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A luta do CEBES - Faculdade de Saúde Ibituruna - FASI

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SAÚDE EDEMOCRACIAA LUTA DO <strong>CEBES</strong>Sonia Fleury(organiza<strong>do</strong>ra)


SAÚDE E DEMOCRACIA — A LUTA DO <strong>CEBES</strong>Copyright © 1997 – Sonia FleuryProibida a reprodução total ou parcial <strong>de</strong>ste livro, por qualquermeio ou sistema, sem prévio consentimento da editora.To<strong>do</strong>s os direitos <strong>de</strong>sta edição reserva<strong>do</strong>s à:LEMOS EDITORIAL & GRÁFICOS LTDA.Rua Rui Barbosa, 70 - Bela Vista01326-010 - São Paulo/SPTel.: (011) 251-4300Da<strong>do</strong>s Internacionais <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)Câmara Brasileira <strong>do</strong> Livro, São Paulo, BrasilSaú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mocracia: a <strong>luta</strong> <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>/Sonia Fleury(organiza<strong>do</strong>ra). — São Paulo: Lemos Editorial, 1997.Vários autores.Bibliografia1. <strong>CEBES</strong> (Centro Brasileiro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>)2. Democracia 3. Política e saú<strong>de</strong> 4. Saú<strong>de</strong> pública5. Saú<strong>de</strong> pública — Aspectos sociais I. Fleury, Sonia.97–3431 CDD–362.1Índices para catálogo sistemático:1. Saú<strong>de</strong> pública: Aspectos sociais: Bem-estar social 362.1ISBN 85-85561-43-2Impresso no Brasil2 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


ÍndiceAutores ....................................................................................................................................... 5Introdução.................................................................................................................................. 7Saú<strong>de</strong> como ParadigmaBases conceituais da reforma sanitária brasileira.............................................................. 11Jairnilson Silva PaimA questão <strong>de</strong>mocrática na saú<strong>de</strong>.......................................................................................... 25Sonia FleuryCondições <strong>de</strong> VidaSaú<strong>de</strong> da população brasileira: mudanças, superposição<strong>de</strong> padrões e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s .................................................................................................. 45Maurício Lima Barreto, Eduar<strong>do</strong> Hage Carmo, Carlos Antonio <strong>de</strong> S. T. SantosReforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>A via <strong>do</strong> parlamento .............................................................................................................. 63Eleutério Rodrigues NetoConselhos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, responsabilida<strong>de</strong> pública e cidadania:a reforma sanitária como reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ..................................................................... 93Antonio Ivo <strong>de</strong> CarvalhoAnálise crítica das contribuições da saú<strong>de</strong> coletiva aorganização das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no SUS ...................................................................... 113Gastão Wagner <strong>de</strong> Sousa CamposO SUS e um <strong>do</strong>s seus dilemas: mudar a gestão e a lógica <strong>do</strong> processo<strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> (um ensaio sobre a micropolítica <strong>do</strong> trabalho vivo) ................ 125Emerson Elias MerhyGestão em saú<strong>de</strong>: o <strong>de</strong>safio <strong>do</strong>s hospitais como referênciapara inovações em to<strong>do</strong> o sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> .................................................................... 143Pedro Ribeiro BarbosaLoucura, cultura e subjetivida<strong>de</strong>. Conceitos e estratégias,percursos e atores da reforma psiquiátrica brasileira ..................................................... 163Paulo AmaranteDireito sanitário: inovação teórica e novo campo <strong>de</strong> trabalho ...................................... 187Sueli Gan<strong>do</strong>lfi Dallari, Paulo Antonio <strong>de</strong> Carvalho FortesSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>3


DesafiosDo biológico e <strong>do</strong> social. Um pequeno balanço .............................................................. 205Ricar<strong>do</strong> Lafetá NovaesDa bioética “privada” à bioética “pública” ...................................................................... 227Roland SchrammO po<strong>de</strong>r regulamenta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> sobre asações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ............................................................................................... 241Lenir SantosTrabalha<strong>do</strong>res da saú<strong>de</strong>: uma nova agenda <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>ssobre recursos humanos em saú<strong>de</strong> no Brasil ................................................................... 281Lilia Blima Schraiber, Maria Helena Macha<strong>do</strong>Produção farmacêutica e <strong>de</strong> imunobiológicos no Brasil:a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um novo padrão <strong>de</strong> intervenção estatal............................................. 299Carlos Augusto Grabois Gra<strong>de</strong>lha, José Gomes Temporão4 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


AutoresAntônio Ivo <strong>de</strong> CarvalhoMédico Sanitarista, Mestre em Saú<strong>de</strong> Pública, Professor e pesquisa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> NUPES/ENSP/FIOCRUZCarlos Antonio <strong>de</strong> S. T. SantosEstatístico, Mestre em Saú<strong>de</strong> Comunitária, Doutoran<strong>do</strong> em Saú<strong>de</strong> Pública - ISC - UFBACarlos Augusto Grabois Ga<strong>de</strong>lhaEconomista, Doutoran<strong>do</strong> <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Economia da UFRJ e Membro da Assessoria <strong>de</strong> PlanejamentoEstratégico da Fundação Oswal<strong>do</strong> CruzEduar<strong>do</strong> Hage CarmoMédico, Mestre em Saú<strong>de</strong> Comunitária, Doutoran<strong>do</strong> em Saú<strong>de</strong> Pública - ISC - UFBAEleutério Rodrigues NetoMédico, professor <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> coletiva da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, ex-presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>, ex-secretáriogeral <strong>do</strong> MS (85-86)Emerson Elias MerhyMédico Sanitarista e Professor da UNICAMP Campinas/1996F. Roland SchrammProfessor <strong>de</strong> Bioética e <strong>de</strong> Filosofia da Ciência. Pesquisa<strong>do</strong>r Adjunto da Fundação Oswal<strong>do</strong> Cruz/Escola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública/Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais.Gastão Wagner <strong>de</strong> Sousa CamposMédico Sanitarista e Professor <strong>de</strong> Medicina Preventiva da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Medicina da UNICAMP.Jairnilson Silva PaimProfessor Adjunto <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Coletiva da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia Pesquisa<strong>do</strong>r 1-A<strong>do</strong> CNPQJosé Gomes TemporãoProfessor da Escola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da Fundação Oswal<strong>do</strong> Cruz e ex-Presi<strong>de</strong>nte Nacional<strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>Leila Denise Alves FerreiraEstatística, Bolsista <strong>do</strong> CNPQ - ISC - UFBALenir SantosProcura<strong>do</strong>ra da UNICAMP. Presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> Conselho Superior <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Direito Sanitário Aplica<strong>do</strong>- IDISASAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>5


Lilia Blima SchraiberProfessora da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Medicina da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo - USP - Departamento <strong>de</strong> MedicinaPreventiva, São Paulo, Brasil.Maria Helena Macha<strong>do</strong>Professora da Escola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública, Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas emRecursos Humanos em Saú<strong>de</strong>/ DAPS - Fiocruz - Rio <strong>de</strong> Janeiro, Brasil.Maurício Lima BarretoMédico, PhD em Epi<strong>de</strong>miologia, Professor Adjunto <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Coletiva - Universida<strong>de</strong>Fe<strong>de</strong>ral da BahiaSueli Gan<strong>do</strong>lfi DallariDiretor, Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas <strong>de</strong> Direito Sanitário, Livre-<strong>do</strong>cente em Direito Sanitário,Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São PauloPaulo AmaranteMestre em Medicina Social, Doutor em Saú<strong>de</strong> Pública, Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Laboratório <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s ePesquisas em Saú<strong>de</strong> Mental (LAPS), <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s Político-Sociais em Saú<strong>de</strong> (NUPES), daEscola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública/Fiocruz. Presi<strong>de</strong>nte Nacional <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>Paulo Antonio <strong>de</strong> Carvalho FortesProfessor-Doutor, <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São PauloPedro Ribeiro BarbosaProfessor/Tecnologista da Escola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública FIOCRUZ; Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Ensino SensuLato e <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Formação em Gestão Hospitalar.Ricar<strong>do</strong> Lafetá NovaesProfessor Doutor da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Medicina da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (USP) - Departamento <strong>de</strong>Medicina Preventiva, São Paulo, Brasil.Sonia FleuryProfessora da Escola Brasileira <strong>de</strong> Administração Pública- EBAP da Fundação Getúlio Vargas,Psicóloga, Mestre em Sociologia, Doutora em Ciências PolíticasSueli Gan<strong>do</strong>lfi DallariDiretora, Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas <strong>de</strong> Direito Sanitário, Livre-<strong>do</strong>cente em Direito Sanitário,Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.6 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


IntroduçãoEste não é um livro <strong>de</strong> memórias e nem sequer a história oficial <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>. Ainiciativa <strong>de</strong> celebrar os 20 anos das <strong>luta</strong>s <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> pela <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong>partiu da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reafirmar, na conjuntura atual <strong>de</strong> revitalização das i<strong>de</strong>ologiase políticas conserva<strong>do</strong>ras, não apenas as ban<strong>de</strong>iras que foram empunhadas duranteestes anos, mas também as conquistas que alcançamos como fruto <strong>de</strong> to<strong>do</strong> este processo.Quan<strong>do</strong> a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> tem si<strong>do</strong> reduzida, meramente, a seu conteú<strong>do</strong>tecnico-gerencial, que, ainda que essencial, não dá conta, ou mesmo preten<strong>de</strong>, alterar aprópria natureza <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> enquanto po<strong>de</strong>r institucionaliza<strong>do</strong>, é preciso lembrar que aReforma Sanitária, que foi gestada no interior <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>, é, essencialmente, uma reforma<strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que em muito transcen<strong>de</strong> o âmbito setorial.É inéti<strong>do</strong> em nossa história <strong>de</strong> autoritarismos vários, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formularuma reforma social tão profunda <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a socieda<strong>de</strong>, construin<strong>do</strong> ao mesmo tempo umprojeto e seus atores, <strong>de</strong> tal forma que logrou alcançar a hegemonia necessária para setransformar em política pública. A interação socieda<strong>de</strong>/Esta<strong>do</strong>/socieda<strong>de</strong>, nesteprocesso, é elucidativa das inúmeras possibilida<strong>de</strong>s que po<strong>de</strong>m ser criadas pela<strong>de</strong>mocracia, sem ser preciso que a<strong>do</strong>temos ou um medidas autoritárias tão ao gosto <strong>de</strong>nossas elites <strong>de</strong> plantão, nem mesmo um mo<strong>de</strong>lo liberal <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia que é estranhoà nossa cultura política e às nossas instituições.Não apenas as mudanças profundas na conjuntura internacional, geran<strong>do</strong> novasmodalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong> articulação a uma economia cada vez mais globalizadasob a hégi<strong>de</strong> <strong>de</strong> valores individualistas e pouco solidários, mas também as própriascontradições geradas no processo <strong>de</strong> institucionalização <strong>do</strong> SUS-Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,<strong>de</strong>marcaram os limites, possibilida<strong>de</strong>s, para<strong>do</strong>xos e <strong>de</strong>safios que estão por ser enfrenta<strong>do</strong>s.A vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> celebrar os 20 anos <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> nos levou a buscar comemorar esta data<strong>de</strong> uma maneira que mantivesse o mesmo espírito que po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar como cebiano: aabertura <strong>de</strong> um diálogo, através <strong>de</strong> uma publicação que pu<strong>de</strong>sse socializar a polêmica<strong>de</strong>senvolvida por alguns autores acerca das questões que nos inquietam atualmente. Paratanto, seria necessário resgatar a dialética relação entre produção <strong>do</strong> conhecimento eorientação da prática política, que tão bem caracterizou a trajetória <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>.Neste senti<strong>do</strong>, esta coletânea não trata apenas <strong>do</strong> nosso passa<strong>do</strong>, ou meramenteespecula sobre o futuro, trata <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r as questões <strong>do</strong> presente, que são fruto <strong>de</strong>nossa história e cuja resposta encaminhará o amanhã. Para tão estimulante tarefaconvidamos alguns companheiros a participar conosco <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate que estruturamos emquatro partes:“A Saú<strong>de</strong> como Paradigma”, on<strong>de</strong> os textos <strong>de</strong> Jairnilson Paim e Sonia Fleurybuscam analisar o paradigma sanitário e o paradigma político da reforma sanitária.Nas “Condições <strong>de</strong> Vida da População Brasileira” o texto <strong>de</strong> Mauricio Barreto ecolabora<strong>do</strong>res procura dar conta das transformações ocorridas no perfil epi<strong>de</strong>miológicoSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>7


nacional, durante este últimos 20 anos, dan<strong>do</strong> um senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> às nossas especulações,seguin<strong>do</strong> o conselho <strong>de</strong> nosso amigo Giovanni Berlinguer.Na “Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”, Eleutério Rodrigues analisa a estratégia e táticas a<strong>do</strong>tadasao privilegiar a via <strong>do</strong> parlamento para transitar a reforma, Antonio Ivo <strong>de</strong>Carvalho reflete sobre a construção da cidadania e as alterações introduzidas no Esta<strong>do</strong>por meio da gestão colegiada, Gastão Campos polemiza ao analisar as práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>no SUS, enquanto Emerson Merhy avalia os dilemas <strong>do</strong> SUS a partir da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mudar a lógica <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho, Pedro Barbosa discorre sobre os <strong>de</strong>safios dagestão hospitalar, Paulo Amarante reconstitui e analisa a trajetória da ReformaPsiquiátrica e sua contribuição ao resgate <strong>do</strong> sujeito e Sueli Dallari e Paulo A. C. Fortesresgatam a inovação representada pela constituição <strong>do</strong> direito sanitário como campoteórico e <strong>de</strong> prática social.Nos “Desafios”, Ricar<strong>do</strong> Lafetá enfreta a dificil tarefa <strong>de</strong> fazer um balanço darelação biológico/social em nossa produção teórica e na prática política, Roland Schrammprenuncia a passagem <strong>de</strong> uma ética individual para uma ética pública, Maria HelenaMacha<strong>do</strong> e Lilia Schraiber propõem uma nova agenda para os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s recursoshumanos em saú<strong>de</strong> enquanto Carlos Ga<strong>de</strong>lha e José Gomes Temporão propugnam porum novo padrão <strong>de</strong> intervenção estatal na produção <strong>de</strong> fármacos e imunobiológicos.Certamente muitas outras questões po<strong>de</strong>riam ser acrescentadas à estas, e certamenteo serão. Não tivemos a pretensão <strong>de</strong> sermos capazes <strong>de</strong> dar conta <strong>de</strong> todas asmúltiplas temáticas, análises e perspectivas que seria possível produzir ao tomar comoobjeto as <strong>luta</strong>s <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>. Neste senti<strong>do</strong>, esta é uma visão necessáriamente parcial, epor isto convida ao <strong>de</strong>bate. Dentro das limitações enfrentadas, procuramos ser fiéis àtrajetória e aos valores que orientaram as práticas <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>: a necessida<strong>de</strong> buscar nateoria a análise correta da realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tal forma que seja possível gerar uma práticapolítica capaz <strong>de</strong> transformá-la a partir <strong>de</strong> uma nova configuração <strong>de</strong>sejada, um projetoconsensualmente pacta<strong>do</strong> entre as forças sociais que buscam a <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong>e <strong>do</strong> Brasil.SONIA FLEURY8 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Saú<strong>de</strong> como ParadigmaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>9


10 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Bases Conceituaisda Reforma Sanitária BrasileiraINTRODUÇÃOO movimento pela <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong> que tomou corpo no Brasil durantea segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> setenta possibilitou a formulação <strong>do</strong> projeto da ReformaSanitária Brasileira, sustenta<strong>do</strong> por uma base conceitual e por uma produção teóricocrítica.Diversos estu<strong>do</strong>s e artigos publica<strong>do</strong>s nos últimos vinte anos, especialmenteatravés <strong>do</strong> Centro Brasileiro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (<strong>CEBES</strong>), atestam a vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssemovimento e, contemplam, com distintas ênfases, os aspectos político-i<strong>de</strong>ológicos,organizativos e técnico-operacionais da Reforma Sanitária. Mesmo que o <strong>de</strong>bate<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> não chegue a configurar um novo paradigma (Fleury, 1992), teve aimportância <strong>de</strong> questionar a concepção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> restrita à dimensão biológica eindividual, além <strong>de</strong> apontar diversas relações entre a organizaçãos <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>e a estrutura social.No presente texto, procurar-se-á discutir certos elementos da base conceitual <strong>de</strong>sseprojeto que permitiram o questionamento <strong>do</strong> paradigma biomédico <strong>do</strong>minante naspolíticas públicas e nas instituições sanitárias bem como a busca <strong>de</strong> paradigmasalternativos.O termo paradigma é origina<strong>do</strong> <strong>do</strong> grego com o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> mostrar, manifestar(Garcia, 1971). Utiliza<strong>do</strong> na análise <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento científico (KUHN, 1975), traziaa idéia <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> pressupostos, conceitos e valores aceitos e compartilha<strong>do</strong>spor uma comunida<strong>de</strong> científica em uma <strong>de</strong>terminada disciplina. Nas palavras <strong>do</strong> referi<strong>do</strong>autor paradigmas seriam “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durantealgum tempo, fornecem problemas e soluções mo<strong>de</strong>lares para uma comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> praticantes <strong>de</strong>uma ciência” (Kuhn, 1975:13). Em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s momentos <strong>de</strong> crise, entretanto, ocorreriauma ruptura em relação ao conjunto vigente com a emergência <strong>de</strong> teorias científicasestabelecen<strong>do</strong>-se novos enfoques para uma disciplina em questão. É nessa acepção maisprecisa que a noção <strong>de</strong> paradigma tem si<strong>do</strong> empregada em epistemologia. Contu<strong>do</strong>,não será a privilegiada neste texto.Outra conotação <strong>do</strong> termo paradigma aproxima-o à idéia <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo. Representariauma forma simplificada e esquemática <strong>de</strong> expressar a realida<strong>de</strong>, isto é, a apresentação<strong>de</strong> um fenômeno aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> somente às suas características mais significativas (Garcia,1971). Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um objeto artificial ou abstrato-formal concebi<strong>do</strong> parareproduzir nas suas leis e seus efeitos os fenômenos relaciona<strong>do</strong>s com os objetos reaisou empíricos (Almeida Filho & Paim, 1982). No caso da saú<strong>de</strong>, a clássica tría<strong>de</strong> <strong>do</strong>agente-hospe<strong>de</strong>iro-ambiente empregada para ilustrar a multicausalida<strong>de</strong> seria umexemplo. Do mesmo mo<strong>do</strong>, o mo<strong>de</strong>lo da história natural da <strong>do</strong>ença (Arouca, 1976) aoSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>11


indicar os diferentes estágios <strong>do</strong> processo saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença, incluin<strong>do</strong> os perío<strong>do</strong>s prépatogênicoe patogênico, seria um outro exemplo. No que diz respeito à organização <strong>de</strong>serviços <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>, o enfoque sistêmico representou um paradigmapre<strong>do</strong>minante nos estu<strong>do</strong>s e propostas referentes ao setor saú<strong>de</strong>, especialmente nasdécadas <strong>de</strong> setenta e oitenta.Há ainda um uso frequente da expressão paradigma que correspon<strong>de</strong> a umconjunto <strong>de</strong> noções, representações e crenças, relativamente compartilhadas por um<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> segmento <strong>de</strong> sujeitos sociais tornan<strong>do</strong>-se um referencial para a ação. Essaidéia <strong>de</strong> paradigma, ainda que se aproxime a <strong>do</strong> senso comum, tem si<strong>do</strong> utilizadafrequentemente em diversos campos e, em particular, no âmbito da saú<strong>de</strong>.Como a concepção que orientou a elaboração <strong>de</strong>ste livro teve como perspectivaso resgate e a crítica da i<strong>de</strong>ologia <strong>do</strong> movimento sanitário, além <strong>do</strong> balanço das suaspráticas e bases conceituais, tomaremos emprestada a noção <strong>de</strong> “paradigma sanitário”,associada às duas últimas acepções em vez daquela mais rigorosa concernente aabordagem kuhniana.AS CONCEPÇÕES DE SAÚDE DO MOVIMENTO SANITÁRIOPara apreen<strong>de</strong>r as concepções <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que constituiram o “paradigma sanitário”faz-se necessário examinar, preliminarmente, o movimento reformista através <strong>do</strong> seubraço acadêmico: os <strong>de</strong>partamentos <strong>de</strong> medicina preventiva e social e as escolas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> pública ou seus equivalentes. Nesse particular, caberia recuperar parte <strong>do</strong> marcoconceitual <strong>do</strong> movimento preventivista, especialmente no que se refere à proposta daMedicina Integral (Comprehensive Medicine) como disciplina <strong>do</strong> currículo médico (Silva,1973) e a sua estratégia <strong>de</strong> operacionalização nos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ou seja, a MedicinaComunitária (Paim, 1976; Donnângelo, 1976).No caso da Medicina Integral, o mo<strong>de</strong>lo da história natural das <strong>do</strong>enças (HND)assumia na fase pre-patogênica a concepção ecológica <strong>do</strong> processo saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença,representada por uma balança em que um <strong>do</strong>s pratos era constituí<strong>do</strong> pelo agente e ooutro pelo hospe<strong>de</strong>iro (o indivíduo) e o ponto <strong>de</strong> apoio ou fulcro era representa<strong>do</strong> peloambiente (físico, biológico e sócio-cultural). Na etapa patogênica, o mo<strong>de</strong>lo recorria àfisiopatologia para indicar a evolução das lesões ou alterações físico-químicas no corpoanátomo-fisiológico. Para cada um <strong>de</strong>sses estágios era possível acoplar ao mo<strong>de</strong>lo osdistintos níveis <strong>de</strong> prevenção - promoção, proteção, diagnóstico precoce, limitação <strong>do</strong>dano (recuperação) e reabilitação. Assim, as medidas <strong>de</strong> promoção e proteção à saú<strong>de</strong>aplicadas aos indivíduos na fase pré-patogênica correspon<strong>de</strong>riam a chamada “prevençãoda ocorrência”. Já as ações realizadas no perío<strong>do</strong> patogênico visan<strong>do</strong> o diagnósticoprecoce, a recuperação e a reabilitação da saú<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>riam à “prevenção daevolução”. Consequentemente, no marco conceitual erigi<strong>do</strong> pelo movimentopreventivista encontravam-se o mo<strong>de</strong>lo HND e as noções <strong>de</strong> multicausalida<strong>de</strong>, normal,patológico e processo saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença. Incorporava-se, portanto, uma visão ontológica euma visão dinâmica acerca da <strong>de</strong>senvolvimento da <strong>do</strong>ença, sugerin<strong>do</strong> um mo<strong>do</strong>duplamente otimista <strong>de</strong> enfrentar os agravos à saú<strong>de</strong>, seja eliminan<strong>do</strong> o agente, sejarestauran<strong>do</strong> o equilíbrio (Arouca, 1976).12 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


No que se refere à Medicina Comunitária, constata-se uma busca <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>para os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> enfatizan<strong>do</strong>-se noções outras como regionalização ehierarquização <strong>de</strong> serviços, participação comunitária, multiprofissionalida<strong>de</strong>, etc(Cor<strong>do</strong>ni, s/d). Através <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstração (momento focal) e <strong>de</strong> programas<strong>de</strong> extensão <strong>de</strong> cobertura (momento amplia<strong>do</strong>) novos aportes conceituais, meto<strong>do</strong>lógicose operativos surgiram a partir das disciplinas <strong>de</strong> planejamento e administração taiscomo análises <strong>de</strong> custo-benefício e custo-efetivida<strong>de</strong>, programação, planejamentoparticipativo, sistema <strong>de</strong> informação, etc (Paim, 1986).Na medida em que a compreensão e crítica das propostas <strong>de</strong> Medicina Preventivae <strong>de</strong> Medicina Comunitária eram <strong>de</strong>senvolvidas no Brasil e em alguns países latinoamericanos,com estímulo <strong>de</strong> certos setores da Organização Panamericana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>(OPS), verificou-se um renascimento da Medicina Social inspirada nos princípios quefundamentaram a sua emergência na Europa em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XIX. Nessas tentativas<strong>de</strong> <strong>de</strong>limitação <strong>do</strong> campo disciplinar eram explicita<strong>do</strong>s os conteú<strong>do</strong>s <strong>do</strong> novo paradigma:“Consi<strong>de</strong>ra-se saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong>ença como um único processo que resulta da interação <strong>do</strong> homemconsigo mesmo, com outros homens na socieda<strong>de</strong> e com elementos bióticos e abióticos <strong>do</strong> meio.Esta interação se <strong>de</strong>senvolve nos espaços sociais, psicológico e ecológico, e como processo temdimensão histórica (...). A saú<strong>de</strong> é entendida como o esta<strong>do</strong> dinâmico <strong>de</strong> adaptação a mais perfeitapossível às condições <strong>de</strong> vida em dada comunida<strong>de</strong> humana, num certo momento da escala histórica(...). A <strong>do</strong>ença é consi<strong>de</strong>rada, então, como manifestação <strong>de</strong> distúrbios <strong>de</strong> função e estrutura<strong>de</strong>correntes da falência <strong>do</strong>s mecanismos <strong>de</strong> adaptação, que se traduz em respostas ina<strong>de</strong>quadasaos estímulos e pressões aos quais os indivíduos e grupos humanos estão continuamente submeti<strong>do</strong>snos espaços social, psicológico e ecológico” (Silva, 1973:31-32).Nesse senti<strong>do</strong>, a produção teórica <strong>de</strong>senvolvida nas décadas <strong>de</strong> setenta e <strong>de</strong> oitentapermitia apontar a emergência <strong>de</strong> um paradigma alternativo em Saú<strong>de</strong> Coletivacentra<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is conceitos fundamentais: <strong>de</strong>terminação social das <strong>do</strong>enças e processo <strong>de</strong>trabalho em saú<strong>de</strong>. O entendimento <strong>de</strong> que a saú<strong>de</strong> e a <strong>do</strong>ença na coletivida<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>mser explicadas exclusivamente nas suas dimensões biológica e ecológica, porquanto taisfenômenos são <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s social e historicamente, enquanto componentes <strong>do</strong>sprocessos <strong>de</strong> reprodução social, permitia alargar os horizontes <strong>de</strong> análise e <strong>de</strong> intervençãosobre a realida<strong>de</strong>. Não cabe no momento revisar a significativa produção científica <strong>de</strong>ssacorrente teórica mas assinalar que este paradigma orientava muitas das proposições <strong>do</strong>movimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong>, não apenas no que se referia à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>trabalha<strong>do</strong>r e às políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas naquilo que dizia respeito a uma totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mudanças que passava pelo setor saú<strong>de</strong> e implicava alterações mais profundas em outrossetores, no Esta<strong>do</strong>, na socieda<strong>de</strong> e nas instituições (Paim, 1992).Enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o movimento sanitário como “um conjunto organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> pessoas egrupos partidários ou não, articula<strong>do</strong>s ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um projeto” (Escorel, 1988:5), três tipos <strong>de</strong>práticas foram i<strong>de</strong>ntificadas pela autora para a sua caracterização: a prática teórica (aconstrução <strong>do</strong> saber), a prática i<strong>de</strong>ológica (a transformação da consciência) e a práticapolítica (a transformação das relações sociais). Ainda que o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssas diferentespráticas seja fundamental para a compreensão <strong>do</strong> movimento, parece insuficiente pararespon<strong>de</strong>r certas questões presentemente postas no processo da Reforma,particularmente no que se refere ao momento tático-operacional.Essas práticas i<strong>de</strong>ntificadas no âmbito <strong>do</strong> movimento representam distintas dimensõesda prática social mas não a esgotam. Enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> prática social como “conjuntodas práticas que se inter-<strong>de</strong>terminam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um to<strong>do</strong> social da<strong>do</strong>” (Herbert, 1976:200),SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>13


caberia <strong>de</strong>stacar a questão das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que integram esse conjunto complexo <strong>de</strong>práticas presentes em um processo social. As práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> constituem, também,uma prática social mas retêm suas especificida<strong>de</strong>s. Tais práticas se articulam e dispõem,concomitantemente, <strong>de</strong> elementos técnicos e sociais (econômicos, políticos e i<strong>de</strong>ológicos).São, enfim, práticas estruturadas <strong>de</strong> classe (Donnângelo, 1976; Men<strong>de</strong>s-Gonçalves, 1979).Proce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> uma analogia com o movimento preventivista - “um <strong>do</strong>s principaisfundamentos teóricos <strong>do</strong> movimento sanitário que <strong>de</strong>u origem ao processo hoje <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>Reforma Sanitária” (Fleury, 1988:195), esta autora sugeria um novo paradigma para talprojeto:“Partin<strong>do</strong> da análise <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> trabalho e <strong>do</strong> conceito-chave <strong>de</strong> organização socialda prática médica, tal movimento opera uma leitura socializante da problemática evi<strong>de</strong>nciadapela crise da medicina mercantilizada bem como <strong>de</strong> sua ineficiência, enquanto possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>organização <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> capaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r as <strong>de</strong>mandas prevalentes, organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong>forma <strong>de</strong>mocrátcia em sua gestão e administra<strong>do</strong> com base na racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> planejamento”(Fleury, 1988:196).Nessa perspectiva, o conceito amplia<strong>do</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s seus <strong>de</strong>terminantesassumi<strong>do</strong> pela 8ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e posteriormente incorpora<strong>do</strong> pelaConstituição da República e pela legislação infra-constitucional fundamenta-se em parteda produção teórico-crítica da Saú<strong>de</strong> Coletiva no Brasil. Do mesmo mo<strong>do</strong>, os princípiose diretrizes relativos ao direito à saú<strong>de</strong>, à cidadania, à universalização, à equida<strong>de</strong>, a<strong>de</strong>mocracia e a <strong>de</strong>scentralização conferem uma atualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa produção, sobretu<strong>do</strong>pela contribuição das ciências sociais ao campo da Saú<strong>de</strong> Coletiva. Já as propostas <strong>de</strong>sistema único <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> re<strong>de</strong> regionalizada e hierarquizada <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>atendimento integral, <strong>de</strong> participação da comunida<strong>de</strong>, e <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> promoção, proteçãoe recuperação da saú<strong>de</strong>, presentes naquele arcabouço jurídico, tiveram como matrizconceitual o paradigma originário <strong>do</strong> movimento preventivista e da saú<strong>de</strong> comunitária.OS OBSTÁCULOS DA PRÁTICA DA REFORMA SANITÁRIAOs impasses relativos à realização <strong>do</strong>s princípios e diretrizes da Reforma Sanitárianas relações entre os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> setor e os usuários/cidadãos não po<strong>de</strong>m ser explica<strong>do</strong>s, obviamente, pelos limites <strong>do</strong>s seus paradigmas.Existem situações muito concretas e objetivas que têm si<strong>do</strong> apontadas como responsáveispelas distorções verificadas nas tentativas <strong>de</strong> implantação <strong>do</strong> projeto da ReformaSanitária (Paim, 1989), ao se distanciar <strong>do</strong> que fora concebi<strong>do</strong> originalmente, tal comose po<strong>de</strong> verificar no trecho:“A análise da conjuntura não indica, portanto, um tempo próximo favorável à concretização<strong>de</strong> todas as proposições formuladas na VIII CNS. Evi<strong>de</strong>ntemente que certos avanços po<strong>de</strong>rãoocorrer a partir <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s da implantação <strong>do</strong> SUDS, nos textos das constituintes estaduaise das leis orgânicas <strong>do</strong>s municípios e da saú<strong>de</strong>, entre outros. Mas a crise fiscal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nãoparece ter solução próxima. A dívida externa constrange a economia e o financiamento <strong>do</strong>s serviçospúblicos fica comprometi<strong>do</strong>. Se o SUDS era uma possibilida<strong>de</strong> da passagem <strong>de</strong> políticasracionaliza<strong>do</strong>ras para políticas <strong>de</strong>mocratizantes <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>, a Reforma Sanitária, enquantoexpressão <strong>de</strong>ssas últimas, é impensável sem os investimentos necessários à ampliação da re<strong>de</strong>pública <strong>de</strong> serviços” (Paim, 1991:114).14 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Desse mo<strong>do</strong>, distintas perspectivas <strong>de</strong> análise e <strong>de</strong> posições político-i<strong>de</strong>ológicasapontaram para muitas das ambiguida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> projeto reformista (Gallo, 1995). O <strong>de</strong>bateverifica<strong>do</strong> ao final <strong>do</strong>s oitenta sobre a natureza e o estágio da Reforma Sanitária Brasileirailustra parcialmente seus impasses. Muitos questionamentos foram feitos porcompanheiros que <strong>de</strong>fendiam a Reforma Sanitária movi<strong>do</strong>s, certamente, pelo intuito <strong>de</strong>fazê-la avançar o mais rapidamente possível, sem comprometer os seus traços fundamentais.É compreensível que muitos centrassem a sua atenção não apenas naquilo queconsi<strong>de</strong>ravam mais importante para o avanço mas, também, em função <strong>de</strong> posiçõespolítico-i<strong>de</strong>ológicas e <strong>de</strong> inserções político-institucionais diversas. O trecho a seguirilustra parte daquelas ambiguida<strong>de</strong>s:“As Ações Integradas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (AIS) eram consi<strong>de</strong>radas como estratégicas para aimplantação da Reforma Sanitária mas a sua <strong>de</strong>fesa não <strong>de</strong>veria representar nenhum empecilhopara seu início (da Reforma). Os Sistemas Unifica<strong>do</strong>s e Descentraliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUDS) sãoconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como um passo fundamental para a Reforma, assim como a criação <strong>de</strong> um SistemaÚnico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Ambos, porém, não <strong>de</strong>vem ser confundi<strong>do</strong>s com a própria Reforma” (Arouca,1988:2).Se a Reforma Sanitária não eram as AIS, não eram os SUDS nem o SUS, o queseria, afinal, a Reforma Sanitária? Talvez essa fosse uma das perguntas que maisatormentava as cabeças <strong>do</strong>s seus militantes. Tratar-se-ia <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al a ser persegui<strong>do</strong>que, apesar <strong>do</strong>s passos da<strong>do</strong>s, jamais seria alcança<strong>do</strong>? Ou seriam apenas manifestaçõesparciais <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> na <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> ângulo pelo qual se dirigisse o olhar?Ainda que não se questionasse o projeto da Reforma Sanitária nem a busca <strong>de</strong>uma teoria para o mesmo, foi criticada a “via prussiana” <strong>de</strong> operar modificações reformistasno mo<strong>de</strong>lo assistencial e aqueles que estavam a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> uma concepção restritada Reforma Sanitária “escuda<strong>do</strong>s em um pensamento <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> conserva<strong>do</strong>r, o da dialética <strong>do</strong>possível” (Campos, 1988:189).Se a Reforma Sanitária é um processo que passou pelas AIS e SUDS, ainda quenão se confundisse com os mesmos, sofreu a implantação distorcida <strong>do</strong> SUS (conduzidapor muitos <strong>do</strong>s seus oponentes), e não se restringe a uma reforma administrativa, caberiaresgatar nesse tortuoso percurso, até mesmo para reforçar o moral <strong>do</strong>s militantes ecombatentes, as vitórias conquistadas e os elementos eventualmente concretiza<strong>do</strong>s. Osesforços para a unificação e <strong>de</strong>scentralização (Cor<strong>de</strong>iro, 1991; Brasil, 1993), bem comoas tentativas, <strong>de</strong> mudança <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo assistencial hegemônico (Teixeira & Paim, 1990;Merhy et alii, 1991; Campos, 1992; Men<strong>de</strong>s, 1993; Cecílio, 1994; Ayres, 1994; Teixeira &Melo, 1995; Schraiber et alii, 1996) nos últimos anos, inscrevem-se nesse resgate.Contu<strong>do</strong>, compõe a radicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> projeto a consciência <strong>de</strong> que o mesmo integrauma totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudanças, inclusive <strong>de</strong> ór<strong>de</strong>m ética e cultural. Nesse senti<strong>do</strong><strong>de</strong>ve fazer parte <strong>de</strong>ssa radicalida<strong>de</strong> uma certa distância entre realida<strong>de</strong> e projeto namedida em que novos propósitos sejam historicamente estabeleci<strong>do</strong>s. Não fora assim orisco seria o conformismo e o conserva<strong>do</strong>rismo. Mas a referência a uma Reforma quenunca se reconhece na realida<strong>de</strong>, enquanto processo, e uma reiteração obsessiva <strong>do</strong> quenão é Reforma Sanitária tem também o risco <strong>do</strong> fatalismo e <strong>do</strong> imobilismo.Se a leitura da crise <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong> efetuada pelo projeto da Reforma implicava areorganização <strong>do</strong>s sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, a gestão <strong>de</strong>mocrática e o planejamento participativo,como não consi<strong>de</strong>rar, seriamente, os resulta<strong>do</strong>s alcança<strong>do</strong>s nesses componentes técnicoinstitucionais?Se a unida<strong>de</strong> dialética entre a construção <strong>de</strong> um saber, a i<strong>de</strong>ologia e asSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>15


práticas tem uma história que precisa ser contada e ensinada, a unida<strong>de</strong> dialética dateoria da Reforma Sanitária com a práxis no sistema <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> tem que ser,progressivamente, posta em prova geran<strong>do</strong> acumulações <strong>de</strong> fatos político-sociais.Não parece convincente, portanto, aguardar o “Gran<strong>de</strong> Dia” em que seria <strong>de</strong>clarada,finalmente, a implantação da Reforma Sanitária. Muito menos esperar que to<strong>do</strong>sos objetivos persegui<strong>do</strong>s resultem ações concretas a partir das práticas teórica, políticae i<strong>de</strong>ológica <strong>do</strong> movimento sanitário. Se o triedro da Saú<strong>de</strong> Coletiva é o conhecimento,a consciência sanitária e a organização <strong>do</strong> movimento e as três faces da <strong>luta</strong> contrahegemônicasão o saber, a i<strong>de</strong>ologia e a prática política (Fleury, 1988), cabe discutir,concretamente, on<strong>de</strong> realizá-los. Tratar-se-iam <strong>de</strong> elementos exclusivos <strong>do</strong>s movimentossociais que operam na socieda<strong>de</strong> civil e têm horror <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s seus aparelhos ou,enquanto componentes da contra-hegemonia <strong>de</strong>veriam ser aciona<strong>do</strong>s na arena <strong>de</strong> <strong>luta</strong>que a realida<strong>de</strong> apresentasse, seja no Esta<strong>do</strong> amplia<strong>do</strong>, seja nas instituições, seja nasocieda<strong>de</strong> civil no senti<strong>do</strong> estrito.Mesmo no início <strong>do</strong> processo da Reforma Sanitária esta era vista como um projetosocial que enfrenta impasses na construção e na condução - aspectos <strong>do</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>“dilema reformista” (Fleury, 1988) e já se questionava se o paradigma a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> seria capaz<strong>de</strong> dar conta da complexida<strong>de</strong> e da abrangência <strong>do</strong> projeto. Reconhecia-se, ainda, “que aatuação governamental ten<strong>de</strong> a tornar absolutos os aspectos racionalizantes da Reforma Sanitária,minan<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ssa forma, sua base política, imprescindível para que essse processo transcenda oslimites administrativos” (Fleury, 1988:204). Isto faz supor que a insistência <strong>de</strong> distinguir aReforma Sanitária enquanto projeto relativamente “puro” <strong>do</strong> seu processo em queapareceriam seus elementos contraditórios <strong>de</strong> concretização, sejam racionaliza<strong>do</strong>res, sejam<strong>de</strong>mocratizantes, correspon<strong>de</strong>ria a cautela <strong>de</strong> não reforçar seus componentes técnicoadministrativose técnico-operacionais às custas <strong>do</strong> sacrifício “<strong>de</strong> uma base social, uma coalizão<strong>de</strong> forças, cuja unida<strong>de</strong> é construida em torno <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo, da utopia” (Fleury, 1988:205).Para além da polêmica entre a “dialética <strong>do</strong> possível” e a “dialética <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo”havia uma ameaça mais grave pairan<strong>do</strong> sobre to<strong>do</strong>s:“Este quadro fortalece a tese <strong>de</strong> que a Reforma Sanitária não tem saída se confinada aoslimites <strong>de</strong> uma reforma administrativa setorial na qual a lei, simplesmente, estabeleça a organização<strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Permanecen<strong>do</strong> estreitas as suas bases financeira e política corre orisco <strong>de</strong> se <strong>de</strong>smoralizar perante a população. Contra esses riscos novos esforços <strong>de</strong>vem serenvida<strong>do</strong>s nos campos cultural e político. A reconceitualização das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e acrítica das práticas sanitárias apresentam-se como pertinentes <strong>de</strong>slocan<strong>do</strong>-se a ênfase da questão<strong>do</strong>s serviços para as condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e seus <strong>de</strong>terminantes. Tais alternativas precisam serexploradas para facilitar a repolitização da saú<strong>de</strong> numa conjuntura que ten<strong>de</strong> a banalizar o projetoda Reforma Sanitária” (Paim, 1991:115).DESAFIOS TEÓRICOS E PRÁTICOS PARA A REFORMA SANITÁRIA BRASILEIRANão obstante certas perplexida<strong>de</strong>s que acompanharam o processo reformista, aola<strong>do</strong> da crise <strong>de</strong> financiamento e <strong>do</strong>s retrocessos político-institucionais, significativosesforços teórico-conceituais e técnico-operativos foram realiza<strong>do</strong>s na primeira meta<strong>de</strong>da década <strong>de</strong> noventa buscan<strong>do</strong> superar as lacunas teóricas e as ausências <strong>de</strong> práticassolidárias ao processo da Reforma Sanitária.16 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


