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É agora ou nunca - Fonoteca Municipal de Lisboa

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Edição“Pina Bausch - SentirMais”, <strong>de</strong> Claudia Galhós,está <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta semananas livrarias. É umensaio biográfico dacrítica do “Expresso” queacompanh<strong>ou</strong> o percurso<strong>de</strong> Pina e as suas visitasa Portugal. O livro contamais ainda: a infância dacoreógrafa, as lembrançasda II Guerra Mundial,as influências que NovaIorque teve na futurabailarina, mas tambémas férias em Portugalcom Maria João Seixase Fernando Lopes, ospasseios pelo BairroAlto, a t<strong>ou</strong>rada que viuno Campo Pequeno. Semesquecer quando Amáliainsistiu em conhecê-la...LUÍS RAMOSTodos dão voz à herança daquilo aque o jornalista H. L. Menckencham<strong>ou</strong> <strong>de</strong> “cinturão bíblico”.Educada no seio <strong>de</strong> uma famíliatradicional, em ambiente <strong>de</strong>catolicismo férreo, O’Connor temsido acusada <strong>de</strong> ilustrar a traçogrosso o grotesco do quotidiano.Seria mais correcto dizer que us<strong>ou</strong> asconvenções sociais fazendo <strong>de</strong>las oobjecto <strong>de</strong>sse “grotesco”. Porexemplo, quando relaciona o horáriofixo dos pequenos-almoços com aregularização dos transtornosdigestivos.Numa carta enviada à sua amigaBetty Hester, escreveu: “Faço parte<strong>de</strong> uma família em que a irritação é aúnica emoção respeitável que sepo<strong>de</strong> manifestar. Em alguns, istoproduz urticária; n<strong>ou</strong>tros, literatura;em mim produziu ambas as coisas.”(cf. Brad Gooch, “Flannery. A Life ofFlannery O’Connor”, 2009)Acrescentar, para quem não saiba,que O’Connor foi, durante os anos dauniversida<strong>de</strong>, uma cartunista <strong>de</strong>sucesso. Mais tar<strong>de</strong>, em paralelo coma sua obra <strong>de</strong> criação, escreveu paracima <strong>de</strong> uma centena <strong>de</strong> recensõescríticas a livros <strong>de</strong> teologia.Este volume reúne <strong>de</strong>z contosdispersos, dos quais seis constituema tese que apresent<strong>ou</strong> à Universida<strong>de</strong>do Iowa, em Junho <strong>de</strong> 1947, paraobtenção do Master of Fine Arts.Publicados em revistas tão diferentescomo “Accent”, “Esquire” <strong>ou</strong> “TheCritic”, alguns <strong>de</strong>pois da sua morte,só em 1971 seriam coligidos. No seuconjunto, dão a medida <strong>de</strong> umaescrita sem complacências com amoral dominante. O racismo é apedra <strong>de</strong> toque.No tempo literário que foi o seu(anos 1940-60), o racismo era umvalor em si mesmo. O’Connor teve acoragem <strong>de</strong> o expor como feridaaberta. Não por acaso, os doisprimeiros contos da colectânea têmenfoque no tema.No primeiro, “O Gerânio”, oprotagonista reage com violênciaquando <strong>de</strong>scobre que a filha temcomo vizinhos um casal <strong>de</strong> negros:“Não foi assim que te criei! [...] Não tecriei para viveres pare<strong>de</strong>s-meias compretos que se acham tão bons comotu, e ainda tens a lata <strong>de</strong> julgar quealguma vez seria capaz <strong>de</strong> me metercom gente daquela raça!” O <strong>de</strong>sfechoda intriga tem ressonância operática.“O Gerânio” (1946) é o seu conto maisantigo. P<strong>ou</strong>co antes <strong>de</strong> morrer, vítima<strong>de</strong> lupus, O’Connor reescreveu ahistória, dando-lhe o título <strong>de</strong> “JuízoFinal” (1964). A reescrita era umaconstante: <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> refeito, o conto“O Coração do Parque” (1949) foiintegrado como trecho <strong>de</strong> “SangueSábio” (1952), o romance <strong>de</strong> estreia.No segundo, “O Barbeiro”, umcidadão <strong>de</strong> índole liberal comete aimprudência <strong>de</strong> revelar o sentido doseu voto. Vai votar “<strong>de</strong>mocrata”.Tanto basta para a interpelaçãoadmonitória: “Você gosta <strong>de</strong> pretos?”