ExposiçõesDe cócoras, ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> sepulturasabertas, uma mulher vestida <strong>de</strong> negroolha para fotografia <strong>de</strong> filho. Umacriança caminha ao logo <strong>de</strong> uma pare<strong>de</strong>que parece crescer sobre ela.Outra acena aparentemente <strong>de</strong> formaamistosa. Um homem parece ajoelhar-sereceoso <strong>ou</strong> reza apenas. Sãofiguras reduzidas a manchas, distorçõescromáticas, à beira da tactilida<strong>de</strong>.Por vezes, insinuam narrativasambíguas, mesmo quando o espectadorcrê distinguir o opressor da vítima.Uma coisa é certa: todas i<strong>de</strong>ntificamclaramente um contexto político– neste caso, o conflito no MédioOriente entre israelitas e palestinianos– e esse é o primeiro novo dado que“Contra o Muro”, no Museu <strong>de</strong> Serralves,com a curadoria <strong>de</strong> UlrichLook, traz à pintura <strong>de</strong> Marlene Dumas(Cida<strong>de</strong> do Cabo, 1953). Em vez<strong>de</strong> se limitar a “transformar” em pinturasfotografias <strong>de</strong> corpos e <strong>de</strong> rostos– <strong>de</strong> crianças, jovens, actrizes, homens<strong>de</strong> raças diferentes –, como temfeito ao longo <strong>de</strong> trinta anos, a artistatrabalha sobre imagens <strong>de</strong> um cenáriofamiliar à opinião pública.Numa terra <strong>de</strong> ninguémO processo permanece o mesmo – pinturafeita a partir <strong>de</strong> imagens preexistentes,a gran<strong>de</strong> maioria origináriasda imprensa e do jornalista, mas, avisao comissário, “o seu trabalho nãose centra na realida<strong>de</strong> das imagensveiculadas pelos media, e sim na – emborasuspeita – capacida<strong>de</strong> da pinturaem tornar uma imagem real”.O lugar da fotografia na obra <strong>de</strong>Dumas ajuda a explicar tal motivação:“Apesar <strong>de</strong> <strong>nunca</strong> pintar senão a partir<strong>de</strong> uma fotografia e <strong>de</strong> respeitar otrabalho dos fotógrafos (as verda<strong>de</strong>irastestemunhas), enquanto pintoraadopta uma posição diferida. Criauma segunda vida, uma vida imagináriapara os acontecimentos. Naimaginação, encontramos as coisascomo se fosse pela primeira vez”.É neste sentido que <strong>de</strong>ve ser entendidaa abordagem da artista à figuração.Ainda Ulrich Loock: “Nasce do<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> tocar no corpo. Se o corpoestá morto (seja através da simples<strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> um cadáver <strong>ou</strong> da suarepresentação fotográfica) a pinturafigurativa implica o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> voltara dar uma certa vida a esse corpo”.A exposição em Serralves não representaa estreia em Portugal da pintorasul-africana, que vive em Amesterdão<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1976. A sua obra já tinhasido apresentada antes ao públicoportuguês na exposição “Os anos 80:Uma topologia”, no museu do Porto,e numa individual <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhos em1998 no Centro <strong>de</strong> Arte Mo<strong>de</strong>rna daFundação Gulbenkian, em <strong>Lisboa</strong>.Mas “Contra o Muro”, que em Abrilteve a sua primeira versão na GaleriaDavid Zwirner, em Nova Iorque, assinalaum momento singular na produçãopictórica <strong>de</strong> Dumas. Escrevia aartista no respectivo catálogo: “Destavez o palco principal não pertence afiguras nuas e a cabeças em posiçãovertical, todas ampliadas, mas a estruturasarquitectónicas colocadasnum espaço narrativo...que nos transportamnão a uma terra sagrada, masuma árida terra <strong>de</strong> ninguém”.Eis o segundo novo dado que “Contrao Muro” revela: a presença <strong>de</strong>construções humanas. Muros, comoDisse