No que diz respeito à reconceitualização das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, procura-se recuperaros aspectos culturais envolvi<strong>do</strong>s na sua <strong>de</strong>finição e, especialmente, seus componentespsicológicos e subjetivos:“Saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong>ença, bem-estar e mal-estar são fenômenos não apenas físicos que se manifestampelo bom ou mal funcionamento <strong>de</strong> um órgão, mas ao mesmo tempo possuem uma dimensãopsicológica que passa pelo vivenciar e pela emoção <strong>de</strong> cada indivíduo. São fenômenos que possuemuma dimensão sócio-cultural, coletiva, e outra psicobiológica, individual, que não <strong>de</strong>veriam serdicotomizadas. Devem então ser compreendi<strong>do</strong>s enquanto parte <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> organização da vidacotidiana e da história pessoal <strong>de</strong> cada um” (Vaitsman, 1992:157-158).Ao questionar a noção economicista das necessida<strong>de</strong>s humanas, a autora criticao chama<strong>do</strong> “conceito amplia<strong>do</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>” por restringir-se à concepção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> comoresulta<strong>do</strong> das formas <strong>de</strong> organização da produção. Mesmo admitin<strong>do</strong> que as relações<strong>de</strong> classe geradas no processo social da produção <strong>de</strong>terminem <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s nascondições <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ressalta que existem outros fatores também relevantescomo gênero, cor, ida<strong>de</strong>, entre outros, que contribuem para acentuar tais <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.Lembran<strong>do</strong> a existência <strong>de</strong> um conjunto mais amplo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s humanas -subsistência, proteção, afeto, compreensão, participação, lazer, criação, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> eliberda<strong>de</strong> - a autora apresenta a seguinte reconceitualização <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>:“A existência <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, que é física e mental - está ligada a uma série <strong>de</strong> condiçõesirredutíveis umas às outras (...) É produzida <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s que, além da produção, possuemformas <strong>de</strong> organizaação da vida cotidiana, da sociabilida<strong>de</strong><strong>de</strong>, da afetivida<strong>de</strong>, da sensualida<strong>de</strong>, dasubjetivida<strong>de</strong>, da cultura e <strong>do</strong> lazer, das relações com o meio ambiente. É antes resusltante <strong>do</strong>conjunto da experiência social, individualizada em cada sentir e vivenciada num corpo que étambém, não esqueçamos, biológico. Uma concepção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> não-reducionista <strong>de</strong>veria recuperaro significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> indivíduo em sua singularida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong> na relação com os outros e como mun<strong>do</strong>. Pensar a saú<strong>de</strong> hoje passa então por pensar o indivíduo em sua organização da vidacotidiana, tal como esta se expressa não só através <strong>do</strong> trabalho mas também <strong>do</strong> lazer - ou da suaausência, por exemplo - <strong>do</strong> afeto, da sexualida<strong>de</strong>, das relações com o meio amiente. Uma concepçãoampliada da saú<strong>de</strong> passaria então por pensar a recriação da vida sobre novas bases (...)” (Vaitsman,1992:171).No que se refere à crítica às práticas sanitárias, po<strong>de</strong>ria também ser entendida comocontribuição à <strong>luta</strong> contra o risco da banalização da Reforma Sanitária a reflexão teóricasobre práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e tecnologias (materiais e não materiais), particularmente aelaboração <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização tecnológica <strong>do</strong> trabalho (Men<strong>de</strong>s-Gonçalves,1991). O privilegiamento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ria até não ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>na análise política <strong>do</strong> movimento sanitário ou no estu<strong>do</strong> da formulação <strong>de</strong> macropolíticasgovernamentais, mas seria imprescindível para balizar a implementação <strong>de</strong>um projeto com a amplitu<strong>de</strong> e a ousadia que marcaram a Reforma Sanitária. Tratarteoricamente a especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas práticas e induzir experiências críticas e inova<strong>do</strong>rasfazia-se necessário não apenas para reformar o “final da linha” ou o “colóquio singular”(Fleury, 1988) mas também para superar certos equívocos presentes na trincheira técnicoinstitucionalda <strong>luta</strong> pela construção da Reforma Sanitária Brasileira.Assim, as práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> constituem uma prática social e apresentam, simultaneamente,uma dimensão técnica e uma dimensão social (econômica, política e i<strong>de</strong>ológica).A tecnologia presente nas práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, por conseguinte, não é uma questãoexterna da prática social <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser consi<strong>de</strong>rada nuclear para a sua re<strong>de</strong>finição.Aceitan<strong>do</strong>-se a tese <strong>de</strong> que a Reforma Sanitária é construida por um movimento queSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>17


articula as práticas teórica, política e i<strong>de</strong>ológica numa <strong>luta</strong> contra-hegemônica, <strong>de</strong>ve-seconsi<strong>de</strong>rar, também, a hipótese <strong>de</strong> que parte significativa da Reforma Sanitária se realizano plano técnico-institucional no encontro <strong>de</strong> indivíduos ou cidadãos com a burocraciae com os agentes das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Comporia a “vida concreta <strong>do</strong>s homens” ou a“prática empírica”, isto é, a “relação concreta entre a a prática técnica e a prática política emuma socieda<strong>de</strong> dada” (Herbert, 1976:200-201). Faz senti<strong>do</strong>, no entanto, a advertênciaembutida na reflexão exposta a seguir:“Como a reprodução social não se orienta, entretanto, basicamente, nem pela falta <strong>de</strong>lógica das i<strong>de</strong>ologias, nem pela consistência teórica <strong>de</strong> suas críticas (...), impõe-se aproveitar essaexperiência histórica (a Saú<strong>de</strong> Pública em São Paulo nos anos 70 e a Reforma Sanitária no Brasil<strong>do</strong>s anos 80) como lição para as ações futuras que pretendam transformar as práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>(...). Nenhuma perspectiva tecnocrática terá <strong>do</strong>ravante como justificar-se diante <strong>de</strong> seus fracassos,quaisquer que sejam seus méritos lógicos ou científicos, o que quer dizer que haverá sempre quebuscar sólidas e profundas bases <strong>de</strong> apoio à ação transforma<strong>do</strong>ra no teci<strong>do</strong> social, para que elapossa viabilizar-se, e mesmo que <strong>de</strong>va então seguir o rítmo lento <strong>do</strong>s atalhos transversais e dasretiradas” (Men<strong>de</strong>s-Gonçalves, 1991:101-102).A BUSCA DE OUTROS PARADIGMASAinda como parte <strong>do</strong>s esforços acima menciona<strong>do</strong>s, cabe registrar o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> uma linha <strong>de</strong> pesquisa sobre práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em distintos centros acadêmicose a experimentação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los assistenciais, <strong>de</strong> planejamento e <strong>de</strong> gestão. Avalorização da dimensão subjetiva <strong>de</strong>ssas práticas, das vivências <strong>do</strong>s usuários e <strong>do</strong>strabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> setor, além <strong>de</strong> uma preocupação com a constituição <strong>do</strong>s sujeitos sociais,tem proporciona<strong>do</strong> espaços <strong>de</strong> comunicação e diálogo com outros saberes e práticasabrin<strong>do</strong> outras perspectivas <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> ação. Do mesmo mo<strong>do</strong>, a revisão críticamais recente <strong>de</strong> alguns paradigmas, elabora<strong>do</strong>s em outros contextos e reatualiza<strong>do</strong>s noBrasil, tais como o “campo <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>” (Lalon<strong>de</strong>, 1974), a promoção da saú<strong>de</strong> (Otawa), avigilância à saú<strong>de</strong> (Men<strong>de</strong>s, 1993), confere novos senti<strong>do</strong>s para as perguntas formuladaspelo movimento sanitário na década <strong>de</strong> oitenta.Assim, entre os paradigmas que contemplam o processo saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença <strong>de</strong>stacaseo chama<strong>do</strong> “campo da saú<strong>de</strong>” (Lalon<strong>de</strong>, 1974), composto por quatro polos:– biologia humana: maturida<strong>de</strong> e envelhecimento, sistemas internoscomplexos e herança genética;– sistema <strong>de</strong> organização <strong>do</strong>s serviços: recuperação, curativo e preventivo;– ambiente: social, psicológico e físico;– estilo <strong>de</strong> vida: participação no emprego e riscos ocupacionais, padrões <strong>de</strong>consumo e riscos da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lazer.Apesar <strong>do</strong> simplismo que lhe caracteriza, esse mo<strong>de</strong>lo teria influencia<strong>do</strong>, a reforma<strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> cana<strong>de</strong>nse (Terris, 1984). Ten<strong>do</strong> consegui<strong>do</strong> maior difusão na últimadécada, representa uma versão ampliada <strong>do</strong> preventivismo ao propiciar as noções <strong>de</strong>prevenção primordial, intervenção individual e intervenção populacional. Noutraperspectiva, a revalorização contemporânea da promoção da saú<strong>de</strong> (OPS,1989; OPS,1990) e a revisão crítica da “Teoria e Prática da Saú<strong>de</strong> Pública” (PAHO, 1993) e arenovação da proposta “Saú<strong>de</strong> para To<strong>do</strong>s”, baseada nas noções <strong>de</strong> equida<strong>de</strong>,18 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


solidarieda<strong>de</strong>, sustentabilida<strong>de</strong> e integralida<strong>de</strong> (WHO, 1995; WHO, 1996), po<strong>de</strong>rão,também, influenciar a formulação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.No que se refere ao paradigma assistencial da “Promoção da Saú<strong>de</strong>”, ressalta-sena Carta <strong>de</strong> Otawa, durante a I Conferência Internacional sobre Promoção da Saú<strong>de</strong>,em 1986, que “a paz, a educação, a habitação, a alimentação, a renda, um ecossistema estável, aconservação <strong>do</strong>s recursos, a justiça social e a equida<strong>de</strong> são requisitos fundamentais para a saú<strong>de</strong>”(Men<strong>de</strong>s, 1993:11). Esta concepção encontra-se presente entre os secretarios municipais<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que subscreveram a Carta <strong>de</strong> Fortaleza e ten<strong>de</strong> a ser difundida pela ação <strong>do</strong>Conselho Nacional <strong>de</strong> Secretários Municipais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (Carta, 1995).O fenômeno saú<strong>de</strong> tem si<strong>do</strong> também pensa<strong>do</strong> na América Latina como expressãodas condições ou <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida, especialmente nas suas articulações com quatrodimensões da reprodução social: a reprodução biológica on<strong>de</strong> se manifesta a capacida<strong>de</strong>imunológica e a herança genética; a reprodução das relações ecológicas, que envolve ainteração <strong>do</strong>s indivíduos e grupos com o ambiente resi<strong>de</strong>ncial e <strong>do</strong> trabalho; a reproduçãodas formas <strong>de</strong> consciência e comportamento, que expressam a cultura; e a reproduçãodas relações econômicas, on<strong>de</strong> se realizam a produção, distribuição e o consumo(Castellanos, 1987a). A partir <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo, são i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s diferentes espaços eestratégias <strong>de</strong> intervenção sanitária. Assim, para o espaço singular (indivíduo) teríamosas estratégias <strong>de</strong> alto risco. Para o espaço particular (grupos sociais) haveria as estratégiaspopulacionais(Finalmente, para o espaço geral (mo<strong>de</strong>los econômicos) dispríamos daspolíticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (Castellanos, 1987b).No que diz respeito às respostas sociais ao fenômeno saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença, o mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> “vigilância à saú<strong>de</strong>” constitui-se numa “prática sanitária que organiza os processos<strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, sob a forma <strong>de</strong> operações, para confrontar prooblemas <strong>de</strong>enfrentamento contínuo, num território <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>” (Men<strong>de</strong>s, 1993), especialmenteatravés <strong>de</strong> intervenções setoriais organizadas. Ao utilizar o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> vigilância emsaú<strong>de</strong> que consi<strong>de</strong>ra esquematicamente o processo saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença na coletivida<strong>de</strong> e asintervenções centradas sobre danos, riscos e <strong>de</strong>terminantes sócio-ambientais (PAIM,1993) esse paradigma estimula uma reatualização da reflexão sobre as noções <strong>de</strong>promoção da saú<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida (Souza & Kalichman, 1993; Schraiber & Men<strong>de</strong>s-Gonçalves, 1996).Algumas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong>sses paradigmas e mo<strong>de</strong>los assistenciaisalternativos têm si<strong>do</strong> criadas pela municipalização, pela distritalização e por certasiniciativas <strong>de</strong> articulação entre a universida<strong>de</strong>, os serviços e a comunida<strong>de</strong>. Nesseparticular, mo<strong>de</strong>los tecno-assistenciais <strong>de</strong> base epi<strong>de</strong>miológica, tais como ofertaorganizada, as ações programáticas em saú<strong>de</strong>, a vigilância em saú<strong>de</strong>, políticas públicassaudáveis, etc, já resultam da reatualização e crítica <strong>do</strong>s paradigmas sanitários. Certasexperiências <strong>de</strong>senvolvidas no Brasil em municípios como Santos, Campinas, São Paulo(área <strong>do</strong> Butantã) e Curitiba permitem consi<strong>de</strong>rar a pertinência <strong>de</strong>sses esforços, além <strong>de</strong>por em discussão propostas como as políticas públicas saudáveis (PAHO, 1993) ou ascida<strong>de</strong>s saudáveis (Carta, 1995).Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a reflexão em curso sobre mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção em saú<strong>de</strong> e asiniciativas inova<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> alguns municípios e distritos sanitários no Brasil po<strong>de</strong>-seafirmar que a Reforma Sanitária, enquanto processo, mantem-se viva apesar <strong>do</strong>sobstáculos econômicos, políticos e i<strong>de</strong>ológicos que historicamente enfrenta. A intensaparticipação social verificada nas etapas municipal, estadual e nacional das conferências<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no Brasil (<strong>CEBES</strong> & ABRASCO, 1992) reitera a vitalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> projeto. A própriaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>19


temática da X Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e os <strong>de</strong>bates nela realiza<strong>do</strong>s estimulam aousadia <strong>de</strong> construir um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção volta<strong>do</strong> para a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.Portanto, a discussão entre as finalida<strong>de</strong>s das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e o seu objeto,meios <strong>de</strong> trabalho e ativida<strong>de</strong>s bem como a análise das relações técnicas e sociais <strong>do</strong>trabalho em saú<strong>de</strong> como via <strong>de</strong> aproximação entre os mo<strong>de</strong>los assistenciais e <strong>de</strong> gestão,constituem <strong>de</strong>safios teóricos e práticos para a Reforma Sanitária Brasileira nos anos quehão <strong>de</strong> vir. Do mesmo mo<strong>do</strong>, as interações entre propósitos, méto<strong>do</strong>s e organização talcomo concebi<strong>do</strong> pelo postula<strong>do</strong> <strong>de</strong> coerência, ao estabelecer as vinculações com o papel<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, com a Teoria e com a História (Testa, 1995), po<strong>de</strong>rão representar algunscaminhos investigativos que respal<strong>de</strong>m novos passos para a Reforma Sanitária no Brasil.COMENTÁRIOS FINAISNos tópicos anteriores constata-se que a Reforma Sanitária tem si<strong>do</strong> tratada comomovimento, proposta, projeto e processo. Seriam conceitos distintos em esta<strong>do</strong> prático?Houve textos consulta<strong>do</strong>s em que to<strong>do</strong>s esses termos foram emprega<strong>do</strong>s. Aomesmo tempo afirmava-se que “a reforma sanitária é simultaneamente ban<strong>de</strong>ira específica eparte <strong>de</strong> uma totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudanças” (Arouca, 1988:3). Assim, po<strong>de</strong>r-se-ia concluir que aReforma Sanitária é uma proposta que encerra um conjunto <strong>de</strong> princípios e proposiçõestal como disposto no Relatório Final da 8a. CNS. É também um projeto pois consubstanciaum conjunto <strong>de</strong> políticas articuladas que requerem uma dada consciência sanitária, umaparticipação da cidadania e uma vinculação com as <strong>luta</strong>s políticas e sociais mais amplas.É ainda um processo porquanto a proposta formulada não se conteve nos arquivos nemnas bibliotecas mas transformou-se em ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> <strong>luta</strong>, articulou um conjunto <strong>de</strong>práticas, e teceu um projeto político-cultural consistente enquanto prática social,tornan<strong>do</strong>-se História. Trata-se, consequentemente, <strong>de</strong> um conjunto complexo <strong>de</strong> práticas(inclusive práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>) que integram a prática social.Enquanto totalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudanças a contemplar questões como estrutura <strong>do</strong> SUS,ciência e tecnologia, produção, mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, e controle social (Arouca, 1988), a ReformaSanitária <strong>de</strong>manda por paradigmas que não se esgotem nas práticas teórica, política ei<strong>de</strong>ológica. O conceito <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong> emprega<strong>do</strong> para se referir à situação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> reabreo espaço para a discussão da prática social que dá conta <strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>. As práticas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, têm, como já foi assinala<strong>do</strong>, uma natureza técnica porém são, ao mesmo tempo,práticas sociais com dimensões econômicas, i<strong>de</strong>ológicas e políticas.Questões referentes à ciência e tecnologia ou a certos aspectos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>não são externas à situação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mas uma das suas dimensões. A tecnologia,enquanto meio <strong>de</strong> trabalho aciona<strong>do</strong> nas práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, faz parte da situação sanitáriaa ser modificada pela Reforma. Assim, tanto as tecnologias materiais quanto as nãomateriais precisam ser recriadas ten<strong>do</strong> em conta as reconceitualizações acerca <strong>do</strong> objetodas práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e da instauração <strong>de</strong> novas relações sociais nas diferentesmodalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (Paim, 1993a). Nesse particular, caberessaltar não só as tecnologias utilizadas no cuida<strong>do</strong> a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> carater individual ecoletivo mas também o conjunto <strong>de</strong> técnicas referentes ao planejamento, gestão,informação, comunicação, etc.20 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


A abertura para a filosofia e para a arte, representa outra via progressivamenteexplorada pelas reflexões e propostas atuais no campo da Saú<strong>de</strong> Coletiva:“Além das condições específicas <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, entre outros, para propiciar avançosno senti<strong>do</strong> da constituição objetiva <strong>do</strong>s espaços da ação comunicativa, nos senti<strong>do</strong>s já aponta<strong>do</strong>s,há um outro, ainda relativamente mais inexplora<strong>do</strong>, mas cujas promessas teóricas são mais<strong>de</strong>cisivas: trata-se evi<strong>de</strong>ntemente da presença essencial <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,<strong>do</strong>s educan<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s receptores <strong>de</strong> mensagens, <strong>do</strong>s frui<strong>do</strong>res das objetivações estéticas, <strong>do</strong>snecessita<strong>do</strong>s <strong>de</strong> filosofias” (Men<strong>de</strong>s-Gonçalves, 1995;23).Assim, a discussão <strong>de</strong> valores que informam as práticas e, especialmente, os queorientam as escolhas, seja nas consultas individuais, seja nas intervenções <strong>de</strong> caratercoletivo, está possibilitan<strong>do</strong>, presentemente, repensar a autonomia <strong>do</strong>s agentes, ao la<strong>do</strong>das questões mais estruturais remetidas à análise <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>(Schraiber, 1995). Do mesmo mo<strong>do</strong>, o diálogo inicia<strong>do</strong> com diferentes manifestaçõesartísticas, recusan<strong>do</strong> o dirigismo (Capinan, 1995) mas convidan<strong>do</strong> para outras leiturasda realida<strong>de</strong>, especialmente no que se refere ao “mun<strong>do</strong> subjetivo”, permite cogitarmo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção para a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida fundamenta<strong>do</strong>s num “agir comunicativo”que leve em conta as dimensões psicológicas e culturais <strong>do</strong>s problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (Paim,1995a), particularmente os vincula<strong>do</strong>s ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida (<strong>do</strong>enças cardio-vasculares,AIDS, violência, transtornos mentais, etc). Se a arte é amiga da vida po<strong>de</strong> ser da saú<strong>de</strong>,também (Paim, 1995b).Apesar <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s essas iniciativas, não é ocioso lembrar que o chama<strong>do</strong> paradigmaflexneriano continua orientan<strong>do</strong> a organização <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no senti<strong>do</strong><strong>de</strong> reforçar o mo<strong>de</strong>lo médico hegemônico (Paim, 1994). Dirigentes, empresários,trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, população e mídia continuam reproduzin<strong>do</strong> tal paradigma aoreduzir o sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a um conjunto <strong>de</strong> estabelecimentos <strong>de</strong> assistência médicohospitalar,centra<strong>do</strong>s no diagnóstico e na terapêutica alopática.Evi<strong>de</strong>ntemente que o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida prevelescente na socieda<strong>de</strong> brasileira, prenhe<strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças e agravos, produz incessantemente umapopulação necessitada <strong>de</strong> serviços médicos que não po<strong>de</strong> ser ignorada. Não há, portanto,como conter essa <strong>de</strong>manda “espontânea”, seja produzida pelo sofrimento, pela miséria,ou mesmo pela oferta <strong>de</strong> serviços médicos. Mas a reorientação <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> atenção a<strong>do</strong>ença vigente para a construção <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que, além <strong>de</strong> controlar danos eriscos preocupe-se com os <strong>de</strong>terminantes sócio-ambientais da saú<strong>de</strong> (PAIM, 1993b),impõe novos <strong>de</strong>safios. Enfatizar a promoção da saú<strong>de</strong>, a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e <strong>do</strong> ambiente,a prevenção das <strong>do</strong>enças reorganizan<strong>do</strong> a assistência médico-hospitalar – eletiva eemergencial – em função <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los assistenciais centra<strong>do</strong>s na oferta organizada e navigilância em saú<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> ser um <strong>do</strong>s caminhos. Nessa perspectiva, mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atençãovolta<strong>do</strong>s para a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, requerem paradigmas alternativos tais como os quese tem tenta<strong>do</strong>, ultimamente, no Brasil.O repensar <strong>do</strong>s paradigmas, pressupostos e fundamentos teóricos da ReformaSanitária não po<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sse mo<strong>do</strong>, aprisionar-se na conexão com as práticas estritamentepolíticas. Para que a Reforma Sanitária não crie falsos dilemas faz-se necessário que talconexão seja acompanhada por um conjunto <strong>de</strong> iniciativas no âmbito das instituições,serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e grupos sociais, tal como se observa nos processos <strong>de</strong> municipalizaçãoe distritalização volta<strong>do</strong>s para a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los assistenciais, <strong>de</strong> planejamento egestão alternativos. E para que o “otimismo da prática” não caia no i<strong>de</strong>alismo ou novoluntarismo cabe lembrar que a Reforma Sanitária ainda dispõe <strong>de</strong> um referencialSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>21


teórico fundamental: a filosofia da praxis - dialógica, plural, comunicativa (Gramsci,1966; Habermas,1990).A vigilância crítica contra os <strong>de</strong>svios tecnocráticos <strong>do</strong> proceso da Reforma Sanitárianão <strong>de</strong>ve conduzir ao equívoco oposto <strong>de</strong> <strong>de</strong>squalificar as bases técnico-científicaspara a sua implementação nem ignorar os obstáculos ainda presentes na burocracia ena administração pública brasileira, bem como nas questões políticas e econômicas maisgerais. Do mesmo mo<strong>do</strong>, a práxis necessária à geração <strong>de</strong> novos paradigmas e a mudança<strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> requer a elaboração <strong>de</strong> tecnologias nas áreas daatenção, <strong>do</strong> planejamento, da epi<strong>de</strong>miologia, da comunicação, entre outras, progressivamenteorgânicas ao projeto da Reforma Sanitária Brasileira.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALMEIDA FILHO, N.; PAIM, J.S. Contribuição à crítica da abordagem sistêmica em saú<strong>de</strong>. In: PAIM,J.S. & ALMEIDA FILHO, N. Introdução à Crítica <strong>do</strong> Planejamento <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Textos Didáticos.Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral da Bahia, Salva<strong>do</strong>r-Bahia, 1982 p.24-36.AROUCA, A.S. da S. A história natural das <strong>do</strong>enças. Saú<strong>de</strong> em Debate, 1:15-19, 1976.AROUCA, A. Reforma sanitária brasileira, Tema/Radis, 11: 2-4, 1988.AYRES, J.R. <strong>de</strong> C.M. Ação programática e renovação das práticas médico-sanitárias: saú<strong>de</strong> eemancipação na a<strong>do</strong>lescência. Saú<strong>de</strong> em Debate, 42:54-58, 1994.BRASIL. Ministério da Saú<strong>de</strong>. Descentralização das ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. A Ousadia <strong>de</strong> Cumprir e FazerCumprir a Lei. Brasília, 1993a.67p.CAPINAN, J.C. Aleatória janela. In: OPS/OMS Informação e Comunicação Social em Saú<strong>de</strong>. Brasília,1995, p. 43-49 (Série Desenvolvimento <strong>de</strong> Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, 15).CAMPOS, G.W. <strong>de</strong> S. A Reforma Sanitária Necessária. In: BERLINGUER, G.; FLEURY, S.; CAMPOS,G.W.<strong>de</strong> S. Reforma Sanitária - Itália e Brasil. HUCITEC-<strong>CEBES</strong>, São Paulo, 1988, p.179-194.CAMPOS, G.W. <strong>de</strong> S. Mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção em saú<strong>de</strong> pública: um mo<strong>do</strong> mutante <strong>de</strong> fazer saú<strong>de</strong>. Saú<strong>de</strong>em Debate, 37:16-19, 1992.CARTA <strong>de</strong> Fortaleza. Saú<strong>de</strong> em Debate, 48:77-78, 1995.CASTELLANOS, P.L. Sobre el concepto <strong>de</strong> salud-enfermedad. Un punto <strong>de</strong> vista epi<strong>de</strong>miológico. Colombia,1987, 15p. presenta<strong>do</strong> en Congreso Latino Americano, 4 y Congreso Mundial <strong>de</strong> Medicina Social,5, Me<strong>de</strong>llin, Colombia, Julio 1987a.CASTELLANOS, P.L. Epi<strong>de</strong>miologia y organización <strong>de</strong> los servicios. Mexico, 1987b. (Série Desarrollo <strong>de</strong>Recursos Humanos, 88).<strong>CEBES</strong>-ABRASCO Saú<strong>de</strong> é Qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vida. Saú<strong>de</strong> em Debate, 36:7-18, 1992.CECILIO, L.C. <strong>de</strong> (org.) Inventan<strong>do</strong> a mudança na saú<strong>de</strong>. HUCITEC, São Paulo, 1994, 334p.CORDEIRO, H. Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Ayuri Editorial/ABRASCO, Rio <strong>de</strong> Janeiro,1991. 184p.CORDONI Jr. L. Medicina Comunitária: O conceito se materializa... Espaço para a Saú<strong>de</strong>/NESCO.Curitiba, Ano 1, No. 0:11-12, s/d,DONNÂNGELO, M.C.F. Saú<strong>de</strong> e socieda<strong>de</strong>. São Paulo, Duas Cida<strong>de</strong>s, 1976, 124p.ESCOREL, S. Revirada na saú<strong>de</strong> Tema/Radis, 11:5-7, 1988.FLEURY, S. O dilema da Reforma Sanitária Brasileira. In: BERLINGUER, G.; FLEURY, S.; CAMPOS,G.W.<strong>de</strong> S. Reforma Sanitária - Itália e Brasil. HUCITEC-<strong>CEBES</strong>, São Paulo, 1988, p.195-207.FLEURY, S. Democracia e saú<strong>de</strong>. In: FLEURY, S. (org.) Saú<strong>de</strong>: Coletiva? Questionan<strong>do</strong> a onipotência <strong>do</strong>social. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relumé-Dumará, 1992, p.9-12.22 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


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A QUESTÃO DEMOCRÁTICANA SAÚDESonia FleurySAÚDE E DEMOCRACIAA constituição da Saú<strong>de</strong> Coletiva como campo <strong>do</strong> saber e espaço <strong>de</strong> prática socialfoi <strong>de</strong>marcada pela construção <strong>de</strong> uma problemática teórica fundada nas relações <strong>de</strong><strong>de</strong>terminação da saú<strong>de</strong> pela estrutura social, ten<strong>do</strong> como conceito articula<strong>do</strong>r entreteoria e prática social, a organização social da prática médica, capaz <strong>de</strong> orientar a análiseconjuntural e a <strong>de</strong>finição das estratégias setoriais <strong>de</strong> <strong>luta</strong>. Assim, enquanto a noção <strong>de</strong><strong>de</strong>terminação social nos remetia à estrutura produtiva, subsumin<strong>do</strong> ao econômico opolítico e o i<strong>de</strong>ológico, o conceito <strong>de</strong> organização social da prática médica situava-se aonível político, ainda que operan<strong>do</strong> uma segunda redução da problemática <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, aonucleá-la a partir <strong>de</strong> sua dimensão <strong>de</strong> materialização institucional.As <strong>de</strong>corrências <strong>de</strong>sta construção teórico-política foram já apontadas em relaçãoà centralida<strong>de</strong> que a atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> passaria a ter como campo privilegia<strong>do</strong> <strong>de</strong> intervençãoe <strong>de</strong>senvolvimento das <strong>luta</strong>s políticas. No entanto, esta mesma concepção po<strong>de</strong>ser responsabilizada pela estruturação <strong>de</strong> um movimento social tão importante comotem si<strong>do</strong> o movimento sanitário neste últimos 20 anos, bem como por suainstitucionalização através <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>-Centro Brasileiro <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Coletiva.A construção <strong>de</strong> um ator político passa pelo reconhecimento <strong>de</strong> um “nós” poroposição a “eles”, ou seja, pela construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> simbólica que possa diferenciarum certo grupo <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais, bem como dar a ele a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> representarsediante <strong>de</strong> si e <strong>do</strong>s outros. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um conceito relacional <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,supon<strong>do</strong> que a construção <strong>do</strong> “um” se dá por diferenciação <strong>do</strong> “alter”. Esta representação,só <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser individual, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> priva<strong>do</strong>, para alcançar uma dimensãopública, quan<strong>do</strong> a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong>ste grupo articula-se a uma concepção geral<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, transcen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> seus interesses individuais e corporativos.Tal se verificou, na <strong>luta</strong> pela <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong>, já que, ainda que oriun<strong>de</strong><strong>de</strong> um grupamento <strong>de</strong> profissionais e intelectuais da área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> , o movimentosanitário se propõe a incorporar em sua <strong>luta</strong> as <strong>de</strong>mandas da socieda<strong>de</strong> como um to<strong>do</strong>,partin<strong>do</strong> da consi<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> que as condições <strong>de</strong> exercício profissional estão submetidasàs mesmas <strong>de</strong>terminações que se responsabilizam pela precarieda<strong>de</strong> da saú<strong>de</strong> dapopulação. Esta expansão <strong>do</strong> grupo é parte <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> hegemonia,isto é, <strong>de</strong> uma nova relação entre classe/Esta<strong>do</strong>/Socieda<strong>de</strong> 1 .Entretanto, a eficácia da ação política <strong>de</strong> um ator social não <strong>de</strong>corre apenas <strong>de</strong>seu momento <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> política mas fundamentalmente, emtermos leninistas, <strong>do</strong> momento estratégico-militar, no qual são construí<strong>do</strong>s os instru-SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>25


mentos <strong>de</strong> <strong>luta</strong> <strong>do</strong>s quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alteração real da correlação <strong>de</strong>forças. Ou seja, parafrasean<strong>do</strong> Gramsci, é quan<strong>do</strong> as i<strong>de</strong>ologias se tornam parti<strong>do</strong>, quese está colocan<strong>do</strong> em questão a hegemonia <strong>do</strong>minante.Neste senti<strong>do</strong>, a institucionalização <strong>do</strong> movimento sanitário através da criação<strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>, alcançan<strong>do</strong> assim constituir-se em um verda<strong>de</strong>iro parti<strong>do</strong> sanitário, foi capaz<strong>de</strong> organizar as diferentes visões críticas <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> um projetocomum e estratégias e táticas <strong>de</strong> ação coletiva. O <strong>CEBES</strong> representou a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>uma estrutura institucional para o triedro que caracterizou o movimento da reformasanitária brasileira: a construção <strong>de</strong> um novo saber que evi<strong>de</strong>nciasse as relações entresaú<strong>de</strong> e estrutura social; a ampliação da consciência sanitária on<strong>de</strong> a Revista Saú<strong>de</strong> emDebate foi, e continua sen<strong>do</strong>, seu veículo privilegia<strong>do</strong>; a organização <strong>do</strong> movimentosocial, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> espaços e estratégias <strong>de</strong> ação política.No editorial <strong>do</strong> número 1 da Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, <strong>de</strong> 1976 po<strong>de</strong>-se ler: “Aanálise <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong> como componente <strong>do</strong> processo histórico-social vem sen<strong>do</strong> feita<strong>de</strong> forma frequente por estudiosos, que nem sempre encontram os veículos <strong>de</strong> divulgaçãomais apropria<strong>do</strong>s. Saú<strong>de</strong> em Debate preten<strong>de</strong> ampliar e levar adiante tais discussões,no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> reafirmar a íntima relação existente entre saú<strong>de</strong> e a estrutura social” 2 .Já no editorial da revista no 10 reafirma-se o papel político da entida<strong>de</strong>, nacondução <strong>do</strong> movimento sanitário: “O Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s, como articula<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sabercom a prática política tem assegura<strong>do</strong> hoje, mais <strong>do</strong> que nunca, a sua função <strong>de</strong>formulação <strong>de</strong> contra-políticas e <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> novos ‘mo<strong>de</strong>los’ <strong>de</strong> atuação, frente a umquadro institucional em transformação e grupos <strong>de</strong> profissionais e contingentes dapopulação em processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição política e encaminhamento <strong>de</strong> suas <strong>luta</strong>s” 3 .No entanto, tal protagonismo na condução <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> formulação <strong>de</strong> contrapolíticasnão esteve imune ao <strong>de</strong>bate nacional sobre as diferentes concepções e estratégias<strong>de</strong>mocráticas que passaram a permear toda a trajetória <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>. No editorial daRevista Saú<strong>de</strong> em Debate no 3, <strong>de</strong> 1977, encontramos uma divisão explícita entre umaorientação mais “institucional” e outra, orientada <strong>de</strong> forma mais “movimentista”:“Existem duas concepções da atuação <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>, não exclu<strong>de</strong>ntes, que polarizamos interesses <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> numero <strong>de</strong> associa<strong>do</strong>s. A primeira afirma o <strong>CEBES</strong> comoaglutina<strong>do</strong>r das tendências renova<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>, em nível profissional, com oobjetivo <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nar esforços para <strong>de</strong>senvolver políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mais a<strong>de</strong>quadas àrealida<strong>de</strong> brasileira (ou ‘necessida<strong>de</strong>s sanitárias da população’).A segunda concepção, sem subestimar o trabalho realiza<strong>do</strong> nas entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, quer <strong>de</strong>senvolver ativida<strong>de</strong>s voltadas mais diretamente àcomunida<strong>de</strong>, através <strong>de</strong> suas várias organizações (Socieda<strong>de</strong>s Amigos <strong>de</strong> Bairros,Sindicatos, Clubes <strong>de</strong> Mães, entida<strong>de</strong>s estudantis etc.).Na realida<strong>de</strong> as duas concepções se harmonizam quan<strong>do</strong> o <strong>CEBES</strong> é concebi<strong>do</strong>como um movimento <strong>de</strong> opinião.... trata-se então <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver o <strong>CEBES</strong> como umórgão <strong>de</strong>mocrático e que preconiza a <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>, receben<strong>do</strong> todasas contribuições que atendam aos objetivos <strong>de</strong> uma Reforma Sanitária, que <strong>de</strong>ve tercomo um <strong>do</strong>s marcos a unificação <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, públicos e sem fins lucrativos,com a participação <strong>do</strong>s usuários estimulada, crescente, possibilitan<strong>do</strong> sua influêncianos níveis <strong>de</strong>cisórios e amplian<strong>do</strong> o acesso aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> boa qualidada<strong>de</strong>” 4 .Apesar da posição <strong>do</strong> Editorial buscar a conciliação entre as duas posiçõesapontadas, em torno a um projeto comum <strong>de</strong> sistema <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, certo é que26 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


tais contradições foram vividas intensamente pelo movimento sanitário, e, talvez, portoda a socieda<strong>de</strong> brasileira, durante o processo <strong>de</strong> transição, caracterizan<strong>do</strong> diferentesconcepções e estratégias <strong>de</strong>mocráticas que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>signar como <strong>de</strong>mocracia comoconflito, <strong>de</strong>mocracia como movimento e <strong>de</strong>mocracia como institucionalida<strong>de</strong> .A proposta <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia com a qual se trabalhava nos anos 70 tinha um forteconteú<strong>do</strong> anárquico e contra-cultural, na medida em que se rebelava contra to<strong>do</strong> processo<strong>de</strong> normalização e institucionalização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, vistos como re<strong>de</strong> <strong>de</strong> macro e micropo<strong>de</strong>resque, por meio <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> práticas sociais, subordinavam a energiacria<strong>do</strong>ra e potencialmente revolucionária a uma or<strong>de</strong>m que reproduzia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua macroestruturaaté aos comportamentos e símbolos, a engrenagem da <strong>do</strong>minação. A <strong>de</strong>mocraciaera vista como comportan<strong>do</strong> um elemento social que se traduzia na proposta <strong>de</strong><strong>de</strong>salienação da população e sua consequente organização em direção a uma melhorapropriação da riqueza social. O mecanismo que permitiria esta passagem seria aparticipação popular, mística <strong>do</strong> <strong>de</strong>svendamento das estruturas da <strong>do</strong>minação e da criação<strong>de</strong> uma nova lógica <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nação das relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, marca que po<strong>de</strong> serencontrada em situação tão paradigmática como foi o Projeto Montes Claros 5 .O conflito seria, pois, o caminho através <strong>do</strong> qual se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>smontar as estruturas<strong>de</strong> <strong>do</strong>minação, ao mesmo tempo em que, ao assim proce<strong>de</strong>r, se estaria produzin<strong>do</strong>a <strong>de</strong>salienação <strong>do</strong> sujeito que se constitui por meio <strong>de</strong> sua participação. Apostulação <strong>do</strong> conflito como estratégia <strong>de</strong> redirecionamento das práticas sociais implicano reconhecimento das diferenças e na sua elaboração ao nível político, entran<strong>do</strong> emcontradição com toda perspectiva homogeneiza<strong>do</strong>ra, mesmo aquela que recorta arealidada<strong>de</strong> a partir <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> classista.Bastante influenciada pelo pensamento “foucaultiano” e <strong>de</strong> outros intelectuaiseuropeus vincula<strong>do</strong>s ao movimento contra-cultural, tal corrente vai progressivamenteper<strong>de</strong>n<strong>do</strong> vigor <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> movimento sanitário, restan<strong>do</strong> apenas sua influência nareforma psiquiátrica, para a qual a questão <strong>do</strong> resgate <strong>do</strong> sujeito é a essência mesma <strong>do</strong>movimento reforma<strong>do</strong>r.Uma perspectiva política <strong>de</strong> orientação mais “movimentista” se associa ao própriosurgimento e crescimento <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res e das Comunida<strong>de</strong>s Eclesiais<strong>de</strong> Base, orientada por uma perspectiva <strong>de</strong> mobilização da comunida<strong>de</strong> e socializaçãopolítica, viven<strong>do</strong>, no entanto, a contradição crescente entre tomar o Esta<strong>do</strong> como alvo<strong>de</strong> suas críticas e <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>mandas, ao mesmo tempo em que pretendia que sua <strong>luta</strong>pelo po<strong>de</strong>r se circunscresse ao âmbito societário. Não por acaso, esta contradição se<strong>de</strong>senvolve, algumas décadas <strong>de</strong>pois, com a forte presença <strong>do</strong>s governos municipais <strong>do</strong>Parti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res sen<strong>do</strong> os principais implementa<strong>do</strong>res das reformasinstitucionais <strong>de</strong>mocratiza<strong>do</strong>ras, tanto na saú<strong>de</strong> como em outras áreas da gestão pública.A perspectiva <strong>de</strong>mocrática “institucionalista”, pre<strong>do</strong>minante a partir <strong>do</strong>s anos80, recorreu ao conceito estratégico <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da consciência sanitária comoforma <strong>de</strong> articulação <strong>de</strong> diferentes níveis, possibilita<strong>do</strong>s pela concomitância <strong>do</strong> corpobiológico com o corpo socialmente investi<strong>do</strong>; o corpo produtivo. A articulação se dariaentre a experiência singular <strong>do</strong> sofrimento, a vivência das necessida<strong>de</strong>s vitais, e adimensão pública <strong>do</strong> indivíduo enquanto cidadão, portanto, porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um conjunto<strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres diante <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, e, sua inserção na <strong>luta</strong> entre <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s e<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>res, aos quais remetem tanto as carências vitais quanto a negação <strong>do</strong>s direitossociais. Em outros termos, assumin<strong>do</strong> o carater dual da saú<strong>de</strong>, como valor universal enúcleo subversivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smontagem da or<strong>de</strong>m social em direção à construção <strong>de</strong> umaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>27


nova correlação <strong>de</strong> forças, o movimento sanitário preten<strong>de</strong>u ressignificar politicamentea noção <strong>de</strong> cidadania, dan<strong>do</strong> a ela um caráter transforma<strong>do</strong>r.A Reforma Sanitária, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta posição política, foi por mim <strong>de</strong>finida comoreferin<strong>do</strong>-se a um processo <strong>de</strong> transformação da norma legal e <strong>do</strong> aparelho institucionalque regulamenta e se responsabiliza pela proteção à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s cidadãos e correspon<strong>de</strong>a um efetivo <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político em direção às camadas populares, cujaexpressão material se concretiza na busca <strong>do</strong> direito universal à saú<strong>de</strong> e na criação <strong>de</strong>um sistema único sob a égi<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> 6 .O dilema reformista, enfrenta<strong>do</strong> como tensão permanente durante to<strong>do</strong> o processoda Reforma Sanitária, estava da<strong>do</strong> a partir da interpelação cidadã e da <strong>luta</strong> pelo direitoà saú<strong>de</strong>, o que implicava necessáriamente tomar o Esta<strong>do</strong> - em seu aparato jurídico eadministrativo - como locus privilegia<strong>do</strong> das práticas reforma<strong>do</strong>ras. Para isto, o que serequeria era a ampliação <strong>de</strong> alianças e a construção <strong>de</strong> um novo consenso e <strong>de</strong> umanova institucionalida<strong>de</strong>, enquanto a transformação social das práticas sanitárias e aconstrução <strong>de</strong> sujeitos políticos e suas estratégias <strong>de</strong> enfrentamento <strong>do</strong> conflito provocavatensões, fragmentações e dissensos.A posição <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> foi consolidada no <strong>do</strong>cumento apresenta<strong>do</strong> no I Simpósiosobre Política Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> na Câmara Fe<strong>de</strong>ral, em outubro <strong>de</strong> 1979, on<strong>de</strong> foiapresentada a plataforma programática <strong>do</strong> movimento sanitário, alcançan<strong>do</strong> a<strong>de</strong>são <strong>de</strong>parlamentares e sindicalistas, dan<strong>do</strong> início a uma trajetória que culminaria com ainscrição <strong>de</strong>stas propostas na Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> 1988. É impressionante reler aquele<strong>do</strong>cumento e verificar o grau <strong>de</strong> amadurecimento da proposta reforma<strong>do</strong>ra, <strong>de</strong>z anosantes <strong>de</strong> se transformar em norma legal, no que se <strong>de</strong>fine uma saú<strong>de</strong> autenticamente<strong>de</strong>mocrática como:“1.o reconhecimento <strong>do</strong> direito universal e inalienável, comum a to<strong>do</strong>s oshomem, à promoção ativa e permanente <strong>de</strong> condições que viabilizem apreservação <strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong>.2. o reconhecimento <strong>do</strong> caráter sócio-econômico global <strong>de</strong>stas condições:emprego, salário, nutrição, saneamento, habitação e preservação <strong>de</strong> níveisambientais aceitáveis.3. o reconhecimento da responsabilida<strong>de</strong> parcial, porém intransferível dasações médicas propriamente ditas, individuais e coletivas, na promoçãoativa da saú<strong>de</strong> da população.4. o reconhecimento, finalmente, <strong>do</strong> caráter social <strong>de</strong>ste Direito e tanto daresponsabilida<strong>de</strong> que cabe à coletivida<strong>de</strong> e ao Esta<strong>do</strong> em sua representação,pela efetiva implementação das condições supra mencionadas 7 ”.Para viabilizar tais propostas, são enunciadas medidas concretas contra oempresariamento da medicina, pela gratuida<strong>de</strong> da atenção médica, pela criação <strong>do</strong>Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, pela atribuição ao Esta<strong>do</strong> da responsabilida<strong>de</strong> na administração<strong>de</strong>ste sistema, que <strong>de</strong>verá coor<strong>de</strong>nar a planificação e execução <strong>de</strong> uma política nacional<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>; pelo estabelecimento <strong>de</strong> mecanismos financeiros capazes <strong>de</strong> sustentar osistema, pela <strong>de</strong>scentralização <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que garanta maior controle social eparticipação política, pela regulação da prática médica privada, pela <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> umaestratégia <strong>de</strong> produção e distribuição <strong>de</strong> medicamentos.A constituição <strong>do</strong> movimento sanitário como ator político a<strong>do</strong>tou como estratégia,por um la<strong>do</strong>, a difusão e a ampliação da consciência sanitária, com vistas a alterar a28 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


correlação <strong>de</strong> forças e a inserir-se no processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong><strong>de</strong>mocrática. Por outro la<strong>do</strong>, sob a ban<strong>de</strong>ira Saú<strong>de</strong> e Democracia (ou seria, Saú<strong>de</strong> éDemocracia?), o movimento da Reforma Sanitária alia a eficiente organização política<strong>do</strong> movimento social com a busca da formulação <strong>de</strong> um projeto alternativo para o sistema<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, alcançan<strong>do</strong> ser, ao início <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização, um ator políticoimpossível <strong>de</strong> ser ignora<strong>do</strong>. Além <strong>de</strong> ter forma<strong>do</strong> quadros técnicos que estavam aptos aassumir a condução das instituições formula<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> políticas, era, inegavelmente, oúnico porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> um projeto reforma<strong>do</strong>r consistente e amplamente acorda<strong>do</strong>.Portanto, a relação da Reforma Sanitária com a <strong>de</strong>mocracia revelou-se com todasua complexida<strong>de</strong>: como formulação <strong>do</strong>utrinária que corporifica, na política pública, osi<strong>de</strong>ais igualitários;como frente <strong>de</strong> <strong>luta</strong> e arena na qual se construiram, reforçaram-se oureformularam-se i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s políticas; como processo <strong>de</strong> transformação da gestão sociale reforma <strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s limites constitucionais.DEMOCRACIA E TEORIAQuan<strong>do</strong> se fala em teoria da <strong>de</strong>mocracia seria mais próprio se falar em<strong>de</strong>mocracias, já que não existe <strong>de</strong>mocracia no singular, mas sim um conjunto diferencia<strong>do</strong><strong>de</strong> concepções e mecanismos <strong>de</strong> governo. Neste senti<strong>do</strong>, seria necessário clarificar <strong>de</strong>qual <strong>de</strong>mocracia estamos falan<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> afirmamos que o movimento sanitárioalcançou vincular saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mocracia, através <strong>de</strong> sua prática teórica e social. Para tanto,torna-se oportuno rever as principais concepções <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia oriundas da teoriapolítica.Bobbio 8 (1994:37) procura simplificar esta difícil tarefa encontran<strong>do</strong> <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>sbásicos para o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia: “É inegável que historicamente “<strong>de</strong>mocracia”tem <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s prevalecentes, ao menos na origem, conforme se ponha em maiorevidência o conjunto das regras cuja observância é necessária para que o po<strong>de</strong>r políticoseja efetivamente distribuí<strong>do</strong> entre a maior parte <strong>do</strong>s cidadãos, as chamadas regras <strong>do</strong>jogo, ou o i<strong>de</strong>al em que um governo <strong>de</strong>mocrático <strong>de</strong>veria se inspirar, que é o da igualda<strong>de</strong>.À base <strong>de</strong>ssa distinção costuma-se distinguir a <strong>de</strong>mocracia formal da substancial...”No caso da <strong>de</strong>mocracia formal, o princípio reitor é a liberda<strong>de</strong>, que prece<strong>de</strong>ria,para os jusnaturalistas a própria organização política, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> os direitos individuaiscomo liberda<strong>de</strong>s individuais que <strong>de</strong>finem os limites da ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Além <strong>do</strong>s direitosindividuais, e para preservá-los da ditadura da maioria, a ênfase é dada nosprocedimentos necessários à garantia <strong>do</strong> gozo das liberda<strong>de</strong>s em uma socieda<strong>de</strong>complexa. O mecanismo <strong>de</strong> representação e as regras <strong>de</strong> eleição daqueles que tomam<strong>de</strong>cisões que afetam à toda a coletivida<strong>de</strong> - o governo representativo - passa a ser o fococentral <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate sobre a <strong>de</strong>mocracia liberal.No caso da <strong>de</strong>mocracia substancial, prepon<strong>de</strong>ra o conteú<strong>do</strong> ético basea<strong>do</strong> nasolidarieda<strong>de</strong> e no <strong>de</strong>senvolvimento integral da comunida<strong>de</strong> política, asseguran<strong>do</strong> aparticipação mais ampla possível à cidadania, quer seja no exercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r político,quer seja na distribuição das riquezas sociais. Esta visão socializante da <strong>de</strong>mocracia éencontrada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os escritos clássicos <strong>de</strong> Rousseau 9 , para quem a soberania não po<strong>de</strong>ser representada, até autores como Lenin 10 , para quem a <strong>de</strong>mocracia burguesa, e seuintrumentos como a representação, são reduzi<strong>do</strong>s a uma mera ditadura <strong>de</strong> classe, semSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>29


