdicionala partir <strong>de</strong> cláusulas gerais, como “prazo razoável” (art. 4º), “fins sociaisa que ela se dirige e às exigências <strong>do</strong> bem comum” (art. 6º), “lealda<strong>de</strong> eboa-fé” (art. 66, II), “medidas que consi<strong>de</strong>rar a<strong>de</strong>quadas” (art. 278), “lesãograve” e “risco <strong>de</strong> lesão grave e <strong>de</strong> difícil reparação (art. 278 e 283)”.Assegura-se, ainda, a isonomia material (art. 7º) das partes no tratamentoem relação ao exercício <strong>de</strong> direitos e faculda<strong>de</strong>s processuais, aosmeios <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa, aos ônus, aos <strong>de</strong>veres e à aplicação <strong>de</strong> sanções processuais,competin<strong>do</strong> ao juiz velar pelo efetivo contraditório em casos <strong>de</strong> hipossuficiênciatécnica.O tratamento igual <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s perante o or<strong>de</strong>namento <strong>de</strong>termina anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um processo civil cooperativo, uma distribuição dinâmica62 DIDIER Jr., Fredie. "A teoria <strong>do</strong>s princípios e o projeto <strong>de</strong> Novo CPC", In DIDIER Jr., Fredie. MOUTA ARAÚJO, JoséHenrique. KLIPPEL, Rodrigo. O projeto <strong>do</strong> Novo Código <strong>de</strong> Processo Civil. Estu<strong>do</strong>s em homenagem ao Prof. José <strong>de</strong>Albuquerque Rocha. Ed. JusPodium, 2011, p. 146.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 103


<strong>do</strong> ônus da prova, bem como uma assistência judiciária integral aos hipossuficientes.Diante das peculiarida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> caso concreto, po<strong>de</strong>rá o magistra<strong>do</strong>,em <strong>de</strong>cisão fundamentada, observa<strong>do</strong> o contraditório, distribuir <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>diverso o ônus da prova, impon<strong>do</strong>-o à parte que estiver em melhores condições<strong>de</strong> produzi-la, como se extrai <strong>do</strong> art. 262 <strong>do</strong> projeto. A a<strong>do</strong>ção da teoriadinâmica <strong>de</strong> distribuição <strong>do</strong> ônus da prova supera a vetusta teoria estáticaque, consagrada no art. 333 <strong>do</strong> atual CPC, prestigia a isonomia material,evitan<strong>do</strong>-se situações em que o próprio acesso à justiça seria nega<strong>do</strong>.Ressalta-se que Anteprojeto, no art. 107, inciso V, permite ao magistra<strong>do</strong>a<strong>de</strong>quar as fases e os atos processuais às especificações <strong>do</strong> conflito,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a conferir maior efetivida<strong>de</strong> à tutela <strong>do</strong> bem jurídico, respeitan<strong>do</strong>sempre o contraditório e a ampla <strong>de</strong>fesa. Esse direcionamento aten<strong>de</strong>ao mo<strong>de</strong>lo cooperativo <strong>de</strong> processo civil próprio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Constitucional,que <strong>de</strong>ve ser paritário no diálogo e assimétrico na <strong>de</strong>cisão da causa 63 .A redação <strong>de</strong>monstra uma evolução, muito embora não afirme expressamenteque a condução <strong>do</strong> processo <strong>de</strong>ve ser cooperativa e que o juiztem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> assegurar às partes igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tratamento, diretrizes queemergem diretamente <strong>do</strong> texto constitucional (art. 5º, I e LIV da CR/88) e<strong>do</strong>s próprios fundamentos <strong>do</strong> anteprojeto (art. 5º, 7º, 8º, 10 etc.).O menciona<strong>do</strong> inciso é complementa<strong>do</strong> pelo art. 151 § 1º, no qualse <strong>de</strong>termina que o juiz, quan<strong>do</strong> o procedimento ou os atos a serem realiza<strong>do</strong>sse <strong>de</strong>monstrem ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s às peculiarida<strong>de</strong>s da causa, promovao necessário ajuste, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ouvidas as partes e observa<strong>do</strong>s o contraditórioe a ampla <strong>de</strong>fesa. Cremos que tal dispositivo se mostra como um <strong>do</strong>smelhores sobre o tema.Observe-se que se extrai toda a potencialida<strong>de</strong> para a justa solução<strong>do</strong> caso concreto, afastan<strong>do</strong> normas frias e estáticas, construin<strong>do</strong> odireito em conformida<strong>de</strong> com suas peculiarida<strong>de</strong>s, sempre respeitan<strong>do</strong> ocontraditório.Essa postura rompe com a visão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal. Assiste-se, com osurgimento da <strong>de</strong>mocracia social, à intensificação da participação <strong>do</strong> juiz,a quem cabe zelar por um processo justo 64 , nas palavras <strong>de</strong> Marinoni e63 MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIEIRO, Daniel. O projeto <strong>do</strong> CPC: crítica e propostas. São Paulo: Editora Revista<strong>do</strong>s Tribunais, 2010, p. 87.64 A expressão processo justo foi cunhada Cappelletti, sob a influência anglo-americana, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> fairhearing, como processo em que são asseguradas às partes todas as prerrogativas inerentes ao contraditório participativo.104R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Arenhart 65 . O processo não busca somente aten<strong>de</strong>r ao interesse das partes,há um interesse público na correta solução <strong>do</strong> litígio.De igual mo<strong>do</strong>, o projeto assegura o direito ao benefício da gratuida<strong>de</strong><strong>de</strong> justiça (art. 85), melhor organizan<strong>do</strong> a Lei 1.060/50, permitin<strong>do</strong>que o magistra<strong>do</strong> <strong>de</strong>termine, <strong>de</strong> ofício, a comprovação da insuficiência,bem como informa que, das <strong>de</strong>cisões que apreciarem o requerimento <strong>de</strong>gratuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> justiça, caberá agravo <strong>de</strong> instrumento, salvo quan<strong>do</strong> tal<strong>de</strong>cisão se <strong>de</strong>r na sentença.5.2. Algumas notas negativas na consagração <strong>do</strong>s princípiosUm Esta<strong>do</strong> Constitucional qualifica-se pela segurança jurídica, justamentepor exalar uma legítima confiança em seus cidadãos, na proteçãoà coisa julgada, bem como na a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes vinculativos.O legisla<strong>do</strong>r tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> proteger a coisa julgada, como um postula<strong>do</strong>extraí<strong>do</strong> <strong>do</strong> art. 5º, XXXV da CR/88, e, nesse senti<strong>do</strong>, os meios paraa sua revisão <strong>de</strong>vem ser bem <strong>de</strong>limita<strong>do</strong>s.Preten<strong>de</strong>-se reduzir os vícios rescisórios, como se observa no art.884 <strong>do</strong> projeto, retiran<strong>do</strong>-se, por exemplo, a rescisória por incompetênciaabsoluta, bem como se reduzin<strong>do</strong> o seu prazo para um ano (art. 893).O art. 496 §4º <strong>do</strong> Projeto repete a redação <strong>do</strong> art. 475-L §1º e art.741, parágrafo único <strong>do</strong> atual CPC, que permite a revisão da <strong>de</strong>nominada“coisa julgada inconstitucional”, sem, contu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ixar claro que somenteé admissível tal revisão se, ao tempo da formação da coisa julgada, já existiafirmada jurisprudência no STF sobre o assunto.O projeto segue a tendência <strong>de</strong> nosso or<strong>de</strong>namento jurídico <strong>de</strong> cada vezmais se aproximar <strong>do</strong> sistema da common law, emprestan<strong>do</strong> mais <strong>de</strong>staqueainda à jurisprudência. Várias são as passagens das quais se po<strong>de</strong>m extrairtais i<strong>de</strong>ias: art. 285, IV; 317, I e II; 847 e 853, 865, 895 a 906 e 956 a 959).Um sistema <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes persuasivos enfatiza, além da segurançajurídica, a isonomia perante o Direito, evitan<strong>do</strong> o tratamento diferencia<strong>do</strong>entre os jurisdiciona<strong>do</strong>s. Cumpre, contu<strong>do</strong>, registrar que o Projeto per<strong>de</strong>uuma gran<strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprimorar o sistema <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes 66 .65 MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. "Comentários ao Código <strong>de</strong> Processo Civil". São Paulo: Revista<strong>do</strong>s Tribunais, 2000, v. V, tomo I, p. 192.66 Observamos a mesma conclusão em: MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIEIRO, Daniel. O projeto <strong>do</strong> CPC: críticae propostas. São Paulo: Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2010, p. 17. GARCIA, André Luis Bitar <strong>de</strong> Lima. "A ausência<strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes no NCPC: uma oportunida<strong>de</strong> perdida", In DIDIER Jr., Fredie. MOUTA ARAÚJO, JoséHenrique. KLIPPEL, Rodrigo. O projeto <strong>do</strong> Novo Código <strong>de</strong> Processo Civil. Estu<strong>do</strong>s em homenagem ao Prof. José <strong>de</strong>Albuquerque Rocha. Ed. JusPodium, 2011, p. 14.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 105


Como <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> anteriormente, o magistra<strong>do</strong>, no contexto <strong>do</strong>neoconstitucionalismo, tem um papel tão criativo quanto o <strong>do</strong> seu colega<strong>do</strong> common law, controlan<strong>do</strong> a constitucionalida<strong>de</strong> da lei, aplican<strong>do</strong> técnicas<strong>de</strong> interpretação conforme a constituição e, ainda, suprin<strong>do</strong> omissões<strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r diante <strong>de</strong> direitos fundamentais 67 .Nessa linha, os prece<strong>de</strong>ntes são ferramentas extremamente valiosaspara a concretização <strong>do</strong>s direitos fundamentais da igualda<strong>de</strong>, segurançajurídica e razoável duração <strong>do</strong> processo. Há que se pensar na igualda<strong>de</strong>diante das <strong>de</strong>cisões judiciais, ou seja, não basta igualda<strong>de</strong> perante a lei,mas igualda<strong>de</strong> na interpretação da lei 68 .Diante <strong>de</strong> tal conjunto <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ias, esperava-se que o Novo CPC construísseuma teoria <strong>do</strong> prece<strong>de</strong>nte, não apenas regulamentasse a jurisprudência.O art. 847, art. 882, nas alterações apresentadas pelo Sena<strong>do</strong>rValter Pereira, ignora, ao que parece, a diferença entre jurisprudência,<strong>de</strong>cisão judicial e prece<strong>de</strong>nte.Somente se po<strong>de</strong> cogitar em prece<strong>de</strong>nte quan<strong>do</strong> se tem uma <strong>de</strong>cisão<strong>do</strong>tada <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas características, com basicamente a potencialida<strong>de</strong><strong>de</strong> se firmar como paradigma para a orientação <strong>do</strong>s jurisdiciona<strong>do</strong>s e magistra<strong>do</strong>s.O prece<strong>de</strong>nte constitui <strong>de</strong>cisão acerca <strong>de</strong> matéria <strong>de</strong> direito – ou,nos termos <strong>do</strong> commom law, <strong>de</strong> um point of law – e não <strong>de</strong> matéria <strong>de</strong>fato. A maioria das <strong>de</strong>cisões judiciais diz respeito às <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> fato 69 .De igual mo<strong>do</strong>, além <strong>de</strong>ssa imprecisão técnica, o NCPC não introduzum sistema <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes, não reconhecen<strong>do</strong> a eficácia vinculante <strong>do</strong>sfundamentos <strong>de</strong>terminantes das <strong>de</strong>cisões judiciais, tampouco aborda osinstitutos da ratio <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>ndi, obter dicta, distinguishing, overruling, prospectiveroverruling, antecipatory overruling, overriding entre outras.É certo que não é função <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r <strong>de</strong>finir conceitos, contu<strong>do</strong>,estabelecer uma melhor compreensão das técnicas <strong>de</strong> confronto, interpretação,superação e aplicação <strong>do</strong> prece<strong>de</strong>nte seria i<strong>de</strong>al, inclusive parauma melhor obtenção <strong>do</strong>s anseios <strong>do</strong> NCPC, bem como para conferir maiscoerência à or<strong>de</strong>m jurídica.67 MARINONI, Luiz Guilherme. "A transformação <strong>do</strong> civil law e a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um sistema prece<strong>de</strong>ntalista parao Brasil". Disponível em: www.professormarinoni.com.br.68 GARCIA, André Luis Bitar <strong>de</strong> Lima. "A ausência <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes no NCPC: uma oportunida<strong>de</strong> perdida",In DIDIER Jr., Fredie. MOUTA ARAÚJO, José Henrique. KLIPPEL, Rodrigo. O projeto <strong>do</strong> Novo Código <strong>de</strong> ProcessoCivil. Estu<strong>do</strong>s em homenagem ao Prof. José <strong>de</strong> Albuquerque Rocha. Ed. JusPodium, 2011, p. 17.69 MARINONI, Luiz Guilherme. MITIDIEIRO, Daniel. O projeto <strong>do</strong> CPC: crítica e propostas. São Paulo: Editora Revista<strong>do</strong>s Tribunais, 2010, p. 164-165.106R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Observe-se que o Novo CPC incorre em gran<strong>de</strong> contradição, pois,como <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>, utiliza-se muito, e positivamente, da técnica das cláusulasgerais, o que, naturalmente, provoca, por parte da jurisprudência, aoutorga <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> aos textos normativos. Assim, é imperioso se atribuirforça vinculante aos prece<strong>de</strong>ntes, <strong>do</strong> contrário, haverá um enorme esta<strong>do</strong><strong>de</strong> insegurança, pois cada magistra<strong>do</strong> po<strong>de</strong>rá interpretá-lo no senti<strong>do</strong> quelhe aprouver.6. ConclusãoRealmente é nítida a falta <strong>de</strong> sistematicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> atual CPC, nãoapresentan<strong>do</strong> or<strong>de</strong>m e unida<strong>de</strong>, somente po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser compreendi<strong>do</strong>como um sistema a partir <strong>de</strong> um esforço <strong>do</strong>utrinário para acomodar osseus elementos.Essa parece ter si<strong>do</strong> a proposta da Comissão e, realmente, esse pareceser o resulta<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong>. O “Novo” CPC pouco acrescenta, não revoluciona<strong>do</strong>meto<strong>do</strong>logicamente o processo civil, pois, como <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>,somente consagra as i<strong>de</strong>ias já firmadas pela <strong>do</strong>utrina e jurisprudência.Quan<strong>do</strong> Buzaid redigiu o CPC <strong>de</strong> 1973, houve uma ruptura absurdacom as premissas <strong>do</strong> CPC <strong>de</strong> 1939, estabelecen<strong>do</strong> no plano normativo oque <strong>de</strong> melhor se havia pensa<strong>do</strong> na primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX, principalmentena Itália.Parece-me, com todas as vênias <strong>de</strong> estilo, que os opera<strong>do</strong>res sentirãomuito menos o “choque da mudança” com o novo CPC <strong>do</strong> que sentiramcom a reforma da execução judicial <strong>de</strong>terminada pela Lei nº 11.232/05.Há, a rigor, simples incorporações <strong>de</strong> textos constitucionais e <strong>de</strong> diplomaslegislativos infraconstitucionais extravagantes.Destarte, com o novo CPC dar-se-á mais organização ao sistema e,principalmente, se positivarão prima<strong>do</strong>s constitucionais no texto legal.Enfim, esse parece ser o gran<strong>de</strong> lucro a ser obti<strong>do</strong> com tal mudança. Nãoobstante ser uma mudança <strong>de</strong> conteú<strong>do</strong> simbólico, justamente por estarpositiva<strong>do</strong>, talvez alcance mais eco e melhor se aprofun<strong>de</strong> nos escaninhosda justiça.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 74-107, out.-<strong>de</strong>z. 2011 107


1. IntroduçãoMediação - InstrumentoEficaz para a EficiênciaRegulatória *Kátia Valver<strong>de</strong> JunqueiraDiretora Jurídica <strong>do</strong> Grupo Gas Natural Fenosa noBrasil (CEG, CEG RIO, Gas Natural São Paulo Sul e GasNatural Serviços)Os conflitos fazem parte <strong>do</strong> cotidiano da humanida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início<strong>do</strong>s tempos como fenômeno sociológico, seja nas relações familiares, sejanas sociais ou empresariais.Nesse senti<strong>do</strong> a origem da mediação em senti<strong>do</strong> informal, confun<strong>de</strong>secom a origem da própria Humanida<strong>de</strong>.Entretanto, no senti<strong>do</strong> que hoje conhecemos, po<strong>de</strong>-se dizer que amediação surgiu nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s para solucionar conflito entre a comunida<strong>de</strong><strong>do</strong>s “Quakers” e os coloniza<strong>do</strong>res holan<strong>de</strong>ses, em 1636, garantin<strong>do</strong>o cumprimento <strong>do</strong>s princípios morais e as tradições <strong>de</strong> seus grupos,evoluin<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então.A mediação é um mecanismo <strong>de</strong> autocomposição <strong>de</strong> interessesconflituosos em que as partes envolvidas contam com a intervenção <strong>de</strong>um terceiro alheio ao litígio, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> media<strong>do</strong>r – não ten<strong>do</strong> autorida<strong>de</strong>ou po<strong>de</strong>r coercitivo para impor a solução <strong>do</strong> conflito aos envolvi<strong>do</strong>s–, que <strong>de</strong> forma imparcial <strong>de</strong>sempenha o relevante papel <strong>de</strong> auxiliá-las nabusca por uma solução que lhes seja satisfatória, com ganhos mútuos,privilegian<strong>do</strong> a conciliação entres as partes.A utilização da mediação como meio <strong>de</strong> solução <strong>de</strong> conflitos no Brasilencontra-se prevista no inciso LXXVIII <strong>do</strong> artigo 5º da Constituição Fe<strong>de</strong>ral(Emenda Constitucional n° 45, <strong>de</strong> 2004), que <strong>de</strong>termina que “a to<strong>do</strong>s,no âmbito judicial e administrativo, são assegura<strong>do</strong>s a razoável duração<strong>do</strong> processo e os meios que garantam a celerida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua tramitação”.* Trabalho originalmente seleciona<strong>do</strong> para o VI Congresso Brasileiro <strong>de</strong> Regulação, promovi<strong>do</strong> pela AssociaçãoBrasileira <strong>de</strong> Agências <strong>de</strong> Regulação, 2009. Revisa<strong>do</strong> e atualiza<strong>do</strong> em outubro <strong>de</strong> 2011.108R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011


O mecanismo da mediação é um <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s alternativos <strong>de</strong> resolução<strong>de</strong> conflitos ou “Alternative Dispute Resolution” – ADR.Entretanto, a mediação se distingue <strong>de</strong> outros institutos que buscampôr termo aos conflitos, notadamente da arbitragem, que foi revitalizadano Brasil a partir da promulgação da Lei nº 9.307, <strong>de</strong> 23 <strong>de</strong> setembro<strong>de</strong> 1996 e se caracteriza pela instalação <strong>do</strong> juízo arbitral pelos interessa<strong>do</strong>s,enfrentan<strong>do</strong> controvérsias relativas a direitos patrimoniais disponíveis,em que um ou mais terceiros, <strong>de</strong> forma imparcial e sem interesse nacausa, analisam e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m questões <strong>de</strong> fato e <strong>de</strong> direito, com a observância<strong>de</strong> requisitos e formalida<strong>de</strong>s previstas na lei e normas aplicáveis.Tal distinção se <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que a dinâmica da mediação caracteriza-sepela simplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu processo e pressupõe uma informalida<strong>de</strong>e agilida<strong>de</strong> bem mais acentuadas, principalmente pelo uso intenso daoralida<strong>de</strong>, além da flexibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>corrente da composição amigável <strong>do</strong>sinteresses, seja por meio <strong>de</strong> conciliação, seja por meio da transação, como objetivo <strong>de</strong> transformar uma situação inicialmente conflituosa em umasituação final satisfatória para os envolvi<strong>do</strong>s.Nesse senti<strong>do</strong>, o mecanismo da mediação tem como benefício adicionalo fato <strong>de</strong> eliminar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> venci<strong>do</strong>s e vence<strong>do</strong>res, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>que a solução alcançada é construída e negociada pelas próprias partesenvolvidas, refletin<strong>do</strong> um processo volitivo <strong>de</strong> ambas no que se convencionouchamar nos processos <strong>de</strong> negociação, <strong>de</strong> teoria <strong>do</strong> “ganha-ganha”.Com efeito, na mediação as partes são figuras ativas, que precisamestar dispostas a transigir quanto aos pretensos direitos que <strong>de</strong>têm e tambémem relação aos objetivos colima<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> eles copartícipes dassoluções resultantes <strong>do</strong> uso <strong>de</strong>sse mecanismo.Vale lembrar que a mediação está alicerçada no princípio da autonomiada vonta<strong>de</strong>, segun<strong>do</strong> o qual as partes são livres para pactuaremcomo quiserem e o que quiserem e, portanto, é prerrogativa das partes<strong>de</strong>cidir pela conveniência, ou não, da instauração <strong>do</strong> procedimento, nãohaven<strong>do</strong> obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> submissão <strong>do</strong> conflito aos processos <strong>de</strong> mediaçãoe, tampouco, uma participação direta <strong>do</strong> media<strong>do</strong>r na <strong>de</strong>cisão.Assim, a mediação é uma maneira voluntária, informal e extrajudicial<strong>de</strong> solução <strong>de</strong> litígios, através da qual o media<strong>do</strong>r, livremente escolhi<strong>do</strong>pelas partes, as ajuda e orienta a resolver suas divergências <strong>de</strong> maneiraa que se atinja o melhor nível <strong>de</strong> satisfação <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os envolvi<strong>do</strong>s,R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011 109


po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ter caráter preventivo, <strong>de</strong> evitar o surgimento <strong>de</strong> conflitos, ouresolutivo, <strong>de</strong> solucionar conflitos já existentes.Na realida<strong>de</strong> a atuação <strong>do</strong> media<strong>do</strong>r é a <strong>de</strong> um facilita<strong>do</strong>r da autocomposiçãovoluntária das partes, já que a mediação, como anteriormente<strong>de</strong>staca<strong>do</strong>, tem por característica a inexistência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> intervençãoou imposição <strong>de</strong> qualquer solução <strong>do</strong> problema pelo media<strong>do</strong>raos media<strong>do</strong>s.Com efeito, no instituto da mediação as próprias partes constroemsuas propostas e nenhuma <strong>de</strong>las é obrigada a aceitar a proposta da outrase esta não for <strong>de</strong> seu interesse. O papel <strong>do</strong> media<strong>do</strong>r, por outro la<strong>do</strong>, ésutil e busca a orientação das partes para que elas mesmas consigamchegar a um acor<strong>do</strong> satisfatório.Justamente por essa ausência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório e impositivo <strong>do</strong>media<strong>do</strong>r, é necessário que essa função seja exercida por um profissionalcom perfil psicológico a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> e muito bem treina<strong>do</strong> e qualifica<strong>do</strong> paraseu munus, com profun<strong>do</strong> conhecimento da psique humana, <strong>do</strong> universodas negociações e <strong>do</strong>s negocia<strong>do</strong>res e com o firme compromisso <strong>de</strong> alcançarefetivamente uma solução para o impasse que seja satisfatória para osenvolvi<strong>do</strong>s, sem qualquer resquício <strong>de</strong> parcialida<strong>de</strong>. Seu papel precípuo éreduzir tensões, acalmar ânimos e fazer com que as partes alcancem umacomposição construtiva e positiva <strong>do</strong>s conflitos. Em outras palavras, a função<strong>do</strong> media<strong>do</strong>r é tornar uma situação, em princípio negativa para osenvolvi<strong>do</strong>s, em uma situação final que lhes permita alcançar, ao menos,uma situação que lhes seja parcialmente benéfica. Assim, é evi<strong>de</strong>nte queo media<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve ser um profissional qualifica<strong>do</strong> e não um curioso queincentive a <strong>de</strong>savença entre as partes, ou que seja ten<strong>de</strong>ncioso, sem osincero compromisso com o alcance <strong>de</strong> um acor<strong>do</strong> minimamente razoávelpara ambas.Apesar da citada ausência <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r impositivo <strong>do</strong> media<strong>do</strong>r, a mediaçãovem se apresentan<strong>do</strong> nos tempos atuais, como uma excelentealternativa para compor interesses e pôr termo às <strong>de</strong>mandas, ao formalismoexcessivo e à morosida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sistema judiciário <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> intensoe irracional volume <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas judiciais que vêm sen<strong>do</strong> propostas, evitan<strong>do</strong>ainda que as partes incorram nos eleva<strong>do</strong>s custos <strong>do</strong>s processosjudiciais e <strong>de</strong> honorários <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>s.Nesse senti<strong>do</strong>, é relevante <strong>de</strong>stacar a importância crescente da mediaçãono senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> evitar a judicialização <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas que po<strong>de</strong>riam110R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011


ser rápida e facilmente solucionadas por esse meio <strong>de</strong> resolução amigável<strong>de</strong> conflitos, sen<strong>do</strong> claro o interesse público envolvi<strong>do</strong> na solução das<strong>de</strong>mandas <strong>do</strong>s particulares por meio <strong>de</strong>ssa meto<strong>do</strong>logia.2. Demandas JudicializadasDentre as empresas que mais contribuem para o assoberbamento<strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Judiciário, encontram-se algumas concessionárias <strong>de</strong> serviçospúblicos que, <strong>de</strong> fato, contribuem significativamente para o acúmulo anormal<strong>de</strong> um significativo volume <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas judiciais propostas por seususuários. Constata-se que tais <strong>de</strong>mandas assoberbam <strong>de</strong> forma anormaltoda a estrutura <strong>do</strong>s Tribunais geran<strong>do</strong> custos <strong>de</strong> homem/hora <strong>de</strong> magistra<strong>do</strong>se serventuários, e <strong>de</strong> manutenção da infraestrutura <strong>do</strong>s Tribunais,tais como gastos com energia, telefonia, água, papel, disponibilização <strong>de</strong>espaço, mobiliário, compra e manutenção <strong>de</strong> equipamentos etc.Portanto, é urgente a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> medidas que evitem que esse contingenteexagera<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas atinja nossos Tribunais e gere, além <strong>de</strong>tu<strong>do</strong>, morosida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas e <strong>de</strong> outras <strong>de</strong>mandas e, <strong>de</strong>ntre tais medidas,<strong>de</strong>staca-se a mediação.3. A Ativida<strong>de</strong> Media<strong>do</strong>ra no Âmbito das Agências Regula<strong>do</strong>rasAos órgãos regula<strong>do</strong>res é dada a competência <strong>de</strong> fiscalizar e regularos serviços públicos <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>s a particulares. Nessas duas situações – fiscalizaçãoe regulação –, insere-se uma gama variada <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s em queas Agências atuam como uma longa manus <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, apesar da necessáriain<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong>cisória e autonomia funcional.No âmbito <strong>de</strong>ssas ativida<strong>de</strong>s, lhes é da<strong>do</strong> apreciar uma série <strong>de</strong>questões envolven<strong>do</strong> usuários, <strong>de</strong>legatários e Po<strong>de</strong>r Conce<strong>de</strong>nte, ou seja,questões que envolvem interesses eminentemente públicos, mas tambémpriva<strong>do</strong>s.Um <strong>do</strong>s principais objetivos da regulação é zelar pela a regularida<strong>de</strong>,continuida<strong>de</strong>, eficiência, segurança, atualida<strong>de</strong>, generalida<strong>de</strong>, cortesia nasua prestação <strong>do</strong>s serviços e modicida<strong>de</strong> das tarifas <strong>de</strong>sses serviços públicos,<strong>de</strong> maneira a que os usuários possam usufruir da prestação <strong>do</strong> serviçopúblico a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>, conforme previsto na Lei Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Concessões– Lei 8.987, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1995 –, o que permite plenamente umaatuação media<strong>do</strong>ra.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011 111


De fato, a resolução amigável <strong>de</strong> conflitos vem encontran<strong>do</strong> importanteespaço na atuação das Agências Regula<strong>do</strong>ras, notadamente noscasos que ensejam maior volume <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas, ou seja, nas reclamações<strong>do</strong>s usuários contra os <strong>de</strong>legatários <strong>do</strong>s serviços públicos, sen<strong>do</strong> fundamentaluma atuação ágil, imparcial e a<strong>de</strong>quada <strong>do</strong>s regula<strong>do</strong>res na solução<strong>de</strong>sses litígios.Algumas Agências Regula<strong>do</strong>ras possuem em suas leis institui<strong>do</strong>ras,a competência expressa <strong>de</strong> atuação no campo da arbitragem para efeito <strong>de</strong>solução <strong>de</strong>sses litígios. Dentre esses entes regula<strong>do</strong>res, citamos a ANA-TEL – Agência Nacional <strong>de</strong> Telecomunicações – e ANP – Agência Nacional<strong>do</strong> Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis.Entretanto, a algumas outras Agências não foi dada essa competênciaoriginária, restan<strong>do</strong> a esses regula<strong>do</strong>res, a atuação na resolução<strong>de</strong> conflitos no âmbito da mediação, que po<strong>de</strong> ser exercida no âmbitoda competência remanescente <strong>de</strong>ssas autarquias por não exigir previsãolegal <strong>de</strong>ssa competência.O fato é que a atuação e consolidação das Agências Regula<strong>do</strong>ras,como instâncias media<strong>do</strong>ras vem se tornan<strong>do</strong> frequente e certamentetem um papel fortalece<strong>do</strong>r da regulação e <strong>de</strong>ssas instituições, estabelecen<strong>do</strong>o papel <strong>do</strong> regula<strong>do</strong>r como um facilita<strong>do</strong>r e fomenta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> soluções,evitan<strong>do</strong> a judicialização das <strong>de</strong>mandas <strong>do</strong>s usuários <strong>do</strong>s serviçosregula<strong>do</strong>s.Nesse viés da ativida<strong>de</strong> regulatória – mediação – que se constituinuma ativida<strong>de</strong> estatal que envolve diversos escopos, a mediação <strong>de</strong>veser a<strong>de</strong>quadamente exercida como <strong>de</strong> resto as <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>s regulatórias,além <strong>de</strong> outras razões, também como legítima retribuição às receitasauferidas pelas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas (taxas <strong>de</strong> regulação), sen<strong>do</strong> taisreceitas, fonte <strong>de</strong> custeio das Agências Regula<strong>do</strong>ras.Dessa forma, a atuação <strong>do</strong>s regula<strong>do</strong>res como media<strong>do</strong>res, comocomenta<strong>do</strong>, além <strong>de</strong> ter o condão <strong>de</strong> solucionar as <strong>de</strong>mandas, evitan<strong>do</strong>a sua remessa aos Tribunais, tem a vantagem <strong>de</strong> ser uma ativida<strong>de</strong> járemunerada pelas contribuições pagas pelas empresas <strong>de</strong>legatárias, nãohaven<strong>do</strong> ônus adicional às partes envolvidas.4. Requisitos Para Atuação <strong>do</strong> Regula<strong>do</strong>r - Media<strong>do</strong>rNesse contexto <strong>do</strong> viés media<strong>do</strong>r da ativida<strong>de</strong> regula<strong>do</strong>ra dasAgências, vale ressaltar que a atuação <strong>do</strong> regula<strong>do</strong>r como media<strong>do</strong>r112R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011


<strong>de</strong>ve se revestir <strong>de</strong> algumas características básicas inerentes tanto àativida<strong>de</strong> media<strong>do</strong>ra, quanto à ativida<strong>de</strong> regulatória, tais como imparcialida<strong>de</strong>,bom senso, boa-fé, flexibilida<strong>de</strong>, facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunicação,espírito apazigua<strong>do</strong>r, compromisso com a confi<strong>de</strong>ncialida<strong>de</strong> e comprometimentocom a solução <strong>do</strong>s conflitos <strong>de</strong> forma razoavelmente benéficapara ambas as partes.É evi<strong>de</strong>nte que num processo <strong>de</strong> mediação se <strong>de</strong>ve permitir àspartes, muito embora <strong>de</strong> forma ágil e concentrada, que apresentemsuas razões, argumentos e objetivos.A<strong>de</strong>mais, a atuação <strong>do</strong> regula<strong>do</strong>r naturalmente já está sujeita à observância<strong>do</strong>s princípios regentes da administração pública, muitos <strong>de</strong>lessimilares aos requisitos exigi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um media<strong>do</strong>r comum, tais como o darazoabilida<strong>de</strong>, proporcionalida<strong>de</strong>, impessoalida<strong>de</strong>, legalida<strong>de</strong> e moralida<strong>de</strong>.Por outro la<strong>do</strong>, na mediação, a hiposuficiência <strong>do</strong> usuário <strong>de</strong>ve serconsi<strong>de</strong>rada na medida certa e sem exageros para que não se encurraleesse processo <strong>de</strong> resolução <strong>de</strong> conflitos num único e previsível final, queseguramente levaria ao insucesso <strong>de</strong>sse meio alternativo <strong>de</strong> resolução<strong>de</strong> conflitos.É relevante registrar também, a importância <strong>de</strong> o regula<strong>do</strong>r, nacondição <strong>de</strong> media<strong>do</strong>r, se <strong>de</strong>spir <strong>de</strong> influências políticas ou <strong>de</strong> posturasinfluenciadas por interesses <strong>de</strong>magógicos, sob pena <strong>de</strong> se tornar essa tãoimportante ativida<strong>de</strong> numa ativida<strong>de</strong> meramente burocrática que, emnada, contribuiria para o interesse público.Para o exercício <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong>, o regula<strong>do</strong>r também <strong>de</strong>ve dispor<strong>de</strong> estrutura apropriada, treinamento específico para seus funcionários,bem como procedimentos claros e transparentes, que estabeleçam oscritérios para realização das mediações <strong>de</strong> sua competência. Por outrola<strong>do</strong>, na mediação <strong>do</strong>s conflitos, os regula<strong>do</strong>res <strong>de</strong>vem buscar minimizaro grau <strong>de</strong> animosida<strong>de</strong> e emotivida<strong>de</strong> das partes envolvidas que, emregra, buscam impor à outra parte, suas posições e interesses. Somentecom essa postura apazigua<strong>do</strong>ra e imparcial, po<strong>de</strong>rá ser atingida a tãobuscada eficiência no <strong>de</strong>sempenho da mediação que po<strong>de</strong>rá se constituirem contribuição efetiva para a redução significativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandasque chegam ao Judiciário.De qualquer forma, fica evi<strong>de</strong>nciada a vocação natural <strong>do</strong> regula<strong>do</strong>rpara atuar como media<strong>do</strong>r <strong>de</strong> conflitos e é certo que, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> conceito<strong>de</strong> autonomia funcional e administrativa e <strong>de</strong> equidistância <strong>de</strong> interessesR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011 113


e, portanto, <strong>de</strong> imparcialida<strong>de</strong> em que <strong>de</strong>ve se pautar a atuação <strong>do</strong> regula<strong>do</strong>r,a solução <strong>de</strong> conflitos por meio <strong>do</strong> instituto da mediação é um meioa<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>de</strong> atuar das Agências Regula<strong>do</strong>ras, que <strong>de</strong>ve ser estimula<strong>do</strong>.5. Mediação Como Mecanismo <strong>de</strong> Medição da EficiênciaRegulatóriaÉ <strong>de</strong> clareza meridiana que a eficiência <strong>do</strong>s regula<strong>do</strong>res não <strong>de</strong>ve,nem po<strong>de</strong>, ser medida com base na quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> processos regulatóriosinstaura<strong>do</strong>s ou <strong>de</strong> penalida<strong>de</strong>s aplicadas, o que seria absolutamente prejudiciala to<strong>do</strong>s os envolvi<strong>do</strong>s e totalmente antieconômico, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong>um baixo grau <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ente regula<strong>do</strong>r.Felizmente, vemos muitos regula<strong>do</strong>res brasileiros com um alto nível<strong>de</strong> atuação e uma visão madura e eficiente <strong>de</strong> suas responsabilida<strong>de</strong>s,que ten<strong>de</strong>m a não incidir no erro <strong>de</strong>scrito no parágrafo anterior e quebuscam, <strong>de</strong> fato, numa visão mais ampla e evoluída, fomentar o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s em prol <strong>do</strong>s usuários.De fato, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se que a ativida<strong>de</strong> regulatória, na sua essência,não <strong>de</strong>ve ter por finalida<strong>de</strong> precípua penalizar, mas, ao contrário,<strong>de</strong>ve se pautar na busca constante da satisfação <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o merca<strong>do</strong> e<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os players nele envolvi<strong>do</strong>s, o que só se concretiza com umaatuação muito mais pedagógica e educativa <strong>do</strong> que efetivamente penaliza<strong>do</strong>ra,a mediação se apresenta como uma alternativa natural e eficientese bem realizada.Nesse senti<strong>do</strong>, a eficiência regulatória <strong>de</strong>ve ser medida com basena quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> soluções obtidas para as questões que são submetidasao Regula<strong>do</strong>r, em âmbito pré-processual, ou seja, em âmbito administrativo-media<strong>do</strong>r,<strong>de</strong> maneira a que o instituto da mediação possa ter seusbenefícios satisfatoriamente usufruí<strong>do</strong>s como meio alternativo para a solução<strong>do</strong>s conflitos submeti<strong>do</strong>s, em benefício <strong>de</strong> usuários e <strong>de</strong>legatários<strong>do</strong>s serviços públicos, bem como, quan<strong>do</strong> for o caso, <strong>do</strong> próprio Po<strong>de</strong>rConce<strong>de</strong>nte, trazen<strong>do</strong> reflexos positivos para a administração da Justiça.Dessa forma, é essencial que o mecanismo da mediação seja encara<strong>do</strong>como um efetivo instrumento <strong>de</strong> aferição <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> eficiência dasAgências no exercício <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s, posto que ao Regula<strong>do</strong>r cabefomentar a universalização <strong>do</strong>s serviços públicos com a inafastável observância<strong>do</strong>s requisitos legais pertinentes e não fomentar a animosida<strong>de</strong> entreusuários e concessionários ou permissionários e Po<strong>de</strong>r Conce<strong>de</strong>nte.114R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Assim, é recomendável que as Agências Regula<strong>do</strong>ras criem e divulguemseus índices <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho media<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> maneira que não apenasos regula<strong>do</strong>res, mas também, os <strong>de</strong>mais atores <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e a socieda<strong>de</strong>como um to<strong>do</strong> possam acompanhar periodicamente o <strong>de</strong>sempenhodas Agências quanto à realização <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>s por meio <strong>do</strong> mecanismo damediação, aferin<strong>do</strong> o nível <strong>de</strong> eficiência regulatório e buscan<strong>do</strong> sempremetas crescentes <strong>de</strong> solução <strong>de</strong> conflitos.6. Mediação Como Instrumento <strong>de</strong> Fortalecimento <strong>do</strong>sEntes Regula<strong>do</strong>resO estímulo ao exercício da mediação pelos entes regula<strong>do</strong>res seconstitui, ainda, em um eficiente instrumento <strong>de</strong> fortalecimento <strong>do</strong>sórgãos técnicos das Agências Regula<strong>do</strong>ras – e, portanto, das Agências –como Ouvi<strong>do</strong>rias, Câmaras Técnicas e Assessorias Jurídicas, que revesti<strong>do</strong>s<strong>de</strong>sse po<strong>de</strong>r media<strong>do</strong>r, a<strong>de</strong>quadamente exerci<strong>do</strong>, terão maior visibilida<strong>de</strong>e valorização, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, evi<strong>de</strong>ntemente, atuem <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s princípiosbásicos <strong>do</strong> instituto que, como visto, possui muitas similarida<strong>de</strong>s com osrequisitos exigi<strong>do</strong>s para <strong>de</strong>sempenho das ativida<strong>de</strong>s regulatórias.Outro ganho para os regula<strong>do</strong>res no exercício eficiente da mediaçãoé a fixação da imagem positiva perante a opinião pública e players<strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, pelo dinamismo e rapi<strong>de</strong>z na solução <strong>do</strong>s conflitos a elessubmeti<strong>do</strong>s.Com isso, os processos essencialmente regulatórios, assim consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>saqueles leva<strong>do</strong>s à apreciação da instância superior das AgênciasRegula<strong>do</strong>ras, seriam aqueles em que realmente seria necessária uma análisemais <strong>de</strong>morada e aprofundada <strong>do</strong>s temas, sem possibilida<strong>de</strong>s, ao menosaparentes, <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> um acor<strong>do</strong> e, consequentemente, sem alternativas<strong>de</strong> solução tão abreviadas quanto se busca conseguir na mediação.Dessa forma, com a a<strong>do</strong>ção cada vez maior <strong>do</strong> instituto da mediação,os indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho das Agências <strong>de</strong>vem também apontara queda <strong>do</strong> número <strong>de</strong> processos regulatórios instaura<strong>do</strong>s e em curso.Vale <strong>de</strong>stacar que, até mesmo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> alcançada a fase <strong>de</strong> instauração<strong>do</strong> litígio na esfera regulatória, seria possível e eficaz – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> quehouvesse a concordância <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s – a utilização da mediação comomeio <strong>de</strong> viabilizar a solução da questão – <strong>de</strong>sta feita em caráter resolutivo –,para finalização <strong>de</strong>sses processos envolven<strong>do</strong> questões ligadas aos interesses<strong>de</strong> usuários, <strong>de</strong>legatários <strong>do</strong>s serviços públicos e Po<strong>de</strong>r Conce<strong>de</strong>nte.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011 115


7. Resulta<strong>do</strong>s Concretos da Mediação na Esfera RegulatóriaA ANEEL – Agência Nacional <strong>de</strong> Energia Elétrica, responsável peloatendimento <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 60 (sessenta) milhões <strong>de</strong> usuários, é uma Agênciaque encara com bastante serieda<strong>de</strong>, profissionalismo e eficiência, aativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mediação, existin<strong>do</strong> uma Superintendência específica parao assunto.Trata-se da Superintendência <strong>de</strong> Mediação Administrativa Setorial– SMA, a quem compete “executar as ativida<strong>de</strong>s relacionadas aos processos<strong>de</strong> consulta aos agentes econômicos, a consumi<strong>do</strong>res <strong>de</strong> energia elétricae à socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> atendimento a suas reclamações” (Portaria MMEn o . 349, <strong>de</strong> 28/11/97).Além <strong>do</strong>s requisitos gerais já referi<strong>do</strong>s, para efeito <strong>de</strong> realizaçãodas mediações em sua esfera <strong>de</strong> atuação, a ANEEL observa a Norma <strong>de</strong>Organização ANEEL 001, aprovada pela Resolução Normativa ANEELn o . 273/07.Com base no cita<strong>do</strong> dispositivo, o conflito é objeto <strong>de</strong> um processo<strong>de</strong> triagem para constatação <strong>do</strong> cabimento <strong>do</strong> mecanismo da mediaçãocuja instauração <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da concordância da outra parte envolvida.Haven<strong>do</strong> instauração <strong>do</strong> procedimento, passa-se à fase <strong>de</strong> coleta<strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos e informações, montan<strong>do</strong>-se uma sinopse cronológica <strong>do</strong>conflito – historiograma.Na primeira reunião, as regras e procedimentos são informa<strong>do</strong>s aosenvolvi<strong>do</strong>s, realizan<strong>do</strong>-se quantas reuniões quanto forem necessárias,com ativa participação <strong>do</strong>s regula<strong>do</strong>res, até se chegar a uma solução queatenda aos interesses <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s.Como resulta<strong>do</strong> concreto <strong>de</strong>sse trabalho, a SMA/ANEEL tem alcança<strong>do</strong>uma média <strong>de</strong> 30 (trinta) mediações anuais, daí resultan<strong>do</strong> emacor<strong>do</strong>s 90% (noventa por cento) <strong>de</strong>sses casos, o que <strong>de</strong>nota um altopercentual <strong>de</strong> êxito.Devemos consi<strong>de</strong>rar que esses acor<strong>do</strong>s media<strong>do</strong>s representam oatendimento <strong>do</strong>s anseios das partes envolvidas, com atuação <strong>de</strong>stacada<strong>do</strong>s media<strong>do</strong>res/regula<strong>do</strong>res.Dentre outros exemplos vitoriosos <strong>de</strong> uso <strong>do</strong> mecanismo da mediaçãona esfera regulatória po<strong>de</strong>mos citar o da ANATEL – Agência Nacional<strong>de</strong> Telecomunicações –, que a<strong>de</strong>mais <strong>de</strong> ter a competência para o exercícioda arbitragem <strong>de</strong> conflitos, também atua como media<strong>do</strong>ra, o que vem116R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011


fazen<strong>do</strong> com bastante eficiência inclusive em matéria concorrencial comono caso da remuneração das interconexões entre as concessionárias <strong>de</strong>serviço telefônico fixo comuta<strong>do</strong>.Também a ANA – Agência Nacional <strong>de</strong> Águas –, vem ten<strong>do</strong> papelfundamental na mediação <strong>de</strong> conflitos pelo uso da água, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se citarcomo caso emblemático <strong>de</strong> mediação na sua esfera <strong>de</strong> atuação, o conflitoentre o setor <strong>de</strong> navegação e <strong>de</strong> energia elétrica ocorri<strong>do</strong> em 2001, relativamenteà hidrovia Tietê-Paraná, cuja mediação impediu a interrupção danavegação na mais importante hidrovia brasileira, ameaçada por pretensões<strong>de</strong> aumento <strong>de</strong> geração <strong>de</strong> energia elétrica.Também a atuação da Agência Regula<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Serviços Públicos <strong>do</strong>Ceará – ARCE, tem si<strong>do</strong> bastante exitosa no âmbito das mediações. Em2008, a ARCE alcançou o incrível índice <strong>de</strong> 99,63 % <strong>de</strong> sucesso nas mediaçõesrealizadas e nos anos seguintes vem manten<strong>do</strong> sua performance emníveis equivalentes.No <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, a Agência Regula<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Energia e SaneamentoBásico <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, AGENERSA, em ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1998, muito emboraainda não tenha a<strong>de</strong>ri<strong>do</strong> até agora ao instituto da mediação, publicourecentemente a Resolução Nº 005 <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 2011, que alterao Regimento Interno da Agência. Por meio <strong>de</strong>ssa Resolução, a AGENERSAimplantou o processo <strong>de</strong> conciliação, com base na seguinte disposição:“Nos processos regulatórios que envolvam Concessionária(s) regulada(s)pela AGENERSA, Usuário(s) e/ou Po<strong>de</strong>r(es) Conce<strong>de</strong>nte(s), sempre quesolicita<strong>do</strong> pela(s) parte(s) ou quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>rar necessário e oportuno,o Conselheiro-Relator po<strong>de</strong>rá provi<strong>de</strong>nciar a realização <strong>de</strong> reunião <strong>de</strong>conciliação entre os litigantes”.Trata-se <strong>de</strong> uma medida distinta da mediação, porém, conexa a ela.Tecnicamente, a diferença entre a mediação e a conciliação resi<strong>de</strong> nopapel <strong>de</strong>stina<strong>do</strong> ao terceiro interveniente. Enquanto media<strong>do</strong>r, esse terceiroapoia as partes para que <strong>de</strong>las mesmas surja a solução, enquantoque, na conciliação, o terceiro tem a iniciativa <strong>de</strong> propor às partes a soluçãopara o conflito.Apesar <strong>de</strong>ssa sutil – porém, importante - distinção, a expectativa é<strong>de</strong> que essa medida conexa atinja resulta<strong>do</strong>s positivos, assim consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>sa agilida<strong>de</strong> e encerramento <strong>de</strong> feitos regulatórios e, notadamente,a redução <strong>do</strong> volume <strong>de</strong> processos regulatórios instaura<strong>do</strong>s e o aumento<strong>do</strong> número <strong>de</strong> processos encerra<strong>do</strong>s, como consequência lógica <strong>do</strong> sucessoR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011 117


da iniciativa. Vale acompanhar o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa medida para verificação<strong>de</strong> sua real eficiência.8. ConclusãoComo corolário lógico <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o exposto neste trabalho, constatasea importância <strong>do</strong> instituto da mediação no ambiente regulatório, comoum excelente instrumento para se atingir a satisfação geral <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s,<strong>de</strong>sconstruin<strong>do</strong> conflitos e fomentan<strong>do</strong> soluções e acor<strong>do</strong>s.Vale lembrar que regular não é penalizar. Regular é muito mais queisso, regular é buscar incessantemente o sucesso da ativida<strong>de</strong> regulada,para benefício <strong>do</strong>s usuários. Por outro la<strong>do</strong>, a eficiência da ativida<strong>de</strong> regulatórianão po<strong>de</strong>, nem <strong>de</strong>ve, ser medida com base no indica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> número<strong>de</strong> multas impostas, mas sim, pelas soluções eficientes que as própriaspartes encontram com o apoio <strong>do</strong>s media<strong>do</strong>res/regula<strong>do</strong>res, que permitema satisfação <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s sem a judicialização <strong>do</strong>s conflitos.Cabe, assim, aos regula<strong>do</strong>res, estimular o uso <strong>do</strong>s procedimentos<strong>de</strong> mediação entre os players <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s regula<strong>do</strong>s, já que uma soluçãomediada, em regra, é sempre mais benéfica, ágil e menos custosa <strong>do</strong>que um conflito continua<strong>do</strong>.Resta claro ainda, que o sucesso <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> mediação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>,precipuamente, da capacitação <strong>do</strong> media<strong>do</strong>r – neste caso, regula<strong>do</strong>r –, que<strong>de</strong>ve ter pleno <strong>do</strong>mínio da técnica <strong>de</strong>sse instrumento, <strong>de</strong> maneira a exercêlona sua completitu<strong>de</strong>, sob pena <strong>de</strong> gerar prejuízos aos interesses envolvi<strong>do</strong>se não contribuir para a redução da judicialização das <strong>de</strong>mandas.Assim, fica evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> que o a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> instituto damediação pelos órgãos regula<strong>do</strong>res gera eficiência no <strong>de</strong>sempenho dasAgências Regula<strong>do</strong>ras, além <strong>de</strong> agregar valor à ativida<strong>de</strong> regulatória, comreflexos positivos no segmento <strong>do</strong>s serviços públicos concedi<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> maneiraa permitir que sejam efetivamente alcança<strong>do</strong>s os objetivos precípuosda regulação, viabilizan<strong>do</strong> a prestação <strong>do</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> serviço a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>,previsto na Lei Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Concessões, com a plena satisfação <strong>de</strong> seususuários, das concessionárias e permissionárias, po<strong>de</strong>res conce<strong>de</strong>ntes e<strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong> em geral.Por fim, a eficiência <strong>do</strong>s Regula<strong>do</strong>res tem como efeito indireto,porém, extremamente relevante e benéfico, a redução <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas judiciais,o que <strong>de</strong>ve ser persegui<strong>do</strong> e estimula<strong>do</strong> em razão <strong>do</strong> interessepúblico envolvi<strong>do</strong>, que extrapola o âmbito <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s regula<strong>do</strong>s e seesten<strong>de</strong> para toda a socieda<strong>de</strong> como um to<strong>do</strong>.118R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 108-118, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Separação judicial. Um institutojurídico <strong>de</strong>rroga<strong>do</strong>?Lidia Cal<strong>de</strong>ira Lustosa CabralMestre em Sociologia e Direito pela Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Professora <strong>de</strong> Direito Civil daUNISUAM1. IntroduçãoO presente artigo trata <strong>do</strong> interesse <strong>de</strong>sperta<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>utrina epela jurisprudência acerca da vigência da separação judicial no or<strong>de</strong>namentocivil brasileiro após a emenda 66 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong>Brasil, que eliminou a parte final <strong>do</strong> coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> parágrafo 6º <strong>do</strong> artigo226, retiran<strong>do</strong> os pressupostos temporais, seja a partir <strong>de</strong> um ano daseparação judicial, seja pelo <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> prazo <strong>de</strong> <strong>do</strong>is anos da separação<strong>de</strong> fato. A redação <strong>do</strong> art. 226 <strong>do</strong> texto magno passou a dispor: “O casamentocivil po<strong>de</strong> ser dissolvi<strong>do</strong> pelo divórcio”. grifo nosso.A reflexão que propomos realizar tem por escopo estabelecer a<strong>de</strong>fesa da permanência da separação judicial no or<strong>de</strong>namento jurídico,enquanto nova lei não venha extingui-la, o que encerraria por <strong>de</strong>finitivo acisão <strong>do</strong>utrinária e jurispru<strong>de</strong>ncial.2. Da separação judicialDurante a vigência <strong>do</strong> Código Civil <strong>de</strong> 1916 o casamento era a únicaforma <strong>de</strong> constituição <strong>de</strong> família.A comunhão <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>veria dar-se “até que a morte os separe.”Ampara<strong>do</strong> na <strong>do</strong>utrina cristã da Igreja Católica, vigia o sacramento<strong>do</strong> casamento, segun<strong>do</strong> o qual “o que Deus uniu, o homem não separe.”Contu<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> certo que os <strong>de</strong>veres <strong>do</strong> casamento eram, porvezes, <strong>de</strong>scumpri<strong>do</strong>s, o instituto da separação judicial se impunha, com a<strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> <strong>de</strong>squite.As uniões extrapatrimoniais não tinham status jurídico <strong>de</strong> família, ese submetiam à vara cível, em caso <strong>de</strong> dissolução, não geran<strong>do</strong> os efeitosprotetivos como, por exemplo, obrigações alimentícias após a dissoluçãoR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 119-124, out.-<strong>de</strong>z. 2011 119