Marlene Dumasdurantea apresentaçãoem Nova Iorque, naGaleria DavidZwirner: “S<strong>ou</strong> contrao muro. Não s<strong>ou</strong>contra o Estado<strong>de</strong> Israel <strong>ou</strong> o Estadoda Palestina, mas s<strong>ou</strong>contra o muro”o da Cisjordânia construído por Israelpara se separar fisicamente da Palestina<strong>ou</strong> blocos <strong>de</strong> cimentos usadosnos posto <strong>de</strong> controlo militar. Os murossão uma presença evi<strong>de</strong>nte naspinturas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> formato. Porém,aquilo que <strong>de</strong>screvem é com frequênciauma <strong>de</strong>cepção dirigida ao olhar eao conhecimento. Em “O Muro”(2009) os ju<strong>de</strong>us ortodoxos não seprepararam para rezar no Muro dasLamentações, fazem um pausa dianteda terrível pare<strong>de</strong> cuja construçãofoi iniciada em 1990; em “Choro doMuro” e “Lamentações do Muro”(2009), vemos homens sem rosto,encostados ao que parece ser <strong>de</strong> factoo sítio <strong>de</strong> culto religioso; numa pinturatêm os braços levantados comose a meio <strong>de</strong> uma qualquer oração;na <strong>ou</strong>tra, são revistados contra o muro.Não é difícil evocar “El Tres <strong>de</strong>Mayo” (1808), <strong>de</strong> Francisco José <strong>de</strong>Goya, <strong>ou</strong> “L’Exécution <strong>de</strong> Maximilien”(1868) <strong>de</strong> Éd<strong>ou</strong>ard Manet.Outras pinturas dispensam figuras,para mostrarem apenas construçõese estruturas. “Em Construção”(2009), uma longa pare<strong>de</strong> que se esten<strong>de</strong>impassível ao longo da tela tapaa paisagem. Em “Barreira mentais”,blocos <strong>de</strong> pedra, <strong>de</strong> uma transparênciaazul, só <strong>de</strong>ixam entrever ao fundoa linha <strong>de</strong> uma estrada. Pinturas queapagam a figuração, para <strong>de</strong>ixarementrar sinais da abstracção <strong>ou</strong>, comoescreve o comissário no catálogo <strong>de</strong>staexposição, “obras que <strong>de</strong>safiam asoli<strong>de</strong>z da pare<strong>de</strong> que <strong>de</strong>fine o lugaron<strong>de</strong> a imagem é apresentada, a pare<strong>de</strong>do espaço expositivo <strong>ou</strong> <strong>de</strong> umahabitação”. É a própria artista quenum dos seus escritos enuncia queMarleneDumas viveu<strong>de</strong> perto oApartheid naÁfrica do Sul,experiênciaque inspir<strong>ou</strong>“Contra oMuro” e oprotesto mudoque sob umasérie <strong>de</strong>pinturas édirigido àspolíticas <strong>de</strong>segregação <strong>de</strong>IsraelMarlene Dumaspinta contra todos osNo Museu <strong>de</strong> Serralves, Marlene Dumas expõe pinturas <strong>de</strong> coisas que separam os homens, pambicionam tornar-se imagens reais. E que, por isso, confrontam a indiferença e a imaginação do eIsrael e a Palestina e a exposição chama-se “Contra o Muro”. José M28 • Sexta-feira 2 Julho 2010 • Ípsilon
“uma pintura necessita <strong>de</strong> uma pare<strong>de</strong>com que se confrontar”, mesmoque, como acontece nesta exposição,<strong>de</strong> <strong>ou</strong>tro lado possa estar um lugardominado pelo abandono e a dor.A realida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pois da pinturaConvém lembrar que Marlene Dumasviveu <strong>de</strong> perto o Apartheid na Áfricado Sul, experiência que inspir<strong>ou</strong>“Contra o Muro” e o protesto mudoque sob uma série <strong>de</strong> pinturas é dirigidoàs políticas <strong>de</strong> segregação <strong>de</strong> Israel.Será então oportuno evocar aquia incómoda classificação <strong>de</strong> arte políticae fazer a inevitável pergunta:não po<strong>de</strong> esta pintura tornar-se ilustração<strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong>?