se dar conta que sua ausência viria a comprometer as formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia direta <strong>de</strong>base.Os mo<strong>de</strong>los alternativos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia, <strong>de</strong>ntro da teoria política liberal, ganhamsua mais clara conformação na proposta <strong>de</strong> Schumpeter 11 , no caso da <strong>de</strong>mocraciarepresentativa, e no <strong>de</strong> Macpherson 12 , para a <strong>de</strong>mocracia participativa.Schumpeter (1984:337) <strong>de</strong>fine: “o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>mocrático é aquele acor<strong>do</strong> institucionalpara se chegar a <strong>de</strong>cisões políticas em que os indivíduos adquirem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><strong>de</strong>cisão através <strong>de</strong> uma <strong>luta</strong> competitiva pelos votos da população”.Chaui (1990:138) 13 chama a atenção para a relação entre Esta<strong>do</strong> interventor eeconomia oligopólica embutida nesta <strong>de</strong>finição e resume os traços <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo schumpeteriano:a) a <strong>de</strong>mocracia é um mecanismo para escolher e autorizar governos, a partirda existência <strong>de</strong> grupos que competem pela governança, associa<strong>do</strong>s em parti<strong>do</strong>s políticose escolhi<strong>do</strong>s pelo voto; b) a função <strong>do</strong>s votantes não é a <strong>de</strong> resolver problemas políticos,mas a <strong>de</strong> escolher homens que <strong>de</strong>cidirão sobre quais são os problemas políticos e comoresolvê-los - a política é uma questão <strong>de</strong> elites dirigentes; c) a função <strong>do</strong> sistema eleitoral,sen<strong>do</strong> a <strong>de</strong> criar o rodízio <strong>do</strong>s ocupantes <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, tem como tarefa preservar a socieda<strong>de</strong>contra os riscos da tirania; d) o mo<strong>de</strong>lo político baseia-se no merca<strong>do</strong> econômico funda<strong>do</strong>no pressuposto da soberania <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r e da <strong>de</strong>manda que, na qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>maximiza<strong>do</strong>r racional <strong>do</strong>s ganhos, faz com que o sistema político produza distribuiçãoótima <strong>de</strong> bens políticos; e) a natureza instável e consumi<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s sujeitos políticos obrigaà existência <strong>de</strong> um aparato governamental capaz <strong>de</strong> estabilizar as <strong>de</strong>mandas, reforçaracor<strong>do</strong>s e mo<strong>de</strong>rar os conflitos. Em outros termos, a burocracia é imprescindível paramanter um certo equilíbrio entre procura e oferta <strong>de</strong> bens públicos.A crítica a este mo<strong>de</strong>lo assinala o esvaziamento <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> moral da <strong>de</strong>mocraciabem como a pressuposição <strong>de</strong> que o homem político seja essencialmente um consumi<strong>do</strong>re apropria<strong>do</strong>r, reduzin<strong>do</strong> a participação cidadã à escolha <strong>de</strong>ntre as ofertas políticaselaboradas pelas elites, o que provocaria tanto a alienação como a perda <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>da própria representação <strong>de</strong>mocrática (parti<strong>do</strong>s, sistema eleitoral, governo).Macpherson (1978:94) vai mais além ao afirmar que “um sistema <strong>de</strong> elites emcompetição com um baixo nível <strong>de</strong> participação pelos cidadãos é uma exigência <strong>de</strong> umasocieda<strong>de</strong> em que há <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>”.Em uma combinação original <strong>de</strong> pluralismo e corporativismo, Hirst 14 (1992:13)faz igualmente a crítica da <strong>de</strong>mocracia representativa e <strong>do</strong> socialismo, propon<strong>do</strong> comosolução viável “o gerenciamento econômico por meio da coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>sinteresses sociais e da orquestração <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> pela negociação entre os grupos <strong>de</strong>interesse”. Faz em seguida a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> corporativismo e <strong>do</strong> pluralismo (modalida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> representação <strong>de</strong> interesses geralmente vistas como antitéticas por outros autores, jáque implicam em situações opostas <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da relação entre Esta<strong>do</strong> e socieda<strong>de</strong>,e da mesmo quanto à competição no interior da socieda<strong>de</strong>), concluin<strong>do</strong>: “o que se afirmaaqui é que a representação corporativa <strong>do</strong>s interesses organiza<strong>do</strong>s po<strong>de</strong> fortalecer a<strong>de</strong>mocracia, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> aumentar a influência popular sobre o governo, e não a<strong>de</strong>bilita, como supõem muitos críticos <strong>do</strong> corporativismo (1992:13)”. “As formas maissofisticadas <strong>de</strong> pluralismo não preten<strong>de</strong>m abolir a <strong>de</strong>mocracia representativa e substituílapor um sistema novo e único <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia funcional. O que preten<strong>de</strong>m é multiplicaros corpos representativos e complementá-los por formas <strong>de</strong> representação funcional <strong>de</strong>interesses organiza<strong>do</strong>s (1992:15)”.30 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Em outras palavras, trata-se <strong>de</strong> buscar novos mecanismos em um corporativismosocietário e competitivo, que restitua a funcionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocraciarepresentativa, em crise nos dias atuais.Partin<strong>do</strong> também da crítica à <strong>de</strong>mocracia representativa já Macpherson procuraformular um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia participativa enfatizan<strong>do</strong> os movimentos sociais ea ampliação <strong>do</strong> espaço político pela socieda<strong>de</strong> civil. Diferentemente <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>losanteriores - volta<strong>do</strong>s, em termos concretos, para a estruturação da engenhariainstitucional da <strong>de</strong>mocracia - o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Macpherson (1978:114) é mais bem um projeto,com toda a carga <strong>de</strong> utopia que carrega este termo, no qual busca combinar osmecanismos da <strong>de</strong>mocracia representativa com aqueles experimenta<strong>do</strong>s como mo<strong>de</strong>lopiramidal <strong>de</strong> participação direta e indireta <strong>do</strong>s cidadãos, através <strong>de</strong> conselhos. “Acombinação <strong>de</strong> um aparelho <strong>de</strong>mocrático piramidal direto e indireto com a continuação<strong>de</strong> um sistema partidário parece essencial. Nada, a não ser um sistema piramidal,incorporará qualquer <strong>de</strong>mocracia direta numa estrutura <strong>de</strong> âmbito nacional <strong>de</strong> governo,e exige-se certa significativa quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia direta para o que quer que sepossa chamar <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> participação. Ao mesmo tempo, parti<strong>do</strong>s polítcos emconcorrência <strong>de</strong>vem ser presumi<strong>do</strong>s, e parti<strong>do</strong>s cujas reivindicações não casemcoerentemente com o que se possa chamar <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia liberal <strong>de</strong>verão ser repeli<strong>do</strong>s”.O próprio Macpherson (1978:115) acredita que seu mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia participativaseja compatível com a <strong>de</strong>mocracia liberal, a meu ver, no mesmo senti<strong>do</strong> queBobbio (1994:43) afirma que o encontro entre liberalismo e <strong>de</strong>mocracia se dá com ométo<strong>do</strong> <strong>de</strong>mocrático como salvaguarda <strong>do</strong>s direitos fundamentais da pessoa, que, porsua vez, é condição para o correto funcionamento <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>mocrático.Acerca <strong>de</strong>ste encontro nos fala outro teórico da <strong>de</strong>mocracia, Robert Dahl 15 quan<strong>do</strong>i<strong>de</strong>ntifica <strong>do</strong>is eixos histórico-analíticos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento político das socieda<strong>de</strong>s: oeixo da liberalização, referente ao grau <strong>de</strong> institucionalização alcança<strong>do</strong> pelas regras <strong>de</strong>competição política e acatamento <strong>do</strong>s seus resulta<strong>do</strong>s, e o eixo da participação, referin<strong>do</strong>seà proporção da população à qual direitos e liberda<strong>de</strong>s são garanti<strong>do</strong>s (Santos, 1993:27).A situação i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia correspon<strong>de</strong>ria ao encontro entre o<strong>de</strong>senvolvimento máximo nos <strong>do</strong>is eixos, ou seja, quan<strong>do</strong> a maior aceitação das regras<strong>de</strong> competição institucionalizadas também correspon<strong>de</strong>sse à maior participação <strong>do</strong>scidadãos. Como não costuma ocorrer uma sincronia entre a evolução <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is eixosencontramos situações históricas on<strong>de</strong> primeiro houve a institucionalização dacompetição entre as elites, para só <strong>de</strong>pois abrir a participação na competição para apopulação (caso anglo-saxão), e casos em que as oligarquias foram progressivamenteincluin<strong>do</strong> maiores contingentes da população em sistemas <strong>de</strong> participação (nem sempreeleitoral, na América Latina a incorporação se <strong>de</strong>u por meio da proteção social), mesmoque as regras <strong>do</strong> jogo político ou não existissem ou não fossem respeitadas. Para Dahl,o caminho via liberalização é menos instável que a alternativa via participação, chaman<strong>do</strong>atenção para o componente <strong>de</strong> governança requeri<strong>do</strong> para a estabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática.Para Santos, mais <strong>do</strong> que instabilida<strong>de</strong>, a incorporação via políticas sociais, distributivas,em um contexto <strong>de</strong> baixa institucionalização política leva ao populismo irresponsável,que se torna, progressivamente, um elemento antagônico à necessária institucionalizaçãopolítica.A ênfase <strong>de</strong> tais autores na constitucionalização como aspecto fundamental da<strong>de</strong>mocracia liberal, que posteriormente viria a encontrar um conteú<strong>do</strong> mais <strong>de</strong>mocráticocom a ampliação da participação, é crucial para o entendimento <strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mínio assumi<strong>do</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>31


pela conformação <strong>de</strong> um corpo jurídico-institucional nos processos históricos <strong>de</strong><strong>de</strong>mocratização. No entanto, <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> tomar em conta <strong>do</strong>is aspectos cruciais para a<strong>de</strong>mocracia: em primeiro lugar, a necessida<strong>de</strong> que um processo institucional que assegurea igualda<strong>de</strong> básica da cidadania seja acompanha<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> social compatível,isto é, on<strong>de</strong> a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> renda esteja minimizada; e, em segun<strong>do</strong> lugar, o fato <strong>de</strong>que o encontro entre liberalização e participação embora não <strong>de</strong>fina o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>participação a<strong>do</strong>tada, o que quer dizer que não qualifica a <strong>de</strong>mocracia que se funda noencontro entre os <strong>do</strong>is eixos, termina por subsumir a participação ao espaço estrito <strong>do</strong>governo representativo.O dilema entre representação (enquanto formato a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pre<strong>do</strong>minantementepara institucionalização da competição) e participação também se coloca para osmarxistas, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> expresso por Poulantzas 16 (1981:293) em termos da opção polarizadaentre a aceitação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> existente, introduzin<strong>do</strong> modificações secundárias que nãoalteram a natureza <strong>do</strong> estatismo social-<strong>de</strong>mocrata e <strong>do</strong> parlamentarismo liberal, ou,alternativamente, ater-se apenas à <strong>de</strong>mocracia direta <strong>de</strong> base, o que para o autor conduzine<strong>luta</strong>velmente a um <strong>de</strong>spotismo social-<strong>de</strong>mocrata ou a uma ditadura <strong>do</strong>s especialistas.A saída <strong>de</strong>ste dilema seria: “como compreen<strong>de</strong>r uma transformação radical <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> articulan<strong>do</strong> a ampliação e o aprofundamento das instituições da <strong>de</strong>mocraciarepresentativa e das liberda<strong>de</strong>s (que foram também conquista das massas populares)com o <strong>de</strong>senvolvimento das formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia direta na base e a proliferação <strong>de</strong>focos autogestores, esse é o problema essencial <strong>de</strong> uma via <strong>de</strong>mocrática para o socialismoe <strong>de</strong> um socialismo <strong>de</strong>mocrático”.A proposta <strong>de</strong> uma via <strong>de</strong>mocrática para um socialismo <strong>de</strong>mocrático feita porPoulantzas consiste em transformar, fortalecer e/ou criar os centros <strong>de</strong> resistência difusos,que as massas sempre tiveram no seio das re<strong>de</strong>s estatais, em centros efetivos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r,o que não significa uma sucessão progressiva <strong>de</strong> reformas mas um movimento <strong>de</strong>rupturas reais da relação <strong>de</strong> forças no interior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Para tanto, trata-se <strong>de</strong> fugir daperspectiva <strong>de</strong> uma <strong>luta</strong> interna nos aparelhos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> tanto quanto <strong>de</strong> uma estratégia<strong>de</strong> <strong>luta</strong> fisicamente exterior a estes aparelhos, para pensar uma estratégia frontal <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r dual: <strong>luta</strong>s populares <strong>de</strong> movimentos e proliferação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia direta na baseacompanhadas da constituição <strong>de</strong> núcleos reais <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r popular no seio <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (oque não se confun<strong>de</strong> com uma via eleitoral ou parlamentar).Na tentativa <strong>de</strong> sumarizar o <strong>de</strong>bate teórico acerca da <strong>de</strong>mocracia po<strong>de</strong>mosassinalar como pontos cruciais:– a <strong>de</strong>mocracia não po<strong>de</strong> prescindir da dimensão liberal representada pela<strong>de</strong>fesa das liberda<strong>de</strong>s individuais básicas;– por conseguinte, a juridicização das relações políticas é uma consequênciainevitável, já que as liberda<strong>de</strong>s se objetivam em um corpo <strong>de</strong> direitospositivos e instituições estatais;– a cidadania, como dimensão pública <strong>do</strong>s indivíduos resgata a mediaçãoentre Esta<strong>do</strong> e socieda<strong>de</strong>, materializan<strong>do</strong>-se em uma pauta <strong>de</strong> direitos e<strong>de</strong>veres, restituin<strong>do</strong> e revitalizan<strong>do</strong> a comunida<strong>de</strong> política;– a cidadania enquanto um processo <strong>de</strong> inclusão na comunida<strong>de</strong> política éuma expressão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> expansão da hegemonia, pelo qual o Esta<strong>do</strong>restrito se transforma em um Esta<strong>do</strong> amplia<strong>do</strong>;– a burocracia estatal é requerida como fundamento da igualda<strong>de</strong> política<strong>do</strong>s cidadãos;32 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


– neste senti<strong>do</strong>, a cidadania não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser compreendida em todasua complexida<strong>de</strong> contraditória: entre o individual e o coletivo; entre opúblico e o priva<strong>do</strong>; entre homogeneida<strong>de</strong> e singularida<strong>de</strong>;– a participação cidadã nas <strong>de</strong>cisões coletivas que afetam a comunida<strong>de</strong> política<strong>de</strong>ve ser reguardada por um corpo <strong>de</strong> regras reconhecidas e aceitas,em relação à representação <strong>do</strong>s interesses e negociação <strong>do</strong>s conflitos;– o sistema <strong>de</strong> representação com base territorial e a <strong>de</strong>finição da participaçãoatravés <strong>do</strong>s mecanismos <strong>de</strong> organização partidária e <strong>de</strong> competição eleitoraltêm si<strong>do</strong> escolhi<strong>do</strong> como aquele que melhor garante a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>condições para que as opiniões individuais sejam consi<strong>de</strong>radas nas <strong>de</strong>cisõescoletivas;– imprescindíveis para garantir a participação <strong>de</strong>mocrática e a legitimida<strong>de</strong><strong>do</strong> governo, tais mecanismos, são, no entanto, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s comoinsuficientes, em função da distribuição <strong>de</strong>sigual <strong>de</strong> recursos quecondicionam a participação <strong>do</strong>s diferentes grupos na socieda<strong>de</strong> e pelalimita<strong>do</strong> espectro <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão da cidadania em sistemasrepresentativos;– a cidadania, como concepção igualitária, requer a positivação <strong>do</strong>s direitossociais e a atuação estatal como garantia <strong>de</strong> sua vigência;– a dimensão social da <strong>de</strong>mocracia, representada pelo valor atribuí<strong>do</strong> à igualda<strong>de</strong>,revela os limites da <strong>de</strong>mocracia representativa, exigin<strong>do</strong> novas formasconcomitantes <strong>de</strong> participação no po<strong>de</strong>r político;– a combinação <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> representação territorial com uma modalida<strong>de</strong><strong>de</strong> representação corporativa, preten<strong>de</strong> ampliar assim o po<strong>de</strong>r da cidadania,reduzin<strong>do</strong> as disfuncionalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> sistema representativo;– a combinação <strong>do</strong> sistema representativo com a participação direta emorganizações públicas auto-geridas preten<strong>de</strong> transformar a correlação <strong>de</strong>forças, alteran<strong>do</strong> o equilíbrio da hegemonia <strong>do</strong>minante, conforman<strong>do</strong> umnovo Esta<strong>do</strong>, em sua dimensão tanto <strong>de</strong> pacto <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio quanto <strong>de</strong>modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> co-gestão pública implementada por governos locais 17 .SAÚDE: UTOPIA E PRÁTICA SOCIALO projeto da Reforma Sanitária portava um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia cujas baseseram, fundamentalmente: a formulação <strong>de</strong> uma utopia igualitária; a garantia da saú<strong>de</strong>como direito individual e a construção <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r local fortaleci<strong>do</strong> pela gestão social<strong>de</strong>mocrática.Ao traduzir a noção <strong>de</strong> equida<strong>de</strong> como o acesso universal e igualitário ao sistema<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, abolin<strong>do</strong> qualquer tipo <strong>de</strong> discriminação positiva ou negativa, a ReformaSanitária assume a igualda<strong>de</strong> como valor e princípio normativo, formulan<strong>do</strong> um mo<strong>de</strong>lo<strong>de</strong> ética e <strong>de</strong> justiça social funda<strong>do</strong> na solidarieda<strong>de</strong>, em uma comunida<strong>de</strong> políticamenteinclusiva.A proposição <strong>de</strong> um sistema igualitário, em uma das socieda<strong>de</strong>s mais fortementemarcadas pela diferenciação e segmentação sociais revela que o imaginário social nãoA questão <strong>de</strong>mocrática na saú<strong>de</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>33


se <strong>de</strong>ixou abater por esta dura realida<strong>de</strong> e nem mesmo pelo sentimento <strong>de</strong> fracasso dasutopias que se <strong>de</strong>nominou como pós-mo<strong>de</strong>rnismo. Na contra-mão das tendênciaspre<strong>do</strong>minantes, que entronizaram o pragmatismo e o individualismo como valoresuniversais, o mo<strong>de</strong>lo da Reforma Sanitária fun<strong>do</strong>u-se em uma utopia <strong>de</strong>mocráticaigualitária, opção política consistentemente formulada e assumida como mobiliza<strong>do</strong>radas diferentes forças sociais que se somariam a este projeto.Ainda que alguns <strong>de</strong>tratores da Reforma tenham toma<strong>do</strong> esta posição igualitáriacomo ingenuida<strong>de</strong> ou mero proselitismo, face à incapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua operacionalização,certo é que a formulação <strong>de</strong> uma utopia <strong>de</strong>mocrática não po<strong>de</strong>ria ser avaliada em termos<strong>de</strong> viabilida<strong>de</strong>, mas sim <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gerar e concentrar po<strong>de</strong>r. Exatamente porser uma proposta formulada no interior <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> marcada pela vivênciacotidiana da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e da exclusão sociais, a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> uma utopia igualitáriatem o caráter <strong>de</strong> contestação <strong>de</strong> toda a or<strong>de</strong>m política, para além das formas jurídicas.No entanto, a tradução <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> ética e justiça social em um sistema <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso universal e igualitário, garanti<strong>do</strong> legalmente, não se dá <strong>de</strong> formaimediata, muito menos sem <strong>de</strong>ixar transparecer as profundas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s quesegmentam a socieda<strong>de</strong> brasileira e as novas tendências societárias, que valorizam oindividualismo e a produção, em uma economia que pressupõe cada vez mais a inserçãodiferenciada.A convivência e simultaneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> padrões <strong>de</strong>mocráticos basea<strong>do</strong>s nos direitosindividuais e na igualda<strong>de</strong>, existentes na forma legal e a experiência cotidiana <strong>de</strong>a<strong>de</strong>quação à uma socieda<strong>de</strong> altamente hierarquizada e discrimina<strong>do</strong>ra, através <strong>de</strong> seusconheci<strong>do</strong>s rituais <strong>de</strong> passagem entre estes <strong>do</strong>is mun<strong>do</strong>s, 18 bem como a inexistência <strong>de</strong>um projeto nacional <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que tomasse a questão da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> eexclusão como o cerne da questão <strong>de</strong>mocrática, acabaram por minar as possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> concretizar um sistema igualitário <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Ao contrário, em uma situação <strong>de</strong> crise econômica e ajuste liberal, com redução<strong>do</strong> gasto público e da atuação redistributiva <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, como a que enfrentamos nosúltimos anos, a segmentação social manifesta-se como pre<strong>do</strong>mínio da lógicaindividualista, na qual cada um busca <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus interesses egoístas, transforman<strong>do</strong>a política pública em palco da disputa <strong>de</strong> privilégios corporativos. Neste processo, asre<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> se <strong>de</strong>compõem e os intrumentos <strong>de</strong> ação coletiva são reverti<strong>do</strong>sem uma forma <strong>de</strong> anomia sócio-institucional, que perverte o senti<strong>do</strong> público da açãopolítica.A dura verda<strong>de</strong> se revela como aprendizagem a partir das dificulda<strong>de</strong>s naimplantação <strong>do</strong> projeto da Reforma Sanitária: NÃO SE CRIA IGUALDADE POR LEI,ainda que não se consoli<strong>de</strong> a igualda<strong>de</strong> sem a lei.As consequências na organização <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> foram marcantes: cadaum <strong>do</strong>s atores, grupos ou instituições, buscou fugir <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> comsuas regras uniformiza<strong>do</strong>ras, evitan<strong>do</strong> o nivelamento por baixo. A política <strong>de</strong> universalizaçãose transforma em uma focalização perversa; a equida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>forma em umsistema altamente segmenta<strong>do</strong>, a publicização se revela em uma articulação complexae <strong>de</strong>scontrolada entre o público e o priva<strong>do</strong>.A postulação <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong> implicava, por um la<strong>do</strong>, na reconceituação dasaú<strong>de</strong> e, por outro la<strong>do</strong>, na criação <strong>de</strong> uma estrutura institucional que viabilizasse egarantisse o gozo <strong>de</strong>ste direito. Com relação à revisão <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, esta se fazem uma dupla dimensão:34 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


autoritária, ainda que algumas vezes, socialmente progressista. Assim, o processo <strong>de</strong><strong>de</strong>scentralização proposto implicou na alteração das bases <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r local, crian<strong>do</strong> formas<strong>de</strong> co-gestão social, nas quais a socieda<strong>de</strong> organizada passou a ter presença em umExecutivo que se transformava. Este novo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, em muitos aspectos secontradiz com a <strong>de</strong>mocracia representativa, ao criar formas setoriais <strong>de</strong> representaçãodiretamente no Executivo, po<strong>de</strong>r que se fortalece diante da representação tradicional.Em outros aspectos, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar que a conjugação <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocraciadireta em um contexto que preserva a representação política é uma inovação que superaos problema aponta<strong>do</strong>s em relação à simples representação, alcançan<strong>do</strong> transformar-seem um po<strong>de</strong>roso mecanismo <strong>de</strong> construção simultânea <strong>de</strong> cidadãos e <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong>menos submeti<strong>do</strong> ao po<strong>de</strong>r das elites tradicionais.Neste senti<strong>do</strong>, mais <strong>do</strong> que uma profunda reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, o projeto da ReformaSanitária foi a ponta <strong>de</strong> lança na construção <strong>de</strong> uma nova hegemonia, portanto, <strong>de</strong>reconstrução, em novas bases, da relação Esta<strong>do</strong>-socieda<strong>de</strong>.Ao falar <strong>de</strong> hegemonia temos em conta o processo vigoroso <strong>de</strong> empowermentrepresenta<strong>do</strong> pela emergência <strong>de</strong> novos atores no cenário político setorial, como osSecretários Municipais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> com suas forma organizativas próprias, bem como <strong>de</strong>outros grupos como os usuários <strong>do</strong> sistema, a<strong>de</strong>mais da extensão da condição <strong>de</strong>cidadania àqueles que antes a <strong>de</strong>sconheciam, ou aos quais ela era negada.Também é indicativo <strong>do</strong> <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ocorri<strong>do</strong> a construção <strong>de</strong> umanova base técnica ao nível municipal, capaz <strong>de</strong> dar conta das tarefas inerentes à gestãopública da saú<strong>de</strong>, sem estar submetida aos ditames técnicos emana<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um centroúnico <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r.Em resumo, se há uma frente em que a Reforma Sanitária foi amplamente vitoriosaesta é inegávelmente na difusão <strong>de</strong> uma consciência sanitária, revelada na introjeção danoção <strong>de</strong> direito à saú<strong>de</strong> por parte da população usuária <strong>do</strong> sistema. Se, no entanto, estanoção se reduz ao consumo <strong>de</strong> serviços curativos, exames e medicamentos, esta é umaevidência <strong>de</strong> que a reforma, a<strong>de</strong>mais <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocrática, necessitaria reencontrar a suadimensão sanitária.IGUALDADE, SEGMENTAÇÃO, DIVERSIDADEA América Latina retomou o caminho <strong>de</strong>mocrático em meio a uma situaçãoaltamente complexa <strong>de</strong> alteração das estruturas produtivas e reorganização mundial<strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, processo que tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> pelo termo globalização, face aoaumento sem prece<strong>de</strong>ntes da circulação <strong>de</strong> informações, tecnologias, recursos financeiros,bens e pessoas. Tal processo, que tem por base nas transformações tecnológicas,e por fundamento <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r a hegemonia inconteste <strong>do</strong> capital financeiro, está alteran<strong>do</strong>tanto as formas produtivas e as relações econômicas quanto o papel <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>snacionais.Neste contexto, os Esta<strong>do</strong>s latino-americanos, em crise fiscal e administrativa,enfrentam-se com a crescente crise <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> e com a explosão <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas eexpectativas geradas no processo <strong>de</strong> participação <strong>de</strong>mocrática. As opções para incorporara cidadania e garantir os direitos sociais têm si<strong>do</strong> marcadas pela polarização entre36 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


eter, é que a proposta preten<strong>de</strong> combinar a subjetivida<strong>de</strong> com a igualda<strong>de</strong>, não maiscomo homogeneida<strong>de</strong>, mas como igualda<strong>de</strong> complexa, que supõe necessariamente adiversida<strong>de</strong>.Boaventura Santos (1994:207) 23 trabalha a tensão entre cidadania e subjetivida<strong>de</strong>afirman<strong>do</strong> que: ”Ao consistir em direitos e <strong>de</strong>veres, a cidadania enriquece a subjetivida<strong>de</strong>e abre-lhe novos horizontes <strong>de</strong> auto-realização, mas, por outro la<strong>do</strong>, ao fazê-lo por via<strong>do</strong>s direitos e <strong>de</strong>veres gerais e abstratos que reduzem a individualida<strong>de</strong> ao que nela há<strong>de</strong> universal, transforma os sujeitos universais em unida<strong>de</strong>s iguais e intercambiáveis nointerior <strong>de</strong> administrações burocráticas públicas e privadas, receptáculos passivos <strong>de</strong>estratégias <strong>de</strong> produção, enquanto força <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> consumo enquantoconsumi<strong>do</strong>res, e <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação, enquanto cidadãos da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong>massas”.Por este raciocício o autor chega a formular uma proposição geral para a tensionalida<strong>de</strong>entre igualda<strong>de</strong> e diversida<strong>de</strong>: DIREITOS IGUAIS QUANDO A DIFERENÇAINFERIORIZA; DIREITO DE SER DIFERENTE QUANDO A IGUALDADE DESCA-RACTERIZA.Em outros termos, o que está em questão é a <strong>de</strong>mocracia que almejamos, já que aforma que <strong>de</strong>finimos a cidadania projeta o tipo <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> política que queremos.Em sua proposta <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia radical Chantal Mouffe 24 <strong>de</strong>fine-a como exigência<strong>do</strong> reconhecimento da diferença, recuperan<strong>do</strong> tu<strong>do</strong> que tinha si<strong>do</strong> excluí<strong>do</strong> pelo conceitoabstrato <strong>de</strong> homem: o particular, o múltiplo, o heterogêneo. Não se trata <strong>de</strong> negar ouniversalismo, mas <strong>de</strong> particularizá-lo, assim como a igualda<strong>de</strong> complexa não propõe a<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> ou a segmentação <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s.A proposta radical <strong>de</strong> Mouffe (1996:97) assim se expressa: “a concepção <strong>de</strong> cidadaniaque proponho rejeita a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição universalista abstrata <strong>do</strong> público,oposto a um <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, entendi<strong>do</strong> como reino da especialida<strong>de</strong> e da diferença.Consi<strong>de</strong>ra que, embora a i<strong>de</strong>ia mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> cidadão tenha si<strong>do</strong> realmente fundamentalpara a revolução <strong>de</strong>mocrática, constitui hoje um obstáculo à sua extensão”.Creio que chegamos aquí ao ponto central da transformação que se está operan<strong>do</strong>na noção <strong>de</strong> cidadania e no próprio projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia: trata-se <strong>de</strong> rompercom a divisão tradicional entre as esferas <strong>do</strong> público e <strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, reintroduzin<strong>do</strong> atensão permanente entre a liberda<strong>de</strong> e a igualda<strong>de</strong>.Ao invés <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r a cidadania como a dimensão pública <strong>do</strong>s indivíduosparticulariza<strong>do</strong>s no merca<strong>do</strong>, que se homogenizam assim em sua mediação com o Esta<strong>do</strong>,trata-se <strong>de</strong> reconstruir a relação entre Esta<strong>do</strong> e socieda<strong>de</strong> através da valorização <strong>de</strong>uma nova esfera pública não-estatal, permeada pelas diferenças e situada ao nível local,que nos permita reformar <strong>de</strong>mocraticamente o Esta<strong>do</strong>.A reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não é, portanto a sua subordinação ao pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> princípioalocativo <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> em <strong>de</strong>trimento <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais princípios <strong>de</strong> justiça como omérito e a necessida<strong>de</strong>. Isto nos levaria às propostas atuais <strong>de</strong> segmentação <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>ssociais, institucionalizan<strong>do</strong> as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s através das políticas públicas, o quenos remeteria, irremediavelmente, à focalização como negação da cidadania.Também não se trata <strong>de</strong> pensar a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong> um padrão anglosaxão<strong>de</strong> separação entre as esferas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da socieda<strong>de</strong>, mediadas pela cidadaniae pelo sistema <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> interesses, buscan<strong>do</strong> enten<strong>de</strong>r porque afinal nãoSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>39


<strong>de</strong>senvolvemos práticas públicas não patrimoniais e princípios políticos-administrativos<strong>de</strong> accountability.Na verda<strong>de</strong>, a heterogeneida<strong>de</strong> intrínseca à estrutura econômica latino-americanaretraduziu-se no sistema <strong>de</strong> proteção social, transforman<strong>do</strong> benefícios em privilégioscumulativos para os grupos sociais com maior po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> barganha. Por outro la<strong>do</strong>, aimpossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> separar interesses priva<strong>do</strong>s da administração <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,caracterizan<strong>do</strong> o estatal como modalida<strong>de</strong> atual <strong>do</strong> patrimonialismo, ou uso priva<strong>do</strong>da coisa pública, nos impediram <strong>de</strong> chegar a um Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>mocrático e eficiente e a umasocieda<strong>de</strong> mais igualitária.O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estratégias <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um novo teci<strong>do</strong> social,<strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong> e participativo, repõe a nossa especificida<strong>de</strong> regional em um patamardistinto, capaz <strong>de</strong> reivindicar um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia on<strong>de</strong> impere a co-gestão pública,retoman<strong>do</strong> os princípios <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> e igualda<strong>de</strong> em uma complexida<strong>de</strong> que sejacapaz <strong>de</strong> reconhecer a subjetivida<strong>de</strong> e a diversida<strong>de</strong> como parte da cidadania.Para tanto, temos que pensar novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> proteção social que terão comoprincípios articula<strong>do</strong>res o rompimento da vinculação entre proteção social e estrutura<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho; a experimentação das estratégias <strong>de</strong> co-gestão pública em umprocesso articula<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia representativa e participação direta; a combinaçãoda noção <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> com a heterogeneida<strong>de</strong>; a <strong>luta</strong> contra a exclusão sem buscar auniformização e sim a auto-<strong>de</strong>terminação solidária. Nestes marcos, a polarizaçãofocalização/universalização encontra-se <strong>de</strong>finitivamente superada, em um processosimultâneo <strong>de</strong> construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s cidadãos.Para tanto é necessário, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, superar a condição <strong>de</strong> exclusão, já que nãose po<strong>de</strong> falar em cidadania, como igualda<strong>de</strong> e como diversida<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> há exclusão. Emuma socieda<strong>de</strong> em que o trabalho sempre foi um bem escasso, e cuja tendênciainternacional é aprofundar esta diferenciação, não se po<strong>de</strong> pensar em um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>cidadania e <strong>de</strong> proteção social que seja expressão <strong>de</strong>sta segmentação.Estamos, portanto, diante <strong>de</strong> nossa escolha trágica: ou institucionalizamos, viapolíticas sociais, a segmentação e a exclusão, ou construimos um projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia,no qual a gestão pública social seja um <strong>do</strong>s principais mecanismos promotores da inserção<strong>do</strong>s cidadãos em uma nova comunida<strong>de</strong> política, que se expressa em novos formatospara a relação Esta<strong>do</strong>/socieda<strong>de</strong>.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. vi<strong>de</strong> BUCI-GLUCKSMAN, C- Gramsci e o Esta<strong>do</strong> - Paz e Terra, SP, 19802. Editorial, Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, no 1, out/nov/<strong>de</strong>z, SP,19763. Editorial, Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, no 10, abr/mai/jun, RJ, 19804. Editorial, Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, no 3 abr/mai/jun/, SP, 19775. FLEURY, S- Projeto Montes Claros: A Utopia Revisitada, Abrasco, RJ, 19956. FLEURY, Sonia - Reforma Sanitária - Em Busca <strong>de</strong> uma Teoria - Ed Cortez/ ABRASCO, SP, 19897. <strong>CEBES</strong> - “A Questão Democrática na Área <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>”, Revista Saú<strong>de</strong> em Debate no 9, jan/fev/mar,RJ, 1980, pp 11- 1340 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


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Condições <strong>de</strong> Vida


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Saú<strong>de</strong> da População Brasileira: mudanças,superposição <strong>de</strong> padrões e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>*Maurício Lima BarretoEduar<strong>do</strong> Hage CarmoCarlos Antonio <strong>de</strong> S. T. SantosLeila Denise Alves FerreiraINTRODUÇÃONas últimas décadas o país vem experimentan<strong>do</strong> intensas transformações na suaestrutura populacional e nos padrões <strong>de</strong> morbi-mortalida<strong>de</strong>. Este processo se inicia jaem fins da primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> presente século, mediante a queda nas taxas <strong>de</strong>mortalida<strong>de</strong> e se intensifica com uma expressiva queda da natalida<strong>de</strong> a partir da década<strong>de</strong> 70, que se torna mais acentuada que a verificada no componente da mortalida<strong>de</strong>,provocan<strong>do</strong> uma diminuição nas taxas <strong>de</strong> crescimento populacional (Bayer et al, 1982;Patarra, 1995). Outras observações importantes <strong>de</strong>ste processo são o aumento daexpectativa <strong>de</strong> vida ao nascer, que passa <strong>de</strong> 46 anos em 1950 para 66 anos em 1991, e oaumento da proporção <strong>de</strong> i<strong>do</strong>sos, que <strong>de</strong>marcam não só uma profunda modificação naestrutura populacional, mas também aponta para a re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> novas priorida<strong>de</strong>snas políticas sociais (FIBGE, 1992; World Bank, 1993). Na composição da mortalida<strong>de</strong><strong>de</strong>staca-se a substituição das <strong>do</strong>enças infecciosas por <strong>do</strong>enças crônico-<strong>de</strong>generativas.No plano da morbida<strong>de</strong>, mudanças marcantes na organização da socieda<strong>de</strong> levam aocrescimento <strong>do</strong>s agravos <strong>de</strong> natureza ambiental, ocupacional e aqueles relaciona<strong>do</strong>s àviolência. Chama a atenção que para os padrões <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong> não se observa as mesmasmudanças observadas para a mortalida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> este <strong>de</strong>sencontro mais evi<strong>de</strong>nte comrelação às tendências das <strong>do</strong>enças transmissíveis.O resultante <strong>de</strong>ste conjunto complexo <strong>de</strong> fenômenos é o aumento na carga mórbidada população e <strong>de</strong>mandas crescentes sobre o já esgota<strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>.Todas estas mudanças ocorrem em um contexto <strong>de</strong> profundas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, quer sejamentre as diferentes regiões <strong>do</strong> país, quer sejam entre os grupos sociais, apontan<strong>do</strong> parare<strong>de</strong>finições das políticas que consi<strong>de</strong>rem as <strong>de</strong>terminações sociais, econômicas,históricas e culturais da situação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> observada.*Esta é uma versão revista e atualizada <strong>de</strong> trabalho previamente publica<strong>do</strong> pelos autores (Barreto&Carmo, 1995).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>45


FONTES DE DADOSQualquer tentativa <strong>de</strong> apresentar o quadro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população brasileira éuma tarefa sempre incompleta, não só pelas próprias questões conceituais, mesmo sobreo que seja “condição”, “situação” ou “nível” <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas tambem pela disponibilida<strong>de</strong>e qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s existentes. Aqui foram analisadas séries históricas <strong>de</strong> algunsimportantes indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> morbi-mortalida<strong>de</strong> para o país como um to<strong>do</strong> e para asmacrorregiões. Para os indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> foram utiliza<strong>do</strong>s os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Sistema<strong>de</strong> Informação <strong>de</strong> Mortalida<strong>de</strong>, o qual foi operacionaliza<strong>do</strong> para o país a partir <strong>de</strong> 1979e encontra-se disponível em CD-ROMs para utilização em microcomputa<strong>do</strong>res ou empublicações anuais <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> (MS/FNS/CENEPI, 1996a; MS/FNS/CENEPI, 1996b; MS/FNS/CENEPI, 1996c). Foram analisadas as tendências <strong>do</strong>scoeficientes para os principais grupos <strong>de</strong> causas e para causas <strong>de</strong> morte específicas selecionadas.As análises abrangeram o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1980 a 1993, último ano com informaçõesdisponíveis para to<strong>do</strong> o país. Na medida em que o risco <strong>de</strong> morrer por cada uma dascausas estudadas po<strong>de</strong> variar entre os grupos etários, os coeficientes para os diferentesanos foram padroniza<strong>do</strong>s para uma estrutura etária constante, toman<strong>do</strong>-se comoreferência a população <strong>do</strong> país para o ano <strong>de</strong> 1991.No estu<strong>do</strong> da morbida<strong>de</strong> utilizou-se o sistema <strong>de</strong> informação constituí<strong>do</strong> pelasAutorizações <strong>de</strong> Internações Hospitalares, sistematiza<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste 1984 e que hoje cobreem torno <strong>de</strong> 80% <strong>do</strong>s internações ocorridas no país (Buss, 1993). Para tal, proce<strong>de</strong>u-seacesso “on line” ao Sistema SINTESE, <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>/DATASUS, utilizan<strong>do</strong>sedas informações disponíveis para o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1984 a 1995. Utilizou-se como indica<strong>do</strong>r,a proporção <strong>de</strong> internações por grupo <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças ou <strong>do</strong>enças específicas em relação aoconjunto total das internações, para o mesmo local e perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> tempo. Para a análisedas <strong>do</strong>enças transmissíveis utilizou-se ainda <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Sistema <strong>de</strong> Vigilância Epi<strong>de</strong>miológica<strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, que agrega informações sobre as Doenças <strong>de</strong>Notificação Compulsória, para o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1980 a 1993 (MS/FNS/CENEPI, 1992a;MS/FNS/CENEPI, 1992b; MS/FNS/CENEPI, 1993a; MS/FNS/CENEPI, 1993b). Paraas <strong>do</strong>enças que não são <strong>de</strong> notificação obrigatória, utilizou-se <strong>de</strong> informações publicadas<strong>do</strong>s programas <strong>de</strong> controle específicos, ou resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> inquéritos ou pesquisasfeitas no país. Na construção <strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong> e mortalida<strong>de</strong>, utilizou-seos da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s Censos Demográficos <strong>de</strong> 1980 e 1991 (FIBGE, 1984; FIBGE, 1987; FIBGE,1990; FIBGE, 1992; FIBGE), realizan<strong>do</strong>-se estimativas das populações nos perío<strong>do</strong>s extracensitárioscom base em taxas geométricas <strong>de</strong> crescimento.MODIFICAÇÕES NOS PADRÕES DE MORBI-MORTALIDADEPara enten<strong>de</strong>rmos as modificações na estrutura <strong>de</strong>mográfica faz-se necessáriouma apresentação das recentes tendências no padrão <strong>de</strong> morbi-mortalida<strong>de</strong>. Uma dasmais importantes tendências diz respeito à redução nas taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil (/1000 nasci<strong>do</strong>s vivos), intensificada à partir da década <strong>de</strong> 60, quan<strong>do</strong> apresentava umamédia nacional <strong>de</strong> 117, passan<strong>do</strong> para 50,2, na década <strong>de</strong> 80 (FIBGE, 1992). Na análisedas informações para a última década, verifica-se que houve uma redução nacionalmédia <strong>de</strong> 32,6% (60,2/1000 NV em 1981 para 45,0/1000 NV em 1993), ten<strong>do</strong> esta reduçãoocorri<strong>do</strong> em diferentes intensida<strong>de</strong>s nas diversas macro-regiões. Importante ressaltar46 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


que se verifica um aumento nas taxas para todas as regiões, à partir <strong>de</strong> 1991, o quemerece algumas consi<strong>de</strong>rações: a primeira <strong>de</strong>las diz respeito ao fato <strong>de</strong> que o número<strong>de</strong> nasci<strong>do</strong>s vivos para os anos <strong>de</strong> 1991 a 1993 foram projeta<strong>do</strong>s à partir da última sériedisponível (FIBGE, 1992), seguin<strong>do</strong> portanto, uma tendência <strong>de</strong>crescente; o númeroabsoluto <strong>de</strong> óbitos em menores <strong>de</strong> 1 ano aumentou à partir <strong>de</strong> 1991, o que não pô<strong>de</strong> serverifica<strong>do</strong>, mediante consulta as informações disponíveis, se po<strong>de</strong> ser atribuí<strong>do</strong> a umamelhora na base <strong>de</strong> informações.As tendências para os <strong>do</strong>is componentes da taxa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil (neonatal- < 28 dias e pós-neonatal - 28 dias à 1 ano) evi<strong>de</strong>nciam que esta redução foi maisacentuada para a mortalida<strong>de</strong> infantil pós-neonatal. Este componente associa-se maisfortemente com fatores relaciona<strong>do</strong>s ao ambiente, concentran<strong>do</strong> uma maior proporção<strong>de</strong> óbitos por <strong>do</strong>enças infecciosas, particularmente as infecções intestinais, enquantoque a mortalida<strong>de</strong> neo-natal relaciona-se mais fortemente com fatores liga<strong>do</strong>s àassistência pré e pós-natal.Outra importante tendência nos padrões epi<strong>de</strong>miológicos, com evi<strong>de</strong>ntes reflexosna estrutura <strong>de</strong>mográfica, diz respeito às modificações na composição da mortalida<strong>de</strong>por grupo <strong>de</strong> causas. Assim, as <strong>do</strong>enças infecciosas e parasitárias (DIP), que representavam45,7% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> óbitos ocorri<strong>do</strong>s no país, em 1930, representaram apenas6,5% <strong>do</strong>s óbitos no ano <strong>de</strong> 1990 (excluí<strong>do</strong> <strong>do</strong> total <strong>de</strong> óbitos as causas mal <strong>de</strong>finidas).Enquanto isto, as <strong>do</strong>enças cardiovasculares (DCV), seguin<strong>do</strong> uma tendência inversa,aumentaram sua participação <strong>de</strong> 11.8% para 37.4%, <strong>do</strong> total <strong>do</strong>s óbitos ocorri<strong>do</strong>s nomesmo perío<strong>do</strong>. Analisan<strong>do</strong> a evolução recente das taxas padronizadas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>(x10 -5 habitantes) para os principais grupos <strong>de</strong> causas <strong>de</strong>finidas, observa-se que as DCVapresentavam uma taxa <strong>de</strong> 194,2 em 1993, seguidas das causas externas (72,9) e dasneoplasias, com taxas bem próximas (72,6). Ao analisarmos as tendências nas taxas <strong>de</strong>mortalida<strong>de</strong> cabe pontuar que, para o ano <strong>de</strong> 1991 observou-se redução importante emto<strong>do</strong>s os grupos <strong>de</strong> causa, retornan<strong>do</strong>, nos anos seguintes, aos níveis espera<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>com a tendência observada para toda a série histórica. Tal distorção po<strong>de</strong> ser atribuídaa possíveis problemas no SIM para o ano em questão, o que entretanto necessita serconfirma<strong>do</strong>.Enquanto que para as DCV observou-se uma tendência <strong>de</strong> estabilização nas taxas<strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>, com uma discreta redução a partir <strong>de</strong> 1988, as neoplasias apresentaramtendência <strong>de</strong> crescimento constante em to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong> e as causasexternas, após uma perío<strong>do</strong> ascen<strong>de</strong>nte, ten<strong>de</strong> a estabilizar-se a partir <strong>do</strong> final da <strong>de</strong>cáda<strong>de</strong> 1980. As <strong>do</strong>enças respiratórias que não tinham uma participação expressiva nacomposição da mortalida<strong>de</strong>, em décadas anteriores, têm apresenta<strong>do</strong> uma tendência <strong>de</strong>estabilida<strong>de</strong> na última década e figurou como a quarta causa <strong>de</strong> óbito na populaçãototal em 1993. Por fim, as <strong>do</strong>enças infecciosas e parasitárias persistem com a tendência<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte iniciada em décadas anteriores, ten<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> uma taxa <strong>de</strong> 28,5 óbitosx10 -5 habitantes em 1993.O aumento significativo da participação das <strong>do</strong>enças crônico-<strong>de</strong>generativas nacomposição da mortalida<strong>de</strong>, po<strong>de</strong> ser melhor apreendi<strong>do</strong> verifican<strong>do</strong>-se as taxas <strong>de</strong>mortalida<strong>de</strong> para algumas causas específicas para o ano <strong>de</strong> 1993. A <strong>do</strong>ença cérebrovascularaguda mal <strong>de</strong>finida representou a principal causa básica <strong>de</strong> óbito, entre ascausas diagnosticadas (taxa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 41,3 x10 -5 habitantes). Para o país comoum to<strong>do</strong>, as seguintes <strong>do</strong>enças crônico-<strong>de</strong>generativas apresentaram uma importanteexpressão no quadro <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>: infarto agu<strong>do</strong> <strong>do</strong> miocárdio (2a causa, com taxaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>47


<strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 40,8 x10 -5 habitantes), insuficiência cardíaca (3a causa, com taxa <strong>de</strong>mortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 28,7 x10 -5 habitantes) e diabetes mellitus (4a causa, com taxa <strong>de</strong>mortalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> 17,0 x10 -5 habitantes). É interessante notar que a mortalida<strong>de</strong> das duasprincipais <strong>do</strong>enças cardio-vasculares apresentam tendências bastantes similares,observan<strong>do</strong>-se reduções em suas taxas à partir <strong>de</strong> 1988, sen<strong>do</strong> que para infarto agu<strong>do</strong><strong>do</strong> miocárdio, verificamos uma tendência <strong>de</strong> redução mais consistente na região Su<strong>de</strong>ste.As taxas por insuficiência cardíaca, evi<strong>de</strong>nciam uma redução constante para toda asérie histórica. Diferente <strong>do</strong> que tem si<strong>do</strong> observa<strong>do</strong> para as <strong>do</strong>enças cardio-vasculares,verifica-se para a diabetes uma tendência ascen<strong>de</strong>nte constante nas taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>.Para as neoplasias malignas, as principais localizações, no sexo masculino sãotraqueia, brônquios e pulmão, segui<strong>do</strong> <strong>de</strong> estômago, enquanto que para o sexo feminino,<strong>de</strong>stacam-se as localizações em mama, estômago e colo <strong>de</strong> útero.Entre as causas externas <strong>de</strong>stacam-se os aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> trânsito por veículo a motore homícidio por arma <strong>de</strong> fogo, sen<strong>do</strong> esta última a que apresentou as maiores taxas <strong>de</strong>crescimento no <strong>de</strong>correr da última década.A redução acentuada da mortalida<strong>de</strong> por DIP, que se verifica para o país comoum to<strong>do</strong>, po<strong>de</strong> ser em gran<strong>de</strong> parte atribuída à drástica redução verificada para as<strong>do</strong>enças infecciosas intestinais (DII) que, entre 1980 e 1993, teve uma redução na suataxa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> da or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> 68,2%, enquanto que para todas as <strong>de</strong>mais <strong>do</strong>ençasinfecciosas <strong>do</strong> capítulo das DIPs, agrupadas, a redução foi <strong>de</strong> 23,6%. Como consequência,as <strong>do</strong>enças infecciosas intestinais, que representavam 57,6% <strong>do</strong>s óbitos por DIPs em1980, reduzem sua participação para 35,1%, em 1993. Ainda assim, as DII em conjuntocom as septicemias, <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> Chagas e tuberculose, são responsáveis por 86% <strong>do</strong>sóbitos registra<strong>do</strong>s por causas infecciosas. O impacto das DIPs é maior ainda, quan<strong>do</strong>consi<strong>de</strong>ramos o grupo <strong>de</strong> menores <strong>de</strong> 1 ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. Neste grupo etário, as <strong>do</strong>ençasinfecciosas intestinais foram responsáveis por 72,2% <strong>do</strong>s óbitos registra<strong>do</strong>s por DIPs,em 1993. Representaram, portanto, a 2 a causa <strong>de</strong> óbito por todas as causas <strong>de</strong>finidas,com uma participação inferior ao que foi registra<strong>do</strong> para os óbitos por outras afecçõesrespiratórias <strong>do</strong> feto e RN.Por fim, para as <strong>do</strong>enças respiratórias, <strong>de</strong>staca-se a participação das pneumonias,a 5a causa com maior participação na mortalida<strong>de</strong> geral e que representou 45,7% <strong>do</strong>total <strong>de</strong> óbitos atribuí<strong>do</strong> a este grupo em 1993. Na última década vem apresentan<strong>do</strong>uma discreta tendência <strong>de</strong> redução nas taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>, sen<strong>do</strong> que em 1980correspondia a 60% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> óbitos por causas respiratórias, reduzin<strong>do</strong> para 45,7%no ano <strong>de</strong> 1993. Deve-se lembrar que as pneumonias representam um conjunto <strong>de</strong><strong>do</strong>enças infecciosas, mas que são classificadas em outro grupo. Por outro la<strong>do</strong>, temhavi<strong>do</strong> um aumento na proporção <strong>do</strong>s óbitos atribuí<strong>do</strong>s à obstrução crônica das viasrespiratórias, <strong>de</strong> 4,7% para 21% no perío<strong>do</strong>.Ao analisarmos os indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> verificam-se alguns problemasrelaciona<strong>do</strong>s a sua qualida<strong>de</strong>, a<strong>de</strong>mais da inesperada redução nas taxas em 1991, comoja referi<strong>do</strong>. O primeiro <strong>de</strong>les diz respeito à proporção <strong>de</strong> óbitos por causas mal <strong>de</strong>finidasque colocou-se como segun<strong>do</strong> “grupo <strong>de</strong> causas” no conjunto da mortalida<strong>de</strong>. Deve-seressaltar que, apesar da sua tendência <strong>de</strong> lenta redução para o país como um to<strong>do</strong>,persiste ainda em níveis bastante eleva<strong>do</strong>s nas regiões Nor<strong>de</strong>ste e Norte, refletin<strong>do</strong> as<strong>de</strong>ficiências no sistema <strong>de</strong> assistência médica. No que diz respeito à proporção dapopulação coberta com informações regulares para mortalida<strong>de</strong>, são registra<strong>do</strong>s níveisinferiores a 70% no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, também para estas duas regiões. Estes <strong>do</strong>is48 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


fenômenos cita<strong>do</strong>s ten<strong>de</strong>m a reduzir os valores das taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> por causas<strong>de</strong>finidas, o que interfere na magnitu<strong>de</strong> das taxas e nas comparações inter-regionais.Porém, acreditamos que tenham uma menor interferência nas suas tendências temporais.As tendências nos indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong> apresentam algumas diferenças,quan<strong>do</strong> comparadas com as tendências observadas nos indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>,particularmente no que se refere às <strong>do</strong>enças infecciosas. Neste grupo, po<strong>de</strong> ser citadauma série <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças que apresentam tendências nitidamente crescentes. Como exemplopo<strong>de</strong>mos citar a malária e as leishmanioses, possivelmente associadas ao processo <strong>de</strong>ocupação <strong>do</strong> espaço urbano. Neste particular, a leishmaniose visceral representa a melhorexpressão, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à sua introdução e difusão em gran<strong>de</strong>s centros urbanos <strong>do</strong> país(Monteiro et al, 1994).A rápida disseminação da AIDS no país tem trazi<strong>do</strong> importantes reflexos na ocorrência<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças infecciosas associadas, particularmente a tuberculose. Aexpansão da <strong>de</strong>ngue, que a<strong>de</strong>mais <strong>de</strong> acometer gran<strong>de</strong>s contingentes populacionaiscom a sua forma clássica, apresenta sombrias expectativas em relação a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> ocorrência <strong>de</strong> formas hemorrágicas. Por fim, a hanseníase vem apresentan<strong>do</strong> umaconstante tendência <strong>de</strong> aumento na incidência, com maior incremento na região Nor<strong>de</strong>ste,<strong>de</strong>ven<strong>do</strong> refletir, não só a melhoria na capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> casos novos, comotambém uma real expansão <strong>de</strong>sta <strong>do</strong>ença no país (Waldman et al, 1995).A análise das tendências para a tuberculose evi<strong>de</strong>ncia que, no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1980 a1992, houve uma pequena redução na incidência até 1987, segui<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma estabilizaçãono perío<strong>do</strong> subsequente. Esta tendência é, em gran<strong>de</strong> parte, <strong>de</strong>finida pelo comportamentoda forma pulmonar que representa em torno <strong>de</strong> 85% <strong>de</strong> todas as formas <strong>de</strong> tuberculose(Hijjar, 1994).O controle da transmissão vetorial <strong>do</strong> T. Cruzi tem feito <strong>de</strong>crescer a incidência eprevalência da infecção chagásica nos grupos populacionais mais jovens, como temsi<strong>do</strong> evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> por inquérito sorológico em escolares, em curso no país (Silveira &Resen<strong>de</strong>, 1994). Tal fato coloca a transmissão sanguínea e, em menor escala, a transmissãocongênita como novos aspectos <strong>de</strong> interesse, para o controle <strong>de</strong>sta <strong>do</strong>ença.A esquistossomose mansônica, apesar da queda da prevalência observada na etapainicial <strong>do</strong> tratamento em massa, vem apresentan<strong>do</strong>, no últimos anos, um novo patamar<strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong>, que resiste às medidas <strong>de</strong> controle (Carmo et al, 1993). Para a cólera,passa<strong>do</strong> o <strong>de</strong>scenso que se seguiu à sua explosiva reintrodução no país, mantém-se ascondições para a sua en<strong>de</strong>mização, particularmente na Região Nor<strong>de</strong>ste.Algumas <strong>do</strong>enças infecciosas apresentam nítidas tendências <strong>de</strong>crescentes,<strong>de</strong>stacan<strong>do</strong>-se a evolução da incidência das <strong>do</strong>enças imunopreveníveis, com evi<strong>de</strong>nteimpacto na morbida<strong>de</strong> infantil. Para este grupo, o exemplo mais clássico é representa<strong>do</strong>pela poliomielite, a qual <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final da década passada está com a sua transmissãointerrompida em to<strong>do</strong> o continente americano. Impacto semelhante, resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> altascoberturas vacinais alcançadas, vem atualmente sen<strong>do</strong> verifica<strong>do</strong> para o sarampo, comdrásticas reduções nos seus níveis <strong>de</strong> incidência. Tendências <strong>de</strong>crescentes têm tambémsi<strong>do</strong> observadas para coqueluche e difteria e, em menor dimensão, para o tétano neonatal.Com base no sistema <strong>de</strong> informação hospitalar <strong>do</strong> SUS também se evi<strong>de</strong>ncia,para as <strong>do</strong>enças transmissíveis, um panorama diferente ao que tem si<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong>para os indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>, na medida em que não se observa tendência <strong>de</strong>redução na proporção <strong>de</strong> internações por este grupo em relação ao total <strong>de</strong> internaçõesSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>49


no país. Assim, nos últimos 12 anos, para o país como um to<strong>do</strong>, as <strong>do</strong>enças classificadasno capítulo das DIPs têm representa<strong>do</strong> valores próximos aos 10% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> internações,sen<strong>do</strong> estes valores superiores para as regiões Norte e Nor<strong>de</strong>ste. Na composição dascausas <strong>de</strong> internações por DIPs, para o ano <strong>de</strong> 1995, <strong>de</strong>stacam-se as <strong>do</strong>enças infecciosasintestinais, que representaram 70,9% <strong>do</strong> total no país e 79,2%, na região Nor<strong>de</strong>ste.No que diz respeito aos indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong> para as <strong>do</strong>enças crônico-<strong>de</strong>generativas,existem poucas informações disponíveis para sua mensuração, na medidaem que não foram <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s sistemas para o registro sistemático <strong>de</strong>stes agravos. Asua apreensão só é possível mediante resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> inquéritos específicos, realiza<strong>do</strong>spara algumas <strong>do</strong>enças. Assim, para a diabetes, inquérito realiza<strong>do</strong> em 9 capitais econclui<strong>do</strong> em 1988, registrou uma prevalência média <strong>de</strong> 7.6 % na população <strong>de</strong> 30 a 69anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> (Comissão Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra Central <strong>do</strong> Estu<strong>do</strong> sobre Prevalência <strong>de</strong> DiabetesMellitus no Brasil, 1992). Os registros <strong>de</strong> câncer <strong>de</strong> base populacional, existentes em 6(seis) capitais, além <strong>de</strong> Campinas, se constituem em importante fonte <strong>de</strong> informação e,em seu conjunto, mostram importantes diferenças regionais na ocorrência das neoplasias.De uma maneira geral, na população masculina pre<strong>do</strong>minam as neoplasias <strong>de</strong> localizaçãoem estômago, pulmão, próstata e colon/reto, enquanto que na população feminina asprincipais localizações são colo uterino e mama (Koifman, 1995).Também para as <strong>do</strong>enças crônicas o Sistema <strong>de</strong> Informações Hospitalares possibilitauma análise <strong>de</strong> tendências históricas e das diversida<strong>de</strong>s regionais. Analisan<strong>do</strong>-seas tendências da participação nas internações para os seus diversos sub-grupos, noconjunto das <strong>do</strong>enças que tiveram <strong>de</strong>staque como causa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> - excluin<strong>do</strong>-seportanto causas obstétricas, psiquiátricas, entre outras - as <strong>do</strong>enças cardiovascularesrepresentaram a segunda causa <strong>de</strong> internação. É interessante notar que as <strong>do</strong>enças cardiovascularesvêm apresentan<strong>do</strong> uma tendência lenta, porém constante, <strong>de</strong> reduzir a suaparticipação proporcional no total <strong>de</strong> internações. Tal redução tem si<strong>do</strong> observada parao país como um to<strong>do</strong>, à exceção da região Sul, aon<strong>de</strong> tem apresenta<strong>do</strong> tendência <strong>de</strong>estabilida<strong>de</strong> no perío<strong>do</strong>. As neoplasias, com uma participação média anual <strong>de</strong> 3% <strong>do</strong>total das internações, apresenta tendência estável no perío<strong>do</strong>.Para as <strong>do</strong>enças respiratórias e as causas externas também são observadastendências estáveis em toda a série histórica. Enquanto que as <strong>do</strong>enças respiratóriassão responsáveis por aproximadamente 16% das internações - sen<strong>do</strong> mais da meta<strong>de</strong>representa<strong>do</strong> pelas pneumonias - as causas externas contribuem com uma participaçãopróxima aos 5% <strong>do</strong> total <strong>de</strong> internações. Vale ressaltar que ao consi<strong>de</strong>rarmos to<strong>do</strong>s osgrupos <strong>de</strong> causa <strong>de</strong> internações, incluin<strong>do</strong>-se aqueles que não foram analisa<strong>do</strong>s nadiscussão sobre mortalida<strong>de</strong>, verificamos que os motivos relaciona<strong>do</strong>s à gravi<strong>de</strong>z,parto e puerpério (CID - Cap. 11) respon<strong>de</strong>m pela maior proporção das internações(25,8%).Também no que se refere às informações sobre morbida<strong>de</strong>, algumas questõesrelativas à qualida<strong>de</strong> merecem consi<strong>de</strong>ração. A primeira <strong>de</strong>las, já pontuada, diz respeitoao fato <strong>de</strong> que, para as informações <strong>de</strong> base não hospitalar, existe um sistema para as<strong>do</strong>enças transmissíveis, enquanto que para as <strong>de</strong>mais <strong>do</strong>enças, as fontes <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s selimitam aos inquéritos que são realiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> forma assistemática ou nos esparsosregistros <strong>de</strong> câncer. Para as informações <strong>de</strong> base hospitalar, <strong>de</strong>ve-se ressaltar que o SIHcobre informações para todas as unida<strong>de</strong>s financiadas pelo SUS, o que correspon<strong>de</strong> àaproximadamente 80% <strong>do</strong> total das internações realiza<strong>do</strong>s no país, como já referi<strong>do</strong>.A<strong>de</strong>mais, a distribuição da re<strong>de</strong> hospitalar e o seu acesso não são homogêneos para50 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


to<strong>do</strong>s os espaços <strong>do</strong> território nacional, com um percentual importante <strong>de</strong> municípiossem unida<strong>de</strong>s hospitalares.Alguns contrastes emergem na compatibilização das informações nas categorias<strong>de</strong> morbida<strong>de</strong> ou mortalida<strong>de</strong>, chaman<strong>do</strong> à atenção as diferentes or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> frequênciana participação <strong>do</strong>s diversos grupos <strong>de</strong> causas. Tal quadro justifica-se pelo fato <strong>de</strong>que a ocorrência <strong>do</strong> óbito é uma expressão bem <strong>de</strong>finida da gravida<strong>de</strong> da <strong>do</strong>ença,enquanto que a hospitalização não segue necessariamente esta or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação.Como exemplo, tem-se a gran<strong>de</strong> proporção <strong>de</strong> internações pelo grupo <strong>de</strong> causasrelacionadas à gravi<strong>de</strong>z, parto e puerpério, que não configuram no seu conjunto umasituação <strong>de</strong> gravida<strong>de</strong>. Porém, aqui <strong>de</strong>vemos chamar a atenção para a questão damortalida<strong>de</strong> materna, a qual apesar <strong>de</strong> sua aparente baixa magnitu<strong>de</strong>, apresenta, noBrasil, taxas consi<strong>de</strong>radas altas quan<strong>do</strong> comparadas a outros países, refletin<strong>do</strong> as<strong>de</strong>ficiências na assistência pré e pós-natal (Laurenti, 1995). Por outro la<strong>do</strong>, algunsagravos po<strong>de</strong>m evoluir para quadros severos, porém com baixa letalida<strong>de</strong> ou quesejam potencialmente reversíveis, mediante ações por parte <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> assistênciaà saú<strong>de</strong>, fenômeno que <strong>de</strong>ve acontecer com relação às <strong>do</strong>enças respiratórias, explican<strong>do</strong>as diferenças na or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> frequência entre os seus indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mortalida<strong>de</strong>.DESIGUALDADES NA SITUAÇÃO DE SAÚDEO indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> morbi-mortalida<strong>de</strong> da população brasileira apresenta<strong>do</strong>s acimapermitem uma comparação com outros países <strong>do</strong> terceiro mun<strong>do</strong>. Tem si<strong>do</strong> fartamente<strong>do</strong>cumentada a situação para<strong>do</strong>xal <strong>do</strong> Brasil <strong>de</strong> apresentar indica<strong>do</strong>res econômicos emníveis incompatíveis aos <strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res sociais, incluin<strong>do</strong>-se os <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, como porexemplo, taxa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil e expectativa <strong>de</strong> vida ao nascer (Fleury, 1995;Ometto, 1995). Ainda que observe-se uma tendência <strong>de</strong> melhoria para alguns indica<strong>do</strong>res<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no Brasil, a reduzida velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sta tendência, proporciona a persistência,ou mesmo ampliação das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong> com outros países. Assim,a Argentina apresentou em 1991 uma expectativa <strong>de</strong> vida ao nascer 5 anos maior que oBrasil, o Uruquai 7 anos e o México 4 anos, apesar <strong>de</strong> suas conhecidas <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>sregionais, caben<strong>do</strong> ressaltar que os quatro países têm níveis <strong>de</strong> renda per-capita similares.No perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1970 a 1991 houve redução das taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil (TMI) naArgentina, no Uruguai, no México, no Brasil, bem como na gran<strong>de</strong> maioria <strong>do</strong>s países<strong>do</strong> globo. Entretanto, houve, naquele perío<strong>do</strong>, um aumento da razão entre as taxas <strong>do</strong>Brasil com relação as taxas <strong>de</strong> cada um <strong>do</strong>s 3 outros países cita<strong>do</strong>s. Assim, para 1970, ataxa média <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil no Brasil era 1,32, 1,83 e 2,07 vezes maior que a <strong>do</strong>México, Argentina e Uruguai, respectivamente. Em 1991, estas razões passam a ser,respectivamente, <strong>de</strong> 1,61, 2,32 e 2,76, representan<strong>do</strong> um incremento médio <strong>de</strong> aproximadamente30% no perío<strong>do</strong> analisa<strong>do</strong>. Em outras palavras, nas duas últimas décadas,apesar da queda observada nas taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil no Brasil, nos distanciamos,em termos relativos, <strong>de</strong> outros países latino-americanos (World Bank, 1993).Outra or<strong>de</strong>m <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, não menos importante, diz respeito às diferençasobservadas nos indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> entre as regiões <strong>do</strong> Brasil. Apesar da intensa quedaverificada nas TMI para o país como um to<strong>do</strong>, verifica-se que isto ocorreu com diferentesintensida<strong>de</strong>s nas suas várias regiões. Assim, na década <strong>de</strong> 30, a região Su<strong>de</strong>steSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>51


apresentava TMI <strong>de</strong> 153, a região Sul 127 e a região Nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong> 168. Portanto, a regiãoNor<strong>de</strong>ste apresentava taxas 10% superiores à região Su<strong>de</strong>ste e 32% superiores à RegiãoSul. Para o ano <strong>de</strong> 93, o Nor<strong>de</strong>ste apresentava TMI 98% maior <strong>do</strong> que a registrada naregião Su<strong>de</strong>ste e 163% maior <strong>do</strong> que a da Região Sul.As <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entre as regiões po<strong>de</strong>m ser também visualizadas nos indica<strong>do</strong>resrelaciona<strong>do</strong>s à composição da mortalida<strong>de</strong>, para os grupos <strong>de</strong> causa analisa<strong>do</strong>s nopresente estu<strong>do</strong>. Enquanto que para as regiões Sul e Su<strong>de</strong>ste, as DIPs já representavama quinta causa <strong>de</strong> óbito em 1980, na região Nor<strong>de</strong>ste este grupo representava a segundacausa <strong>de</strong> óbito neste ano e a quarta causa em 1993 (excluin<strong>do</strong>-se os sinais e sintomasmal <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s). As <strong>do</strong>enças cardio-vasculares, por sua vez, representavam a primeiracausa <strong>de</strong> óbito para todas as regiões, já em 1980. Entretanto, em 1993 este grupo eraresponsável por 34,7% e 36.5% <strong>do</strong>s óbitos nas regiões Su<strong>de</strong>ste e Sul, respectivamente,enquanto que na região Nor<strong>de</strong>ste representava 31.1% <strong>do</strong>s óbitos, com causa <strong>de</strong>finida.As diferenças interregionais são também evi<strong>de</strong>nciadas nos indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong>morbida<strong>de</strong>. Assim, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>-se a participação <strong>de</strong>stes grupos <strong>de</strong> causa na composiçãoda morbida<strong>de</strong> hospitalar (excluin<strong>do</strong> portanto, motivos relaciona<strong>do</strong>s à assistência aoparto) verifica-se que as <strong>do</strong>enças cardio-vasculares representam a segunda causa <strong>de</strong>internações nas regiões Sul e Su<strong>de</strong>ste em to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1984 a 1995, em seguida às<strong>do</strong>enças respiratórias. Nestas duas regiões, no ano <strong>de</strong> 1995, as DIPs representaram aterceira causa <strong>de</strong> internações. Na região Nor<strong>de</strong>ste, as DIPs foram a segunda causa <strong>de</strong>internações, enquanto que as <strong>do</strong>enças cardio-vasculares representaram a terceira causaem to<strong>do</strong> o perío<strong>do</strong>.Outros indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> base não hospitalar, também revelam as<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s interregionais, como as maiores taxas <strong>de</strong> incidência e/ou prevalênciapara a cólera, <strong>de</strong>ngue, esquistossomose, <strong>do</strong>ença <strong>de</strong> Chagas, leishmanioses, para as regiõesNorte, Nor<strong>de</strong>ste e Centro-Oeste. Diferenças importantes são ainda observadas no esta<strong>do</strong>nutricional das populações. Resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>do</strong>is gran<strong>de</strong>s inquéritos realiza<strong>do</strong>s no paísem 1975 e 1989, permitem verificar que, para o país como um to<strong>do</strong> neste perío<strong>do</strong>, houveuma redução <strong>de</strong> 61% da <strong>de</strong>snutrição infantil (medida através <strong>do</strong> <strong>de</strong>ficit no índice altura/ida<strong>de</strong>). No entanto, a análise <strong>do</strong>s da<strong>do</strong>s para as regiões permite constatar que a maiorredução ocorreu nas regiões Sul e Su<strong>de</strong>ste, as quais já apresentavam um menor índice<strong>de</strong> <strong>de</strong>snutrição no início <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>. Em 1975 a prevalência <strong>de</strong> <strong>de</strong>snutriçãoinfantil no Nor<strong>de</strong>ste era 2,3 vezes maior que no Su<strong>de</strong>ste, enquanto que em 1989 já era5,1 vezes maior. As diferenças entre classes sociais também aumentaram, pois os 25%mais pobres, em 1979, tinham uma prevalência 5,0 vezes maior <strong>de</strong> <strong>de</strong>snutrição,compara<strong>do</strong>s aos 25% mais ricos; já em 1989 esta diferença era <strong>de</strong> 9,7 vezes, ainda que a<strong>de</strong>snutrição tenha <strong>de</strong>cresci<strong>do</strong> para to<strong>do</strong>s as classes sociais (Monteiro et al, 1995).Também em relação à qualida<strong>de</strong> das informações é possível visualizar diferençasinterregionais. Observa-se que a região Nor<strong>de</strong>ste vem apresentan<strong>do</strong> proporções <strong>de</strong> óbitospor sinais e sintomas mal <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s acima <strong>de</strong> 40%, em toda a série <strong>de</strong> 1981 a 1993,enquanto que as regiões Sul e Su<strong>de</strong>ste apresentam proporções abaixo <strong>de</strong> 20% <strong>do</strong>s óbitos.Outro indica<strong>do</strong>r <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> revela que as regiões Norte e Nor<strong>de</strong>ste apresentavambaixas taxas <strong>de</strong> cobertura com relação à municípios que produzem informações regularespara mortalida<strong>de</strong>, enquanto que as regiões Sul e Su<strong>de</strong>ste vêm apresentan<strong>do</strong> proporçõespróximas <strong>de</strong> 100% <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1979.52 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


DETERMINANTES DO QUADRO EPIDEMIOLÓGICONo atual estágio <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento científico, dispomos <strong>de</strong> um largo arsenal<strong>de</strong> recursos que nos capacitam a i<strong>de</strong>ntificar e enten<strong>de</strong>r aspectos relevantes da dinâmicadas condições da saú<strong>de</strong> nas populações humanas. Evi<strong>de</strong>ntemente, a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>percebermos e explicarmos as transformações nos níveis <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> está limitada pelonosso <strong>de</strong>senvolvimento teórico-conceitual, como o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, epela capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> registro, mensuração, análise e interpretação disponíveis em nossossistemas <strong>de</strong> informações e pesquisas. As estratégias <strong>de</strong> intervenção em saú<strong>de</strong> têm queobrigatoriamente estarem vinculadas à mo<strong>de</strong>los e concepções causais razoavelmente<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, os quais são resultantes <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento científico, porém também sesituam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> referências i<strong>de</strong>ológicas estabelecidas.A análise <strong>do</strong>s <strong>de</strong>terminantes das condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> tem, em geral, privilegia<strong>do</strong>os <strong>de</strong>terminantes micro-epi<strong>de</strong>miológicos (individuais) e da<strong>do</strong> pouca ênfase nos<strong>de</strong>terminantes macro-epi<strong>de</strong>miológicos (coletivos). Acreditamos que esta última forma<strong>de</strong> abordar a questão é relevante pois, sem retirar a <strong>de</strong>vida importância <strong>do</strong>s fatoresindividuais, relativiza o papel das intervenções médico-sanitárias na transformação <strong>do</strong>sperfis <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população.DETERMINANTES MACRO-EPIDEMIOLÓGICOSAs mudanças seculares nos perfis epi<strong>de</strong>miológicos, bem como as diferenças <strong>de</strong>perfis entre diferentes socieda<strong>de</strong>s, têm-se apresenta<strong>do</strong> como um problema <strong>de</strong> não simplesexplicação. Constata-se, na quase abso<strong>luta</strong> maioria das socieda<strong>de</strong>s, uma tendência secular<strong>de</strong>crescente das diversas medidas da mortalida<strong>de</strong>, tais como mortalida<strong>de</strong> infantil emortalida<strong>de</strong> geral, como consequência, principalmente, da redução na mortalida<strong>de</strong> por<strong>do</strong>enças infecciosas. Esta tendência, tem si<strong>do</strong> observada mesmo em socieda<strong>de</strong>s em queos indica<strong>do</strong>res econômicos apresentam tendência a agravamento (Fleury, 1995; Omettoet al, 1995). Inversões <strong>de</strong>sta tendência tem si<strong>do</strong> observadas em alguns momentos <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> crise social ou econômica, porém estes perío<strong>do</strong>s são, em geral, curtos e segui<strong>do</strong>spor nova redução nos indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong>.Apesar <strong>de</strong>sta tendência <strong>de</strong>crescente, as diferenças <strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res entre os países- mesmo entre aqueles com níveis econômicos similares -, entre as macrorregiões, ouainda entre grupos sociais, ten<strong>de</strong>m a se ampliarem, como verificamos no panoramaapresenta<strong>do</strong> para o Brasil. A <strong>de</strong>terminação e a intensida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste processo não encontralastro em uma teoria unifica<strong>do</strong>ra.Um ponto que merece <strong>de</strong>staque respeito à discussão sobre se a modificação dasmacrodiferenças existentes nos padrões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ou mesmo a intensificação <strong>do</strong> processosecular <strong>de</strong> mudança está fora da capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Isto se dariaem consequência <strong>de</strong> mudanças nos padrões econômicos ou da constituição <strong>de</strong> políticassociais, como aquelas voltadas para as questões <strong>do</strong> saneamento e para incremento <strong>do</strong>esta<strong>do</strong> nutricional da população. Modificações <strong>de</strong> aspectos comportamentais tambémpo<strong>de</strong>m ter efeitos positivos nos padrões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, toman<strong>do</strong>-se como exemplos, o impactoda disseminação <strong>do</strong> aleitamento materno e <strong>do</strong> <strong>de</strong>clínio da fertilida<strong>de</strong> sobre os indica<strong>do</strong>resda mortalida<strong>de</strong> infantil (Patarra, 1995; Victora et al,1987; Monteiro et al, 1995).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>53


Uma proposta apresentada recentemente, na tentativa <strong>de</strong> constituir uma teoriaunifica<strong>do</strong>ra, busca enten<strong>de</strong>r tais mudanças nas condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como o efeito <strong>do</strong>acúmulo, <strong>de</strong> recursos físicos (infra-estrutura <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, infra-estrutura <strong>de</strong>saneamento, habitação, etc) e sociais (educação, percepções e comportamentos liga<strong>do</strong>sà saú<strong>de</strong> etc.), em perío<strong>do</strong>s históricos <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s (Murray & Chen, 1993). A gran<strong>de</strong>contribuição <strong>de</strong>sta abordagem é exatamente a <strong>de</strong> minimizar os fatores conjunturais,transitórios, e valorizar o processo secular <strong>de</strong> acúmulo <strong>de</strong> “recursos” com efeitos positivossobre a saú<strong>de</strong>. Além <strong>de</strong> explicar o que acontece internamente à cada região, po<strong>de</strong> tambématribuir a ampliação das diferenças observadas, ao acúmulo diferencial <strong>de</strong> investimentosnas regiões. Se nos centrarmos nas regiões Su<strong>de</strong>ste e Nor<strong>de</strong>ste <strong>do</strong> Brasil, veremos que aredução <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> indica<strong>do</strong>res econômicos e sociais no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1970 até o finalda década <strong>de</strong> 1980 foi mais acentuada na primeira (quadro I), apesar <strong>de</strong> inicialmenteesta região já apresentar melhores níveis socio-econômicos.Os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ste quadro I indicam, portanto, um agravamento das diferenças sociaise econômicas existentes entre as regiões Su<strong>de</strong>ste e Nor<strong>de</strong>ste, e po<strong>de</strong> contribuir para oentendimento sobre a ampliação das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s nos indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.DETERMINANTES MICRO-EPIDEMIOLÓGICOS E OPAPEL DAS AÇÕES DE SAÚDEExiste consenso sobre a contribuição <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> fatores na produção <strong>de</strong><strong>do</strong>enças, enquanto que existam divergências sobre os fatores que teriam uma maiorexpressão neste processo. Por qualquer que seja o conceito ou indica<strong>do</strong>r social/econômicopelo qual se estratifica os indivíduos (classe social, renda, educação, ocupação etc.),observam-se gran<strong>de</strong>s diferenciais na ocorrência <strong>de</strong> agravos e <strong>do</strong>enças. Tanto as ditas<strong>do</strong>enças da “riqueza” como as ditas <strong>do</strong>enças da “pobreza” ocorrem, em geral, naspopulações mais pobres. Assim, em recente <strong>do</strong>cumento <strong>do</strong> Banco Mundial sobre saú<strong>de</strong>no Brasil conclui-se que “Em resumo, são os pobres <strong>do</strong> Brasil que enfrentam maiores riscos <strong>do</strong>sproblemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da pós-transição, que tem as mais altas taxas <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças, e que apresentam asmais altas taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> por estas <strong>do</strong>enças” (World Bank, 1990, p. 61) e portanto“estratégias <strong>de</strong> prevenção <strong>de</strong>vem ser baseadas nestes fatos” (Ibid., p.61).Apesar <strong>de</strong> vários consensos (multicausalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>terminação social), e por maispara<strong>do</strong>xal que pareça, na prática, as ações <strong>de</strong> prevenção em saú<strong>de</strong>, em seus vários níveis,QUADRO I - % DE REDUÇÃO (1970 - 1989)VariávelRegiãoSu<strong>de</strong>ste Nor<strong>de</strong>steRenda per capita


se utilizam <strong>de</strong> apenas alguns poucos mo<strong>de</strong>los unicausais: a) teoria <strong>do</strong> germe; b) teoria<strong>do</strong> estilo <strong>de</strong> vida; c) teoria ambiental e d) teoria genética (Tesh, 1988; Barreto e Carmo,1995). O enquadramento <strong>de</strong> cada <strong>do</strong>ença ou agravo em uma <strong>de</strong>stas teorias está na<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> vários fatores, incluin<strong>do</strong>-se a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> tecnologias <strong>de</strong>prevenção. Assim, para algumas <strong>do</strong>enças infecciosas, para as quais se dispõem <strong>de</strong> vacinaseficazes, a teoria <strong>do</strong> germe é suficiente para satisfazer à rotina <strong>de</strong> ações, enquanto quepara outras <strong>do</strong>enças, para as quais não se dispõem <strong>de</strong>stes recursos, tem-se enfatiza<strong>do</strong> ascausas ambientais (p. ex. cólera, <strong>de</strong>ngue etc) ou <strong>do</strong> estilo <strong>de</strong> vida (p. ex. AIDS, <strong>do</strong>ençassexualmente transmissíveis). Além da aplicação para algumas <strong>do</strong>enças infecciosas, umasérie <strong>de</strong> agravos gera<strong>do</strong>s pela intensificação <strong>do</strong>s processos industriais, tem si<strong>do</strong> trata<strong>do</strong>no rótulo <strong>do</strong>s problemas ambientais e, neste senti<strong>do</strong>, tem gera<strong>do</strong> não só ações específicas,como legislações regula<strong>do</strong>ras das condições <strong>do</strong> ambiente. Diversos aspectos relaciona<strong>do</strong>sao estilo <strong>de</strong> vida têm si<strong>do</strong> responsabiliza<strong>do</strong>s por <strong>do</strong>enças <strong>de</strong> diferentes origens e,consequentemente, tentativas <strong>de</strong> modificação <strong>do</strong>s estilos através <strong>de</strong> medidaspre<strong>do</strong>minantemente educativas, têm si<strong>do</strong> apresentadas como solução (p.ex. tabagismoe suas consequências). Por fim, as causas genéticas, que após um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> poucarelevância, por falta <strong>de</strong> fundamentação científica, ganha novos a<strong>de</strong>ptos na nova onda<strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s da estrutura genética e sua relação com os eventos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (Davison et al,1994).O conjunto <strong>de</strong> ações, centradas nos serviços curativos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, por sua capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> prevenção <strong>do</strong>s danos, tem provoca<strong>do</strong> uma diminuição da letalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> algumas<strong>do</strong>enças ou agravos, sem, evi<strong>de</strong>ntemente, interferir no padrão <strong>de</strong> ocorrência <strong>de</strong>stas<strong>do</strong>enças, já que não atua nos seus <strong>de</strong>terminantes. Isto é bastante visível, para problemascomo a cólera. A epi<strong>de</strong>mia <strong>do</strong> século passa<strong>do</strong> caracterizou-se pela sua alta letalida<strong>de</strong>,enquanto que a epi<strong>de</strong>mia atual tem apresenta<strong>do</strong> uma letalida<strong>de</strong> marginal. Para váriosoutros agravos e <strong>do</strong>enças, este efeito sobre a letalida<strong>de</strong> também é observa<strong>do</strong>, ainda queem graus diferentes, porém provocan<strong>do</strong> uma crescente dissociação entre o padrão <strong>de</strong>morbida<strong>de</strong> e o da mortalida<strong>de</strong>. Portanto, chama a atenção que, enquanto as mudanças<strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> que ocorreram na virada <strong>do</strong> século XIX para o século XX,nos países da Europa e America <strong>do</strong> Norte, <strong>de</strong>veram-se quase que exclusivamente àdiminuição da ocorrência das <strong>do</strong>enças (Mckeown, 1979), na atualida<strong>de</strong>, as mudançasnos padrões <strong>de</strong> letalida<strong>de</strong> estão na base <strong>de</strong> muitas das mudanças observadas namortalida<strong>de</strong>.O papel das ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> na modificação <strong>do</strong>s padrões epi<strong>de</strong>miológicos temsi<strong>do</strong> tema <strong>de</strong> controvérsias, abrangen<strong>do</strong> um espectro <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s que apontam para aincorporação <strong>de</strong> tecnologia como <strong>de</strong>terminantes na melhoria <strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res (Omran,1971; Fre<strong>de</strong>riksen, 1969), enquanto que outros estu<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s em países<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, são uníssonos em relativizar o papel da tecnologias médicas (Mckinlay& Mckinlay, 1977; Wing, 1984). Em épocas mais recentes o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> novastecnologias tem permiti<strong>do</strong> o aumento da sobrevida <strong>de</strong> pessoas acometidas com algumasenfermida<strong>de</strong>s crônicas, como por exemplo para as neoplasias, as <strong>do</strong>enças cárdiovascularese diabetes. Da mesma forma tem si<strong>do</strong> ressalta<strong>do</strong> a sua utilização na prevenção<strong>de</strong> <strong>do</strong>enças, ten<strong>do</strong> como exemplo mais clássico o papel <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pelas vacinas naredução <strong>de</strong> algumas <strong>do</strong>enças transmissíveis, como também a utilização <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>sdiagnósticos em procedimento <strong>de</strong> triagem para câncer cervico-uterino e hipertensão(Albert et al, 1996).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>55


IMPLICAÇÕES PARA AS POLÍTICAS DE SAÚDEDo diagnóstico aqui apresenta<strong>do</strong> po<strong>de</strong>mos sumarizar algumas questões maiores:1. Ocorreu, nas últimas décadas, uma melhoria significativa <strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>res<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> país, porem esta melhoria, tem si<strong>do</strong> observada na maioria dassocieda<strong>de</strong>s, inclusive nas mais pobres. No caso <strong>do</strong> Brasil tem ocorri<strong>do</strong> emmenor intensida<strong>de</strong>, quan<strong>do</strong> compara<strong>do</strong> com muitos países <strong>de</strong> economiassimilares (p. ex. México e Argentina), amplian<strong>do</strong> as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entreestes países no que diz respeito aos níveis <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>;2. Internamente, as acentuadas disparida<strong>de</strong>s regionais e sociais, têm ocasiona<strong>do</strong>ganhos diferencia<strong>do</strong>s e maiores para regiões e grupos sociais maisricos, geran<strong>do</strong> uma situação para<strong>do</strong>xal, em que a queda geral <strong>do</strong> indica<strong>do</strong>res<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> é acompanhada da ampliação <strong>do</strong>s diferenciais inter-regionais einter-classes sociais.3. A tendência <strong>do</strong> envelhecimento da população, se é uma conquista a sercelebrada, vem acompanhada <strong>de</strong> mudanças importantes nos padrões <strong>de</strong>morbi-mortalida<strong>de</strong> e na necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.4. A complexida<strong>de</strong> das tensões sociais em meio urbano e rural tem gera<strong>do</strong>um aumento acentua<strong>do</strong> da violência, que se expressa na manutenção <strong>de</strong>altas taxas <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong> e mortalida<strong>de</strong> no grupo das causas externas.5. A queda acentuada da mortalida<strong>de</strong> pelas <strong>do</strong>enças infecciosas e parasitárias,não é acompanhada <strong>de</strong> uma redução, na mesma magnitu<strong>de</strong>, na morbida<strong>de</strong>por este grupo <strong>de</strong> patologias, que ainda ocupa o quarto lugar em termos<strong>do</strong> total <strong>de</strong> internações hospitalares; quan<strong>do</strong> associa<strong>do</strong> às pneumoniasrepresentam em torno <strong>de</strong> 20% das internações.6. A prestação <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> tem se caracteriza<strong>do</strong> pela compra a custoscrescentes <strong>de</strong> serviços ao setor priva<strong>do</strong>, que sem aumentos significativos<strong>do</strong> percentual <strong>do</strong> PIB investi<strong>do</strong> no setor, tem implica<strong>do</strong> em que a proporção<strong>de</strong> recursos <strong>de</strong>dicada às ativida<strong>de</strong>s preventivas e <strong>de</strong> atenção primáriadiminua em relação às ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> assistência hospitalar.Ten<strong>do</strong> em conta o diagnóstico acima apresenta<strong>do</strong> e a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer cumpriros preceitos constitucionais <strong>de</strong> que “a saú<strong>de</strong> é direito <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,garanti<strong>do</strong> mediante políticas sociais e econômicas que visam a redução <strong>do</strong> risco <strong>de</strong> <strong>do</strong>ençae <strong>de</strong> outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para suapromoção, proteção e recuperação” (Constituição Fe<strong>de</strong>ral: art. 196), conclui-se que asações voltadas para a resolução das distorções e <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s existentes nos padrões<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ultrapassam os limites das ações <strong>de</strong>ste setor e passam a exigir ações coor<strong>de</strong>nadasem várias esferas <strong>de</strong> governo.Fica evi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s acima <strong>de</strong> que a concepção <strong>de</strong> nível <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> não é abso<strong>luta</strong>, mas representa o i<strong>de</strong>al a ser alcança<strong>do</strong> em um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>momento histórico, ten<strong>do</strong> por referência países, regiões ou grupos sociais que atingiramos níveis mais altos. Há algumas décadas atrás a expectativa <strong>de</strong> vida ao nascer em torno<strong>do</strong>s 60 anos já era uma gran<strong>de</strong> conquista, porém tal indica<strong>do</strong>r já atingiu valores emtorno <strong>do</strong>s 80 anos em algumas socieda<strong>de</strong>s e esta passa a ser uma meta possível <strong>de</strong> seralmejada pelas <strong>de</strong>mais. As <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s entre as populações, portanto, são o que<strong>de</strong>limita a plena realização <strong>do</strong>s potenciais biológicos geneticamente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s. Quan<strong>do</strong>56 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


estas diferenças ocorrem no espaço interno <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, a situação se torna aindamais injusta, <strong>de</strong>mandan<strong>do</strong> imediatas reparações. Por exemplo, em 1940, o excesso <strong>de</strong>expectativa média <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> um brasileiro nasci<strong>do</strong> no Su<strong>de</strong>ste era <strong>de</strong> 6 anos, em relaçãoaos brasileiros nasci<strong>do</strong>s no Nor<strong>de</strong>ste (44,0/38,2) e em 1980 esta diferença já era da or<strong>de</strong>m<strong>de</strong> 12 anos (63,7/51,5). Apesar <strong>de</strong> uma melhoria abso<strong>luta</strong> ter si<strong>do</strong> observada nas duasregiões, o agravamento das diferenças relativas mostra que as soluções em busca <strong>do</strong>cumprimento das potencialida<strong>de</strong>s biológicas está se dan<strong>do</strong> com diferentes intensida<strong>de</strong>s,provocan<strong>do</strong> uma ampliação das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.Estas e outras diferenças apresentadas em seu nível macro não serão, sem dúvida,resolvidas por ações setoriais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Diferenças macro-epi<strong>de</strong>miológicas assentam-seno processo complexo em que se <strong>de</strong>u o <strong>de</strong>senvolvimento regional brasileiro, com oempobrecimento relativo <strong>de</strong> algumas regiões. Se observarmos os indícios <strong>de</strong> que asdiferenças inter-classes sociais também se agravaram, com conseqüente distanciamento<strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> entre as classes, construímos um complexo <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações quese expressam em níveis macro e micro-epi<strong>de</strong>miológico, para os quais somente políticasque, ao modificarem os gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>terminantes econômicos e sociais, impliquem emmelhorias no cotidiano da vida <strong>de</strong> cada indivíduo, fazen<strong>do</strong> inverter a tendência <strong>de</strong>ampliação das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e possibilitan<strong>do</strong> equacionamentos satisfatórios.Centran<strong>do</strong>-se ao nível das políticas sociais, <strong>de</strong>ntre as quais as políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>estão inseridas, existem fortes indícios <strong>de</strong> que os seus efeitos cumulativos tem um importantepapel na forma como se modificam o padrões <strong>de</strong> morbi-mortalida<strong>de</strong>. É notório opapel <strong>do</strong> saneamento básico na incidências das <strong>do</strong>enças diarreicas e em outras afecçõesinfecciosas transmitidas por via hídrica, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> ao grau <strong>de</strong> modificação <strong>do</strong>s seus padrões<strong>de</strong> ocorrência com a melhoria das condições sanitárias. Por exemplo, existem evidências<strong>de</strong> que a epi<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> cólera não atingiu dimensões ainda maiores na região Nor<strong>de</strong>ste,<strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a situação sanitária nesta região, que, apesar <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiente, apresentou melhoriassignificativas nas últimas décadas. Da mesma maneira, não se propagou nas regiões Sule Su<strong>de</strong>ste, em função da infra-estrutura existente (Tole<strong>do</strong>, 1993).O processo <strong>de</strong> envelhecimento da população brasileira e as mudanças observadasnos padrões epi<strong>de</strong>miológicos não vêm se dan<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sejada, ou seja, em que osurgimento <strong>de</strong> novos problemas seja acompanha<strong>do</strong> pela resolução <strong>de</strong> outros. Nestecontexto se inserem as <strong>do</strong>enças infecciosas, que apesar da intensa queda nas taxas <strong>de</strong>mortalida<strong>de</strong>, ainda representam uma gran<strong>de</strong> carga <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong>, oneran<strong>do</strong> os serviçoscurativos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em volumes ainda expressivos. Soluções mais <strong>de</strong>finitivas, para estaquestão passam pela resolução <strong>do</strong>s <strong>de</strong>terminantes <strong>de</strong>stas <strong>do</strong>enças. No caso das diarréiassignifica a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> medidas preventivas bem conhecidas (saneamento, aleitamento,educação materna) e <strong>de</strong> atenção primária ao indivíduo, seja no <strong>do</strong>micílio, seja nos serviços<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. No caso das infecções respiratórias, as medidas preventivas ainda não estãobem estabelecidas, porém existe acor<strong>do</strong> sobre a alta efetivida<strong>de</strong> da atenção primária aeste agravo (Albert et al, 1996). Como parte das soluções <strong>de</strong>ste complexo <strong>de</strong> problemas,as questões nutricionais, <strong>de</strong>mandam ações diretas, que aumentem o aporte <strong>de</strong>macronutrientes (proteínas, carboidratos) e micronutrientes (ferro, vitamina A, io<strong>do</strong>)a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s. A melhoria da situação nutricional traria resulta<strong>do</strong>s benéficos na diminuiçãodas infecções e <strong>do</strong>s seus efeitos, na medida em que diminuiria a expoliação que elasocasionam (FAO & WHO, 1992). Neste contexto, <strong>de</strong>ve-se enfatizar os esforços <strong>de</strong>erradicação <strong>do</strong> sarampo que, além <strong>de</strong> significar a redução da mortalida<strong>de</strong> associada aesta <strong>do</strong>ença, resulta em benefícios no esta<strong>do</strong> nutricional da população.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>57