<strong>do</strong> vínculo. A jurisprudência e a <strong>do</strong>utrina aplicavam as regras da dissolução<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato.Em 1977, o caráter cultural inerente ao or<strong>de</strong>namento jurídico,com fundamento “no fenômeno da Tridimensionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Direito, introduzi<strong>do</strong>em nossa <strong>do</strong>utrina pelo jurista Miguel Reale, ao entendimento<strong>de</strong> que a integração que se dá entre fato, valor e norma, consagra a eficácia,fundamento e vigência da norma jurídica” (Na<strong>de</strong>r, 2008, p. 391), oconduziu à promulgação da Emenda Constitucional nº 9, que modificoua redação <strong>do</strong> § 1º <strong>do</strong> artigo 175 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral prece<strong>de</strong>nte,e revogou os artigos 315 a 318 , bem como o § 1º <strong>do</strong> artigo 1605 <strong>do</strong>Código Civil vigente, pelo surgimento da Lei 6.515/77, instituin<strong>do</strong>-se odivórcio no or<strong>de</strong>namento jurídico brasileiro.A esse tempo, o or<strong>de</strong>namento jurídico pátrio substituiu a palavra<strong>de</strong>squite pela expressão separação judicial.Posteriormente, Constituição Fe<strong>de</strong>ral vigente alterou o perfil contemporâneo<strong>de</strong> família, a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> os princípios <strong>do</strong> solidarismo,segun<strong>do</strong> oqual “embora presentes em muitas formas ordinárias, não dizem respeitoà solidarieda<strong>de</strong> constitucional, pela qual a participação das pessoas nagestão das formações sociais não <strong>de</strong>ve dirigir-se ao eficientismo <strong>de</strong>stasúltimas, mas ao pleno <strong>de</strong>senvolvimento das pessoas” e o personalismo,“como o objetivo <strong>de</strong> construção <strong>do</strong>s membros que compõem a família,ten<strong>do</strong> em vista a formação <strong>de</strong> cada pessoa envolvida.” (Perlingiere, 1997,p. 35 e 36).A a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong>stes princípios estruturantes permitiu que o Constituinterecepcionasse a Lei <strong>do</strong> Divórcio, estabelecen<strong>do</strong> pressupostos temporais<strong>de</strong> um ano se houvesse separação judicial, ou <strong>do</strong>is anos, se comprovada aseparação <strong>de</strong> fato entre os cônjuges.Des<strong>de</strong> a promulgação da Lei 6.515/77 , foram muitos os pressupostospara a <strong>de</strong>cretação <strong>do</strong> divórcio e convolação <strong>de</strong> novas núpcias, noentanto, as alterações se estabeleceram, <strong>de</strong>finitivamente, com a promulgaçãoda atual Carta Magna que exigia, até 13 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2010, a separaçãojudicial com <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> tempo <strong>de</strong> um ano, ou <strong>de</strong> fato por <strong>do</strong>is anos.As consequências <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> contemporâneo globaliza<strong>do</strong>, as transformaçõessociais, a urbanização, a globalização e a economia <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>,transformaram a família clássica oriunda <strong>do</strong> casamento, para estabelecero status familiar às mais diversas modalida<strong>de</strong>s. A Constituição fe<strong>de</strong>ralconsagrou as famílias formadas pela união estável e as monoparentais120R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 119-124, out.-<strong>de</strong>z. 2011


(formadas por um <strong>do</strong>s pais e sua prole), mas novas formas <strong>de</strong> família,ligadas pelo laço afetivo e não sanguíneo, começam a tomar espaço nas<strong>de</strong>cisões jurispru<strong>de</strong>nciais, como famílias socioafetivas.A nova família é formada por pessoas, que ten<strong>de</strong>m a realizar suasaspirações pessoais através da solidarieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seus membros.A retirada da segunda-parte <strong>do</strong> artigo 226, § 6º da CF abre para osestudiosos <strong>do</strong> Direito a pergunta: Haverá si<strong>do</strong> <strong>de</strong>rrogada a separação judicial,se esta já não é exigida para a obtenção <strong>do</strong> divórcio?3. Do sistema dual <strong>de</strong> dissolução <strong>do</strong> casamentoA <strong>do</strong>utrina que i<strong>de</strong>ntifica o sistema dual <strong>de</strong> extinção <strong>do</strong> casamento emnossa codificação civil aponta duas formas <strong>de</strong> dissolução. As que <strong>de</strong>rivam<strong>de</strong> causas dissolutivas e as <strong>de</strong> causas terminativas (Farias e Rosenvald,p. 280).Vale dizer que todas as causas <strong>de</strong> extinção <strong>do</strong> casamento são dissolutivas,por encerrarem a socieda<strong>de</strong> conjugal, mas <strong>de</strong>ntre estas, apenasduas são terminativas (a separação judicial e a anulação ou nulida<strong>de</strong> <strong>do</strong>casamento).Enten<strong>de</strong>m os <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res que a separação judicial tem por consequênciaterminar apenas a socieda<strong>de</strong> conjugal, pon<strong>do</strong> fim aos <strong>de</strong>veresrecíprocos entre os cônjuges, e ao regime <strong>de</strong> bens.Por manter-se o vínculo conjugal em suspenso, o mesmo po<strong>de</strong>ráser restabeleci<strong>do</strong> com simples petição no processo <strong>de</strong> separação judicial.A separação judicial, enquanto causa terminativa, não permite aconvolação <strong>de</strong> novo casamento, por manter intacto o vínculo conjugal.Em contrapartida, as causas dissolutivas , como o próprio nome indica,rompem o vínculo, dissocian<strong>do</strong> os cônjuges <strong>do</strong> laço jurídico que osligava. Rompi<strong>do</strong>, portanto, o vínculo conjugal, sua restauração impõe-seimpossível. Somente mediante novo processo <strong>de</strong> habilitação, os ex-cônjugespo<strong>de</strong>rão contrair novas núpcias.As causas dissolutivas (morte e divórcio) põem igualmente fim aos<strong>de</strong>veres conjugais e ao regime <strong>de</strong> bens, <strong>de</strong> forma irremediável.4. Razões para a manutenção da separação judicial pelasistemática da Lei 6.515/77A preservação <strong>do</strong> instituto da separação judicial tem o escopo <strong>de</strong>manter a liberda<strong>de</strong> entre os cônjuges para <strong>de</strong>cidir acerca <strong>de</strong> sua relaçãoR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 119-124, out.-<strong>de</strong>z. 2011 121


civil, haja vista que a proteção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> volta-se na nova or<strong>de</strong>m constitucional,para as pessoas, centro <strong>do</strong> or<strong>de</strong>namento jurídico, e que seusdireitos fundamentais <strong>de</strong>vem, imperativamente, ser tutela<strong>do</strong>s.1ª razão:O novo coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> artigo 226, § 6º da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, afastouo <strong>de</strong>curso <strong>de</strong> tempo como pressuposto para o divórcio no menorespaço <strong>de</strong> tempo – se separa<strong>do</strong>s judicialmene (um ano). Contu<strong>do</strong>, o tempogaranti<strong>do</strong>r à melhor reflexão <strong>do</strong> passo a ser da<strong>do</strong> pelos cônjuges é <strong>de</strong>razão subjetiva, e po<strong>de</strong>rá ser manti<strong>do</strong> agora sem tempo <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>.O direito <strong>de</strong> contrair casamento, ou <strong>de</strong>sfazê-lo, é <strong>de</strong> interesse particulardas partes envolvidas, manten<strong>do</strong>-se afasta<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong>, e acreditamoster si<strong>do</strong> esta a razão <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>r ao eliminar a exigência da separaçãojudicial prévia, ou <strong>de</strong> fato, por <strong>do</strong>is anos, para a obtenção <strong>do</strong> divórcio.Neste senti<strong>do</strong>, caso seja <strong>de</strong> interesse <strong>do</strong>s cônjuges, a separaçãojudicial po<strong>de</strong>rá prece<strong>de</strong>r o divórcio, resguardan<strong>do</strong>-se a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>restaurar, a qualquer tempo, o casamento, sem contu<strong>do</strong> dissolver o vínculomatrimonial.2ª razão:O direito aos alimentos previstos no artigo 1704 <strong>do</strong> Código Civil<strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> entre os ex-cônjuges, e da necessida<strong>de</strong><strong>do</strong> alimentan<strong>do</strong>, visto não haver parentesco entre ambos, equaciona-sepela aferição <strong>de</strong> culpa eventual no caso da separação litigiosa.Muito embora a admissão da culpa nas separações judiciais venhasen<strong>do</strong> a cada dia mais afastada pela jurisprudência, que admite ser direito<strong>do</strong>s cônjuges buscar o fim <strong>de</strong> um relacionamento civil que não mais comportao afeto, pressuposto fundamental <strong>do</strong> matrimônio,esta ainda vigeno parágrafo único <strong>do</strong> artigo 1704 CC para a<strong>de</strong>quar o valor <strong>do</strong>s alimentos<strong>de</strong>vi<strong>do</strong>s ao cônjuge culpa<strong>do</strong> ao mínimo necessário à sua existência digna.Trata-se da pon<strong>de</strong>ração <strong>de</strong>vida pelo princípio <strong>do</strong> solidarismo, játrata<strong>do</strong>.3ª razão:Zelar pelo cônjuge acometi<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença mental grave,manifestadaapós o casamento, tornan<strong>do</strong> impossível a vida em comum, ex vi <strong>do</strong>art. 1772 § 2º <strong>do</strong> Código Civil.A <strong>do</strong>utrina a <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong> separação-remédio , e po<strong>de</strong> ser a medidaa<strong>do</strong>tada caso o cônjuge sadio e <strong>de</strong> boa-fé, pretenda continuar a zelar122R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 119-124, out.-<strong>de</strong>z. 2011


pelo cônjuge enfermo, inclusive garantin<strong>do</strong>-lhe as consequências previ<strong>de</strong>nciárias,e o pensionamento <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>.Neste caso, tanto socialmente, quanto juridicamente, uma eventualunião estável com terceira pessoa, po<strong>de</strong>rá ser reconhecida pelo or<strong>de</strong>namentopátrio, sem que a ex-cônjuge esteja <strong>de</strong>samparada.4ª razão:A última pon<strong>de</strong>ração diz respeito à <strong>de</strong>rrogação da Lei 6.515/77,bem como <strong>do</strong>s artigos 1571, III e seguintes <strong>do</strong> Código Civil, que tratam daseparação judicial.A boa hermenêutica jurídica trazida pela Emenda 66 ao § 6º da CFhá que ser aplicada <strong>de</strong> forma extensiva, haja vista que assim dispõe:“O casamento po<strong>de</strong> ser dissolvi<strong>do</strong> pelo divórcio.”Cabe, portanto, interpretar-se tal dispositivo constitucional comoampliativo <strong>do</strong> direito subjetivo <strong>do</strong>s cônjuges <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidirem acerca <strong>do</strong> fim<strong>do</strong> casamento quan<strong>do</strong> suas vonta<strong>de</strong>s livres assim se manifestarem, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda injunção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> quanto a termo.O coman<strong>do</strong> constitucional, por seus princípios ou normas, nãove<strong>do</strong>u o instituto da separação judicial, nem sequer a Emenda 66 fez qualquerreferência à sua vedação. Pelo contrário, apenas <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir aimperativida<strong>de</strong> da prévia separação judicial, ou <strong>de</strong> fato, para que o divórciopossa ser <strong>de</strong>creta<strong>do</strong>.5. Conclusão:A se enten<strong>de</strong>r a perda da eficácia da separação judicial em nossoor<strong>de</strong>namento jurídico, apenas apoiada na sua <strong>de</strong>snecessida<strong>de</strong>, significariaeliminar <strong>do</strong>s cônjuges o direito <strong>de</strong> a<strong>do</strong>tar um tempo precioso que po<strong>de</strong>ráser necessário a novas experiências, e a tomada <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão segura.A reconciliação entre os envolvi<strong>do</strong>s, enquanto instituto jurídico,estaria finda, eliminada a possibilida<strong>de</strong> em situação <strong>de</strong> dúvida, bem comonos casos <strong>de</strong> convicção religiosa, haja vista que alguns grupos excluiriamas pessoas que <strong>de</strong>sfizessem o vínculo matrimonial, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> optar pelasingela forma da separação judicial a justificar o fim <strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres conjugais(GAMA, palestra <strong>Emerj</strong>, 20/06/2011).Em não haven<strong>do</strong> vedação constitucional, ou <strong>de</strong>rrogação expressa,há que se reconhecer a vigência formal <strong>do</strong> instituto , e que os opera<strong>do</strong>resR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 119-124, out.-<strong>de</strong>z. 2011 123


<strong>do</strong> direito reconheçam, igualmente, a eficácia da separação judicial, postoque não há qualquer contrarieda<strong>de</strong> à Carta Magna.Em senti<strong>do</strong> contrário, <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res há que ten<strong>de</strong>m a superar oobstáculo justifican<strong>do</strong> a opção pela separação <strong>de</strong> fato.Muito embora a separação <strong>de</strong> fato seja instituto reconheci<strong>do</strong> peloor<strong>de</strong>namento pátrio, se é <strong>de</strong> fato, não é <strong>de</strong> direito, trazen<strong>do</strong> insegurançajurídica aos envolvi<strong>do</strong>s, e exigin<strong>do</strong> produção <strong>de</strong> prova a favor <strong>de</strong> cônjugeoportunamente prejudica<strong>do</strong>.Por todas as razões aqui expostas, optamos por apoiar os <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>rese julga<strong>do</strong>res que admitem a permanência da separação judicial noor<strong>de</strong>namento jurídico pátrio.A controvérsia persiste no Egrégio <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong>Janeiro e, em recente palestra proferida na Escola da Magistratura <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, os <strong>do</strong>utos magistra<strong>do</strong>s não apresentaram posiçãopacificada, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> aos juízes <strong>de</strong> primeiro grau a <strong>de</strong>cisão a tomar, casoa caso.Resta a nós, estudiosos <strong>do</strong> direito, aguardarmos o caminhar <strong>do</strong>antigo instituto jurídico da separação judicial, que ora vocaciona-se aextinguir-se.124R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 119-124, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Discricionarieda<strong>de</strong> Judicial:consi<strong>de</strong>rações sobre aperspectiva positivista <strong>de</strong>Kelsen e Hart e a proposta <strong>de</strong>Dworkin para sua superaçãoLucio Picanço FacciMestran<strong>do</strong> em Ciências Jurídicas e Sociais na Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral Fluminense (UFF). Especialista emDireito Público pela Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília (UnB).Membro Efetivo <strong>do</strong> Instituto <strong>do</strong>s Advoga<strong>do</strong>s Brasileiros(IAB). Procura<strong>do</strong>r Fe<strong>de</strong>ral em Petrópolis/RJ.1. IntroduçãoO presente trabalho tem como objeto analisar a discricionarieda<strong>de</strong>judicial, expressão referida neste trabalho sob a ótica oriunda <strong>do</strong> positivismojurídico segun<strong>do</strong> a qual, ante uma ação judicial que não possa serresolvida por uma regra formal <strong>de</strong> direito clara, estabelecida <strong>de</strong> antemão,o Judiciário teria “po<strong>de</strong>r discricionário” para <strong>de</strong>cidir o caso <strong>de</strong> uma maneiraou <strong>de</strong> outra.Para tanto, iremos inicialmente <strong>de</strong>dicar algumas linhas a respeito<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo positivista, apresentan<strong>do</strong> seus traços característicos a partir<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s realiza<strong>do</strong>s por alguns <strong>do</strong>s mais expressivos representantes<strong>de</strong>ssa escola <strong>do</strong> pensamento jurídico: Hans Kelsen e Herbert Hart.Após, buscan<strong>do</strong> entabular uma crítica a tais mo<strong>de</strong>los, abordaremosalguns aspectos <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Ronald Dworkin no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> proporuma superação das soluções fortemente afinadas com o positivismo jurídicopara o problema das incompatibilida<strong>de</strong>s ou lacunas legais.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 125


2. DECISÃO JUDICIAL SOB A ÓTICA DO positivismo jurídico2.1. Características geraisComo se sabe, é ao final da Ida<strong>de</strong> Média, no início <strong>do</strong> século XVI, quesurge o Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno. Atribui-se a Nicolau Maquiavel a utilização <strong>do</strong>vocábulo com essa acepção pela primeira vez em seu famoso O príncipe,em 1513. 1 Neste processo, o po<strong>de</strong>r político paulatinamente <strong>de</strong>scola-seda Igreja, que conferia legitimida<strong>de</strong> a uma fundamentação <strong>do</strong>s direitosatravés <strong>de</strong> cosmovisões metafísicas ou religiosas, imunes à crítica e àreflexão. 2 Com as Revoluções Francesa e Inglesa, a soberania <strong>de</strong>sloca seucentro <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong> <strong>do</strong> monarca para o povo, retiran<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> rei eo atribuin<strong>do</strong> à lei, e promoven<strong>do</strong> a transição histórica que superou oabsolutismo pelo legalismo, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> no prima<strong>do</strong> na lei como premissafundamental <strong>do</strong> Direito.O advento e ampla influência <strong>do</strong> Código Civil <strong>de</strong> Napoleão passama conferir plena afirmação ao direito positivo. Esse diploma preten<strong>de</strong>ufundar o direito em bases seguras e unitárias, livre <strong>do</strong> caos normativo <strong>do</strong>Antigo Regime e inspira<strong>do</strong> nos i<strong>de</strong>ais racionaliza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Iluminismo, gesta<strong>do</strong>spor uma suposta razão universal. 3 Não por outra razão, surge naFrança, por volta <strong>do</strong> século XIX, a chamada Escola da Exegese, justamenteem <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> fascínio em relação à lei e, em especial, ao Código Civilfrancês <strong>de</strong> 1804. Para essa Escola, o monopólio da revelação <strong>do</strong> Direito(juspositivismo) competia unicamente ao legisla<strong>do</strong>r, reduzin<strong>do</strong> o Direitoestritamente à lei escrita, “não caben<strong>do</strong> ao intérprete buscar a solução<strong>do</strong> caso em outras fontes, fora <strong>do</strong> texto legal, privilegian<strong>do</strong>-se, assim, aanálise gramatical” 4 .A partir da i<strong>de</strong>ntificação plena <strong>do</strong> direito com a lei escrita, <strong>do</strong> positivismojurídico <strong>de</strong>correm, principalmente, o apego excessivo ao formalismojurídico e a completa dissociação <strong>do</strong> Direito da Moral e da Ética.A seguir, com vistas a acentuar as principais características <strong>do</strong> positivismojurídico, iremos abordar alguns aspectos <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Hans1 Neste senti<strong>do</strong>, v. DALLARI, Dalmo <strong>de</strong> Abreu. Elementos <strong>de</strong> teoria geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 20. ed. São Paulo: Saraiva,1998, p. 51.2 HABERMAS, Jürgen. Direito e <strong>de</strong>mocracia: entre facticida<strong>de</strong> e valida<strong>de</strong>. Volume I. Tradução <strong>de</strong> Flávio Beno Siebeneichler.2. ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Tempo Brasileiro, 2010, p. 131.3 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. 2. ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Lumen Juris 2008, p. 67-68.4 VELOSO, Zeno. Comentários à Lei <strong>de</strong> Introdução ao Código Civil – arts. 1º a 6º. 2. ed. Belém: Unama, 2006, p. 91.126R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Kelsen e Herbert Hart, <strong>do</strong>is importantes teóricos <strong>do</strong> Direito representantes<strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo jurídico.2.2 O caráter político da interpretação judicial na teoria pura <strong>do</strong> Direito<strong>de</strong> Hans KelsenPo<strong>de</strong>-se afirmar que a principal finalida<strong>de</strong> da obra <strong>de</strong> Hans Kelsenfoi conferir cientificida<strong>de</strong> ao Direito. Para tanto, seria preciso <strong>de</strong>limitar ocampo jurídico, prevenin<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> valorações <strong>de</strong> ín<strong>do</strong>le moral, ética oupolítica que, ten<strong>do</strong> em vista seu caráter controverti<strong>do</strong>, colocaria em riscoa afirmação <strong>do</strong> Direito como ciência.Para Kelsen, a ciência <strong>do</strong> Direito <strong>de</strong>veria ter um objeto formal autônomoe in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, livre <strong>de</strong> qualquer interferência extrajurídica. A suaTeoria Pura <strong>do</strong> Direito, como o próprio nome sugere, busca eliminar elementosalheios à matéria própria <strong>de</strong> uma teoria <strong>do</strong>s fenômenos jurídicosespecíficos <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> Direito, tais como os trazi<strong>do</strong>s das ciênciasnaturais, da Sociologia, da Ética, da Psicologia e da Teoria Política.Nesse senti<strong>do</strong>, afirma o mestre vienense logo ao início da sua famosaobra:Quan<strong>do</strong> a si própria se <strong>de</strong>signa como ´pura´ teoria <strong>do</strong> Direito,isto significa que ela propõe garantir um conhecimentoapenas dirigi<strong>do</strong> ao Direito e excluir <strong>de</strong>ste conhecimento tu<strong>do</strong>quanto não pertença ao seu objeto, tu<strong>do</strong> quanto não se possa,rigorosamente, <strong>de</strong>terminar como Direito. Quer isto dizerque ela preten<strong>de</strong> libertar a ciência jurídica <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os elementosque lhe são estranhos. Esse é o seu princípio meto<strong>do</strong>lógicofundamental 5 .Para alcançar a pureza <strong>do</strong> Direito pretendida, Kelsen sustentava inicialmenteuma radical separação entre o ser e o <strong>de</strong>ver ser, representan<strong>do</strong>a exclusão <strong>do</strong> campo da ciência <strong>do</strong> Direito <strong>de</strong> to<strong>do</strong> e qualquer elementooriun<strong>do</strong> das ciências naturais. Essa cisão resultou na total <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>raçãoda causa <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio normativo <strong>do</strong> Direito: ao enunciar o que <strong>de</strong>veocorrer, a norma não seria <strong>de</strong>corrência ou a explicação <strong>de</strong> fatos, mas apenassua provocação.5 KELSEN, Hans. Teoria pura <strong>do</strong> direito. Tradução <strong>de</strong> João Baptista Macha<strong>do</strong>. 6. ed.. São Paulo: Martins Fontes,2003, p. 1.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 127


Outrossim, para o jurista austríaco, <strong>de</strong>veria ser elimina<strong>do</strong> da Teoria<strong>do</strong> Direito não somente o momento causal, mas ainda o teleológico, istoé, para a valida<strong>de</strong> da norma seria indiferente a realização <strong>do</strong> seu fim. Paraalém disso: o senti<strong>do</strong> mesmo da norma só existiria enquanto houvesse apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que não ocorresse o que ela manda, sob pena <strong>de</strong> transformar-senuma lei natural explicativa.Para Kelsen, portanto, o jurista <strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar os fatos apenas sobo ângulo da sua coincidência ou não com o conteú<strong>do</strong> da norma, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong><strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar sua sucessão causal ou mesmo sua ínsita finalida<strong>de</strong>. Nassuas palavras, “a ciência jurídica, com efeito, não preten<strong>de</strong>, com as proposiçõesjurídicas por ela formuladas, mostrar a conexão causal, mas aconexão <strong>de</strong> imputação entre os elementos <strong>do</strong> seu objeto”. 6Com a dissociação feita entre o Direito e a Moral, Kelsen alu<strong>de</strong> anorma fundamental (grundnorm) como fundamento pressuposto <strong>de</strong>valida<strong>de</strong> da Constituição, última norma jurídica positiva. Kelsen sugere quea Constituição seja suposta como válida em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa norma fundamentalpressuposta, em razão da qual os legisla<strong>do</strong>res constituintes foraminvesti<strong>do</strong>s <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r legítimo <strong>de</strong> editar a Constituição. Assim, as normasconstitucionais <strong>de</strong>veriam ser consi<strong>de</strong>radas válidas pelo só fato <strong>de</strong> constaremda Constituição. 7Tais concepções promovem uma leitura <strong>do</strong> Direito não como norma,mas como or<strong>de</strong>namento, como sistema, a saber: como conjunto <strong>de</strong>normas formalmente coor<strong>de</strong>nadas e conectadas entre si. Pela ótica kelseniana,seria impossível <strong>de</strong>scobrir a natureza <strong>do</strong> direito a partir <strong>do</strong> exame<strong>de</strong> uma norma jurídica atomizada, eis que a característica fundamental<strong>do</strong> sistema jurídico é a coerência, o caráter completo e unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fundamento<strong>de</strong> valida<strong>de</strong>.Kelsen vê o Direito como um or<strong>de</strong>namento <strong>de</strong> tipo dinâmico, cujasnormas não estão conectadas em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seu conteú<strong>do</strong>, como ocorrecom as normas morais, <strong>de</strong> tipo estático. 8 As normas jurídicas se consi<strong>de</strong>ramválidas se editadas por uma autorida<strong>de</strong> competente <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> comuma norma superior. O Direito, assim, é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> estrutura hierárquica eregula sua própria criação.6 Ibi<strong>de</strong>m, p. 100.7 Ibi<strong>de</strong>m, p. 225.8 Ibi<strong>de</strong>m, p. 219.128R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


A partir da 2ª edição <strong>do</strong> seu Teoria Pura <strong>do</strong> Direito, em 1960,Kelsen passa a cuidar <strong>do</strong> tema da interpretação, fazen<strong>do</strong> distinção entrea autêntica e científica. 9 Enquanto esta última se refere às proposições,isto é, às interpretações <strong>do</strong>s <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res, a primeira, única <strong>do</strong>tada <strong>de</strong>valida<strong>de</strong> e eminentemente política, seria a dada pelo juiz ao criar a normaindividual para o caso.Com efeito, Kelsen enxerga a <strong>de</strong>cisão judicial apenas como a continuação<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> criação jurídica, conferin<strong>do</strong>-lhe caráter normativo:a norma individual (sentença) vale na medida em que se ajusta a normasuperior cria<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s órgãos encarrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> concretizar o or<strong>de</strong>namento.A valida<strong>de</strong> da norma individual não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua conformida<strong>de</strong> com oconteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma norma geral superior e, acaso não extirpada <strong>do</strong> universojurídico pelo meio indica<strong>do</strong> pelo or<strong>de</strong>namento, é plenamente válida e<strong>de</strong>ve ser cumprida e aplicada.Assinala Kelsen:Mas autêntica, isto é, cria<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> Direito é a interpretaçãofeita através <strong>de</strong> um órgão aplica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Direito ainda quan<strong>do</strong>cria Direito apenas para um caso concreto, quer dizer, quan<strong>do</strong>esse órgão apenas crie uma norma individual ou execute umasanção. A propósito importa notar que, pela via da interpretaçãoautêntica, quer dizer, da interpretação <strong>de</strong> uma normapelo órgão jurídico que a tem <strong>de</strong> aplicar, não somente se realizauma das possibilida<strong>de</strong>s reveladas pela interpretação cognoscitivada mesma norma, como também se po<strong>de</strong> produziruma norma que se situe completamente fora da moldura quea norma a aplicar representa 10 .Para o mo<strong>de</strong>lo kelseniano, portanto, a valida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão judicialse assenta tão somente no fato <strong>de</strong> haver si<strong>do</strong> proferida por quem<strong>de</strong>tinha competência segun<strong>do</strong> o or<strong>de</strong>namento jurídico. A interpretaçãoestaria, <strong>de</strong>ssa maneira, fora da ciência <strong>do</strong> Direito, pois correspon<strong>de</strong>ria aum ato político <strong>do</strong> juiz, alheio ao campo científico <strong>do</strong> Direito e pertencenteao mun<strong>do</strong> da prática jurídica.9 Ibi<strong>de</strong>m, p. 387.10 Ibi<strong>de</strong>m, p. 394.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 129


Nas palavras <strong>de</strong> Kelsen:A interpretação jurídico-científica não po<strong>de</strong> fazer outra coisasenão estabelecer as possíveis significações <strong>de</strong> uma normajurídica. Como conhecimento <strong>do</strong> seu objeto, ela não po<strong>de</strong>tomar qualquer <strong>de</strong>cisão entre as possibilida<strong>de</strong>s por si mesmareveladas, mas tem <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar tal <strong>de</strong>cisão ao órgão que, segun<strong>do</strong>a or<strong>de</strong>m jurídica, é competente para aplicar o Direito.Um advoga<strong>do</strong> que, no interesse <strong>do</strong> seu constituinte, propõeao tribunal apenas uma das várias interpretações possíveisda norma jurídica a aplicar a certo caso, e um escritor que,num comentário, elege uma interpretação <strong>de</strong>terminada, <strong>de</strong>entre as várias interpretações possíveis, como a única “acertada”,não realizam uma função jurídico-científica, mas umafunção jurídico-política (<strong>de</strong> política jurídica). Eles procuramexercer influência sobre a criação <strong>do</strong> Direito. Isto não lhespo<strong>de</strong>, evi<strong>de</strong>ntemente, ser proibi<strong>do</strong>. Mas não o po<strong>de</strong>m fazerem nome da ciência jurídica, como frequentemente fazem. 112.3. Discricionarieda<strong>de</strong> judicial no conceito <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Herbert HartHerbert Hart, jurisfilósofo britânico, também <strong>de</strong> vertente positivista,promove uma distinção entre regra e hábito, ressaltan<strong>do</strong> a importância<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista “interno” para caracterizar a primeira: ao passo que ohábito expressa apenas uma conduta regular, uniforme, que o observa<strong>do</strong>rpo<strong>de</strong> registrar <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista externo, a condição <strong>de</strong> existência dasregras é a sua visão pelo grupo social como pautas ou critérios gerais <strong>de</strong>comportamento e da sua violação como ato censurável.Assinala o famoso teórico <strong>do</strong> Direito que, como existem conceitosjurídicos sem <strong>de</strong>finição precisa, as normas jurídicas são integradas portermos que, junto a um núcleo <strong>de</strong> significa<strong>do</strong> suficientemente claro, carregamuma zona <strong>de</strong> in<strong>de</strong>terminação e incerteza à sua interpretação.Como <strong>de</strong>monstra Genaro Carrió, jurisfilóso argentino estudioso daobra <strong>de</strong> Hart, o or<strong>de</strong>namento jurídico na visão hartiana constitui um sistemaaberto <strong>de</strong> normas, recusan<strong>do</strong> por isso mesmo a tese da plenitu<strong>de</strong>hermética ou finitu<strong>de</strong> lógica da or<strong>de</strong>m jurídica 12 . Nessa linha, afirma Hart11 Ibi<strong>de</strong>m, p. 395-396.12 CARRIÓ, Genaro. Algunas palabras sobre las palabras <strong>de</strong> la ley. Buenos Aires: Abele<strong>do</strong>-Perrot, 1971, passim.130R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


o caráter criativo e construtivo da ativida<strong>de</strong> jurisdicional ante os chama<strong>do</strong>s“casos difíceis”, repudian<strong>do</strong> a tese da função meramente <strong>de</strong>clarativada jurisdição. Noutras palavras: a teoria analítica hartiana admite que oor<strong>de</strong>namento jurídico é lacunoso e que os juízes dispõem <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r paracriar o Direito.Hart marca a distinção entre normas primárias (impositivas <strong>de</strong> condutas)e secundárias (<strong>de</strong> instituições centralizadas para criar e aplicar asnormas primárias). Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma hipotética socieda<strong>de</strong> primitiva, concluio pensa<strong>do</strong>r britânico que, eventual ausência <strong>de</strong> normas secundáriasacarretaria graves distorções, <strong>de</strong>correntes principalmente <strong>de</strong> três causasfundamentais: (i) insuficiente pressão social ten<strong>de</strong>nte ao cumprimentodas normas impositivas <strong>de</strong> conduta, ante a ausência <strong>de</strong> órgãos específicosa esse fim; (ii) estaticida<strong>de</strong> <strong>do</strong> sistema, resultante da ausência <strong>de</strong> alteraçãoe adaptação das normas às modificações ocorridas no plano fático,social; (iii) incerteza quanto ao senti<strong>do</strong> e alcance das normas primáriasvigentes no sistema. 13Aponta Hart, portanto, para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> complementação dasregras primárias pelas secundárias, <strong>de</strong> forma a conferir ao regime <strong>de</strong> regrasum caráter <strong>de</strong> sistema. Na sua visão, o Direito po<strong>de</strong> ser caracteriza<strong>do</strong>como uma união <strong>de</strong> regras primárias <strong>de</strong> obrigação com regras secundáriasinstitucionais.Ao contrário das normas primárias, as normas secundárias nãocriam obrigações, mas atribuem po<strong>de</strong>res. Na ótica hartiana, existem trêstipos <strong>de</strong> normas secundárias: (i) <strong>de</strong> julgamento, disciplina<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> processoe i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s órgãos e pessoas que <strong>de</strong>vem julgar; 14 (ii) <strong>de</strong> alteração,que confere po<strong>de</strong>r a um indivíduo ou corpo <strong>de</strong> indivíduos paraintroduzir novas regras primárias disciplina<strong>do</strong>ras da vida social; 15 e (iii) <strong>de</strong>reconhecimento, que serve para estabelecer critérios <strong>do</strong>tadas <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>para i<strong>de</strong>ntificar a regras válidas <strong>do</strong> or<strong>de</strong>namento jurídico. 16Quanto às normas secundárias <strong>de</strong> reconhecimento (rule of recognition),Hart assinala que a sua existência não expressaria senão uma questão<strong>de</strong> fato, in litteris:13 HART, H. L. A. O Conceito <strong>de</strong> Direito. Tradução Armin<strong>do</strong> Ribeiro Men<strong>de</strong>s. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,1986, p. 102-10614 Ibi<strong>de</strong>m, p. 106.15 Ibi<strong>de</strong>m, p. 105.16 Ibi<strong>de</strong>m, p. 104.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 131


Uma tal questão não po<strong>de</strong> ser posta quanto à valida<strong>de</strong> daprópria regra <strong>de</strong> reconhecimento que faculta os critérios;esta não po<strong>de</strong> ser válida ou inválida, mas é simplesmenteaceita como apropriada para tal utilização. Expressar estesimples fato dizen<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma pouco clara que a sua valida<strong>de</strong>é ´suposta, mas não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>monstrada´, é como dizerque supomos, mas não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar, que a barra <strong>do</strong>metro-padrão em Paris, que é o teste último da correção <strong>de</strong>toda medida métrica, é ela própria correta. 17Assim, é possível i<strong>de</strong>ntificar distinção entre a grundnorm <strong>de</strong> Kelsene a rule of recognition <strong>de</strong> Hart: enquanto a existência ou valida<strong>de</strong> da primeira<strong>de</strong>veria ser objeto <strong>de</strong> pressuposição, esta última não é válida neminválida – expressa uma existência fática, isto é, um fato efetivo referenteà forma pela qual são i<strong>de</strong>ntificadas as regras <strong>de</strong> um sistema eficaz.3. DECISÃO JUDICIAL E A TEORIA DOS PRINCÍPIOS3.1. Para além <strong>do</strong> texto: superação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo positivista na contemporaneida<strong>de</strong>Muito embora <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> alto grau <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>que sob sua rubrica po<strong>de</strong>m ser incluídas múltiplas escolas <strong>do</strong> pensamentojurídico que guardam importantes distinções teóricas entre si, certo é quea expressão “pós-positivismo” 18 ou mesmo “neopositivismo” 19 tem si<strong>do</strong>atualmente utilizada para <strong>de</strong>signar mo<strong>de</strong>los que representam uma rupturacom o positivismo jurídico, principalmente no que se refere à rígidaseparação entre o Direito e a Moral e a Política.Com efeito, o fim da Segunda Guerra Mundial, com a <strong>de</strong>rrota <strong>do</strong>fascismo na Itália e nazismo na Alemanha e a perplexida<strong>de</strong> planetáriacom as <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong>s praticadas sob amparo da legalida<strong>de</strong> (<strong>de</strong> que sãoexemplos marcantes o campo <strong>de</strong> concentração <strong>de</strong> Treblinka e a explosãodas bombas atômicas em Hiroshima e Nagazaki), impôs uma releitura das17 Ibi<strong>de</strong>m, p. 120.18 Por to<strong>do</strong>s, v. BARROSO, Luís Roberto. Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional Contemporâneo. São Paulo: Saraiva,2009, p. 242.19 Cf, CAMBI, Eduar<strong>do</strong>. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo – direitos fundamentais, políticas públicas eprotagonismo judiciário. São Paulo: Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 2009, p. 78.132R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


concepções teóricas que concebiam o or<strong>de</strong>namento jurídico como algoindiferente a valores éticos. Passa-se a repensar as regras jurídicas sob aperspectiva <strong>de</strong> sua relação com os princípios e os valores, quadra em quese encontra o Direito contemporâneo.A dissociação <strong>do</strong> Direito para a Moral era sustentada pelo positivismojurídico como resultante <strong>de</strong> uma concepção <strong>do</strong> Direito como umsistema que <strong>de</strong>veria ser neutro. Todavia, por ser insuficiente para garantiro efetivo controle <strong>do</strong>s abusos pratica<strong>do</strong>s pelo próprio Esta<strong>do</strong>, o princípioda legalida<strong>de</strong> formal não se mostrou capaz <strong>de</strong> impedir o uso totalitárioe anti<strong>de</strong>mocrático <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> transformar “o <strong>de</strong>lito em direitosupremo”. 20Sobre a relação entre Direito e Moral, cumpre registrar lição contun<strong>de</strong>nte<strong>de</strong> José Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Castro Farias, in verbis:Não po<strong>de</strong>mos voltar à ética grega − na qual o direito e a éticaestavam intimamente liga<strong>do</strong>s −, mas também não po<strong>de</strong>mosadmitir a distinção que é comumente feita pela filosofia <strong>do</strong>sujeito entre a moral − referin<strong>do</strong>-se às relações sociais quecaem sob a responsabilida<strong>de</strong> pessoal − e o direito e a justiçapolítica − como âmbito das relações que são mediadas institucionalmente.Devemos rejeitar a tese da neutralida<strong>de</strong> e da suposição <strong>de</strong>um sistema jurídico fecha<strong>do</strong>, contestar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma legitimação<strong>do</strong> direito através da simples legalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> procedimentoque normatiza o direito, a fim <strong>de</strong> vislumbrar o princípiohermenêutico <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> reconstrutivo. Neste senti<strong>do</strong>, éfundamental a articulação entre o direito e a moral. O direitoe a moral se cruzam constantemente. A moral não é estranhaao direito, pois a regra <strong>de</strong> direito é precisamente o reconhecimentopela massa das consciências individuais da necessida<strong>de</strong>da aplicação <strong>de</strong> certos valores éticos e morais numa socieda<strong>de</strong>.Ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>s aspectos fático e normativo, o aspectoaxiológico − consubstancia<strong>do</strong> nos valores que fundamentamo direito − é um elemento constitutivo da experiência jurídica.20 ZAGREBELSKY, Gustavo. A Lei, o Direito e a Constituição. Disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/textos030101.html. Publica<strong>do</strong> em 28 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2003. Acesso em 02/02/2011.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 133


O direito não está subordina<strong>do</strong> à moral no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> umahierarquia <strong>de</strong> normas, mas existe uma “relação <strong>de</strong> complementarieda<strong>de</strong>recíproca” entre o direito e a moral. Os princípiosmorais e as finalida<strong>de</strong>s políticas <strong>de</strong>vem ser traduzi<strong>do</strong>spara a linguagem <strong>do</strong> direito e engatadas no código jurídicoporque, como afirma Habermas, “em socieda<strong>de</strong>s complexas,a moral só obtém efetivida<strong>de</strong> em <strong>do</strong>mínios vizinhos, quan<strong>do</strong>é traduzida para código <strong>do</strong> direito”. Por trás <strong>do</strong> direito positivoexiste um complexo senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> <strong>do</strong> direito legítimomas, sobretu<strong>do</strong> em <strong>de</strong>cisões sobre princípios, os argumentos<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m extralegal, consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> tipo pragmático, éticoe moral, <strong>de</strong>vem traduzir-se em argumentos jurídicos. 21Sobre o tema, afirmam Antonio Carlos Diniz e Antônio Carlos CavalcantiMaia:Suprimida a rígida clivagem entre direito e moral, baluarte <strong>do</strong>positivismo jurídico até a obra <strong>de</strong> Hart, caminhamos a passoslargos rumo a uma Teoria <strong>do</strong> Direito normativa, fortementeconectada com a Filosofia política e a Filosofia moral. 22Diniz e Maia <strong>de</strong>stacam cinco aspectos <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo pós-positivista:a) inclusão <strong>de</strong> temas como os princípios gerais <strong>do</strong> Direito, a argumentaçãojurídica e a reflexão sobre o papel da hermenêutica jurídica; b) a importância<strong>do</strong>s casos difíceis; c) o abrandamento da dicotomia <strong>de</strong>scrição/prescrição; d) a busca <strong>de</strong> um lugar teórico para além <strong>do</strong> jusnaturalismo e<strong>do</strong> positivismo jurídico; e) o papel <strong>do</strong>s princípios na resolução <strong>do</strong>s casosdifíceis. 23Iremos abordar a seguir especificamente o último <strong>de</strong>sses aspectos,ten<strong>do</strong> em vista sua maior aproximação com a questão da discricionarieda<strong>de</strong>judicial, objeto <strong>do</strong> presente estu<strong>do</strong>, e por representar o tema noqual Ronald Dworkin expõe um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> aplicação <strong>do</strong>s princípios paraos casos difíceis e, com isso, formula uma crítica e propõe uma superaçãoda proposta positivista para a solução <strong>do</strong>s problemas que não encontramresposta clara diretamente a partir <strong>do</strong>s textos legais.21 FARIAS, José Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Castro. Ética, Política e Direito. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 281-282.22 DINIZ, Antonio Carlos; MAIA, Antônio Carlos Cavalcanti. “Pós-positivismo”. In: BARRETO, Vicente (org.). Dicionário<strong>de</strong> filosofia <strong>do</strong> Direito. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro-São Leopol<strong>do</strong>: Renovar/Unisinos, 2006, p. 650-651.23 Op. e loc. cit.134R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


3.2. O papel <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r na teoria <strong>do</strong> Direito <strong>de</strong> Ronald DworkinAo tratar <strong>do</strong>s casos difíceis, artigo originariamente publica<strong>do</strong> naRevista da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Harvard em 1975 e posteriormentepublica<strong>do</strong> como capítulo <strong>do</strong> seu livro Levan<strong>do</strong> os direitos a sério 24 , o jurisfilósofoamericano Ronald Dworkin formula uma crítica à concepçãopositivista segun<strong>do</strong> a qual os juízes seriam possui<strong>do</strong>res <strong>de</strong> um “po<strong>de</strong>rdiscricionário” para <strong>de</strong>cidir casos para os quais não encontravam soluçãodireta pela simples leitura <strong>do</strong>s diplomas normativos. Para Dworkin, assimagin<strong>do</strong>, os juízes estariam a legislar novos direitos jurídicos, aplican<strong>do</strong>-osretroativamente ao caso em questão. Dworkin enten<strong>de</strong> que essa teoria da<strong>de</strong>cisão judicial é totalmente ina<strong>de</strong>quada e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma teoria melhor.Para DWORKIN, mesmo nos casos difíceis, o juiz <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>scobrirquais são os direitos das partes e não criar novos direitos, in litteris:Em minha argumentação, afirmarei que, mesmo quan<strong>do</strong> nenhumaregra regula o caso, uma das partes po<strong>de</strong>, ainda assim,ter o direito <strong>de</strong> ganhar a causa. O juiz continua ten<strong>do</strong>o <strong>de</strong>ver, mesmo nos casos difíceis, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir quais são osdireitos das partes, e não <strong>de</strong> inventar novos direitos retroativamente.Já <strong>de</strong>vo adiantar, porém, que essa teoria não pressupõea existência <strong>de</strong> nenhum procedimento mecânico para<strong>de</strong>monstrar quais são os direitos das partes nos casos difíceis.Ao contrário, o argumento pressupõe que os juristas e juízessensatos irão divergir frequentemente sobre os direitos jurídicos,assim como os cidadãos e os homens <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> divergemsobre os direitos políticos. Este capítulo <strong>de</strong>screve as questõesque juízes e juristas têm que enfrentar, sem garantir que to<strong>do</strong>seles dêem a mesma resposta a essas questões. 25Sustenta o pensa<strong>do</strong>r norte-americano que os juízes não <strong>de</strong>veriamser e não são legisla<strong>do</strong>res <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>s. Para justificar sua posição, estabeleceuma distinção fundamental entre argumentos <strong>de</strong> princípio eargumentos <strong>de</strong> política: Embora ambos justifiquem uma <strong>de</strong>cisão política,os últimos mostram que a <strong>de</strong>cisão fomenta ou protege algum objetivocoletivo da comunida<strong>de</strong> como um to<strong>do</strong> (v.g., argumento em favor <strong>de</strong> um24 DWORKIN, Ronald. Levan<strong>do</strong> os direitos a sério. Tradução <strong>de</strong> Nelson Boeira. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,2010, p. 127-203.25 Ibi<strong>de</strong>m, p. 217.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 135


subsídio para a indústria aeronáutica, que apregoa que tal subvenção iráproteger a <strong>de</strong>fesa nacional, é um argumento <strong>de</strong> política), ao passo queos argumentos <strong>de</strong> princípio mostram que a <strong>de</strong>cisão respeita ou garanteum direito <strong>de</strong> um indivíduo ou <strong>de</strong> um grupo (v.g., o argumento em favordas leis contra a discriminação, aquele segun<strong>do</strong> o qual uma minoria temdireito à igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração e respeito). 26Para Dworkin, não foge à competência <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Legislativo a<strong>de</strong>rira argumentos <strong>de</strong> política. Mas as <strong>de</strong>cisões judiciais não originais <strong>de</strong>verãosempre ser justificadas pelos argumentos <strong>de</strong> princípio, mesmo que alei em si tenha si<strong>do</strong> gerada por uma política. Passa a problematizar essaafirmação com a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> caso difícil: “se o caso em questão for um casodifícil, em que nenhuma regra estabelecida dita uma <strong>de</strong>cisão em qualquerdireção, po<strong>de</strong> parecer que uma <strong>de</strong>cisão apropriada possa ser gerada, sejapor princípios, seja por políticas.” Para, em seguida, concluir que as <strong>de</strong>cisõesjudiciais nos casos civis, mesmo em casos difíceis, <strong>de</strong>vem ser geradaspor princípios e não por políticas. 27Esclarece Dworkin que <strong>do</strong>is argumentos se combinam para sustentaro i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>cisão judicial <strong>de</strong>ve ser o menos original possível: (i)uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser governada por pessoas eleitas pela maioria eresponsáveis perante ela, como ocorre com os legisla<strong>do</strong>res e não é o caso<strong>do</strong>s juízes, o que os impe<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar leis; (ii) se um juiz criar uma nova lei aaplicá-la retroativamente ao caso concreto, a parte per<strong>de</strong><strong>do</strong>ra será punidapor ter viola<strong>do</strong> um novo <strong>de</strong>ver, cria<strong>do</strong> pelo juiz após o fato. Para Dworkin,essas duas objeções são muito fortes se oferecidas contra <strong>de</strong>cisões judiciaisgeradas por políticas. Não constituem objeção a <strong>de</strong>cisões geradaspor princípio. Isso porque, quanto à alegada falta <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s juízes,os argumentos <strong>de</strong> princípios não se fundamentam em pressupostossobre os interesses e necessida<strong>de</strong>s da comunida<strong>de</strong>; a objeção quanto àvedação <strong>de</strong> originalida<strong>de</strong> judicial também não tem força contra as <strong>de</strong>cisõesque aplicam princípios, baseadas no conjunto normativo existente enão cria<strong>do</strong>s judicialmente.O referi<strong>do</strong> jurisfilósofo critica a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o direito costumeiroreduziria a área <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r discricionário <strong>de</strong> um juiz, mas não eliminariainteiramente essa área. Para ele, essa tese é insatisfatória por <strong>do</strong>is motivos:(i) não elucida se alguma moralida<strong>de</strong> acha-se assentada no conjunto26 Ibi<strong>de</strong>m, p. 129.27 Ibi<strong>de</strong>m, p. 131-132.136R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões proferidas por outros juízes no passa<strong>do</strong>; e (ii) os juízes não<strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m os casos difíceis em duas etapas, avalian<strong>do</strong> primeiramente os limitesdas restrições institucionais para, só <strong>de</strong>pois, resolver as coisas a seumo<strong>do</strong>. Para Dworkin a tese <strong>do</strong>s direitos oferece resposta melhor e menosmetafórica para a questão da interação entre a moralida<strong>de</strong> pessoal (<strong>do</strong>juiz) e a moralida<strong>de</strong> institucional (prece<strong>de</strong>ntes), in verbis:A tese <strong>do</strong>s direitos, segun<strong>do</strong> a qual as <strong>de</strong>cisões judiciais tornamefetivos os direitos políticos existentes, sugere uma explicaçãomais satisfatória <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong>ssas duas exigências.Se essa tese é válida, a história institucional age nãocomo uma restrição <strong>do</strong> juízo político <strong>do</strong>s juízes, mas como umcomponente <strong>de</strong> tal juízo, pois a história institucional faz parte<strong>do</strong> pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> que qualquer juízo plausível sobre os direitos<strong>de</strong> um indivíduo <strong>de</strong>ve levar em consi<strong>de</strong>ração. (...) Dessemo<strong>do</strong>, <strong>de</strong>saparece a alegada tensão entre originalida<strong>de</strong> judiciale história institucional: os juízes <strong>de</strong>vem fazer novos julgamentossobre os direitos das partes que a eles se apresentam,mas esses direitos políticos antes refletem as <strong>de</strong>cisõespolíticas tomadas no passa<strong>do</strong> <strong>do</strong> que a elas se opõe. Quan<strong>do</strong>um juiz opta entre a regra estabelecida por um prece<strong>de</strong>ntee uma nova regra que se consi<strong>de</strong>ra mais justa, ele não estáfazen<strong>do</strong> uma escolha entre a história e a justiça. Em vez disso,faz um julgamento que requer uma certa conciliação entreconsi<strong>de</strong>rações que em geral se combinam em qualquer cálculo<strong>de</strong> direitos políticos, mas que aqui competem uma coma outra. (...) Portanto, a tese <strong>do</strong>s direitos oferece uma explicaçãomais satisfatória a respeito <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como os juízes utilizamo prece<strong>de</strong>nte nos casos difíceis, uma explicação melhor<strong>do</strong> que a oferecida por qualquer teoria que atribua um lugarmais proeminente à política. 28Logo a seguir, Dworkin afirma que os juízes se sujeitam, assim comoqualquer autorida<strong>de</strong> política, ao princípio da responsabilida<strong>de</strong> política.Isso implica no <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> justificação da sua <strong>de</strong>cisão particular, através <strong>de</strong>um <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> coerência na forma <strong>de</strong> uma “consistência articulada”. 2928 Ibi<strong>de</strong>m, p. 136.29 Ibi<strong>de</strong>m, p. 138.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 137