É obrigado a mudar <strong>de</strong> barbearia.O’Connor não faz rodriguinhos. Odiscurso é seco, isento <strong>de</strong>excrescências. A exactidão dos factossobrepõe-se a qualquer juízo <strong>de</strong>valor. Os contos mais perversos (“AGood Man Is Hard to Find”, 1953, <strong>ou</strong>“A View of the Woods”, 1964) nãoestão nesta colectânea. Gran<strong>de</strong> parte<strong>de</strong>les faz parte do volume póstumo“Everything That Rises MustConverge”, publicado em 1965.EstainquietanteestranhezaA experiência <strong>de</strong> ler“Inverness” não é muitodistante da do idiota que se<strong>de</strong>ixa arrastar atrás duma<strong>de</strong>sconhecida na rua.Rui CatalãoInvernessAna Teresa PereiraRelógio d’ Água, 14€mmmmnNa página 103somospresenteados comuma sinopse <strong>de</strong>“Inverness”: “Ahistória <strong>de</strong> umaactriz querepresentava opapel <strong>de</strong> <strong>ou</strong>tramulher e se transformava nela.”Juntamente com o tema do livro<strong>de</strong>ntro do livro, o “doppelgänger” éum dos motivos mais banais nahistória da literatura. Está para aarte como o vidro duplo para asjanelas. Ao 27º título <strong>de</strong> Ana TeresaPereira volta então o duplo, e comele os seus espelhos e reflexos nolago, a história da mulher, do maridoe do amante, a mulher <strong>de</strong>saparecidado escritor e a actriz que a substitui,o livro <strong>de</strong>ntro do livro, aspersonagens vindas <strong>de</strong> livrosanteriores e a r<strong>ou</strong>pa que é sempre amesma, o tema do nevoeiro, enfim,o estojo completo.Ana Teresa Pereira (n. 1958,Em “Inverness”, por via <strong>de</strong> atmosferas<strong>de</strong>vedoras do policial e do fantástico, chegamosao centro nervoso do fascíniopelo conto <strong>de</strong>fadasFunchal) faz piruetas sobre a suaobra como quem se passeia junto àcosta até concluir que ainda seencontra na mesma ilha. Mesmo nointerior do livro, repete-se, repetese.Os capítulos suce<strong>de</strong>m-se comoondas que teimam em subir osmesmos rochedos. “Às vezes achoque é disso que est<strong>ou</strong> à procuraquando escrevo. As velhasmemórias”, diz o escritor Clive.“Não imaginar, mas recordar...”,respon<strong>de</strong> a actriz Kate. “E aspalavras são só uma forma <strong>de</strong> chegarlá. Têm <strong>de</strong> ser simples, e claras, eobe<strong>de</strong>cer a um ritmo próprio, queinclui a repetição.”A autora, <strong>ou</strong> a personagem doescritor do livro <strong>de</strong>ntro do livro, <strong>ou</strong>as personagens narcísicas por elerecriadas (a sua mulher; a actriz quea encarna), entida<strong>de</strong>s que o avançodo livro confun<strong>de</strong>, procuramobsessivamente reviver, <strong>ou</strong> retomar,qualquer coisa mais <strong>ou</strong> menostangível que fic<strong>ou</strong> para trás, e que ostorn<strong>ou</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.Não há novida<strong>de</strong>. “Inverness” éum romance <strong>de</strong> aparências banal eencantador. Seduz como umamulher muito bonita, cujo principaltalento é o modo <strong>de</strong> insinuarsegredos e mistérios. A técnica <strong>de</strong>diferença e repetição usada por AnaTeresa Pereira resulta num filtromágico <strong>de</strong>purador. Ela convocagéneros populares (em particular ashistórias <strong>de</strong> fantasmas) e proce<strong>de</strong> à<strong>de</strong>stilação do fascínio por essaliteratura, discorrendo por frases <strong>ou</strong>palavras (“velha casa inglesa”,“chapéu <strong>de</strong> feltro azul”, “rosasvermelhas, frescas”, “rosto quaseescondido por um chapéu”, “asmãos geladas nos bolsos dagabardina”, “can<strong>de</strong>eiros a gaz” <strong>ou</strong>mesmo “Inverness” — a cida<strong>de</strong>escocesa junto ao rio Ness, famosopelo seu mítico monstro) que sãosignos, marcos luminosos quehipnotizam.A escrita <strong>de</strong> Ana Teresa Pereirarevela-se no domínio da sedução, <strong>de</strong>fazer o leitor aguardar pelapromessa <strong>de</strong> um nada e que a nadavai dar. Ou melhor, vai dar aonevoeiro: “Um dia, eu e um amigoavançámos pelo mar [gelado]<strong>de</strong>ntro... Não havia ninguém porperto para nos impedir... lembro-me<strong>de</strong> que estava um p<strong>ou</strong>co <strong>de</strong>nevoeiro... e o <strong>de</strong>safio era dar maisum passo...”Em “Inverness”, por via <strong>de</strong>atmosferas <strong>de</strong>vedoras do policial edo fantástico, chegamos ao centronervoso do fascínio pelo conto <strong>de</strong>fadas. É o território mental darealida<strong>de</strong> alada: “Uma manhã, aoacordar, sentira que o mundo estavadiferente. O som do mundo eradiferente. Quando abriu as vidraças,o vento tr<strong>ou</strong>xe flocos <strong>de</strong> neve que<strong>de</strong>rreteram no chão do quarto.”Estes eventos “banais”, do“quotidiano”, são a matéria-primaque Ana Teresa Pereira elege eselecciona para a sua versão gasosa,e abstrata, do conto <strong>de</strong> fadas.Ípsilon • Sexta-feira 2 Julho 2010 • 41

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