Na área das <strong>do</strong>enças crônicas é obrigatório uma intervenção mais eficaz sobre ahipertensão arterial que está na base <strong>de</strong> um complexo <strong>de</strong> problemas, geran<strong>do</strong> custosimportantes nos serviços curativos e <strong>de</strong> reabilitação (Lessa et al, 1996). A intervenção<strong>de</strong>ve-se dar tanto a nível da sua prevenção (consumo <strong>de</strong> sal, ingesta <strong>de</strong> bebidas alcoólicas,diminuição <strong>do</strong>s fatores estressores, etc), como <strong>de</strong> ações curativas através da atençãoprimária. No campo das <strong>do</strong>enças respiratórias crônicas e vários tipos <strong>de</strong> canceres, existeconsenso sobre o papel <strong>do</strong> cigarro como um fator <strong>de</strong> alto risco. A diminuição <strong>do</strong> seuconsumo tem-se mostra<strong>do</strong> apresentar gran<strong>de</strong> impacto sobre a ocorrência <strong>de</strong>stes eventosmórbi<strong>do</strong>s.Faz-se necessário também a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> políticas mais contun<strong>de</strong>ntes sobre a violência,enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que este grupo <strong>de</strong> problemas, além <strong>de</strong> afeto às áreas policiais ejurídicas, se constituem em um grupo <strong>de</strong> agravos que geram gran<strong>de</strong> impacto sobre ascondições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e utilizam uma gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços curativos e <strong>de</strong>reabilitação (Souza & Minayo, 1995).Em resumo, <strong>de</strong>lineiam-se medidas que visam reduzir <strong>de</strong> forma significativa amorbida<strong>de</strong> por afecções crônicas e infecciosas, cuja prevenção po<strong>de</strong> ser feita por açõessimplificadas e <strong>de</strong> baixo custo. Este processo, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> “compressão damorbida<strong>de</strong>” (Fries, 1983), além <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> sobre a saú<strong>de</strong> da população, representaredução da pressão sobre os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, já que as mudanças nos padrõesepi<strong>de</strong>miológicos brasileiros, tem-se caracteriza<strong>do</strong>, como visto, pela superposição e nãopela substituição <strong>de</strong> morbida<strong>de</strong>.O cumprimento <strong>de</strong>stas ações implica reorganizar o sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a<strong>de</strong>quan<strong>do</strong>oàs suas responsabilida<strong>de</strong>s constitucionais; reorientar as políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> previlegian<strong>do</strong>as ativida<strong>de</strong>s coletivas <strong>de</strong> promoção da saú<strong>de</strong> e prevenção da <strong>do</strong>ença, em contraposiçãoa atual priorização das ativida<strong>de</strong>s individuais e curativas; e buscar diminuir asiniquida<strong>de</strong>s sociais e regionais que se refletem nos padrões sanitários, o que só po<strong>de</strong>ráser feito através das políticas sociais e econômicas implementadas para o país.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALBERT, X, Bayo A, Alfonso JL, Cortina P & Corella D, 1996, The effectiveness of health systems ininfluencing avoidable mortality: a study in Valencia, Spain, 1975-90, J Epi<strong>de</strong>miol Communit Health,50:320-25.BARRETO, ML & Carmo EH, 1994. Situação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população brasileira: Tendências históricas,<strong>de</strong>terminantes e implicações para as políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Inf Epi<strong>de</strong>miol SUS, III (3/4):5-34.BAYER, GF, Rotberg LC, Tavares R & Paula SG, 1982., População brasileira no século XX: algunsda<strong>do</strong>s. RADIS/FIOCRUZ, Da<strong>do</strong>s. 2:1-8.BUSS, PM, 1993. Assistência hospitalar no Brasil (1984-1991): uma análise preliminar baseada noSistema <strong>de</strong> Informação Hospitalar <strong>do</strong> SUS. Inf Epi<strong>de</strong>miol SUS.II (2):5-42.CARMO, EH, Barreto ML & Evangelista Filho D, 1993. Control of schistosomiasis in Northeast Braziland trends in related morbidity. IV Simpósio Internacional <strong>de</strong> Esquistossomose. Rio <strong>de</strong> Janeiro.COMISSÃO Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra Central <strong>do</strong> Estu<strong>do</strong> sobre Prevalência <strong>de</strong> Diabetes Mellitus no Brasil, 1992.Estu<strong>do</strong> multicêntrico sobre a prevalência <strong>de</strong> Diabetes Mellitus no Brasil. Inf Epi<strong>de</strong>miol SUS. I(3):45-74.58 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


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Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>61


62 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


A Via <strong>do</strong> Parlamento 1Eleutério Rodrigues NetoPORQUE PRIVILEGIAR A VIA DO PARLAMENTOO chama<strong>do</strong> movimento sanitário brasileiro, <strong>do</strong> qual o <strong>CEBES</strong> foi o primeiro protagonistainstitucionaliza<strong>do</strong>, teve como características fundamentais, por um la<strong>do</strong>, ainserção da <strong>luta</strong> pela saú<strong>de</strong> no movimento mais global <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização da socieda<strong>de</strong>brasileira, ainda sob a ditadura militar, e, por outro, uma estratégia <strong>de</strong> atuação diversificada,em várias frentes, <strong>de</strong>corrente tanto <strong>do</strong> conceito “amplia<strong>do</strong>”<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que lheservia <strong>de</strong> base, inspira<strong>do</strong> pelo movimento da Medicina Social <strong>do</strong>s anos 60 e 70, quantoda visão político-i<strong>de</strong>ológica que pre<strong>do</strong>minava entre os seus militantes, a maioria oriunda<strong>de</strong> parti<strong>do</strong>s políticos na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>, em particular o então Parti<strong>do</strong> ComunistaBrasileiro.Se pelo la<strong>do</strong> da questão da saú<strong>de</strong> a Medicina Social tinha introduzi<strong>do</strong> novos conceitose aberto outros campos <strong>de</strong> intervenção além <strong>do</strong> prevenir/diagnosticar/curar, quaissejam, a <strong>de</strong>terminação social <strong>do</strong> fenômeno saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença e a organização das práticas,serviços e sistemas <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong>, pelo ângulo da política, a visão que pre<strong>do</strong>minavano movimento era eminentemente reformista, ainda que ten<strong>do</strong> no horizonte o socialismo.Com essa base político-i<strong>de</strong>ológica e no contexto <strong>do</strong> início da distensão políticainiciada pelo Governo Geisel, o movimento sanitário conformou-se <strong>de</strong> maneira inova<strong>do</strong>rae criativa, na política <strong>de</strong> “aproveitar espaços”, rompen<strong>do</strong> com o isolacionismo a que asocieda<strong>de</strong> tinha si<strong>do</strong> con<strong>de</strong>nada, em relação ao aparelho <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, não sem, com isso,<strong>de</strong>spertar, em vários segmentos <strong>de</strong> esquerda uma severa crítica que ia da acusação <strong>de</strong>reformismo, até a <strong>de</strong> oportunismo e a<strong>de</strong>sismo.Mesmo não sen<strong>do</strong> objetivo <strong>de</strong>ste texto analisar as origens e evolução <strong>do</strong>movimento sanitário, mais aprofundadamente estuda<strong>do</strong> por outros autores 2 , a escolhada “via <strong>do</strong> parlamento” para sua atuação só po<strong>de</strong> ser compreendida a partir <strong>de</strong>sseconjunto, como uma das suas estratégias.As <strong>de</strong>mais “vias” <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> movimento po<strong>de</strong>riam ser sintetizadas em: produçãoacadêmica “informada” politicamente, estimulação e promoção <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate, divulgaçãopela série <strong>de</strong> livros e pela Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, construção <strong>de</strong> contra-políticasou <strong>de</strong> políticas alternativas e ocupação <strong>de</strong> espaços institucionais.1. texto modifica<strong>do</strong> e atualiza<strong>do</strong>, base<strong>do</strong> em parte <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> <strong>do</strong>utoramento <strong>do</strong> autor: SAÚDE:promessas e limites da Constituição, 1988, inédito.2. Ver em especial Escorel, S., A Reviravolta da Saú<strong>de</strong> - Origem e articulação <strong>do</strong> movimento sanitário,Rio <strong>de</strong> Janeiro, dissert. mestra<strong>do</strong>, ENSP/FIOCRUZ, 352 p., mimeo.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>63


Todavia, se todas essas “vias” foram e têm si<strong>do</strong> extremamente produtivas, emtermos <strong>de</strong> avanços <strong>do</strong> movimento, parece não haver dúvida que a escolha <strong>do</strong> parlamentocomo canal para se fazer avançar o processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong> encontrouaí um espaço privilegia<strong>do</strong> para exploração. Várias tentativas <strong>de</strong> explicação “aposteriori” po<strong>de</strong>m ser tentadas. Entretanto, alguns fatos são, sem dúvida elucidativos.Primeiramente, o parlamento sempre foi um espaço <strong>de</strong> contradições, mesmo nosmomentos duros da ditadura em que permaneceu aberto. Da mesma forma, por suascaracterísticas próprias, era o que oferecia mais oportunida<strong>de</strong> ao <strong>de</strong>bate <strong>de</strong>mocrático,ainda pouco franquea<strong>do</strong> em outros espaços institucionais e mesmo públicos, assim comona imprensa. De outra parte, as eleições <strong>de</strong> 1974 haviam recupera<strong>do</strong>, em boa medida, apluralida<strong>de</strong> partidária <strong>do</strong> parlamento, ainda que agrupa<strong>do</strong>s sob as duas legendas daARENA e MDB; e, neste, podiam ser encontra<strong>do</strong>s vários parlamentares i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s,se não com os parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> esquerda inspira<strong>do</strong>res <strong>do</strong> movimento, com o própriomovimento, que sempre teve a questão <strong>de</strong>mocrática como central, permitin<strong>do</strong> assim,umamplo arco <strong>de</strong> alianças. Na verda<strong>de</strong>, até mesmo na ARENA foi possível encontrarparlamentar i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com o movimento.Assim, a “via <strong>do</strong> parlamento” não significou apenas se privilegiar o processolegiferante, isto é, a proposição e aprovação <strong>de</strong> leis convergentes com a Reforma Sanitária.Pelo contrário, no começo, ou seja, até a Constituinte (87-88), o Parlamento, e emespecial a Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s e sua Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, foi utiliza<strong>do</strong> principalmentecomo espaço para o <strong>de</strong>bate público sobre a Saú<strong>de</strong> e até mesmo para a “organização”<strong>do</strong> movimento, com apoio <strong>de</strong> parlamentares e da infra-estrutura da própriaComissão.Embora a legislação aprovada em 1975, crian<strong>do</strong> o Sistema Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>(Lei nº 6229) e o SINPAS já fosse um alvo objetivo <strong>do</strong> movimento, uma vez que continhatoda a base jurídica para a manutenção <strong>do</strong> “status quo”, a investida no campopropositivo, em termos <strong>de</strong> mudança da legislação, só se iniciou, <strong>de</strong> fato, com o processoConstituinte em 1987, <strong>de</strong>flagra<strong>do</strong>, no caso da Saú<strong>de</strong>, em 1986, com a 8ª ConferênciaNacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.No tocante ainda à “via <strong>do</strong> parlamento”, uma outra vertente também <strong>de</strong>ve ser<strong>de</strong>stacada, que era a <strong>do</strong> investimento militante na eleição <strong>de</strong> parlamentares fe<strong>de</strong>rais eestaduais e também prefeitos e verea<strong>do</strong>res comprometi<strong>do</strong>s com o movimento, quepassaram a ter a questão da saú<strong>de</strong> em suas plataformas eleitorais. Nessa época aindaforam poucos os que se candidataram a partir da sua inserção no movimento; a maioriaestava mais ligada à questão geral da <strong>de</strong>mocratização, sob cuja ban<strong>de</strong>ira o movimento“pegava carona”.Assim, a escolha da “via <strong>do</strong> parlamento” pelo movimento sanitário, teve menosa ver com uma visão “legalista”, que passou a ser privilegiada mais tar<strong>de</strong>, <strong>do</strong> que comas circunstâncias que conferiam ao parlamento a condição <strong>de</strong> espaço quase exclusivopara o <strong>de</strong>bate público <strong>de</strong> oposição ao regime, através da <strong>de</strong>núncia e da construção <strong>de</strong>uma contra-política; no caso, para a saú<strong>de</strong>.Neste texto será privilegiada a questão <strong>do</strong> processo constituinte, por ser o maisbem <strong>do</strong>cumenta<strong>do</strong> <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> e o que teve os resulta<strong>do</strong>s mais objetivos e concretos,quanto à institucionalização da Reforma Sanitária. O processo <strong>de</strong> elaboração da legislaçãoinfra-constitucional também já tem si<strong>do</strong> estuda<strong>do</strong>, o que será referi<strong>do</strong> oportunamente.A<strong>de</strong>mais, a exemplificação, via Constituinte, dá bem uma dimensão <strong>do</strong> que tem si<strong>do</strong> aatuação <strong>do</strong> movimento sanitário no Parlamento.64 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O PERÍODO PRÉ-DEMOCRATIZAÇÃOA criação <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> em 1976, conferin<strong>do</strong> base institucional ao movimentosanitário, ocorreu simultaneamente e em articulação com <strong>do</strong>is outros fatos: um <strong>de</strong> carátergeral, representa<strong>do</strong> pelo início da abertura política “lenta e gradual” que, se ainda nãopermitia uma plena e transparente organização <strong>do</strong> movimento social, especialmentemanten<strong>do</strong> na clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong> os parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> esquerda, criou as condições para o início<strong>do</strong> <strong>de</strong>bate público <strong>de</strong> oposição, até então restrito apenas ao âmbito parlamentar; e outro,que foi a consolidação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo médico assistencial privatista, assegurada pela Lei nº6229 <strong>de</strong> 1975, que repartia as responsabilida<strong>de</strong>s quanto à saú<strong>de</strong> pública e à assistênciamédica, respectivamente entre os Ministérios da Saú<strong>de</strong> e o da Previdência e AssistênciaSocial, asseguran<strong>do</strong> a este um fluxo <strong>de</strong> recursos regular e vincula<strong>do</strong>, relegan<strong>do</strong> oMinistério da Saú<strong>de</strong> à tradicional condição <strong>de</strong> “ficar com a sobra” <strong>do</strong> Tesouro. Foi essaa estratégia que, logicizan<strong>do</strong> as ações <strong>de</strong> prevenção e cura em um “sistema” apenasfuncional (o Sistema Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>), garantiu a expansão <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo.Todavia, havia contradições intrínsecas a essa conjuntura, em que o Governotentava administrar as tensões e pressões sociais em relação ao seu projeto econômicoainda em expansão, embora às custas <strong>de</strong> abrir novos espaços <strong>de</strong> intervenção setorial,especialmente por meio <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s projetos <strong>de</strong> extensão <strong>de</strong> cobertura, inspira<strong>do</strong>spelos organismos internacionais, entre os quais <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>stacar o PIASS - Programa <strong>de</strong>Interiorização <strong>de</strong> Ações <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e Saneamento e, na sua esteira, várias experiências <strong>de</strong>organização <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> serviços básicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em nivel municipal, particularmentenaquelas prefeituras eleitas pelo MDB.Ao mesmo tempo, esse perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnização” <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, queassumiu ações assistenciais dirigidas às populações pouco inseridas no merca<strong>do</strong>produtivo, e inicia um trabalho <strong>de</strong> cooperação com Secretarias Estaduais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,induz à formação <strong>de</strong> uma massa crítica <strong>de</strong> técnicos e profissionais que passam a discutiras estratégias <strong>de</strong>, pela via <strong>do</strong> reforço à “atenção primária” e da medicina comunitária,se contrapor ao INAMPS. Foi nesse momento que vários quadros <strong>do</strong> movimentosanitário, oriun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro e São Paulo, núcleos <strong>do</strong> movimento, começam a seincorporar ao Ministério da Saú<strong>de</strong> e até mesmo ao INAMPS, na medida que este tambémbuscava algumas estratégias <strong>de</strong> racionalização, sem comprometer o cerne <strong>do</strong> seu mo<strong>de</strong>lo 3 .Essas circunstâncias, associadas às necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>mandas <strong>do</strong>s parlamentares<strong>de</strong> oposição, permitiram que esses quadros passassem a atuar como assessores <strong>de</strong><strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s e sena<strong>do</strong>res, <strong>de</strong> maneira informal, militante e, às vezes, até clan<strong>de</strong>stina,embora organiza<strong>do</strong>s em torno <strong>do</strong> núcleo <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> <strong>de</strong> Brasília, em articulação com omovimento em nivel nacional.Nessa etapa, poucas ações concretas e produtivas, em termos <strong>de</strong> reorientação dapolítica pu<strong>de</strong>ram ser realizadas, restringin<strong>do</strong>-se essa articulação à troca <strong>de</strong> informaçõese assessoria aos parlamentares nos seus pronunciamentos.Entretanto, a partir <strong>de</strong> 1979, com o Governo Figueire<strong>do</strong>, já ten<strong>do</strong> como pano <strong>de</strong>fun<strong>do</strong> o fim <strong>do</strong> “milagre” e no horizonte as nuvens da recessão e o aprofundamento daabertura política, essa situação avançou, inclusive pela eleição <strong>de</strong> novos parlamentarescom afinida<strong>de</strong>s com o movimento e a ocupação <strong>de</strong> novos postos estratégicos por quadros3. Foi o caso <strong>do</strong> PLUS - Programa <strong>de</strong> Localização <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Serviço.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>65


<strong>do</strong> movimento, fosse no Ministério da Saú<strong>de</strong>, na Previdência (Ministério, e não INAMPS),na SEPLAN (IPEA) ou na OPAS - Organização Panamericana da Saú<strong>de</strong>.Essa situação, se permitiu a influência direta sobre algumas das políticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,especialmente no apoio às iniciativas locais <strong>de</strong> reorganização <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,também proporcionou uma tática “sui generis”, embora perigosa, com riscos e algumasvezes com “cabeças roladas”, <strong>de</strong> se investir nas contradições. Isto é, ao mesmo tempoque se assessorava o Ministério, se assessorava parlamentares para questionar as açõese políticas <strong>do</strong> próprio Ministério. Além <strong>de</strong> propiciar o acesso <strong>de</strong> informaçõesprivilegiadas, que eram repassadas tanto ao movimento, como para jornalistas e,especialmente aos parlamentares a ele vincula<strong>do</strong>s, para pronunciamentos, arguições e<strong>de</strong>núncias.Nesse perío<strong>do</strong>, além <strong>de</strong>ssas ações correntes, que ora serviam para <strong>de</strong>sestabilizaralgumas propostas, e, em outro momento, para incentivá-las, foram realiza<strong>do</strong>s osprimeiros <strong>de</strong>bates abertos e organiza<strong>do</strong>s oficialmente, sobre a Saú<strong>de</strong>, no espaço conquista<strong>do</strong>pelo movimento junto à Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da Câmara, consubstancia<strong>do</strong>s nosSimpósios Nacionais <strong>de</strong> Políticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.O primeiro <strong>de</strong>sses Simpósios, realiza<strong>do</strong> em 1979, ocupa um papel real e simbólicopela precedência histórica no lançamento <strong>do</strong> projeto <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.Esse Simpósio, organiza<strong>do</strong> com a assessoria direta <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>, mas realiza<strong>do</strong> com umaampla representação institucional que lhe conferia legitimida<strong>de</strong>, teve suas principaisdiscussões e conclusões centradas em torno <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento produzi<strong>do</strong> pela DiretoriaNacional <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> - “A Questão Democrática na Saú<strong>de</strong>” e trazi<strong>do</strong> como colaboraçãopara o Simpósio 4 ª. Esse <strong>do</strong>cumento, além <strong>de</strong> fazer uma ampla análise da conjunturanacional e das políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, assumia um caráter propositivo, ao apresentar o projeto<strong>de</strong> reorientação <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> brasileiro, com base na <strong>de</strong>scentralização, naintegração institucional, na regionalização e hierarquização da re<strong>de</strong> assistencial, e naparticipação popular, com ênfase nas ações básicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. A <strong>do</strong>utrina contida nesse<strong>do</strong>cumento representava a convergência das discussões havidas nos anos anterioressobre a questão, pelos setores <strong>de</strong> oposição ao regime, mas tinha uma característica inova<strong>do</strong>rapara a época, entre os movimentos sociais <strong>de</strong> oposição, que era o caráter propositivo,transce<strong>de</strong>nte à <strong>de</strong>núncia.E foi isso que conferiu à proposta o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> influenciar ou, no mínimo informar,a maioria das propostas <strong>de</strong> reforma setorial que foram, a partir <strong>de</strong> então, engendradasoficialmente ou como contra-políticas.O fato imediato a esse Simpósio foi a tentativa ingênua, levada pelos coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>res<strong>do</strong> próprio Simpósio e por li<strong>de</strong>ranças <strong>do</strong> movimento, aos Ministérios da Saú<strong>de</strong> eda Previdência, para que se unificasse o INAMPS com o Ministério da Saú<strong>de</strong>. Naquelaépoca, o gran<strong>de</strong> “cavalo <strong>de</strong> batalha” <strong>do</strong> movimento era a questão da unificação da Saú<strong>de</strong>em torno <strong>de</strong> um único ministério, a partir <strong>do</strong> diagnóstico <strong>de</strong> que aí residia a principalbase estrutural e conceitual <strong>de</strong> distorção <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo vigente.O então ministro da Previdência, Jair Soares, vin<strong>do</strong> da Secretaria <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> RioGran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, era visto como um “mo<strong>de</strong>rniza<strong>do</strong>r” e permeável às idéias <strong>do</strong>s sanitaristas,uma vez que, <strong>de</strong> fato, havia imprimi<strong>do</strong> uma nova dinâmica na secretaria daqueleesta<strong>do</strong>, a partir da incorporação <strong>de</strong> quadros da área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública e epi<strong>de</strong>-4a. <strong>CEBES</strong>, A Questão Democrática na Área da Saú<strong>de</strong>, Rev. Saú<strong>de</strong> em Debate, 9: 11-13, 1980.66 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


miologia. (O ministro chegou até mesmo a ser con<strong>de</strong>cora<strong>do</strong> pela OPAS pela sua atuação.)No entanto, os projetos político-eleitorais imediatos falavam mais alto e a idéia, apesar<strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> publicamente aceita pelos <strong>do</strong>is ministros, foi remetidas a “estu<strong>do</strong>s técnicos”.Essa situação gerou, no entanto, a criação <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> trabalho interministerial,com assessoria da OPAS, que se propôs a elaborar um projeto <strong>de</strong> reorientação <strong>do</strong> sistema<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, a partir daqueles princípios e diretrizes então acorda<strong>do</strong>s: atenção primária,serviços básicos, <strong>de</strong>scentralização, participação, etc.A partir da primeira versão <strong>do</strong> projeto (julho <strong>de</strong> 1980), que iria se chamar, originalmente,Pró-Saú<strong>de</strong> e que, posteriormente, por imposição <strong>do</strong> Ministério da Previdência,passou a ser o Prev-Saú<strong>de</strong>, o processo ocorri<strong>do</strong> foi quase surrealista. Nenhuma dasversões elaboradas chegou a ser assumida oficialmente. As versões eram “vazadas”,havia <strong>de</strong>bates públicos sobre as mesmas, eram negadas para, <strong>de</strong>pois, aparecerem modificadase seguirem o mesmo processo, até o começo <strong>de</strong> 1981, quan<strong>do</strong> se extinguiu comoprojeto.Ao final <strong>de</strong> algumas versões, o Prev-Saú<strong>de</strong> havia se afasta<strong>do</strong> tanto <strong>de</strong> suas proposiçõesoriginais que Carlos Gentille <strong>de</strong> Mello já o chamava <strong>de</strong> “nati-morto”.O fato, no entanto, <strong>de</strong> nunca ter si<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> oficialmente por, supostamentecontrariar interesses que as instituições proponentes não pu<strong>de</strong>ram ou não quiseramcontornar, transformou o Prev-Saú<strong>de</strong> em um verda<strong>de</strong>iro paradigma das reformassetoriais, aspiradas pela socieda<strong>de</strong> civil e não atendidas pelo governo.Esse foi um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> mobilização e <strong>de</strong>bates muito profícuo, que contou com aparticipação intensa da Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, on<strong>de</strong>, emaudiências públicas, foi possível se mapear claramente os interesses em disputa: porum la<strong>do</strong> o fisiologismo <strong>do</strong> INAMPS, <strong>de</strong>sejan<strong>do</strong> manter a sua máquina clientelista efavorece<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s interesses priva<strong>do</strong>s e, por outro, a ABRAMGE - Associação Brasileira<strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong> Grupo que, emergente na ocasião, apresentava um face <strong>de</strong> “capitalismomo<strong>de</strong>rno”, simpática à SEPLAN, toda po<strong>de</strong>rosa naquele momento. Esta última, chegoua elaborar uma proposta altenativa, baseada nos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> HMO (Health MaintenanceOrganizations), então em expansão nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.A época pré-eleitoral que se seguiu levou a que nenhuma mudança fosse empreendida;pelo contrário, era época <strong>de</strong> se utilizar a máquina então montada, para os finseleitoreiros, numa ação <strong>de</strong> rapina, uma vez que já se i<strong>de</strong>ntificava, com clareza, o esgotamento<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo: quase como se quisessem “raspar o fun<strong>do</strong> <strong>do</strong> tacho”, enquanto era tempo.Assim é que, só em fins <strong>de</strong> 1981, quan<strong>do</strong> os resulta<strong>do</strong>s eleitorais já haviam si<strong>do</strong>planta<strong>do</strong>s, em especial pelo então Ministro da Previdência, candidato a governa<strong>do</strong>r, oGoverno Fe<strong>de</strong>ral reconhece a “crise da Previdência” e faz aprovar o “pacote daPrevidência”, aumentan<strong>do</strong> alíquotas <strong>de</strong> contribuição, retiran<strong>do</strong> benefícios <strong>de</strong>aposenta<strong>do</strong>s e crian<strong>do</strong> o CONASP- Conselho Consultivo <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Previ<strong>de</strong>nciária. Este,como uma estratégia quase intervencionista no INAMPS, mas com uma perspectivaprotelatória, com vistas a garantir a colheita <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s eleitorais <strong>de</strong> 1982.Mesmo a criação <strong>do</strong> CONASS - Conselho Nacional <strong>de</strong> Secretários Estduais <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> e da CIPLAN- Comissão Interministerial <strong>de</strong> Planejamento MS/MPAS que iniciouos chama<strong>do</strong>s convênios tripartites MS/MPAS/SES não conseguiu introduzir mudançasimportantes, reagin<strong>do</strong>, inclusive, à susbstituição da US como unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> remuneração<strong>do</strong>s serviços públicos estaduais, uma vez que muitos secretários tinham interesseseleitorais em jogo.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>67


Todavia, o perfil majoritariamente liberal <strong>do</strong> CONASP, que assumiu uma missão“moraliza<strong>do</strong>ra” em relação à assistência médica da Previdência, levou a que o mesmoresgatasse as análises e idéias que tinham, em gran<strong>de</strong> parte, informa<strong>do</strong> a elaboração <strong>do</strong>Prev-Saú<strong>de</strong>.Nesse momento, houve um fato novo, sobre o qual o movimento sanitário, emarticulação com o Parlamento, teve uma ação <strong>de</strong>cisiva, com sua estratégia quase <strong>de</strong>guerrilha.Ocorre que, acenada a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> passagem <strong>do</strong> INAMPS para o Ministérioda Saú<strong>de</strong>, por ocasião da substituição <strong>do</strong> Ministro da Previdência, seus titulares searticularam com a SEPLAN para a elaboração, à margem <strong>do</strong> CONASP, <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong>unificação, a partir <strong>de</strong> uma estratégia completamente oposta àquela que vinha sen<strong>do</strong><strong>de</strong>senvolvida e proposta pelo Conselho. Tal proposta separava o sistema nacional <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> em três sub-sistemas: o priva<strong>do</strong> autônomo, não <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> recursos públicosdiretamente, mas com subsídios que po<strong>de</strong>riam permitir ao mesmo cobrir cerca <strong>de</strong> 8milhões <strong>de</strong> pessoas; o sub-sistema <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>lega<strong>do</strong>, em que, por meio damodalida<strong>de</strong> tipo “convênio-empresa”, po<strong>de</strong>r-se-ia cobrir ao re<strong>do</strong>r <strong>de</strong> 70 milhões <strong>de</strong>habitantes vincula<strong>do</strong>s ao merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho; e o sub-sistema <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>pública, correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> aos serviços públicos fe<strong>de</strong>rais, estaduais e municipais, assimcomo aos contrata<strong>do</strong>s por estes, para cobrir perto <strong>de</strong> 40% da população, consi<strong>de</strong>radafora <strong>do</strong> sistema produtivo regular.Afora as questões econômico-financeiras que privilegiavam o segun<strong>do</strong> subsistema,a argumentação era <strong>de</strong> que seria um atraso, em relação ao mo<strong>de</strong>lo economicovigente e em processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização, apostar no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> setor público.Além disso supunha que o controle sindical sobre os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> era uma garantiaque o setor público não tinha legitimida<strong>de</strong> para assegurar.O envolvimento <strong>de</strong> reconheci<strong>do</strong>s integrantes <strong>do</strong> movimento sanitário naelaboração da proposta criou uma situação <strong>de</strong> perplexida<strong>de</strong> e constrangimento, namedida em que essas idéias estavam cobertas <strong>de</strong> sigilo e só vinham à tona porinconfidências pessoais.Assim, utilizou-se a tática <strong>de</strong>, valen<strong>do</strong>-se da organização e realização <strong>de</strong> mais umSimpósio <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> na Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da Câmara Fe<strong>de</strong>ral, esvaziou e “<strong>de</strong>smontou”a proposta, impedin<strong>do</strong> que a mesma fosse a<strong>do</strong>tada pelo CONASP. A situação, dada aconhecer posteriormente em círculos maiores, gerou pela primeira vez, algumas rupturastemporárias, ainda que com cicatrizes, no até então coeso “parti<strong>do</strong> sanitário”.Ao la<strong>do</strong> da participação na construção da estratégia das Ações Integradas <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong>, uma das frentes <strong>do</strong> Plano <strong>do</strong> CONASP, que continha o embrião <strong>do</strong> processo <strong>de</strong><strong>de</strong>scentralização e integração intitucional que veio a ser a base real para o SUS, a próximaetapa que o movimento viveu foi a <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> elaboração das propostas <strong>de</strong> programas<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para o futuro Governo da Aliança Democrática.Muitos foram os grupos, instituições e entida<strong>de</strong>s que elaboraram e fizeram chegarsuas propostas ao futuro governo, em processo <strong>de</strong> montagem. Todavia, havia umaconvergência <strong>do</strong>utrinária informada pelo movimento sanitário e pela idéia <strong>do</strong> SistemaÚnico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Foi um momento <strong>de</strong> muitas articulações, a maioria passan<strong>do</strong> pelasli<strong>de</strong>ranças políticas parlamentares que tinham potencialida<strong>de</strong> <strong>de</strong> influir no processo,<strong>de</strong>ven<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>stacar <strong>do</strong>is conjuntos <strong>de</strong> propostas altamente convergentes entre si, queforam o Plano da COPAG 4 , <strong>de</strong> elaboração mais técnica e a proposta <strong>do</strong> Grupo Parlamentar68 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> PMDB, que tinha uma clara intenção <strong>de</strong> disputar o espaço, assumin<strong>do</strong> acondução da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. No primeiro, houve a participação <strong>de</strong> vários integrantes<strong>do</strong> movimento sanitário, ainda que <strong>de</strong> forma mais pessoal; no segun<strong>do</strong>, a participaçãofoi mais orgânica e articulada coletivamente, conferin<strong>do</strong> uma legitimida<strong>de</strong> indiscutívelà proposta, embora as mesmas não se distinguissem em pontos essenciais.O PROCESSO CONSTITUINTE: ATORES, ORGANICIDADES E CONFLITOSA partir da convocação da Assembléia Nacional Constituinte, a atuação <strong>do</strong> movimentosanitário no, e através <strong>do</strong> Parlamento, passou a privilegiar o próprio processolegiferante, como seu objetivo estratégico maior; isto é, passou-se a investir na própriamudança da Constituição e das leis, a fim <strong>de</strong> criar a nova base jurídico-institucionalpara a Saú<strong>de</strong>, nos novos tempos <strong>de</strong>mocráticos. Mais ativo, com maior consciência <strong>de</strong>sua importância e representativida<strong>de</strong>, o próprio Parlamento passou a produzir fatosnovos, pela sua própria dinâmica, ao mesmo tempo que se permeabilizava mais à própriainfluência direta e aberta <strong>de</strong> “lobbies”, entre os quais o <strong>do</strong> movimento sanitário. O quediferenciava este <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais era a sua organicida<strong>de</strong> com os interesses sanitários e populares,ainda que fosse também um “lobby”.Assim, mesmo ten<strong>do</strong> consciência da limitação <strong>do</strong> instrumento legal, em termosda sua suficiência para as mudanças necessárias, o movimento <strong>de</strong>u, acertadamente, ummaior peso a esse tipo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, ainda que hoje, aprovadas a Constituição e váriasleis, possa-se confirmar aquela relativida<strong>de</strong>; isto é, apesar das leis, o quanto se estálonge <strong>de</strong> uma plena implementação <strong>do</strong>s preceitos constitucionais, não só em relação àSaú<strong>de</strong>, mas a toda área social.Na seqüência <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos e propostas elabora<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> 1984, com o fim<strong>de</strong> subsidiar o programa <strong>de</strong> governo da Aliança Democrática no tocante à saú<strong>de</strong>, aquestão da Constituinte apareceu pela primeira vez na proposta da assessoriaparlamentar <strong>do</strong> PMDB -“Contribuição ao Governo <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte Tancre<strong>do</strong> Neves”. Esse<strong>do</strong>cumento explicitava a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar um processo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s ecompatibilização <strong>de</strong> propostas e experiências que <strong>de</strong>veriam culminar com umaConferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> que subsidiaria a Assembléia Nacional Constituinte,bem como a legislação complementar correspon<strong>de</strong>nte.Entretanto, embora a 8ª Conferência não tenha feito propostas específicas <strong>de</strong> textospara a nova Constituição, <strong>de</strong>finiu o quadro <strong>de</strong> referência que passaria a informar, apartir <strong>de</strong> então, o conjunto <strong>de</strong> sugestões e reinvindicações que o “movimento sanitarista”passaria a fazer junto ao processo constituinte 5 .Convém ainda recordar que as conclusões da 8ª Conferência, embora altamenterepresentativas da socieda<strong>de</strong> brasileira no seu conjunto, não conseguiram consenso nointerior <strong>do</strong> movimento social na área da saú<strong>de</strong>, por duas vias extremas: uma, pela nãoinclusão das teses <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que mesmoconvida<strong>do</strong>, negou-se a participar da conferência; outra pela <strong>de</strong>rrota, pelo voto da tese/tática da “estatização imediata”, <strong>de</strong>fendida pelos setores sindicais liga<strong>do</strong> à CUT e pelo4. COPAG - Comissão <strong>de</strong> Elaboração <strong>do</strong> Plano <strong>de</strong> Ação <strong>do</strong> Governo Tancre<strong>do</strong> Neves.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>69


PT e PDT, principalmente. No que diz respeito a este último segmento é justo que seregistre que, a partir <strong>do</strong> encerramento da 8ª Conferência, o mesmo passou a en<strong>do</strong>ssarunitariamente o movimento que ganhou então a <strong>de</strong>nominação mais explícita <strong>de</strong>“movimento pela reforma sanitária”.Isso não impediu que essas posições fossem reiteradas nos vários momentos <strong>de</strong>discussões que se seguiram, especialmente no correr <strong>do</strong>s trabalhos da Comissão Nacionalda Reforma Sanitária, quan<strong>do</strong> se estabeleceu uma nova polarização, pela participaçãono órgão <strong>de</strong> representantes da iniciativa privada.Em setembro <strong>de</strong> 1986 a ABRASCO - Associação Brasileira <strong>de</strong> Pós-Graduação emSaú<strong>de</strong> Coletiva realizou o I Congresso Brasileiro <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Coletiva on<strong>de</strong>, pela primeiravez, a questão da Constituinte foi <strong>de</strong>batida. Nesse congresso foi realiza<strong>do</strong> um semináriossobre o tema e uma mesa re<strong>do</strong>nda com a participação <strong>de</strong> representantes <strong>do</strong>s váriosparti<strong>do</strong>s políticos. Ao final <strong>do</strong> Congresso foi apresentada e aprovada uma proposta <strong>de</strong>texto, a título <strong>de</strong> subsídio para a Constituinte, cujo conteú<strong>do</strong> foi extraí<strong>do</strong> e <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> daforma mais fiel possível, das conclusões da 8ª Conferência.A essa altura, vários projetos globais <strong>de</strong> Constituição já circulavam, elabora<strong>do</strong>spor parti<strong>do</strong>s políticos, intelectuais e pela própria Comissão Afonso Arinos, entre outros.A análise feita por ocasião <strong>do</strong> Congresso concluiu pela improprieda<strong>de</strong> ou insuficiência<strong>de</strong> todas as propostas até então conhecidas, no respeito à saú<strong>de</strong> e, em particular, emrelação às conclusões da 8ª Conferência.De acor<strong>do</strong> com o relatório da 8ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, as seguintesquestões po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>radas centrais à Reforma Sanitária e <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s novosrumos da polítca nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> estar asseguradas constitucionalmente:- O conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, referi<strong>do</strong> não apenas à assistência médica, masrelaciona<strong>do</strong> com to<strong>do</strong>s os seus <strong>de</strong>terminantes e condicionantes, como:trabalho, salário, alimentação, habitação, transporte, meio ambiente, entreoutros.- O direito universal e igualitário à saú<strong>de</strong>.- O <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na promoção, proteção e recuperação da saú<strong>de</strong>.- A natureza pública das ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.- A organização das ações <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em uma re<strong>de</strong> regionalizada e hierarquizada,constituin<strong>do</strong> um Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> gratuito, <strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>para Esta<strong>do</strong>s e Municípios, sob controle social.- Subordinação <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> às normas <strong>do</strong> Sistema Único e, quan<strong>do</strong>necessário, contrata<strong>do</strong> sob as normas <strong>do</strong> direito público; diretriz <strong>de</strong> estatizaçãoprogressiva.- Desvinculação <strong>do</strong> Sistema <strong>de</strong> Previdência Social, com financiamento autônomo,preservada a gradualida<strong>de</strong> na substituição das fontes previ<strong>de</strong>nciárias;estabelecimento <strong>de</strong> pisos <strong>de</strong> gastos.5. Embora por caminhos sinuosos, a Conferência foi realizada em março <strong>de</strong> 1986, incluin<strong>do</strong> um painelon<strong>de</strong> o tema específico da saú<strong>de</strong> na Constituição foi <strong>de</strong>bati<strong>do</strong>. Nessa ocasião o único participante queapresentou uma proposta <strong>de</strong> texto, foi o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Carlos Sant’Anna. Como registro, vale o fato <strong>de</strong> oPresi<strong>de</strong>nte José Sarney ter referi<strong>do</strong> no seu discurso à ocasião, que a 8ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong><strong>de</strong>veria se constituir “numa verda<strong>de</strong>ira pré-constituinte <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>” (discurso elabora<strong>do</strong> com assessoria<strong>de</strong> militante <strong>do</strong> próprio movimento).70 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Ten<strong>do</strong>-se trata<strong>do</strong>, até o momento, <strong>do</strong> processo anterior à Constituinte, das fontespara a mesma, na questão saú<strong>de</strong>, os tópicos seguintes se referirão a cada etapa <strong>do</strong>strabalhos da própria Assembléia Nacional Constituinte.Diferentemente das estratégias usualmente a<strong>do</strong>tadas em outros países e em momentosanteriores no próprio país, a Constituinte não partiu <strong>de</strong> qualquer ante-projeto,apesar da existência <strong>do</strong> Projeto Afonso Arinos que foi <strong>de</strong>scarta<strong>do</strong> pelo próprio Presi<strong>de</strong>nteda República ao convocar o Congresso Constituinte.Essa estratégia significou, pelo menos no início, um processo extremamente ricoe uma gran<strong>de</strong> superfície <strong>de</strong> contato da Constituinte com a socieda<strong>de</strong>, algo extremamente<strong>de</strong>sejável já que a natureza congressual da Assembléia impediu que no processo eleitoralas teses constitucionais pu<strong>de</strong>ssem ter si<strong>do</strong> discutidas.De acor<strong>do</strong> com o regimento aprova<strong>do</strong>, o processo <strong>de</strong> elaboração da Constituiçãoobe<strong>de</strong>ceria a quatro fases sucessivas:- Sub-comissões (com audiência públicas).- Comissões temáticas.- Comissão <strong>de</strong> sistematização.- Plenário.A questão da saú<strong>de</strong> esteve tratada pela Sub-Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, Segurida<strong>de</strong> eMeio Ambiente que passou a compor, no momento seguinte, a Comissão da Or<strong>de</strong>mSocial.A análise <strong>do</strong> perfil <strong>do</strong>s constituintes (559) revelou um número <strong>de</strong> 58 parlamentarescujas profissões eram ligadas à saú<strong>de</strong>, na maioria médicos. No entanto, se isso po<strong>de</strong>riarepresentar um alto percentual em relação ao total, só supera<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong> advoga<strong>do</strong>s,empresários e engenheiros, um estu<strong>do</strong> mais <strong>de</strong>ti<strong>do</strong> evi<strong>de</strong>nciava um número bastantepequeno <strong>do</strong>s que tinham a questão da saú<strong>de</strong> nos seus currículos <strong>de</strong> história política. Os<strong>de</strong>mais, apesar <strong>de</strong> médicos, ou já haviam aban<strong>do</strong>na<strong>do</strong> a profissão ou, no momento, nãoincluíam a questão da saú<strong>de</strong> nas suas priorida<strong>de</strong>s políticas e eleitorais. Verificou-se, noentanto, mais tar<strong>de</strong>, que, por ocasião <strong>do</strong>s processo <strong>de</strong>cisórios mais <strong>de</strong>finitivos, essamaioria acabou por revelar sua organicida<strong>de</strong> com os interesses corporativos e <strong>do</strong> capital.A Sub-Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, Segurida<strong>de</strong> e Meio AmbienteA Sub-Comissão foi a “porta <strong>de</strong> entrada” das propostas para a Constituição. Oseu trabalho consistiu em ouviu e <strong>de</strong>bater com entida<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong> civil, li<strong>de</strong>rançase dirigentes institucionais suas respectivas reinvindicações e propostas e, após, elaborarum relatório que, vota<strong>do</strong> e aprova<strong>do</strong>, seria apresenta<strong>do</strong> como ante-projeto para aComissão da Or<strong>de</strong>m Social (no caso).A Sub-comissão esteve presidida pelo <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> José Elias Murad, <strong>do</strong> PDT <strong>de</strong>Minas Gerais, famacêutico e médico, <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> às questões da indústria farmacêutica, eao problema <strong>de</strong> drogas, com uma perspectiva nacionalista.O relator, na prática o papel mais relevante, foi o <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Carlos Mosconi <strong>do</strong>PMDB <strong>de</strong> Minas Gerais, ex-presi<strong>de</strong>nte da comissão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s,ex-Secretário <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral, médico, liga<strong>do</strong> às questões da saú<strong>de</strong> naperpectiva <strong>do</strong> “movimento sanitário”, embora nefrologista e proprietário <strong>de</strong> serviçomédico priva<strong>do</strong>.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>71