Dworkin irá tentar <strong>de</strong>finir direitos institucionais a partir <strong>de</strong> umaanalogia com o jogo <strong>de</strong> xadrez. Para ele, os direitos institucionais po<strong>de</strong>mser encontra<strong>do</strong>s em vários tipos <strong>de</strong> instituições e, assim como um joga<strong>do</strong>r<strong>de</strong> xadrez tem um direito enxadrístico <strong>de</strong> ganhar um ponto em um torneiosempre que <strong>de</strong>r um xeque-mate em seu adversário, em uma <strong>de</strong>mocraciaum cidadão tem o direito legislativo <strong>de</strong> ver cumpridas as leis que protegemsua liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressão. O pensa<strong>do</strong>r norte-americano aprofundaessa i<strong>de</strong>ia e a usa para reafirmar sua crítica à tese positivista da discricionarieda<strong>de</strong>judicial, conforme abaixo transcrito:Temos, então, no caso <strong>do</strong> árbitro da partida <strong>de</strong> xadrez, umexemplo <strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong> cujas <strong>de</strong>cisões sobre os direitosinstitucionais são consi<strong>de</strong>radas como regidas por restriçõesinstitucionais, mesmo quan<strong>do</strong> a força <strong>de</strong> tais restrições nãofor clara. Não achamos que ele seja livre para legislar, <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> intersticial, em um contexto <strong>de</strong> “textura aberta” <strong>de</strong> regrasimprecisas. Se uma interpretação da regra que prevê aaplicação <strong>de</strong> uma penalida<strong>de</strong> protege a natureza <strong>do</strong> jogo ese uma outra não, os participantes têm um direito à primeirainterpretação. Po<strong>de</strong>mos encontrar, nesse caso relativamentesimples, alguma característica geral <strong>do</strong>s direitos institucionaisnos casos difíceis, que será relevante para a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>um juiz em um caso jurídico difícil. 30Conclui Dworkin que as partes têm direito ao melhor juízo <strong>do</strong> magistra<strong>do</strong>sobre a verda<strong>de</strong>ira natureza <strong>de</strong> seus direitos, ainda que as regrasnão sejam exaustivas e suficientemente claras, tratan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> uma afirmaçãosobre as responsabilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s julga<strong>do</strong>res e das partes. 31Enfatiza Dworkin a importância <strong>de</strong> <strong>do</strong>is conceitos: o <strong>de</strong> intenção oupropósito <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada lei e o <strong>de</strong> princípios implícitos às regraspositivas <strong>do</strong> direito ou que neles estão inscritos. Afirma que, juntos, essesconceitos <strong>de</strong>finem os direitos jurídicos como uma função <strong>do</strong>s direitospolíticos. Partin<strong>do</strong> <strong>de</strong> tais conceitos, Dworkin irá inventar seu famoso juizfilósofo, in litteris:Po<strong>de</strong>mos, portanto, examinar <strong>de</strong> que mo<strong>do</strong> um juiz filósofopo<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>senvolver, nos casos apropria<strong>do</strong>s, teorias sobre30 Ibi<strong>de</strong>m, p. 160.31 Ibi<strong>de</strong>m, p. 163.138R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


aquilo que a intenção legislativa e os princípios jurídicosrequerem. Descobriremos que ele formula essas teorias damesma maneira que um árbitro filosófico construiria ascaracterísticas <strong>de</strong> um jogo. Para esse fim, eu inventei umjurista <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong>, sabe<strong>do</strong>ria, paciência e sagacida<strong>de</strong>sobre-humanas, a quem chamarei <strong>de</strong> Hércules. Eu suponhoque Hércules seja juiz <strong>de</strong> alguma jurisdição norte-americanarepresentativa. Consi<strong>de</strong>ro que ele aceita as principais regrasnão controversas que constituem e regem o direito em suajurisdição. Em outras palavras, ele aceita que as leis têm opo<strong>de</strong>r geral <strong>de</strong> criar e extinguir direitos jurídicos e que os juízestêm o <strong>de</strong>ver geral <strong>de</strong> seguir as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong> seu tribunal ou<strong>do</strong>s tribunais superiores cujo fundamento racional (rationale),como dizem os juristas, aplica-se ao caso em juízo. 32Dworkin irá sustentar que Hércules, o juiz <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> sobrehumanasque ele criou, <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>senvolver uma teoria da Constituição,procuran<strong>do</strong> enten<strong>de</strong>r as regras que ela contém, as interpretações anteriores,e a filosofia política que embasa os direitos ali dispostos. Além disso,Hércules procurará a interpretação que vincula <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais satisfatórioo disposto pelo Legislativo a partir das leis promulgadas e suas responsabilida<strong>de</strong>scomo juiz. Se perguntará qual argumento <strong>de</strong> princípio e <strong>de</strong> políticaconvenceria o Po<strong>de</strong>r Legislativo a promulgar a lei sob estu<strong>do</strong>. Hérculestambém utilizará uma teoria política para interpretar a lei, para <strong>de</strong>scobriro seu fim.Dworkin <strong>de</strong>senvolve, ainda, o passo seguinte na busca <strong>de</strong> Hérculespela melhor resposta ao caso concreto, consistente na análise <strong>do</strong>s prece<strong>de</strong>ntes,especialmente quan<strong>do</strong> o problema a ele submeti<strong>do</strong> não sejaregula<strong>do</strong> por nenhuma lei. Ao analisar os prece<strong>de</strong>ntes, Hércules levará emconta os argumentos <strong>de</strong> princípio – e não <strong>de</strong> política – que o embasaram.Refere a um da<strong>do</strong> que <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por Hércules: a força gravitacional<strong>do</strong>s prece<strong>de</strong>ntes:Não obstante, os juízes parecem concordar que as <strong>de</strong>cisõesanteriores realmente contribuem na formulação <strong>de</strong> regrasnovas e controvertidas <strong>de</strong> uma maneira distinta <strong>do</strong> que nocaso da interpretação. Eles aceitam, por unanimida<strong>de</strong>, que32 Ibi<strong>de</strong>m, p. 165.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 139


as <strong>de</strong>cisões anteriores têm força gravitacional, mesmo quan<strong>do</strong>divergem sobre o quê é essa força. É muito comum que olegisla<strong>do</strong>r se preocupe apenas com questões fundamentais<strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> ou <strong>de</strong> política fundamental ao <strong>de</strong>cidir comovai votar alguma questão específica. Ele não precisa mostrarque seu voto é coerente com os votos <strong>de</strong> seus colegas <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r legislativo, ou com os <strong>de</strong> legislaturas passadas. Umjuiz, porém, só muito raramente irá mostrar este tipo <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência.Tentará, sempre, associar a justificação que elefornece para uma <strong>de</strong>cisão original às <strong>de</strong>cisões que outrosjuízes ou funcionários tomaram no passa<strong>do</strong>. 33A força gravitacional <strong>de</strong> um prece<strong>de</strong>nte, para Dworkin, <strong>de</strong>ve repousarna equida<strong>de</strong>: os casos semelhantes <strong>de</strong>vem ser trata<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mesmomo<strong>do</strong>. Sustenta que, para <strong>de</strong>finir a força gravitacional <strong>de</strong> um prece<strong>de</strong>nte,Hércules só levará em consi<strong>de</strong>ração os argumentos <strong>de</strong> princípio que justificamesse prece<strong>de</strong>nte. Essas i<strong>de</strong>ias estão bem sintetizadas no trechoabaixo transcrito:Hércules concluirá que sua <strong>do</strong>utrina da equida<strong>de</strong> oferece aúnica explicação a<strong>de</strong>quada da prática <strong>do</strong> prece<strong>de</strong>nte em suatotalida<strong>de</strong>. Extrairá algumas outras conclusões sobre suaspróprias responsabilida<strong>de</strong>s quan<strong>do</strong> da <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> casos difíceis.A mais importante <strong>de</strong>las <strong>de</strong>termina que ele <strong>de</strong>ve limitara força gravitacional das <strong>de</strong>cisões anteriores à extensão <strong>do</strong>sargumentos <strong>de</strong> princípio necessários para justificar tais <strong>de</strong>cisões.Se se consi<strong>de</strong>rasse que uma <strong>de</strong>cisão anterior estivessetotalmente justificada por algum argumento <strong>de</strong> política, elanão teria força gravitacional alguma. 34Assim, Hércules construirá uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> princípios que fundamentamo direito costumeiro, a partir das justificações dadas nas <strong>de</strong>cisõespretéritas. Esses princípios <strong>de</strong>vem ser capazes <strong>de</strong> justificar <strong>de</strong> maneira coerentepor que <strong>de</strong>terminadas <strong>de</strong>cisões foram tomadas. Dworkin irá dizerque o direito po<strong>de</strong> até não ser uma trama inconsútil, mas o <strong>de</strong>mandantetem o direito <strong>de</strong> pedir a Hércules que o trate como se fosse, isto é, comose o or<strong>de</strong>namento fosse como algo inteiriço, sem emendas.33 Ibi<strong>de</strong>m, p. 175.34 Ibi<strong>de</strong>m, p. 177.140R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Mesmo seguin<strong>do</strong> to<strong>do</strong> esse caminho, Hércules sabe da possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> encontrar <strong>de</strong>cisões incoerentes. Por isso precisa também <strong>de</strong> umateoria sobre os erros. Ele construirá a primeira parte <strong>de</strong> sua teoria <strong>do</strong>serros por meio <strong>de</strong> <strong>do</strong>is conjuntos <strong>de</strong> distinções, in verbis:Em primeiro lugar, distinguirá entre, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, a autorida<strong>de</strong>específica <strong>de</strong> qualquer evento institucional, que correspon<strong>de</strong>ao seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> produzir, enquanto ato institucional,exatamente aquelas consequências institucionais que <strong>de</strong>screvee, por outro la<strong>do</strong>, sua força gravitacional. Se Hérculesclassificar algum evento como erro, ele não negará suaautorida<strong>de</strong> específica, mas estará negan<strong>do</strong> sua força gravitacional,e não po<strong>de</strong> então, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> consistente, apelarpara essa força em outros argumentos. Ele também distinguiráentre erros enraiza<strong>do</strong>s e erros passíveis <strong>de</strong> correção;os primeiros são aqueles cuja autorida<strong>de</strong> específica acha-seestabelecida <strong>de</strong> tal maneira que ela sobrevive à perda <strong>de</strong>sua força gravitacional; os segun<strong>do</strong>s são aqueles cuja autorida<strong>de</strong>específica <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da força gravitacional, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>que ele não po<strong>de</strong> sobreviver à perda <strong>de</strong>la. 35A segunda parte da sua teoria <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>monstrar que é melhor queexista uma teoria <strong>do</strong>s erros <strong>do</strong> que o seu não reconhecimento. Hérculesutilizará duas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> argumentos para <strong>de</strong>monstrar que uma <strong>de</strong>terminadacorrente jurispru<strong>de</strong>ncial está errada. Irá se valer <strong>de</strong> argumentos históricosou <strong>de</strong> uma percepção geral da comunida<strong>de</strong>, para mostrar que um<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> princípio que já foi historicamente importante hoje não émais, não exerce força suficiente para gerar uma <strong>de</strong>cisão jurídica. Tambémutilizará argumentos <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> política, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> que tal<strong>de</strong>cisão ou princípio fere a equida<strong>de</strong>. 36Dworkin respon<strong>de</strong> ainda a uma eventual objeção, que ele chama <strong>de</strong>“política”, segun<strong>do</strong> a qual Hércules <strong>de</strong>cidiria com base em suas própriasconvicções e preferências, o que pareceria injusto, contrário à <strong>de</strong>mocracia eofensivo ao princípio geral <strong>de</strong> direito. A esse respeito, assinala Dworkin:Trata-se, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma objeção ao fato <strong>de</strong> ele (e aquiele se refere ao juiz Hércules) confiar na soli<strong>de</strong>z <strong>de</strong> algumas35 Ibi<strong>de</strong>m, p. 189.36 Ibi<strong>de</strong>m, p. 192.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 141


<strong>de</strong> suas convicções; esta objeção sustenta que ele <strong>de</strong>veacatar certos juízos emiti<strong>do</strong>s por outros ainda que, em suaopinião, tais juízos estejam erra<strong>do</strong>s. É difícil, contu<strong>do</strong>, verquais <strong>de</strong> seus juízos a objeção supõe que ele <strong>de</strong>va submeteraos outros. Não teríamos este tipo <strong>de</strong> problema se Hérculestivesse aceito, em vez <strong>de</strong> recusar, uma teoria corrente da <strong>de</strong>cisãojudicial. 37Aqui, se refere à tese positivista segun<strong>do</strong> a qual os juízes <strong>de</strong>vemprimeiro procurar a resposta no direito explícito e, se o mesmo não solucionaro caso, teria o juiz po<strong>de</strong>r discricionário para <strong>de</strong>cidi-los livremente.Para ilustrar este tipo <strong>de</strong> pensamento, Dworkin cria outro juiz, a que eledá o nome <strong>de</strong> Herbert. A diferença entre o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> porHerbert (juiz positivista) e por Hércules (juiz que a<strong>do</strong>ta a tese <strong>do</strong>s direitos)é tratada pelo pensa<strong>do</strong>r norte-americano da seguinte maneira:Em to<strong>do</strong> caso, porém, estes argumentos que parecem feitossob medida para Herbert, causam perplexida<strong>de</strong> enquanto argumentoscontra Hércules. Hércules não encontra, primeiro,os limites <strong>do</strong> direito, para só então mobilizar suas própriasconvicções políticas <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que complemente o que o direitoexige. Utiliza seu próprio juízo para <strong>de</strong>terminar que osdireitos têm as partes que a ele se apresentam. Quan<strong>do</strong> essejuízo é emiti<strong>do</strong>, nada resta que se possa submeter a suas convicçõesou à opinião pública.[...]Esses casos hipóteticos <strong>de</strong>monstram que a objeção concebidacontra Herbert tem muito pouco valor enquanto objeçãocontra Hércules. A teoria da <strong>de</strong>cisão judicial <strong>de</strong> Hércules nãoconfigura, em momento algum, nenhuma escolha entre suaspróprias convicções políticas e aquelas que ele consi<strong>de</strong>racomo as convicções políticas <strong>do</strong> conjunto da comunida<strong>de</strong>. Aocontrário, sua teoria i<strong>de</strong>ntifica uma concepção particular <strong>de</strong>moralida<strong>de</strong> comunitária como um fator <strong>de</strong>cisivo para os problemasjurídicos; essa concepção sustenta que a moralida<strong>de</strong>comunitária é a moralida<strong>de</strong> política que as leis e as instituiçõesda comunida<strong>de</strong> pressupõem. Ele <strong>de</strong>ve, por certo, base-37 Ibi<strong>de</strong>m, p. 194.142R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


4. CONCLUSÃOar-se em seu próprio juízo para <strong>de</strong>terminar que princípios <strong>de</strong>moralida<strong>de</strong> são estes, mas essa forma <strong>de</strong> apoio é a segundadaquelas que distinguimos, uma forma que é inevitável emqualquer nível. 38O positivismo jurídico procurou carrear ao Direito máxima objetivida<strong>de</strong>científica, equipan<strong>do</strong>-o à Lei e promoven<strong>do</strong> o seu afastamentoda filosofia e <strong>de</strong> novas reflexões, ten<strong>do</strong> exerci<strong>do</strong> forte influência sobre opensamento jurídico da primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XX, principalmente apartir da edição da teoria pura <strong>do</strong> direito <strong>de</strong> Hans Kelsen e <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong>Direito <strong>de</strong> Herbert Hart.Ambos os pensa<strong>do</strong>res conferiam ao magistra<strong>do</strong> ampla margem <strong>de</strong>liberda<strong>de</strong> para <strong>de</strong>cidir os casos concretos: pela perspectiva kelseniana, avalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão judicial <strong>de</strong>corre apenas <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> proferidapor quem <strong>de</strong>tinha competência segun<strong>do</strong> o or<strong>de</strong>namento jurídicoe correspon<strong>de</strong> a um ato político <strong>do</strong> juiz, alheio ao campo científico <strong>do</strong>Direito e pertencente ao mun<strong>do</strong> da prática jurídica; pelo ângulo da teoriaanalítica hartiana, o or<strong>de</strong>namento jurídico é lacunoso, e os juízes dispõem<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r para criar o Direito, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser reconheci<strong>do</strong> o caráter criativo econstrutivo da ativida<strong>de</strong> jurisdicional ante os chama<strong>do</strong>s “casos difíceis”, erepudiada a tese da função meramente <strong>de</strong>clarativa da jurisdição.O ocaso <strong>do</strong> positivismo jurídico é associa<strong>do</strong> à <strong>de</strong>rrota <strong>do</strong>s regimesautoritários (fascismo e nazismo), bem como às <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong>s praticadasna 2 a Guerra Mundial sob o amparo da legalida<strong>de</strong> formal. Após essemomento histórico, as reflexões sobre eticida<strong>de</strong> e a incidência <strong>do</strong>s valorese princípios passam a ocupar com maior ênfase o pensamento jurídico,abrin<strong>do</strong>-se espaço para novas reflexões no campo <strong>do</strong> Direito, em que seincluem a atribuição <strong>de</strong> normativida<strong>de</strong> aos princípios e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> suarelação com os valores e regras.Ainda que não possua gran<strong>de</strong> valor científico, ten<strong>do</strong> em vista seualto grau <strong>de</strong> generalida<strong>de</strong>, a expressão “pós-positivismo” ou “neopositivismo”preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>signar os mo<strong>de</strong>los que representam uma ruptura como positivismo jurídico, principalmente no que se refere à rígida separaçãoentre o Direito e a Moral e a Política.38 Ibi<strong>de</strong>m, p. 196-197.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011 143


Dentre as teorias críticas ao positivismo jurídico, <strong>de</strong>stacamosalguns aspectos <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Ronald Dworkin quanto à aplicação <strong>do</strong>direito. Ao sustentar, por exemplo, que as <strong>de</strong>cisões judiciais não <strong>de</strong>vem seamparar em argumentos <strong>de</strong> política, mas <strong>de</strong> princípios, e que, mesmo noscasos difíceis, o juiz <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>scobrir quais são os direitos das partes e nãocriar novos direitos, o jurisfilósofo norte-americano marca sua distinçãoteórica com o positivismo jurídico ao elaborar uma proposta <strong>de</strong> superaçãodas fórmulas positivistas a respeito <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> julga<strong>do</strong>r na teoria <strong>do</strong>Direito.144R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 125-144, out.-<strong>de</strong>z. 2011


1. INTRODUÇÃOO InadimplementoAntecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Contratono Direito BrasileiroLuis Tomás Alves <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>Advoga<strong>do</strong> no RJ. Pós-Graduan<strong>do</strong> em Direito Empresarialna FGV.Po<strong>de</strong>-se dizer que as obrigações são tidas como “vínculos <strong>de</strong> curtaduração” 1 , pois nascem já com o intuito <strong>de</strong> se extinguirem pelo cumprimento.Essa característica transitória é confirmada pelo fato <strong>de</strong> que, mesmoquan<strong>do</strong> não caminham para o almeja<strong>do</strong> cumprimento, ainda assim seextinguirão, embora pelas vias transversas <strong>do</strong> inadimplemento. Enten<strong>de</strong>-se,assim, que: “O cumprimento da obrigação é a regra” e “o inadimplemento,a exceção” 2 .De acor<strong>do</strong> com AGOSTINHO ALVIM 3 , vista pela ótica <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, afigura <strong>do</strong> inadimplemento po<strong>de</strong> traduzir-se em inadimplemento absolutoou inadimplemento-mora. O primeiro ocorre quan<strong>do</strong> a obrigação não foicumprida, nem mais po<strong>de</strong>rá vir a ser, não subsistin<strong>do</strong> para o cre<strong>do</strong>r a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> receber a prestação (ou, então, nos casos em que, ainda quepossível, a prestação se torna inútil ao cre<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o dispostono art. 395, parágrafo único, <strong>do</strong> Código Civil 4 ); o inadimplemento-mora,ocorre quan<strong>do</strong> a obrigação não foi cumprida no lugar, no tempo ou na formapactuada, subsistin<strong>do</strong>, porém, a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> seu cumprimento.O inadimplemento antecipa<strong>do</strong> é figura <strong>de</strong> natureza jurídica controversa,cujas feições, por vezes, a aproximam <strong>do</strong> inadimplemento absoluto;por outras, a relacionam com a mora. Por outro la<strong>do</strong>, alguns autoressustentam que ele não se i<strong>de</strong>ntifica com nenhuma <strong>de</strong>ssas figuras, consti-1 ALMEIDA COSTA, Mário Júlio. Direito das Obrigações, Coimbra, Coimbra, 2000, p. 915; No entanto, o próprio autoraceita exceções a essa afirmativa, como é o caso, por exemplo, das obrigações <strong>de</strong> trato sucessivo.2 ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações e suas conseqüências, 5ª ed., Saraiva, São Paulo, 1980, p.6.3 Op. cit., p. 7.4 “Parágrafo único. Se a prestação, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à mora, se tornar inútil ao cre<strong>do</strong>r, este po<strong>de</strong>rá enjeitá-la, e exigir a satisfaçãodas perdas e danos.”R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 145


tuin<strong>do</strong>-se como instituto jurídico autônomo, que não se caracteriza pelaquebra da obrigação principal, e sim pelo <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>vereslaterais 5 — que a <strong>do</strong>utrina chama <strong>de</strong> violação positiva <strong>do</strong> contrato 6 .O instituto é também conheci<strong>do</strong>, em terminologia mais precisa,como “inadimplemento anterior ao termo” 7 . No entanto, para melhorcompreen<strong>de</strong>r essa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ruptura antecipada <strong>do</strong> contrato – originária<strong>do</strong> or<strong>de</strong>namento britânico e conhecida como “antecipatory breachof contract” 8 –, é preciso que se compreenda o verda<strong>de</strong>iro significa<strong>do</strong> <strong>de</strong>“termo” <strong>do</strong> contrato.Segun<strong>do</strong> ARAKEN DE ASSIS, o termo nada mais seria <strong>do</strong> que o momentono qual “o crédito passa a <strong>do</strong>tar-se <strong>de</strong> pretensão, permitin<strong>do</strong> aocre<strong>do</strong>r exigi-lo” 9 . Assim, parte-se da noção <strong>de</strong> que as obrigações são marcadaspor um lapso temporal e pela existência <strong>de</strong> uma época propícia aoseu cumprimento.Não obstante, muito embora as obrigações estejam normalmentesubordinadas a esse termo, em <strong>de</strong>terminadas situações específicas é possívelconsi<strong>de</strong>rar como antecipadamente inadimplida a obrigação <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.De acor<strong>do</strong> com a <strong>do</strong>utrina, duas seriam as principais hipóteses caracteriza<strong>do</strong>rasda referida antecipação, quais sejam: “(i) quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>rmanifesta a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> não adimplir [também chamada <strong>de</strong> repúdio ou <strong>de</strong>recusa expressa]; e (ii) quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r pratica atos que tornam seguramenteimpossível o adimplemento no momento contrata<strong>do</strong>” 10 . Ambas assituações serão estudadas ao longo <strong>de</strong>ste trabalho.No or<strong>de</strong>namento jurídico pátrio, não existe previsão expressa parao inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que seu reconhecimento <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>não somente <strong>de</strong> uma interpretação extensiva da lei, mas também5 MARTINS, Raphael Manhães, "Inadimplemento antecipa<strong>do</strong>: perspectiva para sua aplicação no direito brasileiro" InRevista <strong>de</strong> Direito Priva<strong>do</strong>, Ano 8., n. 30, abr.-jun./2007, Revista <strong>do</strong>s Tribunais, São Paulo, 2007, p. 237; SAVI, Sérgio,"Inadimplemento das obrigações, mora e perdas e danos" In TEPEDINO, Gustavo (coord.), Obrigações: estu<strong>do</strong>s naperspectiva civil-constitucional, Renovar, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2005, p. 476.6 SILVA, Jorge Cesa Ferreira da. A boa-fé e a violação positiva <strong>do</strong> contrato, Renovar, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2007, p. 2687 TERRA, Aline <strong>de</strong> M. Valver<strong>de</strong>. Inadimplemento Anterior ao Termo, Renovar, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2010, p. 122.8 DAVID, René, Les Contrats en Droit Anglais, LGDJ, Paris, 1973, p. 373-374; TREITEL, G. H., Remedies for breach ofcontract: a comparative account, Claren<strong>do</strong>n Press, Oxford, 1992, p. 379-380.9 Resolução <strong>do</strong> Contrato por Inadimplemento. 4ª ed. Revista <strong>do</strong>s Tribunais, São Paulo, 2004, p. 106.10 MOSCO, Luigi. La risoluzione <strong>de</strong>l contratto per ina<strong>de</strong>mpimento. Eugenio Jovene, Napoli, 1950, p. 35. Traduçãolivre. Trecho Original: “Vi sono cioè due casi in cui il creditore di una prestazione legata corrispettivamente conun’altra, può agire in risoluzione prima ancora che sia scaduto il termine; ciò significa che in quei due casi ilcomportamento <strong>de</strong>l <strong>de</strong>bitore equivale ad ina<strong>de</strong>mpimento, sebbene non sia ancora scaduto il termine. I due casi sihanno: 1) quan<strong>do</strong> il <strong>de</strong>bitore manifesti la volontà di non a<strong>de</strong>mpiere; 2) quan<strong>do</strong> il <strong>de</strong>bitore compia un atto che ren<strong>de</strong>sicuramente impossibile l’a<strong>de</strong>mpimento al momento <strong>de</strong>lla sca<strong>de</strong>nza.”146R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


<strong>de</strong> uma interpretação sistemática <strong>do</strong>s contratos, levan<strong>do</strong>-se menos emconta o teor estrito das cláusulas contratuais, e dan<strong>do</strong>-se mais importânciaao comportamento das partes, sempre nortea<strong>do</strong> pelo princípio daboa‐fé objetiva e da confiança entre os contratantes.O instituto distancia-se, portanto, da visão tradicional e estática darelação obrigacional — voltada única e exclusivamente para o cumprimentoe para o advento <strong>do</strong> termo — e se insere em uma visão mais dinâmicadas obrigações, on<strong>de</strong> a relação obrigacional é vista como um “sistema <strong>de</strong>processos”, composto por um “conjunto <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s necessárias à satisfação<strong>do</strong> interesse <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r” 11 .2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO INSTITUTO2.1 Inspiração: The duty to mitigate the losses <strong>do</strong>ctrineAntes <strong>de</strong> analisar a inserção <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> no or<strong>de</strong>namentojurídico brasileiro, é preciso remontar a uma teoria que nãoapenas o influenciou, mas que serviu como base para a sua criação nosistema da Common Law. Trata-se da <strong>do</strong>utrina inglesa da “mitigation oflosses”, inspirada em i<strong>de</strong>ia que se apresenta como ramificação, ou mesmo,“figura correlata” 12 ao princípio da boa-fé objetiva.De acor<strong>do</strong> com os juristas ingleses, em razão da boa-fé, o cre<strong>do</strong>rque se sentir lesa<strong>do</strong> por algum comportamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r terá o <strong>de</strong>verlegal <strong>de</strong> agir <strong>de</strong> maneira a não agravar a sua perda ou o dano provoca<strong>do</strong>pela contraparte. Segun<strong>do</strong> ANELISE BECKER 13 , tal <strong>do</strong>utrina <strong>de</strong>terminou apossibilida<strong>de</strong> da quebra antecipada <strong>do</strong> contrato, pois, quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>rtiver atua<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma a comprometer a preservação <strong>do</strong> contrato, o cre<strong>do</strong>rnão apenas po<strong>de</strong>rá, como também terá o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> evitar o prolongamento<strong>do</strong>s danos — <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>, inclusive, invocar a quebra <strong>do</strong> contrato.Para contextualizar a teoria, reproduza-se o seguinte exemplo,trazi<strong>do</strong> pela <strong>do</strong>utrina 14 : Determinada companhia <strong>de</strong> aviação teria encomenda<strong>do</strong>três aeronaves para serem entregues em <strong>do</strong>is anos conta<strong>do</strong>s dacontratação. Passa<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is meses, o fabricante <strong>de</strong> aviões <strong>de</strong>clara expres-11 COUTO E SILVA, Clóvis V. <strong>do</strong>. A Obrigação como Processo. FGV, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2006, p. 10.12 PINTO, Cristiano Vieira Sobral, Direito Civil Sistematiza<strong>do</strong>, 2ª Edição, Forense, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2011, p. 318.13 "Inadimplemento Antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Contrato" in Revista <strong>de</strong> Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, n.º 12 - Outubro/Dezembro,1994, p. 74.14 LABOURIAU, Miguel, "Algumas consi<strong>de</strong>rações sobre o inadimplemento antecipa<strong>do</strong> no direito brasileiro" In RevistaTrimestral <strong>de</strong> Direito Civil, v. 42, abril/junho 2010, Padma, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, p. 114-115.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 147


samente não po<strong>de</strong>r realizar a prestação. Nesse caso, é plenamente justificávelque a companhia busque os meios resolutórios em tempo hábil eextinga o contrato com base no inadimplemento antecipa<strong>do</strong>. Isso porque,caso a companhia permaneça inerte e aguar<strong>de</strong> até o advento <strong>do</strong> termopara tomar alguma providência, os danos que lhe serão causa<strong>do</strong>s alcançarãoproporções muito maiores, e, quem sabe, irreparáveis a esse tempo.Diante disso, caso o cre<strong>do</strong>r venha a atuar <strong>de</strong> maneira negligentee <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> tomar as medidas cabíveis à mitigação das perdas, o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>rfaltoso po<strong>de</strong>rá pedir a redução das perdas e <strong>do</strong>s danos, em proporçãoidêntica ao montante que po<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> diminuí<strong>do</strong>.No entanto, há quem critique esse entendimento, uma vez que,mesmo em tal hipótese, ainda subsistiria para o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> retratar o seu repúdio à realização da prestação. Afirma-se que, em razãoda continuida<strong>de</strong> na aceitação <strong>do</strong> cumprimento pelo cre<strong>do</strong>r, e tambémpelo aumento <strong>do</strong>s danos no transcorrer <strong>do</strong> tempo, haveria um estímuloao <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r para se retratar 15 .Apesar das críticas, o fato é que, em 1980, com a ratificação da Convenção<strong>de</strong> Viena Sobre Venda Internacional <strong>de</strong> Merca<strong>do</strong>ria, a <strong>do</strong>utrina da“mitigation of losses” veio a ser positivada em diversos países <strong>de</strong> Civil Law(assim como o próprio instituto da “anticipatory breach of contract”, queganhou um dispositivo específico na Convenção). Assim ficou estabeleci<strong>do</strong>no artigo 77 da Convenção:“A parte que invoca a violação <strong>do</strong> contrato <strong>de</strong>ve tomar asmedidas razoáveis, face às circunstâncias, para limitar a perda,aí compreendi<strong>do</strong> o lucro cessante, resultante da violaçãocontratual. Se não o fizer, a parte faltosa po<strong>de</strong> pedir uma reduçãoda in<strong>de</strong>nização por perdas e danos, no montante daperda que <strong>de</strong>veria ter si<strong>do</strong> evitada.” 16Apesar <strong>de</strong> a <strong>do</strong>utrina da mitigação das perdas não ter si<strong>do</strong> traduzidaem norma expressa no nosso or<strong>de</strong>namento, ela passou a ser vistacomo <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> princípio da boa-fé objetiva, conforme se extrai <strong>do</strong>Enuncia<strong>do</strong> n.º 169 da III Jornada <strong>de</strong> Direito Civil,: “O princípio da boa-féobjetiva <strong>de</strong>ve levar o cre<strong>do</strong>r a evitar o agravamento <strong>do</strong> próprio prejuízo”.15 WASHOFSKY, Leonard. A., "Contracts – Anticipatory Breach – Specific Performance" in Tulane Law Review, v. XXXIII,1959, p. 233.16 Acessa<strong>do</strong> em 27.01.11 às 17:20.148R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


2.2 O caso Hochster v. De La TourAnalisada a base estrutural <strong>do</strong> instituto, importante que se remetaaos julga<strong>do</strong>s que lhe <strong>de</strong>ram origem. Sen<strong>do</strong> assim, impõe-se remontar aocaso Hochster v. De la Tour, pois, mesmo não ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> o primeiro casoa versar sobre a antecipação <strong>do</strong> termo contratual, ele é ti<strong>do</strong> como leadingcase da matéria 17 , e seus reflexos são responsáveis pela construção dafigura da “anticipatory breach of contract”(ou “anticipatory repudiation”)no sistema <strong>de</strong> Common Law.Julga<strong>do</strong> em 1853 pelo Queen’s Bench da Inglaterra, o caso versousobre um contrato <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços, mediante o qual Hochsterteria si<strong>do</strong> contrata<strong>do</strong> mensageiro <strong>de</strong> De la Tour para acompanhá-lo emuma viagem que se iniciaria em 1º <strong>de</strong> junho daquele ano. Não obstante,antes mesmo <strong>do</strong> início da viagem, em 11 <strong>de</strong> maio, o autor recebeu umacomunicação por escrito <strong>do</strong> réu informan<strong>do</strong> que os seus serviços não maisseriam necessários. Mais ainda, foi-lhe comunica<strong>do</strong> que não seria atribuídaqualquer compensação pelo rompimento <strong>do</strong> contrato em questão.Diante disso, em 22 <strong>de</strong> maio – ou seja, 10 dias antes <strong>do</strong> termo inicial<strong>do</strong> contrato – o autor entrou com uma ação, alegan<strong>do</strong>, em síntese, que arecusa expressa <strong>do</strong> réu, por si só, caracterizaria o inadimplemento <strong>do</strong> contrato,não sen<strong>do</strong> necessário aguardar a data <strong>de</strong> execução da obrigação.Por outro la<strong>do</strong>, alegou De la Tour que, caso Hochster não aceitasse o seurepúdio prévio, seria ele obriga<strong>do</strong> a se colocar à sua disposição duranteesse tempo e aguardar até a data <strong>de</strong> execução <strong>do</strong> contrato, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>,inclusive, aceitar outros trabalhos durante esse perío<strong>do</strong>.Em <strong>de</strong>cisão final, o relator <strong>do</strong> caso, Lord Campbell, enten<strong>de</strong>u quenão seria necessário esperar o advento <strong>do</strong> termo contratual para se ajuizara ação e, muito menos, se colocar à disposição da outra parte, recusan<strong>do</strong>qualquer outro serviço, quan<strong>do</strong> já se sabia, <strong>de</strong> antemão, que ocontrato não se realizaria. De acor<strong>do</strong> com o relator, nessa hipótese, nãoseria justo obrigar o autor a consi<strong>de</strong>rar o contrato váli<strong>do</strong>, razão pela quallhe foi conferida a in<strong>de</strong>nização cabível pelo rompimento 18 .Esse julga<strong>do</strong> foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um marco para a teoria <strong>do</strong> inadimplemento,que, naquela época, ainda era muito influenciada pela visãotradicionalista das obrigações, originária <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ROBERT JOSEPH17 ROWLEY, Keith A. A Brief History of Anticipatory Repudiation. Cincinatti Law Review, Cincinatti, 2001, p. 273-275.18 GILSON, Bernard. Inexécution et Résolution en Droit Anglais, LGDJ, Paris, 1969, p. 58-59.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 149


POTHIER 19 - mais tar<strong>de</strong> consagra<strong>do</strong>s no art. 1.146 <strong>do</strong> Código Civil francês20 -, mediante a qual o advento <strong>do</strong> termo constitui e caracteriza a mora,e, quan<strong>do</strong> soma<strong>do</strong> à impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cumprimento, gera a figura <strong>do</strong>inadimplemento absoluto.Des<strong>de</strong> então, muito se ampliou essa noção <strong>de</strong> inadimplemento. Apartir <strong>do</strong> surgimento <strong>de</strong> novas situações jurídicas – tal como a retratadano caso cita<strong>do</strong> –, passou a ser necessária uma nova visão da relação obrigacional.Importante mencionar que, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Hochster v. De la Tour, outrosjulga<strong>do</strong>s também contribuíram <strong>de</strong> maneira substancial para a construção,nos países <strong>do</strong> Common Law, <strong>do</strong> instituto <strong>do</strong> “anticipatory breachof contract”, tais como Frost v. Knight 21 , Equitable Trust Co. v. WesternPacific R. Co. 22 e Tenavision Inc. v. Neuman 23 .2.3 O Código Civil ItalianoO instituto <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> veio a ser positiva<strong>do</strong> empaís integrante <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> Civil Law em 1942, com a entrada em vigor<strong>do</strong> novo Código Civil italiano – o que <strong>de</strong>monstra a influência que os prece<strong>de</strong>ntesanglo-saxões vieram adquirin<strong>do</strong> com o passar <strong>do</strong> tempo. O artigo1.219 <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> diploma passou a prever a constituição automática damora sempre que o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong>clarar por escrito que não irá cumprir aobrigação:“Il <strong>de</strong>bitore è costituito in mora mediante intimazione orichiesta fatta per iscritto (1308; att. 160).19 Oeuvres <strong>de</strong> Pothier, volume I, Chanson, Paris, 1821, p. 192.20 “Art. 1146. Les <strong>do</strong>mmages-intérêts ne sont dus que lorsque le débiteur est en <strong>de</strong>meure <strong>de</strong> remplir son obligation,excepté néanmoins lorsque la chose que le débiteur s’était obligé <strong>de</strong> <strong>do</strong>nner ou <strong>de</strong> faire ne pouvait être <strong>do</strong>nnéeou faite que dans un certain temps qu’il a laissé passer.” FUZIER-HERMAN, Ed. Co<strong>de</strong> Civil Annoté, Tome Troisième,Soufflot, Paris, 1936, p. 242.21 "Inglaterra, 1872", in CHESHIRE, FIFOOT & FURMSTON’S, Law of Contract, 11ª Edição, Butterworths, Lon<strong>do</strong>n,1981, p. 484; Neste julga<strong>do</strong>, foi concedi<strong>do</strong> à Frost perdas e danos, pois Knight - que havia se comprometi<strong>do</strong> a casarsecom ela <strong>de</strong>pois da morte <strong>de</strong> seu pai - ainda durante vida <strong>de</strong> seu pai, <strong>de</strong>clarou que jamais a <strong>de</strong>sposaria. No caso,não foi necessário aguardar a morte <strong>do</strong> pai para conferir a referida in<strong>de</strong>nização.22 "Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, 1917", in AZULAY, Fortunato, Do Inadimplemento Antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Contrato, Brasília/<strong>Rio</strong>, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong>Janeiro, 1977, p. 103; No caso, restou assenta<strong>do</strong> que “a lei [o Uniform Commercial Co<strong>de</strong>] sempre tem disposto que,quan<strong>do</strong> uma parte <strong>de</strong>liberadamente se incapacita ou torna impossível o perfazimento da sua prestação, o seu atoconstitui injúria à outra parte, que fica assim autorizada a propor ação por quebra <strong>do</strong> contrato”.23 "Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, 1978", in FARNSWORTH, E. Allan; YOUNG, William F.; SANGER, Carol. Contracts: cases and materials,6ª ed., Foundation Press, New York, 2001, p. 740; O caso foi importante para <strong>de</strong>finir <strong>de</strong> maneira mais precisaa recusa expressa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, também chamada <strong>de</strong> repúdio: “De mo<strong>do</strong> a constituir um repúdio, a linguagem daparte <strong>de</strong>ve ser suficientemente segura, sen<strong>do</strong> razoavelmente interpretada <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a significar que a parte não querou não po<strong>de</strong> adimplir” (tradução livre).150R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Non è necessaria la costituzione in mora:1) quan<strong>do</strong> il <strong>de</strong>bito <strong>de</strong>riva da fatto illecito (2043 e seguenti);2) quan<strong>do</strong> il <strong>de</strong>bitore ha dichiarato per iscritto di non volereeseguire l’obbligazione;” 24A respeito <strong>de</strong>ssa previsão, explica ALBERTO TRABUCCHI 25 que existiriam,no or<strong>de</strong>namento italiano, <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> mora, a ex re e a ex personae,sen<strong>do</strong> que a principal diferença entre elas residiria nas suas formas <strong>de</strong> constituição.Na primeira <strong>de</strong>las, a mora se caracterizaria pelo advento <strong>do</strong> termoe in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> qualquer ação por parte <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r; já na segunda, queocorre nas obrigações sem termo <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, a mora <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>de</strong> uma intimaçãoou notificação, por escrito, ao <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r. Segun<strong>do</strong> o autor, a hipóteseda recusa expressa acarretaria na mora ex re, justamente porque seria inútilnotificar a quem já <strong>de</strong>clarou claramente não querer cumprir a obrigação.A noção <strong>de</strong> que a referida recusa constitui automaticamente a morase mostrou um enorme avanço para o instituto <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>,pois acabou por consagrar a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o repúdio funcionariacomo uma forma <strong>de</strong> antecipação <strong>do</strong> termo contratual.2.4 O Uniform Commercial Co<strong>de</strong>Mais adiante, em 1952, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, que já possuíam umcrescente número <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes a respeito <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong><strong>do</strong> contrato, positivaram, enfim, a matéria, por meio <strong>do</strong> § 2-610 <strong>do</strong>Uniform Commercial Co<strong>de</strong> – o Código Comercial Americano:“When either party repudiates the contract with respect to aperformance not yet due the loss of which will substantiallyimpair the value of the contract to the other, the aggrievedparty may:(a) for a commercially reasonable time await performance bythe repudiating party; or(b) resort to any remedy for breach (Section 2-703 or Section2-711), even though he has notified the repudiating partythat he would await the latter’s performance and has urgedretraction; and24 Acessa<strong>do</strong> em 27/11/2010 às 17:13.25 Istituzioni di Diritto Civile, 31ª ed., Cedam, Pádua, 1990, p. 519.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 151


(c) in either case suspend his own performance or proceed inaccordance with the provisions of this Article on the seller’sright to i<strong>de</strong>ntify goods to the contract notwithstanding breachor to salvage unfinished goods (Section 2-704).” 26 (grifou-se)Em comentário ao referi<strong>do</strong> dispositivo, BRADFORD STONE 27 explicaque a “anticipatory repudiation” po<strong>de</strong> ser vista (i) como uma comunicaçãoexpressa <strong>de</strong> intenções da parte, ou (ii) como um conjunto <strong>de</strong> ações quetornam o <strong>de</strong>sempenho da obrigação impossível, acarretan<strong>do</strong> uma evi<strong>de</strong>nte<strong>de</strong>terminação em não dar seguimento à obrigação. Segun<strong>do</strong> o autor,na segunda hipótese, é preciso valorar se as atitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r “prejudicam<strong>de</strong> maneira substancial” o valor <strong>do</strong> contrato, acarretan<strong>do</strong> verda<strong>de</strong>irainjustiça para a outra parte.A partir <strong>de</strong>ssa regra, restou consagrada não apenas a noção <strong>de</strong> quea recusa expressa configuraria o inadimplemento, mas também a <strong>de</strong> queo comportamento <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, a partir da assinatura <strong>do</strong> contrato, po<strong>de</strong>riacaracterizar o inadimplemento, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que comprova<strong>do</strong> que suas açõesteriam gera<strong>do</strong> a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cumprimento da obrigação.2.5 A Convenção <strong>de</strong> Viena sobre Compra e Venda InternacionalPor fim, em 1980, com a ratificação da Convenção <strong>de</strong> Viena sobreCompra e Venda Internacional, o instituto <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>começou a penetrar em outros países <strong>do</strong> sistema da Civil Law, tais comoa França e a Argentina, signatários da Convenção. Com efeito, o referi<strong>do</strong>pacto internacional passou a prever em seu art. 72 que:“(1) Se, antes da data <strong>do</strong> cumprimento, for manifesto queuma parte cometerá uma violação fundamental <strong>do</strong> contrato,a outra parte po<strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar a resolução <strong>de</strong>ste.(2) Se dispuser <strong>do</strong> tempo necessário, a parte que preten<strong>de</strong>r<strong>de</strong>clarar a resolução <strong>do</strong> contrato <strong>de</strong>ve notificar a outra parte,em condições razoáveis, para permitir a esta dar garantiassuficientes da boa execução das suas obrigações.26 Acessa<strong>do</strong> em 30/11/2010 às 14:05.27 Uniform Commercial Co<strong>de</strong> in a Nutshell, 2ª ed., West Publishing Co., Minnesota, 1984, p. 84.152R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


(3) As disposições <strong>do</strong> parágrafo anterior não se aplicam se aoutra parte <strong>de</strong>clarou que não executaria as suas obrigações.” 28(grifou-se)Perceba-se que a terceira regra reproduz a noção já positivada noCódigo Civil italiano e nos prece<strong>de</strong>ntes anglo-saxões <strong>de</strong> que a recusaexpressa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r constitui a mora, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> notificação<strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r.Ainda assim, importante frisar que, após a ratificação da Convenção,a própria <strong>do</strong>utrina francesa – fundada em visão extremamente tradicionalistadas obrigações – passou a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>snecessida<strong>de</strong> da constituiçãoda mora ante a recusa expressa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, ten<strong>do</strong> em vista que seria inútila notificação <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r que já <strong>de</strong>clarou a sua recusa. 29Esse breve panorama da evolução da teoria <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong><strong>de</strong>monstra a importância que o instituto veio adquirin<strong>do</strong> com opassar <strong>do</strong> tempo, ganhan<strong>do</strong> força gradativamente e se consagran<strong>do</strong> peranteor<strong>de</strong>namentos jurídicos diversos, inclusive naqueles <strong>de</strong> visão maistradicional.3. ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DO INADIMPLEMENTO ANTECIPADOConforme já menciona<strong>do</strong>, são duas as hipóteses reconhecidas pela<strong>do</strong>utrina como caracteriza<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato,quais sejam: (i) a recusa categórica <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r em executar suaobrigação, manifestada antes <strong>do</strong> nascimento da pretensão e (ii) a conduta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r que torna <strong>de</strong>finitivamente impossível o cumprimento daobrigação. A primeira <strong>de</strong>las significa uma manifestação da contraparte,isto é, uma exteriorização da sua intenção <strong>de</strong> não cumprir o contrato. Jáa segunda mostra-se mais ligada ao comportamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, requeren<strong>do</strong>uma análise das condutas por ele realizadas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a assinatura <strong>do</strong>contrato e até o momento conclusivo <strong>do</strong> inadimplemento – sen<strong>do</strong> este,obviamente, anterior ao termo contratual.Os elementos constitutivos <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> po<strong>de</strong>mser dividi<strong>do</strong>s em objetivo e subjetivo: o elemento objetivo dirá respeitoaos critérios específicos para a configuração da recusa expressa ou <strong>do</strong>28 Acessa<strong>do</strong> em 27/11/2010 às 17:00.29 WIEDERKEHR, Georges. HENRY, Xavier. TISSERAND, Alice. VENANDET, Guy. JACOB, François. Co<strong>de</strong> Civil, 103 a ed.,Dalloz, Paris, 2004, p. 947. “Une mise en <strong>de</strong>meure est inutile quand le débiteur prend l’initiative <strong>de</strong> déclarer à soncréancier qu’il refuse d’exécuter son obligation”.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 153


comportamento conclu<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r; o elemento subjetivo dirá respeitoà culpa da contraparte pelo inadimplemento da obrigação.3.1 Elementos objetivos que caracterizam a recusa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r3.1.1 Declaração Expressa X Declaração TácitaPara a <strong>de</strong>vida configuração <strong>do</strong> repúdio, nada mais óbvio que <strong>de</strong>vaexistir uma manifestação <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> não adimplir o contrato.Mais especificamente, espera-se que haja a exteriorização da suaintenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>scumprir a avença. A dúvida, no entanto, diz respeito àpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar tacitamente <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> o inadimplementopelo <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.Para gran<strong>de</strong> parte da <strong>do</strong>utrina, a recusa <strong>de</strong>ve ocorrer <strong>de</strong> maneiraexpressa, afinal, a manifestação tácita estaria mais ligada, na verda<strong>de</strong>,ao comportamento conclu<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que à sua recusa, propriamentedita. Conforme explica BERNARD GILSON, “a inexecução porantecipação se <strong>de</strong>fine como uma recusa categórica <strong>de</strong> executar que o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>rfaz conhecer antecipadamente” 30 . Da mesma forma, RUY ROSADODE AGUIAR aponta que apenas será possível o inadimplemento antes <strong>do</strong>tempo quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r “faz <strong>de</strong>clarações expressas nesse senti<strong>do</strong>” 31 .Não obstante, há quem <strong>de</strong>fenda o reconhecimento da manifestaçãotácita <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r para a configuração da sua recusa antecipada. É essa aposição a<strong>do</strong>tada por RAPHAEL MANHÃES MARTINS, que, ao conceituar oinadimplemento antecipa<strong>do</strong> por recusa, afirma que: “Esta manifestaçãopo<strong>de</strong> ocorrer tanto <strong>de</strong> forma expressa (…) quanto tácita, através <strong>de</strong> umaconduta que <strong>de</strong>monstre a vonta<strong>de</strong> da parte em não cumprir o avença<strong>do</strong>.” 32No entanto, como po<strong>de</strong> ser visto pela própria explicação <strong>do</strong> autor, trata-se<strong>de</strong> questão meramente conceitual, haja vista que alguns irão consi<strong>de</strong>rar ocomportamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r como recusa tácita e outros enten<strong>de</strong>rão quese trata da segunda hipótese configura<strong>do</strong>ra da quebra antecipada, ligadaà conduta conclu<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.Por fim, importante mencionar que a referida recusa – expressaou tácita – po<strong>de</strong> dar-se tanto pela <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> não cumprimento da30 Inexécution et Résolution en Droit Anglais, LGDJ, Paris, 1969, p. 58 (tradução livre). Trecho original: “58.L’inexécution par anticipation se définit comme um refus d’exécuter catégorique que le débiteur fait connaître àl’avance (…)”31 Extinção <strong>do</strong> Contrato por Incumprimento <strong>do</strong> Deve<strong>do</strong>r - Resolução, 2ª Edição, Ai<strong>de</strong>, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2004, p. 126.32 Op. cit., p. 208.154R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


obrigação total, como pela recusa em cumprir o contrato nos termos e naforma pactuada. 33 Percebe-se, assim, que não há a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que arecusa se dê <strong>de</strong> maneira absoluta, bastan<strong>do</strong> que o repúdio se volte aostermos previstos no contrato.3.1.2 Necessária aceitação <strong>do</strong> Cre<strong>do</strong>r X Ciência <strong>do</strong> Cre<strong>do</strong>rOutra questão acerca <strong>do</strong>s elementos objetivos <strong>do</strong> repúdio diz respeitoà necessida<strong>de</strong> ou não <strong>de</strong> aceitação por parte <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r. Isso porqueexistem <strong>do</strong>is entendimentos <strong>do</strong>utrinários acerca <strong>do</strong> momento em que orepúdio se mostrará, <strong>de</strong> fato, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> eficácia.Há quem entenda que a ciência <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, por si só, garante aprodução <strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong> repúdio, não sen<strong>do</strong> necessária qualquer manifestaçãopositiva da contraparte. De acor<strong>do</strong> com essa noção, a recusaprescin<strong>de</strong> <strong>de</strong> aceitação. É essa, por exemplo, a visão <strong>de</strong>fendida porALINE TERRA, 34 que, ao enquadrar a recusa expressa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r como<strong>de</strong>claração receptícia <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> – ou seja, que possui uma <strong>de</strong>stinaçãoespecífica e, portanto, requer apenas o recebimento pelo <strong>de</strong>stinatáriofinal –, <strong>de</strong>monstra que a ciência <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r se mostra suficiente para aprodução <strong>do</strong>s efeitos <strong>do</strong> repúdio.Diferentemente <strong>de</strong>ssa posição, ANELISE BECKER 35 enten<strong>de</strong> que somentehaverá inadimplemento quan<strong>do</strong> também a contraparte o consi<strong>de</strong>rar.Segun<strong>do</strong> a autora, é plenamente cabível que, caso o cre<strong>do</strong>r assim<strong>de</strong>seje, possa dar como ineficaz a notícia da intenção <strong>de</strong> não adimplir, tornan<strong>do</strong>sem efeito o repúdio e aguardan<strong>do</strong>-se o advento <strong>do</strong> termo contratual.No entanto, a própria autora ressalta que não é permiti<strong>do</strong> ao cre<strong>do</strong>rmanter o contrato unicamente com o propósito <strong>de</strong>, em oposição à recusa,exigir <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r o pagamento <strong>do</strong> preço total da avença. Tratar-se-ia, nessecaso, <strong>de</strong> exercício abusivo <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r. 36 Além disso, po<strong>de</strong>-sedizer que a referida não aceitação pelo cre<strong>do</strong>r iria <strong>de</strong> encontro com a jácitada teoria da mitigação das perdas, pelo que lhe será imputável to<strong>do</strong> odano que conscientemente <strong>de</strong>ixou-se <strong>de</strong> evitar.Sem retirar a importância <strong>do</strong> posicionamento da primeira autora,enten<strong>de</strong>-se que a segunda visão se mostra mais condizente com a dinâ-33 MARTINS, Raphael Manhães, ob. cit., p. 168.34 op. cit. p. 97.35 op. cit. p. 73.36 BECKER, Anelise, Op. cit., p. 74.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 155


mica das relações contratuais, haja vista que, em regra, quem irá invocaro inadimplemento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato será o próprio cre<strong>do</strong>r, sen<strong>do</strong>certo, assim, que a materialização <strong>do</strong> instituto <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá da sua aceitaçãoou não <strong>do</strong> repúdio.3.1.3 Serieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>finitivida<strong>de</strong> da <strong>de</strong>claraçãoMais adiante, para que esteja efetivamente constituída a quebraantecipada <strong>do</strong> contrato, segun<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrina, necessária também a comprovação<strong>de</strong> outros elementos objetivos, tais como a serieda<strong>de</strong> e a <strong>de</strong>finitivida<strong>de</strong>da <strong>de</strong>claração <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r. É esse o posicionamento a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>por ALINE TERRA, que aponta como necessário que a <strong>de</strong>claração seja “séria,<strong>do</strong>tada <strong>de</strong> notável grau <strong>de</strong> certeza e <strong>de</strong>finitivida<strong>de</strong>, bem como livre<strong>de</strong> vícios” 37 . Nesse mesmo senti<strong>do</strong>, RUY ROSADO DE AGUIAR exige “umaabsoluta e inequívoca intenção <strong>de</strong> repúdio ao contrato, <strong>de</strong> forma séria e<strong>de</strong>finitiva” 38 . Segun<strong>do</strong> ele, em razão <strong>de</strong>ssa exigência, a mera dificulda<strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r em cumprir o contrato ou mesmo a impossibilida<strong>de</strong> temporária,não caracterizaria o inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, uma vez que a situaçãocaracteriza<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>ve, obrigatoriamente, gerar um <strong>de</strong>scumprimentoque não po<strong>de</strong> ser evita<strong>do</strong>.Nesse ponto, a <strong>do</strong>utrina não apresenta qualquer tipo <strong>de</strong> divergência;afinal, não há como permitir que manifestações jocosas, incertas oumesmo <strong>de</strong>sprovidas <strong>de</strong> <strong>de</strong>finitivida<strong>de</strong> acarretem a antecipação <strong>do</strong> termocontratual.3.2 Elemento objetivo que caracteriza o comportamento conclu<strong>de</strong>nte<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r3.2.1 Impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong> execução <strong>do</strong> contratoA segunda hipótese configura<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>é aquela na qual o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r se comporta em senti<strong>do</strong> manifestamente contrárioao cumprimento das obrigações contratuais. Nesse caso, analisamseas manifestações tácitas da contraparte, consubstanciadas no conjunto<strong>de</strong> condutas <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r ao longo <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> vigência <strong>do</strong> contrato,as quais <strong>de</strong>verão culminar, <strong>de</strong> maneira conclusiva, na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cumprimento da avença.37 op. cit., p. 161.38 op. cit., p. 128.156R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Com isso, percebe-se que o comportamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve estarvincula<strong>do</strong> a uma impossibilida<strong>de</strong> superveniente <strong>de</strong> se cumprir o pactua<strong>do</strong>,isto é, a conduta da contraparte <strong>de</strong>ve, necessariamente, dar causaao inadimplemento. Desse mo<strong>do</strong>, excluem-se da quebra antecipada, porexemplo, as hipóteses <strong>de</strong> caso fortuito ou força maior, haja vista que, nessescasos, a superveniente impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cumprimento não se vinculaao comportamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, e sim a fatores externos à relaçãoobrigacional.Na esteira da <strong>do</strong>utrina francesa, tem-se que o comportamento <strong>do</strong><strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong>ve ser tal que torne a execução <strong>do</strong> contrato “<strong>de</strong>finitivamenteimpossível” 39 , afinal a ruptura <strong>do</strong> contrato anterior ao termo é medidaexcepcional, que não dá margem para incertezas. Assim, para que a quebraantecipada <strong>do</strong> contrato esteja efetivamente caracterizada, a impossibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> cumprimento das obrigações <strong>de</strong>verá se dar <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>finitivae diretamente ligada ao comportamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.3.3 Elemento subjetivo: a culpa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>rPor fim, para que esteja configura<strong>do</strong> o inadimplemento antecipa<strong>do</strong>– seja na hipótese <strong>de</strong> recusa expressa, seja na <strong>de</strong> comportamento conclu<strong>de</strong>nte<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r –, há <strong>de</strong> se verificar não apenas os elementos objetivosacima elenca<strong>do</strong>s, mas também a existência <strong>do</strong> elemento subjetivo, qualseja, a culpa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.Segun<strong>do</strong> MIGUEL LABOURIAU 40 , o inadimplemento das obrigações,em geral, se mostra intrinsecamente liga<strong>do</strong> à noção <strong>de</strong> culpa na prestação,<strong>de</strong> maneira que a sua caracterização <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá, necessariamente,da imputabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>scumprimento ao <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r. Assim, tem-se que, damesma forma que no inadimplemento pelo advento <strong>do</strong> termo, o inadimplementoantecipa<strong>do</strong> também exigirá que a contraparte tenha agi<strong>do</strong> <strong>de</strong>maneira culposa na configuração das suas hipóteses <strong>de</strong> incidência.Importante ressaltar, portanto, que, <strong>do</strong> mesmo mo<strong>do</strong> que no inadimplementopropriamente dito, a culpa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r analisada <strong>de</strong>ve ser abrangidano seu senti<strong>do</strong> lato, <strong>de</strong> forma a abarcar tanto o <strong>do</strong>lo como a culpastricto sensu (a qual abarcaria as hipóteses <strong>de</strong> imprudência, negligência eimperícia), eis que a ruptura antecipada <strong>do</strong> contrato não foge à regra.39 GILSON, Bernard. Op. cit. p. 57. “L’inexécution par anticipation se définit comme um refus d’exécuter catégoriqueque le débiteur fait connaître à l’avance, ou comme un comportament <strong>de</strong> nature à rendre l’exécution définitivementimpossible.” (tradução livre - grifou-se)40 op. cit., p. 101.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 157