“Não, não existe esse risco. A realida<strong>de</strong>encontra-se já ilustrada nasfotografias preexistentes”, respon<strong>de</strong>o comissário. “E a pintura transformaa realida<strong>de</strong> ilustrada numa realida<strong>de</strong>da imaginação. Po<strong>de</strong>mos chamar [estaspinturas] <strong>de</strong> arte política não apenasporque <strong>de</strong>screvem estruturas quecondicionam a vida em comum <strong>de</strong>povos em conflito, mas também porque,e sobretudo, Marlene Dumas,enquanto pintora, se envolve nesseconflito: constrói na sua pintura ummuro, contra o discurso politicamentecorrecto, e tornando-o inevitáveltorna inevitável a necessida<strong>de</strong> da sua<strong>de</strong>struição”.Disse Marlene Dumas durante aapresentação em Nova Iorque, na GaleriaDavid Zwirner: “S<strong>ou</strong> contra omuro. Não s<strong>ou</strong> contra o Estado <strong>de</strong> Israel<strong>ou</strong> o Estado da Palestina, mas s<strong>ou</strong>contra o muro”. A clareza e a afirmaçãoda posição revêem-se em “O Sonoda Razão”, auto-retrato da artista, incapaz<strong>de</strong> mudar politicamente o mundo,por isso seu involuntário cúmplice,mas capaz <strong>de</strong> enriquecer a suamemória colectiva através da imaginação(cite-se o Goya <strong>de</strong> “Desastres<strong>de</strong> La Guerra”, <strong>de</strong> 1810-20 <strong>ou</strong>, numalatitu<strong>de</strong> distinta, o Matisse que viveusob o Regime <strong>de</strong> Vichy).No Museu <strong>de</strong> Serralves, reúnem-seà volta <strong>de</strong> 40 pinturas datadas da décadaanterior (mais 20 das que as expostasem Nova Iorque) e a maiorparte dá conta do modo como Dumaslid<strong>ou</strong> na sua pintura com o conflitono Médio Oriente. Para além da arquitecturae do betão, a artista pint<strong>ou</strong>rostos e corpos <strong>de</strong> pessoas que viveram<strong>de</strong> perto a guerra (“Criança aacenar”) <strong>ou</strong> que nela per<strong>de</strong>ram familiares(a mulher que olha a foto dofilho em “A mãe”, 2009) <strong>ou</strong> a vida(mártires e terroristas em “Homemmorto”, 1988, “Rapariga morta”,2002). Outras pinturas revelam incursõespor temas aparentemente maisprosaicos, pacíficos <strong>ou</strong> clássicos. É ocaso do retrato <strong>de</strong> uma oliveira <strong>ou</strong> dasnaturezas-mortas “Carida<strong>de</strong>” (2010),com as suas rosas escurecidas, e “Asvinhas da Ira” (2009).Finalmente, restam imagens ambíguas<strong>de</strong> corpos. Em “Ressurreição”(2003/09), o torso <strong>de</strong> um homem caídopara trás, a boca aberta. Um mortoque ressuscita com o “milagre” dapintura? Um ferido? Uma estátua? Comoas <strong>ou</strong>tras imagens resulta <strong>de</strong> umatensão entre a documentação fotográficae o espaço imaginário da pintura;tensão que se propõe atravessar todaa exposição contra os limites ontológicosda pintura e os muros e as divisõesconstruídas pelos homens.s muros, pinturas que a partir da fotografiaespectador. O motivo é o conflito entreé Marmeleira/// EXPOSIÇÃO #07ARQUITE(X)TURASOBRAS DA COLECÇÃO BESart/// DE 24 DE JUNHO A 9 DE SETEMBROLEE FRIEDLANDER // PAULO NOZOLINO // JOSÉ MAÇÃS DE CARVALHO //DOUG AITKEN // ABELARDO MORELL // DANIEL BLAUFUKS // NUNO CERA //JOÃO PAULO FELICIANO // THOMAS RUFF // RICARDA ROGGAN // ANA VIEIRA //BILL HENSON // CANDIDA HÖFER // VITO ACCONCI // HIROSHI SUGIMOTO //THOMAS STRUTH // PAULO CATRICA // PEDRO TUDELA // LESLIE HEWITT //SABINE HORNIG // ROLAND FISCHER // STAN DOUGLAS // DAN GRAHAM //FRANÇOISE SCHEIN //// MORADAPraça Marquês <strong>de</strong> Pombalnº3, 1250-161 <strong>Lisboa</strong>// TELEFONE21 359 73 58// HORÁRIOSegunda a Sextadas 9h às 21h// EMAILbesarte.financa@bes.ptÍpsilon • Sexta-feira 2 Julho 2010 • 29