A análise da composição e perfil da sub-comissão, composta por vinte e um constituintese vinte um suplentes, revelou uma primeira surpresa: a maioria não haviaescolhi<strong>do</strong> a sub-comissão por primeira opção, o que revela a falta <strong>de</strong> importância a elaconferida. Estes se dividiram polarmente entre os a<strong>de</strong>ptos das teses da 8ª ConferênciaNacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e os <strong>de</strong>fensores da iniciativa privada na saú<strong>de</strong>.Como se po<strong>de</strong> observar, ao começo, poucos tinham propostas claras quanto àsaú<strong>de</strong>, mesmo porque <strong>de</strong>sconheciam o seu quadro diagnóstico com agu<strong>de</strong>za.Assim, as audiências públicas realizada tiveram um perfil essencialmentepedagógico.Foram ouvidas as entida<strong>de</strong>s mais representativas <strong>do</strong> setor, os Ministros da Saú<strong>de</strong>e da Previdência, dirigentes <strong>do</strong>s órgãos vincula<strong>do</strong>s às pastas, Secretários <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e aprópria Comissão Nacional <strong>de</strong> Reforma Sanitária que introduziu a proposta referenteao seu trabalho <strong>de</strong> interpretar as recomendações da 8ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.As consi<strong>de</strong>rações e propostas feitas aos constituintes po<strong>de</strong>m ser dividas em trêsgrupos:- as <strong>de</strong>rivadas e orgânicas com a 8ª Conferência, apresentadas pela CNRS,pelo CONASS e pelas entida<strong>de</strong>s sindicais, associações profissionais,conselhos fe<strong>de</strong>rais, ABRASCO, <strong>CEBES</strong>, entre outras;- aquelas em <strong>de</strong>fesa da “prática liberal”e da iniciativa privada, representadaspela AMB, FBH, cooperativas médicas, entre outras;- e as institucionais, especialmente representadas pelas posições <strong>do</strong>s Ministrosda Saú<strong>de</strong> e da Previdência Social, cada qual na <strong>de</strong>fesa da preservaçãoe valorização corporativa da sua pasta.É importante notar que o primeiro grupo, apesar <strong>de</strong> mais numeroso foiextremamente convergente e complementar entre si, em relação às teses da ReformaSanitária, já que foi o único grupo que trouxe propostas <strong>de</strong> texto, enquanto os <strong>de</strong>maisapenas argumentos e contra-argumentos.No caso <strong>do</strong> grupo que representava os interesses <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> ficam nítidasas diferenças entre as suas reinvidicações, orientadas à <strong>de</strong>fesa das suas formas específicas<strong>de</strong> prática, embora to<strong>do</strong>s se unissem contra qualquer perspectiva estatizante.O único sub-setor <strong>de</strong>sse grupo passível <strong>de</strong> a<strong>de</strong>rir a uma ou outra posição era oliga<strong>do</strong> ao setor filantrópico, especialmente às Santas Casas. Estes, que tradicionalmentevêm se benefician<strong>do</strong> da sua ambigüida<strong>de</strong> (pública/privada) estão sempre dispostos auma aliança com a proposta que melhor viabilize seus interesses. No correr <strong>do</strong>s trabalhosacabou por ser selada uma aliança <strong>de</strong>sse setor com as teses mais publicistas, quan<strong>do</strong> lhefoi assegura<strong>do</strong> um tratamento diferencia<strong>do</strong> precedência na contratação por parte <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r público.No que toca aos ministros, expressaram posições bastante particulares. O Dr.Roberto Santos, Ministro da Saú<strong>de</strong>, em meio a uma grave crise interna no seu ministério,usou o espaço para fazer um relatório em <strong>de</strong>fesa da sua pasta e da sua administração,sempre <strong>de</strong>claran<strong>do</strong> formalmente sua a<strong>de</strong>são à Reforma Sanitária.O Dr. Rafael <strong>de</strong> Almeida Magalhães, Ministro da Previdência e Assistência Social,compareceu à Comissão com intenções mais claras: <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os princípios <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralizaçãoe <strong>de</strong>mocratização <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s da 8ª Conferência e <strong>do</strong> “movimento”, propunha72 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


pragmática e corporativamente uma drástica <strong>de</strong>secentralização <strong>do</strong>s recursos daPrevidência para Esta<strong>do</strong>s e Municípios, com o risco inclusive <strong>de</strong> <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong>INAMPS, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o MPAS continuasse como “caixa” <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no nívelfe<strong>de</strong>ral 6 .Esta estratégia foi <strong>de</strong>nunciada num célebre e polêmico editorial <strong>do</strong> boletim daABRASCO que acusava o MPAS <strong>de</strong> estar “cooptan<strong>do</strong>”os governos estaduais e tentan<strong>do</strong>esvaziar o movimento da Reforma Sanitária, dan<strong>do</strong>-lhe uma dimensão administrativa.As reações a este editorial foram severas, mas também emocionais, como era oclima à época, no MPAS. Um artigo <strong>de</strong> Saraiva Felipe, chaman<strong>do</strong> “MPAS - o vilão daReforma Sanitária?” insistiu em colocar a questão <strong>de</strong> forma a <strong>de</strong>nunciar a incoerência<strong>do</strong> movimento e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a i<strong>do</strong>neida<strong>de</strong> <strong>do</strong> MPAS. Deve-se recordar, no entanto, osantece<strong>de</strong>ntes remotos e recentes <strong>do</strong> ministro que já no MPAS lançou propostasinquestionavelmente contraditórias com os princípios da Reforma Sanitária como o“cheque- consulta” e a “capitação” para médicos cre<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong>s 7 .Nesse <strong>do</strong>cumento, mais tar<strong>de</strong> aperfeiçoa<strong>do</strong> e distribuí<strong>do</strong> oficialmente comoposição <strong>do</strong> INAMPS, registravam-se claras divergências estratégicas e táticas em relaçãoa tu<strong>do</strong> que já vinha sen<strong>do</strong> discuti<strong>do</strong> no “movimento”e na CNRS - Congresso Nacionalda Reforma Sanitária. O centro da polêmica era a falsa oposição entre a unificação “porbaixo”e a “por cima”. Nunca ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> nega<strong>do</strong> o processo pelas duas vias, a polarizaçãoservia ao não <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> (e velho) interesse corporativo <strong>de</strong> não promover a unificaçãoem nível fe<strong>de</strong>ral ou pelo menos, não para o la<strong>do</strong> da saú<strong>de</strong>. Foi aventada na ocasião, atese da criação <strong>do</strong> Ministério <strong>do</strong> Bem Estar Social. O mínimo que se po<strong>de</strong> dizer <strong>de</strong>ssa edas <strong>de</strong>mais propostas correlatas é que não estavam legitimas pela 8ª ConferênciaNacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, a base <strong>de</strong> sustentação política <strong>do</strong> “movimento” naquele instante.Essas consi<strong>de</strong>ração não ili<strong>de</strong>m o enorme mérito <strong>de</strong> que acabou se revestin<strong>do</strong> osSUDS - Sistemas Unifica<strong>do</strong>s e Descentraliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, ao tornar irreversível a“direção” da <strong>de</strong>scentralização, ao conquistarem o apoio sóli<strong>do</strong> <strong>do</strong>s governos estaduais.Entretanto, ainda que passível <strong>de</strong> contestação, arrisca-se aqui a afirmação <strong>de</strong> quea reação <strong>do</strong> “movimento” à postura da Previdência, em que o editorial da ABRASCOfoi apenas uma das manifestações, impediu uma maior ruptura nos caminhos dasmudanças institucionais pretendidas, aproximan<strong>do</strong> e relativizan<strong>do</strong> os SUDS, em relaçãoà Reforma Sanitária; esta, para avançar precisava <strong>do</strong>s SUDS como tática, mas não podiaconfundir-se teleológicamente com o mesmo, sob o risco <strong>de</strong> se mostrar pífia,administrativa e parcial. Essa recomposição acabou por torná-la políticamente forte eos SUDS significarem um avanço substantivo, inclusive no que diz respeito à substituição<strong>do</strong> clientelismo pelo voto.Ainda que essas consi<strong>de</strong>rações possam ser vistas como uma conjectura sem muitoa ver com a Sub-comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, Segurida<strong>de</strong> e Meio Ambiente, ela é fundamental6. como po<strong>de</strong>rá se verificar, essa foi apenas a primeira investida da Previdência, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> tentarevitar a consumação da unificação da saú<strong>de</strong> no nível <strong>de</strong>ral, que incluísse, como se ainda reinvidicava,o Fun<strong>do</strong> Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> sob a administração <strong>do</strong> “novo” Ministério da Saú<strong>de</strong>.7. Ainda, para reforçar essa posição discordante, embora alegan<strong>do</strong> o contrário, é bom que se registre aomissão da Previdência quan<strong>do</strong> a CNRS discutia suas propostas inclusie a respeito <strong>do</strong> arcabouçoinstitucional <strong>do</strong> novo Sistema Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>; enquanto isso preparava e fazia circular oficiosamenteum <strong>do</strong>cumento reconheci<strong>do</strong> como “pink paper”, dada a sua cor - não necessariamente política, mas <strong>do</strong>papel.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>73


para compreen<strong>de</strong>r alguns <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos que ocorreram por ocasião da Comissão daOr<strong>de</strong>m Social e da Comissão <strong>de</strong> Sistematização.O texto aprova<strong>do</strong> pela Sub-Comissão introduziu algumas questões novas, emrelação à proposta <strong>do</strong> CNRS:- a “execução” das ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>;- a proibição <strong>de</strong> propaganda <strong>de</strong> medicamento e produtos nocivos à saú<strong>de</strong>;- a “facilida<strong>de</strong>”para os transplantes.Essas duas últimas questões contaram com a participação <strong>de</strong>cisiva <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nteda Sub-Comissão e <strong>do</strong> seu relator, dadas as vinculações profissionais originais; a primeirafoi fruto da <strong>de</strong>cisão coletiva majoritária da própria sub-comissão, perplexa com odiagnóstico <strong>do</strong> setor.A sub-comissão não conseguiu chegar a um acor<strong>do</strong> sobre as questões <strong>do</strong> financiamento,remeten<strong>do</strong>-as para a Comissão da Or<strong>de</strong>m Social 8 .Isso revela o fato <strong>de</strong> que não se conseguiu convencer para a proposta apenas osconstituintes que tinham organicida<strong>de</strong> com o setor priva<strong>do</strong>; os <strong>de</strong>mais, inicialmentejejunos na matéria, tornaram-se a<strong>de</strong>ptos das propostas <strong>do</strong> “movimento”, bastante bemrepresentadas no ante-projeto aprova<strong>do</strong>, com exceção da questão <strong>do</strong> financiamento.É mister referir as táticas <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is “lobbies” principais que atuaram sobre o processo.Um, o que representava os interesses <strong>do</strong> movimento da Reforma Sanitária foirealiza<strong>do</strong> nessa etapa principalmente através da equipe <strong>do</strong> NESP - Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>sem Saú<strong>de</strong> Pública da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Brasília, articula<strong>do</strong> com o CEAC - Centro <strong>de</strong>Estu<strong>do</strong>s e Acompanhamento da Constituinte, da UnB, acrescida <strong>de</strong> algumas li<strong>de</strong>rançase dirigentes <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s como o <strong>CEBES</strong>, o CFM - Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Medicina,ABRASCO, etc. Mais tar<strong>de</strong> esse organização ganhou corpo com a constituição da Plenária<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, conforme se <strong>de</strong>screverá à frente 9 .Do la<strong>do</strong> <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>, o “lobby”era exerci<strong>do</strong> diretamente através da presença<strong>do</strong>s principais dirigentes da área privada, tanto hospitalar como da medicina <strong>de</strong> grupo,que usaram sempre um assessor princiapl, o Dr. Reynold Stephanes, ex-presi<strong>de</strong>nte <strong>do</strong>INPS na fase <strong>de</strong> criação <strong>do</strong> SINPAS e um <strong>do</strong>s responsáveis pela implantação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>loprivatista <strong>de</strong> atenção médica na Previdência social, àquela época 10 .A Comissão da Or<strong>de</strong>m SocialA Comissão da Or<strong>de</strong>m Social instalou-se em uma sessão solene em que os relatoresdas Sub-Comissões fizeram a entrega oficial <strong>do</strong>s ante-projetos respectivos ao presenteda Comissão.Houve uma inovação não regimental nessa oportunida<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> foi convida<strong>do</strong>um representante <strong>do</strong> movimento civil correspon<strong>de</strong>nte a cada área, para fazer umaalocução a respeito das expectativas que a socieda<strong>de</strong> tinha em relação aos vários temas8. O processo <strong>de</strong> elaboração <strong>do</strong> relatório e <strong>do</strong> ante-projeto contou com a participação <strong>de</strong> assessores técnicosliga<strong>do</strong>s ao “movimento sanitário”, convida<strong>do</strong>s para esse fim, pelo relator. A votação na sub-comissãoevi<strong>de</strong>nciou o aqui já referi<strong>do</strong> como função pedagógica das audiências: o ante-projeto foi aprova<strong>do</strong> emto<strong>do</strong>s os seus ítens com imensa maioria, no padrão 19 X 3, 18 X 5, 21 X 2, etc.74 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


em discussão pela Constituinte. Ela acabou por consistir numa das três oportunida<strong>de</strong>sque a socieda<strong>de</strong> teve <strong>de</strong> se manifestar direta e oficialmente <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> processo constituinte.A primeira foi por ocasião das audiências públicas e a terceira seria na <strong>de</strong>fesa da“emenda popular”. Ao passo que nesses <strong>do</strong>is momentos pu<strong>de</strong>ram se manifestar todasas correntes, neste caso, a posição ouvida foi a <strong>do</strong> movimento da Reforma Sanitária porser consi<strong>de</strong>rada a mais expressiva <strong>do</strong> “espírito “<strong>do</strong> ante-projeto.A Comissão da Or<strong>de</strong>m Social esteve presidida pelo Deputa<strong>do</strong> Edme Tavares, <strong>do</strong>PFL <strong>de</strong> Minas Gerais. O relator foi o Sena<strong>do</strong>r Almir Gabriel, <strong>do</strong> PMDB <strong>do</strong> Pará, médico,cirurgião toráxico, ex-secretário Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, ex-prefeito <strong>de</strong> Belém e ex-diretorda Divisão Nacional <strong>de</strong> Tuberculose <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>; bastante liga<strong>do</strong> aomovimento sanitarista, era <strong>do</strong>s poucos constituintes que tinham a questão saú<strong>de</strong> comoum <strong>do</strong>s principais itens da sua plataforma política. A sua escolha como relator não foialeatória, mas fez parte da estratégia geral <strong>do</strong> PMDB <strong>de</strong> ter a seu cargo as principaisrelatorias, além <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> discutida com representantes <strong>do</strong> “movimento” (assim comoa escolha <strong>do</strong> relator da Sub-Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>).Essa dinâmica fez com que a preparação <strong>do</strong> ante-projeto pelo relator, a partir <strong>do</strong>sapresenta<strong>do</strong>s pelas Sub-comissões, consistisse na etapa mais importante da Comissão.Foi nesse momento que começaram a ocorrer algumas situações novas.Ocorre que, no início, ao invés <strong>de</strong> buscar o respal<strong>do</strong> político <strong>do</strong> “movimento” aoqual pretendia ser orgânico, o relator valeu-se <strong>de</strong> uma estratégia mais “técnica”, utilizan<strong>do</strong>mais os assessores “da casa” <strong>do</strong> que os externos, informais, como havia aconteci<strong>do</strong>na Sub-Comissão.Embora tenha si<strong>do</strong> difícil se chegar à seqüência real <strong>do</strong>s fatos, a verda<strong>de</strong> é que,além <strong>do</strong>s “assessores da casa”, a presença que se fez sentir <strong>de</strong> forma intensa durante ostrabalhos foi a <strong>do</strong> Ministério da Previdência e Assistência Social através <strong>do</strong> próprioMinistro Rafael <strong>de</strong> Almeida Magalhães e <strong>do</strong>s seus assessores, reconheci<strong>do</strong>s como taispelo relator.Outra força também condicionante <strong>do</strong>s rumos <strong>do</strong> ante-projeto da Comissão veioda articulação com os setores da Constituinte que estavam tratan<strong>do</strong> da questão tributáriae orçamentária, em particular o Deputa<strong>do</strong> José Serra e alguns assessores.Quan<strong>do</strong> se tomou conhecimento da primeira versão <strong>do</strong> ante-projeto ele já tinhauma “cara”, que acabou sen<strong>do</strong> preservada até o final da Consltituinte: a da Segurida<strong>de</strong>Social; isto é, a idéia <strong>de</strong> que a saú<strong>de</strong>, a previdência social e a assistência social <strong>de</strong>veriamconformar um mesmo conjunto sob a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social.9. O CEAC, no caso através <strong>do</strong> NESP e com a colaboração <strong>do</strong> CFM pretendia exercer três tipos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>ssimultâneamente: realizar estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentais e acadêmicos <strong>do</strong> processo, assessorar os constituintese promover a mobilização da socieda<strong>de</strong> em relação aos vários temas em discussão. Do ponto <strong>de</strong> vista<strong>do</strong> registro, a estratégia foi a da gravação das várias etapas em “ví<strong>de</strong>o-tape”, para o que se contoutambém com a colaboração da Organização Panamericana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>; os produtos, brutos ou edita<strong>do</strong>sse encontram a disposição para consulta.10. O fato <strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> fe<strong>de</strong>ral também lhe facilitava o acesso às <strong>de</strong>pendências e <strong>do</strong>cumentos <strong>do</strong>Congresso, prerrogativa <strong>de</strong> ex-parlamentares. Registra-se também que sua assessoria foi sempreprofissionalizada, estan<strong>do</strong> contrata<strong>do</strong> pelo setor para essa finalida<strong>de</strong>. Foi também perfeitamentecaracterizada uma articulação entre o mesmo e alguns assessores e funcionários da “casa”, na facilitação<strong>de</strong> informações, acesso às <strong>de</strong>pendências, num vínculo nunca esclareci<strong>do</strong> se i<strong>de</strong>ológico, pessoal,hierárquico ou por outra motivação.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>75


Com as diferenças representadas pela transformação da Saú<strong>de</strong> em seção subordinadaao capítulo da Segurida<strong>de</strong> Social e pela estratégia correspon<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> financiamento,po<strong>de</strong>-se dizer que o texto aprova<strong>do</strong> continuou a conter a essência da propostaque se vinha <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> para a Saú<strong>de</strong>, com alguns aperfeiçoamentos.Cabe, no entanto, algumas consi<strong>de</strong>rações sobre o processo e sobre o resulta<strong>do</strong>final, no que toca à questão da “Segurida<strong>de</strong> Social”.Em primeiro lugar, parece ter havi<strong>do</strong> um distanciamento <strong>do</strong> “movimento”, <strong>do</strong>processo <strong>de</strong> elaboração <strong>do</strong> projeto. Não por opção, mas pela tática a<strong>do</strong>tada pelo relator,que pretendia ser mais “técnico” e realista, interpretan<strong>do</strong> as “pressões <strong>do</strong> movimento”,como <strong>de</strong>svio corporativo. Entretanto, com isso, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rou-se to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong>alianças e consenso a que se tinha chega<strong>do</strong>, a partir das conclusões da 8ª Conferência.To<strong>do</strong>s se sentiam confusos e excluí<strong>do</strong>s da discussão sobre as novas alternativas. Essesentimento continuou presente nas etapas subseqüentes <strong>do</strong> processo, ainda que se tenhaconsegui<strong>do</strong> uma maior participação daí por diante.A Comissão <strong>de</strong> SistematizaçãoA Comissão <strong>de</strong> sistematização foi encarregada <strong>de</strong> elaborar o projeto <strong>de</strong> Constituiçãopropriamente dito, que seria discuti<strong>do</strong>, emenda<strong>do</strong> e vota<strong>do</strong> pelo plenário daConstituinte.Integrada por to<strong>do</strong>s os presi<strong>de</strong>ntes e relatores das comissões e relatores dassub-comissões, acrescida <strong>de</strong> indicações proporcionais <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os parti<strong>do</strong>s, a Comissão<strong>de</strong> Sistematização não <strong>de</strong>veria, a rigor, “criar”novos conteú<strong>do</strong>s, mas trabalhar a partir<strong>do</strong>s ante-projetos parciais produzi<strong>do</strong>s nas etapas anteriores. Ocorre que, mesmo issosen<strong>do</strong> um preceito regimental, a intenção real parece ter si<strong>do</strong> outra, na medida em quefoi nessa comissão que se investiu mais, com o fim <strong>de</strong> lhe conferir a maior representativida<strong>de</strong>não só proporcional, mas também qualitativa; isto é, as principais li<strong>de</strong>rançasai estavam.Entretanto, o fato <strong>de</strong> ser integrada em gran<strong>de</strong> parte pelos relatores oriun<strong>do</strong>s dassub-comissões interessa<strong>do</strong>s em manter suas proposições originais, se por um la<strong>do</strong> podiasignificar uma garantia <strong>de</strong> coerência, significava também o privilegiamento das tesesmais progressistas.Recor<strong>de</strong>-se que esses relatores foram to<strong>do</strong>s indica<strong>do</strong>s pelo lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> PMDB naConstituinte, Sena<strong>do</strong>r Mário Covas, num acor<strong>do</strong> com o PFL.Essa é a origem <strong>do</strong>s conflitos que surgiriam mais adiante quan<strong>do</strong> os setores maisconserva<strong>do</strong>res e majoritários se julgaram ludibria<strong>do</strong>s pelo regimento que criava dificulda<strong>de</strong>spara o plenário modificar o texto aprova<strong>do</strong> pela Comissão <strong>de</strong> Sistematização.11. Foi nessa ocasião que se configurou o surgimento <strong>de</strong> um novo “lobby”, constituí<strong>do</strong> especialmentepelas Associações <strong>de</strong> CIPAs - Comissão Internas <strong>de</strong> Prevenção <strong>de</strong> Aci<strong>de</strong>ntes, em articulação com opróprio Ministério <strong>do</strong> Trabalho e outros setores interessa<strong>do</strong>s em manter a questão da saú<strong>de</strong> ocupacionalfora <strong>do</strong> Sistema Único. As alegações eram <strong>de</strong> várias or<strong>de</strong>ns, mas a mais comum era o receio <strong>de</strong> a áreasair <strong>do</strong> MTb, disfarçan<strong>do</strong> os interesses nitidamente corporativos (e orgânico com os interessesempresariais) <strong>do</strong>s engenheiros <strong>de</strong> segurança <strong>do</strong> trabalho.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>77


Durante o processo foram redigi<strong>do</strong>s e vota<strong>do</strong>s um ante-projeto e três projetosque <strong>de</strong>ram origem ao Projeto <strong>de</strong> Constituição envia<strong>do</strong> ao plenário da AssembléiaNacional Constituinte.O primeiro ante-projeto representou apenas uma compilação <strong>do</strong>s ante-projetosdas Comissões, sem acréscimos ou modificações.O segun<strong>do</strong> foi elabora<strong>do</strong> com base nas emendas apresentadas pelos constituintese consistiu no 1º substitutivo <strong>do</strong> relator. Isto é, um novo texto cria<strong>do</strong> pelo relator a partir<strong>do</strong> original e da acolhida ou não, pelo relator das emendas apresentadas.Esse primeiro substitutivo foi também aberto ao <strong>de</strong>bate e recebeu emendas <strong>do</strong>plenário. Foi nessa etapa que foram apresentadas as “emendas populares” previstas noregimento, entre elas a proposta pela Plenária da Saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>fendida, em plenário pelohoje Deputa<strong>do</strong> Sérgio Arouca.Seguiu-se a fase <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa das “emendas populares” perante a Comissão <strong>de</strong>Sistematização e os <strong>de</strong>bates sobre cada título, capítulo e seção, entre os constituintes.Este foi o perío<strong>do</strong> em que o relator viu-se submeti<strong>do</strong> ao maior número <strong>de</strong> pressõesjá que, em seguida, <strong>de</strong>veria apresentar o segun<strong>do</strong> substitutivo que seria vota<strong>do</strong> pelaComissão. A pressão foi <strong>de</strong> tal or<strong>de</strong>m que o relator Deputa<strong>do</strong> Bernar<strong>do</strong> Cabral entrincheirou-seno edifício-se<strong>de</strong> <strong>do</strong> Ban<strong>do</strong> <strong>do</strong> Brasil, que passou a ser o “quartel general” daConstituinte.Tal expediente não passou sem críticas, na medida em que isso não significavaum distanciamento <strong>de</strong> todas as pressões; apenas os mais tími<strong>do</strong>s, sem “padrinhos”esem gravata, não conseguiam ter acesso ao “bunker”.Se no momento o processo pa<strong>de</strong>ceu <strong>de</strong>sse elitismo, foi essa mesma etapa quepropiciou a maior mobilização popular durante a Constituinte, motivada pela busca <strong>do</strong>apoio às “emendas populares”que necessitavam, cada uma, <strong>de</strong> pelo menos trinta milassinaturas <strong>de</strong> eleitores para serem admitidas e merecerem um <strong>de</strong>fensor indica<strong>do</strong> pelasentida<strong>de</strong>s patrocina<strong>do</strong>ras, para ocupar a tribuna da Comissão.Embora a idéia <strong>de</strong> “plenárias”, ou seja o “pleno” das entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> cada área nãoter si<strong>do</strong> original da saú<strong>de</strong>, sem dúvida, para o “movimento sanitário” esse talvez possaser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o seu gran<strong>de</strong> salto <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>.Isso porque, ao contrário <strong>do</strong>s momentos anteriores em que havia uma certa “condução”<strong>do</strong> movimento por algumas entida<strong>de</strong>s setoriais e por li<strong>de</strong>ranças individuais, apartir da criação da “plenária” com o intuito específico <strong>de</strong> organizar a colheira <strong>de</strong>assinaturas, novos atores sociais entraram na cena da saú<strong>de</strong> até então bastantecorporativa.As dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas na colheita <strong>de</strong> assinaturas evi<strong>de</strong>nciou o quanto o“movimento” estava distante das entida<strong>de</strong>s realmente populares, <strong>de</strong> base, na sua prática<strong>de</strong> to<strong>do</strong> dia. Foi nos locais em que o movimento popular <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> era mais forte comoSão Paulo, que os resulta<strong>do</strong>s foram mais expressivos. Isso evi<strong>de</strong>nciou mais ainda anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que o “movimento” da saú<strong>de</strong>, da Reforma Sanitária buscasse seus verda<strong>de</strong>irosalia<strong>do</strong>s que estão especialmente fora das aca<strong>de</strong>mias e das corporações.Apesar <strong>de</strong> todas essas constatações que, longe <strong>de</strong> serem <strong>de</strong>tratoras <strong>do</strong> “movimento”apenas lhe abrem novos caminhos, tiveram participação importante na“plenária” os parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> esquerda, especialmente PT, PCB, PC <strong>do</strong> B, assim como as78 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


entida<strong>de</strong>s tradicionais da área, como ABRASCO, <strong>CEBES</strong> e, <strong>de</strong> forma abso<strong>luta</strong>mentesignificativa pelo seu reconhecimento social, o Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Medicina e aFe<strong>de</strong>ração Nacional <strong>do</strong>s Médicos; ao la<strong>do</strong>, e integra<strong>do</strong>s com CUT, CGT E CONAM,além <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mora<strong>do</strong>res, sindicais, profissionais e éticas <strong>de</strong> nívellocal e regional.Retoman<strong>do</strong>-se a questão da dificulda<strong>de</strong> em se colher as assinaturas para a emendapopular da saú<strong>de</strong> (esta teve menos <strong>de</strong> sessenta mil assinaturas, enquanto a da ReformaAgrária obteve mais <strong>de</strong> três milhões <strong>de</strong> assinaturas e a <strong>do</strong> Ensino Público mais <strong>de</strong> ummilhão), parece estar aí mais uma evidência <strong>do</strong> raciocíno sobre a relativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> “avanço”da “saú<strong>de</strong>”por referência a to<strong>do</strong> o movimento social. Isto é, enquanto o “movimento”elitiza<strong>do</strong> profissional encaminha propostas técnica e politicamente corretas e progressistas,os que são seus sujeitos principais, os usuários estão premi<strong>do</strong>s pelas questõesque, longe <strong>de</strong> serem contraditórias ou distanciadas, são as próprias intermediações dasaú<strong>de</strong>.Isso não implica em negar ou questionar o “movimento”, mas apenas lhe questionara auto-suficiência <strong>de</strong> que, em muitos momentos se revestiu.Significa que, certas as teses, sua conquista só se dará pela sua a<strong>de</strong>quada compreensãosocial, o que, por sua vez só po<strong>de</strong> ser consegui<strong>do</strong> mediante um efetivo compromissocom as <strong>luta</strong>s <strong>de</strong> base, <strong>de</strong> subsistência, <strong>de</strong> forma que a saú<strong>de</strong> se transforme <strong>de</strong>meio em fim. E a idéia <strong>de</strong> “plenária” parece ser um caminho para a ampliação da <strong>luta</strong>pela saú<strong>de</strong> para além das suas bases tradicionais 12 .A outra emenda “popular”apresentada tinha outra organicida<strong>de</strong>: foi apresentadaconjuntamente pela Fe<strong>de</strong>ração Brasileira <strong>de</strong> Hospitais, pela Associação Brasileira <strong>de</strong>Medicina <strong>de</strong> Grupo, plea Fe<strong>de</strong>ração Nacional <strong>do</strong>s Estabelecimentos <strong>de</strong> Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,pela Associação Brasileira <strong>de</strong> Hospitais e por um <strong>de</strong>sconheci<strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>sContemporâneos da Comunida<strong>de</strong>, e teve cerca <strong>de</strong> setenta mil assinaturas.Não ten<strong>do</strong> se toma<strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong> qualquer movimentação <strong>de</strong> rua para acolheira <strong>de</strong>ssas assinaturas é <strong>de</strong> se supor que os signatários <strong>de</strong>veriam ser, e há indíciosdisso, funcionários da área hospitalar privada.Essa emenda propunha:“Inclua-se on<strong>de</strong> couber:O Sistema Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve respeitar aos princípios:a. universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> atendimento;b. pluralismo <strong>de</strong> sistemas médico-assistenciais;c. livre exercício profissional;d. livre opção <strong>do</strong> indivíduo entre diversos sistemas”.Nessa mesma etapa da apresentação e <strong>de</strong>fesa das “emendas populares” começavama surgir algumas emendas globais ou substitutivos, apresenta<strong>do</strong>s por gruposparlamentares interpartidários, como o chama<strong>do</strong> “grupo <strong>do</strong>s 32”comanda<strong>do</strong> pelo Sena<strong>do</strong>José Richa, entre outros.No entanto, paralelamente e longe <strong>do</strong>s olhos <strong>do</strong>s passantes <strong>do</strong> Congresso nacional,o relator recebia, um a um, os Ministros <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, expon<strong>do</strong> os interesses <strong>de</strong> suas respectivaspastas e, no conjunto, <strong>do</strong> Governo. Contraditórios com o próprio governo querepresentavam, os Ministros da Saú<strong>de</strong> e da Previdência também ali estiveram. Segun<strong>do</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>79


elatos <strong>de</strong> participantes <strong>de</strong>ssas reuniões, o Ministro da Saú<strong>de</strong>, Dr. Roberto Santosempenhou-se em <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o Sistema Único, conforme já propunha o Projeto da Constituiçãoem análise.Por outro la<strong>do</strong>, e em outra reunião, o Ministro Rafael <strong>de</strong> Almeida Magalhães, daPrevidência, apresentou um substitutivo para a Segurida<strong>de</strong> Social que a reduzia a umúnico capítulo, em que a saú<strong>de</strong> seria apenas um artigo <strong>do</strong>s sete que o comporiam.Ainda que inteligentemente formulada, conten<strong>do</strong> diretrizes essenciais, o seu nível<strong>de</strong> agregação não <strong>de</strong>ixa dúvidas sobre a intenção político-administrativa: enten<strong>de</strong>r astrês áreas: saú<strong>de</strong>, previdência e assistência social como indissociáveis na coor<strong>de</strong>nação eexecução. Indaga<strong>do</strong> por um <strong>do</strong>s presentes porque a omissão em relação ao SistemaÚnico, o ministro respon<strong>de</strong>u (a aí se fecha o círculo) que os SUDS já haviam prova<strong>do</strong> asua inecessida<strong>de</strong>.Felizmente essa não foi a compreensão <strong>do</strong> relator e, tampouco <strong>do</strong>s governos estaduais;os SUDS acabaram por ser um gran<strong>de</strong> aval para a aprovação final <strong>do</strong> projeto, a<strong>de</strong>speito <strong>de</strong> alguns pensarem o contrário.Quan<strong>do</strong> o segun<strong>do</strong> substitutivo <strong>do</strong> relator foi a votação, to<strong>do</strong>s os textos haviamsi<strong>do</strong> bastante “enxuga<strong>do</strong>s”, inclusive o da saú<strong>de</strong>. Essa postura, longe <strong>de</strong> ser uma questãotécnica como querem muitos, representa, no mínimo, passar por cima <strong>de</strong> questões relevantes;se não, optar contra as mesmas. Na prática significou a diminuição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> negociação, nas etapas posteriores quan<strong>do</strong>, não se tinha mais on<strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r.Esse <strong>de</strong>svio tecnicista, muitos parlamentares progressistas acabaram por cometer.A votação não trouxe maiores surpresas, com exceção das questões da saú<strong>de</strong>ocupacional e <strong>do</strong> monopólio estatal para a compra <strong>de</strong> matérias primas, equipamento emedicamentos.A concentração <strong>do</strong> problema nesses <strong>do</strong>is aspectos permitiu a celebração <strong>de</strong> umacor<strong>do</strong> para a rejeição <strong>do</strong> dispositivo sobre o monopólio, em troca da aprovação dasaú<strong>de</strong> ocupacional como atribuição <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. De qualquer maneiraesse ítem foi aprova<strong>do</strong> por escassa maioria.Apesar <strong>de</strong> já ter-se distancia<strong>do</strong> bastante das propostas iniciais e, em particular da“emenda popular”, a apreciação feita pela “plenária” sobre o projeto aprova<strong>do</strong> foipositiva, na medida que julgava que, na essência, a proposta <strong>do</strong> “movimento” estavapreservada; era necessário o trabalho na próxima etapa para seu aperfeiçoamento.Pelos mesmos motivos, agrava<strong>do</strong>s por outros aspectos em que o projeto semostrou mais progressista, ali<strong>do</strong> à impotência regimental para reverter a situação, éque os setores conserva<strong>do</strong>res <strong>de</strong>snca<strong>de</strong>aram uma reação que mu<strong>do</strong>u os rumos <strong>do</strong>processo daí por diante.12. Além da emenda encaminhada pela “plenária”, outras quatro não antagônicas com aquela, tambémforam apresentadas. Essas quatro eram sobre: pisos <strong>de</strong> gastos com saú<strong>de</strong>; municipalização, ecologia emedicina natural e terapias e méto<strong>do</strong>s alternativos <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>, o que evi<strong>de</strong>ncia, no mínimo,e apesar <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, a insuficiente coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> processo, pois esses conteú<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>riam ter si<strong>do</strong>, comfacilida<strong>de</strong>, complementares entre si e integra<strong>do</strong>s a uma mesma proposta unitária. Seguramente ossignatários seriam quase os mesmos, e a representativida<strong>de</strong> da proposta cinco vezes maior.80 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O Plenário - Primeiro turnoAo ser apresenta<strong>do</strong> ao plenário da Assembléia Nacional Constituinte, o Projeto<strong>de</strong> Constituição aprova<strong>do</strong> pela Comissão <strong>de</strong> Sistematização, começou a polarizar a discussãoentre os vários grupos <strong>de</strong> interesses, numa verda<strong>de</strong>ira medição <strong>de</strong> forças, comvistas a se entrar na batalha final <strong>do</strong> processo.Os setores conserva<strong>do</strong>res da Constituinte não se conformavam com o teor <strong>do</strong>texto constitucional aprova<strong>do</strong> pela Comissão <strong>de</strong> Sistematização, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por <strong>de</strong>maisavança<strong>do</strong> no campo das conquistas sociais, insuportavelmente estatizante e, mais ainda,por não <strong>de</strong>terem os instrumentos regimentais para <strong>de</strong>rrubar os dispositivos com os quaisnão concordavam 13 .Esse setor, liga<strong>do</strong> nitidamente aos interesses patronais e ao governo e que emvários momentos já esboçava se organizar como “bloco”, suprapartidário, acabou porconstituir o “Centro Democrático”mais conheci<strong>do</strong> por “Centrão”, envolven<strong>do</strong> os segmentosmais conserva<strong>do</strong>res <strong>do</strong> PMDB, PFL, PTB, PDS, e outros parti<strong>do</strong>s 14 .O “Centrão” alegan<strong>do</strong> a manipulação da Constituinte por setores minoritários(sic) e se arvoran<strong>do</strong> <strong>de</strong> representante da “vonta<strong>de</strong> média”<strong>do</strong> povo brasileiro, <strong>de</strong>cidiunum ato <strong>de</strong> rebeldia e valen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> uma circunstancial maioria propor um “projeto <strong>de</strong>resolução” para mudar o regimento interno.Obti<strong>do</strong> o número necessário <strong>de</strong> assinaturas, o projeto <strong>de</strong> resolução foi aprova<strong>do</strong>pela maioria <strong>do</strong> plenário.Assim, passou a ser admiti<strong>do</strong> pelo novo regimento a apresentação <strong>de</strong> emendassubstitutivas globais, ou seja, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> apresentar Projetos <strong>de</strong> Constituiçãoalternativos ao aprova<strong>do</strong> pela Comissão <strong>de</strong> Sistematização; e o uso <strong>de</strong>sse projeto alternativoter preferência <strong>de</strong> votação e possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprovação sobre o da“Sistematização”.Estava forma<strong>do</strong> pois, segun<strong>do</strong> as apreensões <strong>do</strong> momento o “rolo compressor”que po<strong>de</strong>ria por abaixo to<strong>do</strong> o trabalho anterior e, nessa etapa, aprovar uma Constituiçãocompletamente diferente e até oposta à que vinha sen<strong>do</strong> (mo<strong>de</strong>radamente)construída.E assim o “Centrão”se colocou a tarefa <strong>de</strong> elaborar o seu Projeto <strong>de</strong> Constituição,apresentan<strong>do</strong>-o com mais <strong>de</strong> 280 assinaturas. Apenas um outro bloco parlamentarchama<strong>do</strong> “Grupo <strong>do</strong>s 32 “que também já vinha se articulan<strong>do</strong> e apresentan<strong>do</strong> emendascoletivas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Comissão <strong>de</strong> Sistematização, sob a coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r José Richae integra<strong>do</strong> por constituintes <strong>de</strong> feição liberal <strong>de</strong> vários parti<strong>do</strong>, elaborou uma emendasubstitutiva global, conhecida como “Hércules IV”.O restante <strong>do</strong>s constituintes, com a moral bastante abatida, tratou <strong>de</strong> articular a<strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> Projeto da Comissão <strong>de</strong> Sistematização, tarefa, <strong>de</strong> início, consi<strong>de</strong>rada quaseinglória, sob a li<strong>de</strong>rança principal <strong>do</strong> lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> PMDB, Sena<strong>do</strong>r Mário Covas.O principal instrumento <strong>de</strong>ssa <strong>de</strong>fesa foi a negociação <strong>de</strong> cada capítulo entre asli<strong>de</strong>ranças partidárias, mas na prática, entre o “Centrão’ e os representantes da Comissão<strong>de</strong> Sistematização, com a criação agora regimental, <strong>do</strong> instituto da “fusão <strong>de</strong> emendas”.Isto é a apresentação <strong>de</strong> uma emenda consensual resultante da fusão <strong>de</strong> várias outrasoficialmente apresentadas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que subscritas por todas as li<strong>de</strong>ranças partidárias.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>81