3.4 Hipóteses não-configura<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>Diante <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas situações, é certo que a própria <strong>do</strong>utrinajá se manifestou acerca da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> configuração da quebraantecipada. Passa-se, portanto, a uma análise <strong>de</strong> algumas das referidassituações.3.4.1 O caso fortuito e a força maiorConforme já menciona<strong>do</strong>, nas hipóteses <strong>de</strong> caso fortuito e <strong>de</strong> forçamaior, <strong>de</strong>ixa-se <strong>de</strong> aplicar a teoria <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, hajavista a inexistência <strong>do</strong> seu elemento subjetivo, mais especificamente, daausência <strong>de</strong> culpa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r pelo não cumprimento das obrigações.É assim que se posiciona RAPHAEL MANHÃES MARTINS, o qualafirma que o inadimplemento antecipa<strong>do</strong> não se configurará quan<strong>do</strong> o<strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r estiver “diante <strong>de</strong> caso fortuito ou força maior.” 41 . E nem po<strong>de</strong>riase dar <strong>de</strong> outra forma, uma vez que, nessas hipóteses, o inadimplementoestaria liga<strong>do</strong> a fatores absolutamente alheios à vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r,razão pela qual não se mostraria justa a imputação <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>pelo não cumprimento <strong>do</strong> contrato.3.4.2 A mera dificulda<strong>de</strong> ou a impossibilida<strong>de</strong> temporáriaAlém disso, a mera dificulda<strong>de</strong> ou a impossibilida<strong>de</strong> temporáriatambém impe<strong>de</strong>m a configuração <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, hajavista que, nesses casos, não haverá a necessária <strong>de</strong>finitivida<strong>de</strong> e certezana recusa expressa ou no comportamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r. Nesse senti<strong>do</strong>,explica RUY ROSADO DE AGUIAR que: “Ficam excluídas a simples dificulda<strong>de</strong>e a impossibilida<strong>de</strong> temporária. A prática <strong>de</strong> atos contrários ao contratoe a <strong>de</strong>claração <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> que não honrará a obrigação <strong>de</strong>vemestar <strong>de</strong>vidamente <strong>de</strong>monstradas e caracterizadas, crian<strong>do</strong> uma situaçãoque inevitavelmente levará ao <strong>de</strong>scumprimento.”. 42A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o mesmo posicionamento, esclarece JOSÉ ROBERTODE CASTRO NEVES que “a mera dificulda<strong>de</strong> no futuro cumprimento ouo receio <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r <strong>de</strong> que não entregará a prestação não acarretam oinadimplemento antecipa<strong>do</strong>.” 43 Isso porque, no caso da impossibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> cumprimento, ela <strong>de</strong>ve estar <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> certeza a ponto <strong>de</strong> não gerar41 op. cit. p. 207.42 op. cit. p. 127.43 O Direito das Obrigações, GZ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2008, p. 355.158R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


dúvidas acerca da sua ocorrência e <strong>de</strong>monstrar <strong>de</strong>finitivida<strong>de</strong> a ponto<strong>de</strong> se mostrar irreversível. Por essa razão, caberá ao cre<strong>do</strong>r que invocara quebra antecipada comprovar, <strong>de</strong> maneira objetiva, a sua ocorrência.Excluem-se, assim, o simples me<strong>do</strong> ou receio, porque insuficientes para acaracterização <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>.3.4.3 O adimplemento substancialDepen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>do</strong> estágio em que a relação obrigacional se encontra,po<strong>de</strong> ser inaplicável o instituto da quebra antecipada. Isso ocorre, porexemplo, quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r já cumpriu parcela substancial da avença, <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> que a aplicação <strong>do</strong> instituto acabaria por gerar mais prejuízos <strong>do</strong>que efetivamente evitá-los. Com efeito, na hipótese <strong>de</strong> “adimplementosubstancial”, <strong>de</strong>ixa-se <strong>de</strong> aplicar a teoria <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>,em prestígio da <strong>do</strong>utrina da mitigação das perdas.Nesse senti<strong>do</strong>, o ensino <strong>de</strong> ANELISE BECKER, para quem o referi<strong>do</strong>instituto não po<strong>de</strong> ser aplica<strong>do</strong> “quan<strong>do</strong> a realização da prestação a cargo<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r já foi iniciada e se encontra <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> completa que seriaimpraticável estimar os danos por ele sofri<strong>do</strong>s” 44 . Em tais circunstâncias,mesmo diante da recusa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, o cre<strong>do</strong>r <strong>de</strong>verá continuar a cumprira obrigação que lhe incumbe. 453.4.4 A violação <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres laterais pouco significativosA ruptura antecipada <strong>do</strong> contrato também não é aplicável em casosnos quais a suposta violação atinge apenas <strong>de</strong>veres laterais pouco significativos,manten<strong>do</strong>-se intacto o núcleo obrigacional e subsistin<strong>do</strong> a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> cumprimento pelo <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.É plenamente plausível, portanto, que venha a ocorrer o <strong>de</strong>scumprimento<strong>de</strong> <strong>de</strong>veres <strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> vínculo obrigacional sem que se configureo inadimplemento antecipa<strong>do</strong>. É o que explica JORGE CESA FERREIRADA SILVA, ao excluir da hipótese da quebra antecipada “o caso <strong>do</strong> <strong>de</strong>scumprimento<strong>de</strong> <strong>de</strong>veres laterais pouco significativos ou da concretização <strong>de</strong>danos extrapatrimoniais vincula<strong>do</strong>s ao contrato, mas não inviabiliza<strong>do</strong>resda prestação futura” 46 .44 op. cit., p. 74.45 Ressalvan<strong>do</strong>-se, é claro, o direito <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r <strong>de</strong> ser in<strong>de</strong>niza<strong>do</strong> ou ressarci<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>feito da prestação.46 op. cit., p. 259.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 159


É preciso frisar que isso ocorre apenas em relação aos <strong>de</strong>veres lateraispouco expressivos, em relação aos quais não se mostraria razoávela imputação <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, uma vez que o núcleo <strong>do</strong>contrato ainda se manteria executável. O <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>vereslaterais expressivos e que possam comprometer a própria relação obrigacional,por óbvio, admite a invocação da quebra antecipada <strong>do</strong> contrato.Desse mo<strong>do</strong>, verifica-se que a constituição <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>nem sempre se dará <strong>de</strong> maneira clara e objetiva, sen<strong>do</strong> necessário,muitas das vezes, uma análise das circunstâncias <strong>do</strong> caso, a proporção<strong>do</strong> dano e as justificativas <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r para o inadimplemento contratual.4. A APLICABILIDADE DO INSTITUTO NO DIREITO BRASILEIROA ausência <strong>de</strong> previsão expressa para o inadimplemento antecipa<strong>do</strong>po<strong>de</strong>ria ser tida como um óbice à sua aplicação no or<strong>de</strong>namento jurídicopátrio. Ainda assim, a verda<strong>de</strong> é que gran<strong>de</strong> parte da <strong>do</strong>utrina vem<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a inserção <strong>do</strong> instituto no direito brasileiro, seja através <strong>de</strong>uma interpretação ampliada da lei e <strong>do</strong>s contratos, seja à luz <strong>do</strong>s princípiosjurídicos que regem as relações obrigacionais.4.1 Possíveis óbices <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m processual e a sua superação4.1.1 Arts. 580 e 618, III, <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Processo CivilDe acor<strong>do</strong> com ARAKEN DE ASSIS 47 , são <strong>do</strong>is os óbices que o nossoCódigo <strong>de</strong> Processo Civil traria à figura <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> —ambos concernentes à fase <strong>de</strong> execução <strong>do</strong> eventual débito <strong>de</strong>corrente daruptura antecipada.Segun<strong>do</strong> o autor, o art. 580 <strong>do</strong> aludi<strong>do</strong> diploma, ao impor que aexecução po<strong>de</strong>rá ser instaurada em face <strong>de</strong> obrigação “certa, líquida eexigível” 48 , impossibilitaria a instauração <strong>do</strong> processo executivo com fundamentoem inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> em vista que, nesse caso,a violação teria ocorri<strong>do</strong> antes <strong>do</strong> advento <strong>do</strong> termo e, portanto, antes <strong>de</strong>a dívida se tornar exigível.47 op. cit., p. 107-108.48 “Art. 580. A execução po<strong>de</strong> ser instaurada caso o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r não satisfaça a obrigação certa, líquida e exigível,consubstanciada em título executivo.”160R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Além disso, outro impedimento à instauração <strong>do</strong> processo executóriodiria respeito ao disposto no art. 618, III, <strong>do</strong> CPC 49 , que prevê comonula a execução instaurada antes <strong>de</strong> ocorri<strong>do</strong> o termo contratual.Esses argumentos são refuta<strong>do</strong>s pelos <strong>de</strong>fensores da aplicabilida<strong>de</strong>da teoria <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> no direito brasileiro. Deacor<strong>do</strong> com ALINE TERRA, tais dispositivos não po<strong>de</strong>riam ser ti<strong>do</strong>s comoentrave à quebra antecipada, haja vista que a conceituação <strong>do</strong> inadimplementoé questão <strong>de</strong> direito material, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que “se à luz <strong>do</strong> direitocivil, o conceito <strong>de</strong> inadimplemento abarcar a noção <strong>de</strong> inadimplementoanterior ao termo, o dispositivo processual inci<strong>de</strong> na hipótese; caso contrário,não lhe é aplica<strong>do</strong>”. 50Antes mesmo <strong>de</strong> o instituto ganhar força no país, em mea<strong>do</strong>s dadécada <strong>de</strong> 50, MIGUEL MARIA DE SERPA LOPES já <strong>de</strong>fendia a sua aplicabilida<strong>de</strong>no or<strong>de</strong>namento jurídico pátrio, afirman<strong>do</strong> que apesar <strong>de</strong> nãopossuirmos um dispositivo legal que facilite uma interpretação por analogia<strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, “isso não é obstáculo à aplicação <strong>de</strong>um princípio que não vulnera a estrutura que se possa consi<strong>de</strong>rar opostaa essa forma <strong>de</strong> vencimento antecipa<strong>do</strong>”. 51Com efeito, não é razoável que duas regras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m puramenteprocessual possam ser invocadas como óbices à aplicação <strong>do</strong> inadimplementoantecipa<strong>do</strong>. Ao contrário, o direito processual – que tem funçãomeramente instrumental – é que precisa se a<strong>de</strong>quar às evoluções <strong>do</strong>direito material, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a tornar as ferramentas processuais compatíveiscom o Direito Civil mo<strong>de</strong>rno.4.2 Possíveis óbices <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m material e a sua superação4.2.1 A ausência <strong>de</strong> previsão legal e a aplicação analógica <strong>do</strong> art. 477 <strong>do</strong>Código CivilArgumenta-se também pela incompatibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instituto com odireito brasileiro em razão da falta <strong>de</strong> previsão legal. Não seria possível,assim, caracterizar a quebra antecipada <strong>do</strong> contrato nem como inadimplementoabsoluto, nem como inadimplemento-mora, em razão <strong>do</strong> não49 “Art. 618. É nula a execução:(…)III - se instaurada antes <strong>de</strong> se verificar a condição ou <strong>de</strong> ocorri<strong>do</strong> o termo, nos casos <strong>do</strong> art. 572.”50 op. cit., p. 125.51 Exceções Substanciais: exceção <strong>de</strong> contrato não cumpri<strong>do</strong>, Freitas Barros, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 1959, p. 293.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 161


advento <strong>do</strong> termo. Sustenta-se que não caberia aos Tribunais o papel <strong>de</strong>legisla<strong>do</strong>r positivo, mediante a aplicação <strong>de</strong> modalida<strong>de</strong> alienígena <strong>de</strong>inadimplemento.Essa visão tradicional das obrigações não se coaduna com astransformações que o Direito Civil vem sofren<strong>do</strong>. Essa argumentação,claramente, se distancia da mo<strong>de</strong>rna “perspectiva funcionalizada” 52 dasobrigações, a qual pressupõe não apenas o cumprimento da prestaçãoprincipal, mas também das prestações acessórias e <strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> condutadas relações jurídicas.Veja-se que, a respeito <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> conduta, o professor portuguêsJOÃO MATOS ANTUNES VARELA ensina que, apesar <strong>de</strong> eles nãodizerem respeito nem à prestação principal, nem às acessórias, aindaassim são “essenciais ao correto processamento da relação obrigacionalem que a prestação se integra.”. 53A concepção funcionalizada <strong>do</strong> adimplemento é bem <strong>de</strong>fendida porANDERSON SCHREIBER, para quem é juridicamente relevante não apenas asatisfação da obrigação principal, mas <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o conjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres abarca<strong>do</strong>spela relação obrigacional. Segun<strong>do</strong> ele, “o cumprimento da prestaçãoprincipal não basta à configuração <strong>do</strong> adimplemento, exigin<strong>do</strong>-se o efetivoatendimento da função concretamente perseguida pelas partes com o negóciocelebra<strong>do</strong>, sem o qual to<strong>do</strong> comportamento (positivo ou negativo) <strong>do</strong><strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r mostra-se insuficiente. Vale dizer: revisita<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> adimplemento,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a corroborar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um exame que abarque ocumprimento da prestação contratada também sob o seu prisma funcional,as hipóteses hoje solucionadas com o uso da violação positiva <strong>do</strong> contratoten<strong>de</strong>m a recair no âmago interno da própria noção <strong>de</strong> adimplemento.”. 54 .Por isso, tem-se que a ausência <strong>de</strong> previsão legal não po<strong>de</strong> se apresentarcomo obstáculo à aplicação da quebra antecipada.Há quem procure superar a falta <strong>de</strong> previsão legal <strong>de</strong> inadimplementoantecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato com a aplicação analógica <strong>do</strong> art. 477 <strong>do</strong>Código Civil 55 . O artigo em questão permite que o cre<strong>do</strong>r, com funda<strong>do</strong>52 TERRA, Aline <strong>de</strong> Miranda Valver<strong>de</strong>. op. cit., p. 82.53 Das obrigações em geral, v. I, 10ª Edição, Almedina, Coimbra, 2005, p. 123.54 "A tríplice transformação <strong>do</strong> adimplemento: adimplemento substancial, inadimplemento antecipa<strong>do</strong> e outrasfiguras" In Revista Trimestral <strong>de</strong> Direito Civil, Ano 8, v. 32, Padma, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2007, p. 17.55 Art. 477. Se, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> concluí<strong>do</strong> o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimôniocapaz <strong>de</strong> comprometer ou tornar duvi<strong>do</strong>sa a prestação pela qual se obrigou, po<strong>de</strong> a outra recusar-se à prestaçãoque lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante <strong>de</strong> satisfazê-la.162R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


eceio <strong>do</strong> inadimplemento, requeira <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r que cumpra a obrigação<strong>de</strong>vida antes da sua contraprestação ou, então, que ofereça garantiasuficiente <strong>de</strong> que irá cumprir o avença<strong>do</strong>. Apesar <strong>de</strong> o dispositivo nãotratar <strong>de</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, mediante o exercício <strong>de</strong>ssa regrapelo cre<strong>do</strong>r – com a interpelação fundada em justo receio – e uma respostanegativa por parte <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, seria admissível a antecipação <strong>do</strong>termo. Como observa JOSÉ ROBERTO DE CASTRO NEVES: “em situaçõescomo esta, parece justo que – mesmo não sen<strong>do</strong> absolutamente certo quevá ocorrer o <strong>de</strong>scumprimento da prestação –, possa-se reclamar o inadimplementoantecipa<strong>do</strong>, pois não é correto submeter o cre<strong>do</strong>r ao risco <strong>de</strong> nofuturo sofrer o vultoso – e quiçá irreparável – dano.” 56 .Não obstante, a verda<strong>de</strong> é que a referida norma não prevê expressamentea possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolução <strong>do</strong> contrato, mas apenas <strong>de</strong> retençãoda prestação <strong>de</strong>vida – medida esta que nem sempre se mostra eficaz.De acor<strong>do</strong> com GUILHERME MAGALHÃES MARTINS, “nos casos em que oinadimplemento antecipa<strong>do</strong> resulta da conduta <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, que <strong>de</strong>clara,expressamente ou mesmo tacitamente, que não irá cumprir sua prestação(…) a simples retenção da prestação mostra-se inócua, mostran<strong>do</strong>-se maiseficaz o recurso à execução específica da obrigação, ou, caso esta se mostreimpossível, à resolução <strong>do</strong> contrato.” 57 .Ressalvas à parte, o fato é que, com ou sem previsão expressa, oinadimplemento antecipa<strong>do</strong> vem, mais e mais, sen<strong>do</strong> reconheci<strong>do</strong> pela<strong>do</strong>utrina e pela jurisprudência pátria, o que <strong>de</strong>monstra uma evi<strong>de</strong>nte superaçãoda omissão legislativa no direito brasileiro.4.2.2 Arts. 333 e 939 <strong>do</strong> Código CivilAfirma-se também a existência <strong>de</strong> <strong>do</strong>is óbices <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m material,liga<strong>do</strong>s a dispositivos específicos <strong>do</strong> Código Civil que, <strong>de</strong> uma forma ou <strong>de</strong>outra, se apresentariam como entraves à aplicação <strong>do</strong> instituto no direitobrasileiro.Em primeiro lugar, alega-se que o art. 333 58 <strong>do</strong> aludi<strong>do</strong> diploma obs-56 CASTRO NEVES, José Roberto <strong>de</strong>, op. cit. p. 358.57 "Inadimplemento Antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> Contrato" In Revista Trimestral <strong>de</strong> Direito Civil, v. 36, Padma, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro,2008, p. 100.58 “Art. 333. Ao cre<strong>do</strong>r assistirá o direito <strong>de</strong> cobrar a dívida antes <strong>de</strong> venci<strong>do</strong> o prazo estipula<strong>do</strong> no contrato oumarca<strong>do</strong> neste Código:I - no caso <strong>de</strong> falência <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, ou <strong>de</strong> concurso <strong>de</strong> cre<strong>do</strong>res;R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 163


taria a aplicação da quebra antecipada <strong>do</strong> contrato, uma vez que esse artigoelenca hipóteses nas quais assiste ao cre<strong>do</strong>r o direito <strong>de</strong> cobrar a dívidaantes <strong>do</strong> vencimento, sem mencionar, no entanto, a quebra antecipada<strong>do</strong> contrato. Ten<strong>do</strong> em vista que gran<strong>de</strong> parte da <strong>do</strong>utrina 59 se posicionano senti<strong>do</strong> da taxativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> dispositivo e da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inserção<strong>de</strong> outras hipóteses <strong>de</strong> vencimento antecipa<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>r-se-ia consi<strong>de</strong>rarcomo inaplicável a quebra antecipada no nosso or<strong>de</strong>namento.Por outro la<strong>do</strong>, a própria <strong>do</strong>utrina afirma que o rol <strong>de</strong> hipóteses<strong>do</strong> art. 333 <strong>do</strong> Código Civil se justifica em razão <strong>de</strong> uma aparente justiça,ten<strong>do</strong> em vista que “os fatos que conferem ao cre<strong>do</strong>r o direito <strong>de</strong> cobrarimediatamente um crédito vincen<strong>do</strong> são <strong>de</strong> mol<strong>de</strong> a diminuir a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> recebimento, se se fosse aguardar até o termo final” 60 . Por isso,não haveria como admitir que tal dispositivo, cuja precípua função é exatamentea <strong>de</strong> proteger o cre<strong>do</strong>r, pu<strong>de</strong>sse servir <strong>de</strong> óbice à configuração <strong>do</strong>inadimplemento antecipa<strong>do</strong>.Corroboran<strong>do</strong> esse entendimento, JUDITH MARTINS-COSTA, em comentárioao aludi<strong>do</strong> dispositivo, observa que “a hipótese prevista no art.333 é <strong>de</strong> vencimento antecipa<strong>do</strong> da prestação, e não a <strong>do</strong> cumprimentoantes <strong>do</strong> termo, pelo <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, ao seu alvedrio, quan<strong>do</strong> isso é possível.” 61 .Mais ainda, em contra-argumentação à tese da inaplicabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>instituto, ALINE TERRA afirma que, na hipótese <strong>de</strong> inadimplemento anteriorao termo, não seria preciso: “se valer <strong>de</strong> estratagema jurídico paraautorizar o cre<strong>do</strong>r a exigir seu crédito; essa possibilida<strong>de</strong> lhe é oferecida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o momento em que o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r viola a prestação <strong>de</strong>vida, que passaa ser imediatamente exigível, uma vez que o termo, ao <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> realizara função para a qual foi concedi<strong>do</strong>, per<strong>de</strong> a tutela no or<strong>de</strong>namentojurídico.” 62 . Sen<strong>do</strong> assim, ainda que o rol <strong>do</strong> art. 333 fosse taxativo, nãoseria necessária a previsão expressa da ruptura antecipada <strong>do</strong> contrato,pois a comprovada violação contratual se mostraria como situação excep-II - se os bens, hipoteca<strong>do</strong>s ou empenha<strong>do</strong>s, forem penhora<strong>do</strong>s em execução por outro cre<strong>do</strong>r;III - se cessarem, ou se se tornarem insuficientes, as garantias <strong>do</strong> débito, fi<strong>de</strong>jussórias, ou reais, e o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, intima<strong>do</strong>,se negar a reforçá-las.”59 CASTRO FILHO in ALVIM, Arruda e ALVIM, Thereza (coord.), Comentários ao Código Civil Brasileiro, v. IV, Forense,<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2006, p. 111.60 RODRIGUES, Silvio, Direito Civil, v. II, 30ª Edição, Saraiva, São Paulo, 2002, p. 162.61 Comentários ao Novo Código Civil, v. V, Tomo I, Forense, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, 2003, p. 344-345.62 op. cit., p. 215.164R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


cional, na qual, em razão da inutilização <strong>do</strong> termo, a dívida se <strong>do</strong>tariaautomaticamente <strong>de</strong> exigibilida<strong>de</strong>.Não obstante, há quem argumente pela inaplicabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> institutoem razão <strong>do</strong> disposto no art. 939 <strong>do</strong> Código Civil, 63 que prevê a responsabilida<strong>de</strong>civil <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r que <strong>de</strong>manda a dívida antes <strong>do</strong> seu própriovencimento, violan<strong>do</strong> o benefício constituí<strong>do</strong> pelo termo contratual. Nessesenti<strong>do</strong>, a quebra antecipada não po<strong>de</strong>ria gerar os efeitos <strong>do</strong> inadimplementoregular e, para piorar, ainda estaria sujeita às sanções impostaspelo referi<strong>do</strong> dispositivo.A <strong>do</strong>utrina reafirma a aplicabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instituto no or<strong>de</strong>namentojurídico brasileiro, esclarecen<strong>do</strong> que: “As situações contempladas pelo art.939 em nada se assemelham ao inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, lembran<strong>do</strong>seque neste caso o cre<strong>do</strong>r age antes <strong>do</strong> termo para evitar que os prejuízosque lhe foram causa<strong>do</strong>s pelo <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r sejam amplia<strong>do</strong>s.” 64 . Isso porque,nas hipóteses abarcadas pelo referi<strong>do</strong> artigo, o cre<strong>do</strong>r que <strong>de</strong>manda adívida antecipadamente assim o faz mediante manifesta má-fé, isto é,buscan<strong>do</strong> a obtenção <strong>de</strong> um benefício que não lhe é <strong>de</strong> direito. Já no casoda ruptura antecipada, o cre<strong>do</strong>r assim o faz por não lhe restar alternativaante a evi<strong>de</strong>nte violação contratual <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r – neste caso, ao invés <strong>de</strong>se buscar um benefício in<strong>de</strong>vi<strong>do</strong>, preten<strong>de</strong>-se apenas mitigar as perdas,por meio da antecipação <strong>do</strong> termo.Como se vê, apesar <strong>do</strong>s argumentos em contrário, a <strong>do</strong>utrina vemcada vez mais se posicionan<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> da aplicabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> instituto noor<strong>de</strong>namento jurídico pátrio. Diante disso, impõe-se <strong>de</strong>senvolver a análise<strong>do</strong>s argumentos favoráveis a essa aplicação.4.3 O Princípio da Boa-Fé Objetiva e a confiança entre as partesUm forte argumento a viabilizar o inadimplemento antecipa<strong>do</strong> nodireito brasileiro diz respeito, especificamente, aos <strong>de</strong>veres <strong>de</strong>correntes<strong>do</strong> princípio da boa-fé objetiva. Com efeito, ocorre que tais <strong>de</strong>veres <strong>de</strong>conduta — mesmo quan<strong>do</strong> as partes não os tenham expressamente <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>no contrato — não po<strong>de</strong>rão <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser observa<strong>do</strong>s e participarão<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> da relação obrigacional. É o que explica JORGE CESAFERREIRA DA SILVA ao enunciar que, mesmo quan<strong>do</strong> não <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s, os63 “Art. 939. O cre<strong>do</strong>r que <strong>de</strong>mandar o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r antes <strong>de</strong> vencida a dívida, fora <strong>do</strong>s casos em que a lei o permita,ficará obriga<strong>do</strong> a esperar o tempo que faltava para o vencimento, a <strong>de</strong>scontar os juros correspon<strong>de</strong>ntes, emboraestipula<strong>do</strong>s, e a pagar as custas em <strong>do</strong>bro.”64 LABOURIAU, Miguel, op. cit., p. 117.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 165


<strong>de</strong>veres <strong>de</strong>correntes da boa-fé “participarão <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> jurídico da relação,assim como participa <strong>de</strong>sse mesmo conteú<strong>do</strong> toda normativida<strong>de</strong>legal (em senti<strong>do</strong> estrito) não <strong>de</strong>clarada ou querida pelas partes.” 65Com isso, tem-se que uma vez percebida qualquer das hipótesescaracteriza<strong>do</strong>ras da ruptura antecipada, em razão <strong>de</strong>sse arcabouço <strong>de</strong> <strong>de</strong>verescorrelaciona<strong>do</strong>s à boa-fé, o cre<strong>do</strong>r terá direito a pleitear a resolução<strong>do</strong> negócio. Conforme explica JUDITH MARTINS-COSTA: “Trata-se, pois,<strong>de</strong> <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s comportamentos, impostos pelaboa-fé, ten<strong>do</strong> em vista o fim <strong>do</strong> contrato, em razão da relação <strong>de</strong> objetivaconfiança que o contrato fundamenta”. 66 .Mais ainda, a aplicação da teoria <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>também se justificaria em razão <strong>do</strong> princípio da confiança entre as partescontratantes. Com efeito, tem-se que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da vonta<strong>de</strong>, arelação obrigacional será sempre pautada na boa-fé e na confiança mútua,se justifican<strong>do</strong> a antecipação <strong>do</strong> termo nas hipóteses em que o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>ratuar <strong>de</strong> maneira contrária às legítimas expectativas da contraparte — talcomo no caso <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>.De acor<strong>do</strong> com a <strong>do</strong>utrina portuguesa, são quatro os requisitospara a proteção da confiança, os quais se articulam entre si sem que hajauma hierarquia. São eles: “1º Uma situação <strong>de</strong> confiança, conforme como sistema e traduzida na boa fé subjectiva e ética, própria da pessoa que,sem violar os <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong> que ao caso caibam, ignore estar a lesarposições alheias; 2º Uma justificação para essa confiança, expressa na presença<strong>de</strong> elementos objectivos capazes <strong>de</strong>, em abstracto, provocarem umacrença plausível; 3º Um investimento <strong>de</strong> confiança, consistente em, daparte <strong>do</strong> sujeito, ter havi<strong>do</strong> um assentar efectivo <strong>de</strong> activida<strong>de</strong>s jurídicassobre a crença consubstanciada; 4º A imputação da situação <strong>de</strong> confiançacriada à pessoa que vai ser atingida pela protecção dada ao confiante: talpessoa, por ação ou omissão, terá da<strong>do</strong> lugar à entrega <strong>do</strong> confiante emcausa ou ao factor objetivo que a tanto conduziu.” 67 Percebe-se, portanto,que a partir <strong>do</strong> momento em que o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r se comporta <strong>de</strong> maneiracontrária à confiança gerada pelo contrato firma<strong>do</strong> com a contraparte,65 op. cit., p. 54.66 A Boa-Fé no Direito Priva<strong>do</strong>: sistema e tópica no processo obrigacional, Revista <strong>do</strong>s Tribunais, São Paulo, 1999,p. 449.67 MENEZES CORDEIRO, António, Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direito Civil Português, v. I, Tomo I, 2ª Edição, Almedina, Coimbra,2000, p. 235.166R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


justificável se apresentará a antecipação <strong>do</strong> termo pactua<strong>do</strong>, a fim <strong>de</strong> seremediar, ou ao menos dirimir, os danos causa<strong>do</strong>s à tutela da confiança.Afasta-se, portanto, a concepção <strong>de</strong> que o vínculo obrigacional setraduz como um simples <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> prestar, adstrito às cláusulas contratuaise ao termo fixa<strong>do</strong>, e aplica-se a noção <strong>de</strong> que o contrato abarca umconjunto <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres e traduz interesses legítimos <strong>de</strong> ambas as partes.Nesse senti<strong>do</strong>, conclui ANTÓNIO MANUEL DA ROCHA E MENEZES CORDEI-RO, afirman<strong>do</strong> que: “A complexida<strong>de</strong>, intraobrigacional traduz a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>que o vínculo obrigacional abriga, no seu seio, não um simples <strong>de</strong>ver <strong>de</strong>prestar, simétrico a uma pretensão creditícia, mas antes vários elementosjurídicos <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> autonomia bastante para, <strong>de</strong> um conteú<strong>do</strong> unitário,fazerem uma realida<strong>de</strong> composta.” 684.4 A Concepção da “Obrigação como Processo”Deve-se, por fim, remontar a uma relevante <strong>do</strong>utrina, construídapor CLÓVIS DO COUTO E SILVA 69 e norteada pela visão funcionalizada dasrelações obrigacionais. Trata-se da noção da “obrigação como processo”,perspectiva que se afasta da noção estática das obrigações e as <strong>de</strong>finecomo relação jurídica dinâmica, envolvida por um sistema <strong>de</strong> processos,volta<strong>do</strong>s não apenas ao adimplemento, mas também à satisfação <strong>do</strong>sinteresses <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r.Por meio <strong>de</strong>ssa visão mo<strong>de</strong>rna das obrigações, é possível verificaro nascimento <strong>de</strong> novos <strong>de</strong>veres, os quais passam a se ligar tanto ao adimplementocomo ao seu próprio <strong>de</strong>senvolvimento. Conforme explica oautor, o conceito <strong>de</strong> obrigação como processo implica exatamente “alteraro <strong>de</strong>senvolvimento, como tradicionalmente se entendia, <strong>do</strong> processoda obrigação. Visa-se, mediante o princípio da boa-fé, a instaurar umaor<strong>de</strong>m <strong>de</strong> cooperação entre os figurantes da relação jurídica.”. 70 .Desse mo<strong>do</strong>, a concepção da “obrigação como processo” não apenasreconhece a aplicação <strong>do</strong> princípio da boa-fé objetiva nas relaçõesobrigacionais, como também cria os referi<strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> conduta, legitiman<strong>do</strong>a persecução pelo fiel cumprimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres laterais e <strong>do</strong> contratocomo uma totalida<strong>de</strong>. Segun<strong>do</strong> o autor, “nos negócios bilaterais, ointeresse, conferi<strong>do</strong> a cada participante da relação jurídica (mea res agitur),68 Da Boa-Fé no Direito Civil, v. I, Almedina, Coimbra, 1984, p. 584.69 op. cit.70 op. cit., p. 169.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 167


encontra sua fronteira nos interesses <strong>do</strong> outro figurante, dignos <strong>de</strong> seremprotegi<strong>do</strong>s. O princípio da boa-fé opera, aqui, significativamente, comomandamento <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ração.” 71A importância <strong>de</strong>ssa concepção para a teoria <strong>do</strong> inadimplementoantecipa<strong>do</strong> é revelada pela exaltação da boa-fé objetiva frente à valorizaçãoda própria vonta<strong>de</strong> humana, presente na elaboração <strong>do</strong> contrato ena fixação <strong>do</strong> termo. Diante disso, em razão da boa-fé objetiva e <strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres<strong>de</strong> cooperação, o interesse <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r em resolver o contrato frenteao inadimplemento anterior ao termo se mostra plenamente justificável,haja vista que todas as características da relação obrigacional “correlacionam-see completam-se reciprocamente, nos termos a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s a, nasua totalida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>rem proporcionar a satisfação da necessida<strong>de</strong> servidapelo contrato.”. 72Concluem GUSTAVO TEPEDINO e ANDERSON SCHREIBER que, dianteda perspectiva dinâmica <strong>do</strong> vínculo obrigacional, “não se po<strong>de</strong>, <strong>de</strong> fato,exigir que o cre<strong>do</strong>r permaneça paralisa<strong>do</strong> até o vencimento da obrigação,enquanto o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r evi<strong>de</strong>ncia, por seu comportamento inequívoco, o <strong>de</strong>scumprimentoiminente <strong>do</strong> ajuste.” 73Diante disso, tem-se que os interesses envolvi<strong>do</strong>s pelo contratomerecem ser persegui<strong>do</strong>s da melhor maneira possível, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a se justificar,inclusive, a não observância <strong>do</strong> advento <strong>do</strong> termo, frente ao inadimplementoantecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.5. A JURISPRUDÊNCIAAlém da crescente aceitação <strong>do</strong> instituto perante a <strong>do</strong>utrina pátria,o inadimplemento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato vem sen<strong>do</strong>, também, reconheci<strong>do</strong>e aplica<strong>do</strong> pelos Tribunais <strong>do</strong> país. Apesar <strong>de</strong> ainda serem relativamentepoucos os prece<strong>de</strong>ntes, a quebra antecipada já foi proclamada emdiferentes Tribunais <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e, inclusive, no Superior <strong>Tribunal</strong><strong>de</strong> Justiça.Veja-se, por exemplo, que no primeiro julga<strong>do</strong> <strong>do</strong> país a reconhecero inadimplemento anterior ao termo, em razão da pouca disseminação <strong>do</strong>instituto na época <strong>do</strong> julgamento – que ocorreu em 1983 – a ruptura71 op. cit., p. 34.72 MOTTA PINTO, Carlos Alberto da, Cessão <strong>de</strong> Contrato, Saraiva, São Paulo, 1985, p. 239.73 In AZEVEDO, Álvaro Villaça (coord.), Código Civil Comenta<strong>do</strong> – Direito das Obrigações, v. IV, Atlas, São Paulo,2008, p. 344.168R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


antecipada sequer veio a ser <strong>de</strong>clarada <strong>de</strong> maneira expressa. Não obstante,em razão da evi<strong>de</strong>nte ocorrência <strong>de</strong> uma das suas hipóteses caracteriza<strong>do</strong>ras,o inadimplemento foi totalmente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>. É o que se extraida ementa <strong>do</strong> seguinte julga<strong>do</strong> <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Sul, <strong>de</strong> relatoria <strong>do</strong> ilustre Desembarga<strong>do</strong>r Athos Gusmão Carneiro:“CONTRATO DE PARTICIPAÇÃO, ASSEGURANDO BENEFÍCIOSVINCULADOS A CONSTRUÇÃO DE HOSPITAL, COM COMPRO-MISSO DE COMPLETA E GRATUITA ASSISTÊNCIA MÉDICO-HOSPITALAR. O CENTRO MÉDICO HOSPITALAR DE PORTOALEGRE LTDA. NAO TOMOU A MÍNIMA PROVIDÊNCIA PARACONSTRUIR O PROMETIDO HOSPITAL, E AS PROMESSAS FICA-RAM NO PLANO DAS MIRAGENS; ASSIM, OFENDE TODOS OSPRINCÍPIOS DE COMUTATIVIDADE CONTRATUAL PRETENDERQUE OS SUBSCRITORES DE QUOTAS ESTEJAM ADSTRITOS AINTEGRALIZAÇÃO DE TAIS QUOTAS, SOB PENA DE PROTESTODOS TÍTULOS. PROCEDÊNCIA DA AÇÃO DE RESCISÃO DE CON-TRATOS EM CONTA DE PARTICIPAÇÃO.” 74 (grifou-se)Perceba-se que, nesse caso, por conta <strong>do</strong> não cumprimento dasobrigações da contraparte <strong>de</strong> construir o hospital em tempo hábil, a rescisão<strong>do</strong> contrato se mostrou admissível, ten<strong>do</strong> em vista que o comportamento<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r levaria a concluir pelo inadimplemento da avença,antes mesmo <strong>do</strong> advento <strong>do</strong> termo. Segun<strong>do</strong> o próprio relator, naquelecaso, o que teria ocorri<strong>do</strong> seria o “completo inadimplemento por parte <strong>de</strong>um <strong>do</strong>s contratantes. Já transcorreram mais <strong>de</strong> 5 anos, e o Centro MédicoHospitalar existe apenas <strong>de</strong> jure.”Já no que diz respeito ao prece<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça,o ilustre Ministro Relator Ruy Rosa<strong>do</strong> <strong>de</strong> Aguiar reconheceu, <strong>de</strong> maneiraexplícita, a configuração da quebra antecipada <strong>do</strong> contrato. Nesse caso,mais uma vez, em razão <strong>do</strong> comportamento conclu<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r emsenti<strong>do</strong> contrário ao cumprimento, foi admitida a ruptura da avença antes<strong>do</strong> advento <strong>do</strong> termo. Leia-se a seguinte ementa, <strong>do</strong> acórdão da 4ª Turma<strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong> Superior:“PROMESSA DE COMPRA E VENDA. Resolução. Quebra antecipada<strong>do</strong> contrato.74 Apelação Cível nº 582000378, rel. Des. Athos Gusmão Carneiro, 1ª Câmara Cível, j. 08.02.1983.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 169


- Evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> que a construtora não cumprirá o contrato,o promissário compra<strong>do</strong>r po<strong>de</strong> pedir a extinção da avençae a <strong>de</strong>volução das importâncias que pagou. - Recurso nãoconheci<strong>do</strong>.” 75 (grifou-se)No referi<strong>do</strong> julga<strong>do</strong>, o fato é que as partes teriam contrata<strong>do</strong> a comprae venda <strong>de</strong> um imóvel, a ser construí<strong>do</strong> e entregue em novembro<strong>de</strong> 1999. Apesar disso, em julho <strong>de</strong> 1998, as obras sequer teriam inicia<strong>do</strong>,motivo pelo qual o adimplemento <strong>do</strong> contrato, no prazo previsto, semostrava impossível. Diante disso, o STJ reconheceu e <strong>de</strong>clarou a quebraantecipada <strong>do</strong> contrato, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a conclusão <strong>do</strong> relator <strong>de</strong> que:“Quan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>ra da prestação futura toma atitu<strong>de</strong> claramente contráriaà avença, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> firmemente que não cumprirá o contrato,po<strong>de</strong> a outra parte pleitear a sua extinção.”.Além <strong>de</strong>sse caso, importante notar que, recentemente, novos prece<strong>de</strong>ntestêm surgi<strong>do</strong> nos Tribunais <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> país, os quais vêm, cadavez mais, reconhecen<strong>do</strong> o inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, em situações emque se encontram presentes os requisitos para a sua configuração. É esseo caso <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, on<strong>de</strong>, apenas no início <strong>do</strong>ano <strong>de</strong> 2011, já se aplicou, em duas ocasiões distintas, a teoria da quebraantecipada <strong>do</strong> contrato.No primeiro prece<strong>de</strong>nte, a Desembarga<strong>do</strong>ra relatora Célia MariaVidal Meliga Pessoa, em <strong>de</strong>cisão monocrática – confirmada posteriormentepela Câmara julga<strong>do</strong>ra –, <strong>de</strong>cidiu que, “quan<strong>do</strong> as partes fixam omomento para o cumprimento das prestações, mas as condutas praticadaspor uma <strong>de</strong>las revelam que não será adimplente ao tempo convenciona<strong>do</strong>,adianta-se o remédio resolutório como espécie <strong>de</strong> antecipação <strong>do</strong>inadimplemento, conce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ao prejudica<strong>do</strong> a possibilida<strong>de</strong> imediata <strong>de</strong><strong>de</strong>sconstituição da relação, em vez <strong>de</strong> aguardar pelo <strong>de</strong>senlace avisa<strong>do</strong> esofrer prejuízos ainda mais amplos.” 76Já no segun<strong>do</strong> julga<strong>do</strong>, ao se tratar, mais uma vez, <strong>de</strong> atraso naconclusão <strong>de</strong> empreitada com prazo certo, a 20ª Câmara Cível, medianteacórdão <strong>de</strong> relatoria da Desembarga<strong>do</strong>ra O<strong>de</strong>te Knaack <strong>de</strong> Souza, aplicoua teoria <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>, afirman<strong>do</strong> que, “apesar <strong>de</strong>a <strong>de</strong>manda ter si<strong>do</strong> promovida antes <strong>do</strong> escoamento <strong>do</strong> prazo fatal para75 REsp 309626/RJ, rel. Min. Ruy Rosa<strong>do</strong> <strong>de</strong> Aguiar, 4ª Turma, j. 07.06.01, DJ. 20.08.01.76 TJRJ, Ap. 0117017-71.2008.8.19.0002, rel. Des. Célia Maria Vidal Meliga Pessoa, 18ª Câmara Cível, j. 07.01.2011.170R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


conclusão da empreitada, inci<strong>de</strong> a teoria <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong>,visto ser incontroverso o atraso das obras, ao que a agravada anuiu aoimputá-lo a força maior, sem comprová-la, contu<strong>do</strong>.” 77A fim <strong>de</strong> comprovar o crescente reconhecimento que o institutovem ganhan<strong>do</strong> nos tribunais, <strong>de</strong>ve-se notar que, também os Tribunais <strong>de</strong>Justiça <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral e <strong>de</strong> São Paulo já <strong>de</strong>cidiram pela aplicação dateoria da ruptura antecipada. Com efeito, através <strong>de</strong> acórdão <strong>de</strong> relatoria<strong>do</strong> Desembarga<strong>do</strong>r Hermenegil<strong>do</strong> Gonçalves, da 1ª Turma Cível <strong>do</strong> TJDF,<strong>de</strong>cidiu-se que “não se po<strong>de</strong> exigir <strong>do</strong> compra<strong>do</strong>r a espera da previsívelfalência <strong>do</strong> empreendimento para só <strong>de</strong>pois buscar a rescisão <strong>do</strong> contrato,bem como daquilo que já se pagou se a <strong>de</strong>mora na construção da obra éflagrante, e <strong>de</strong> fácil constatação o inadimplemento antecipa<strong>do</strong>.” 78 . Nessemesmo senti<strong>do</strong>, <strong>de</strong>cidiu também a 9ª Câmara <strong>de</strong> Direito Priva<strong>do</strong> <strong>do</strong> TJSP,mediante acórdão <strong>de</strong> relatoria <strong>do</strong> Desembarga<strong>do</strong>r Piva Rodrigues, o qualconcluiu que, “examinan<strong>do</strong>-se as condutas praticadas pela ré até a datada sentença, é possível afirmar que, inevitavelmente, as obras não estariamprontas no tempo convenciona<strong>do</strong>.” 79Diante <strong>de</strong>sse breve panorama jurispru<strong>de</strong>ncial, é possível confirmara amplitu<strong>de</strong> que o instituto <strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> vem ganhan<strong>do</strong>perante diversos Tribunais <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> país. No entanto, até o presentemomento, confirma-se que a gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s casos <strong>de</strong> aplicação<strong>do</strong> instituto pelos tribunais se restringe ao comportamento conclu<strong>de</strong>nte<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, volta<strong>do</strong> especificamente para casos <strong>de</strong> construção com prazocerto. Ainda assim, esse cenário comprova, invariavelmente, a aceitação<strong>do</strong> instituto pelo direito brasileiro.6. CONCLUSÃOAo longo <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>, foi possível traçar a evolução <strong>do</strong> instituto <strong>do</strong>inadimplemento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua criação pelo direitoinglês até a sua inserção no direito brasileiro – primeiramente inserin<strong>do</strong>sena <strong>do</strong>utrina pátria e <strong>de</strong>pois sen<strong>do</strong>, mais e mais, aplica<strong>do</strong> pelos própriosTribunais.Com efeito, constatou-se que a atual concepção da obrigação, analisadamediante a sua perspectiva funcionalizada – e enraizada no princípio77 TJRJ, Ag. 0004042-10.2011.8.19.0000, rel. Des. O<strong>de</strong>te Knaack <strong>de</strong> Souza, 20a Câmara Cível, j. 27.04.2011.78 TJDF, Ap. 0001518-85.2002.807.00001, rel. Des. Hermenegil<strong>do</strong> Gonçalves, 1ª Turma Cível, j. 13.05.2002.79 TJSP, Ap. 0110649-33.2003.8.26.0000, rel. Des. Piva Rodrigues, 9ª Câmara <strong>de</strong> Direito Priva<strong>do</strong>, j. 09.03.2010.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011 171


da boa-fé objetiva – impõe aos contratantes uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>veres <strong>de</strong> conduta,que extrapolam as disposições contratuais. Exigem-se verda<strong>de</strong>iroscomportamentos <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, não apenas ten<strong>de</strong>ntes ao cumprimento <strong>de</strong>sua obrigação, mas vincula<strong>do</strong>s à observância <strong>de</strong> inúmeros <strong>de</strong>veres laterais,os quais se ligam, principalmente, à satisfação das legítimas expectativas<strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r.Os argumentos <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m processual e material cita<strong>do</strong>s não se mostramsuficientes para impedir a aplicação <strong>do</strong> instituto da ruptura antecipada<strong>do</strong> contrato no or<strong>de</strong>namento jurídico pátrio. Mesmo na ausência <strong>de</strong>dispositivo que preveja a sua ocorrência <strong>de</strong> maneira explícita, a antecipação<strong>do</strong> termo encontra fundamento na concepção funcionalizada da obrigaçãoe nos princípios da boa-fé objetiva e da confiança entre as partes,como forma <strong>de</strong> proteção <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r frente aos abusos comportamentais<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.A análise jurispru<strong>de</strong>ncial aqui apresentada apenas confirma a viabilida<strong>de</strong><strong>do</strong> inadimplemento antecipa<strong>do</strong> <strong>do</strong> contrato no direito brasileiro.Conforme verifica<strong>do</strong>, os prece<strong>de</strong>ntes vêm se espalhan<strong>do</strong> pelo país, sen<strong>do</strong>certo que o próprio Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça já se posicionou pela aplicabilida<strong>de</strong><strong>do</strong> instituto. Apesar <strong>de</strong>, na maioria <strong>do</strong>s julga<strong>do</strong>s, a antecipação<strong>do</strong> termo ter si<strong>do</strong> reconhecida apenas em contratos <strong>de</strong> construção porprazo <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, é possível imaginar que o atual <strong>de</strong>staque que o institutovem ganhan<strong>do</strong> na <strong>do</strong>utrina e na jurisprudência irá garantir que novassituações <strong>de</strong> aplicação <strong>do</strong> instituto sejam visualizadas pelos julga<strong>do</strong>res.No entanto, é preciso frisar que esta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inadimplementoconstitui hipótese excepcional, justificável apenas quan<strong>do</strong> se mostrarimpositiva a tutela da confiança, da boa-fé objetiva e da mitigação dasperdas <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r. A banalização <strong>do</strong> instituto po<strong>de</strong>rá gerar um exercícioabusivo <strong>do</strong> direito, crian<strong>do</strong> situações nas quais, mediante a utilização<strong>de</strong>turpada da boa-fé, a contraparte buscará, na verda<strong>de</strong>, uma sobreposiçãoà autonomia da vonta<strong>de</strong> e às disposições contratuais. Desse mo<strong>do</strong>,é necessária cautela por parte <strong>do</strong>s aplica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> direito, a fim <strong>de</strong> que sepossa analisar, <strong>de</strong> maneira objetiva, as situações fáticas que acarretem aquebra antecipada <strong>do</strong> contrato.É preciso que o cre<strong>do</strong>r <strong>de</strong>monstre, <strong>de</strong> maneira certa e precisa, aconfiguração <strong>do</strong>s elementos caracteriza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> instituto. A antecipação<strong>do</strong> termo se reveste <strong>de</strong> limitações, as quais <strong>de</strong>vem ser cuida<strong>do</strong>samenteconstruídas e analisadas pela <strong>do</strong>utrina e pela jurisprudência nacional.172R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 145-172, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Alienação Parental(uma visão jurídico-filosófico-psicológica)Luiz Guilherme MarquesJuiz <strong>de</strong> Direito - TJEMGMarisa Macha<strong>do</strong> Alves <strong>do</strong>s SantospsicólogaA alienação parental é conceituada no art. 2º da Lei 12.318/2010:Consi<strong>de</strong>ra-se ato <strong>de</strong> alienação parental a interferência na formaçãopsicológica da criança ou <strong>do</strong> a<strong>do</strong>lescente promovidaou induzida por um <strong>do</strong>s genitores, pelos avós ou pelos que tenhama criança ou a<strong>do</strong>lescente sob a sua autorida<strong>de</strong>, guardaou vigilância para que repudie genitor ou que cause prejuízoao estabelecimento ou à manutenção <strong>de</strong> vínculos com este.Com as separações/divórcios, muitos ex-cônjuges utilizam a maleabilida<strong>de</strong>psicológica <strong>do</strong>s próprios filhos como “arma” para atingir o outroex-parceiro, trata<strong>do</strong> como “inimigo” e passan<strong>do</strong> a ser visto pelos filhoscomo tal.O i<strong>de</strong>al é tentar suavizar a animosida<strong>de</strong> criada entre os personagens,esclarecen<strong>do</strong>-os sobre a naturalida<strong>de</strong> da mudança <strong>de</strong> rumos ínsitana liberda<strong>de</strong> garantida por to<strong>do</strong>s os or<strong>de</strong>namentos jurídicos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>civiliza<strong>do</strong> bem como pela Ética e pela Religião.O misoneísmo tem feito com que muita gente se apegue aospadrões <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> e consi<strong>de</strong>re a própria liberda<strong>de</strong> como um crime ouum <strong>de</strong>sajuste, que <strong>de</strong>ve ser cercea<strong>do</strong> e puni<strong>do</strong>.O diálogo <strong>do</strong> juiz, advoga<strong>do</strong> e promotor <strong>de</strong> justiça com as partespo<strong>de</strong> ajudá-las a aceitar como saudável a manutenção da amiza<strong>de</strong> emlugar das intermináveis disputas, engendradas pela <strong>de</strong>sinformação eintransigência.O problema não <strong>de</strong>ve ser minimiza<strong>do</strong>, mas sim entendi<strong>do</strong> comouma das mais importantes contribuições da Justiça para a boa harmoniasocial.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 173-178, out.-<strong>de</strong>z. 2011 173