A idéia <strong>de</strong> que se partiu era que o limite da perda era o projeto <strong>do</strong> “Centrão”, e oda conquista, o da “Sistematização”. Assim, tu<strong>do</strong> que se negociasse nesse espaço seriavantajoso em relação ao limite da perda, alcançável na polarização <strong>do</strong> voto; só seriadisputada no voto a matéria não possível <strong>de</strong> ser consensualizada por não consistir questão<strong>de</strong> grau, mas <strong>de</strong> mérito, como acabaram sen<strong>do</strong> o sistema <strong>de</strong> governo, critérios para<strong>de</strong>sapropriação <strong>de</strong> terras, duração <strong>de</strong> mandato, etc.Mais, no entanto, que uma questão <strong>de</strong> “boa vonta<strong>de</strong>”, o que permitiu a negociaçãofoi a percepção, que ce<strong>do</strong> se teve, <strong>de</strong> que as teses <strong>do</strong> “Centrão” não eram tãoconsensuais assim, mesmo entre os seus integrantes. Ocorre que o fenômeno “Centrão”não se viabilizou apenas por motivações i<strong>de</strong>ológicas. Havia uma legião <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentescom o processo <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões na Constituinte e que, se sentin<strong>do</strong> marginaliza<strong>do</strong>sou “não a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s” pelas li<strong>de</strong>ranças tradicionais acostumadas aos acor<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cúpula,a<strong>de</strong>riu à “reação”, mas que no momento <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões sobre questões <strong>de</strong> princípiojá não se mostravam tão orgânicos entre si. Não é <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sprezar também amovimentação feita especialmente pelo PT e setores sindicais na <strong>de</strong>núncia pública <strong>do</strong>s“trai<strong>do</strong>res <strong>do</strong> povo” que ameaçou significativamente a relação <strong>de</strong> muitos parlamentarescom suas “bases”; prova disso foi a forte reação por parte <strong>do</strong>s que se consi<strong>de</strong>raramatingi<strong>do</strong>s, e que chegaram a mover processos criminais contra os autores das <strong>de</strong>núncias.Outro fato importante para se registrar foi a <strong>de</strong>cisiva participação <strong>do</strong>s parti<strong>do</strong>s eparlamentares <strong>de</strong> esquerda na mesa <strong>de</strong> negociações. Dada a situação já referida <strong>de</strong> seter nas etapas anteriores escoima<strong>do</strong> ao máximo as “gorduras” <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> Constituiçãonão havia mais quase nada em que se ce<strong>de</strong>r, sem per<strong>de</strong>r essência. Assim, ocontraponto das propostas à esquerda foi fundamental para rebalancear as matérias emanálise, uma vez que os acor<strong>do</strong>s só po<strong>de</strong>riam ser “fecha<strong>do</strong>s” sob concordância <strong>de</strong> to<strong>do</strong>sos parti<strong>do</strong>s.A postura madura <strong>de</strong>sses segmentos que, ao mesmo tempo que batalhavam pelaspropostas mais progressistas sempre estiveram dispostos ao acor<strong>do</strong> razoável, viabilizouem gran<strong>de</strong> parte os resulta<strong>do</strong>s que, ainda que insuficientes po<strong>de</strong>riam ter si<strong>do</strong>muito piores.Se por um la<strong>do</strong>, no entanto, as disputas obe<strong>de</strong>ciam a uma organicida<strong>de</strong> geral,polarizada entre os interesses públicos e os priva<strong>do</strong>s, o trabalho e o capital, a estatizaçãoe o liberalismo, em cada área assumiam suas especificida<strong>de</strong>s, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> interesses eatores concretos.Na saú<strong>de</strong> a gran<strong>de</strong> ban<strong>de</strong>ira levantada pelos setores conserva<strong>do</strong>res foi a <strong>do</strong>combate à “estatização” a que levariam as propostas contidas no texto da “Sistematização”.Essa ban<strong>de</strong>ira uniu o setor hospitalar priva<strong>do</strong>, o setor da “medicina <strong>de</strong> grupo”,o setor das cooperativas médicas e o setor liberal da medicina.É interessante notar que esse último segmento tradicionalmente vinha fazen<strong>do</strong>alianças históricas com os setores progressistas, na <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> setor público. No entanto,13. Isso porque o regimento interno então em rigor não permitia a apresentação <strong>de</strong> substitutivos globais eo texto básico a ser emenda<strong>do</strong> tinha que ser o da “Sistematização”; assim teriam que, por ocasião davotação <strong>de</strong> cada dispositivo, que rejeitar o in<strong>de</strong>sejável e aprovar uma emenda substitutiva, para o queprecisariam, a cada situação, mobilizar duzentos e oitenta constituintes.14. Deve-se recordar, no entanto, a origem mais remota <strong>do</strong> “Centro Democrático”, como grupo situa<strong>do</strong><strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> PMDB <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1984, numa clara oposição ao grupo li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> pelo seu presi<strong>de</strong>nte, Deputa<strong>do</strong>Ulysses Guimarães, conheci<strong>do</strong> como “Unida<strong>de</strong>”, os quais conseguiram coexistir enquanto durou aAliança Democrática.82 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


face à possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>finições mais estruturais, que vinham se configuran<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>a 8ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, o mesmo foi-se afastan<strong>do</strong> e chegou a celebraralianças claras com os interesses <strong>do</strong> capital. Talvez se possa levantar aqui alguma hipótese<strong>de</strong> erro tático <strong>do</strong> “movimento sanitário” na vertente da sua <strong>luta</strong> corporativa (Conselhose Sindicatos), ao não ter consegui<strong>do</strong> manter a aliança com os setores efetivamente liberaisnão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Po<strong>de</strong>-se, porém, contra-argumentar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> já, que nemmesmo esse liberalismo é real e que a perspectiva <strong>de</strong> estatização não os afeta apenasi<strong>de</strong>ologicamente mas na sua prática real altamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> fracasso e dasinsuficiência <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r público; senão com vínculos íntimos com o setor priva<strong>do</strong> <strong>de</strong>insumos.Por outro la<strong>do</strong>, ainda que uni<strong>do</strong>s em relação à ban<strong>de</strong>ira contra a estatização, osinteresses particulares <strong>do</strong>s grupos liga<strong>do</strong>s ao setor hospitalar priva<strong>do</strong> contrata<strong>do</strong> pelopo<strong>de</strong>r público, ao setor <strong>do</strong> pré-pagamento (medicina <strong>de</strong> grupo, seguros e cooperativas),indicavam caminhos organizativos distintos para o Sistema <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Enquanto aquele<strong>luta</strong>va pela preservação da tutela <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, este pleiteava a in<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> mesmo.Ao setor hospitalar contrata<strong>do</strong> (ou contratável) interessava o aumento da receitada Segurida<strong>de</strong> Social e uma estratégia <strong>de</strong> organização <strong>do</strong>s serviços que viabilizasse asua participação nesses recursos, sem subordinação técnica ou administrativa ao po<strong>de</strong>rpúblico. Pelo contrário, ao setor <strong>de</strong> pré-pagamento interessava a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>captação direta <strong>do</strong>s recursos sem a intermediação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, isto é, sem passar pelo“caixa” da Segurida<strong>de</strong> Social; para tal seria necessário a não compulsorieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>contribuição para a Segurida<strong>de</strong> Social e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> o Esta<strong>do</strong> transferir a essesetor parte da sua responsabilida<strong>de</strong> na cobertura assistencial.É interessante e lógico notar como, face a essas alternativas, o setor empresarialmais mo<strong>de</strong>rno ten<strong>de</strong> a preferir a alternativa estatal, preservada a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>organização <strong>de</strong> serviços in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> recurso público, contra a preservação <strong>do</strong>sintereses empresariais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e pouco eficientes. O que esse setor nãotolera é o que chamam <strong>de</strong> “xenofobia”, numa <strong>de</strong>fesa clara da participação <strong>do</strong> capitalestrangeiro no setor.O Projeto apresenta<strong>do</strong> pelo “Centrão”, atendia basicamente às reinvidicações <strong>do</strong>setor hospitalar priva<strong>do</strong>, conforme analisa<strong>do</strong> por técnicos liga<strong>do</strong>s à “plenária da saú<strong>de</strong>”.Assim, se aprova<strong>do</strong>, o projeto <strong>do</strong> “Centrão” significaria um retrocesso em relaçãoao que na prática, já vinha ocorren<strong>do</strong> na política nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, através <strong>do</strong>s SUDS.Como já foi referi<strong>do</strong>, face a essas circustâncias, tentou-se repolarizar a discussãoatravés da apresentação <strong>de</strong> novas emendas 15 .15. Assim, po<strong>de</strong>m ser <strong>de</strong>stacadas as seguintes, além daquelas que recuperavam o texto da “Sistematização”.- recuperação da “emenda popular”, pelo Deputa<strong>do</strong> Eduar<strong>do</strong> Jorge. (PT);- recuperação da questão <strong>do</strong> monopólio estatal <strong>de</strong> importação <strong>de</strong> medicamentos, equipamentos ematérias primas, pelos Deputa<strong>do</strong>s Célio <strong>de</strong> Castro (sem parti<strong>do</strong>) e Al<strong>do</strong> Arantes (PC <strong>do</strong> B);- inclusão <strong>do</strong> piso <strong>de</strong> 13% <strong>de</strong> gastos orçamentários com Saú<strong>de</strong>, pela Deputada Abigail Feitosa (PSB).- recuperação da idéia da “natureza pública”, pelo Deputa<strong>do</strong> Carlos Sant’Anna (PMDB);- recuperação <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> da saú<strong>de</strong> ocupacional, pelo Deputa<strong>do</strong> Eduar<strong>do</strong> Jorge (PT);- explicitação da proibição <strong>de</strong> comercialização <strong>de</strong> sangue e hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s, pelo Deputa<strong>do</strong> CarlosSant’Anna (PMDB) e Sena<strong>do</strong>res José Fogaça (PMDB) e Mário Covas (PDT), que <strong>de</strong>ram origem a uma“emenda <strong>de</strong> fusão” sob a coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> Deputa<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> Bezerra e participação <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>rJamil Haddad (PSB) e <strong>do</strong> Deputa<strong>do</strong> Eduar<strong>do</strong> Jorge (PT);SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>83


Várias emendas individuais foram apresentadas para excluir ou relativizar a saú<strong>de</strong>ocupacional, em relação ao Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.O processo <strong>de</strong> negociação foi <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong> duas semanas antes da data previstapara votação, sob coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Almir Gabriel e, já na fase <strong>de</strong> “fechamento”,diretamente pelo Sena<strong>do</strong>r Mário Covas.Pelo la<strong>do</strong> <strong>do</strong> setor progressista participaram das negociações na primeira etapa(<strong>de</strong> aproximações), também os Deputa<strong>do</strong>s Raimun<strong>do</strong> Bezerra, Carlos Mosconi e AlceniGuerra (PFL). Pela ala conserva<strong>do</strong>ra, os Deputa<strong>do</strong>s A<strong>do</strong>lfo <strong>de</strong> Oliveira (PFL), Kon<strong>de</strong>rReis (PDS), Jofran Frejat (PFL) e Jorge Viana (PMDB). Ainda que o Deputa<strong>do</strong> JofranFrejat não tenha si<strong>do</strong> signatário <strong>do</strong> projeto <strong>do</strong> “Centrão” e negasse a sua ligação a ele,acabou por ser um <strong>do</strong>s principais interlocutores <strong>do</strong>s setores conserva<strong>do</strong>res, dada inclusivea escassez <strong>de</strong> parlamentares efetivamente liga<strong>do</strong>s às questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> comomilitância, no interior <strong>do</strong> “Centrão” 16 .Enquanto se processavam os <strong>de</strong>bates no “plenarinho” as movimentações externas<strong>do</strong>s vários segmentos da socieda<strong>de</strong>, interessa<strong>do</strong>s, cada um sob seu prisma, nas questõesem discussão, eram cada vez mais rui<strong>do</strong>sas, ocupan<strong>do</strong> espaços pagos em jornal,disputan<strong>do</strong> pautas <strong>de</strong> reportagem, divulgan<strong>do</strong> <strong>do</strong>cumentos e fazen<strong>do</strong> o “corpo a corpo”final junto aos constituintes.Nesse processo final, duas questões acabaram por polarizar as discussões. Uma,referente à inclusão ou não da saú<strong>de</strong> ocupacional como componente <strong>do</strong> Sistema Único<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>; a outra, a mais essencial, sobre a “natureza pública” ou não <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, com suas implicações <strong>de</strong>correntes sobre o relacionamento entre os setores públicose o priva<strong>do</strong>.A “plenária da saú<strong>de</strong>” em sessão permanente, com participação <strong>de</strong> <strong>de</strong>legações<strong>de</strong> vários Esta<strong>do</strong>s, da maioria <strong>do</strong>s Secretários Estaduais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e muitos SecretáriosMunicipais, passou a acompanhar e analisar passo-a-passo as negociações através dasinformações trazidas pelos constituintes que <strong>de</strong>la participavam. Evi<strong>de</strong>ntemente que osrepresentantes <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> faziam o mesmo, em outro local e trabalhan<strong>do</strong> juntoaos “seus” constituintes.A “plenária” fazia uma avaliação <strong>de</strong> que se estava negocian<strong>do</strong> “na <strong>de</strong>fensiva” eera necessário se ter uma avaliação mais profunda <strong>do</strong>s textos em discussão para sepo<strong>de</strong>r opinar sobre as sutilizas <strong>de</strong> redação que estavam em jogo. A essa altura, o textobaseda discussão era fruto da fusão entre a proposta da “Sistematização” e uma propostatrazida pelo Deputa<strong>do</strong> A<strong>do</strong>lfo <strong>de</strong> Oliveira. Deve-se registrar que antes das negociaçõesinter-partidárias houve um acor<strong>do</strong> preliminar sobre esse texto entre os parlamentaresmais próximos à área. Isto é, o texto original <strong>do</strong> “Centrão” já não estava mais em jogo.Por exemplo, a questão <strong>do</strong> financiamento puramente fe<strong>de</strong>ral já havia si<strong>do</strong> <strong>de</strong>scartada, eaceita a tese <strong>do</strong> financiamento solidário entre União, Esta<strong>do</strong>s e Municípios; e o texto16. Deve-se recordar que um <strong>do</strong>s mais ilustres integrantes <strong>do</strong> “Centrão”, o lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> governo na Câmara,ex-ministro, Deputa<strong>do</strong> Carlos Sat’Anna, no caso da saú<strong>de</strong> vinha assumin<strong>do</strong> históricamente as posiçõesda Reforma Sanitária, numa <strong>de</strong>fesa intransigente e obstinada <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, numacontradição quase surrealista com as suas habituais posições a respeito <strong>de</strong> outras matérias institucionaise da própria conjuntura. O próprio “Centrão” tentava <strong>de</strong>squalificar sua posição invocan<strong>do</strong> questões <strong>de</strong>or<strong>de</strong>m pessoal que não ili<strong>de</strong>m a postura coerente e combativa que tem manti<strong>do</strong> há muito tempo sobrea matéria.84 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


sobre o conceito, abrangências e financiamento da Segurida<strong>de</strong> Social também já haviasi<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>.A análise feita naquele momento sobre o texto indicava no entanto uma vulnerabilida<strong>de</strong>da idéia <strong>do</strong> Sistema Único que era o fato <strong>de</strong>, segun<strong>do</strong> entendimento da maioria,haver possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> participação da iniciativa privada na cobertura assistencialpública, isto é, com recursos públicos, fora <strong>do</strong> Sistema Único. Em vista disso, forampropostas algumas redações alternativas que contornavam o problema, explicitan<strong>do</strong> aproibição <strong>de</strong> aplicação <strong>de</strong> recursos públicos para custeio da re<strong>de</strong> privada, fora <strong>do</strong> SistemaÚnico. Por seu la<strong>do</strong> o setor priva<strong>do</strong> <strong>de</strong>sejava a explicitação <strong>do</strong> direito da iniciativa privadaparticipar das ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Ao final o acor<strong>do</strong> foi feito com esta inclusão, semcontemplar a explicitação <strong>de</strong>sejada pela “plenária”, mas incluin<strong>do</strong> o “contrato <strong>de</strong> direitopúblico” como forma única <strong>de</strong> participação <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> no Sistema Único <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong>.Foi complexa a tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão da “plenária” para avalizar o acor<strong>do</strong> e respaldaros parlamentares nele envolvi<strong>do</strong>s. A avaliação <strong>do</strong>s parlamentares e <strong>do</strong>s seusassessores jurídicos dizia que não havia o risco para o qual a “plenária” havia alerta<strong>do</strong>.Alegavam com a combinação <strong>do</strong> “contrato <strong>de</strong> direito público” e a “forma <strong>de</strong>financiamento” que, entendiam, garantia a totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s recursos públicos <strong>do</strong> setorpara o Sistema Único, asseguraria que o setor priva<strong>do</strong> só receberia recursos públicos <strong>de</strong>custeio sob contrato <strong>de</strong> direito público e <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Sistema Único.Por outro la<strong>do</strong>, muitos julgavam que o “movimento” se <strong>de</strong>sgastaria muito seavalizasse as perdas sofridas e que seria melhor arriscar na disputa pelo voto. Haviauma avaliação (nunca possível <strong>de</strong> ser comprovada com segurança), por parte <strong>do</strong>s SecretáriosEstaduais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> que, numa votação se teria maioria. No entanto, o queestava na mesa <strong>de</strong>ngociações não era só a “Seção Saú<strong>de</strong>”, mas to<strong>do</strong> o “capítulo <strong>de</strong>Segurida<strong>de</strong> Social”; e o acor<strong>do</strong> só seria “fecha<strong>do</strong>” globalmente, pelas regras <strong>do</strong> jogovigentes. Essa era uma variável difícil <strong>de</strong> se analisar e <strong>de</strong> se “bancar”, isto é, se fosselevada a votação, po<strong>de</strong>ria ser que na Saú<strong>de</strong> até se conseguisse vantagem, mas e nasoutras partes, como o financiamento da Segurida<strong>de</strong> Social (e da Saú<strong>de</strong>), a Previdência,etc.? Seguramente era um jogo <strong>de</strong> se ganhar <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> e per<strong>de</strong>r <strong>do</strong> outro; ou per<strong>de</strong>r os<strong>do</strong>is. Assim, tratava-se <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar o ponto crítico <strong>de</strong> viabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> acor<strong>do</strong>. Aconcordância em substituir o termo “Saú<strong>de</strong> Ocupacional” por “Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res”influiu no favorecimento <strong>do</strong>s ânimos a favor <strong>do</strong> acor<strong>do</strong>. Apesar da relutância <strong>de</strong> algunssetores, especialmente o liga<strong>do</strong> ao PC <strong>do</strong> B e seus próprios paralamentares presentes,houve condições <strong>de</strong> se dar o respal<strong>do</strong> necessário aos constituintes para concluirem asnegociações.Pelo acor<strong>do</strong>, com o qual o PC <strong>do</strong> B acabou concordan<strong>do</strong> mesmo que marcan<strong>do</strong>posição <strong>de</strong> insatisfação por ocasião da <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> voto em plenário, ficou preservadaa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> disputa pelo voto <strong>de</strong> três questões: a emenda <strong>de</strong> fusão sobre a proibição<strong>do</strong> comércio <strong>de</strong> sangue e hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s, proposta pelo Deputa<strong>do</strong> Raimun<strong>do</strong> Bezerra,a emenda da Deputada Abigaill Feitosa sobre o piso <strong>de</strong> gastos orçamentários em Saú<strong>de</strong>,e a emenda <strong>do</strong> Deputa<strong>do</strong> Célio <strong>de</strong> Castro sobre o monopólio da importação <strong>de</strong>medicamentos, equipamentos e matérias primas.Outro indica<strong>do</strong>r relativo <strong>do</strong> avanço consegui<strong>do</strong> foram as manifestações veladas<strong>do</strong>s representantes da área privada <strong>de</strong> insatisfação quanto ao texto acorda<strong>do</strong>. Umparlamentar <strong>do</strong> “Centrão” questiona<strong>do</strong> por um dirigente hospitalar <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>chegou a respon<strong>de</strong>r que o problema era que “as esquerdas tinham trabalha<strong>do</strong> mais eSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>85


melhor <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o começo e tinham torna<strong>do</strong> certas conquistas difíceis <strong>de</strong> serem revertidasna última hora” No entanto, o setor <strong>de</strong> “pré-pagamento”, ainda que não tenha consegui<strong>do</strong>a opção da contribuição previ<strong>de</strong>nciária para o setor público ou para o setor priva<strong>do</strong>parece não ter se senti<strong>do</strong> tão prejudica<strong>do</strong>, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com manifestações na imprensa; arigor, sem o <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> recursos para o setor, essa forma <strong>de</strong> organização da prática médicarealmente foi preservada 17 .Os aplausos da galeria provin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a la<strong>do</strong>, podiam confundir alguns, masnão confundiam os analistas efetivamente orgânicos com o Capital, como revelaria areportagem <strong>de</strong> capa da “Visão” na sua edição da semana, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>clara: “Constituinte:o fim da medicina privada”.A LEGISLAÇÃO INFRA-CONSTITUCIONALA Constituição, promulgada em outubro <strong>de</strong> 1988, <strong>de</strong>u um prazo <strong>de</strong> seis mesespara que o Po<strong>de</strong>r Executivo enviasse ao Congresso os Projetos <strong>de</strong> Lei referentes àorganização e funcionamento da Segurida<strong>de</strong> Social. Da mesma forma, ainda que semprazo, ficaram também pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> leis ordinárias várias outras questões, como, emespecial, o Sistema <strong>de</strong> Sangue e Hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s e a Doação e Transplante <strong>de</strong> Órgãos.Ten<strong>do</strong>-se “engoli<strong>do</strong>”, digeri<strong>do</strong> e assimila<strong>do</strong> (mesmo que estrategicamente, paraalguns) o conceito <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social, passou-se a investir na elaboração <strong>de</strong>sses anteprojetos,mediante apoio financeiro <strong>do</strong> MPAS, consegui<strong>do</strong> pelo NESP- Núcleo <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>sem Saú<strong>de</strong> Pública da UnB, visto, naquele momento, como cabeça <strong>de</strong> ponte estratégicapara a ação, Essa foi uma ação técnico-política estratégica e interessante, na medidaque, em diferentes etapas, acabou por reunir mais <strong>de</strong> 100 técnicos liga<strong>do</strong>s ao movimento,na produção <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> ante-projetos <strong>de</strong> lei que incluíram: a Lei Orgânica daSegurida<strong>de</strong> Social; a Lei Orgânica da Previdência Social, a Lei Orgânica da AssistênciaSocial, a Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong> e a Lei sobre o Sistema Nacional <strong>de</strong> Sangue eHemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s.Ainda que apresenta<strong>do</strong>s como contribuição <strong>do</strong> movimento e produto <strong>do</strong> convêniocelebra<strong>do</strong> com o Executivo, esse “pacote” não foi a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> automaticamente pelo Governoque, nas suas instâncias próprias acabou por formular outros projetos alternativos aesses, ainda que os levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração como pontos <strong>de</strong> partida. Ou seja, conseguiuse“dar o tom” ao processo.Ao <strong>de</strong>scumprir os prazos constitucionais, todavia, o Executivo <strong>de</strong>u margem aque parlamentares apresentassem como iniciativa concorrente os projetos <strong>de</strong> lei entãoelabora<strong>do</strong>s pelo NESP, forçan<strong>do</strong> o Executivo a também enviar os “seus”, aos quais foramapensa<strong>do</strong>s, tramitan<strong>do</strong> conjuntamente 18 .17. Em plenário, a única emenda aprovada além <strong>do</strong> texto <strong>do</strong> acor<strong>do</strong> foi a relativa ao sangue, <strong>de</strong>fendidaar<strong>do</strong>rosamente pelo seu apresenta<strong>do</strong>r, pelo relator da Constituinte e pelo lí<strong>de</strong>r <strong>do</strong> governo na Câmara.A votação foi significativa pelo escore (313 X 127) e pelo seu impacto junto à opinião pública. No diaseguinte, mais que a aprovação <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, a imprensa alar<strong>de</strong>ava a “estatização <strong>do</strong>sangue” no país.18. Ver, quanto à tramitação da Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>: Gomes, M.A., Equida<strong>de</strong> e universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> direitoã saú<strong>de</strong>: representação <strong>de</strong> interesses no Congresso Nacional 1987-1990, UnB, Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>em Ciência Política, 1996, 89 p., mimeo.86 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Não se vai aqui discutir a tramitação <strong>do</strong>s projetos relativos à Segurida<strong>de</strong> Social(geral), Previdência Social e Assistência Social que acabaram por incorporar outros atoresconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s “naturais” por representarem grupos <strong>de</strong> interesses específicos, como osaposenta<strong>do</strong>s, os trabalha<strong>do</strong>res e os funcionários da Assistência Social, fazen<strong>do</strong> com quejá começasse aí o esgarçamento da Segurida<strong>de</strong> Social, enquanto campo unitário <strong>de</strong>políticas sociais 19 .Ao começar a tramitar, po<strong>de</strong>-se claramente i<strong>de</strong>ntificar, <strong>de</strong> início, três grupos <strong>de</strong>interesses que tentavam influir sobre o rumo <strong>do</strong> Projeto <strong>de</strong> Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>: orepresenta<strong>do</strong> pelo Ministério da Saú<strong>de</strong>, o da Reforma Sanitária e os Empresários daSaú<strong>de</strong>.Depois <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> constituinte, esse foi o momento mais ativo <strong>do</strong> movimento<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> Congresso Nacional, por uma série <strong>de</strong> circunstâncias, fosse pela presidênciada Comissão ter ligações com o movimento ou, talvez principalmente, pelo cacife comque se chegou ao <strong>de</strong>bate, em termos <strong>de</strong> consistência das propostas e respeito pelasli<strong>de</strong>ranças que haviam atua<strong>do</strong> durante o processo constituinte (mesmo pelos “inimigos”).Essa situação levou a uma situação processualística inusitada até então noCongresso: foram reconheci<strong>do</strong>s oficialmente os vários “lobbies” e da<strong>do</strong> espaço para anegociação direta entre eles, com a participação <strong>do</strong>s parlamentares liga<strong>do</strong>s a cada um<strong>de</strong>les, no âmbito da Comissão <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social, on<strong>de</strong> tramitavam originalmente osprojetos.No <strong>de</strong>correr <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates, outros grupos <strong>de</strong> interesses foram também seorganizan<strong>do</strong> e tentan<strong>do</strong> influir, pelo mesmo processo, nos seus resulta<strong>do</strong>s. Foi o caso<strong>do</strong>s interesses empresariais associa<strong>do</strong>s aos <strong>do</strong>s técnicos <strong>de</strong> segurança <strong>do</strong> trabalho, a<strong>luta</strong>rem pela não inclusão da “saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r” no âmbito <strong>do</strong> SUS; os funcionários<strong>do</strong> INAMPS, da Fundação SESP, da SUCAM e das Pioneiras Sociais, a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>rem amanutenção <strong>de</strong> suas instituições; os diretores <strong>de</strong> Hospitais Universitários e <strong>de</strong> Ensino,também a reagirem a uma maior integração e à co-gestão <strong>do</strong>s Hospitais Universitárioscom as Secretarias <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, crian<strong>do</strong> na ocasião e para esse fim, uma Associação Nacional<strong>de</strong> Diretores <strong>de</strong> Hospitais <strong>de</strong> Ensino; os representantes das filantrópicas também ao nãoaceitarem a figura da co-gestão e queren<strong>do</strong> apenas se diferenciar pela “preferência” <strong>de</strong>contratação e <strong>de</strong> valores <strong>de</strong> remuneração; entre outros representantes, inclusive, <strong>de</strong>associações <strong>de</strong> porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> patologias e outras condições especiais.Muitos <strong>de</strong>sses interesses (ou quase to<strong>do</strong>s) acabaram por ser contempla<strong>do</strong>s notexto final aprova<strong>do</strong>, ainda que a maioria por meio da omissão ou da ambiguida<strong>de</strong> notratamento da<strong>do</strong> à questão, postergan<strong>do</strong>-se mais uma vez, o equacionamento <strong>de</strong>finitivodas mesmas. Daí a necessida<strong>de</strong> atual <strong>de</strong> se ter que apresentar e tramitar outros projetos<strong>de</strong> lei complementares à Lei Orgânica, para dirimir polêmicas, como é o caso <strong>do</strong>s Planose Seguros <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.No <strong>de</strong>correr da tramitação da Lei Orgânica, outro fator interveniente obrigou àabertura <strong>de</strong> novas negociações pelo movimento, com o Governo: a própria mudança <strong>de</strong>governo e a assunção <strong>do</strong> Governo Collor. Ainda que o então ministro <strong>de</strong>clarasse a a<strong>de</strong>sãoao SUS e suas próprias ligações com as suas origens, o processo retar<strong>do</strong>u-se mais,19. No caso específico da Assistência Social, o projeto foi tão <strong>de</strong>sfigura<strong>do</strong> pelos interesses corporativos daLBA que, quan<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> pelo Congresso, teve que ser veta<strong>do</strong> integralmente pela Presidência daRepública por contrariar os preceitos constitucionais correspon<strong>de</strong>ntes. Só há pouco tempo um movimentono campo <strong>do</strong> serviço social conseguiu levar a cabo a aprovação <strong>de</strong> uma lei orgânica para o setor.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>87


especialmente no <strong>de</strong>bate da questão da <strong>de</strong>scentralização, à qual havia resistência, pelamaneira com que estava sen<strong>do</strong> tratada. Mesmo ten<strong>do</strong>-se chega<strong>do</strong> a um “acor<strong>do</strong>”, oprojeto, aprova<strong>do</strong> pelo Congresso, acabou por receber alguns vetos presi<strong>de</strong>nciais importantes,orienta<strong>do</strong>s pelas autorida<strong>de</strong>s econômicas, que obrigaram a retomada das negociaçõescom o Governo. Essas negociações tiveram resulta<strong>do</strong>s parciais, ainda quesubstanciais: a Lei nº 8142/90 reintroduziu as questões relativas ao controle social -conferências e conselhos e as condições para os repasses financeiros para esta<strong>do</strong>s e municípios,pilares hoje essenciais <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> implantação <strong>do</strong> SUS.O outro momento significativo <strong>de</strong>sse processo foi quan<strong>do</strong> da tramitação <strong>do</strong> projeto<strong>de</strong> lei referente à extinção <strong>do</strong> INAMPS, já no âmbito <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>. Entretanto,a movimentação das li<strong>de</strong>ranças <strong>do</strong> movimento sanitário foi mais <strong>de</strong> basti<strong>do</strong>res, naassessoria ao po<strong>de</strong>r executivo (Ministra Luiza Erundina, da Administração) e ao relator(o Dep. Sérgio Arouca), e na mobilização durante os acalenta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates que aconteceramna Comissão. Pelo simbolismo, ao se “<strong>de</strong>rrubar” o maior baluarte da política <strong>de</strong>assistência médica centraliza<strong>do</strong>ra e privatista, talvez esse tenha si<strong>do</strong> uma <strong>do</strong>s momentosmais importantes <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Mesmo porque, a essa altura, as forças conserva<strong>do</strong>rasque haviam “perdi<strong>do</strong>” na Constituinte, já se rearticulavam para torpe<strong>de</strong>ar o SUS; e esseera um momento estratégico. Foi nessa ocasião que foi apresentada pelo Dep. GenésioBernardino, a proposta <strong>de</strong> separação <strong>do</strong> SUS em <strong>do</strong>is: um público, para os não vincula<strong>do</strong>sregularmente ao merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho e para as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública; e outro,subsida<strong>do</strong>, por meio da opção <strong>de</strong> contribuição <strong>do</strong>s emprega<strong>do</strong>s e emprega<strong>do</strong>res paraplanos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> priva<strong>do</strong>s, ao invés <strong>de</strong> contribuirem para a Segurida<strong>de</strong> Social. Talproposta está vívida até hoje, e é levantada em to<strong>do</strong> momento <strong>de</strong> “crise” <strong>do</strong> SUS, comoalternativa.Com exceção <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> lei referente à implantação <strong>do</strong> Sistema Nacional <strong>de</strong>Sangue e Hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s, ainda em tramitação, em relação com os <strong>de</strong>mais projetos <strong>de</strong>lei <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s preceitos constitucionais relaciona<strong>do</strong>s com a saú<strong>de</strong>, o movimentosanitário não teve mais uma atuação contínua e regular, apenas reagin<strong>do</strong> em algunsmomentos à ameaças <strong>de</strong> um ou outro projeto <strong>de</strong> lei ou proposta <strong>de</strong> emenda constitucional,por meio da rearticulação da Plenária da Saú<strong>de</strong>; ainda que em alguns momentos, essaintervenção tenha si<strong>do</strong> crítica. Foi o caso, inclusive, <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> da frustrada reformaconstitucional, em que o trabalho foi mais <strong>de</strong> se tentar bloquear as iniciativas quetentavam <strong>de</strong>sarticular o SUS, por meio da divulgação <strong>de</strong> análises entre os parlamentarese entida<strong>de</strong>s.Todavia, outros projetos têm si<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong>s, tramita<strong>do</strong> e alguns aprova<strong>do</strong>s,mas por iniciativas <strong>de</strong> parlamentares, alguns <strong>do</strong>s quais liga<strong>do</strong>s ao movimento, mas combaixa articulação com o mesmo, em termos <strong>de</strong> discussão e articulação política Tratamentoà parte recebeu o projeto relativo ao planejamento familiar, apresenta<strong>do</strong> por um conjunto<strong>de</strong> parlamentares, em articulação com o movimento <strong>de</strong> mulheres, sem, no entanto,uma participação maior <strong>do</strong> próprio movimento sanitário (aliás esse é um viés <strong>do</strong>movimento, ao consi<strong>de</strong>rar, algumas, “questões menores”).Nesse contexto, <strong>de</strong>ve-se registrar a aprovação <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> lei que regulamentaa proibição da propaganda <strong>de</strong> medicamentos, álcool e cigarro, com acompanhamento etratamento em um nível muito inferior à importância que lhe era atribuída por ocasiãoda Constituinte. Da mesma forma, o relativo aos transplantes <strong>de</strong> órgãos, cujaambiguida<strong>de</strong> ainda traz problemas para o equacionamento da questão.Na esteira, outros projetos ainda tramitam, como o <strong>do</strong>s “direitos <strong>do</strong> paciente”, da“organização da prática médica”, da “saú<strong>de</strong> indígena” e <strong>do</strong>s “planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>”, entre88 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


outros, merecen<strong>do</strong>, neste momento, um balanço, para orientar a atuação mais propositiva<strong>do</strong> movimento, hoje bastante ausente <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate parlamentar.CONJUNTURA E PERSPECTIVAS: UMA AGENDACom a promulgação da Constituição e a aprovação da Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>, omovimento sanitário parece ter consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> que “ganhou a guerra”, em relação à implantação<strong>do</strong> SUS, esquecen<strong>do</strong>-se que tinha si<strong>do</strong> apenas “uma batalha”. No entanto, o mesmonão ocorria em relação aos setores conserva<strong>do</strong>res; e não só em relação à Saú<strong>de</strong>: o perfil<strong>do</strong> Parlamento em nivel fe<strong>de</strong>ral adquiriu contornos nitidamente mais à direita, comoum to<strong>do</strong>, além <strong>de</strong> reorganizar-se a partir <strong>de</strong> interesses específicos, com objetivos concretos<strong>de</strong> reverter muitas das políticas aprovadas pela Constituinte para a área social, emparticular o SUS. O que não impediu, todavia, a condução também <strong>de</strong> novosparlamentares liga<strong>do</strong>s ao movimento ao Congresso Nacional, como é o caso <strong>do</strong> expresi<strong>de</strong>nte<strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> e li<strong>de</strong>rança amplamente consensual <strong>do</strong> setor, Sérgio Arouca; talvezo primeiro a se eleger, em nivel fe<strong>de</strong>ral, a partir <strong>de</strong> uma plataforma e <strong>de</strong> uma baseorganizadas principalmente ao re<strong>do</strong>r da questão da <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong>, daReforma Sanitária.Ocorre que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a negociação da Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>, já se evi<strong>de</strong>nciava areorganização <strong>do</strong>s interesses empresariais e corporativos, levan<strong>do</strong> a que a sua aprovaçãofosse muito mais difícil; é claro que não po<strong>de</strong>ria também ser <strong>de</strong> outra forma, pois afinal,tratava-se <strong>de</strong> “dar nomes aos bois”, <strong>de</strong>talhar o “como” fazer atuar e funcionar o SUS. Eisso ocorria numa conjuntura em que o po<strong>de</strong>r executivo ganhava novo fôlego, com aeleição <strong>de</strong> Collor, legitima<strong>do</strong> pelas urnas, sobre uma plataforma “mo<strong>de</strong>rnizante”, emcontraponto ao perío<strong>do</strong> imediatamente anterior <strong>do</strong> Governo Sarney, por to<strong>do</strong>s rejeita<strong>do</strong>,pelos escracha<strong>do</strong>s clientelismo e fisiologismo que o caracterizavam; e <strong>de</strong>rrotan<strong>do</strong> ocandidato das forças populares, que po<strong>de</strong>ria significar uma real alternativa àqueles<strong>de</strong>svios.Assim, durante o curto Governo Collor, ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong> algumas bravatas, assistiu-sea uma insistente reação à <strong>de</strong>scentralização e a várias tentativas <strong>de</strong> reinterpretação <strong>do</strong>sprincípios <strong>do</strong> SUS, num flagrante <strong>de</strong>srespeito à Constituição e à Lei. Nesse perío<strong>do</strong>,houve a primeira tentativa <strong>de</strong>, ao se emendar a Constituição por meio <strong>do</strong> “emendão”,retirar a proibição da comercialização <strong>do</strong> sangue e hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s; tentativa malsucedida no seu conjunto, mas que revelava a intencionalida<strong>de</strong> e a organicida<strong>de</strong> <strong>do</strong>Governo com os interesses que se consi<strong>de</strong>ravam <strong>de</strong>rrota<strong>do</strong>s na Constituinte.No Governo Itamar, se por um la<strong>do</strong> o Ministério da Saú<strong>de</strong> tentou retomar a<strong>do</strong>utrina original <strong>do</strong> SUS, inclusive extinguin<strong>do</strong> o INAMPS, o Ministério da Previdência,em conivência com as autorida<strong>de</strong>s econômicas (as mesmas <strong>de</strong> hoje), implodiu olimpicae impunemente o conceito <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social e remeteu novamente o Ministério daSaú<strong>de</strong> à condição <strong>de</strong> pediente, <strong>de</strong> “pires nas mãos”, resultan<strong>do</strong> na sua atual e crônicasituação <strong>de</strong> carência <strong>de</strong> recursos.Todavia, apesar das reiteradas <strong>de</strong>clarações oficiais <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são ao SUS, o que setem visto é um renitente <strong>de</strong>scumprimento <strong>do</strong>s dispositivos constitucionais e legais, comretardamento <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização (e até mesmo <strong>de</strong> “inchamento” <strong>do</strong> nivelfe<strong>de</strong>ral) e uma omissão <strong>do</strong> governo fe<strong>de</strong>ral na regulamentação e fiscalização das açõesSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>89


<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em geral, inclusive e principalmente <strong>do</strong>s serviços priva<strong>do</strong>s contrata<strong>do</strong>s peloSUS e <strong>do</strong>s outros serviços priva<strong>do</strong>s, particularmente os planos e seguros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Po<strong>de</strong>r-se-ia dizer que o problema é gran<strong>de</strong> e complexo <strong>de</strong>mais para um equacionamentoa curto prazo (embora já <strong>de</strong>corram quase <strong>de</strong>z anos da promulgação danova Constituição). Ocorre que é justamente em função <strong>de</strong>ssa dimensão e varieda<strong>de</strong>que a <strong>de</strong>scentralização se impõe como estratégia central.Outra questão que tem comprometi<strong>do</strong> profundamente a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> avanço<strong>do</strong> SUS como política social é o <strong>de</strong>srespeito ao princípio da equida<strong>de</strong> na alocação <strong>do</strong>srecursos públicos, pela não unificação <strong>do</strong>s orçamentos fe<strong>de</strong>ral, estaduais e municipais,nas suas respectivas esferas, propician<strong>do</strong> a <strong>de</strong>stinação, pelas instituições públicas, <strong>de</strong>vultosos montantes ao co-financiamento <strong>de</strong> planos e seguros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seusfuncionários. Sem se falar no prestígio e força que esses segmentos <strong>de</strong> usuários (normalmenteos mais organiza<strong>do</strong>s) <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> emprestar à pressão pela melhoria <strong>do</strong>s serviçospúblicos, usa<strong>do</strong>s pela população menos organizada e mais necessitada. Além <strong>de</strong>renúncias fiscais, como a <strong>de</strong>dução <strong>do</strong> imposto <strong>de</strong> renda e outros subsídios diretos eindiretos que favorecem o setor priva<strong>do</strong> e estimulam o seu uso pela população, numatática específica da cartilha neo-liberal.Quanto à malversação <strong>do</strong> dinheiro público, fato inconteste, a questão tem duasexpressões principais: o não controle público sobre as ações e serviços presta<strong>do</strong>s peloshospitais, clínicas e laboratórios priva<strong>do</strong>s contrata<strong>do</strong>s pelo SUS (e que <strong>de</strong>veriam atuarcomo se públicos fossem) e que, com a conivência <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s e respalda<strong>do</strong>s pelosparlamentares que os representam, constituem verda<strong>de</strong>iras sinecuras <strong>de</strong> captação <strong>do</strong>srecursos públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, com fins eminentemente mercantis, sem qualquer compromissosocial; e a ineficiência da gestão pública propriamente dita, sufocada por regrasburocráticas que se sobrepõem ao interesse público e também pelo corporativismo e<strong>de</strong>scompromisso público <strong>de</strong> amplos segmentos profissionais (ainda que se <strong>de</strong>va reconhecera inexistência <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> real valorização <strong>do</strong> trabalho). Outra questãoque, sem dúvida tem manti<strong>do</strong> o padrão <strong>de</strong> distorções nos serviços priva<strong>do</strong>s contrata<strong>do</strong>e, hoje incorporadas também aos serviços públicos, é a modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> remuneração(AIH) por produção, há vinte anos <strong>de</strong>nunciada por Gentille <strong>de</strong> Mello como “fatorincontrolável <strong>de</strong> corrupção”, assertiva ainda válida.Deve-se registrar também que, além <strong>de</strong> se gastar mal, não há dúvida que, paraos parâmetros internacionais também se gasta pouco; o que po<strong>de</strong>ria ser otimiza<strong>do</strong> pelamaior racionalida<strong>de</strong> e controle <strong>do</strong>s gastos, sem que isso ilida a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se buscarmais recursos para o setor, <strong>de</strong> uma forma mais estrutural e menos conjuntural.É necessário também que se <strong>de</strong>nuncie o afastamento <strong>do</strong> SUS <strong>do</strong> seu princípio<strong>do</strong>utrinário mais central que é a integralida<strong>de</strong>. Isto é, a indissociabilida<strong>de</strong> entre prevençãoe atenção curativa. Hoje, a priorida<strong>de</strong> orçamentária fe<strong>de</strong>ral é nitidamente representadapela assistência médico-hospitalar, em <strong>de</strong>trimento criminoso das ações <strong>de</strong> promoção eproteção da saú<strong>de</strong>. E a atual proposta <strong>de</strong> reforma administrativa <strong>do</strong> Ministério daAdministração e da Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ainda insiste em separar o SUS em <strong>do</strong>is: ohospitalar (<strong>de</strong> referência) e o básico (<strong>do</strong>s distritos sanitários). Na verda<strong>de</strong>, o que está-sepassan<strong>do</strong> é uma relegação da própria <strong>do</strong>utrina da Reforma Sanitária, pelos própriosintegrantes <strong>do</strong> movimento, que, após a aprovação da base jurídico legal, passaram atratar apenas <strong>do</strong> SUS, esquecen<strong>do</strong>-se que este é apenas estratégia <strong>de</strong> uma projeto maior<strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong>, que inclui a questão da intersetorialida<strong>de</strong> e a mudança dacultura médica e tecnológica vigente que associa qualida<strong>de</strong> ao consumo <strong>de</strong> tecnologia90 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


sofisticada. Isso significa a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se investir em muitas frentes, inclusive, eprincipalmente, na reorientação <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> formação profissional e num trabalho<strong>de</strong> comunicação social que aponte na direção da formação da “consciência sanitária” <strong>de</strong>Berlinguer.Assim, um próximo perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> vitalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> movimento da Reforma Sanitária e<strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> <strong>de</strong>ve construir sua pauta em torno <strong>de</strong> algumas questões que hoje não estãoresolvidas conceitual e tecnicamente, necessitan<strong>do</strong>, tanto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s e avaliações <strong>de</strong>experiências, quanto da repactuação entre vários segmentos <strong>do</strong> movimento, hoje bastanteesgarça<strong>do</strong>.Entre essas questões, encontram-se:- a proposição e aprovação da legislação que assegure a complementação <strong>do</strong>processo <strong>de</strong> implantação <strong>do</strong> SUS, em especial disciplinan<strong>do</strong> melhor as relaçõescom o setor priva<strong>do</strong>, tanto o contrata<strong>do</strong>, quanto o “autônomo”; também arelativa ao sangue e hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s, aos medicamentos (genéricos, organizaçãofarmacêutica, etc.);- a reabertura da discussão sobre o financiamento da Saú<strong>de</strong>, em termosestruturais e levan<strong>do</strong> em consi<strong>de</strong>ração a implosão, na prática da Segurida<strong>de</strong>Social; a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reforma tributária que viabilize e compatibilizea diretriz da <strong>de</strong>scentralização com a auto-suficiência também no financiamento;- a abertura <strong>de</strong> discussões, no movimento e com o Congresso e o Executivo, <strong>de</strong>novas estratégias <strong>de</strong> gestão pública que a otimizem e lhe confiramprodutivida<strong>de</strong> e satisfação/realização profissional e impacto ao SUS; é claroque isso supõe a revisão <strong>de</strong> várias ban<strong>de</strong>iras <strong>do</strong>s movimentos corporativos,como a isonomia, planos <strong>de</strong> carreira únicos, etc.; assim como uma priorizaçãoda discussão <strong>de</strong> novas políticas <strong>de</strong> valaorização <strong>do</strong> trabalho, hojeabso<strong>luta</strong>mente secundarizadas no processo <strong>de</strong> implantação <strong>do</strong> SUS;- a radicalização <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização, com revisão profunda dasfunções e estrutura <strong>do</strong> nivel fe<strong>de</strong>ral <strong>do</strong> SUS (MS).Sem qualquer pretensão <strong>de</strong> se esgotar a temática, conclui-se esse texto com umalerta: embora o discurso <strong>de</strong> que o SUS “não <strong>de</strong>u certo”, constantemente alar<strong>de</strong>a<strong>do</strong> pelaimprensa e por setores <strong>do</strong> Governo é sabidamente equivoca<strong>do</strong> e mal intenciona<strong>do</strong>, eleprecisa começar a dar certo, aos olhos da população e da midia. E, para isso, é necessárioque o movimento novamente se <strong>de</strong>bruce sobre a realida<strong>de</strong>, reavalie suas estratégias eestabeleça uma nova agenda <strong>de</strong> atuação, pois, com o atual <strong>de</strong>sgaste e com aintencionalida<strong>de</strong> neo-liberal <strong>do</strong> Governo, em pouco tempo, <strong>de</strong> fato, estaremoslamentan<strong>do</strong> “termos morri<strong>do</strong> na praia”.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>91