Baseio-me nas regras gerais <strong>do</strong> capítulo das provas <strong>do</strong> Direito ProcessualCivil e concluo que o magistra<strong>do</strong> tem toda a liberda<strong>de</strong> para analisar oassunto, bastan<strong>do</strong> justificar seu embasamento.Se, praticamente, levar em conta apenas a avaliação <strong>do</strong>s profissionais<strong>de</strong> Psicologia e Assistência Social, corre o risco <strong>de</strong> nem sempre acertar,uma vez que os interessa<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>m conseguir camuflar a alienaçãoparental, já prepara<strong>do</strong>s que po<strong>de</strong>m estar para escamotear a verda<strong>de</strong>.Se exagerar a importância da prova testemunhal, po<strong>de</strong> acontecer<strong>de</strong> se per<strong>de</strong>r no emaranha<strong>do</strong> <strong>de</strong> fatos isola<strong>do</strong>s trazi<strong>do</strong>s pelos <strong>de</strong>poimentos<strong>de</strong> “alia<strong>do</strong>s” <strong>de</strong> uma parte e da outra.Se estiver confiante <strong>de</strong>mais no conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s <strong>de</strong>poimentos pessoais<strong>do</strong>s interessa<strong>do</strong>s, sem maior aprofundamento na observação <strong>de</strong> “pequenosimportantes <strong>de</strong>talhes”, po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir areal situação.Acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, tem <strong>de</strong> estar a acuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> observação <strong>do</strong> juiz, comoprofissional acostuma<strong>do</strong> a analisar pessoas para fazer-lhes real justiça.Não se <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>ixar influenciar pela natural pressa das partes emencerrar a fase probatória, esta que nunca <strong>de</strong>verá impedir o juiz <strong>de</strong> provi<strong>de</strong>nciara apuração da verda<strong>de</strong> real.Ocorre a alienação parental em 80% <strong>do</strong>s casos <strong>de</strong> separação/divórciocom filhos.O legisla<strong>do</strong>r sentiu a gravida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fato, ocorrente a nível <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>ira“pan<strong>de</strong>mia”, e procurou dar-lhe tratamento vigoroso, infelizmenteminimiza<strong>do</strong> em fase posterior, quan<strong>do</strong> a penalização se reduziu à perdada guarda, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>veria manter o reconhecimento <strong>de</strong> tipo penalespecífico.O resulta<strong>do</strong> que preconizo nos casos <strong>de</strong> comprovação da alienaçãoparental não é o da penalização imediata, mas sim o aconselhamento, comintensida<strong>de</strong> variável <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com sua gravida<strong>de</strong> <strong>do</strong> fato e, sobretu<strong>do</strong>,ín<strong>do</strong>le <strong>do</strong> alienante, fican<strong>do</strong>, todavia, aberta a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> revisãoda <strong>de</strong>cisão, para mais e para menos, também sem nenhuma preocupaçãojudicial <strong>de</strong> fechar-se a porta <strong>do</strong> requestionamento a quem se sinta prejudica<strong>do</strong>por eventual mudança <strong>do</strong> quadro. Afinal, quem tenha pratica<strong>do</strong> oilícito po<strong>de</strong> redimir-se e quem foi a vítima po<strong>de</strong> tornar-se alienante, o queacontece não poucas vezes.174R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 173-178, out.-<strong>de</strong>z. 2011


A época atual é <strong>de</strong> refinamento intelectual, ultrapassada que, nogeral, já foi a fase da violência corporal, esta que era reflexo <strong>do</strong> primitivismodas gerações muito remotas.Com isso, <strong>de</strong>senvolveram-se formas <strong>de</strong> cruelda<strong>de</strong> e mentalida<strong>de</strong>sádica que não visam diretamente à integrida<strong>de</strong> física das pessoas, massim seu psiquismo, como sejam o assédio moral, o bullying e a alienaçãoparental.Vejamos algumas referências da Wikipédia (www.wikipedia.org)sobre cada uma <strong>de</strong>ssas situações:Assédio moral é“a exposição <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res e trabalha<strong>do</strong>ras a situaçõeshumilhantes e constrange<strong>do</strong>ras, repetitivas e prolongadas durantea jornada <strong>de</strong> trabalho e no exercício <strong>de</strong> suas funções.São mais comuns em relações hierárquicas autoritárias eassimétricas, em que pre<strong>do</strong>minam condutas negativas, relações<strong>de</strong>sumanas e antiéticas <strong>de</strong> longa duração, <strong>de</strong> um oumais chefes dirigida a um ou mais subordina<strong>do</strong>(s), <strong>de</strong>sestabilizan<strong>do</strong>a relação da vítima com o ambiente <strong>de</strong> trabalho ea organização.Por ser algo priva<strong>do</strong>, a vítima precisa efetuar esforços <strong>do</strong>bra<strong>do</strong>spara conseguir provar na justiça o que sofreu, masé possível conseguir provas técnicas obtidas <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos(atas <strong>de</strong> reunião, fichas <strong>de</strong> acompanhamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho,etc), além <strong>de</strong> testemunhas idôneas para falar sobre oassédio moral cometi<strong>do</strong>.”Bullying é“um termo em inglês utiliza<strong>do</strong> para <strong>de</strong>screver atos <strong>de</strong> violênciafísica ou psicológica, intencionais e repeti<strong>do</strong>s, pratica<strong>do</strong>spor um indivíduo (bully - «tiranete» ou «valentão») ou grupo<strong>de</strong> indivíduos com o objetivo <strong>de</strong> intimidar ou agredir outroindivíduo (ou grupo <strong>de</strong> indivíduos) incapaz(es) <strong>de</strong> se <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r.Também existem as vítimas/agressoras, ou autores/alvos,que em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s momentos cometem agressões, porémtambém são vítimas <strong>de</strong> bullying pela turma.”R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 173-178, out.-<strong>de</strong>z. 2011 175


Alienação parental é“um termo cunha<strong>do</strong> por Richard A. Gardner no início <strong>de</strong> 1980- Richard Gardner viria a suicidar-se, com múltiplas facadasno pescoço e no peito, em 2003 - para se referir ao que ele<strong>de</strong>screve como um distúrbio no qual uma criança, numa basecontínua, <strong>de</strong>precia e insulta um <strong>do</strong>s pais sem qualquer justificativa,<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a uma combinação <strong>de</strong> fatores, incluin<strong>do</strong> a <strong>do</strong>utrinaçãopelo outro progenitor (quase exclusivamente comoparte <strong>de</strong> uma disputa da custódia da criança) e as tentativasda própria criança <strong>de</strong>negrir um <strong>do</strong>s pais. Gardner introduziu otermo em um <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> 1985, <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> um conjunto<strong>de</strong> sintomas que tinha observa<strong>do</strong> durante o início <strong>de</strong> 1980.A Síndrome <strong>de</strong> Alienação Parental não é reconhecida comouma <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m pelas comunida<strong>de</strong>s médica e jurídica e a teoria<strong>de</strong> Gardner, assim como pesquisas relacionadas a ela têmsi<strong>do</strong> amplamente criticadas por estudiosos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mentale <strong>de</strong> direito, que alegam falta <strong>de</strong> valida<strong>de</strong> científica e fiabilida<strong>de</strong>.No entanto, o conceito distinto, porém relaciona<strong>do</strong>, <strong>de</strong>alienação parental - isto é, o estranhamento <strong>de</strong> uma criançapor um <strong>do</strong>s pais - é reconheci<strong>do</strong> como uma dinâmica emalgumas famílias durante o divórcio.A admissibilida<strong>de</strong> da SAP foi rejeitada por um painel <strong>de</strong> peritos eo <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Apelação da Inglaterra e País <strong>de</strong> Gales, no ReinoUni<strong>do</strong>, e o Departamento <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> Canadá <strong>de</strong>saconselhamseu uso. Entretan<strong>do</strong>, a admissibilida<strong>de</strong> ocorreu em algumasVaras <strong>de</strong> Família nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Gardner retratou a SAPcomo bem aceita pelo judiciário, haven<strong>do</strong> estabeleci<strong>do</strong> umasérie <strong>de</strong> prece<strong>de</strong>ntes, mas a análise jurídica <strong>do</strong>s verda<strong>de</strong>iroscasos indica que sua alegação estava incorreta.Não obstante a inicial controvérsia quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> DSM-IV, quemotivou a não inclusão da SAP naquela edição e que o primeiroesboço <strong>do</strong> DSM-V não a tenha contempla<strong>do</strong>, hojeexiste vasta publicação a seu respeito e muitas autorida<strong>de</strong>srenomadas na psicologia e psiquiatria <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m sua inclusãono DSM-V e no CID-11, ambos a serem publica<strong>do</strong>s.”176R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 173-178, out.-<strong>de</strong>z. 2011


A alienação parental é o tema que nos interessa neste estu<strong>do</strong>,<strong>de</strong>ven<strong>do</strong>-se observar que os processos que a abordam <strong>de</strong>veriam merecerpriorida<strong>de</strong> especial, para tanto sen<strong>do</strong> necessária não só a multiplicação<strong>do</strong> número <strong>de</strong> Varas <strong>de</strong> Família como também uma preparação maior<strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito <strong>de</strong> Família, por exemplo, através <strong>de</strong> cursos eseminários.Infelizmente, pouco ainda se investe no estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa matéria, geran<strong>do</strong>soluções nem sempre a<strong>de</strong>quadas para os graves quadros ocorrentes.As Escolas Judiciais <strong>do</strong>s Tribunais Estaduais e as Escolas da OAB e<strong>do</strong> Ministério Público <strong>de</strong>veriam promover maior quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> eventos<strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a divulgar esse tema, e igualmente as entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> classe <strong>do</strong>sopera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito, <strong>de</strong>ntre as quais as <strong>de</strong> magistra<strong>do</strong>s e <strong>do</strong> MinistérioPúblico.A mensagem mais importante que po<strong>de</strong>mos passar aos preza<strong>do</strong>sLeitores é <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sconhecimento da matéria é muito gran<strong>de</strong> e assoluções, portanto, muitas vezes imperfeitas.Quan<strong>do</strong> se trata, por exemplo, <strong>de</strong> dificultação por um <strong>do</strong>s ex-cônjuges<strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> direito <strong>de</strong> visita pelo outro costuma ser fácil <strong>de</strong>tectar-se aalienação parental, mas quan<strong>do</strong> a figura típica é praticada com a sutileza<strong>do</strong>s sádicos inteligentes, são frequentes os equívocos judiciais.O presente comentário é feito com toda a reverência que merecemos opera<strong>do</strong>res da área <strong>de</strong> família, mas também com toda a honestida<strong>de</strong>e sincerida<strong>de</strong>.O resulta<strong>do</strong> das nossas pesquisas sobre alienação parental estásen<strong>do</strong> enfeixa<strong>do</strong> em um livro que virá a lume <strong>de</strong>ntro em breve, todaviaé conveniente trazer aos opera<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Direito, psicólogos, assistentessociais e pais em geral alguns pontos importantes <strong>do</strong> assunto.O aconselhamento é recomendável para que se tente <strong>de</strong>sfazer assituações negativas existentes, procuran<strong>do</strong> convencer o alienante a iniciaro trabalho sério e sincero <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfazer o mal já realiza<strong>do</strong>, fazen<strong>do</strong> o filhoretomar a boa convivência com o aliena<strong>do</strong>.Porém, em muitos casos, principalmente nos mais graves, essa medidaé insuficiente, sen<strong>do</strong> necessária, como solução, a presença permanente<strong>do</strong> aliena<strong>do</strong> junto ao filho para que este último passe a i<strong>de</strong>ntificar-lheas boas intenções e o amor.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 173-178, out.-<strong>de</strong>z. 2011 177


Acontece da atuação <strong>do</strong> alienante ter si<strong>do</strong> tão bem urdida que nemnecessário se faz a continuida<strong>de</strong> da indução <strong>de</strong>moli<strong>do</strong>ra, uma vez que ofilho já consoli<strong>do</strong>u a animosida<strong>de</strong> contra o aliena<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong> a odiá-lomecânica e automaticamente.Voltan<strong>do</strong> a conviver com o aliena<strong>do</strong>, aos poucos ten<strong>de</strong> a compararas informações negativas <strong>do</strong> alienante com o quadro que vê pessoalmente.Mesmo sem se reverter a guarda ao aliena<strong>do</strong>, o importante é queo filho passe a amá-lo e querer com ele dividir seus planos e momentosagradáveis e também os dificultosos.Em suma, mais uma vez chamamos a atenção para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>o assunto ser bem conheci<strong>do</strong>, dan<strong>do</strong>-se solução a<strong>de</strong>quada a cada caso.Milhões <strong>de</strong> pessoas sofrem com a alienação parental e a Justiça é aúnica que, <strong>de</strong> forma cogente, po<strong>de</strong> resolver esses casos.A alienação parental tem acarreta<strong>do</strong> enfermida<strong>de</strong>s psicossomáticasinfelizmente não computadas nas estatísticas oficiais, mas, a médio elongo prazos, com resulta<strong>do</strong>s danosos para os sistemas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Públicae Particular.Sugerimos aos Governos a veiculação pela Mídia <strong>de</strong> informaçãosobre o assunto e suas consequências, além da realização <strong>de</strong> entrevistas<strong>de</strong> especialistas e sua divulgação na Internet.A prevenção é melhor que a tentativa <strong>de</strong> reverter o mal feito.Trata-se <strong>de</strong> uma das mais graves epi<strong>de</strong>mias <strong>do</strong> século XXI comoverda<strong>de</strong>iro atenta<strong>do</strong> à saú<strong>de</strong> psicológica <strong>de</strong> muitas pessoas.Evitemos males maiores para pais, mães e filhos, vítimas, quaseto<strong>do</strong>s, da <strong>de</strong>sinformação.Se minimizarmos o problema, estaremos transferin<strong>do</strong> para as geraçõesfuturas uma herança nociva, <strong>de</strong> imprevisíveis resulta<strong>do</strong>s.178R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 173-178, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Durkheim e o fenômenojurídico na obrada Divisão <strong>do</strong> TrabalhoSocial: ensaio críticoJoão Maurício Martins <strong>de</strong> AbreuAdvoga<strong>do</strong>. Mestre em Sociologia e Direito pela UFF.Professor <strong>de</strong> Direito Civil da UNESA (licencia<strong>do</strong>).1 – IntroduçãoO presente ensaio tem o objetivo <strong>de</strong> analisar e problematizar um<strong>do</strong>s principais pressupostos teóricos utiliza<strong>do</strong>s por Émile Durkheim (1858-1917) na obra Da divisão <strong>do</strong> trabalho social, 1 notadamente aquele segun<strong>do</strong>,o qual o Direito seria um símbolo visível da moralida<strong>de</strong> social. 2 Nesselivro, o autor <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese <strong>de</strong> que a divisão <strong>do</strong> trabalho social, além <strong>de</strong>sua conhecida função econômica, a maximização <strong>do</strong>s lucros, tem tambémuma função moral. E é no processo <strong>de</strong> construção argumentativa que arelação entre Direito e moralida<strong>de</strong> social é sobejamente <strong>de</strong>senvolvida.Durkheim é consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> um <strong>do</strong>s funda<strong>do</strong>res da Sociologia comodisciplina autônoma <strong>do</strong> conhecimento. Foi ele quem, com maior vigor<strong>de</strong>ntre seus contemporâneos, reivindicou o caráter científico e específicoao conhecimento sociológico. Para tanto, teve <strong>de</strong> <strong>de</strong>finir o objeto e ométo<strong>do</strong> particulares da Sociologia, procuran<strong>do</strong>, assim, estabelecer umaseparação objetiva em relação a outros campos <strong>do</strong> saber, como a filosofiae a psicologia, e, além disso, eliminar qualquer tipo <strong>de</strong> influxo <strong>de</strong> saberesnão científicos em sua disciplina.1 Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utoramento escrita no último quarto <strong>do</strong> século XIX, em meio ao processo <strong>de</strong> massiva industrializaçãocapitanea<strong>do</strong> pela Inglaterra. DURKHEIM. Émile. Da divisão <strong>do</strong> trabalho social. 2ªed. São Paulo: Martins Fontes,2004.2 É importante, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, pontuar em que senti<strong>do</strong> é concebida dita moralida<strong>de</strong> social para o autor: trata-se <strong>de</strong> umesta<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência que liga o indivíduo à socieda<strong>de</strong> e conforma a conduta daquele às normas provenientes<strong>de</strong>sta. Op. cit., 2004, p. 420-1.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 179


Percebem-se nitidamente, no pensamento <strong>do</strong> autor, influências<strong>do</strong> positivismo <strong>de</strong> August Comte 3 , traços evolucionistas 4 , e, o que émais importante para sua compreensão, marcada posição em favor <strong>do</strong>que se convencionou chamar, posteriormente, <strong>de</strong> coletivismo meto<strong>do</strong>lógico5 .O coletivismo meto<strong>do</strong>lógico e a influência positivista, em especial,estão refleti<strong>do</strong>s na importante noção <strong>de</strong> fato social, cunhada porDurkheim 6 em resposta aos anseios <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>de</strong>puração <strong>do</strong>conhecimento sociológico, que sempre nortearam seus trabalhos.Os fatos sociais representam o objeto específico, particular, da Sociologia.São constituí<strong>do</strong>s por mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> pensar, agir e sentir, cuja singularida<strong>de</strong>resi<strong>de</strong> em existirem fora das consciências individuais; são, portanto,exteriores aos indivíduos, mas, além disso, são também coercitivos.Exteriores, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que atuam sobre as consciências individuaisin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> sua vonta<strong>de</strong>; coercitivos, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que exercemsobre os indivíduos uma tal força, uma tal constrição, que impõem asua conformação com as regras sociais que lhes transcen<strong>de</strong>m, sob pena<strong>de</strong> sanções das mais variadas naturezas.Um bom exemplo <strong>de</strong> fato social é a língua pre<strong>do</strong>minante em cadasocieda<strong>de</strong>: ela in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da vonta<strong>de</strong> conjuntural <strong>do</strong>s indivíduos e se lhesimpõe.3 Dentre os muitos pontos <strong>de</strong> contato com os pressupostos <strong>do</strong> positivismo, <strong>de</strong>stacam-se <strong>do</strong> pensamento durkheimianoos seguintes: a reflexão científica <strong>de</strong>ve partir da realida<strong>de</strong> sensível e o conhecimento científico é neutro. Cf.,com breve exposição da classificação usual das teorias sociológicas e, em caráter propositivo, com uma perspectivaclassificatória própria, MELLO Marcelo P. "Vertentes <strong>do</strong> pensamento sociológico empirista e naturalista e algumasrazões para se duvidar <strong>de</strong>las". In: Sociologia e direito: exploran<strong>do</strong> as interseções. Niterói: PPGSD, 2007, p. 9-37.4 Não são raras as referências <strong>do</strong> autor a graus hierarquiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>: das simples (ou, como ele mesmo<strong>de</strong>nomina, primitivas), às complexas. As transformações sociais obe<strong>de</strong>ceriam, portanto, a um processo evolutivodas socieda<strong>de</strong>s, on<strong>de</strong> o lugar da mudança não é a revolução, mas a evolução. V. GIDDENS, A. apud SOUZA, Ricar<strong>do</strong>Luiz. "Normas morais, mudanças sociais e individualismo segun<strong>do</strong> Durkheim". In: Confluências. Niterói: PPGSD, nov.2007, v. 9.2, p. 72.5 Em oposição ao individualismo meto<strong>do</strong>lógico, que tem em Hobbes um <strong>de</strong> seus mais notórios <strong>de</strong>fensores, Durkheimpostula que a socieda<strong>de</strong> é uma espécie <strong>de</strong> sujeito transcen<strong>de</strong>nte e sui generis, maior <strong>do</strong> que a soma <strong>do</strong>s indivíduosque a compõem e modula<strong>do</strong>r <strong>de</strong> suas relações sociais; para ele, “a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>termina tu<strong>do</strong>: a divisão <strong>do</strong> trabalho,o crime, o suicídio, as formas <strong>de</strong> classificação, a religião e as <strong>de</strong>mais representações coletivas” (...), que “nadamais significam em si mesmos; eles encontram as razões <strong>de</strong> sua existência na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> expressar ou projetara existência da própria socieda<strong>de</strong>” (p. 157). VARGAS, Eduar<strong>do</strong> V. "Durkheim e o <strong>do</strong>mínio da sociologia". In: AntesTar<strong>de</strong> <strong>do</strong> que nunca: Gabriel Tar<strong>de</strong> e a emergência das ciências sociais. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Contracapa/FAFICH/UFMG,2000, p. 129-161.6 A noção <strong>de</strong> fato social foi exposta em DURKHEIM, É. As regras <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> sociológico. São Paulo: Nacional, 1963.Para uma síntese sobre o tema, cf. DURKHEIM, E. "O que é fato social?" In: Rodrigues, José Albertino (org.). ÉmileDurkheim. São Paulo: Ática, 1988, p. 46-52.180R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Como garantia da objetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conhecimento, os fatos sociais<strong>de</strong>vem ser trata<strong>do</strong>s como coisas, ou seja, como “objetos que se dão indiferentementeao olhar neutro e cauteloso <strong>do</strong> sujeito” 7 .Durkheim entrelaça, na obra analisada a seguir, <strong>do</strong>is fatos sociais: oDireito e a divisão <strong>do</strong> trabalho social.2 – O Direito e a intensificação <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> divisão <strong>do</strong>trabalho socialInfluencia<strong>do</strong>, como tantos outros contemporâneos seus, por estu<strong>do</strong>s<strong>de</strong> biólogos <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> século XIX, Durkheim (2004, p.3) i<strong>de</strong>ntifica adivisão <strong>do</strong> trabalho como uma lei natural, reitora não só <strong>do</strong>s organismos,como também das socieda<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que a divisão <strong>do</strong> trabalho socialé, para ele, apenas um efeito particular daquele processo geral.Assim como os organismos mais acaba<strong>do</strong>s, as socieda<strong>de</strong>s complexas– como o são, p.ex., as socieda<strong>de</strong>s industriais – verificam, com gran<strong>de</strong>intensida<strong>de</strong>, o fracionamento <strong>de</strong> funções antes reunidas em poucas pessoase grupos. A especialização massiva atinge não só as funções econômicascomo também as funções políticas, administrativas, judiciárias,artísticas, científicas etc.No entanto, constata<strong>do</strong> o fato <strong>de</strong> que existe um processo geral queten<strong>de</strong> para a divisão <strong>do</strong> trabalho, ainda assim impõe-se a pergunta: <strong>de</strong>vemosresistir ou a<strong>de</strong>rir a esse processo <strong>de</strong> especialização?Será nosso <strong>de</strong>ver procurar tornar-nos um ser acaba<strong>do</strong> e completo,um to<strong>do</strong> autossuficiente, ou, ao contrário, não ser maisque a parte <strong>de</strong> um to<strong>do</strong>, o órgão <strong>de</strong> um organismo? Numapalavra, a divisão <strong>do</strong> trabalho, ao mesmo tempo que lei danatureza, também é uma regra moral <strong>de</strong> conduta humana? 8O autor respon<strong>de</strong> afirmativamente à última questão: há, para ele,um intenso valor moral na máxima que nos manda especializar-nos. E essecaráter, em síntese apertada, está no fato <strong>de</strong> que, quanto mais a socieda<strong>de</strong>se fragmenta em funções díspares e especializadas, mais ela realiza o i<strong>de</strong>al<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social, o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong>, porque cada um <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>tanto mais da socieda<strong>de</strong> quanto mais for dividi<strong>do</strong> o trabalho social.7 GIANNOTTI, apud VARGAS, E. V. Op. cit., p. 143.8 DURKHEIM, É. Op. Cit., 2004, p. 4.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 181


Eis o que constitui o valor moral da divisão <strong>do</strong> trabalho. Éque, por ela, o indivíduo retoma consciência <strong>de</strong> seu esta<strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>pendência para com a socieda<strong>de</strong>; é <strong>de</strong>la que vêm as forçasque o retêm e o contêm. Numa palavra, já que a divisão <strong>do</strong>trabalho se torna a fonte eminente <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social,ela se torna, ao mesmo tempo, a base da or<strong>de</strong>m moral. 9A compreensão <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como o Direito se inclui, <strong>de</strong> maneira fundamental,no processo <strong>de</strong> justificação <strong>de</strong>ssa tese compõe o objeto <strong>de</strong>staseção <strong>do</strong> ensaio.Pois bem. Para verificar e buscar comprovar que a divisão <strong>do</strong> trabalhosocial é a causa da coesão social nas socieda<strong>de</strong>s complexas, em que oprocesso <strong>de</strong> especialização é intenso, o autor propõe uma análise comparativa<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> vínculo social oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas socieda<strong>de</strong>s complexas comaquele oriun<strong>do</strong> <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s menos evoluídas (socieda<strong>de</strong>s simples, primitivas),ou seja, uma comparação entre diferentes expressões da moralida<strong>de</strong>social – termo compreendi<strong>do</strong> por Durkheim (2004, p.420-1) comoo esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência que liga o indivíduo à socieda<strong>de</strong>, conforman<strong>do</strong>suas condutas.No entanto, a moralida<strong>de</strong> social – seja nas socieda<strong>de</strong>s complexasem que viveu o autor, seja nas primitivas <strong>de</strong> que ele cogitou – não se dáa conhecer diretamente pelo observa<strong>do</strong>r, por ser um fato interno, íntimoe psicológico das relações sociais propriamente ditas. Por isso, o autorpropõe e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> inferir a moralida<strong>de</strong> social prepon<strong>de</strong>rante em cada tipo<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> um efeito concreto, seguro e observável que elaproduza; a partir <strong>de</strong> um fato social presente em toda e qualquer socieda<strong>de</strong>,em to<strong>do</strong> e qualquer tempo.Tal efeito, tal fato social, tal representação da moralida<strong>de</strong> social,Durkheim o vai encontrar nas regras jurídicas; o símbolo visível da moralida<strong>de</strong>social é o direito.[A] vida social, on<strong>de</strong> quer que exista <strong>de</strong> maneira dura<strong>do</strong>ura,ten<strong>de</strong> inevitavelmente a tomar uma forma <strong>de</strong>finida e a seorganizar, e o direito nada mais é que essa mesma organizaçãono que ela tem <strong>de</strong> mais estável e preciso. A vida geralda socieda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> se esten<strong>de</strong>r num ponto sem que avida jurídica nele se estenda ao mesmo tempo e na mesma9 DURKHEIM, É. Op. Cit., 2004, p. 423.182R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011


proporção. Portanto, po<strong>de</strong>mos estar certos <strong>de</strong> encontrar refletidasno direito todas as varieda<strong>de</strong>s essenciais da solidarieda<strong>de</strong>social. 10Empreen<strong>de</strong>r, em certa medida, uma análise da socieda<strong>de</strong> a partir<strong>do</strong> Direito em vigor: é o que Durkheim propõe. Propõe, mais especificamente,verificar, a partir das normas jurídicas vigentes em cada socieda<strong>de</strong>,as variantes da solidarieda<strong>de</strong> social, a fim <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r à questãoque norteia a obra sob análise: há algum tipo especial <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong><strong>do</strong> qual a divisão <strong>do</strong> trabalho social seja a causa? Já foi dito e antecipa<strong>do</strong>:há sim. Apenas não foi individuada a espécie: trata-se da modalida<strong>de</strong>especial a que Durkheim <strong>de</strong>nomina solidarieda<strong>de</strong> orgânica, emoposição à solidarieda<strong>de</strong> mecânica – essa última típica das socieda<strong>de</strong>ssimples ou primitivas.A esta altura, para reflexão sociológica e jurídica, já se po<strong>de</strong>ria propora questão que justifica este ensaio, e que será objeto da próxima seção:é o Direito, como o compreen<strong>de</strong> Durkheim, um reflexo confiável damoralida<strong>de</strong> social vigente?Dessa questão outras tantas po<strong>de</strong>m advir, inclusive sobre a relevânciaatual <strong>do</strong> tema (cf. Consi<strong>de</strong>rações finais), mas não é hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvero raciocínio, porque nosso autor tem mais a dizer sobre a forma comoconcebe o Direito e suas normas.Tenaz em seu rigor científico, Durkheim procura expurgar <strong>de</strong> suaanálise <strong>de</strong>sse símbolo visível da moralida<strong>de</strong> social – que, para ele, é o Direito– qualquer outra classificação das normas jurídicas que não seja feita<strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a sanção que lhes é correspon<strong>de</strong>nte. Isso por duas razões:(a) porque to<strong>do</strong> preceito <strong>de</strong> direito é correlato a uma regra sancionada e(b) porque as sanções variam <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a gravida<strong>de</strong> <strong>do</strong> preceito, aopapel que <strong>de</strong>sempenha na socieda<strong>de</strong>. E conclui: há <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> sanções,em Direito; <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, apresentam-se as sanções repressivas, que implicamo sofrimento <strong>do</strong> agente e são típicas das normas <strong>de</strong> Direito Penal;<strong>de</strong> outro, as sanções restitutivas, que visam à reparação das coisas e sãotípicas <strong>do</strong> Direito Civil, Comercial, Administrativo etc.Assim, a única classificação verda<strong>de</strong>iramente científica das normasjurídicas é aquela que as divi<strong>de</strong> em normas repressivas e normasrestitutivas.10 DURKHEIM, É. Op. Cit., 2004, p. 32-3.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 183


E é aqui que Durkheim promove, em bases objetivas, o entrelaçamento<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is fatos sociais ora estuda<strong>do</strong>s. Para ele, é a prepon<strong>de</strong>râncianumérica <strong>de</strong> normas repressivas, ou <strong>de</strong> normas restitutivas, num da<strong>do</strong> or<strong>de</strong>namentojurídico, o reflexo material da moralida<strong>de</strong> vigente na respectivasocieda<strong>de</strong>: se fruto <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> mecânica ou <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>orgânica. E é a partir <strong>de</strong>ssa premissa, que ele conclui se se está diante, ounão, <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> complexa; isto é, se se está diante, ou não, <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> em que a divisão <strong>do</strong> trabalho social é intensa.Quanto mais prepon<strong>de</strong>rarem normas restitutivas, mais intensificadaestará a divisão <strong>do</strong> trabalho social; quanto mais prevalecentes forem asrepressivas, menos <strong>de</strong>senvolvida tal divisão.Explica-se.A prepon<strong>de</strong>rância numérica <strong>de</strong> normas jurídicas repressivas numacerta socieda<strong>de</strong> representa que ali vigora uma solidarieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> tipo mecânica(ou por similitu<strong>de</strong>s). Isso porque tal prepon<strong>de</strong>rância representa que amaioria das transgressões, <strong>do</strong>s <strong>de</strong>svios comportamentais, é caracterizadacomo crime e, por conta <strong>de</strong>ssa qualida<strong>de</strong>, imputa-se ao agente um sofrimento,um castigo. Ora, argumenta Durkheim, se são, na maioria das vezes,consi<strong>de</strong>radas crimes as transgressões numa dada socieda<strong>de</strong>, assim é porqueelas atingem frontalmente a sua consciência coletiva, corporifican<strong>do</strong>atos universalmente reprova<strong>do</strong>s – mais <strong>do</strong> que isso, universalmente e fortementereprova<strong>do</strong>s – pela média <strong>do</strong>s membros daquela socieda<strong>de</strong>.O conjunto das crenças e <strong>do</strong>s sentimentos comuns à média<strong>do</strong>s membros <strong>de</strong> uma mesma socieda<strong>de</strong> forma um sistema<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> que tem vida própria: po<strong>de</strong>mos chamá-lo <strong>de</strong>consciência coletiva ou comum.(...)[Os crimes] não são apenas grava<strong>do</strong>s em todas as consciências:são fortemente grava<strong>do</strong>s. Não são veleida<strong>de</strong>s hesitantese superficiais, mas emoções e tendências fortementearraigadas em nós. O que o prova é a extrema lentidão coma qual o direito penal evolui. 11Diz-se que se está diante, então, <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> simples (ouprimitiva) uma vez que, aí, na maior parte das vezes, as consciências11 DURKHEIM, É. Op. Cit,.2004, p. 47-8.184R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011


individuais coinci<strong>de</strong>m com a consciência coletiva, ou seja, o grau <strong>de</strong> diferenciaçãoentre os membros da socieda<strong>de</strong> é inócuo: as opiniões e oshábitos são similares; logo, assim também o é a intensida<strong>de</strong> da reprovaçãoàs transgressões. Aqui, a solidarieda<strong>de</strong> social se baseia na similitu<strong>de</strong><strong>do</strong>s indivíduos, na “atração <strong>do</strong> semelhante pelo semelhante”, na felizexpressão <strong>do</strong> autor (Durkheim: 2004, p. 98).Por outro la<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>mínio numérico <strong>de</strong> normas restitutivas numacerta socieda<strong>de</strong> exprime uma modalida<strong>de</strong> mais sutil <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong> vigente:trata-se da solidarieda<strong>de</strong> orgânica.Com efeito, as normas restitutivas, como o próprio nome <strong>de</strong>ixa entrever,embora haja exceções, não visam a imputar castigo ou sofrimentoao transgressor, mas sim a restaurar o statu quo ante, ou seja, a recompora situação fática ao seu esta<strong>do</strong> “normal”. “Se já há fatos consuma<strong>do</strong>s,o juiz os restabelece tal como <strong>de</strong>veriam ter si<strong>do</strong>. Ele enuncia o direito,não enuncia as penas. As in<strong>de</strong>nizações por perdas e danos não têm caráterpenal, são somente um meio <strong>de</strong> voltar ao passa<strong>do</strong> para restituí-lo,na medida <strong>do</strong> possível, sob sua forma normal” (Durkheim: 2004, p. 85).Entretanto, tal reparação não diz respeito, segun<strong>do</strong> o autor, apenas aosparticulares envolvi<strong>do</strong>s; não concernem, p. ex., apenas aos contratantesem litígio pelo cumprimento <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> celebra<strong>do</strong>. Embora estranhas àconsciência coletiva – que é comum a to<strong>do</strong>s e que fundamenta as normasrepressivas <strong>do</strong> Direito Penal – as normas restitutivas também representamuma ligação, uma <strong>de</strong>pendência, <strong>do</strong> indivíduo em relação à socieda<strong>de</strong>;elas expressam a presença <strong>do</strong> valor <strong>de</strong> cooperação <strong>de</strong> cada um para como to<strong>do</strong>; <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, ao restaurar o statu quo ante, a norma restitutivareintegra o vínculo cooperativo que une a socieda<strong>de</strong>.Ressalve-se, num parêntesis, que Durkheim põe à parte nesse eloindivíduo-socieda<strong>de</strong> as relações oriundas <strong>de</strong> direitos reais – ou seja, aquelasque unem as pessoas não entre si, mas com as coisas –, das quais o direito<strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> é o exemplo mo<strong>de</strong>lar. Não há aí, diz ele, uma “solidarieda<strong>de</strong>verda<strong>de</strong>ira, com uma existência própria e uma natureza especial,mas antes o la<strong>do</strong> negativo <strong>de</strong> toda espécie <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong>. A primeiracondição para que um to<strong>do</strong> seja coeso é que as partes que o compõemnão se choquem em movimentos discordantes. Mas esse acor<strong>do</strong> externonão faz a sua coesão; ao contrário, a supõe.” (Durkheim: 2004, p. 95).Assim é que, exceto quanto às mencionadas relações oriundas <strong>de</strong>direitos reais, em que prevalecem em número as normas <strong>de</strong> naturezaR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 185


estitutiva, está-se em presença <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> complexa, cujo vínculo<strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> social, basea<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma prepon<strong>de</strong>rante na cooperação<strong>do</strong>s indivíduos, <strong>de</strong>riva especialmente da divisão <strong>do</strong> trabalhosocial, à moda <strong>de</strong> um organismo, em relação a suas células, teci<strong>do</strong>s eórgãos: cada um com sua função particular; to<strong>do</strong>s jungi<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes,ao fim e ao cabo, <strong>de</strong> uma mesma causa-final, que é o bom funcionamento<strong>do</strong> conjunto.Em bela síntese, nosso autor anota: “[c]ooperar, <strong>de</strong> fato, é dividiruma tarefa comum” (Durkheim: 2004, p. 100).Para Durkheim (2004, p. 422-3), é a intensificação da divisão <strong>do</strong>trabalho social o motivo <strong>de</strong>terminante da solidarieda<strong>de</strong> orgânica, uma vezque <strong>de</strong>la provém o processo correlato <strong>de</strong> diferenciação das consciênciasindividuais – entre elas mesmas e, consequentemente, em relação à consciênciacoletiva (comum). Na mesma medida em que se especializam asfunções <strong>do</strong>s indivíduos, formam-se personalida<strong>de</strong>s díspares, grupos especiaise setoriza<strong>do</strong>s, que aos poucos vão per<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a noção <strong>do</strong> to<strong>do</strong>. Nãoobstante isso, conscientes ou não, to<strong>do</strong>s estão vincula<strong>do</strong>s por inúmeroselos <strong>de</strong> cooperação, sem os quais a socieda<strong>de</strong> se dissolveria.O escopo <strong>de</strong> uma análise sociológica sobre a divisão <strong>do</strong> trabalhosocial, como a feita por Durkheim, seria, então, revelar a solidarieda<strong>de</strong>cooperativa, orgânica, daí oriunda.Em resumo: o papel das semelhanças sociais, nas socieda<strong>de</strong>s simples,é exerci<strong>do</strong> pela divisão <strong>do</strong> trabalho social, nas socieda<strong>de</strong>s complexas;naquelas são as similitu<strong>de</strong>s, nestas a divisão <strong>do</strong> trabalho, a fonte primordialda coesão social. Provam-no, segun<strong>do</strong> nosso autor, o progressivo encolhimentoverifica<strong>do</strong> pelas normas jurídicas repressivas, e a consequenteampliação das normas jurídicas restitutivas, à medida que a divisão <strong>do</strong>trabalho social avança e as socieda<strong>de</strong>s se tornam mais complexas.3 - Direito e moralida<strong>de</strong> social: algumas reflexõesDurkheim buscou no Direito o da<strong>do</strong> empírico da moral, cren<strong>do</strong> que,sem isso, sem um fato concreto, observável e objetivo que lhe <strong>de</strong>sse suporte,suas conclusões per<strong>de</strong>riam em cientificida<strong>de</strong>. A <strong>de</strong>fesa veemente<strong>de</strong>ssa etapa <strong>de</strong> seu raciocínio é revela<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um positivismo sociológicohoje ultrapassa<strong>do</strong>. No entanto, seria um grave erro relegar a um traço186R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011


histórico, data<strong>do</strong> e pouco importante da obra <strong>de</strong> Durkheim a judiciosapremissa que ele sustenta sobre a estreita relação entre Direito e moralida<strong>de</strong>social. Tal premissa merece ser analisada, discutida; e não ignorada.E é o que se busca fazer a seguir.É curioso, mas outra não parece ser a realida<strong>de</strong>: ao eleger as normasjurídicas como reflexo concreto, observável e seguro da moralida<strong>de</strong>social, ou seja, ao elegê-las cren<strong>do</strong> encontrar nelas um da<strong>do</strong> empírico,Durkheim acaba por i<strong>de</strong>alizar o processo <strong>de</strong> formação político-jurídica<strong>de</strong>ssas mesmas normas, especialmente nas ditas socieda<strong>de</strong>s complexas.Cogitemos, inicialmente, <strong>de</strong> uma questão preliminar, que já <strong>de</strong>notacerta i<strong>de</strong>alização. Supon<strong>do</strong>-se, por hipótese, que o Direito reflita fi<strong>de</strong>dignamentea moralida<strong>de</strong> social, <strong>de</strong>vemos indagar, <strong>de</strong> qualquer mo<strong>do</strong>, antes<strong>do</strong> mais, <strong>de</strong> que “Direito” estamos falan<strong>do</strong>? Do Direito posto ou <strong>do</strong> Direitoaplica<strong>do</strong> pelos juízes? A diferença é tão importante que gerou acesacontrovérsia nos meios jurídicos <strong>do</strong> oci<strong>de</strong>nte durante boa parte <strong>do</strong> séculoXX, opon<strong>do</strong>, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, a corrente <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> positivismo jurídico, que<strong>de</strong>fine o Direito a partir da norma posta pelo Esta<strong>do</strong> ou pelos costumes,e, <strong>de</strong> outro, a corrente <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> realismo jurídico, que <strong>de</strong>fine o Direitoa partir da aplicação dada pelos tribunais às normas positivadas (Bobbio:2005, p. 58-68).Durkheim opta claramente pelo Direito posto, e não pelo aplica<strong>do</strong>,ao estabelecer sua clivagem meto<strong>do</strong>lógica <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a pre<strong>do</strong>minância,numa dada socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> normas jurídicas repressivas ou restitutivas.Normas, entretanto, não são o mesmo que <strong>de</strong>cisões; e nem sempreas primeiras estão refletidas fielmente nas segundas.Essa opção meto<strong>do</strong>lógica traz, <strong>de</strong> início, alguns inconvenientes ei<strong>de</strong>alizações. Primeiro, o <strong>de</strong> preferir, como objeto <strong>de</strong> análise sociológica,a obra jurídica datada e abstrata <strong>de</strong> algumas poucas mentes privilegiadas(os projetistas <strong>de</strong> códigos) à análise da obra diuturna e concreta <strong>de</strong>magistra<strong>do</strong>s e advoga<strong>do</strong>s. 12 Segun<strong>do</strong>, o <strong>de</strong> supor uma representativida<strong>de</strong>política i<strong>de</strong>al da população no Parlamento, como se os parlamentares que12 É claro que qualquer opção meto<strong>do</strong>lógica traria inconvenientes; no entanto, especialmente para a análise dassocieda<strong>de</strong>s complexas, on<strong>de</strong> o intercâmbio e a importação <strong>de</strong> legislações são uma prática comum, geran<strong>do</strong> muitassemelhanças no âmbito <strong>do</strong> Direito posto, pareceria mais aconselhável, para os fins a que se propõe Durkheim, analisaro mo<strong>do</strong> como são aplicadas essas mesmas normas jurídicas aos casos concretos, sob pena <strong>de</strong> se encontraremmais similitu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> que realmente existem.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 187


votam e <strong>de</strong>liberam sobre os códigos e as leis a serem promulga<strong>do</strong>s representassem,proporcionalmente, cada um <strong>do</strong>s eleitores; como se não existissemgrupos <strong>de</strong> pressão; como se não existissem grupos sociais menosnumerosos, porém mais influentes, politicamente, que outros.Mais <strong>do</strong> que essa questão preliminar, no mérito mesmo da tesedurkheimiana há críticas pertinentes provindas, ao menos, <strong>de</strong> <strong>do</strong>is matizes<strong>de</strong> orientações absolutamente conflitantes sobre Direito. E, nestecaso, vale enfatizar que as críticas complementam-se uma à outra, em vez<strong>de</strong> se anular.Por um la<strong>do</strong>, a relação estreita que o autor estabelece entre Direitoe moralida<strong>de</strong> social faz lembrar, constantemente, a chamada teoria <strong>do</strong>“mínimo ético”, apresentada e, em geral, criticada já nos mais tradicionaismanuais <strong>de</strong> Introdução ao Direito 13 . Essa teoria postula que as normas jurídicasrepresentam o mínimo necessário para que a socieda<strong>de</strong> sobreviva.Como as regras morais, em geral, são cumpridas <strong>de</strong> maneira espontânea, aeficácia da sanção às suas transgressões não costuma ser contun<strong>de</strong>nte; porisso, quan<strong>do</strong> se trata <strong>de</strong> preceitos morais mínimos, que garantem a or<strong>de</strong>msocial, a “paz social”, é necessário <strong>do</strong>tá-los da coerção própria das normasjurídicas, obrigan<strong>do</strong>, assim, a to<strong>do</strong>s o seu cumprimento; aí, a moral se transformaem direito. Graficamente, a teoria <strong>do</strong> mínimo ético costuma ser representadapor <strong>do</strong>is círculos concêntricos; um maior, outro menor; sen<strong>do</strong>este o campo mais restrito <strong>do</strong> Direito e aquele, o mais amplo da moral.Ora, além <strong>de</strong> muitas normas jurídicas serem moralmente indiferentes,como o são as que estipulam prazos processuais, encontram-setambém, especialmente nas socieda<strong>de</strong>s que nosso autor <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong>complexas, normas jurídicas imorais. Assim, p. ex., atualmente no Brasilparece legítimo afirmar ser imoral a norma penal que <strong>de</strong>termina que osapena<strong>do</strong>s que <strong>de</strong>têm diploma <strong>de</strong> nível superior fazem jus a cumprir – sópor esse fato, e não por uma questão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ou algo <strong>do</strong> gênero – suaspenas em prisões especiais, distintas das prisões comuns, para on<strong>de</strong> vãoos <strong>de</strong>mais (art. 295, VII, <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Processo Penal). A um só tempo,essa norma parece romper com o sentimento da consciência coletiva ecom os elos <strong>de</strong> cooperação analisa<strong>do</strong>s por Durkheim, o que infirma, cabalmente,alguns exageros <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>fesa: dizer que é <strong>de</strong>sejável que asnormas jurídicas reflitam os imperativos morais mais importantes paraque não se dissolva a coesão social – como o fazem, não sem contestação,13 Por to<strong>do</strong>s, cf. REALE, Miguel. Lições Preliminares <strong>de</strong> Direito. 6ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 42-44.188R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011


os juristas preocupa<strong>do</strong>s com a manutenção da or<strong>de</strong>m social – é diferente<strong>de</strong> dizer que elas, <strong>de</strong> fato, refletem, como faz Durkheim (2004, p. 32-3).Ele confun<strong>de</strong>, nesse ponto, o i<strong>de</strong>al com o real.Por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que afasta<strong>do</strong> o equívoco <strong>de</strong> negar ao Direitoqualquer outra função que não a <strong>de</strong> ser mero instrumento <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação, 14também da perspectiva marxista se po<strong>de</strong>m retirar críticas pertinentes,e incisivas, ao i<strong>de</strong>alismo acima referi<strong>do</strong>. De fato, há inegavelmente umgran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> normas jurídicas – talvez aquelas que representem onúcleo duro <strong>do</strong> or<strong>de</strong>namento jurídico das socieda<strong>de</strong>s complexas (capitalistas)– que apresenta fortes elementos <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação <strong>de</strong> classe, como oé a sanção penal exageradamente pesada atribuída aos crimes contra opatrimônio.Diante da colocação citada <strong>de</strong> Miguel Reale (a criminalizaçãoda apropriação indébita não aten<strong>de</strong> apenas ao interesse davítima, e sim ao interesse social), <strong>de</strong>vemos perguntar-nos –sem que isso implique incondicional oposição a alguma tutelapenal da proprieda<strong>de</strong> – se a criminalização da apropriaçãoindébita aten<strong>de</strong> igualmente ao interesse <strong>de</strong> proprietários e<strong>de</strong> não-proprietários. 15Nesse contexto, confrontar a realida<strong>de</strong> é querer ver, refletida no Direito,em termos genéricos, a moralida<strong>de</strong> social: em vez <strong>de</strong> revelar limpidamentequalquer coisa, o que o Direito nos sistemas <strong>de</strong> produção capitalistaoculta, em gran<strong>de</strong> medida, é a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social. 16 Enquanto certasleituras marxistas sobre o Direito pecam por seu excessivo <strong>de</strong>terminismoeconomicista, em Da divisão <strong>do</strong> trabalho social, Durkheim peca pelo quese po<strong>de</strong>ria chamar <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminismo moral <strong>do</strong> Direito.Por fim, façamos uma reflexão local sobre a argumentação durkheimiana.Supon<strong>do</strong>, uma vez mais por hipótese, que o Direito possa espelharfielmente a moralida<strong>de</strong> social em certas socieda<strong>de</strong>s, como na socieda<strong>de</strong>14 Essa visão, baseada em escritos da juventu<strong>de</strong> <strong>de</strong> K. Marx, postula um <strong>de</strong>terminismo puro e simples das relaçõese instituições jurídicas pelas relações econômicas que lhes servem <strong>de</strong> base, negan<strong>do</strong> à instância jurídicaqualquer valor no processo <strong>de</strong> emancipação da classe trabalha<strong>do</strong>ra. Contra essa perspectiva, remeten<strong>do</strong>-se aescritos da maturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Marx e <strong>de</strong> F. Engels, cf. MARTINS, Maurício V. "Sobre a lei, o Direito e o i<strong>de</strong>al: emtorno da contribuição <strong>de</strong> E.P. Thompson aos estu<strong>do</strong>s jurídicos". In: Sociologia e Direito: exploran<strong>do</strong> as interseções.Niterói: PPGSD, 2007, p. 39-71.15 BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao Direito Penal Brasileiro. 4ª ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Revan, p. 57.16 Sobre o lugar <strong>do</strong> Direito na perspectiva marxista, cf. as interessantes discussões suscitadas em MARTINS, MaurícioV. Op. cit., bem como o texto clássico sobre o tema: MIAILLE, Michel. Introdução crítica <strong>do</strong> Direito. 2ª ed. Lisboa:Estampa, 1994, especialmente p. 75-84 e 86-103.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 189


francesa, pon<strong>de</strong>remos se essa afirmação é generalizável a to<strong>do</strong>s os or<strong>de</strong>namentosjurídicos <strong>de</strong> tradição romano-germânica, como o é o francês:valeriam as reflexões <strong>de</strong> Durkheim para to<strong>do</strong>s os or<strong>de</strong>namentos basea<strong>do</strong>sna autorida<strong>de</strong> da lei posta pelo Esta<strong>do</strong>? 17Certamente, não.Especialmente em formações sociais recentes e consi<strong>de</strong>radas periféricasou semiperiféricas, na economia e na política internacional, comoainda o é a brasileira, em que o sentimento <strong>de</strong> nacionalida<strong>de</strong> é incipiente,a influência e às vezes até a submissão a padrões estrangeiros <strong>de</strong> comportamentoe <strong>de</strong> pensamento são uma marca secular. Sérgio Buarque <strong>de</strong>Holanda, já no primeiro parágrafo <strong>de</strong> seu livro mais conheci<strong>do</strong>, sentenciava:“somos ainda hoje uns <strong>de</strong>sterra<strong>do</strong>s em nossa terra” (Holanda:1995, p. 31). Diferentemente <strong>do</strong> que ocorre na França, p. ex., que <strong>de</strong>témuma tradição jurídica própria e arraigada pela população, a tradição jurídicabrasileira ainda está por construir, ten<strong>do</strong> vivencia<strong>do</strong> durante muitosanos, e esforçan<strong>do</strong>-se para <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> vivenciar, a pura e simples importação<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los legislativos estrangeiros e sua aplicação às relações jurídicaslocais: importações <strong>de</strong> Portugal, da França, da Alemanha, da Itália, <strong>do</strong>sEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América etc.Um sinal disso, marca<strong>do</strong> em nossa história, é que, até o ano <strong>de</strong>1917, quan<strong>do</strong> passou a viger o primeiro Código Civil brasileiro, após quase100 (cem) anos <strong>de</strong> in<strong>de</strong>pendência, sen<strong>do</strong> 28 (vinte e oito) <strong>de</strong> regimerepublicano, permaneciam em vigor, para regular as relações civis, as Or<strong>de</strong>naçõesFilipinas, publicadas no longínquo ano <strong>de</strong> 1603, durante a <strong>do</strong>minaçãoespanhola sobre Portugal. E, curiosamente, quase 50 (cinquenta)anos antes <strong>de</strong> serem revogadas no Brasil, as Or<strong>de</strong>nações Filipinas já haviamsi<strong>do</strong> revogadas em Portugal! 18Ora, será possível <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que nas Or<strong>de</strong>nações Filipinas <strong>de</strong> 1603,uma obra <strong>de</strong> espanhóis e portugueses, estariam retrata<strong>do</strong>s os elos <strong>de</strong> cooperação,ou a consciência coletiva, da socieda<strong>de</strong> brasileira <strong>do</strong> século XIX,cujas relações civis elas regiam? Parece certo que não.Mas nem mesmo se progredirmos para o Código Civil <strong>de</strong> 1916, obra<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> brasileiro, Clóvis Bevilacqua, elogiada por juristas <strong>de</strong> to<strong>do</strong>17 Sobre a distinção entre a tradição romano-germânica e a anglo-saxônica, baseada na autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s prece<strong>de</strong>ntesjudiciais, orienta<strong>do</strong>s pelos costumes, cf. DAVID, René. Os gran<strong>de</strong>s sistemas <strong>do</strong> Direito contemporâneo. São Paulo:Martins Fontes, 2002, especialmente p. 31-171 e 351-508.18 Sobre o tema, cf. GOMES, Orlan<strong>do</strong>. Raízes históricas e sociológicas <strong>do</strong> código civil brasileiro. São Paulo: MartinsFontes, 2003, especialmente p. 1-23.190R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011


o mun<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>ríamos imaginar encontrar melhor sorte. De fato, com apretensão <strong>de</strong> revogar não só toda a legislação vigente à sua época, comotambém os usos e costumes, atinentes ao Direito Civil; 19 com nada menosque 1.445 artigos oriun<strong>do</strong>s direta ou indiretamente <strong>do</strong> Direito Romano(Giordani: 1999, p. XVII), com marcada influência da escola alemã <strong>do</strong> Direitono século XIX, conhecida como Pan<strong>de</strong>ctas (De Cicco: 2006, p. 277-283); e, ao mesmo tempo, com um número consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> transcrições<strong>do</strong> Código Napoleão (De Cicco: 2006, p. 275), em vez <strong>de</strong> refletir qualquercoisa da socieda<strong>de</strong> brasileira, nosso primeiro Código Civil parecia ter, muitoao contrário, um propósito “civilizatório” e educa<strong>do</strong>r para a socieda<strong>de</strong>brasileira, um propósito <strong>de</strong>, através <strong>de</strong> sua força normativa, mudar, emcertos aspectos, a cultura vigente, aproximan<strong>do</strong>-a <strong>do</strong>s padrões europeus.O Código Civil colocou-se, em conjunto, acima da realida<strong>de</strong>brasileira, incorporan<strong>do</strong> idéias e aspirações da camada maisilustrada da população. Distancian<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>, oseu papel seria, em pouco tempo, <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> significação naevolução cultural <strong>do</strong> país. Primeiramente, porque exerceunotável função educativa. 20Quantas leis nossas, a começar pela Constituição, não têm segui<strong>do</strong>o mesmo espírito e propósito? Quantas leis nossas – pensemos naquelasque internalizam trata<strong>do</strong>s internacionais <strong>de</strong> direitos humanos – não têmsi<strong>do</strong> simplesmente negligenciadas em vez <strong>de</strong> aplicadas pelos tribunais epelo Esta<strong>do</strong> brasileiro?Dizer, nesse contexto comparativo, que, tanto o Esta<strong>do</strong> francêscomo o Esta<strong>do</strong> brasileiro, seguem a tradição jurídica romano-germânica 21não assegura qualquer semelhança entre as suas socieda<strong>de</strong>s. A lei lá temuma representativida<strong>de</strong> social muito diferente da que tem aqui. E se, porhipótese, as normas jurídicas francesas pu<strong>de</strong>ssem representar fielmentea moralida<strong>de</strong> social <strong>de</strong> seu povo, como <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> Durkheim, no Brasil, salvomelhor juízo, isso <strong>de</strong>finitivamente não ocorre: se não por outros argumentos,ao menos pelo fato <strong>de</strong> ser incipiente, pouco arraigada pela populaçãoe, ainda hoje, importa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los legislativos e interpretativosa nossa tradição jurídica.19 “Art. 1.807. Ficam revogadas as Or<strong>de</strong>nações, Alvarás, Leis, Decretos, Resoluções, Usos e Costumes concernentesàs matérias <strong>de</strong> direito civil reguladas neste Código.”20 GOMES, Orlan<strong>do</strong>. Op. cit., p. 45.21 Sobre a tradição romano-germânica e sobre sua expansão além da Europa, cf. DAVID, René. Op. cit. p. 33-81.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011 191


4 – Consi<strong>de</strong>rações finais: uma tese datada?À moda <strong>de</strong> um silogismo, po<strong>de</strong>r-se-ia simplesmente concluir: nãoproce<strong>de</strong> a tese pressuposta <strong>de</strong> Émile Durkheim segun<strong>do</strong> a qual o Direito éum símbolo visível da moralida<strong>de</strong> social, no mínimo em relação à formaçãosócio-jurídica brasileira – lembran<strong>do</strong> que a tese central propriamentedita, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que a causa <strong>de</strong>terminante da coesão social nas socieda<strong>de</strong>scomplexas seria a divisão <strong>do</strong> trabalho social, não foi diretamenteenfrentada por transbordar o recorte <strong>de</strong>ste ensaio.Mas será só isso? Talvez um leitor pergunte: <strong>de</strong> que vale chegaràquela conclusão silogística, passa<strong>do</strong>s quase cem anos da morte <strong>do</strong> autore quase cento e cinquenta da elaboração da tese, <strong>de</strong>fendida na França<strong>do</strong> último quarto <strong>do</strong> século XIX? Em resposta, que fiquem para reflexãooutras questões: será que não encontramos, atualmente, especialmenteno campo jurídico-político, afirmações veementes que vinculam a meraedição <strong>de</strong> novas leis a “avanços sociais”? será que não haverá, também aí,a precipitação <strong>de</strong> ver nas normas jurídicas um da<strong>do</strong> “empírico” <strong>do</strong> social,notadamente numa socieda<strong>de</strong>, como a brasileira, on<strong>de</strong> o hiato entre o Direitoposto e o Direito aplica<strong>do</strong> é enorme? não serão essas generalizaçõesatualizações, ainda que parciais e sob outra roupagem, daquela longínquatese pressuposta <strong>de</strong> Durkheim?São indagações para futuros <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos.192R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 179-192, out.-<strong>de</strong>z. 2011


A objetivação <strong>do</strong> controleinci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>1. INTRODUÇÃORafael Gomi<strong>de</strong> MartinhoAdvoga<strong>do</strong>. Especialista em Direito Público e Priva<strong>do</strong>pela EMERJ. Monitor Acadêmico <strong>de</strong> Direito Constitucionalda EMERJ.O controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> foi inseri<strong>do</strong> no or<strong>de</strong>namentojurídico brasileiro pela Constituição Republicana <strong>de</strong> 1891 1 . Pelainfluência <strong>do</strong> direito norte-americano, em face <strong>de</strong> se ter a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> o paradigmada Constituição <strong>de</strong> 1787, o Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral foi <strong>do</strong>ta<strong>do</strong><strong>de</strong> competência para julgar recursos em última instância que contestavama constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada lei ou ato normativo.No controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, a apreciação daconstitucionalida<strong>de</strong> da lei ou ato normativo é submetida ao juízo <strong>de</strong> formainci<strong>de</strong>ntal, no curso <strong>de</strong> uma li<strong>de</strong>, conflito <strong>de</strong> interesses.Dessa forma, qualquer juiz ou tribunal po<strong>de</strong> reconhecer a inconstitucionalida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma lei ou ato normativo quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> julgamento <strong>de</strong>uma <strong>de</strong>manda. A apreciação da compatibilida<strong>de</strong> da lei ou <strong>do</strong> ato normativocom a Constituição Fe<strong>de</strong>ral não é a questão principal, mas simprejudicial para o <strong>de</strong>slin<strong>de</strong> da controvérsia trazida à baila pelas partes.O processo nesses casos é subjetivo, pois envolve um interesse veicula<strong>do</strong>na pretensão da parte autora em face <strong>de</strong> resistência da parte réem entregar o bem da vida disputa<strong>do</strong>, ou na exigência da manifestação<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r judiciário para a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> um direito que o autor reputacomo sen<strong>do</strong> seu.Assim, e a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> o entendimento clássico consagra<strong>do</strong> na <strong>do</strong>utrinae jurisprudência, ten<strong>de</strong>-se a admitir apenas o efeito inter partes das<strong>de</strong>cisões proferidas no controle concreto, já que se trata <strong>de</strong> um processo1 Nesse senti<strong>do</strong>, a Lei 221 <strong>de</strong> 1894 explicitou ainda mais o sistema difuso <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, consagran<strong>do</strong>no seu artigo 13, parágrafo 10, a seguinte cláusula: “Os juízes e tribunais apreciarão a valida<strong>de</strong> das leis eregulamentos e <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentosmanifestamente incompatíveis com as leis ou com a Constituição”. BRASIL. Lei nº 221 <strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1894.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011 193


subjetivo em que a questão <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> se apresenta comoprejudicial ou preliminar.Para que a <strong>de</strong>cisão em controle concreto tivesse efeitos gerais eeficácia erga omnes, era indispensável a edição <strong>de</strong> resolução <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>Fe<strong>de</strong>ral que suspen<strong>de</strong>sse a aplicação da norma, nos termos <strong>do</strong> artigo 52,X da CRFB, dispositivo acrescenta<strong>do</strong> pela Constituição <strong>de</strong> 1934 e repeti<strong>do</strong>pelas <strong>de</strong>mais.Contu<strong>do</strong>, <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res como Gilmar Men<strong>de</strong>s 2 e Luis RobertoBarroso 3 <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m ser dispensável a edição <strong>de</strong> resolução pelo Sena<strong>do</strong>Fe<strong>de</strong>ral para conferir efeitos gerais às <strong>de</strong>cisões proferidas pelo STF emcontrole concreto.Afirmam os cita<strong>do</strong>s <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res que a Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong>1988, somada às alterações legislativas, trouxe profundas modificaçõesao sistema <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, aproximan<strong>do</strong> o controleconcreto <strong>do</strong> controle concentra<strong>do</strong>. Em razão disso, as <strong>de</strong>cisões proferidaspelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, em se<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>,passaram a gozar <strong>do</strong> inevitável efeito erga omnes.Ressalta o professor Gilmar Men<strong>de</strong>s que 4 :Se o STF, em se<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle inci<strong>de</strong>ntal, chegar à conclusão,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>finitivo, <strong>de</strong> que a lei é inconstitucional, essa <strong>de</strong>cisãoterá efeitos gerais, fazen<strong>do</strong>-se a comunicação ao Sena<strong>do</strong>Fe<strong>de</strong>ral para que publique a <strong>de</strong>cisão no Diário <strong>do</strong> Congresso.Tal como assente, não é mais a <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> que confereeficácia ao julgamento <strong>do</strong> Supremo. A própria <strong>de</strong>cisão daCorte contém essa força normativa. Parece evi<strong>de</strong>nte ser essaa orientação implícita nas diversas <strong>de</strong>cisões judiciais e legislativasacima referidas. Assim, o Sena<strong>do</strong> não terá a faculda<strong>de</strong><strong>de</strong> publicar ou não a <strong>de</strong>cisão, uma vez que não se cuida <strong>de</strong><strong>de</strong>cisão substantiva, mas <strong>de</strong> simples <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> publicação. Anão publicação não terá o condão <strong>de</strong> impedir que a <strong>de</strong>cisão<strong>do</strong> STF assuma a real eficácia.2 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional.2 ed. São Paulo: Saraiva, 2008.3 BARROSO, Luis Roberto. O controle <strong>de</strong> Constitucionalida<strong>de</strong> no Direito Brasileiro: exposição sistemática da Doutrinae Análise Crítica da Jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2008.4 MENDES, Gilmar Ferreira. op. cit. p. 1084.194R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Em senti<strong>do</strong> contrário, o sau<strong>do</strong>so professor Celso Ribeiro Bastos 5 :O traço diferencial aparta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma ou outra via <strong>de</strong> provocaçãoda ativida<strong>de</strong> jurisdicional resi<strong>de</strong>, na verda<strong>de</strong>, no fato<strong>de</strong> pela via <strong>de</strong> exceção preten<strong>de</strong>r apenas o interessa<strong>do</strong> sersubtraí<strong>do</strong> da incidência da norma viciada, ou <strong>do</strong> ato inconstitucional.É certo que, para <strong>de</strong>sobrigar aquele que invocou osupremo vício jurídico, <strong>de</strong>verão os juízes <strong>do</strong>s tribunais a quecouber o julgamento <strong>do</strong> feito pronunciar-se sobre a alegadainconstitucionalida<strong>de</strong>. Entretanto, essa pronúncia não é feitaenquanto manifestação sobre o objeto principal da li<strong>de</strong>,mas sim sobre questão prévia, indispensável ao julgamento<strong>do</strong> mérito. Na via <strong>de</strong> exceção ou <strong>de</strong>fesa, o que é outorga<strong>do</strong>ao interessa<strong>do</strong> é obter a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong>somente para efeito <strong>de</strong> eximi-lo <strong>do</strong> cumprimento da lei ouato, produzi<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>sacor<strong>do</strong> com a lei maior. Entretanto,esse ato ou lei permanecem váli<strong>do</strong>s no que se refere a suaforça obrigatória com relação a terceiros.Alterações legislativas inseriram traços característicos <strong>do</strong> controleabstrato <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> no controle concreto, admitin<strong>do</strong> a concessão<strong>de</strong> efeitos gerais às <strong>de</strong>cisões proferidas pelo STF.É o caso, por exemplo, da previsão inserida no artigo art. 557, § 1º-A,CPC, que permite ao relator dar provimento ao recurso quan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>cisãorecorrida estiver em confronto com a jurisprudência <strong>do</strong> STF (art. 557, § 1º-A,CPC). Também o parágrafo primeiro <strong>do</strong> artigo 518 <strong>do</strong> CPC, inseri<strong>do</strong> pelaLei 11.276/2006, que instituiu a chamada “súmula impeditiva <strong>de</strong> recurso”,se traduz num eficiente instrumento <strong>de</strong> vinculação aos prece<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong>Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral.Por força <strong>do</strong> cita<strong>do</strong> dispositivo, ao fazer o primeiro juízo <strong>de</strong> admissibilida<strong>de</strong>no recurso <strong>de</strong> apelação, o juiz não <strong>de</strong>ve receber o apelo caso asentença esteja em conformida<strong>de</strong> com súmula <strong>do</strong> Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong>Justiça ou <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral.Igualmente, o artigo 481, parágrafo único, <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> ProcessoCivil dispõe ser incabível o inci<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> suscita<strong>do</strong>perante os tribunais, quan<strong>do</strong> houver <strong>de</strong>cisão plenária <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong>Fe<strong>de</strong>ral.5 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional. 22 ed. São Paulo: Saraiva, 2001.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011 195


Ainda mais radical foi a criação da súmula vinculante pela EmendaConstitucional n. 45, editada pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, ten<strong>do</strong> porbase reiteradas <strong>de</strong>cisões proferidas em controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>.As súmulas vinculantes têm por objetivo superar controvérsia atualsobre a valida<strong>de</strong>, interpretação e eficácia <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas normas capazes<strong>de</strong> gerar insegurança jurídica e relevante proliferação <strong>de</strong> processosjudiciais. Tais normas po<strong>de</strong>rão ser <strong>de</strong> natureza fe<strong>de</strong>ral, estadual ou municipal,ten<strong>do</strong> por base eventual contradição ao texto Constitucional.Exige-se, ainda, para edição da súmula vinculante, a preexistência<strong>de</strong> reiteradas <strong>de</strong>cisões sobre a matéria constitucional, <strong>de</strong>correntes, emprincípio, <strong>de</strong> casos concretos, em que a análise <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>terminada norma se dá <strong>de</strong> forma inci<strong>de</strong>ntal.Todas essas inovações legislativas reforçam a teoria <strong>de</strong> objetivação<strong>do</strong> controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> e têm a finalida<strong>de</strong> maior <strong>de</strong>evitar o número crescente <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas idênticas que possuem por objetoentendimento pacifica<strong>do</strong> no STF.Se não bastasse isso, a jurisprudência <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ralreforçou essa tendência legislativa <strong>de</strong> aproximação das modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>controles <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> e admitiu que instrumentos próprios <strong>do</strong>controle concreto extrapolassem os seus limites subjetivos e passassem aser utiliza<strong>do</strong>s com a finalida<strong>de</strong> maior <strong>de</strong> assegurar a efetivida<strong>de</strong> das normasconstitucionais.Nesse senti<strong>do</strong>, o Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral passou a conferir ao recursoextraordinário instrumento próprio <strong>de</strong> controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>,causa <strong>de</strong> pedir aberta, dispensan<strong>do</strong> em alguns casos aobservância <strong>do</strong> requisito <strong>do</strong> prequestionamento.Cita-se o magistério <strong>de</strong> Fredie Didier e Leonar<strong>do</strong> José Carneiro daCunha sobre o tema 6 :À semelhança <strong>do</strong> que já acontece no julgamento das ações<strong>de</strong> controle concentra<strong>do</strong> <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, a causa <strong>de</strong>pedir (no caso, a causa <strong>de</strong> pedir recursal) é aberta, permitin<strong>do</strong>que o STF <strong>de</strong>cida a questão da constitucionalida<strong>de</strong> combase em outro fundamento, mesmo que não enfrenta<strong>do</strong> pelotribunal recorri<strong>do</strong>. Trata-se <strong>de</strong> interpretação que confirma o6 DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonar<strong>do</strong> José Carneiro. Curso <strong>de</strong> Direito Processual Civil, v. 3. 5. ed. Bahia: JusPodivm, 2008, p. 325.196R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011


que se vem afirman<strong>do</strong> sobre a correta exegese <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>n. 456 da sumulada jurisprudência <strong>do</strong>minante <strong>do</strong> STF.Isso garante ao STF plena liberda<strong>de</strong> para analisar a questão <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>no plano abstrato, sem estar adstrito às causas elencadaspelas partes, o que comprova que o recurso extraordinário aten<strong>de</strong> <strong>de</strong>forma eficiente a sua vocação <strong>de</strong> pacificação da interpretação da normaConstitucional.Reforçan<strong>do</strong> essa característica <strong>de</strong> objetivação <strong>do</strong> recurso extraordinário,afirma Fredie Didier 7 :O TSE, diante <strong>de</strong>sse julgamento, conferin<strong>do</strong>-lhe eficácia ergaomnes, (nota-se que se trata <strong>de</strong> um julgamento em recursoextraordinário, controle difuso, pois), editou a resolução n.21.702/2004, na qual a<strong>do</strong>tou o posicionamento <strong>do</strong> STF. Essaresolução foi alvo <strong>de</strong> duas ações diretas <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong>(3.345 e 3.365), relator Ministro Celso <strong>de</strong> Mello, queforam rejeitadas, sob o argumento <strong>de</strong> que o TSE, ao expandira interpretação constitucional <strong>de</strong>finitiva dada pelo STF,guardião da constituição, submeteu-se ao princípio da forçanormativa da Constituição. Aqui, mais uma vez, aparece o fenômenoora comenta<strong>do</strong>: uma <strong>de</strong>cisão proferida pelo STF emcontrole difuso passa a ter eficácia erga omnes, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong>a causa da edição <strong>de</strong> uma resolução <strong>do</strong> TSE (norma geral)sobre a matéria.A Ministra Ellen Gracie assim se manifestou ao admitir o recursoextraordinário mesmo sem o cumprimento <strong>do</strong> requisito <strong>do</strong> prequestionamento,<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a transformação daquele em remédio <strong>de</strong> controleabstrato <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, com a finalida<strong>de</strong> maior <strong>de</strong> conferir efetivida<strong>de</strong>ao posicionamento <strong>do</strong> STF 8 :Com efeito, o Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, em recentes julgamentos,vem dan<strong>do</strong> mostras <strong>de</strong> que o papel <strong>do</strong> recurso extraordináriona jurisdição constitucional está em processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a conferir maior efetivida<strong>de</strong> às <strong>de</strong>cisões.7 DIDER JUNIOR, op. cit. p. 327 e 328.8 A transcrição <strong>do</strong> voto proferi<strong>do</strong> pela Ministra Ellen Gracie nos autos <strong>do</strong> Agravo <strong>de</strong> instrumento n. 375.011 seencontra no Informativo <strong>de</strong> Jurisprudência <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, número 365, disponível no site http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/<strong>do</strong>cumento/informativo365.htm. Acesso em 04/05/2011.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011 197


Recor<strong>do</strong> a discussão que se travou na Medida Cautelar no RE376.852, <strong>de</strong> relatoria <strong>do</strong> Ministro Gilmar Men<strong>de</strong>s (Plenário,por maioria, DJ <strong>de</strong> 27.03.2003).Naquela ocasião, asseverou Sua Excelência o caráter objetivoque a evolução legislativa vem emprestan<strong>do</strong> ao recursoextraordinário, como medida racionaliza<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> efetivaprestação jurisdicional. Registro também importante <strong>de</strong>cisãotomada no RE 298.694, rel. Min. Pertence, por maioria, DJ23/4/2004, quan<strong>do</strong> o Plenário <strong>de</strong>sta Casa, a par <strong>de</strong> alterarantiga orientação quanto ao juízo <strong>de</strong> admissibilida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mérito <strong>do</strong> apelo extremo interposto pela alínea “a” <strong>do</strong> permissivoconstitucional, reconheceu a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um recursoextraordinário ser julga<strong>do</strong> com base em fundamento diversodaquele em que se lastreou a Corte a quo. Esses julga<strong>do</strong>s,segun<strong>do</strong> enten<strong>do</strong>, constituem um primeiro passo para a flexibilização<strong>do</strong> prequestionamento nos processos cujo tema <strong>de</strong>fun<strong>do</strong> foi <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pela composição plenária <strong>de</strong>sta SupremaCorte, com o fim <strong>de</strong> impedir a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> soluções diferentesem relação à <strong>de</strong>cisão colegiada. É preciso valorizar a últimapalavra - em questões <strong>de</strong> direito - proferida por esta Casa.Destaco, outrossim, que o RE 251.238 foi provi<strong>do</strong> para se julgarproce<strong>de</strong>nte ação direta <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> da competênciaoriginária <strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça estadual, processoque, como se sabe, tem caráter objetivo, abstrato e efeitoserga omnes. Essa <strong>de</strong>cisão, por força <strong>do</strong> art. 101 <strong>do</strong> RISTF,<strong>de</strong>ve ser imediatamente aplicada aos casos análogos submeti<strong>do</strong>sà Turma ou ao Plenário. É essa a orientação firmadapela 1ª Turma <strong>de</strong>sta Casa no RE 323.526, rel. Min. SepúlvedaPertence, unânime, DJ 31/5/2002, resumi<strong>do</strong> na seguinteementa: “Declaração, pelo Plenário <strong>do</strong> STF, no julgamento <strong>do</strong>RE 251.238-RS (red. para acórdão Nelson Jobim, 7.11.2001,Inf. 249), <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> art. 7º e parágrafosda L. 7.428/94, com a redação dada pela L. 7.539/94, <strong>do</strong>Município <strong>de</strong> Porto Alegre, que previam o reajuste automáticobimestral <strong>do</strong>s vencimentos <strong>do</strong>s servi<strong>do</strong>res municipaispela variação <strong>do</strong> índice <strong>de</strong> entida<strong>de</strong> particular (ICV-DIEESE).198R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Aplicação <strong>do</strong> art. 101 RISTF, a teor <strong>do</strong> qual - salvo proposta <strong>de</strong>revisão por qualquer <strong>do</strong>s Ministros - a <strong>de</strong>claração plenária <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong> ou inconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei será <strong>de</strong> logoaplicada aos novos feitos submeti<strong>do</strong>s à Turma ou ao Plenário:recurso extraordinário <strong>do</strong> Município conheci<strong>do</strong> e provi<strong>do</strong>.Outro exemplo <strong>de</strong>ssa tendência é a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise acercada constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ato normativo no bojo da açãocivil pública, que, por se tratar <strong>de</strong> ação coletiva, terá a inevitável eficáciaerga omnes.Nesse senti<strong>do</strong>, cita-se o julga<strong>do</strong> da relatoria <strong>do</strong> Ministro Neri daSilveira, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a análise da constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada leiou ato normativo em se<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação civil pública, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que esta não tenhapor objeto propriamente dito a questão constitucional 9 :Na ação civil pública ora em julgamento, dá-se controle <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong> da Lei nº 8024/1990 por via difusa. Mesmoadmitin<strong>do</strong> que a <strong>de</strong>cisão em exame afasta a incidência <strong>de</strong>Lei que seria aplicável à hipótese concreta, por ferir direitoadquiri<strong>do</strong> e ato jurídico perfeito, certo está que o acórdão respectivonão fica imune ao controle <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, à vista <strong>do</strong> art. 102, III, letra b, da Lei Maior,eis que <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>finitiva <strong>de</strong> Corte local terá reconheci<strong>do</strong> ainconstitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lei fe<strong>de</strong>ral ao dirimir <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>conflito <strong>de</strong> interesses. Manifesta-se, <strong>de</strong>ssa maneira, a convivência<strong>do</strong>s <strong>do</strong>is sistemas <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>:a mesma lei fe<strong>de</strong>ral ou estadual po<strong>de</strong>rá ter <strong>de</strong>clarada sua invalida<strong>de</strong>,quer, em abstrato, na via concentrada, originariamente,pelo STF (CF, art. 102, I, a), quer na via difusa, inci<strong>de</strong>ntertantum, ao ensejo <strong>do</strong> <strong>de</strong>sate <strong>de</strong> controvérsia, na <strong>de</strong>fesa<strong>de</strong> direitos subjetivos <strong>de</strong> partes interessadas, afastan<strong>do</strong>-sesua incidência no caso concreto em julgamento. 8. Nas açõescoletivas, não se nega, à evidência, também, a possibilida<strong>de</strong>da <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong>, inci<strong>de</strong>nter tantum,<strong>de</strong> lei ou ato normativo fe<strong>de</strong>ral ou local. 9. A eficácia ergaomnes da <strong>de</strong>cisão, na ação civil pública, ut art. 16, da Lei nº7347/1997, não subtrai o julga<strong>do</strong> <strong>do</strong> controle das instâncias9 BRASIL. Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral. Reclamação n. 600-0/SP. Relator: Min. Néri da Silveira. Publica<strong>do</strong> no DJ<strong>de</strong> 06.12.2003.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011 199


superiores, inclusive <strong>do</strong> STF. No caso concreto, por exemplo,já se interpôs recurso extraordinário, relativamente ao qual,em situações graves, é viável emprestar-se, a<strong>de</strong>mais, efeitosuspensivo. 10. Em reclamação, em que sustentada a usurpação,pela Corte local, <strong>de</strong> competência <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong>Fe<strong>de</strong>ral, não cabe, em tese, discutir em torno da eficácia dasentença na ação civil pública (Lei nº 7347/1985, art. 16), oque po<strong>de</strong>rá, entretanto, constituir, eventualmente, tema <strong>do</strong>recurso extraordinário. 11. Reclamação julgada improce<strong>de</strong>nte,cassan<strong>do</strong>-se a liminar.É bem verda<strong>de</strong> que o Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral passou a ter umaroupagem <strong>de</strong> Corte Constitucional, fenômeno esse que teve início naemenda constitucional n. 18/65 e se acelerou nos últimos anos com asinúmeras alterações legislativas que passaram a conferir efeitos gerais eeficácia erga omnes às suas <strong>de</strong>cisões.To<strong>do</strong>s esses argumentos embasam a tese <strong>de</strong> objetivação <strong>do</strong> controleconcreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, que torna absolutamente dispensávela edição <strong>de</strong> resolução suspensiva pelo Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral para que as <strong>de</strong>cisões<strong>do</strong> STF tenham eficácia erga omnes.A<strong>de</strong>mais, é inegável a superação da concepção <strong>de</strong> separação <strong>do</strong>spo<strong>de</strong>res existentes à época em que o instituto foi inseri<strong>do</strong> no or<strong>de</strong>namentojurídico pátrio, o que, alia<strong>do</strong> à omissão crônica <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral emeditar a citada resolução, fez com que o artigo 52, X, da Constituição Fe<strong>de</strong>ralse tornasse letra morta.O próprio Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, apoia<strong>do</strong> nos ensinamentos <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> parte da <strong>do</strong>utrina 10 , tem afirma<strong>do</strong> que o Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral não estáobriga<strong>do</strong> a editar a resolução suspensiva, o que contribuiu para que ocita<strong>do</strong> instituto caísse em <strong>de</strong>suso.Aliás, o STF não comunica o Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral acerca das suas <strong>de</strong>cisõesem se<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1995,concorren<strong>do</strong> para a ineficácia <strong>do</strong> dispositivo.10 Nesse senti<strong>do</strong>, afirma Paulo Napoleão Nogueira da Silva: "É <strong>de</strong> natureza <strong>de</strong>cisória a competência privativa <strong>do</strong>Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral para suspen<strong>de</strong>r a execução <strong>de</strong> lei ou <strong>de</strong>creto <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s inconstitucionais pelo Supremo <strong>Tribunal</strong>Fe<strong>de</strong>ral, pela via inci<strong>de</strong>ntal. Ao Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral compete aplicar os critérios <strong>de</strong> conveniência e oportunida<strong>de</strong> emrelação à suspensão da execução da lei, além <strong>de</strong> cercar seu exame <strong>de</strong> cautelas necessárias para constar a reiteração<strong>do</strong>s julga<strong>do</strong>s da Alta Corte, no mesmo senti<strong>do</strong>, prevenin<strong>do</strong> com essas cautelas uma eventual mudança <strong>de</strong> entendimento<strong>do</strong> <strong>Tribunal</strong>. O Sena<strong>do</strong>, portanto, não está obriga<strong>do</strong> a suspen<strong>de</strong>r a execução <strong>de</strong> lei ou ato normativo <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>inconstitucional pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral: trata-se <strong>de</strong> um juízo <strong>de</strong> conveniência e oportunida<strong>de</strong>, que lhe foi<strong>de</strong>feri<strong>do</strong> pelo constituinte". SILVA, Paulo Napoleão Nogueira. A evolução <strong>do</strong> controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> e acompetência <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral. Revista <strong>do</strong>s Tribunais, 1992.200R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Dessa forma, a omissão <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral em editar a resoluçãosuspensiva, aliada à tese <strong>de</strong> objetivação <strong>do</strong> controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>,fez com que alguns <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res passassem a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r amutação constitucional <strong>do</strong> artigo 52, X, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral.O Ministro Gilmar Men<strong>de</strong>s vem <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a releitura <strong>do</strong> artigo52, X, da CRFB, que se prestaria apenas para dar publicida<strong>de</strong> às <strong>de</strong>cisõesproferidas pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral em controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>11 :Parece legítimo enten<strong>de</strong>r que a fórmula relativa a suspensão<strong>de</strong> execução da lei pelo Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral há <strong>de</strong> ter simplesefeito <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>. Dessa forma, se o Supremo <strong>Tribunal</strong>Fe<strong>de</strong>ral, em se<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle inci<strong>de</strong>ntal, chegar à conclusão,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>finitivo, <strong>de</strong> que a lei é inconstitucional, essa <strong>de</strong>cisãoterá efeitos gerais, fazen<strong>do</strong>-se comunicação ao Sena<strong>do</strong>Fe<strong>de</strong>ral, para que publique a <strong>de</strong>cisão no Diário <strong>do</strong> Congresso.Tal como assente, não é mais a <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ralque confere eficácia geral ao julgamento <strong>do</strong> Supremo. A própria<strong>de</strong>cisão da Corte contém essa força normativa. Pareceevi<strong>de</strong>nte que essa orientação está implícita nas diversas <strong>de</strong>cisõesjudiciais e legislativas acima referidas. Assim, o Sena<strong>do</strong>,Fe<strong>de</strong>ral não terá a faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> publicar ou não a <strong>de</strong>cisão,uma vez que não cuida <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão substantiva, mas <strong>de</strong> simples<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> publicação, tal como reconheci<strong>do</strong> a outros órgãospolíticos em alguns sistemas constitucionais.Esse posicionamento foi novamente <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> pelo Ministro GilmarMen<strong>de</strong>s quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> julgamento da Reclamação 4335 12 :Para apreciar a dimensão constitucional <strong>do</strong> tema, discorreusobre o papel <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral no controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>.Aduziu que, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a <strong>do</strong>utrina tradicional, a suspensãoda execução pelo Sena<strong>do</strong> <strong>do</strong> ato <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> inconstitucionalpelo STF seria ato político que empresta eficáciaerga omnes às <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>finitivas sobre inconstitucionalida-11 MENDES, op. cit. p. 1085.12 Notícia veiculada no Informativo <strong>de</strong> jurisprudência <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, n. 454, disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/<strong>do</strong>cumento/informativo454.htm. Acesso em 15/11/2009.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011 201


<strong>de</strong> proferidas em caso concreto. Asseverou, no entanto, quea amplitu<strong>de</strong> conferida ao controle abstrato <strong>de</strong> normas e apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se suspen<strong>de</strong>r, liminarmente, a eficácia <strong>de</strong>leis ou atos normativos, com eficácia geral, no contexto daCF/88, concorreram para infirmar a crença na própria justificativa<strong>do</strong> instituto da suspensão da execução <strong>do</strong> ato peloSena<strong>do</strong>, inspira<strong>do</strong> numa concepção <strong>de</strong> separação <strong>de</strong> po<strong>de</strong>resque hoje estaria ultrapassada. Ressaltou, a<strong>de</strong>mais, que aoalargar, <strong>de</strong> forma significativa, o rol <strong>de</strong> entes e órgãos legitima<strong>do</strong>sa provocar o STF, no processo <strong>de</strong> controle abstrato<strong>de</strong> normas, o constituinte restringiu a amplitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> controledifuso <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>. Consi<strong>de</strong>rou o relator que, emrazão disso, bem como da multiplicação <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong>tadas<strong>de</strong> eficácia geral e <strong>do</strong> advento da Lei 9.882/99, alterou-se <strong>de</strong>forma radical a concepção que <strong>do</strong>minava sobre a divisão <strong>de</strong>po<strong>de</strong>res, tornan<strong>do</strong> comum no sistema a <strong>de</strong>cisão com eficáciageral, que era excepcional sob a EC 16/65 e a CF 67/69. Salientouserem inevitáveis, portanto, as reinterpretações <strong>do</strong>sinstitutos vincula<strong>do</strong>s ao controle inci<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong>,notadamente o da exigência da maioria absolutapara <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> inconstitucionalida<strong>de</strong> e o da suspensão<strong>de</strong> execução da lei pelo Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral. Reputou ser legítimoenten<strong>de</strong>r que, atualmente, a fórmula relativa à suspensão <strong>de</strong>execução da lei pelo Sena<strong>do</strong> há <strong>de</strong> ter simples efeito <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>,ou seja, se o STF, em se<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle inci<strong>de</strong>ntal,<strong>de</strong>clarar, <strong>de</strong>finitivamente, que a lei é inconstitucional, essa<strong>de</strong>cisão terá efeitos gerais, fazen<strong>do</strong>-se a comunicação àquelaCasa legislativa para que publique a <strong>de</strong>cisão no Diário <strong>do</strong>Congresso. Concluiu, assim, que as <strong>de</strong>cisões proferidas pelojuízo reclama<strong>do</strong> <strong>de</strong>srespeitaram a eficácia erga omnes que<strong>de</strong>ve ser atribuída à <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> STF no HC 82959/SP. Após,pediu vista o Min. Eros Grau.Cumpre registrar que o Ministro Joaquim Barbosa, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> julgamentoda citada reclamação, divergiu <strong>do</strong> voto <strong>do</strong> Ministro Gilmar Men<strong>de</strong>se reafirmou a subsistência <strong>do</strong> artigo 52, X, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>ser prematura a tese <strong>de</strong> mutação constitucional <strong>do</strong> cita<strong>do</strong> instituto,202R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011


visto que seria necessário um <strong>de</strong>curso maior <strong>de</strong> tempo para verificar aocorrência <strong>de</strong> tal fenômeno e ainda, o <strong>de</strong>finitivo <strong>de</strong>suso <strong>do</strong> dispositivo 13 .A<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> a tese <strong>de</strong>fendida pelo Ministro Gilmar Men<strong>de</strong>s e LuisRoberto Barroso, o artigo 52, X, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral persiste apenaspor questões históricas, ten<strong>do</strong> por função precípua, tão somente, conferirpublicida<strong>de</strong> às <strong>de</strong>cisões proferidas pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral emcontrole concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, as quais já gozam da inevitáveleficácia erga omnes.Seguin<strong>do</strong> essa orientação, afirma Eros Grau 14 :Daí que a mutação constitucional não se dá simplesmentepelo fato <strong>de</strong> um intérprete extrair <strong>de</strong> um mesmo texto normadiversa da produzida por um outro intérprete. Isso se verificadiuturnamente, a cada instante, em razão <strong>de</strong> ser, a interpretação,uma prudência. Na mutação constitucional há mais.Nela não apenas a norma é outra, mas o próprio enuncia<strong>do</strong>normativo é altera<strong>do</strong>. O exemplo que no caso se colhe éextremamente rico. Aqui passamos em verda<strong>de</strong> <strong>de</strong> um texto[compete privativamente ao Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral suspen<strong>de</strong>r aexecução, no to<strong>do</strong> ou em parte, <strong>de</strong> lei <strong>de</strong>clarada inconstitucionalpor <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>finitiva <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral] aoutro texto, [compete privativamente ao Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral darpublicida<strong>de</strong> à suspensão da execução, operada pelo STF, <strong>de</strong>lei <strong>de</strong>clarada inconstitucional, no to<strong>do</strong> ou em parte, por <strong>de</strong>cisão<strong>de</strong>finitiva <strong>do</strong> Supremo.Desta forma, o artigo 52, X, da CRFB, atualmente, presta-se apenasa conferir publicida<strong>de</strong> às <strong>de</strong>cisões proferidas pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ralem controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, que já gozam <strong>de</strong> efeitosgerais e eficácia erga omnes.CONCLUSÃOSão fortes os argumentos daqueles que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m ter as <strong>de</strong>cisõesproferidas pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> em controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>,efeitos gerais e eficácia erga omnes.13 Notícia veiculada no Informativo <strong>de</strong> jurisprudência <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral, n. 463, disponível em http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/<strong>do</strong>cumento/informativo463.htm, acesso em 25/05/2011.14 GRAU, Eros Roberto apud PINHEIRO, Aline. "Braços <strong>do</strong> Supremo: Controle <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> em HC divi<strong>de</strong>STF". Disponível em: http://conjur.estadao.com.br/static/text/54835,1. Acesso em 10.12.2010.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011 203


Isso porque, nos últimos anos, diversas modificações legislativas inseriramtraços característicos <strong>do</strong> contrato abstrato <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong> nocontrole concreto, que reforçam o caráter geral e a eficácia erga omnes das<strong>de</strong>cisões proferidas pelo Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral. É o caso, por exemplo,<strong>do</strong> artigo 557, parágrafo primeiro, A, <strong>do</strong> CPC, que <strong>do</strong>tou o relator <strong>do</strong> recurso<strong>de</strong> po<strong>de</strong>res para dar provimento <strong>de</strong> forma monocrática ao apelo, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queesse esteja <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a jurisprudência <strong>do</strong>minante <strong>do</strong> STF.Outra importante alteração legislativa que reforça a tese <strong>de</strong> objetivação<strong>do</strong>s efeitos das <strong>de</strong>cisões proferida pelo STF em controle concreto <strong>de</strong>constitucionalida<strong>de</strong> é a instituição da súmula vinculante prevista no artigo103-A da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, que po<strong>de</strong>rá ser editada após reiteradas<strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> STF sobre a questão constitucional, todas proferidas em se<strong>de</strong><strong>de</strong> controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>.Além disso, o próprio STF caminha a passos largos no senti<strong>do</strong> daconvergência <strong>do</strong> controle concreto com o controle concentra<strong>do</strong> <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>.Isso é rotineiramente observa<strong>do</strong> no julgamento <strong>de</strong> recursosextraordinários, que passaram a ter causa <strong>de</strong> pedir aberta, permitin<strong>do</strong>que a Corte Suprema <strong>de</strong>cida a questão constitucional com base em outrofundamento que sequer foi analisa<strong>do</strong> pelas instâncias ordinárias.Isso comprova que o recurso extraordinário vem se entregan<strong>do</strong> asua função maior <strong>de</strong> uniformização da interpretação da norma constitucionalao conferir ao STF plena liberda<strong>de</strong> para enfrentar a questão constitucionalsem estar adstrito às causas elencadas pelas partes litigantes.A<strong>de</strong>mais, é inegável que o Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral vem se <strong>de</strong>spin<strong>do</strong>da sua função <strong>de</strong> Corte <strong>de</strong> revisão e assumin<strong>do</strong> uma roupagem <strong>de</strong>Corte Constitucional, fenômeno esse que se acelerou nos últimos anoscom as inúmeras alterações legislativas que passaram a conferir eficáciaerga omnes às suas <strong>de</strong>cisões.Nesse contexto, observa-se que as <strong>de</strong>cisões proferidas pelo Supremo<strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral em se<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle difuso <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>acabam por ter inevitável eficácia, que transcen<strong>de</strong> o âmbito da causa subjetivaanalisada, o que torna dispensável a edição <strong>de</strong> resolução suspensivapelo sena<strong>do</strong> fe<strong>de</strong>ral.Por outro la<strong>do</strong>, resta superada a concepção <strong>de</strong> estrita separação<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res, existente à época em que o instituto foi inseri<strong>do</strong> no or<strong>de</strong>namentojurídico pátrio, sen<strong>do</strong> certo que atualmente a própria ConstituiçãoFe<strong>de</strong>ral consagra hipóteses em que se atribui eficácia erga omnes e204R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011


efeitos vinculantes às <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral em se<strong>de</strong> <strong>de</strong>controle difuso <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>.Essa discussão apresenta gran<strong>de</strong> relevância não só para o universojurídico, mas principalmente para a socieda<strong>de</strong> brasileira, visto que, aoconferir eficácia erga omnes às <strong>de</strong>cisões proferidas pelo STF em controleconcreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, assegura-se maior efetivida<strong>de</strong> àsnormas constitucionais e segurança jurídica às <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> Supremo <strong>Tribunal</strong>Fe<strong>de</strong>ral, além <strong>de</strong> evitar o ajuizamento <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandasidênticas e repetitivas, que têm por objeto entendimento já consagra<strong>do</strong>na Suprema Corte.Portanto, to<strong>do</strong>s esses argumentos reforçam a tese <strong>de</strong> objetivação<strong>do</strong> controle concreto <strong>de</strong> constitucionalida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong>, portanto, dispensávela edição <strong>de</strong> resolução suspensiva pelo Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral para conferirefeitos gerais às <strong>de</strong>cisões proferidas pelo STF.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 193-205, out.-<strong>de</strong>z. 2011 205


O Parcelamento <strong>de</strong> Débitosno Processo <strong>de</strong> ExecuçãoExtrajudicial na Fase <strong>de</strong>Cumprimento <strong>de</strong> Sentença –Os Artigos 745-A e 475-R <strong>do</strong>Código <strong>de</strong> Processo CivilRicar<strong>do</strong> Alberto PereiraJuiz <strong>de</strong> Direito <strong>do</strong> TJRJ. Professor da EMERJ, ESAJ eUNESA.Já <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2006 a legislação processual pátria trouxe-nos a Lei11.382/2006, a qual acresceu ao Código <strong>de</strong> Processo Civil o artigo 745-A,permitin<strong>do</strong> então que, in verbis, “...No prazo para embargos, reconhecen<strong>do</strong>o crédito <strong>do</strong> exequente e comprovan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> 30% (trinta porcento) <strong>do</strong> valor em execução, inclusive custas e honorários <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>,po<strong>de</strong>rá o executa<strong>do</strong> requerer seja admiti<strong>do</strong> a pagar o restante em até 6(seis) parcelas mensais, acrescidas <strong>de</strong> correção monetária e juros <strong>de</strong> 1%(um por cento) ao mês.”Iniciou-se então um <strong>de</strong>bate sobre a possibilida<strong>de</strong> da aplicabilida<strong>de</strong><strong>de</strong>ssa norma prevista no processo <strong>de</strong> execução extrajudicial na fase <strong>de</strong> execuçãojudicial, ora legalmente <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> sentença.Isso porque há regra expressa <strong>do</strong> artigo 475-R <strong>do</strong> CPC que assim<strong>de</strong>termina: Aplicam-se subsidiariamente ao cumprimento da sentença, noque couber, as normas que regem o processo <strong>de</strong> execução <strong>de</strong> título extrajudicial.Daí a existência <strong>de</strong> discussões jurisprudências que ainda tratam daaplicação, ou não, <strong>do</strong> referi<strong>do</strong> parcelamento judicial na fase <strong>de</strong> cumprimento<strong>de</strong> sentença 1 .1 À título <strong>de</strong> ilustração, observem-se os seguintes acórdãos, cujas ementas, por trechos, ora se transcrevem:“AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO MONOCRÁTICA QUE, EM SEDE DE AÇÃO INDENIZATÓRIA EM FASE DE CUM-206R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Esse é, pois, o tema que se preten<strong>de</strong> discutir <strong>de</strong> forma resumida.A aplicabilida<strong>de</strong>, ou não, <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> parcelamento judicial executivo,legalmente previsto no CPC para o processo <strong>de</strong> execução por título extrajudicial.A jurisprudência local, assim como a <strong>do</strong>utrina, também diverge atal respeito 2 e por isso mesmo alguns afirmam inclusive que “...Consoantejá visto, o art. 745-A confere ao executa<strong>do</strong>, preenchi<strong>do</strong>s os pressupostos,o direito potestativo ao parcelamento da dívida na execução fundada emtítulo extrajudicial. Neste momento, interessa observar uma questão bastantecomplicada: aplica-se o art. 745-A ao procedimento <strong>de</strong> cumprimentoda sentença (arts. 475-J e segs.), já que está previsto no CPC na partePRIMENTO DE SENTENÇA, DETERMINA A INTIMAÇÃO DA AGRAVANTE PARA PAGAMENTO DE QUANTIA RELATIVA ÀMULTA DO ART. 475-J DO CPC SOBRE 70% (SETENTA POR CENTO) DO VALOR EXECUTADO. PARCELAMENTO DO DÉ-BITO. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA DO ART. 745-A DO CPC À EXECUÇÃO FUNDADA EM TÍTULO JUDICIAL (ART. 475-R DOCPC). PRECEDENTES DO TJERJ. PROVIMENTO DO RECURSO. -Embora o art. 745-A <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Processo Civil estejano capítulo que cuida <strong>do</strong>s embargos à execução, portanto, <strong>de</strong>ntro da sistemática da execução por título extrajudicial,sua aplicação à execução fundada em título judicial é possível, com base no disposto no art. 475-R <strong>do</strong> mesmo Código,que autoriza a aplicação subsidiária ao cumprimento <strong>de</strong> sentença das normas que regem o processo <strong>de</strong> execução<strong>de</strong> título judicial. Esta medida encontra respal<strong>do</strong> tanto nos princípios da efetivida<strong>de</strong> e celerida<strong>de</strong>, que inspiraram asrecentes reformas <strong>do</strong> cita<strong>do</strong> Código, como no princípio da menor onerosida<strong>de</strong>, há muito contempla<strong>do</strong> nos artigos620 e 716 da Lei Adjetiva, que preconiza que a execução, sempre que possível, se faça <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> menos oneroso parao <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r. -O parcelamento constitui um direito subjetivo <strong>do</strong> executa<strong>do</strong>, impon<strong>do</strong>-se o seu <strong>de</strong>ferimento, mesmodiante <strong>de</strong> oposição <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, na hipótese <strong>de</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r preencher os requisitos legais. ... Provimento <strong>do</strong> recursopara o fim <strong>de</strong> reformar a <strong>de</strong>cisão agravada, afastar a incidência da multa <strong>do</strong> art. 475-J e <strong>de</strong>clarar extinta a execução,com base no art. 794, I, ambos <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Processo Civil, ten<strong>do</strong> em vista a quitação da dívida e o levantamento<strong>do</strong>s valores <strong>de</strong>posita<strong>do</strong>s pelo cre<strong>do</strong>r.” (TJERJ – 9ª Câmara Cível – Agravo <strong>de</strong> Instrumento 2009.002.13546 – Rel. Des.Carlos Santos <strong>de</strong> Oliveira)“AGRAVO INOMINADO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE NEGOU SEGUIMENTO LIMINAR AO RECURSO.PARCELAMENTO DA DÍVIDA. TÍTULO EXECUTIVO JUDICIAL. NÃO CABIMENTO. A Lei 11.232/2005 teve como principalfinalida<strong>de</strong> trazer celerida<strong>de</strong> processual, afastan<strong>do</strong> expedientes processuais meramente protelatórios à satisfação <strong>do</strong>direito material <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r. Descabe a aplicação subsidiária <strong>do</strong> artigo 745-A <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Processo Civil, na formadisposta <strong>do</strong> artigo 475 R da mesma lei, pois o pagamento <strong>do</strong> titulo judicial não comporta qualquer parcelamentoque seja contrário à vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r. Conhecimento e <strong>de</strong>sprovimento <strong>do</strong> agravo inomina<strong>do</strong>” (TJERJ – 18ª CâmaraCível – Agravo <strong>de</strong> Instrumento 2008.002.12571 – Rel. Des. Rogério <strong>de</strong> Oliveira Souza)2 Nessa discussão <strong>do</strong>utrinária, observe-se os seguintes posicionamentos sobre o posicionamento da aplicação subsidiária<strong>do</strong> art. 745-A <strong>do</strong> CPC na fase <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> sentença: “É irrecusável a aplicação <strong>do</strong> art. 745-A tambémpara os casos <strong>de</strong> execuções fundadas em título judicial (art. 475-N). Trata-se <strong>de</strong> <strong>de</strong>corrência natural <strong>do</strong> art. 475-R.Contra este entendimento, po<strong>de</strong>ria ser objeta<strong>do</strong>, como faz, por exemplo, Humberto Theo<strong>do</strong>ro Junior (A reforma daexecução <strong>do</strong> título extrajudicial, p. 217), que ‘não teria senti<strong>do</strong> beneficiar o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> por sentença judicialcom novo prazo <strong>de</strong> espera, quan<strong>do</strong> já se valeu <strong>de</strong> todas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> discussão, recursos e <strong>de</strong>longas <strong>do</strong>processo <strong>de</strong> conhecimento. Seria um novo e pesa<strong>do</strong> ônus para o cre<strong>do</strong>r, que teve <strong>de</strong> percorrer a longa e penosa viacrucis <strong>do</strong> processo con<strong>de</strong>natória, ter ainda <strong>de</strong> suportar mais seis meses para tomar as medidas judiciais executivascontra o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r renitente. Com as <strong>de</strong>vidas vênias ao prestigia<strong>do</strong> processualista, têm cabimento, aqui, as mesmasconsi<strong>de</strong>rações apresentadas pelo n. 1 supra: o art. 745-A está a regular, em última análise, a incidência <strong>do</strong> ‘princípioda menor gravosida<strong>de</strong> da execução ao executa<strong>do</strong>’ e, por isto, a regra <strong>de</strong>ve ser aplicada também para estes casos,nada haven<strong>do</strong> na natureza <strong>do</strong> título executivo judicial que afaste, por si só, a sua incidência. De mais a mais, o temponecessário par a prática <strong>do</strong>s atos executivos, tenham eles fundamento em titulo executivo judicial ou extrajudicial,po<strong>de</strong> variar pelos mais diversos motivos, o principal <strong>de</strong>les o grau <strong>de</strong> solvabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> próprio executa<strong>do</strong> e, por issomesmo, a alternativa criada pelo art. 745-A po<strong>de</strong> se mostra satisfatória para o exeqüente.” BUENO, Cassio Scarpinella.Curso sistematiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> direito processual civil: tutela jurisdicional executiva, v. 3, São Paulo: Ed. Saraiva,2008, p. 551/552.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011 207


<strong>de</strong>dicada aos embargos á execução <strong>de</strong> título extrajudicial? ... A questãoé polêmica, realmente. Há argumentos bons em ambos os la<strong>do</strong>s. O temaexige maior reflexão” 3Mas, a<strong>de</strong>ntran<strong>do</strong> no tema, sustenta-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo que não basta asimples invocação <strong>do</strong> artigo 475-R <strong>do</strong> CPC para importar <strong>de</strong> forma literal anorma <strong>do</strong> artigo 745-A <strong>do</strong> CPC.Na clássica lição <strong>de</strong> Sampaio Ferraz “É hoje um postula<strong>do</strong> universalda ciência jurídica a tese <strong>de</strong> que não há norma sem interpretação, ou seja,toda norma, pelo simples fato <strong>de</strong> ser posta, é passível <strong>de</strong> interpretação” 4E, se nosso objetivo é a interpretação legal, nunca será <strong>de</strong>mais revisaressa questão à luz <strong>do</strong> eterno mestre Reale, o qual afirma com precisãoo seguinte:Interpretar uma lei importa, previamente, em compreendêlana plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus fins sociais, a fim <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r-se, <strong>de</strong>ssemo<strong>do</strong>, <strong>de</strong>terminar o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> cada um <strong>de</strong> seus dispositivos.Somente assim ela é aplicável a to<strong>do</strong>s os casos que correspondamaqueles objetivos....Nada mais errôneo <strong>do</strong> que, tão logo promulgada uma lei,pinçarmos um <strong>de</strong> seus artigos para aplicá-los isoladamente,sem nos darmos conta <strong>de</strong> seu papel ou função social no contexto<strong>do</strong> diploma legislativo. Seria tão precipita<strong>do</strong> e ingênuocomo dissertarmos sobre uma lei, sem estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> seus preceitos,basean<strong>do</strong>-nos apenas em sua ementa...Estas consi<strong>de</strong>rações iniciais visam pôr em realce os seguintespontos essenciais <strong>do</strong> que <strong>de</strong>nominamos hermenêuticaestrutural:a) toda interpretação jurídica é <strong>de</strong> natureza teleológica(finalística) fundada na consciência axiológica (valorativa)<strong>do</strong> Direito;b) toda interpretação jurídica dá-se numa estrutura <strong>de</strong> significações,e não <strong>de</strong> forma isolada;3 DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonar<strong>do</strong> José Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso <strong>de</strong> direitoprocessual civil: execução, v. 5. Bahia: Ed. Jus Podivm, 2009, p. 387/389.4 FERRAZ Jr, Tércio Sampaio. Introdução ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> direito: técnica, <strong>de</strong>cisão, <strong>do</strong>minação. São Paulo: Ed. Atlas,2007, p. 265/266.208R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011


c) cada preceito significa algo situa<strong>do</strong> no to<strong>do</strong> <strong>do</strong> or<strong>de</strong>namentojurídico. 5Não há pois como se apartar, num sério exame, da forma <strong>de</strong> interpretaçãoteleológica como meio <strong>de</strong> sistematização <strong>de</strong> uma norma legal.Nesse senti<strong>do</strong>, tentemos enten<strong>de</strong>r qual foi a intenção <strong>do</strong> legisla<strong>do</strong>rao trazer ao or<strong>de</strong>namento jurídico a regra <strong>do</strong> art. 745-A <strong>do</strong> CPC, que foipositivada nos termos da Lei 11.382/2006.Sem dúvida que o fanal persegui<strong>do</strong> teve fincas nos i<strong>de</strong>ais principiológicosda celerida<strong>de</strong> processual e da efetiva satisfação <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, instrumentosesses que sirvam efetivamente para incentivar o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r aopagamento da dívida.A norma legal impõe, porém, o reconhecimento implícito da dívida,ou seja, segun<strong>do</strong> a regra <strong>do</strong> art. 745-A <strong>do</strong> CPC, o benefício legal só po<strong>de</strong>ser invoca<strong>do</strong> “no prazo para embargos”, e isso se o executa<strong>do</strong> estiver“reconhecen<strong>do</strong> o crédito <strong>do</strong> exequente”, estipulan<strong>do</strong> ainda que esse <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r<strong>de</strong>ve comprovar o <strong>de</strong>pósito <strong>de</strong> 30% da dívida.O Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiça assim também enten<strong>de</strong>u ao afirmaro seguinte:“Conforme entendimento jurispru<strong>de</strong>ncial pátrio, o parcelamento<strong>do</strong> débito em execução <strong>de</strong> que trata o art. 745-A <strong>do</strong>CPC não se aplica à fase <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> sentença, umavez que se mostra incompatível com o disposto no art. 475-J,caput, <strong>do</strong> CPC.” (STJ; REsp 1.127.978; Rel. Min. Vasco DellaGiustina)“Sem prejuízo, observo que um <strong>do</strong>s requisitos da concessão<strong>do</strong> parcelamento judicial, na forma em que instituí<strong>do</strong> pela Lei11.382/2006, é o reconhecimento <strong>do</strong> crédito <strong>do</strong> exequente,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, manti<strong>do</strong> ou revoga<strong>do</strong> o parcelamento, a confissãosubsiste e gera o efeito <strong>de</strong> preclusão lógica para a tentativaposterior <strong>de</strong> se rediscutir o débito confessa<strong>do</strong>.” (STJ;MC 013989; Rel. Min. Herman Benjamin)Logo, não caberá esse beneplácito legal se houver <strong>de</strong>fesa espontânea<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r.5 REALE, Miguel. Lições preliminares <strong>de</strong> direito. São Paulo: Ed. Saraiva, 2002, p. 289/291.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011 209


Mas o que dizer então <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r que busca se valer <strong>de</strong>sse benefíciolegal na fase <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> sentença, após ter resisti<strong>do</strong> à fasecognitiva e não ter cumpri<strong>do</strong> voluntariamente a con<strong>de</strong>nação jurisdicionalque lhe foi imposta?A resposta há <strong>de</strong> ser negativa. É fato incontroverso que neste caso,o <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> sentença, já houve o exaurimento <strong>de</strong> toda a fasecognitiva <strong>do</strong> feito e, ainda assim, não houve o pagamento espontâneo <strong>do</strong><strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, pois se tal tivesse ocorri<strong>do</strong> obviamente não se estaria manejan<strong>do</strong>a fase executória mencionada.Alegar que a aplicação subsidiária tornará mais ágil o cumprimento<strong>de</strong> sentença é beneficiar ainda mais o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r que, mesmo já ten<strong>do</strong>um acertamento judicial cognitivo em seu <strong>de</strong>sfavor, continua a seinsurgir injustificadamente contra o direito <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r em receber seucrédito.Se a tese abraçada pelo art. 745-A <strong>do</strong> CPC foi exatamente a <strong>do</strong> reconhecimentoimplícito da dívida, como então se aplicar essa norma numprocesso em que já houve a possibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> exercício <strong>do</strong> direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesae o manejo <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> executória pela inércia <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r aocumprimento <strong>de</strong> sua obrigação?O executa<strong>do</strong>, neste caso sub examem, já po<strong>de</strong> exercitar o direito<strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e mesmo assim continua a não reconhecer o direito <strong>do</strong> seucre<strong>do</strong>r, pois não pagou a dívida após o trânsito em julga<strong>do</strong>. Incabívelentão o favor legal.A argumentação <strong>de</strong> que a aplicação subsidiária importaria em maiorcelerida<strong>de</strong> na fase executória não <strong>de</strong>ve seduzir o aplica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> direito, poisse estaria apenas olhan<strong>do</strong> para uma parte <strong>do</strong> processo, a <strong>do</strong> cumprimento<strong>de</strong> sentença, sem olhar para to<strong>do</strong> o processo, ignoran<strong>do</strong> o histórico da<strong>de</strong>manda.Não há como se escusar <strong>de</strong> enxergar os fatos pretéritos daquelefeito. Esse olhar parcial seria uma verda<strong>de</strong>ira midríase jurídica.Há, ainda, outro importante argumento. A regra <strong>do</strong> art. 745-A <strong>do</strong>CPC importa em exceção da regra civil <strong>de</strong> que o cre<strong>do</strong>r não po<strong>de</strong> ser obriga<strong>do</strong>a receber o seu crédito fora <strong>do</strong> tempo, forma e lugar que lhe impõe alei ou o contrato, tal como se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> <strong>do</strong> art. 314 <strong>do</strong> CC, o qual asseveraque “...Ainda que a obrigação tenha por objeto prestação divisível, nãopo<strong>de</strong> o cre<strong>do</strong>r ser obriga<strong>do</strong> a receber, nem o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r a pagar, por partes,se assim não se ajustou”.210R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Por isso mesmo, relembra-nos Tepedino que “...A lei consagra a indivisibilida<strong>de</strong><strong>do</strong> objeto <strong>do</strong> pagamento, ainda que, por natureza, seja aprestação divisível. Por esta razão, a divisibilida<strong>de</strong> ou indivisibilida<strong>de</strong> daprestação só interessa se houver pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cre<strong>do</strong>res ou <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>res,quan<strong>do</strong> cada <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r só respon<strong>de</strong> por uma parte e cada cre<strong>do</strong>r tem direitoa uma parte se a prestação for divisível. Haven<strong>do</strong> apenas um cre<strong>do</strong>r eum <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, não importa verificar se a prestação é ou não divisível, pois,ainda que o seja, <strong>de</strong>verá ser cumprida integralmente.” 6 .E, se assim o é, a regra <strong>do</strong> art. 745-A <strong>de</strong>ve ser interpretada <strong>de</strong> formarestritiva, pois a regra <strong>de</strong> exceção não comporta interpretação extensiva.A tal respeito a jurisprudência pátria vem afirman<strong>do</strong>, em lapidar acórdão,o seguinte:“3. As prerrogativas processuais, exatamente porque se constituemem regras <strong>de</strong> exceção, são interpretadas restritivamente.4. “O Código Civil explicitamente consoli<strong>do</strong>u o preceito clássico-’Exceptiones sunt strictissimoe interpretationis’ (“interpretamseas exceções estritissimamente’, no art. 6° da antiga Introdução,assim concebi<strong>do</strong>: “A lei que abre exceção a regras gerais,ou restringe direitos, só abrange os casos que especifica” (...)As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ouconsi<strong>de</strong>rações particulares, contra outras normas jurídicas, oucontra o Direito comum; por isso não se esten<strong>de</strong>m além <strong>do</strong>scasos e tempos que <strong>de</strong>signam expressamente. Os contemporâneospreferem encontrar o fundamento <strong>de</strong>sse preceito nofato <strong>de</strong> se acharem prepon<strong>de</strong>rantemente <strong>do</strong> la<strong>do</strong> <strong>do</strong> princípiogeral as forças sociais que influem na aplicação <strong>de</strong> toda regrapositiva, como sejam os fatores sociológicos, a Werturteil <strong>do</strong>ste<strong>de</strong>scos, e outras. (...)” (Carlos Maximiliano, in Hermenêuticae Aplicação <strong>do</strong> Direito, Forense, p. 184/193).5. Aliás, a jurisprudência <strong>do</strong> E. STJ, encontra-se em sintoniacom o entendimento <strong>de</strong> que as normas legais que instituem regras<strong>de</strong> exceção não admitem interpretação extensiva. (REsp806027/PE; Rel. Min. FRANCISCO PEÇANHA MARTINS, DJ <strong>de</strong>6 TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin. Código Civil interpreta<strong>do</strong> conformea Constituição da República. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Ed. Renovar, 2004, p. 606.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011 211


09.05.2006; REsp 728753 / RJ, Rel. Min. JOÃO OTÁVIO DE NO-RONHA, DJ <strong>de</strong> 20.03.2006; REsp 734450 / RJ, <strong>de</strong>ste relator,DJ <strong>de</strong> 13.02.2006; REsp 644733 / SC ; Rel. Min. FRANCISCOFALCÃO, Rel. p/ acórdão, este relator, DJ <strong>de</strong> 28.11.2005)”.Portanto, sen<strong>do</strong> regra <strong>de</strong> exceção, a aplicação <strong>do</strong> art. 745-A há <strong>de</strong>ser restrita aos casos <strong>de</strong> processo <strong>de</strong> execução autônoma e não aos casos<strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> sentença, pois se estaria então impon<strong>do</strong>-se uma interpretaçãoextensiva on<strong>de</strong> o intérprete realizou norma <strong>de</strong> exceção.Tal foi a razão pela qual o Colen<strong>do</strong> Superior <strong>Tribunal</strong> <strong>de</strong> Justiçaafirmou, em <strong>de</strong>cisão monocrática, da lavra <strong>do</strong> Ministro Aldir Passarinho,o seguinte:A<strong>de</strong>mais, não vislumbro qualquer ofensa aos arts. 475-R e745-A <strong>do</strong> Co<strong>de</strong>x Processual, porquanto o <strong>Tribunal</strong> estadual,ao enten<strong>de</strong>r não ser possível o parcelamento <strong>do</strong> título judicialcontra a vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, aplicou corretamente o direito.(STJ; Ag 1123420; Rel. Min. Aldir Passarinho Junior)Outro motivo para se rechaçar essa aplicação subsidiária advém danatureza da <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r em cada caso e sua peculiarida<strong>de</strong>.Na execução por título extrajudicial, a <strong>de</strong>fesa que se substitui pelopagamento da moratória são os embargos, os quais são realiza<strong>do</strong>s in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<strong>de</strong> penhora. Já na fase <strong>de</strong> cumprimento <strong>de</strong> sentença, aimpugnação somente po<strong>de</strong> advir quan<strong>do</strong> a execução judicial já tiver si<strong>do</strong>garantida por penhora. (art. 475-J, § 1º, CPC).Assim, se já há a constrição judicial da penhora, po<strong>de</strong> vir a ser contraproducenteo parcelamento, pois já existe efetiva garantia jurisdicionalincidin<strong>do</strong> contra o patrimônio <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r que, em tese, garantirá ao cre<strong>do</strong>ro recebimento integral da quantia pretendida e já reconhecida, nãose po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> olvidar que tal impugnação não tem, em regra, efeito suspensivosobre a execução.Já na execução extrajudicial, os embargos po<strong>de</strong>m ser opostos semque haja a garantia <strong>do</strong> juízo, ainda que também sem efeito suspensivo.Esse discrímen é crucial, pois indica que o benefício da moratória,ou melhor, <strong>do</strong> parcelamento judicial da dívida, só teria senti<strong>do</strong> quan<strong>do</strong>ainda não se tem a garantia <strong>de</strong> um bem <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r sofren<strong>do</strong> a constrição212R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011


em favor <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r, ocasião em que se po<strong>de</strong>ria discutir que há interesseem favor <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r que ainda não dispõe <strong>de</strong> nenhuma garantia.É nesse contexto que impõe-se então relembrar que, ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong>princípio da menor onerosida<strong>de</strong>, há que se equilibrar a balança executivacom o princípio da efetiva satisfação <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r.Gize-se que “...Da cláusula geral <strong>do</strong> ‘<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> processo legal’ po<strong>de</strong>mser extraí<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os princípio que regem o direito processual. É <strong>de</strong>la, porexemplo, que se extrai o princípio da efetivida<strong>de</strong>: os direitos <strong>de</strong>vem ser,além <strong>de</strong> reconheci<strong>do</strong>s, efetiva<strong>do</strong>s. Processo <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> é processo efetivo. Oprincípio da efetivida<strong>de</strong> garante o direito fundamental à tutela executiva,que consiste ‘na exigência <strong>de</strong> um sistema completo <strong>de</strong> tutela executiva, noqual existam meios executivos capazes <strong>de</strong> proporcionar pronta e integralsatisfação a qualquer direito merece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> tutela executiva” 7 .Logo, a efetivida<strong>de</strong> reclama a garantia judicial concreta, ou seja,a constrição da penhora. Como essa ainda não existe na fase inicial daexecução extrajudicial é louvável a inovação legislativa <strong>do</strong> parcelamentocompulsório, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que haja a renúncia ao direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa.Mas, na execução judicial, a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> executa<strong>do</strong> na fase <strong>de</strong> cumprimento<strong>de</strong> sentença necessita <strong>de</strong> garantia judicial justamente para nãopermitir que o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r continue a postergar o pagamento e violar o direitofundamental da efetivida<strong>de</strong> da tutela executiva.Portanto, torna-se <strong>de</strong>snecessária e viola<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> direito fundamentalda efetiva execução a norma <strong>do</strong> parcelamento judicial compulsório nafase <strong>de</strong> cumprimento da sentença, quan<strong>do</strong> o <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r já usou <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s osmeios <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa na fase cognitiva e, já estan<strong>do</strong> em fase executória, dispõeo cre<strong>do</strong>r <strong>de</strong> garantia judicial que possa garantir-lhe o direito ao recebimento<strong>do</strong> que lhe é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>.Obviamente que po<strong>de</strong>rá haver o parcelamento da dívida, se assimconcordar o cre<strong>do</strong>r. Mas essa hipótese em nada se amolda aos ditames<strong>do</strong> tema que ora se analisa, pois esse será o caso <strong>de</strong> processo fin<strong>do</strong> oususpenso, por conciliação ou transação, cuja consensualida<strong>de</strong> é elementoessencial, e não por imposição legal, o que difere <strong>do</strong> art. 745-A <strong>do</strong> CPC,que é uma norma <strong>de</strong> direito potestativo <strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r, prescindin<strong>do</strong>, portantoda aquiescência <strong>do</strong> cre<strong>do</strong>r.7 DIDIER Jr, Fredie et all. Ob. cit. p. 47.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011 213


Por fim, vale ressaltar que na redação original <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> Lei<strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral nº. 166/2010, que cuida da reforma <strong>do</strong> Código <strong>de</strong>Processo Civil, a matéria continuou idêntica em seu conteú<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>o legisla<strong>do</strong>r pátrio <strong>de</strong> resolver tal questão, o que, portanto, continuaráa ser alvo <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate jurisdicional, até que seja pacifica<strong>do</strong> pelajurisprudência.Essas são razões, então, que justificam a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>se aplicar <strong>de</strong> forma extensiva a regra <strong>do</strong> art. 745-A <strong>do</strong> CPC na fase <strong>do</strong>cumprimento <strong>de</strong> sentença. 214R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 206-214, out.-<strong>de</strong>z. 2011


A Nova Empresa Individual <strong>de</strong>Responsabilida<strong>de</strong> Limitada:Memórias Póstumas <strong>do</strong>Empresário IndividualThiago Ferreira Car<strong>do</strong>so NevesAdvoga<strong>do</strong>. Professor <strong>de</strong> Direito Empresarial da EMERJ.Pós-gradua<strong>do</strong> em Direito Público e Priva<strong>do</strong> pelaEMERJ.1. IntroduçãoA ativida<strong>de</strong> empresarial é o principal fator impulsiona<strong>do</strong>r da economia,mas, a exploração <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> econômica organizada sempreenvolve riscos, seja para os sócios <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> empresária, sejapara o empresário individual.Esse último, entretanto, é o que mais está exposto, uma vez querespon<strong>de</strong> com todas as forças <strong>de</strong> seu patrimônio pessoal perante os cre<strong>do</strong>resvincula<strong>do</strong>s ao exercício da sua ativida<strong>de</strong>.Ao re<strong>do</strong>r <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, diversos países já a<strong>do</strong>taram formas societáriasvisan<strong>do</strong> a limitar essa álea, editan<strong>do</strong> leis que admitem a constituição <strong>de</strong>socieda<strong>de</strong>s empresárias unipessoais <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada.No Brasil, nunca se admitiu a constituição <strong>de</strong> pessoa jurídica explora<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> econômica cujas pessoas, naturais ou jurídicas, que aconstituem tivessem limitação <strong>de</strong> sua responsabilida<strong>de</strong>.Essa realida<strong>de</strong> sempre <strong>de</strong>u margem a frau<strong>de</strong>s, como a ocultação<strong>de</strong> patrimônio pelo empresário individual, por exemplo, com a aquisição<strong>de</strong> bens em nome <strong>de</strong> terceiros, ou a constituição <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> empresáriafictícia com um sócio majoritário e os <strong>de</strong>mais ostentan<strong>do</strong> umaparticipação societária irrisória.O legisla<strong>do</strong>r, então, atento a essas questões sociais, editou a Leinº 12.441/2011, promoven<strong>do</strong> relevante modificação legislativa com aR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 215


criação da empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada – EIRELI,visan<strong>do</strong>, assim, a estimular a exploração da empresa e diminuir práticasfraudulentas. E é essa nova figura jurídica que passaremos a estudar.2. A Lei nº 12.441/2011A Lei nº 12.441/2011 teve inspiração alienígena, ou seja, foi inspiradaem legislações vigentes em outros países que admitem a instituição<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> empresária, <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada, constituídapor uma só pessoa.A primeira legislação a admiti-la foi a GmbH-Novelle, legislaçãoalemã <strong>de</strong> 1980 que alterou a Lei <strong>de</strong> 1892, que instituiu a figura das socieda<strong>de</strong>slimitadas, reforman<strong>do</strong> a legislação anterior que tratava das socieda<strong>de</strong>sanônimas.Posteriormente à lei alemã <strong>de</strong> 1980, a França também passou aadmitir a constituição <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> limitada por uma ou várias pessoas.O Decreto-lei nº 85-697, então, alterou o art. 34 da lei francesa sobresocieda<strong>de</strong>s comerciais, para dar origem ao instituto <strong>do</strong> enterprise unipersonnelleà responsabilité limitée, isto é, a empresa unipessoal <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada.A fim <strong>de</strong> adaptar sua legislação às diretrizes da Comunida<strong>de</strong> EconômicaEuropéia – CEE –, especialmente a Décima Segunda Diretriz, <strong>de</strong>1989, a Itália editou o Decreto-lei nº 88/93 para criar a società a responsabilitàlimitada com um solo sócio, modifican<strong>do</strong>, assim, diversos dispositivos<strong>de</strong> seu Código Civil.No ano <strong>de</strong> 1995, também para aten<strong>de</strong>r às novas diretrizes da CEE,a Espanha editou a Lei nº 02/1995 para modificar sua legislação sobresocieda<strong>de</strong>s limitadas, a fim <strong>de</strong> admitir a unipessoalida<strong>de</strong>, originária e <strong>de</strong>rivada,<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> limitada.Portugal é um caso à parte, pois o país luso editou, ainda em 1986,o Decreto-lei nº 248/86 para criar o estabelecimento individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada. Para fazê-lo, os lusitanos subjetivaram o estabelecimentocomercial que é, tecnicamente, uma universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato,ou seja, um conjunto <strong>de</strong> bens reuni<strong>do</strong>s pelo empresário para o exercícioda sua ativida<strong>de</strong> econômica organizada. Assim, para o direito português,esse estabelecimento é um sujeito <strong>de</strong> direitos.Na América <strong>do</strong> Sul, Paraguai, Peru e Chile já possuem a figura daempresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada.216R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


A Lei nº 12.441/2011, então, veio se adaptar a essa nova realida<strong>de</strong>mundial <strong>de</strong> admissão <strong>do</strong> exercício da ativida<strong>de</strong> empresarial por umapessoa jurídica constituída por uma única pessoa, cuja responsabilida<strong>de</strong>é limitada.A lei brasileira, entretanto, não po<strong>de</strong> ser aplicada imediatamente.Isso porque seu art. 3º prevê uma vacatio legis <strong>de</strong> 180 dias.Levan<strong>do</strong>-se em consi<strong>de</strong>ração que a lei pátria foi publicada no dia 12<strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2011, entrará ela em vigor no dia 08 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2012, issoporque a contagem <strong>do</strong> prazo se dá em dias, e <strong>de</strong>ve ser feita na forma <strong>do</strong>art. 8º, § 1º da Lei Complementar nº 95/98, ou seja, inclui-se a data da publicaçãoe <strong>do</strong> último dia <strong>do</strong> prazo, entran<strong>do</strong> em vigor no dia subsequenteà sua consumação integral.A Lei nº 12.441/2011 promoveu acréscimos e alterações <strong>de</strong> dispositivos<strong>do</strong> Código Civil.Primeiramente, incluiu no rol <strong>de</strong> pessoas jurídicas <strong>do</strong> art. 44 <strong>do</strong>Digesto pátrio o inciso VI, passan<strong>do</strong> o dispositivo em comento a disporque: art. 44. São pessoas jurídicas <strong>de</strong> direito priva<strong>do</strong>: [...] VI – as empresasindividuais <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada.Incluiu, ainda, o Título I-A, no Livro II da Parte Especial <strong>do</strong> CódigoCivil, sob o nomen iuris Da Empresa Individual <strong>de</strong> Responsabilida<strong>de</strong> Limitada,que é composto unicamente pelo art. 980-A e seus parágrafos.Por fim, e talvez a alteração que <strong>de</strong>man<strong>de</strong> um exame mais acura<strong>do</strong>neste momento, modificou o parágrafo único <strong>do</strong> art. 1.033 <strong>do</strong> CódigoCivil, que havia si<strong>do</strong> acrescenta<strong>do</strong> pela Lei Complementar nº 128/2008.O precita<strong>do</strong> dispositivo trata das hipóteses <strong>de</strong> dissolução das socieda<strong>de</strong>s.Uma das hipóteses é a prevista no inciso IV, que dispõe que é causa<strong>de</strong> dissolução da socieda<strong>de</strong> a falta <strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sócios, não reconstituídano prazo <strong>de</strong> 180 dias.A Lei Complementar nº 128/2008 acrescentou o parágrafo único aodispositivo em exame, para dispor que não se aplica o disposto no incisoIV – ou seja, não haverá a dissolução da socieda<strong>de</strong> pela falta <strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong><strong>de</strong> sócios – caso o sócio remanescente requeira no Registro Público <strong>de</strong>Empresas Mercantis a transformação <strong>do</strong> registro da socieda<strong>de</strong> para empresárioindividual, observa<strong>do</strong>, no que couber, o disposto no arts. 1.113 a1.115 <strong>do</strong> Código Civil.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 217


Ocorre que a Lei nº 12.441/2011 alterou a redação <strong>de</strong>sse parágrafoúnico, acresci<strong>do</strong> pela Lei Complementar nº 128/2008, e passou adispor que não se aplica o disposto no inciso IV caso o sócio remanescenterequeira, no RPEM, a transformação <strong>do</strong> registro da socieda<strong>de</strong> paraempresário individual ou para empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada, observa<strong>do</strong>, no que couber, o disposto nos arts. 1.113 a 1.115<strong>do</strong> Código Civil.A dúvida que exsurge é se a Lei nº 12.441/2011, que é uma lei ordinária,po<strong>de</strong>ria alterar dispositivo que foi acrescenta<strong>do</strong> por lei complementar.Seria, pois, válida essa alteração?Para isso, há que se enfrentar a questão acerca da existência, ounão, <strong>de</strong> hierarquia entre lei complementar e lei ordinária.Na <strong>do</strong>utrina a questão é controvertida. Para parcela da <strong>do</strong>utrina,a lei complementar é hierarquicamente superior à lei ordinária e hierarquicamenteinferior à Constituição e suas emendas, consistin<strong>do</strong> em umtertium genus – isto é, um terceiro tipo – interposto entre essas espécies<strong>de</strong> atos normativos 1 .Segun<strong>do</strong> esse entendimento, a lei ordinária está sujeita à lei complementar,e se a contrariar será inválida, como leciona o professor ManoelGonçalves Ferreira Filho, ao afirmar que “a lei ordinária, o <strong>de</strong>cretolei,e a lei <strong>de</strong>legada estão sujeitos à lei complementar. Em consequênciadisso não prevalecem contra ela, sen<strong>do</strong> inválidas as normas que a contradisserem2 ”.Há, no entanto, posição, a qual nos filiamos, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que nãohá hierarquia entre lei complementar e lei ordinária, mas sim matériasreservadas constitucionalmente à lei complementar como, por exemplo,o estabelecimento <strong>de</strong> normas gerais em matéria <strong>de</strong> legislação tributária,a teor <strong>do</strong> art. 146, III, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral 3 .Segun<strong>do</strong> esse entendimento, lei ordinária que trate <strong>de</strong> matéria reservadaà lei complementar será tida por inconstitucional. No entanto, leicomplementar editada sem exigência constitucional para tal, será consi<strong>de</strong>radacomo lei complementar apenas na sua forma, mas o seu conteú<strong>do</strong>será <strong>de</strong> lei ordinária. Então, nesse último caso, a lei será formalmentecomplementar, mas materialmente ordinária.1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Do Processo Legislativo. 6. ed. São Paulo: Saraiva. 2009, p. 248.2 Ib<strong>de</strong>m. p. 249.3 MORAES, Guilherme Peña <strong>de</strong>. Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Atlas. 2010, p. 183.218R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Tal entendimento, inclusive, é o que prevalece na jurisprudência <strong>do</strong>Supremo <strong>Tribunal</strong> Fe<strong>de</strong>ral 4 .Então, a solução sobre a valida<strong>de</strong>, ou não, da Lei nº 12.441/2011,na parte em que alterou o parágrafo único <strong>do</strong> art. 1.033 <strong>do</strong> Código Civil,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>do</strong> entendimento que se a<strong>do</strong>tar.Caso se entenda que há hierarquia entre lei complementar e leiordinária, em que a primeira é hierarquicamente superior à segunda,in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da matéria reclamada constitucionalmente, a Leinº 12.441/2011, nessa parte, será inválida.Ao contrário, caso se a<strong>do</strong>te o entendimento, que mais uma vez salientamosque é aquele por nós a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, <strong>de</strong> que não há hierarquia entreessas espécies normativas, a Lei Complementar nº 128/2008, ao incluir oparágrafo único <strong>do</strong> art. 1.033 <strong>do</strong> Código Civil, é materialmente ordinária,sen<strong>do</strong> apenas complementar em sua forma.Assim, não há invalida<strong>de</strong> da Lei nº 12.441/2011 pelo fato <strong>de</strong> teraltera<strong>do</strong> o parágrafo único <strong>do</strong> art. 1.033 <strong>do</strong> Código Civil, haja vista que elamodificou uma lei que é materialmente ordinária.3. Figuras <strong>de</strong> ParâmetroAntes <strong>de</strong> examinarmos, propriamente, a nova figura da empresaindividual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada – EIRELI –, é preciso fazer uma brevedigressão acerca <strong>de</strong> duas figuras, já existentes em nosso or<strong>de</strong>namento,que em muito se assemelham ao novo instituto, a fim <strong>de</strong> que possamos,com maior clarida<strong>de</strong>, i<strong>de</strong>ntificarmos as peculiarida<strong>de</strong>s e diferenças <strong>de</strong>sseúltimo.A primeira <strong>de</strong>las é a <strong>do</strong> empresário individual. O empresário individualé a pessoa natural que exerce a ativida<strong>de</strong> empresarial com o seupatrimônio pessoal. Exerce ele a empresa sob uma firma, ou seja, seunome empresarial é uma firma, constituída a partir <strong>de</strong> seu nome pessoal,completo ou abrevia<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser acrescida <strong>de</strong> <strong>de</strong>signação mais precisa<strong>de</strong> sua pessoa ou <strong>do</strong> gênero <strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong>.4 EMENTA: Contribuição social sobre o faturamento - COFINS (CF, art. 195, I). 2. Revogação pelo art. 56 da Lei9.430/96 da isenção concedida às socieda<strong>de</strong>s civis <strong>de</strong> profissão regulamentada pelo art. 6º, II, da Lei Complementar70/91. Legitimida<strong>de</strong>. 3. Inexistência <strong>de</strong> relação hierárquica entre lei ordinária e lei complementar. Questão exclusivamenteconstitucional, relacionada à distribuição material entre as espécies legais. Prece<strong>de</strong>ntes. 4. A LC 70/91 éapenas formalmente complementar, mas materialmente ordinária, com relação aos dispositivos concernentes à contribuiçãosocial por ela instituída. ADC 1, Rel. Moreira Alves, RTJ 156/721. 5. Recurso extraordinário conheci<strong>do</strong> masnega<strong>do</strong> provimento. RE 377457 / PR. <strong>Tribunal</strong> Pleno. Relator Ministro Gilmar Men<strong>de</strong>s. Julgamento: 17/09/2008.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 219


O empresário individual, no exercício da sua ativida<strong>de</strong> econômicaorganizada para a produção ou circulação <strong>de</strong> bens ou serviços, possui responsabilida<strong>de</strong>ilimitada, ou seja, respon<strong>de</strong> ele diretamente com seu patrimôniopessoal pelas obrigações contraídas no exercício da empresa.Assim, quan<strong>do</strong> é exercida a ativida<strong>de</strong> empresarial pela pessoa natural,não se aplica a teoria da personalida<strong>de</strong> jurídica, ou seja, a empresa,por ser uma ativida<strong>de</strong> e não uma pessoa jurídica, não possui personalida<strong>de</strong>jurídica própria, distinta da pessoa <strong>do</strong> empresário, razão pela qual nãoexiste separação patrimonial.Então, não há que se falar, na hipótese <strong>do</strong> empresário individual, naexistência <strong>de</strong> <strong>do</strong>is patrimônios: um geral, da pessoa natural, e um outrosepara<strong>do</strong>, afeta<strong>do</strong> ao exercício da ativida<strong>de</strong> econômica organizada. E issose <strong>de</strong>ve ao fato <strong>de</strong> que o empresário individual exerce a empresa em seupróprio nome.Mas, mesmo diante <strong>de</strong>sse exercício da ativida<strong>de</strong> em nome próprio,nada obstaria a separação patrimonial.Classicamente, o patrimônio se submete a três princípios: cadapessoa tem necessariamente um patrimônio; esse patrimônio é único, ouseja, cada pessoa só po<strong>de</strong> ter esse patrimônio; e o patrimônio é inseparávelda pessoa.Hodiernamente, no entanto, essa concepção clássica não po<strong>de</strong> subsistir.Segun<strong>do</strong> lição da emérita professora Milena Donato, a relação entrepersonalida<strong>de</strong> e patrimônio constitui somente a <strong>de</strong> titularida<strong>de</strong>. Issosignifica que “uma pessoa, por ser <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> subjetivida<strong>de</strong>, tem aptidãopara adquirir situações jurídicas ativas valoráveis em dinheiro e, em consequência,para ter patrimônio 5 ”.No entanto, prossegue a autora afirman<strong>do</strong> que:[...] tal não autoriza a transportar ao patrimônio a disciplinajurídica pertinente à subjetivida<strong>de</strong>, como se aquele fosseemanação <strong>de</strong>sta. A personalida<strong>de</strong> constitui o pressupostopara a titularida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um patrimônio, como o é para a aquisição<strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres em geral, mas não guarda vínculomaior <strong>do</strong> que este com a universalida<strong>de</strong> patrimonial 6 .5 OLIVA, Milena Donato. Patrimônio separa<strong>do</strong> – herança, massa falida, securitização <strong>de</strong> créditos imobiliários, incorporaçãoimobiliária, fun<strong>do</strong>s <strong>de</strong> investimento imobiliário, trust. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Renovar. 2009, p. 222.6 Ib<strong>de</strong>m. p. 223.220R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Como conclusão, ensina a citada mestra que:[...] mostram-se insubsistentes os corolários da indivisibilida<strong>de</strong>e da unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> patrimônio, admitin<strong>do</strong>-se a existência <strong>de</strong><strong>do</strong>is ou mais patrimônios, isto é, <strong>de</strong> duas ou mais universalida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> direito titularizadas pela mesma pessoa. Importantesalientar, nesta direção, que nada há <strong>de</strong> excepcional ouanormal nisto, precisamente porque não vigora, no direitopátrio, os princípios da unida<strong>de</strong> e da indivisibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> patrimônio.Com o afastamento <strong>de</strong> tais princípios, afigura-sepossível a existência <strong>de</strong> um patrimônio geral ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> patrimôniosespeciais. A unificação <strong>de</strong>stes núcleos patrimoniaissegrega<strong>do</strong>s ocorre em atenção ao fim a que se <strong>de</strong>stinam, oqual, por sua relevância, justifica e reclama a criação <strong>de</strong> novasuniversalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> direito, isto é, centros autônomos <strong>de</strong>imputação objetiva 7 .Por essa razão, mo<strong>de</strong>rnamente se enten<strong>de</strong> que cada conjunto <strong>de</strong>relações jurídicas – universalida<strong>de</strong> –, com <strong>de</strong>terminada <strong>de</strong>stinação comum,consiste em um núcleo patrimonial titulariza<strong>do</strong> pelo sujeito.O patrimônio, então, “será o conjunto <strong>do</strong>s bens coesos pela afetaçãoa um fim econômico <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, passan<strong>do</strong>, assim, a admitir-se aexistência <strong>de</strong> um patrimônio geral e <strong>de</strong> patrimônios especiais, constituí<strong>do</strong>spor bens afeta<strong>do</strong>s a <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> fim 8 ”.Nessa esteira, o patrimônio <strong>de</strong> afetação consiste em uma separaçãopatrimonial <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> encargos impostos a <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s bens,passan<strong>do</strong> a ter uma <strong>de</strong>stinação especial. Tais bens, ou relações jurídicas,seriam autônomos e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes em relação a outros núcleos patrimoniais,a fim <strong>de</strong> realizar o fim especial a que se <strong>de</strong>stinam.Isso significa que o patrimônio afeta<strong>do</strong> está a salvo das mãos <strong>do</strong>scre<strong>do</strong>res <strong>de</strong> outras relações mantidas pelo titular <strong>do</strong> patrimônio, que nãose vinculam àquela que <strong>de</strong>u origem à separação patrimonial.O dinamismo das relações obrigacionais, a sua evolução, e a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> surgimento <strong>de</strong> mais segurança nessas relações impulsionou ai<strong>de</strong>ia da afetação, ou seja, <strong>de</strong> uma flexibilização da unida<strong>de</strong> e indivisibilida<strong>de</strong><strong>do</strong> patrimônio.7 Ib<strong>de</strong>m. p. 223-224.8 CHALHUB, Melhim Namem. Negócio Fiduciário. 4. ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Renovar. 2009, p. 69-70.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 221


A i<strong>de</strong>ia da afetação permite o surgimento <strong>de</strong> patrimônios especiaisem que há uma disposição <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s bens <strong>de</strong> servir a um fim <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>,acarretan<strong>do</strong>, em consequência, a limitação da ação <strong>do</strong>s cre<strong>do</strong>res.Esses bens afeta<strong>do</strong>s a uma <strong>de</strong>terminada finalida<strong>de</strong>, a uma <strong>de</strong>stinaçãoespecífica, são <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> uma autonomia necessária à realização<strong>de</strong>sse fim, e recebem uma blindagem contra a ação <strong>de</strong> cre<strong>do</strong>res estranhosàs obrigações inerentes a aqueles fins para os quais foi o afeta<strong>do</strong> o patrimônio.Em outras palavras, o patrimônio <strong>de</strong> afetação tem um regime <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong> próprio, só respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os bens que o compõe pelasobrigações que <strong>de</strong>ram origem à afetação, não respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> esses benspelas obrigações gerais <strong>do</strong> titular, as quais incumbirá ao patrimônio geralrespon<strong>de</strong>r.Por essa razão, há na <strong>do</strong>utrina vozes, como a <strong>do</strong> professor SérgioCampinho, que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a inserção, no or<strong>de</strong>namento pátrio, <strong>de</strong> institutoque possibilite a limitação da responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> empresário individual,fazen<strong>do</strong> exsurgir, assim, a figura <strong>do</strong> empresário individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada 9 .Todavia, trata-se <strong>de</strong> mera sugestão, uma vez que a legislação pátrianão contempla essa figura, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que, se o empresário individual <strong>de</strong>sejarlimitar a sua responsabilida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>verá criar uma pessoa jurídica, sejase associan<strong>do</strong> a outra pessoa ou, a partir da entrada em vigor da Lei nº12.441/2011, mediante a constituição <strong>de</strong> uma EIRELI.A segunda figura jurídica a ser examinada é a da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada.A socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada é uma pessoa jurídica <strong>de</strong>direito priva<strong>do</strong> constituída por duas ou mais pessoas que congregam capitale trabalho para o exercício da ativida<strong>de</strong> empresarial, cuja responsabilida<strong>de</strong>é limitada ao valor <strong>do</strong> capital social subscrito.É ela um exemplo clássico <strong>de</strong> pessoa jurídica, que po<strong>de</strong> ser conceituadacomo o conjunto <strong>de</strong> pessoas, ou <strong>de</strong> bens, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a um fim, comaptidão para adquirir direitos e contrair <strong>de</strong>veres.As pessoas jurídicas têm, como características, a vonta<strong>de</strong> humanacria<strong>do</strong>ra, a organização <strong>de</strong> pessoas ou bens, a licitu<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fins, e a capacida<strong>de</strong>/personalida<strong>de</strong>jurídica reconhecida por lei.9 CAMPINHO, Sérgio. O Direito <strong>de</strong> Empresa à Luz <strong>do</strong> Código Civil. 12. ed. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Renovar. 2011, p. 140.222R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


O primeiro requisito é a vonta<strong>de</strong> humana cria<strong>do</strong>ra. A pessoa jurídicaé uma ficção, ou seja, ela não existe naturalmente. Não existe umnascimento natural <strong>de</strong> uma pessoa jurídica, como ocorre com as pessoasnaturais. Em verda<strong>de</strong>, ela só é uma realida<strong>de</strong> juridicamente. A sua criação<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da vonta<strong>de</strong> humana, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> dar origem a uma nova pessoacom personalida<strong>de</strong> jurídica própria, distinta das pessoas que a compõe.E essa nova pessoa <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> reconhecimento <strong>do</strong> direito para seruma realida<strong>de</strong>.O segun<strong>do</strong> requisito é a organização <strong>de</strong> pessoas ou <strong>de</strong> bens. Poressa característica, não basta que haja uma mera reunião <strong>de</strong> pessoas ebens. É preciso que esse conjunto vise a um fim comum, <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> eorganiza<strong>do</strong>. Essa reunião, portanto, <strong>de</strong>ve visar a um fim comum, e <strong>de</strong>vemos sujeitos que a compõem conferir à pessoa jurídica uma unida<strong>de</strong> orgânicaque a lei possa reconhecer com a existência <strong>de</strong> um novo sujeito <strong>de</strong>direitos, com personalida<strong>de</strong> jurídica própria.Esse fim comum também <strong>de</strong>ve ser lícito. E esse é o terceiro requisitopara a existência <strong>de</strong> uma pessoa jurídica: a liceida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s fins. Então, osfins da pessoa jurídica não po<strong>de</strong>m ser contrários à lei, à moral e aos bonscostumes.O quarto e último requisito é a capacida<strong>de</strong>/personalida<strong>de</strong> jurídicareconhecida por lei. Portanto, essa reunião <strong>de</strong> pessoas, visan<strong>do</strong> a um fimlícito comum, <strong>de</strong>ve ser passível <strong>de</strong> reconhecimento pela lei como umapessoa com personalida<strong>de</strong>/capacida<strong>de</strong> jurídica própria.O que se infere é que uma das características da pessoa jurídica e,consequentemente, das socieda<strong>de</strong>s, é a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas. Nessa esteira,a socieda<strong>de</strong> limitada é uma pessoa jurídica criada por duas ou maispessoas que visam a exploração organizada <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> econômicacom fim <strong>de</strong> lucro.Ocorre que, ao criar essa nova pessoa, os sócios não mais serãoresponsáveis pelo exercício da empresa, e sim a própria pessoa jurídica. Éela a titular da ativida<strong>de</strong>, a titular <strong>do</strong>s direitos e obrigações contraídas noseu exercício.Essa pessoa jurídica, a socieda<strong>de</strong> empresária, ao ser constituída eregistrada no RPEM, passa a ostentar personalida<strong>de</strong> jurídica própria e,consequentemente, patrimônio próprio, diverso daquele das pessoas quea compõem.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 223


Então, por possuir personalida<strong>de</strong> jurídica e patrimônio próprio, éela que respon<strong>de</strong> perante os terceiros com quem celebra os negóciosjurídicos.No caso específico da socieda<strong>de</strong> limitada, a responsabilida<strong>de</strong> daspessoas que a compõem – os sócios – po<strong>de</strong> ser aferida sob <strong>do</strong>is prismas:o da responsabilida<strong>de</strong> perante a socieda<strong>de</strong>; e o da responsabilida<strong>de</strong> peranteterceiros, cre<strong>do</strong>res da pessoa jurídica.Perante a socieda<strong>de</strong>, os sócios respon<strong>de</strong>m pela integralização <strong>do</strong>capital. Cada sócio <strong>de</strong>ve integralizar o valor <strong>de</strong> sua cota e, uma vez feitoisso, nada mais <strong>de</strong>verá à pessoa jurídica.Em face <strong>do</strong>s terceiros, to<strong>do</strong>s os sócios respon<strong>de</strong>m, solidariamente,pelo montante não integraliza<strong>do</strong>. Assim, uma vez não ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> integraliza<strong>do</strong>inteiramente o capital por um ou por mais <strong>de</strong> um sócio, to<strong>do</strong>s respon<strong>de</strong>rãosolidariamente pela integralização <strong>de</strong>sse capital, que é a garantiamínima <strong>do</strong>s cre<strong>do</strong>res.E isso porque o capital social é o limite da responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>ssócios perante os cre<strong>do</strong>res da socieda<strong>de</strong>, ou seja, os sócios só respon<strong>de</strong>mpelo valor <strong>do</strong> capital social subscrito no contrato social.Uma vez integraliza<strong>do</strong> o capital social, apenas a socieda<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>ráperante os seus cre<strong>do</strong>res, com todas as forças <strong>de</strong> seu patrimônio,salvo se verificada alguma das hipóteses enseja<strong>do</strong>ras da aplicação da teoriada <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração da personalida<strong>de</strong> jurídica, caso em que o patrimôniopessoal <strong>do</strong>s sócios po<strong>de</strong>rá ser atingi<strong>do</strong>.É essa, pois, a característica marcante das limitadas.As socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada po<strong>de</strong>rão a<strong>do</strong>tar comonome empresarial uma firma ou uma <strong>de</strong>nominação, e em ambos os casosserá integra<strong>do</strong> pela expressão limitada ou ltda ao seu final. No caso<strong>de</strong> a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> firma social, será ela composta pelo nome <strong>de</strong> um ou maissócios, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que pessoas físicas. Quan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>tada a <strong>de</strong>nominação, <strong>de</strong>veráela, obrigatoriamente, <strong>de</strong>signar o objeto social, a ativida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong>,po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> se utilizar, ainda, <strong>de</strong> um nome fantasia. Po<strong>de</strong>rá, ainda, serutiliza<strong>do</strong> o nome <strong>de</strong> um sócio, ou <strong>do</strong>s sócios, tanto pessoas físicas quantojurídicas.No que toca às figuras assemelhadas à EIRELI, essas são as observaçõesnecessárias à continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nosso estu<strong>do</strong>. A partir <strong>de</strong> agora,passaremos a examinar, propriamente, a empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada.224R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


4. A Empresa Individual <strong>de</strong> Responsabilida<strong>de</strong> LimitadaA Lei nº 12.441/2011, como já tivemos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> examinar,acrescentou ao rol <strong>de</strong> pessoas jurídicas <strong>de</strong> direito priva<strong>do</strong>, previsto noart. 44 <strong>do</strong> Código Civil, o inciso VI, fazen<strong>do</strong> figurar como uma nova pessoajurídica a empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada.Logo <strong>de</strong> plano é possível formularmos uma primeira crítica ao legisla<strong>do</strong>rordinário: ele chamou essa nova pessoa <strong>de</strong> empresa, subjetivan<strong>do</strong>aquilo que, em verda<strong>de</strong>, é uma ativida<strong>de</strong>.No ano <strong>de</strong> 1943, o comercialista italiano Alberto Asquini apresentouquatro conceitos <strong>de</strong> empresa: primeiro, um conceito subjetivo, em quea empresa se confun<strong>de</strong> com a figura <strong>do</strong> empresário. A empresa, então,seria a mesma coisa que empresário ou socieda<strong>de</strong> empresária; segun<strong>do</strong>,apresentou um conceito objetivo, em que a empresa se confun<strong>de</strong> com oestabelecimento, ou seja, a empresa seria a mesma coisa que estabelecimento;apresentou, ainda, um terceiro conceito, chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> conceitocorporativo, em que a empresa é consi<strong>de</strong>rada uma organização estruturada<strong>de</strong> pessoas, em que o emprega<strong>do</strong>r e o emprega<strong>do</strong> se unem em torno<strong>do</strong> mesmo fim, que é o <strong>de</strong>senvolvimento da ativida<strong>de</strong> comercial; por fim,apresentou o conceito funcional <strong>de</strong> empresa que é, na verda<strong>de</strong>, o conceitotécnico. Por este, a empresa é a ativida<strong>de</strong> econômica organizada para aprodução ou circulação <strong>de</strong> bens ou serviços.Os três primeiros conceitos foram afasta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> plano. Não há quese falar em i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre empresa e empresário, uma vez que a empresanão é titular <strong>de</strong> direitos; não há que se confundir, ainda, empresacom estabelecimento, isso porque a empresa não é objeto <strong>de</strong> direitos; epor fim, impossível é a utilização <strong>do</strong> conceito corporativo, especialmenteem uma socieda<strong>de</strong> capitalista, em que emprega<strong>do</strong>r e emprega<strong>do</strong>, em verda<strong>de</strong>,perseguem interesses antagônicos.Por isso, diz-se que o conceito funcional é o conceito técnico <strong>de</strong> empresa,pois a empresa, em verda<strong>de</strong>, é uma ativida<strong>de</strong>. E esse foi o conceitoa<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo Código Civil <strong>de</strong> 2002 em seu art. 966.Contrariou, pois, o legisla<strong>do</strong>r, ao editar a Lei nº 12.441/2011, a própriateoria da empresa consagrada pelo Código Civil. Pela teoria da empresa,a pessoa é consi<strong>de</strong>rada, ou não, um empresário ou socieda<strong>de</strong> empresáriapela forma como é exercida a ativida<strong>de</strong> econômica por ele explorada. Se aativida<strong>de</strong> econômica é organizada, por reunir os quatro fatores <strong>de</strong> produção– capital, trabalho, tecnologia e matéria-prima –, é ela uma ativida<strong>de</strong>empresarial. Estará a pessoa, nesse caso, exercen<strong>do</strong> a empresa.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 225


Vê-se que a empresa qualifica a ativida<strong>de</strong> econômica. É a empresauma espécie <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> econômica: a ativida<strong>de</strong> econômica organizada.Então, é ela sinônimo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> econômica organizada, e não <strong>de</strong> pessoa.Portanto, an<strong>do</strong>u mal o legisla<strong>do</strong>r ao <strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> empresa essanova pessoa explora<strong>do</strong>ra da ativida<strong>de</strong> empresarial.O primeiro aspecto a ser examina<strong>do</strong> da EIRELI é seu conceito. A leinão apresenta um conceito, no que an<strong>do</strong>u bem, isso porque a função <strong>de</strong>conceituar os institutos jurídicos é da <strong>do</strong>utrina.Dessa forma, enten<strong>de</strong>mos que <strong>de</strong>vemos conceituar a empresa individual<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada como uma pessoa jurídica <strong>de</strong> direitopriva<strong>do</strong>, que tem como objeto uma ativida<strong>de</strong> econômica organizada paraa produção ou a circulação <strong>de</strong> bens ou <strong>de</strong> serviços, e que é constituída poruma só pessoa, cuja responsabilida<strong>de</strong> é limitada ao montante <strong>do</strong> capitalintegraliza<strong>do</strong>.A partir <strong>do</strong> conceito, é imperioso enfrentarmos, <strong>de</strong> imediato, a naturezajurídica da EIRELI.Inicialmente, há que se afastar qualquer confusão que possa ocorrercom a figura <strong>do</strong> empresário individual. Primeiro porque, como já examinamos,o empresário individual exerce a empresa em seu próprio nome,haja vista que é a própria pessoa natural que explora a ativida<strong>de</strong> econômicaorganizada, e a EIRELI, por expressa disposição legal, é uma pessoajurídica, ou seja, a pessoa que a compõe não exerce a ativida<strong>de</strong> em seupróprio nome, mas é a pessoa jurídica que o faz. Segun<strong>do</strong> que o empresárioindividual respon<strong>de</strong> ilimitadamente pelas obrigações contraídas noexercício da sua ativida<strong>de</strong>, respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> com o seu patrimônio pessoal,enquanto que a empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada, como opróprio nome diz, e como expomos no conceito, impõe uma responsabilida<strong>de</strong>limitada ao seu único cotista.Segun<strong>do</strong> a Lei nº 12.441/2011, como já afirmamos, a EIRELI é umapessoa jurídica. Ocorre que é uma pessoa jurídica peculiar, uma vez que,como já pu<strong>de</strong>mos observar, as pessoas jurídicas têm, como característicaprincipal, a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoas. As pessoas jurídicas são um conjunto<strong>de</strong> pessoas ou bens <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a um fim.O legisla<strong>do</strong>r, então, contrariou toda a teoria acerca das pessoasjurídicas, dan<strong>do</strong> origem a uma pessoa jurídica composta por uma únicapessoa. Enten<strong>de</strong>mos que é equivocada essa construção. Todavia, ten<strong>do</strong>assim disposto expressamente o legisla<strong>do</strong>r, sustentamos não ser possível226R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


contrariar aquilo que a lei expressamente previu. Portanto, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>com o Código Civil, a natureza jurídica da EIRELI é um fato inexorável: aempresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada é uma pessoa jurídica,nova, peculiar, mas uma pessoa jurídica.Dúvida que surge é acerca da natureza <strong>de</strong>ssa pessoa que constitui aEIRELI. Essa pessoa só po<strong>de</strong>rá ostentar a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pessoa natural, outambém po<strong>de</strong>rá ser uma pessoa jurídica?Na <strong>do</strong>utrina, a questão ainda é incipiente, no entanto, já há posicionamentosconflitantes. Para o professor Sérgio Campinho, “esse sócioúnico <strong>de</strong>verá ser pessoa natural, vedada a constituição <strong>de</strong> EIRELI por pessoajurídica 10 ”.Já para Nelson Nery Junior e Rosa Maria <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> Nery, não háessa obrigatorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> o único cotista da EIRELI ostentar a natureza <strong>de</strong>pessoa natural, isso porque o “CC 980-A não especifica qual pessoa po<strong>de</strong>constituir a EIRELI. O caput da norma comentada fala apenas em ‘pessoa’.Portanto, tanto as pessoas físicas como jurídicas po<strong>de</strong>m constituir essetipo <strong>de</strong> empresa 11 ”.Concordamos com esse último posicionamento, e isso em razão daausência <strong>de</strong> limitação legal, ou seja, a lei não limita às pessoas naturais acondição <strong>de</strong> cotista da EIRELI. Ao contrário, a única vedação prevista emlei é a <strong>de</strong> que, em sen<strong>do</strong> esse cotista uma pessoa natural, não po<strong>de</strong>ráele figurar em outra empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada, ouseja, não po<strong>de</strong>rá constituir outra EIRELI 12 .Então, se ninguém po<strong>de</strong> fazer ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer algo senão em virtu<strong>de</strong><strong>de</strong> lei, ex vi <strong>do</strong> que dispõe o art. 5º, II, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, não sepo<strong>de</strong> proibir uma pessoa jurídica <strong>de</strong> ser cotista <strong>de</strong> uma EIRELI.Ainda <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> exame da natureza jurídica da empresa individual<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada, é preciso saber se essa nova pessoa jurídicaé, ou não, uma socieda<strong>de</strong>.Pensamos que não. E isso por duas razões: a primeira <strong>de</strong>las é quea Lei nº 12.441/2011, como já exaustivamente menciona<strong>do</strong>, acresceu umnovo inciso ao rol taxativo <strong>de</strong> pessoas jurídicas <strong>de</strong> direito priva<strong>do</strong> previstono art. 44 <strong>do</strong> Código Civil. A EIRELI está prevista, isoladamente, no inciso VI10 CAMPINHO. op. cit. p. 286.11 NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>. Código Civil Comenta<strong>do</strong>. 8. ed. São Paulo: RT. 2011, p. 861.12 É isso o que dispõe o § 2º <strong>do</strong> art. 980-A <strong>do</strong> Código Civil: “A pessoa natural que constituir empresa individual <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong> limitada somente po<strong>de</strong>rá figurar em uma única empresa <strong>de</strong>ssa modalida<strong>de</strong>”.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 227


<strong>do</strong> menciona<strong>do</strong> dispositivo. Já as socieda<strong>de</strong>s estão previstas no inciso II <strong>do</strong>art. 44. Isso significa que o legisla<strong>do</strong>r não quis confundir essas duas figuras;a segunda razão para não consi<strong>de</strong>rarmos a empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada como uma socieda<strong>de</strong> é o fato <strong>de</strong> que ela foi disciplinadaem um título próprio, o Título I-A <strong>do</strong> Livro II da Parte Especial <strong>do</strong> CódigoCivil, sob o nomen iuris "Da Empresa Individual <strong>de</strong> Responsabilida<strong>de</strong> Limitada",enquanto que as socieda<strong>de</strong>s estão disciplinadas no Título II <strong>do</strong> Livro IIda Parte Especial <strong>do</strong> Código Civil, a partir <strong>do</strong> art. 981 <strong>do</strong> Digesto pátrio.Contu<strong>do</strong>, não é esse o entendimento <strong>do</strong> ilustre professor SérgioCampinho. Segun<strong>do</strong> ele, “pela racionalida<strong>de</strong> que se po<strong>de</strong> extrair <strong>do</strong>s preceitosda Lei nº 12.441/2011, a EIRELI é, em verda<strong>de</strong>, uma socieda<strong>de</strong>, massocieda<strong>de</strong> unipessoal. Essa unipessoalida<strong>de</strong> permanente que caracterizaa sua constituição é o seu marco distintivo. Assim é que o legisla<strong>do</strong>r preferiugrifá-la com um título próprio (Título I-A) e não incluí-la no Título II,que manteve reserva<strong>do</strong> para as socieda<strong>de</strong>s com pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sócios, asquais se formam, <strong>de</strong>starte, a partir <strong>de</strong> um contrato plurilateral 13 ”.Defen<strong>de</strong> ele, pois, que a natureza da EIRELI é <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> empresária,e <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> unipessoal <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada 14 .Dessa forma, reconhece ele mais uma exceção à regra da pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sócios das socieda<strong>de</strong>s.Ousamos, todavia, e com a <strong>de</strong>vida vênia, discordar <strong>do</strong> preclaro professor.Como regra, as socieda<strong>de</strong>s são compostas por <strong>do</strong>is ou mais sócios,que po<strong>de</strong>m ser pessoas naturais ou jurídicas, não se admitin<strong>do</strong> socieda<strong>de</strong>sunipessoais. E isso tanto é verda<strong>de</strong> que o art. 1.033 <strong>do</strong> Código Civil,em seu inciso IV, prevê como uma das causas <strong>de</strong> dissolução das socieda<strong>de</strong>sa falta <strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sócios que não for reconstituída no prazo <strong>de</strong>cento e oitenta dias.Vê-se, pois, que a lei civil apenas admite a unipessoalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> forma superveniente e temporária. E tal regra foi reforçadapela Lei Complementar nº 128/2009, que acrescentou o parágrafo únicoao art. 1.033 <strong>do</strong> Código Civil, para dispor que apenas não haveria a dissoluçãoda socieda<strong>de</strong> pela falta <strong>de</strong> pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sócios se o sócio remanescenterequeresse, no Registro Público <strong>de</strong> Empresas Mercantis, a alteração<strong>do</strong> seu registro <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> empresária para empresário individual.13 CAMPINHO. op. cit. p. 285.14 Segun<strong>do</strong> o emérito professor, “[é] a EIRELI, em nosso sentir, uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> limitada, com o traçocaracterístico, que lhe imprime particularida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ser formada por um único sócio”. CAMPINHO. op. cit. p. 285.228R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Portanto, não po<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong> permanecer unipessoal. E essa éa regra. A exceção a essa regra é aquela prevista no art. 251 da Lei nº6.404/76, que admite a constituição, em caráter originário e permanente,<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> unipessoal, em que uma socieda<strong>de</strong> brasileira po<strong>de</strong> sera única titular <strong>de</strong> outra socieda<strong>de</strong>. É a <strong>de</strong>nominada subsidiária integral.Mas, frise-se, essa hipótese é uma exceção. E a Lei nº 12.441/2011,a nosso sentir, não criou outra exceção à regra. Ela tão somente passou aadmitir que esse sócio remanescente requeira a alteração <strong>de</strong> seu registro<strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> empresária para empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada,que é uma pessoa jurídica nova e diferente.E ainda, com a <strong>de</strong>vida vênia ao entendimento contrário, tambémpensamos não ser possível consi<strong>de</strong>rá-la como uma socieda<strong>de</strong> limitada. Eisso porque a própria Lei nº 12.441/2011 trouxe o § 6º para o art. 980-A<strong>do</strong> Código Civil, que prevê que se aplicam à EIRELI, no que couber, as regrasprevistas para as socieda<strong>de</strong>s limitadas.Ora, se essa pessoa jurídica fosse uma socieda<strong>de</strong> limitada, o legisla<strong>do</strong>rnão precisaria ter trazi<strong>do</strong> essa regra, e tampouco teria feito a observação<strong>de</strong> que são aplicáveis as regras da socieda<strong>de</strong> limitada apenas no quecouber. Trata-se, pois, <strong>de</strong> mera aplicação subsidiária, e não direta. Casotivesse a EIRELI a natureza <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> limitada, seria normal essaúltima hipótese, ou seja, a <strong>de</strong> aplicação direta das regras da limitada 15 , enão uma mera aplicação subsidiária.Sustentamos, por essa razão, que a empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada é uma nova pessoa jurídica, distinta <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>mais,que também exerce a empresa. Assim como há socieda<strong>de</strong>s que nãosão empresárias, ou seja, que não exercem a empresa, admite a lei, a partir<strong>de</strong> agora, que outra pessoa jurídica também exerça a empresa, in casu,a empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada.Temos assim, hodiernamente, em nosso or<strong>de</strong>namento, socieda<strong>de</strong>sempresárias e não empresárias, e outras pessoas jurídicas que po<strong>de</strong>m serempresárias – a EIRELI – e não empresárias, como as associações, porexemplo.A unipessoalida<strong>de</strong> da EIRELI po<strong>de</strong> ser originária ou superveniente.Pelo caput <strong>do</strong> art. 980-A <strong>do</strong> Código Civil, a empresa individual <strong>de</strong> respon-15 O professor Sérgio Campinho respon<strong>de</strong> a essa questão afirman<strong>do</strong> que “[a] ressalva legal ‘no que couber’ (§ 6º,<strong>do</strong> artigo 980-A) quer significar que o feixe positivo da socieda<strong>de</strong> limitada disciplinará complementarmente a EIRELI,salvo em relação àquelas regras que pressuponham a pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sócios”. CAMPINHO. op. cit. p. 285.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 229


sabilida<strong>de</strong> limitada será constituída por uma única pessoa titular da totalida<strong>de</strong><strong>do</strong> capital social, <strong>de</strong>vidamente integraliza<strong>do</strong>, que não será inferior a100 vezes o maior salário-mínimo vigente no país.Então, po<strong>de</strong>rá uma única pessoa natural ou jurídica, originariamente,constituir uma EIRELI, e será ela a única titular da totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> capital“social”, que não po<strong>de</strong>rá ser inferior a 100 vezes o maior salário mínimovigente no país, e que <strong>de</strong>verá ser totalmente integraliza<strong>do</strong> no momentoda sua constituição.A regra tem, claramente, o objetivo <strong>de</strong> minimizar frau<strong>de</strong>s e danos aterceiros. Isso porque a instituição <strong>de</strong> um capital mínimo diminui os riscos<strong>de</strong> lesão aos cre<strong>do</strong>res, pois haverá um montante mínimo a garantir a satisfação<strong>de</strong> seus créditos. Em troca, terá a pessoa que compõe a EIRELI a suaresponsabilida<strong>de</strong> limitada ao valor <strong>do</strong> capital integraliza<strong>do</strong>.Não obstante, caso a pessoa não queira integralizar esse montantemínimo para o exercício da sua ativida<strong>de</strong> econômica, <strong>de</strong>verá explorar aempresa como empresário individual, hipótese em que a garantia <strong>do</strong>scre<strong>do</strong>res será o seu patrimônio pessoal.Há que se frisar que a lei expressamente exige para a constituiçãoda EIRELI que o capital seja totalmente integraliza<strong>do</strong>. Nessa esteira, nãopo<strong>de</strong>rá o RPEM admitir o registro <strong>de</strong>ssa pessoa jurídica caso não esteja<strong>de</strong>vidamente integraliza<strong>do</strong> o capital social.É, ainda, imperioso ressaltar que a lei exige que seja totalmenteintegraliza<strong>do</strong> o capital mesmo que seja ele superior a 100 salários mínimos,sen<strong>do</strong> essa quantia apenas um mínimo para a constituição da pessoajurídica. Caso o capital subscrito seja superior a esse mínimo, ainda assimo único cotista <strong>de</strong>verá integralizá-lo totalmente para constituir a EIRELI.Po<strong>de</strong>rá, contu<strong>do</strong>, a EIRELI ser constituída supervenientemente,como dispõe o § 3º <strong>do</strong> art. 980-A <strong>do</strong> Código Civil: a empresa individual <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong> limitada também po<strong>de</strong>rá resultar da concentração dasquotas <strong>de</strong> outra modalida<strong>de</strong> societária num único sócio, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementedas razões que motivaram tal concentração.O que se <strong>de</strong>preen<strong>de</strong> é que, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong> motivo quelevou à concentração das quotas <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> nas mãos <strong>de</strong> um únicosócio, po<strong>de</strong>rá ele requerer, na forma <strong>do</strong> parágrafo único <strong>do</strong> art. 1.033 <strong>do</strong>Código Civil, que o registro da socieda<strong>de</strong> seja modifica<strong>do</strong> para empresaindividual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada.230R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


Ocorre que esse requerimento só po<strong>de</strong>rá ser feito se o capital “social”daquela socieda<strong>de</strong> que se tornou unipessoal não for inferior a 100vezes o maior salário mínimo vigente no país. Em sen<strong>do</strong> inferior, <strong>de</strong>verá ocotista promover o aumento <strong>do</strong> capital até aquele montante mínimo.Caso também não esteja totalmente integraliza<strong>do</strong> o capital daquelasocieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>verá o cotista fazê-lo, a fim <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r à exigência <strong>do</strong> caput<strong>do</strong> art. 980-A <strong>do</strong> Código Civil, evitan<strong>do</strong>-se, assim, que essa alteração <strong>de</strong>natureza da pessoa jurídica, <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> para EIRELI, seja feita com o fim<strong>de</strong> prejudicar terceiros.Segun<strong>do</strong> dispõe o § 1º <strong>do</strong> art. 980-A <strong>do</strong> Código Civil, a empresaindividual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada po<strong>de</strong>rá a<strong>do</strong>tar como nome empresarialuma firma ou uma <strong>de</strong>nominação que será seguida pela expressãoEIRELI. Caso não seja incluída a aludida expressão, a consequênciaserá a responsabilização ilimitada <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r, que não necessariamenteprecisa ser o cotista da empresa individual, como autoriza o art.1.061 <strong>do</strong> Código Civil, norma essa <strong>de</strong> aplicação às socieda<strong>de</strong>s limitadas eque também é passível <strong>de</strong> aplicação à EIRELI, por força <strong>do</strong> que dispõe o jámenciona<strong>do</strong> § 6º <strong>do</strong> art. 980-A <strong>do</strong> Digesto pátrio.Admite a lei civil, ainda, no § 5º <strong>de</strong> seu art. 980-A, que seja atribuídaà empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada a remuneração <strong>de</strong>correnteda cessão <strong>de</strong> direitos patrimoniais <strong>de</strong> autor ou <strong>de</strong> imagem, nome,marca ou voz <strong>de</strong> que seja <strong>de</strong>tentor o titular da pessoa jurídica, vincula<strong>do</strong>sà ativida<strong>de</strong> profissional, quan<strong>do</strong> for a EIRELI constituída para a prestação<strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> qualquer natureza.Então, se o titular da EIRELI exercer ativida<strong>de</strong> intelectual <strong>de</strong> naturezacientífica, literária ou artística, e tal ativida<strong>de</strong> venha a constituir elemento<strong>de</strong> empresa, nos termos da parte final <strong>do</strong> parágrafo único, a remuneraçãopo<strong>de</strong>rá ser atribuída à empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> limitada.Por todas essas razões, sustentamos que a EIRELI é uma nova pessoajurídica que exerce a empresa e que é constituída por uma única pessoa,natural ou jurídica, que titulariza a integralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> capital, e quepossui uma responsabilida<strong>de</strong> limitada ao montante <strong>de</strong>sse capital totalmenteintegraliza<strong>do</strong> no ato <strong>de</strong> sua constituição.E é essa última a principal característica da EIRELI, ou seja, o solitáriocotista <strong>de</strong>ssa pessoa jurídica tem responsabilida<strong>de</strong> limitada ao total<strong>do</strong> capital “social”. Uma vez integraliza<strong>do</strong> o capital, o que se impõe paraR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 231


a constituição da EIRELI, não po<strong>de</strong> o cotista ser responsabiliza<strong>do</strong> pessoalmente,estan<strong>do</strong> o seu patrimônio imune aos cre<strong>do</strong>res da pessoa jurídica.Trata-se <strong>de</strong> medida que visa a estimular o exercício da ativida<strong>de</strong>empresarial, pois a exploração <strong>de</strong> uma ativida<strong>de</strong> econômica sob a forma<strong>de</strong> empresário individual, como já tivemos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> explicitar,põe em risco o patrimônio pessoal e familiar <strong>do</strong> indivíduo, o que muitadas vezes o faz repensar o risco <strong>de</strong> ingressar no merca<strong>do</strong>.Em contrapartida, pensamos que, com a entrada em vigor da Leinº 12.441/2011, diminuirá em muito a prática empresarial sob a forma <strong>de</strong>empresário individual, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> até mesmo cair em <strong>de</strong>suso, haja vista queos riscos inerentes ao exercício da ativida<strong>de</strong> econômica sob essa formapo<strong>de</strong>m ser afasta<strong>do</strong>s pela a<strong>do</strong>ção da EIRELI. Se já não é mais tão comuma existência <strong>de</strong> um empresário individual, a partir da vigência da Lei nº12.441/2011 essa figura jurídica será ainda mais rara 16 .A modificação legislativa, inclusive, diminuirá, ou mesmo extinguiráa criação <strong>de</strong> “socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fachada”, constituídas, por exemplo, entremari<strong>do</strong> e mulher, em que um <strong>do</strong>s cônjuges titulariza a maioria esmaga<strong>do</strong>radas cotas sociais. Tais socieda<strong>de</strong>s são criadas exatamente com o intuito<strong>de</strong> afastar a ausência <strong>de</strong> limitação da responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> empresárioindividual.A partir da vigência da nova lei, não se justificará mais a criação<strong>de</strong>ssas socieda<strong>de</strong>s limitadas, por exemplo, entre cônjuges, pois o cônjugepo<strong>de</strong>rá, simplesmente, instituir uma empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada e assim atingir o objetivo que pretendia ao instituir aquela“socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> fachada”.Não obstante, o afastamento da responsabilida<strong>de</strong> pessoa e <strong>do</strong> cotistana EIRELI não é absoluto. É plenamente aplicável, nesse caso, a teoriada <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração da personalida<strong>de</strong> jurídica.Uma vez ostentan<strong>do</strong> personalida<strong>de</strong> jurídica própria, a EIRELI servecomo uma blindagem ao patrimônio pessoal <strong>do</strong> solitário cotista. Todavia,16 A escassez <strong>do</strong> exercício da ativida<strong>de</strong> empresarial sob a forma <strong>de</strong> empresário individual é também ressaltada pelomestre Fábio Ulhoa Coelho, que em seu festeja<strong>do</strong> Curso <strong>de</strong> Direito Comercial salienta que “[n]este capítulo – e, <strong>de</strong>resto, em to<strong>do</strong> o Curso –, o exame das questões em geral terá por foco o empresário pessoa jurídica. Não tratará,senão em pouquíssimas passagens, <strong>do</strong> exercente individual da ativida<strong>de</strong> econômica <strong>de</strong> produção ou circulação <strong>de</strong>bens ou serviços, porque esta figura, na verda<strong>de</strong>, não possui presença relevante na economia”. COELHO, FábioUlhoa. Curso <strong>de</strong> Direito Comercial. Direito <strong>de</strong> empresa. Empresa e estabelecimento; títulos <strong>de</strong> crédito. v. I. 14. ed.São Paulo: Saraiva. 2010, p. 65.232R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


se ele abusar <strong>de</strong>ssa personalida<strong>de</strong>, pratican<strong>do</strong> atos fraudulentos, <strong>de</strong>svian<strong>do</strong>-seda finalida<strong>de</strong> para a qual foi instituída a EIRELI, será possívelo afastamento da personalida<strong>de</strong> jurídica da pessoa jurídica para atingir oseu patrimônio pessoal, na forma <strong>do</strong> art. 50 <strong>do</strong> Código Civil.A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação da teoria da <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração dapersonalida<strong>de</strong> jurídica na EIRELI, inclusive, foi a causa <strong>do</strong> veto ao § 4º <strong>do</strong>art. 980-A <strong>do</strong> Código Civil.O dispositivo em comento previa que “somente o patrimôniosocial da empresa respon<strong>de</strong>rá pelas dívidas da empresa individual <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>limitada, não se confundin<strong>do</strong> em qualquer situação com opatrimônio da pessoa natural que a constitui, conforme <strong>de</strong>scrito em sua<strong>de</strong>claração anual <strong>de</strong> bens entregue ao órgão competente”.Nas razões <strong>do</strong> veto, ressaltou-se a expressão em qualquer situaçãoprevista no dispositivo veta<strong>do</strong>, como é possível se inferir, in verbis: “Nãoobstante o mérito da proposta, o dispositivo traz a expressão ‘em qualquersituação’, que po<strong>de</strong> gerar divergências quanto à aplicação das hipótesesgerais <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração da personalida<strong>de</strong> jurídica, previstas no art. 50<strong>do</strong> Código Civil. Assim, e por força <strong>do</strong> § 6º <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> lei, aplicar-se-áà EIRELI as regras da socieda<strong>de</strong> limitada, inclusive quanto à separação <strong>do</strong>patrimônio”.Portanto, a regra é o não atingimento <strong>do</strong> patrimônio pessoal <strong>do</strong>cotista, com a limitação da sua responsabilida<strong>de</strong> ao valor <strong>do</strong> capital integraliza<strong>do</strong>da pessoa jurídica. No entanto, será possível, excepcionalmente,a responsabilização pessoal da pessoa que institui a EIRELI, mediante aaplicação da teoria da <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ração da personalida<strong>de</strong> jurídica.5. ConclusãoO que po<strong>de</strong>mos inferir <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> o que foi exposto é que a modificaçãolegislativa é extremamente positiva, pois estimula o exercício daativida<strong>de</strong> empresarial através da limitação da responsabilida<strong>de</strong> da pessoaque institui a EIRELI.É importante ressaltar que, muitas vezes, o insucesso da ativida<strong>de</strong>empresarial não <strong>de</strong>ve ser imputa<strong>do</strong> a um agir <strong>do</strong>loso ou culposo <strong>do</strong> explora<strong>do</strong>rda ativida<strong>de</strong>. A crise econômica <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> empresário ousocieda<strong>de</strong> empresária po<strong>de</strong> <strong>de</strong>correr <strong>de</strong> diversos fatores como, por exemplo,condições <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, mudanças na economia e na política.R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011 233


Assim, não nos parece justo impedir a limitação da responsabilida<strong>de</strong>,colocan<strong>do</strong> em risco o patrimônio pessoal da pessoa, apenas paradar maiores garantias e satisfazer os cre<strong>do</strong>res.A ausência <strong>de</strong> previsão legal <strong>de</strong> uma figura como a EIRELI acabavapor estimular a criação <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s fictícias, em que apenas um <strong>do</strong>ssócios era, <strong>de</strong> fato, participante das ativida<strong>de</strong>s da pessoa jurídica, ou atémesmo levava o indivíduo a não explorar a empresa, pois a exploraçãosob a forma <strong>de</strong> empresário individual po<strong>de</strong> trazer riscos ao seu patrimônioe <strong>de</strong> sua família. Por essa razão, foi salutar a mudança legislativa.Ocorre que, na mão contrária, o que se verá, se é possível praticarneste caso a futurologia, é a morte <strong>do</strong> empresário individual. Não haverá,salvo raras exceções em que a pessoa natural pretenda iniciar uma ativida<strong>de</strong>organizada com capital inferior a 100 salários mínimos, interessepara a exploração da empresa como empresário individual, haja vista ocomprometimento <strong>do</strong> patrimônio pessoal e familiar.A tendência é o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong>ssa figura jurídica.Como se vê, nem tu<strong>do</strong> são flores. A limitação da responsabilida<strong>de</strong><strong>do</strong> cotista da EIRELI também não é intransponível. Inferin<strong>do</strong>-se a prática<strong>de</strong> atos abusivos por parte <strong>do</strong> solitário cotista, será possível o atingimento<strong>de</strong> seu patrimônio pessoal, pois a pessoa jurídica não po<strong>de</strong> ser utilizadapara acobertar frau<strong>de</strong>s. Trata-se <strong>de</strong> regra que prestigia a vedação ao abuso<strong>de</strong> direito.Não obstante, pensamos que essa nova figura jurídica terá enormesucesso na prática empresarial, estimulan<strong>do</strong>, ainda mais, a exploração daativida<strong>de</strong> econômica gera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> empregos, tributos e avanço social.234R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 215-234, out.-<strong>de</strong>z. 2011


O Chargeback e suas Repercussõesno E-commerce e nos Direitos <strong>do</strong>Consumi<strong>do</strong>r e da EmpresaVitor GuglinskiAdvoga<strong>do</strong> em Minas Gerais. Pós-gradua<strong>do</strong> com especializaçãoem Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r.1. O QUE É CHARGEBACK?Em interessante editorial publica<strong>do</strong> em seu site no dia 17/01/2012(http://pablostolze.ning.com/), o eminente professor PABLO STOLZE GA-GLIANO nos convida a refletir sobre uma prática que vem se tornan<strong>do</strong>bastante arraigada no cotidiano <strong>de</strong>sta era digital em que vivemos. Tratase<strong>do</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> chargeback, que é ti<strong>do</strong> por muitos empresários comoum <strong>do</strong>s atuais vilões <strong>do</strong> e-commerce, ou, em bom português, comércioeletrônico.Convite aceito e que esten<strong>do</strong> aos <strong>de</strong>mais estudiosos <strong>do</strong> Direito,procurei me <strong>de</strong>bruçar sobre o tema neste singelo estu<strong>do</strong>, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> extraías primeiras conclusões sobre o conceito <strong>de</strong> chargeback, sua diferençaem relação ao direito <strong>de</strong> arrependimento previsto no art. 49 <strong>do</strong> Código<strong>de</strong> Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r e algumas questões afetas a eventuais sançõesque envolvem o tema, bem como ao sistema <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> civil aser observa<strong>do</strong> em cada caso.Hodiernamente, são inúmeras as opções <strong>de</strong> contratação fora <strong>do</strong>estabelecimento comercial realizadas diariamente por milhares <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>resem to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, seja por meio da internet ou via telefone, reembolsopostal etc., sen<strong>do</strong> que, atualmente, muitos empresários sequerpossuem pontos físicos on<strong>de</strong> exercem a empresa, preferin<strong>do</strong> a comodida<strong>de</strong><strong>do</strong> ambiente virtual e, principalmente, a agilida<strong>de</strong> das transações comcartões <strong>de</strong> crédito/débito.Se é correto afirmar que o comércio virtual trouxe conforto e comodida<strong>de</strong>a empresários e, principalmente, aos consumi<strong>do</strong>res, tambémé correta a afirmação no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que severas mazelas vêm ocorren<strong>do</strong>em razão <strong>de</strong>ssa prática, ante as sucessivas notícias <strong>de</strong> frau<strong>de</strong>s perpetradasR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011 235


por ocasião das fragilida<strong>de</strong>s que caracterizam a contratação à distância,notadamente no ambiente da internet.Nesse cenário, uma prática começa a chamar a atenção <strong>do</strong>s juristas:é o chama<strong>do</strong> chargeback. Mas, o que é chargeback? Por que essaprática é consi<strong>de</strong>rada uma das vilãs <strong>do</strong> comércio eletrônico?O conceito básico <strong>de</strong> chargeback nos é forneci<strong>do</strong> por JOSIANEOSÓRIO:"Chargeback é o cancelamento <strong>de</strong> uma venda feita com cartão<strong>de</strong> débito ou crédito, que po<strong>de</strong> acontecer por <strong>do</strong>is motivos: um<strong>de</strong>les é o não reconhecimento da compra por parte <strong>do</strong> titular<strong>do</strong> cartão, e o outro po<strong>de</strong> se dar pelo fato <strong>de</strong> a transação nãoobe<strong>de</strong>cer às regulamentações previstas nos contratos, termos,aditivos e manuais edita<strong>do</strong>s pelas administra<strong>do</strong>ra. Ou seja, olojista ven<strong>de</strong> e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>scobre que o valor da venda não serácredita<strong>do</strong> porque a compra foi consi<strong>de</strong>rada inválida. Se o valorjá tiver si<strong>do</strong> credita<strong>do</strong> ele será imediatamente estorna<strong>do</strong> oulança<strong>do</strong> a débito no caso <strong>de</strong> inexistência <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>s no momento<strong>do</strong> lançamento <strong>do</strong> estorno. Os números são <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong>s,mas o que se sabe é que o volume é assusta<strong>do</strong>r,principalmente nas lojas virtuais" (http://www.curso<strong>de</strong>ecommerce.com.br/blog/chargeback/).A mesma autora, em suas explanações, nos informa o motivo queleva essa prática a ser uma “<strong>do</strong>r <strong>de</strong> cabeça” que assola o e-commerce:"O chargeback é um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s fantasmas para os proprietários<strong>de</strong> lojas virtuais e responsável por um bom número <strong>de</strong>fechamentos <strong>de</strong>ssas lojas. O problema é muito maior <strong>do</strong> queas pessoas imaginam e não ganha a <strong>de</strong>vida publicida<strong>de</strong> porquenão interessa às administra<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> cartões <strong>de</strong> crédito fazerqualquer tipo <strong>de</strong> divulgação sobre o volume <strong>de</strong> frau<strong>de</strong>s queocorrem na utilização <strong>de</strong> seus cartões porque isso afugentariaclientes e exporia a fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses sistemas <strong>de</strong> cobrança.(...) A verda<strong>de</strong> é que nenhuma administra<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong>crédito garante transação alguma nas vendas efetuadas pelaInternet, fican<strong>do</strong> a cargo <strong>do</strong> lojista to<strong>do</strong>s os riscos inerentesà operação e também, é claro, o risco <strong>do</strong> chargeback. Esseposicionamento expõem o ven<strong>de</strong><strong>do</strong>r a to<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> golpes236R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011


que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a frau<strong>de</strong> com cartões <strong>de</strong> crédito rouba<strong>do</strong>s/clona<strong>do</strong>s até a má-fé <strong>de</strong> alguns usuários que simplesmentealegam não reconhecer compras legítimas. É uma verda<strong>de</strong>iraRoleta Russa que po<strong>de</strong> levar a empresa à falência.(..) Quem lê e enten<strong>de</strong> o contrato <strong>de</strong> cre<strong>de</strong>nciamento <strong>de</strong> umaadministra<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> crédito, em sã consciência, nãoassina. As cláusulas são leoninas e em muitos casos totalmentesubjetivas. Resumin<strong>do</strong> as relações <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong>scritas na maioria <strong>do</strong>s contratos, as administra<strong>do</strong>ras têmto<strong>do</strong>s os direitos e os lojistas arcam com todas as obrigações.Além <strong>do</strong> famoso contrato, são cria<strong>do</strong>s aditivos e novas regrasque beneficiam exclusivamente as administra<strong>do</strong>ras, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>em situação cada vez mais fragilizada o lojista.Não bastasse o prejuízo pelo não recebimento pelas vendasefetuadas, o lojista ainda po<strong>de</strong> ser surpreendi<strong>do</strong> pela bizarrasituação <strong>de</strong> passar da posição <strong>de</strong> lesa<strong>do</strong> para a <strong>de</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>rda administra<strong>do</strong>ra. Suponhamos a situação em que o lojistaefetua várias vendas e muitas <strong>de</strong>las são recusadas pelaadministra<strong>do</strong>ra. In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente das outras transaçõesserem legítimas ou não, elas respon<strong>de</strong>m pelo valor das transaçõesfraudadas e portanto, <strong>de</strong>vem ser usadas para reposição<strong>de</strong> valores que tenham si<strong>do</strong> saca<strong>do</strong>s pelo lojista antesda negativação da compra. É justamente nessa situação quemuitas lojas virtuais encerram suas ativida<strong>de</strong>s. Como o fluxo<strong>de</strong> vendas é interrompi<strong>do</strong>, mas não o fluxo <strong>de</strong> negativação<strong>de</strong> compras já efetuadas, o resulta<strong>do</strong> é um sal<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r naconta <strong>do</strong> lojista afilia<strong>do</strong>."Forneci<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> chargeback e suas consequências na searacomercial, passamos a discorrer sobre a diferença entre essa prática e odireito <strong>de</strong> arrependimento estatuí<strong>do</strong> no diploma consumerista.2. DISTINÇÃO ENTRE “CHARGEBACK” E O DIREITO DE ARREPENDI-MENTO PREVISTO NO ART. 49 DO CDCHá quem confunda o chargeback com o direito <strong>de</strong> arrependimentoprevisto no art. 49 <strong>do</strong> CDC, isto é, aquele em que o consumi<strong>do</strong>rR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011 237


<strong>de</strong>siste <strong>de</strong> uma contratação, obten<strong>do</strong> a <strong>de</strong>volução <strong>do</strong> valor efetivamentepago ao fornece<strong>do</strong>r, monetariamente corrigi<strong>do</strong>. Entretanto, como restará<strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>, essas situações não se confun<strong>de</strong>m, e guardam diferençassensíveis.De comum, o chargeback e o direito <strong>de</strong> arrependimento só possuemuma característica: a <strong>de</strong>volução, ao consumi<strong>do</strong>r, <strong>de</strong> valores por ele<strong>de</strong>spendi<strong>do</strong>s. A semelhança para por aí.Como po<strong>de</strong>mos perceber pelo conceito <strong>de</strong>scrito linhas acima, ochargeback não se confun<strong>de</strong> com o direito <strong>de</strong> arrependimento previstono art. 49 <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Defesa <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r, pois, nesse caso, não estáo consumi<strong>do</strong>r obriga<strong>do</strong> a <strong>de</strong>clinar o motivo <strong>do</strong> cancelamento <strong>do</strong> negócio,ao passo que, no chargeback, existe uma causa (ou causas) específica queo legitima.Em outras palavras, para que haja o chargeback, é necessária aocorrência <strong>de</strong> uma das causas anteriormente mencionadas, a saber:1) o não reconhecimento, por parte <strong>do</strong> titular <strong>do</strong> cartão, dacompra que gerou o débito lança<strong>do</strong> na respectiva fatura;2) o <strong>de</strong>scumprimento <strong>de</strong> normas afetas ao contrato firma<strong>do</strong>entre o fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong> produtos ou serviços e a administra<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> cartões, fato que autoriza esta a não creditar valoresna conta daquele.Resumin<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que o chargeback exige relevante motivo<strong>de</strong> direito para que seja legítimo, pois, <strong>do</strong> contrário, po<strong>de</strong>rá resultar emabuso <strong>de</strong> direito por parte <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r ou da própria administra<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> cartões <strong>de</strong> crédito. Em suma, é pressuposto para o chargeback a ocorrência<strong>de</strong> alguma ou ambas as situações acima <strong>de</strong>scritas.Por sua vez, o direito <strong>de</strong> arrependimento conferi<strong>do</strong> ao consumi<strong>do</strong>rpela regra <strong>do</strong> art. 49 <strong>do</strong> CDC é um direito potestativo, isto é, exerci<strong>do</strong> livrementepelo consumi<strong>do</strong>r, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um prazo que, no caso, é o chama<strong>do</strong>prazo <strong>de</strong> reflexão. São sete dias conferi<strong>do</strong>s ao consumi<strong>do</strong>r, conta<strong>do</strong>s daassinatura <strong>do</strong> contrato ou <strong>do</strong> ato <strong>de</strong> recebimento <strong>do</strong> produto ou serviço, eao qual o fornece<strong>do</strong>r estará obrigatoriamente sujeito, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntementeda ocorrência <strong>de</strong> alguma causa.Para que o consumi<strong>do</strong>r exercite o seu direito <strong>de</strong> arrependimento,não há a necessida<strong>de</strong> da ocorrência <strong>de</strong> qualquer evento, bastan<strong>do</strong> a suavonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> não mais contratar, isto é, <strong>de</strong> prosseguir com o negócio. Não238R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011


há necessida<strong>de</strong>, por exemplo, da ocorrência <strong>de</strong> vícios <strong>do</strong> produto ou <strong>do</strong>serviço para que o consumi<strong>do</strong>r <strong>de</strong>sista <strong>de</strong> contratar. O direito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistir<strong>do</strong> negócio celebra<strong>do</strong> carece <strong>de</strong> motivação, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> o consumi<strong>do</strong>r receberimediatamente a quantia eventualmente paga, monetariamente corrigida.Sen<strong>do</strong> assim, a razão <strong>de</strong> existência das normas, ou, em outras palavras,a ratio essendi das normas é diversa.No chargeback, o cancelamento da venda, com o consequenteestorno <strong>de</strong> valores, seja ao consumi<strong>do</strong>r ou à administra<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartões(a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da causa que motiva o ato) ocorre mediante relevante razão<strong>de</strong> direito. Por parte <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, po<strong>de</strong> ocorrer quan<strong>do</strong> terceiro seapo<strong>de</strong>rar <strong>do</strong> número e da senha <strong>de</strong> seu cartão (frau<strong>de</strong>, furto ou roubo <strong>do</strong>cartão etc.), e então passar a realizar compras em nome daquele. Comonão foi o consumi<strong>do</strong>r quem realizou a transação, po<strong>de</strong>rá legitimamentecontestá-la, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> obter o ressarcimento <strong>do</strong> que lhe for eventualmentecobra<strong>do</strong>, inclusive valen<strong>do</strong>-se da regra <strong>do</strong> parágrafo único <strong>do</strong> art. 42 <strong>do</strong>CDC, que lhe confere o direito à repetição <strong>do</strong> indébito, “por valor igual ao<strong>do</strong>bro <strong>do</strong> que pagou em excesso, acresci<strong>do</strong> <strong>de</strong> correção monetária e juroslegais, salvo hipótese <strong>de</strong> engano justificável”.Uma observação se faz necessária: <strong>de</strong>ve-se atentar para a partefinal <strong>do</strong> preceptivo, pois, o fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong>savisa<strong>do</strong> po<strong>de</strong>rá alegar que houveengano justificável na venda ou até mesmo que agiu com boa-fé, umavez que confiou que porta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> cartão era <strong>de</strong> fato seu titular.Le<strong>do</strong> engano.Ten<strong>do</strong> o CDC <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> o sistema <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> civil objetivacom base na teoria <strong>do</strong> risco <strong>do</strong> empreendimento, o fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong>veráarcar com eventuais prejuízos causa<strong>do</strong>s ao consumi<strong>do</strong>r, na medida emque, aventuran<strong>do</strong>-se a a<strong>do</strong>tar um sistema <strong>de</strong> vendas mais informal, estarásujeito ao risco <strong>de</strong> negociar com uma pessoa que não é efetivamente a titular<strong>do</strong> cartão <strong>de</strong> crédito. Lembran<strong>do</strong> o personagem Severino, incorpora<strong>do</strong>pelo brilhante ator Paulo Silvino, nas vendas à distância é praticamenteimpossível realizar o “cara – crachá”, fazen<strong>do</strong> com que o fornece<strong>do</strong>r <strong>de</strong>produtos e serviços <strong>de</strong>va suportar os riscos nessa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negócioe, portanto, o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> in<strong>de</strong>nizar.De seu turno, a ratio <strong>do</strong> direito <strong>de</strong> arrependimento, ou seja, danorma etiquetada no art. 49 <strong>do</strong> CDC, é a vulnerabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r,evi<strong>de</strong>nciada pela ausência <strong>de</strong> contato direto com o produto ou serviçoque irá adquirir ou contratar. Quan<strong>do</strong> contrata fora <strong>do</strong> estabelecimentoR. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011 239


comercial, o consumi<strong>do</strong>r não tem contato físico com o produto; não temcondições <strong>de</strong> verificar se a cor correspon<strong>de</strong> à <strong>de</strong>sejada, se o tamanho <strong>do</strong>produto é <strong>de</strong> fato o espera<strong>do</strong> etc.Por outro la<strong>do</strong>, examinan<strong>do</strong> pessoalmente o produto, o consumi<strong>do</strong>rreúne condições <strong>de</strong> verificar se este realmente correspon<strong>de</strong> à suasexpectativas, po<strong>de</strong> testá-lo no local da aquisição para conferir seu funcionamento,consultar outros consumi<strong>do</strong>res que, porventura, adquiriramo mesmo produto, ouvin<strong>do</strong> as respectivas opiniões etc. Da mesma forma,quan<strong>do</strong> tem acesso direto ao conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> um contrato, é possível aoconsumi<strong>do</strong>r verificar, via <strong>de</strong> regra, se as cláusulas não são abusivas, se ascondições <strong>do</strong> negócio não lhe são <strong>de</strong>sfavoráveis etc.Em resumo, negocian<strong>do</strong> em contato com o objeto <strong>do</strong> negócio, oconsumi<strong>do</strong>r tem mais chances <strong>de</strong> consumir refletidamente, conscientemente,firme na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que está contratan<strong>do</strong> o que quer e como quer.La<strong>do</strong> outro, se contrata a distância, correrá o risco <strong>de</strong> o objeto <strong>do</strong>negócio não correspon<strong>de</strong>r ao que espera, ten<strong>do</strong> em vista as diversastécnicas <strong>de</strong> “maquiagem” <strong>do</strong> produto para torná-lo mais atraente (vi<strong>de</strong>hambúrgueres <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fast food), publicida<strong>de</strong>s com apelo emocional,mostran<strong>do</strong> famílias sorri<strong>de</strong>ntes, felizes, <strong>de</strong> vida aparentemente perfeita,como ocorre com publicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, seguros, contratos <strong>de</strong>time sharing etc.Esta é, portanto, a razão <strong>de</strong> ser <strong>do</strong> direito <strong>de</strong> arrependimento, aser exerci<strong>do</strong> no prazo <strong>de</strong> reflexão: leva-se em conta o aumento da vulnerabilida<strong>de</strong><strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, em razão da ausência <strong>de</strong> contato direto com oobjeto <strong>do</strong> negócio.Sintetizan<strong>do</strong>, no chargeback inexiste arrependimento <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rem relação ao negócio sacramenta<strong>do</strong>, pois sequer há tratativas entreeste e o fornece<strong>do</strong>r. Há, sim, a ocorrência <strong>de</strong> uma frau<strong>de</strong> por parte <strong>de</strong> terceiros,ou até mesmo por má-fé <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, ou por parte <strong>do</strong> própriofornece<strong>do</strong>r, ao <strong>de</strong>scumprir as regras que regulamentam o contrato entreeste e a administra<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> cartão.De seu turno, no direito <strong>de</strong> arrependimento inexiste frau<strong>de</strong> ou <strong>de</strong>scumprimento<strong>de</strong> qualquer regra contratual a ensejar a <strong>de</strong>sistência <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>rem prosseguir com o negócio. Como dito, é um direito potestativo,<strong>de</strong>spi<strong>do</strong> <strong>de</strong> qualquer justificativa por parte <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r para queocorra. O consumi<strong>do</strong>r, após refletir sobre a conveniência ou oportunida<strong>de</strong>da contratação, simplesmente <strong>de</strong>siste <strong>de</strong> prosseguir com o negócio, se240R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011


arrepen<strong>de</strong>, e ao fornece<strong>do</strong>r resta apenas o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> acatar a <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong>consumi<strong>do</strong>r.3. REPETIÇÃO DE INDÉBITO X RESPONSABILIDADE CIVIL POR "CHAR-GEBACK"Passan<strong>do</strong> ao campo da responsabilida<strong>de</strong> por chargeback, verificadaa ocorrência <strong>de</strong> frau<strong>de</strong>, o consumi<strong>do</strong>r, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> cobra<strong>do</strong> ou ten<strong>do</strong>quita<strong>do</strong> o que não <strong>de</strong>via, terá direito à repetição <strong>do</strong> indébito, nos exatostermos <strong>do</strong> parágrafo único <strong>do</strong> art. 42 <strong>do</strong> CDC. A natureza jurídica <strong>de</strong>ssamedida, como aponta a melhor <strong>do</strong>utrina, é <strong>de</strong> caráter sancionatório, istoé, é uma sanção aplicada ao fornece<strong>do</strong>r que age canhestramente, cobran<strong>do</strong>o consumi<strong>do</strong>r pelo que ele não <strong>de</strong>ve ou cobran<strong>do</strong> em excesso, ou seja,mais <strong>do</strong> que ele efetivamente <strong>de</strong>ve. Portanto, é medida <strong>de</strong> caráter pedagógico,imposta ao fornece<strong>do</strong>r com o escopo <strong>de</strong> educá-lo para que nãovolte a atuar da mesma forma.No caso <strong>de</strong> má-fé <strong>do</strong> próprio consumi<strong>do</strong>r, isto é, naqueles casos emque este comunica falsamente uma frau<strong>de</strong>, diz não reconhecer uma compraque ele mesmo efetuou etc., e em <strong>de</strong>corrência disso tem os valoresin<strong>de</strong>vidamente estorna<strong>do</strong>s para o seu cartão, certamente po<strong>de</strong>rá ser puni<strong>do</strong>,inclusive criminalmente, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r <strong>do</strong> caso. Na órbita civil, <strong>de</strong>veráser con<strong>de</strong>na<strong>do</strong> a ressarcir o fornece<strong>do</strong>r lesa<strong>do</strong> por sua prática, sen<strong>do</strong> que,nesse caso, a medida tem caráter in<strong>de</strong>nizatório, e não sancionatório, jáque visa a restituir ao lesa<strong>do</strong> o status quo ante, in<strong>de</strong>nizan<strong>do</strong>-o verda<strong>de</strong>iramente.Passo à análise <strong>de</strong> interessantes questionamentos articula<strong>do</strong>s peloprofessor Pablo Stolze Gagliano em seu editorial. O eminente civilistaindaga:"Em caso <strong>de</strong> cancelamento da compra, pelo não reconhecimento<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, seria juridicamente possível a repartição<strong>do</strong>s riscos e <strong>do</strong>s prejuízos entre o lojista e administra<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> cartões <strong>de</strong> crédito ou débito, em virtu<strong>de</strong> da própria ativida<strong>de</strong>lucrativa que exercem no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> venda <strong>de</strong> produtosa distância? Afigurar-se-ia, em tese, viável que o lojista nãoarcasse sozinho com o risco e o ônus <strong>do</strong> chargeback? A administra<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> cartões po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>rada corresponsávelpela venda frustrada?" (http://pablostolze.ning.com/)R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011 241


Para respon<strong>de</strong>r a essas indagações, antes é necessário i<strong>de</strong>ntificaras relações envolvidas em um contrato <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> crédito. ANDRÉ LUIZSANTA CRUZ RAMOS nos explica o que é um contrato <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> crédito,bem como as relações que o cercam:"Trata-se <strong>de</strong> contato por meio <strong>do</strong> qual uma instituição financeira,a opera<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> cartão, permite aos seus clientes acompra <strong>de</strong> bens e serviços em estabelecimentos comerciaiscadastra<strong>do</strong>s, que receberão os valores das compras diretamenteda opera<strong>do</strong>ra. Esta, por sua vez, cobra <strong>do</strong>s clientes,mensalmente, o valor <strong>de</strong> todas as suas compras realizadasnum <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Chama-se cartão <strong>de</strong> crédito, então,o <strong>do</strong>cumento por meio <strong>do</strong> qual o cliente realiza a compra,apresentan<strong>do</strong>-o ao estabelecimento comercial cadastra<strong>do</strong>.Do que foi exposto, po<strong>de</strong>-se então distinguir três relações jurídicasdistintas numa operação com carta <strong>de</strong> crédito: (i) ada opera<strong>do</strong>ra com o seu cliente; (ii) a <strong>do</strong> cliente com o estabelecimentocomercial; (iii) a <strong>do</strong> estabelecimento comercialcom a opera<strong>do</strong>ra" (Direito Empresarial Esquematiza<strong>do</strong>. 1ªEd. São Paulo: Méto<strong>do</strong>, 2011, p. 485).Analisan<strong>do</strong> o articula<strong>do</strong> pelo insigne autor, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a respon<strong>de</strong>ràs indagações <strong>do</strong> professor Pablo Stolze, é possível afirmar que as duasprimeiras relações, isto é, a da opera<strong>do</strong>ra com o seu cliente e a <strong>do</strong> clientecom o estabelecimento comercial, são relações <strong>de</strong> consumo, portanto sujeitasàs regras <strong>do</strong> CDC.Em sen<strong>do</strong> relações <strong>de</strong> consumo, submetem-se à regra <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>civil objetiva, agasalhada pelo sistema consumerista. Significaque, perante o consumi<strong>do</strong>r, tanto o comerciante, quanto a administra<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> cartão respon<strong>de</strong>rão, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da existência <strong>de</strong> culpapor eventuais danos causa<strong>do</strong>s ao consumi<strong>do</strong>r em razão <strong>de</strong> chargeback,pois ambos se enquadram no conceito <strong>de</strong> fornece<strong>do</strong>r, insculpi<strong>do</strong> no art. 3º<strong>do</strong> CDC.Assim, respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> à primeira indagação, é, sim, “juridicamentepossível a repartição <strong>do</strong>s riscos e <strong>do</strong>s prejuízos entre o lojista e administra<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> cartões <strong>de</strong> crédito ou débito, em virtu<strong>de</strong> da própria ativida<strong>de</strong>lucrativa que exercem no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> venda <strong>de</strong> produtos a distância”, umavez que estaremos diante <strong>de</strong> vício na prestação <strong>do</strong> serviço, sujeito à re-242R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011


gra <strong>do</strong> art. 19 <strong>do</strong> CDC (salvo comprovada má-fé <strong>do</strong> próprio consumi<strong>do</strong>r,obviamente, o que caracteriza sua culpa exclusiva), “embora seja mais comuma verificação <strong>de</strong> um único fornece<strong>do</strong>r na ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> consumo, no casoo que prestou o serviço”, como nos informa LEONARDO DE MEDEIROSGARCIA (Direito <strong>do</strong> Consumi<strong>do</strong>r: código comenta<strong>do</strong> e jurisprudência. 7ªed. rev. amp. e atual. Niterói: Impetus, 2011, p. 179).Destarte, a responsabilida<strong>de</strong> por vício <strong>do</strong> serviço é solidária e objetiva.Além disso, como foi dito, o sistema <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> civil objetiva,agasalha<strong>do</strong> pelo CDC, funda-se na teoria <strong>do</strong> risco <strong>do</strong> empreendimento.Sen<strong>do</strong> assim, se o comerciante a<strong>de</strong>re às vendas por meio <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong>crédito, se ele já sabe <strong>de</strong> antemão que atualmente o volume <strong>de</strong> frau<strong>de</strong>sna utilização <strong>de</strong> cartões <strong>de</strong> crédito é gran<strong>de</strong>, sujeitar-se-á aos riscos inerentes,pois, como se sabe, não <strong>de</strong>verá o consumi<strong>do</strong>r suportar os prejuízosdaí advin<strong>do</strong>s.Isso posto, perante o consumi<strong>do</strong>r, haverá repartição <strong>do</strong>s riscos, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>tanto a opera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartões quanto o comerciante, respon<strong>de</strong>rem.Para respon<strong>de</strong>r ao segun<strong>do</strong> questionamento, <strong>de</strong>ve-se frisar quea relação entre o comerciante e a opera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartões, por sua vez, éeminentemente empresarial. Ou seja, o contrato firma<strong>do</strong> entre esses <strong>do</strong>issujeitos é <strong>de</strong> natureza empresarial; é um contrato entre iguais.Num primeiro momento, é possível afirmar que, por estarem em pé<strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>, o comerciante e a opera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> crédito gozam <strong>de</strong>plena liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> contratar (faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> realizar ou não o negócio) e <strong>de</strong>liberda<strong>de</strong> contratual (relacionada ao conteú<strong>do</strong> da avença), em homenagemao princípio da autonomia da vonta<strong>de</strong>.Assim, por serem, em tese, iguais, e embora o contrato firma<strong>do</strong>entre comerciante e opera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> crédito seja <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são, nãose vislumbra a vulnerabilida<strong>de</strong> que caracteriza o consumi<strong>do</strong>r. Como informaANDRÉ LUIZ SANTA CRUZ RAMOS, “no âmbito <strong>do</strong> direito empresarial,o norte interpretativo <strong>de</strong>ve ser sempre, na nossa mo<strong>de</strong>sta opinião,a autonomia da vonta<strong>de</strong> das partes. Caso contrário, o que se instaura éa insegurança jurídica, que se manifesta especificamente nas ativida<strong>de</strong>seconômicas como um obstáculo ao <strong>de</strong>senvolvimento” (Op. cit., p. 435).Destarte, nesse primeiro momento, enten<strong>do</strong> que, sen<strong>do</strong> o contratoempresarial <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são, embora presente, em tese, a autonomia da vonta<strong>de</strong>,dificilmente o comerciante conseguirá discutir os termos afetos aosriscos, que envolvem o chargeback. Po<strong>de</strong> até ser que contratos <strong>de</strong>ssa na-R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011 243


tureza sejam leoninos, como afirma<strong>do</strong> por JOSIANE OSÓRIO, praticamentepreven<strong>do</strong> somente vantagens para a opera<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> cartões <strong>de</strong> créditoe riscos para o comerciante e, por isso, o correto, no meu enten<strong>de</strong>r, seriao compartilhamento <strong>de</strong> riscos entre esses <strong>do</strong>is sujeitos. Contu<strong>do</strong>, dificilmenteisso ocorrerá. Dificilmente as opera<strong>do</strong>res <strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> crédito passarãoa assumir um risco que as tirará da zona <strong>de</strong> conforto em que se encontram,a não ser que haja uma <strong>de</strong>bandada por parte <strong>do</strong>s comerciantes,<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> a<strong>do</strong>tar essa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pagamento, o que, talvez, fariacom que as opera<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> cartão repensassem seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> compartilhamento<strong>de</strong> riscos.Contu<strong>do</strong>, tal atitu<strong>de</strong> por parte <strong>do</strong>s comerciantes po<strong>de</strong> significar oinsucesso <strong>do</strong> empreendimento, já que o volume <strong>de</strong> contratações por meio<strong>de</strong> cartão <strong>de</strong> crédito é bastante gran<strong>de</strong>. O mais interessante é que, damesma forma, igual insucesso po<strong>de</strong>rá experimentar, já que o volume <strong>de</strong>frau<strong>de</strong>s também é consi<strong>de</strong>rável, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> levar ao fechamento <strong>do</strong> negócio.É, portanto, uma “faca <strong>de</strong> <strong>do</strong>is gumes” para o comerciante.Concluin<strong>do</strong>, possíveis soluções para a diminuição <strong>do</strong> chargebacksão apontadas por especialistas em e-commerce. Uma <strong>de</strong>las seria o uso<strong>de</strong> intermediários <strong>de</strong> pagamento como os conheci<strong>do</strong>s Pagseguro (UOL),Pagamento Digital e Merca<strong>do</strong>pago (Merca<strong>do</strong> Livre), pois, nesse caso, avenda seria garantida. O problema é que essa medida importa em aumento<strong>de</strong> custos, o que, certamente, será repassa<strong>do</strong> ao consumi<strong>do</strong>r pelocomerciante. Outra alternativa seria a contratação <strong>de</strong> uma empresa especializadaem análise <strong>de</strong> risco, atitu<strong>de</strong> a<strong>do</strong>tada por gran<strong>de</strong>s empresas atualmente(http://www.lojavirtualy.com/seguranca/o-que-e-chargeback-ecomo-evitar-o-chargeback).Certamente, o tema não se esgota aqui. É um assunto novo, atual,complexo e instigante. Como afirma<strong>do</strong> pelo professor PABLO STOLZE noeditorial cita<strong>do</strong> neste texto, “ainda não temos respostas consolidadas najurisprudência. Mas o tema, em respeito aos próprios empresários e aosconsumi<strong>do</strong>res, merece ser trazi<strong>do</strong> à luz <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates acadêmicos”.244R. EMERJ, <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, v. 14, n. 56, p. 235-244, out.-<strong>de</strong>z. 2011


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