92 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, Responsabilida<strong>de</strong> Públicae Cidadania: a Reforma Sanitária comoReforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>Antônio Ivo <strong>de</strong> CarvalhoINTRODUÇÃOUm <strong>do</strong>s feitos mais notáveis da Reforma Sanitária no Brasil foi a institucionalização,no interior <strong>do</strong> aparelho estatal, <strong>de</strong> um formidável sistema nacional <strong>de</strong> órgãoscolegia<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um conjunto razoável <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res legais e on<strong>de</strong> os usuários têmrepresentação paritária em relação aos presta<strong>do</strong>res e ao governo. São os Conselhos <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> que, no âmbito das três esferas gestoras <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS) - fe<strong>de</strong>ral,estadual e municipal - têm a atribuição <strong>de</strong> <strong>de</strong>liberar sobre a “formulação <strong>de</strong> estratégiase (exercer) controle sobre a execução da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> na instância correspon<strong>de</strong>nte,inclusive nos aspectos econômicos e financeiros ...” (Brasil, 1990). Desse sistema fazemparte também as Conferências <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, foruns que se reunem periodicamente com aparticipação ampla <strong>de</strong> diversos segmentos sociais para avaliar e traçar diretrizes paraas políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Ten<strong>do</strong> raízes nas <strong>luta</strong>s comunitárias por saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s anos 70, os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>são a expressão institucional <strong>de</strong> uma das idéias funda<strong>do</strong>ras da Reforma Sanitária: aparticipação da socieda<strong>de</strong> nas políticas e organizações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Embora assumin<strong>do</strong>significa<strong>do</strong>s diversos ao longo <strong>do</strong> tempo, a que correspon<strong>de</strong>ram padrões distintos <strong>de</strong>práticas sociais, o tema da participação esteve constantemente presente na retórica e naprática <strong>do</strong> movimento sanitário, atestan<strong>do</strong> a íntima associação entre o social e o políticoque, no Brasil, tem caracteriza<strong>do</strong> a agenda reforma<strong>do</strong>ra da saú<strong>de</strong>. Postulan<strong>do</strong> a<strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> acesso a bens e serviços propicia<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas também a<strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> acesso ao po<strong>de</strong>r, a agenda da reforma sempre teve nas propostasparticipativas a marca <strong>de</strong> sua preocupação com os “mecanismos <strong>de</strong> funcionamento” <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> e não só com os “resulta<strong>do</strong>s redistribuitivos” <strong>de</strong> suas políticas. Daí o empregosimultâneo das consignas “Democracia é saú<strong>de</strong>” e “Saú<strong>de</strong> é <strong>de</strong>mocracia”, emblema daReforma Sanitária enquanto reforma também da política, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que o direitouniversal à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria ser acompanha<strong>do</strong>, garanti<strong>do</strong> mesmo, pelo direito à participaçãono po<strong>de</strong>r. Saú<strong>de</strong> como estratégia para a <strong>de</strong>mocracia e <strong>de</strong>mocracia como estratégia paraa saú<strong>de</strong>.Ao longo <strong>do</strong>s anos, especialmente durante a década <strong>de</strong> 80, essas idéias <strong>de</strong> participaçãoganharam maturida<strong>de</strong> e refinamento, evoluin<strong>do</strong> para as propostas <strong>de</strong>remo<strong>de</strong>lação institucional que se concretizaram a partir da Constituição <strong>de</strong> 1988. Aarquitetura institucional proposta para o setor saú<strong>de</strong> visava tornar o Esta<strong>do</strong> “capaz” <strong>de</strong>implementar os princípios finalísticos da Reforma Sanitária, como a universalida<strong>de</strong>, aSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>93


equida<strong>de</strong>, a integralida<strong>de</strong>, expressivos <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong> como um direito <strong>de</strong> cidadania.Para tanto, o núcleo <strong>de</strong> idéias-força <strong>do</strong> pensamento reforma<strong>do</strong>r prescrevia que o Esta<strong>do</strong><strong>de</strong>veria ser aproxima<strong>do</strong> da socieda<strong>de</strong> usuária e permeabiliza<strong>do</strong> a suas <strong>de</strong>mandas. Énesse contexto que a “participação da comunida<strong>de</strong>” e a “<strong>de</strong>scentralização políticoadministrativa”aparecem como o centro da reforma institucional embutida na ReformaSanitária. A primeira para dar expressão e legitimida<strong>de</strong> política às <strong>de</strong>mandasredistribuitivas e a segunda para diminuir distâncias administrativas e remover barreirasburocráticas, prevenin<strong>do</strong> o <strong>de</strong>sperdício e a erosão <strong>de</strong> recursos. Vê-se claramente que,em tal agenda, o compromisso com a equida<strong>de</strong> é associa<strong>do</strong> à preocupação com aeficiência.Algo muito distinto marca o discurso que, na passagem da década, aportan<strong>do</strong>tardiamente ao Brasil, encarna a receita neoliberal <strong>de</strong> “ajuste estrutural da economia”:<strong>de</strong>slocar o Esta<strong>do</strong> e restabelecer o merca<strong>do</strong> como locus privilegia<strong>do</strong> <strong>do</strong> processo alocativo<strong>de</strong> recursos e <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico. Com sua pauta minimalista <strong>de</strong> políticasocial e seu projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>smonte <strong>do</strong> aparelho estatal prove<strong>do</strong>r e regula<strong>do</strong>r, a reforma <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> presidida pela razão econômica, apresenta-se como um veto à Reforma Sanitária.No fogo <strong>de</strong> barragem da eficiência contra a equida<strong>de</strong>, o campo da Reforma Sanitáriaper<strong>de</strong> seu elo <strong>do</strong>utrinário com a temática da reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, aceitan<strong>do</strong> tacitamenteque a ban<strong>de</strong>ira da eficiência seja monopolizada pelos neoliberais e que o SUS sejacoloca<strong>do</strong> em xeque, não pelos constrangimentos financeiros e administrativos que sofre,mas por suas generosida<strong>de</strong>s universalistas, “irremediavelmente gera<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> práticasperdulárias”.Atualmente, mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 90, apresenta-se uma curiosa conjuntura setorial.De um la<strong>do</strong>, um clima intelectual e político <strong>de</strong> reservas e restrições ao SUS. De outro,um processo exuberante e acelera<strong>do</strong> <strong>de</strong> modificações na arquitetura e no funcionamento<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong> através da <strong>de</strong>scentralização e da participação, ten<strong>de</strong>ntes ambas aelevar as pressões redistribuitivas.A efetiva <strong>de</strong>scentralização da gestão e a ampla disseminação <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> por to<strong>do</strong> o país são lembradas positivamente em to<strong>do</strong>s os inventários sobrerealizações <strong>do</strong> SUS, como inovações que “pegaram”. Entretanto, não é claro seu papelnos futuros <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos <strong>do</strong> SUS e da Reforma Sanitária. Aqui, tanto a reflexão teóricaquanto o cálculo político parecem presos a um círculo <strong>de</strong> giz on<strong>de</strong> os Conselhos sãotrata<strong>do</strong>s ou como heróicos guardiães <strong>do</strong> SUS, ou como construções fúteis, <strong>de</strong> escassapotência política.Na verda<strong>de</strong>, uma efetiva valorização das vivências sociais e práticas políticassuscitadas pelos Conselhos exige ultrapassar os limites <strong>de</strong> suas relações mais imediatascom o SUS, suas prescrições e marcos legais, possibilitan<strong>do</strong> então uma ponte com o<strong>de</strong>bate contemporâneo sobre a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> são, por seusfundamentos conceituais e por sua trajetória empírica, um tema propício a esse <strong>de</strong>safio.Recuperar as inspirações e marcos originais da Reforma Sanitária, provi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> seuaggiornamento conceitual e programático, po<strong>de</strong> abrir caminho para incorporar na pautada reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong> reconciliar a eficiência com a equida<strong>de</strong>, requalifican<strong>do</strong>a,assim, como caminho para a <strong>de</strong>mocracia.94 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


ESTADO INSTRUMENTO E ESTADO ARENA: DO CONFRONTO POLÍTICO AOCONTROLE SOCIALItem privilegia<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo <strong>do</strong>utrinário e da pauta programática da ReformaSanitária, a proposta participatória trilhou um longo percurso teórico e prático atéalcançar o formato institucional <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> contemporâneos. Nesseprocesso, adquiriu centralida<strong>de</strong> a noção <strong>de</strong> controle social que, aliás, disseminou-secomo prescrição normativa para a <strong>de</strong>mocratização das relações Esta<strong>do</strong>-socieda<strong>de</strong>.Oriun<strong>do</strong> da sociologia e da psicologia, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>signa os processos <strong>de</strong> influência<strong>do</strong> coletivo sobre o individual, o termo controle social teve seu significa<strong>do</strong> inverti<strong>do</strong>,transforman<strong>do</strong>-se em conceito operacional para <strong>de</strong>signar o processo e os mecanismos<strong>de</strong> influência da socieda<strong>de</strong> sobre o Esta<strong>do</strong>. Curiosamente, para isso, a socieda<strong>de</strong> passa aser i<strong>de</strong>ntificada com o interesse geral e o Esta<strong>do</strong> é ti<strong>do</strong> como liminarmente comprometi<strong>do</strong>com interesses particulares.Apropria<strong>do</strong> pelo senso comum no contexto brasileiro da <strong>luta</strong> contra o Esta<strong>do</strong>autoritário, o termo controle social adquire, não sem razão, forte conotação maniqueístae instrumental. Maniqueísta porque tanto o Esta<strong>do</strong> quanto a socieda<strong>de</strong> são <strong>de</strong>stituí<strong>do</strong>sdas complexas relações sociais neles embutidas, e rebaixa<strong>do</strong>s a entes homogêneos,anima<strong>do</strong>s por vocações distintas. O Esta<strong>do</strong>, vilão, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> com interesses privatistase práticas exclu<strong>de</strong>ntes, usurpa<strong>do</strong>r <strong>do</strong> interesse público; a socieda<strong>de</strong>, vítima, i<strong>de</strong>ntificadacom os interesses coletivos, excluída da <strong>de</strong>cisão pública. Instrumental porque tratavase,então, <strong>de</strong> estabelecer estruturas ou mecanismos capazes <strong>de</strong> funcionar comoinstrumentos da socieda<strong>de</strong> para controlar o Esta<strong>do</strong>.Foi a partir <strong>de</strong>sses referenciais que os Conselhos <strong>de</strong>senvolveram suas práticasiniciais e mo<strong>de</strong>laram sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> política. Se sua disseminação foi favorecida poresse imaginário, é possível que, hoje, ele represente um obstáculo a uma compreensãomais a<strong>de</strong>quada <strong>do</strong> papel <strong>de</strong>sses órgãos. Para prosseguir, é recomendável uma breverecapitulação da sequência <strong>de</strong> referenciais teóricos e conjunturas políticas sob as quaisse moldaram as idéias e práticas que originaram os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.Po<strong>de</strong>-se dizer que a noção <strong>de</strong> controle social, tal como emergiu na agenda daReforma Sanitária, é marcada por uma combinação <strong>de</strong> influências <strong>do</strong> paradigma marxista<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> instrumental e <strong>do</strong> paradigma liberal <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> plural.Assim, bem antes <strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r controlar, o movimento sanitário buscou confrontaro Esta<strong>do</strong>. A politização das <strong>luta</strong>s comunitárias por saú<strong>de</strong>, ocorrida ao longo <strong>do</strong>s últimosanos da década <strong>de</strong> 70, junto com a emergência <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s movimentos sociaisurbanos, resultou numa contestação frontal ao regime militar <strong>de</strong> 64, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> compráticas política e socialmente exclu<strong>de</strong>ntes e com interesses priva<strong>do</strong>s. Era, então,amplamente <strong>do</strong>minante a influência <strong>do</strong> pensamento estruturalista, sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong> cortemarxista, no balizamento teórico e programático <strong>do</strong> movimento sanitário. Decisiva paraa crítica ao mo<strong>de</strong>lo biomédico <strong>de</strong> explicação <strong>do</strong> processo saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença, essa matriz <strong>de</strong>pensamento i<strong>de</strong>ntificava as estruturas sociais como <strong>de</strong>terminantes para a produção e<strong>de</strong>sigual distribuição <strong>do</strong>s riscos sanitários entre as populações. Nesse mo<strong>de</strong>lo, o Esta<strong>do</strong>cumpria o papel <strong>de</strong> reproduzir a or<strong>de</strong>m estrutural e funcionava como um instrumento<strong>do</strong>s grupos sociais <strong>do</strong>minantes, guardião <strong>de</strong> seus interesses. Sobre esse Esta<strong>do</strong> -verda<strong>de</strong>iro “comitê <strong>de</strong> negócios da burguesia” - só era possível a influência <strong>de</strong> forapara <strong>de</strong>ntro, a partir das pressões <strong>do</strong>s movimentos sociais e suas <strong>luta</strong>s reivindicatórias,SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>95


mesmo assim com resulta<strong>do</strong>s sempre limita<strong>do</strong>s ou parciais, enquanto não se alterasse alógica estrutural <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo. A participação institucionalizada e representativa <strong>de</strong> segmentossociais no interior <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> era vetada, não sen<strong>do</strong> buscada pelo movimentosenão na forma da ocupação <strong>de</strong> espaços técnicos no interior das instituições, comoestratégia <strong>de</strong> fortalecimento <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>luta</strong>. Não se tratava <strong>de</strong> participação oupretensão <strong>de</strong> controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e sim <strong>de</strong> <strong>luta</strong> contra ele, disputan<strong>do</strong> palmo a palmomelhorias no acesso ao produto social, especialmente nos aspectos relaciona<strong>do</strong>s à saú<strong>de</strong>.Mais tar<strong>de</strong>, ao longo da década <strong>de</strong> 80, a experiência <strong>de</strong> enfrentamento com oEsta<strong>do</strong> foi associan<strong>do</strong>, na medida <strong>do</strong> alargamento <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong>mocráticos, a <strong>de</strong>mandasocial por bens e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> à <strong>de</strong>manda política por acesso aos mecanismos <strong>de</strong>po<strong>de</strong>r. A própria vivência <strong>do</strong> aumento da permeabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> foi ensejan<strong>do</strong> novosmo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> compreensão das relações Esta<strong>do</strong>-socieda<strong>de</strong>. À visão <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> monolítico,fiel <strong>de</strong>positário e executor <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sígnios <strong>de</strong> uma elite <strong>do</strong>minante, suce<strong>de</strong> umacompreensão mais flexível da esfera estatal. Nesse momento, ganha peso e importânciaa concepção gramsciana <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> amplia<strong>do</strong>. Ainda no campo <strong>do</strong> pensamento marxista,essa vertente atribui ao Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno o papel <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma “base material<strong>de</strong> consenso”, que torne aceitável ou suportável pelo conjunto da socieda<strong>de</strong> a or<strong>de</strong>mcapitalista e a primazia <strong>do</strong>s interesses econômicos da burguesia (Coutinho, 1989). Assim,para realizar os interesses da burguesia ou <strong>do</strong> capital (acumulação econômica), o Esta<strong>do</strong><strong>de</strong>ve consi<strong>de</strong>rar os interesses <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais setores (legitimação política), associan<strong>do</strong> entãopráticas <strong>de</strong> coersão com práticas <strong>de</strong> persuasão. Essa visão implica em que o Esta<strong>do</strong>,ainda como instrumento da classe <strong>do</strong>minante, permita que alguns interesses das classes<strong>do</strong>minadas sejam nele representa<strong>do</strong>s e por ele acolhi<strong>do</strong>s, implementan<strong>do</strong>-se atravésdas políticas públicas.Na segunda meta<strong>de</strong> da década <strong>de</strong> 80, com o advento da Nova República, aceleraseo processo <strong>de</strong> incorporação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas sociais, a partir <strong>do</strong> reconhecimento dadiversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atores sociais e grupos <strong>de</strong> interesses. A revalorização das eleições e outrosmecanismos da <strong>de</strong>mocracia representativa permitiu a ampliação da participação política,disseminan<strong>do</strong> e fortalecen<strong>do</strong> a concepção pluralista <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que passa a pre<strong>do</strong>minarentre os atores políticos relevantes. Essa concepção supõe que o Esta<strong>do</strong> funcione a partir<strong>do</strong> reconhecimento da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interesses sociais presentes na socieda<strong>de</strong> e daaceitação <strong>de</strong> suas formas <strong>de</strong> representação, sen<strong>do</strong> as políticas públicas o fruto <strong>do</strong> processo<strong>de</strong> disputa e pactuação entre grupos <strong>de</strong> interesse no seu interior. Isso normalmente significaa inclusão, no arcabouço jurídico institucional <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong> estruturas <strong>de</strong> representaçãodireta da socieda<strong>de</strong>, investidas <strong>de</strong> algum nível <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> governo,ou seja, a presença explícita e formal no interior <strong>do</strong> aparato estatal <strong>do</strong>s vários segmentossociais, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a tornar visível e legitimada a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> interesses e projetos.Esse referencial presidiu, ao longo <strong>do</strong>s anos 80, o aparecimento progressivo <strong>de</strong>diversos órgãos colegia<strong>do</strong>s no âmbito <strong>do</strong> aparelho estatal, compostos por representaçõesmistas da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Primeiro com as AIS, <strong>de</strong>pois com os SUDS 1 , instituiramsediversos tipos <strong>de</strong> conselhos e comissões, nas três esferas <strong>de</strong> governo, que foram engloban<strong>do</strong>a presença <strong>do</strong>s principais atores na arena político-sanitária: representantes governamentais,presta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> serviços, profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, diversos segmentos <strong>de</strong>usuários.O pressuposto e, ao mesmo tempo, o corolário <strong>do</strong> pluralismo e das formas institucionaisque assume é o reconhecimento recíproco - por parte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da socieda<strong>de</strong>- <strong>de</strong> interlocutores legítimos e com um mínimo <strong>de</strong> eficácia dialógica. Ou seja, o Esta<strong>do</strong>96 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


<strong>de</strong>ve aceitar como legítimas as <strong>de</strong>mandas <strong>do</strong>s diversos grupos sociais, assim como<strong>de</strong>monstrar capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transigir e flexibilizar suas políticas em função <strong>de</strong>las. E asocieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ter capacida<strong>de</strong>, a nível <strong>do</strong>s diversos grupos sociais, <strong>de</strong> elaborar interessese vocalizar propostas, assim como reconhecer no Esta<strong>do</strong> condições e possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>acolhimento.O perío<strong>do</strong> da Nova República foi marca<strong>do</strong> pelo absoluto pre<strong>do</strong>mínio da visãopluralista <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Na verda<strong>de</strong>, to<strong>do</strong> o policy-making no perío<strong>do</strong> é presidi<strong>do</strong> pela visãopluralista, em especial por sua vertente neocorporativista. Multiplicaram-se as arenas<strong>de</strong> pactuação entre grupos <strong>de</strong> interesse, que assim obtinham status público e legitimida<strong>de</strong>para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r seus projetos e influir nas políticas públicas. A proposta <strong>de</strong> “pacto social”perseguida naquele perío<strong>do</strong> por diversas forças políticas é emblemática <strong>do</strong> climapluralista que então pre<strong>do</strong>minava e da crença na possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acordar uma políticaque contemplasse os interesses e a concordância <strong>do</strong> conjunto <strong>de</strong> grupos sociais.É nesse clima, e a partir das experiências <strong>do</strong>s órgãos colegia<strong>do</strong>s, que amadurecea proposta <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, na forma institucional atual. Embora com i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>e atribuições legais formalmente <strong>de</strong>finidas, os Conselhos, na verda<strong>de</strong>, iniciaram e aindahoje vivem sua trajetória prática em meio a um conjunto <strong>de</strong> dilemas e ambiguida<strong>de</strong>s,<strong>de</strong>correntes <strong>do</strong>s marcos conceituais e contingências políticas <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se originaram.Pertencem ao governo ou a socieda<strong>de</strong>? Devem governar ou fiscalizar? Devem ampliarsuas responsabilida<strong>de</strong>s executivas ou aprimorar seus mecanismos <strong>de</strong> acompanhamento?Na verda<strong>de</strong>, é a própria idéia <strong>de</strong> controle social, que os fundamenta, que carregauma ambiguida<strong>de</strong> básica, responsável por gerar uma expectativa a respeito <strong>do</strong>sConselhos que, no limite, oscila entre a ilusão e o ceticismo.A ilusão, proveniente da matriz pluralista, consiste na superestimação da margem<strong>de</strong> efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Conselhos como arenas <strong>de</strong>cisórias. Alimenta-se da miragem <strong>de</strong> umEsta<strong>do</strong> neutro, passível <strong>de</strong> ser conduzi<strong>do</strong> pelos segmentos que obtenham vantagenscircunstanciais nos espaços <strong>de</strong>cisórios. Nesse padrão, a socieda<strong>de</strong>, suficientemente organizadae representada nos Conselhos, po<strong>de</strong>ria controlar o Esta<strong>do</strong>, conduzin<strong>do</strong>-o segun<strong>do</strong>seus <strong>de</strong>sígnios. Como se, a partir <strong>do</strong> mero funcionamento regular <strong>do</strong>s Conselhos, <strong>do</strong>cumprimento <strong>de</strong> suas prerrogativas legais, o Esta<strong>do</strong> “se corrigisse” e passasse a funcionarsegun<strong>do</strong> os interesses da maioria. Embora tal imagem possa favorecer o proselitismoparticipatório, atrain<strong>do</strong> segmentos sociais ansiosos por colocar suas <strong>de</strong>mandas junto aoaparelho estatal, até então impermeável a elas, na verda<strong>de</strong>, ela se mostra insuficientepara dar sustentação ao funcionamento estável <strong>do</strong>s Conselhos. Diante da inefetivida<strong>de</strong><strong>de</strong>sses órgãos em satisfazer as <strong>de</strong>mandas finalísticas a eles submetidas, os representantes<strong>de</strong> segmentos po<strong>de</strong>m reduzir suas expectativas, geran<strong>do</strong> seja o esvaziamento <strong>do</strong>sConselhos, seja uma adaptação conformada a seus limites como arenas <strong>de</strong>cisórias(burocratização).O ceticismo provem, ao contrário, da matriz marxista, e ten<strong>de</strong> a subestimar aspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> autonomia e efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Conselhos. É curioso que a configuraçãojurídico-institucional <strong>de</strong>sses órgãos, cuja composição discrimina positivamente setoressociais com menos acesso ao po<strong>de</strong>r (caráter paritário) e enfatiza sua responsabilida<strong>de</strong><strong>de</strong>cisória (po<strong>de</strong>res <strong>de</strong>liberativos), tenha se origina<strong>do</strong> exatamente na <strong>de</strong>sconfiança <strong>de</strong>1. As Ações Integradas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (AIS), em 1984, e os Sistemas Unifica<strong>do</strong>s e Descentraliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>(SUDS), em 1987, foram programas precursores <strong>do</strong> SUS e iniciaram a operacionalização <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>seus princípios, como a <strong>de</strong>scentralização e a participação.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>97


que o Esta<strong>do</strong> pu<strong>de</strong>sse ser passível <strong>de</strong> influência a ponto <strong>de</strong> implementar as medidasredistribuitivas <strong>de</strong>madadas pelos setores excluí<strong>do</strong>s e agora representa<strong>do</strong>s nos Conselhos.Levada ao extremo, essa <strong>de</strong>sconfiança po<strong>de</strong> para<strong>do</strong>xalmente provocar um rebaixamentoou “atraso” nas práticas <strong>do</strong>s Conselhos, reduzin<strong>do</strong>-as a uma dimensão meramente fiscalizatória,on<strong>de</strong> a obsessão com o controle burocrático <strong>de</strong> processos termina por fazernegligenciar a preocupação com resulta<strong>do</strong>s, elo mais importante <strong>de</strong> ligação <strong>do</strong>sConselhos com a socieda<strong>de</strong> representada, sobretu<strong>do</strong> os setores excluí<strong>do</strong>s.Ambas as situações extremas têm como base comum a visão instrumental <strong>do</strong>sConselhos que, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s “braços” da socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>vem manter-se em posição externaao Esta<strong>do</strong>, seja para guerreá-lo, seja para vigiá-lo, seja para invadi-lo, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>resultar numa perspectiva <strong>de</strong> controle social <strong>de</strong>spolitizada e eventualmente inócua. Daía necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> superar a visão maniqueísta das relações Esta<strong>do</strong>-socieda<strong>de</strong> e aconcepção instrumental <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sobrigan<strong>do</strong>-os da hercúlea tarefa<strong>de</strong> guardiães heróicos da agenda da Reforma Sanitária, para re<strong>de</strong>scobri-los comoexperiência social e inovação política relevante para a reforma <strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.ESTADO SELETIVO, DESENHO INSTITUCIONAL E INOVAÇÃO POLÍTICAA compreensão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> como arena ajuda a vislumbrar a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>interesses sociais vigentes e o caráter não monolítico <strong>do</strong> aparelho estatal, mas não elucidaa hierarquia <strong>de</strong> critérios que presi<strong>de</strong> a lógica da <strong>de</strong>cisão pública. Sabe-se que, mesmo nasituação <strong>de</strong>mocrática, o funcionamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> está longe <strong>de</strong> lembrar uma auscultaplebiscitária entre atores sociais em situação. Nem o voto individual nas eleições gerais,nem a manifestação coletiva das representações corporativas têm peso simétrico na<strong>de</strong>finição das políticas públicas.Diversos autores têm contribuí<strong>do</strong> para enriquecer as teorias <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, buscan<strong>do</strong>explicar seus mecanismos <strong>de</strong> funcionamento nos marcos das complexas relações sociaisdas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas, em especial seus processos <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão.No campo da tradição marxista da não neutralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> perante as relaçõessociais, e acolhen<strong>do</strong> aportes <strong>do</strong> neocorporativismo, o alemão Claus Offe (1984) propõeo conceito <strong>de</strong> “seletivida<strong>de</strong> estrutural” para <strong>de</strong>signar a incorporação <strong>de</strong>sigual das <strong>de</strong>mandassociais por parte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Nesse mo<strong>de</strong>lo teórico, a seletivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>estaria expressa através <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> filtros ou sensores que, agin<strong>do</strong> no interior <strong>do</strong>aparelho estatal, teriam a função <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar e classificar as <strong>de</strong>mandas ou inputs,segun<strong>do</strong> seu caráter mais ou menos compatível com a lógica <strong>do</strong>minante, selecionan<strong>do</strong>assim aquilo que <strong>de</strong>ve ou não ser objeto <strong>de</strong> políticas públicas. Segun<strong>do</strong> o autor, o sistema<strong>de</strong> filtros envolve a problematização das <strong>de</strong>mandas e a interposição <strong>de</strong> barreiras ao seuacolhimento nos níveis <strong>de</strong> estrutura (racionalida<strong>de</strong> estratégica), i<strong>de</strong>ologia (idéiascorrentes), processo (regras e procedimentos) e repressão.Da operação cumulativa <strong>de</strong>sses filtros é que resulta a formação da agenda pública,ou seja, o rol <strong>de</strong> temas e questões passíveis <strong>de</strong> articulação política e implementação <strong>de</strong>ações administrativas. Po<strong>de</strong> ser dito que, a cada momento, o Esta<strong>do</strong> é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> umpadrão <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong> estrutural, <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> um padrão <strong>de</strong> ajustamento <strong>de</strong> seusfiltros. O padrão <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong> vigente é que dá solução à disputa <strong>de</strong> interesses, mas épassível <strong>de</strong> alterações ou <strong>de</strong>slocamentos conforme evoluam essas disputas sociais. Essas98 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


alterações <strong>de</strong> padrão <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong> expressam-se através <strong>de</strong> modificações institucionaisque trazem em si novos parâmetros <strong>de</strong> ajuste ou funcionamento <strong>do</strong>s filtros. Nesse mo<strong>de</strong>lo,uma inovação seria uma mudança no formato institucional caracterizada por expressarou provocar uma alteração no padrão <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong> estrutural, ou seja, por estabelecernovos critérios para a <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> que <strong>de</strong>ve ou não <strong>de</strong>ve ser objeto <strong>de</strong> políticas públicas.Simplificadamente, o caráter mais ou menos <strong>de</strong>mocrático <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> seria da<strong>do</strong>conforme seu sistema <strong>de</strong> filtros lhe conferisse maior ou menor porosida<strong>de</strong> aos interessese <strong>de</strong>mandas <strong>do</strong>s diversos segmentos da socieda<strong>de</strong>. Da mesma forma, nesse mo<strong>de</strong>lo,alterações na estrutura administrativa ou no <strong>de</strong>senho organizacional <strong>do</strong> aparelho estatal<strong>de</strong>veriam ser julgadas mais ou menos <strong>de</strong>mocráticas conforme seu impacto sobre o sistema<strong>de</strong> filtros ou sobre o padrão <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sse no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> alargar a faixa <strong>de</strong>acolhimento ou no <strong>de</strong> estreitá-la.Esse mo<strong>de</strong>lo permite que os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> sejam analisa<strong>do</strong>s, não mais comoinstrumentos externos <strong>de</strong> controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, mas como componentes <strong>do</strong> aparelho estatal,on<strong>de</strong> funcionam como engrenagens institucionais com vigência e efeitos sobre o sistema<strong>de</strong> filtros, capazes <strong>de</strong> operar alterações nos padrões <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong> das <strong>de</strong>mandas.Concebi<strong>do</strong>s sob a égi<strong>de</strong> <strong>do</strong> propósito <strong>de</strong>mocratizante da Reforma Sanitária, tanto noplano social como político, os Conselhos po<strong>de</strong>m então ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s inovações institucionais,entendidas como uma reforma adaptativa <strong>do</strong> <strong>de</strong>senho institucional <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,dirigidas para alterar o padrão <strong>de</strong> recepção e processamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas na área <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> seu alargamento.Uma abordagem sobre a efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong>veria então examinar seuimpacto sobre o padrão <strong>de</strong> seletivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no que diz respeito às <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>. Embora uma avaliação empírica seja meto<strong>do</strong>logicamente problemática, já queos eventuais resulta<strong>do</strong>s redistribuitivos e sanitários não po<strong>de</strong>m ser relaciona<strong>do</strong>s diretamenteà existência <strong>de</strong> Conselhos, envolven<strong>do</strong> fatores mais complexos, é possível umadiscussão sobre seu significa<strong>do</strong> como inovação institucional.Nesse senti<strong>do</strong>, para fins analíticos, po<strong>de</strong> ser dito que os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> sãoarranjos institucionais ten<strong>de</strong>ntes a produzir impactos mo<strong>de</strong>rnizantes e <strong>de</strong>mocratizantessobre o padrão <strong>de</strong> processamento <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas na área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.O impacto mo<strong>de</strong>rnizante consiste no veto que os Conselhos representam à culturapatrimonialista típica <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro. No lugar <strong>do</strong>s arranjos hierárquicos próprios<strong>do</strong> patrimonialismo, on<strong>de</strong> a política, <strong>de</strong>stituída <strong>de</strong> alterida<strong>de</strong>, fundava-se na circulaçãonão regulada <strong>de</strong> favores e lealda<strong>de</strong>s, sob o império da razão e <strong>do</strong>s interesses priva<strong>do</strong>s,os Conselhos introduzem um padrão <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong> tecno-burocrática que,tipicamente, vem marcan<strong>do</strong> a implantação <strong>do</strong> SUS. To<strong>do</strong> o processo recente <strong>de</strong>normatização da alocação setorial <strong>de</strong> recursos, com a automatização <strong>do</strong>s fluxos <strong>de</strong>recursos e normas entre esferas e a universalização <strong>de</strong> canais <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandase <strong>de</strong>cisões representam a substituição das “influências políticas” por critérios técnicos,como mediação <strong>do</strong> proceso <strong>de</strong>cisório (tecnificação da política). Os Conselhosrepresentam, assim, um processo potencialmente alternativo às práticas clientelistas,na medida em que “publicizam” e tecnificam o processamento das <strong>de</strong>mandas no interior<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, nos marcos <strong>de</strong> um pacto <strong>de</strong>mocrático. Modulam a interlocução e o jogo <strong>de</strong>interesses entre os diversos atores, em ambiente <strong>de</strong> forte <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> técnica, o que ten<strong>de</strong>a ocorrer em escala nacional, por força da <strong>de</strong>scentralização.O caráter recorrente e muito arraiga<strong>do</strong> <strong>do</strong> patrimonialismo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileirorecomenda ressalvas, sobretu<strong>do</strong> levan<strong>do</strong> em conta as características da recente transição<strong>do</strong> regime militar, por alguns consi<strong>de</strong>rada uma continuida<strong>de</strong> da mo<strong>de</strong>rnizaçãoSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>99


<strong>de</strong>bate específico sobre o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na esfera econômica, transforma-se em <strong>de</strong>bategeral sobre o papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na socieda<strong>de</strong> contemporânea como um to<strong>do</strong>. Sem que setenha resolvi<strong>do</strong> a disputa entre keynesianos e monetaristas a respeito <strong>de</strong> como otimizaras relações entre Esta<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong>, ganha cada vez mais interesse a discussão a respeito<strong>de</strong> como otimizar as relações entre o Esta<strong>do</strong> e os coletivos <strong>de</strong> interesses que constituema socieda<strong>de</strong>. Não mais como vilão da economia, mas como mandatário da socieda<strong>de</strong>,ganha niti<strong>de</strong>z e <strong>de</strong>staque a questão da reforma institucional <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Não se tratamais <strong>de</strong> reformar o Esta<strong>do</strong> para que atrapalhe menos o merca<strong>do</strong>, mas para que trabalhemais para a socieda<strong>de</strong>. Seja nos mo<strong>de</strong>los security oriented, seja naqueles eficience oriented 2 ,o fato é o Esta<strong>do</strong> está chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> volta 3 e a discussão sobre sua reforma,irremediavelmente reorientada. “Como assegurar que o Esta<strong>do</strong> atue em função dasocieda<strong>de</strong>?” (Cunill, 1995) ou “Como capacitar o Esta<strong>do</strong> a fazer o que <strong>de</strong>veria fazer e,ao mesmo tempo, evitar que ele faça o que não <strong>de</strong>veria fazer?” (Przeworski, 1996) são<strong>de</strong>safios que encabeçam a agenda progressista da reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Nesse contexto, ganha importância central uma melhor <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> “interessepúblico”, seja em termos conceituais, seja em termos <strong>de</strong> sua apuração empírica, para<strong>de</strong>signar aquilo que seria interesse geral, comum, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s ou <strong>de</strong> toda a socieda<strong>de</strong>. Otermo “público”, etimologicamente associa<strong>do</strong> à expressão latina res publica - coisa ounegócio <strong>do</strong> povo - foi banaliza<strong>do</strong> pela sua utilização indiscriminada para <strong>de</strong>signar asestruturas, funções e ações <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, por <strong>de</strong>finição, porta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> interesse <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s.Daí, o público ficou reduzi<strong>do</strong> à mera qualida<strong>de</strong> daquilo que é estatal, <strong>de</strong>signan<strong>do</strong>serviços, funcionários, empresas, etc, sem qualquer conotação <strong>de</strong> efetivida<strong>de</strong> quanto àrealização <strong>do</strong> interesse geral. Na saú<strong>de</strong>, a Constituição <strong>de</strong>fine as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como<strong>de</strong> “relevância pública”, para <strong>de</strong>signar seu caráter público e a responsabilida<strong>de</strong> estatalsobre elas.No <strong>de</strong>bate contemporâneo, têm-se busca<strong>do</strong> renovar o significa<strong>do</strong> <strong>do</strong> termo “público”,no contexto das disputas <strong>de</strong> jurisdição teórica e prática entre Esta<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong>,especificamente para ajudar a caracterização das críticas à dissociação entre a ação estatale o interesse público. As propostas <strong>de</strong> resignificação <strong>do</strong> “público” aparecem tanto apartir <strong>de</strong> práticas emergentes na socieda<strong>de</strong>, fora <strong>do</strong> território estatal, quanto a partirdas iniciativas e esforços reforma<strong>do</strong>res <strong>do</strong> aparelho estatal. Em ambos os casos, correspon<strong>de</strong>mempiricamente à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um público não estatal e <strong>de</strong> um priva<strong>do</strong> nãomercantil, quebran<strong>do</strong> portanto a assertiva clássica da esfera privada como o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong>interesse individual, ou das práticas auto-interessadas, e da esfera estatal como o mun<strong>do</strong><strong>do</strong> interesse público, ou das práticas coletivo-orientadas.No primeiro caso, no campo societal, a categoria “público” serviria então para<strong>de</strong>signar iniciativas que, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong>-se fora das repartições estatais, assumem umcaráter público, por se moverem a partir <strong>de</strong> uma racionalida<strong>de</strong> ligada ao bem-comum,reivindican<strong>do</strong> uma motivação altruísta e rejeitan<strong>do</strong> qualquer viés <strong>de</strong> representação grupalou específica. Fernan<strong>de</strong>s (1994) <strong>de</strong>nomina esse novo campo <strong>de</strong> Terceiro Setor,qualifican<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> “priva<strong>do</strong>, porém, público”, para <strong>de</strong>signar a idéia <strong>de</strong> um alternativa<strong>de</strong> vida social ou <strong>de</strong> instância social baseada numa concepção <strong>de</strong> cidadania fundada nasolidadrieda<strong>de</strong> e na auto-ajuda.2. Essa tipologia é empregada por Jon Elster (Przeworski, 1996).3. Uma alusão ao livro Bringing the State back, <strong>de</strong> T. Skocpol (1985), que recoloca a centralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> papel<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>101


Genro (1996), mais criticamente, consi<strong>de</strong>ra que “o surgimento <strong>de</strong> novas formas<strong>de</strong> <strong>do</strong>minação e exclusão produziram, espontaneamente ou não, novas formas <strong>de</strong>autonomia e ‘inclusão alternativa’(...) - uma esfera pública não estatal - auto organizadaou simplesmente organizada paralelamente ao Esta<strong>do</strong> (...) para interferir na vida pública...”. São milhares <strong>de</strong> organizações que se constituem num imenso “circuito <strong>de</strong>representação pública” que, com ou sem o suporte da representação política tradicional,promovem sua auto organização por interesses particulares, principalmente em torno<strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas não aceitas ou não respondidas pelos governos. O autor acredita que essefenômeno aponta para uma nova concepção <strong>de</strong> reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> vinculada a essasnovas organizações sociais e à participação <strong>do</strong> cidadão comum.Na verda<strong>de</strong>, a categoria público ganha nova vitalida<strong>de</strong> explicativa num contextoem que tanto o Esta<strong>do</strong> quanto o merca<strong>do</strong> parecem incapazes <strong>de</strong> gerar justiça e igualda<strong>de</strong>.In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da existência <strong>de</strong> diversas nuances, vai ganhan<strong>do</strong> força a idéia <strong>de</strong>que “Esta<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>veriam trabalhar articula<strong>do</strong>s, com as populações recuperan<strong>do</strong>suficiente po<strong>de</strong>r para exercer uma influência mais efetiva sobre ambos” (UNDP, 1993).No segun<strong>do</strong> caso, no campo da reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, a categoria “público” aparececomo um atributo a ser alcança<strong>do</strong> ou recupera<strong>do</strong> pelo aparelho estatal, através <strong>de</strong> novos<strong>de</strong>senhos ou formatos institucionais. Excetuan<strong>do</strong>-se os grupos neoliberais mais extrema<strong>do</strong>s,para quem o Esta<strong>do</strong> segue sen<strong>do</strong> um empecilho às livres e saudáveis forças <strong>do</strong>merca<strong>do</strong>, as diversas tendências têm em comum a idéia <strong>de</strong> que a retomada <strong>do</strong> caráter“público” pelo Esta<strong>do</strong> envolve o reencontro <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> com a socieda<strong>de</strong>, seja na suadimensão <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, seja na sua dimensão <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> interesses. Isso significaque a agenda da reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>verá envolver novos padrões <strong>de</strong> relações com omerca<strong>do</strong> e com a socieda<strong>de</strong> (cidadania). No primeiro caso, em busca <strong>de</strong> eficiência, nosegun<strong>do</strong>, em busca <strong>de</strong> equida<strong>de</strong>.In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da ênfase num ou noutro elemento, há um certo consenso arespeito da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se trabalhar com um novo mix estatal/priva<strong>do</strong> que supere aoposição e contemple a complementarieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> funções. Diversos autores já tem trabalha<strong>do</strong>com a idéia <strong>de</strong>sses novos padrões <strong>de</strong> mix (Lon<strong>do</strong>ño & Frenk, 1995; Almeida, 1995;Fleury, 1996). Não sen<strong>do</strong> aqui o lugar para uma revisão <strong>de</strong>ssa literatura, importa registrar,para fins analíticos, a existência <strong>de</strong> <strong>do</strong>is campos <strong>de</strong> propostas <strong>de</strong> recuperação <strong>do</strong> caráterpúblico <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O primeiro concentra sua crítica na incapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> fazer oque <strong>de</strong>ve ser feito, atribuin<strong>do</strong>-a a <strong>de</strong>ficits <strong>de</strong> eficiência e efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> aparelho estatal.O segun<strong>do</strong> aponta a incapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>finir o que <strong>de</strong>ve ser feito segun<strong>do</strong> ointeresse da socieda<strong>de</strong>, ou <strong>do</strong> interesse público, remeten<strong>do</strong> a <strong>de</strong>ficits <strong>de</strong> representativida<strong>de</strong>e responsabilida<strong>de</strong>, e a questões <strong>de</strong> equida<strong>de</strong> e justiça.Tais tendências, não exclu<strong>de</strong>ntes, correspon<strong>de</strong>m a ênfases distintas no diagnósticocausal <strong>do</strong> caráter não público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Embora possa haver um abismo i<strong>de</strong>ológicoseparan<strong>do</strong> as duas perspectivas, o fato novo é que hoje se estabelece um diálogo entreambas, já que nenhuma das duas parece po<strong>de</strong>r resolver sozinha o problema <strong>do</strong> caráterpúblico <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, que parece <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r tanto <strong>de</strong> mais eficiência/ efetivida<strong>de</strong>, quanto<strong>de</strong> mais fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> aos interesses da socieda<strong>de</strong>.No primeiro caso, situam-se os enfoques mais volta<strong>do</strong>s para a mo<strong>de</strong>rnizaçãogerencial da administração pública, crian<strong>do</strong> o paradigma <strong>do</strong> “empresarialismo” governamental.Concentra<strong>do</strong> na flexibilização da implementação das políticas públicas, essacorrente já produziu um acúmulo <strong>de</strong> experiências. Propon<strong>do</strong>-se a “reinventar o governo”,introduzin<strong>do</strong> no setor público o espírito empreen<strong>de</strong><strong>do</strong>r da iniciativa privada102 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


(Osborne & Gaebler, 1995), essa tendência vem cumprin<strong>do</strong> interessante papel <strong>de</strong> contrapontoàs teses neoliberais mais radicais 4 . Abarcan<strong>do</strong> um conjunto <strong>de</strong> funções <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aregulação até o provimento direto <strong>de</strong> ações e serviços pelo Esta<strong>do</strong>, as inovações envolvemuma revalorização da competição e a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> outros mecanismos e regras <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>para mediar, às vezes presidir, o cumprimento <strong>de</strong> funções públicas até então exercidasmonopolisticamente por agências estatais. Incluem <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as privatizações (retirada total<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>), as terceirizações (<strong>de</strong>legação a terceiros, via merca<strong>do</strong>, <strong>do</strong> exercício <strong>de</strong> funçõesmantidas públicas), até a chamada gestão social (diversas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parceriascom entida<strong>de</strong>s privadas não lucrativas em programas governamentais). Em geral, nesseterreno, as experiências perseguem a eficiência, com maior ou menor grau <strong>de</strong> preocupaçãocom a equida<strong>de</strong>.Situa-se nesse campo a proposta <strong>de</strong> reforma administrativa <strong>do</strong> atual governobrasileiro, formulada pelo ministro Bresser Pereira. Critican<strong>do</strong> os mo<strong>de</strong>los patrimonialistae burocrático <strong>de</strong> organização <strong>do</strong> aparelho estatal brasileiro, marca<strong>do</strong> pelosinteresses particularistas e pelo <strong>de</strong>scompromisso público, propõe um mo<strong>de</strong>lo gerencialpara dar conta das exigências <strong>de</strong> efetivida<strong>de</strong> e eficiência colocadas pelo interesse público.Para tanto, re<strong>de</strong>senha a organização estatal e redistribui suas funções entre novosorganismos não estatais. A principal inovação é a criação <strong>de</strong> uma “esfera pública nãoestatal”, para <strong>de</strong>signar espaços ou organizações que, embora exercen<strong>do</strong> funções públicas,<strong>de</strong>vem fazê-lo sob leis <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> (Pereira, 1995).O segun<strong>do</strong> grupo ocupa-se <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> formulação das políticas públicas -policy making - tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> discutir os mecanismos mais a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s a subordinar o Esta<strong>do</strong>ao interesse público. Ao contrário da abordagem anterior, que consi<strong>de</strong>rava o interessepúblico como da<strong>do</strong>, aqui trata-se <strong>de</strong> discutir a filtragem e seleção <strong>de</strong> interesses a seremcontempla<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>, envolven<strong>do</strong> a questão da distribuição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r na <strong>de</strong>cisãopública.Esse campo é hoje fortemente influencia<strong>do</strong> pelo chama<strong>do</strong> neoinstitucionalismopara quem a reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é a busca <strong>de</strong> <strong>de</strong>signs ou formatos institucionais quefavoreçam a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s governos captar o interesses <strong>do</strong>s cidadãos e agir conformeesses interesses. Em outros termos, <strong>de</strong>finir mecanismos ou estruturas pelas quaisgovernos possam ser induzi<strong>do</strong>s ou constrangi<strong>do</strong>s a trabalhar pelo interesse público.Essa corrente, em geral, analisa os mecanismos e as lógicas <strong>de</strong> micro<strong>de</strong>cisão que presi<strong>de</strong>mas relações entre cidadãos (eleitores), burocratas e políticos.Embora isso não seja especificamente trata<strong>do</strong> pela abordagem neoinstitucionalista,é preciso ressalvar que a noção <strong>de</strong> interesse público é historica e politicamente contextualizada,ou seja, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da concepção vigente <strong>de</strong> “direitos” e <strong>de</strong> “bem-comum”.Po<strong>de</strong>-se dizer que, nos marcos da teoria e das experiências <strong>de</strong>mocráticas mo<strong>de</strong>rnas, a<strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> que seja interesse público é um processo político que envolve umaconcepção <strong>de</strong> bem-comum - politicamente pacta<strong>do</strong> e moralmente funda<strong>do</strong> - e umconjunto <strong>de</strong> regras ou procedimentos <strong>de</strong> julgamento a serem segui<strong>do</strong>s - pertinentes àquestão <strong>do</strong>s direitos (Mouffe, 1995). O conceito <strong>de</strong> “público”, assim entendi<strong>do</strong>, nadatem <strong>de</strong> neutro, inscreven<strong>do</strong>-se claramente no campo <strong>de</strong>mocrático.4. Essa corrente inspirou política e i<strong>de</strong>ologicamente as plataforma reformista <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte americanoBill Clinton.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>103


Para Offe (1984), a atribuição <strong>de</strong> status público <strong>de</strong>signa a legitimida<strong>de</strong> obtida porgrupos <strong>de</strong> interesses a partir <strong>do</strong> momento em que são acolhi<strong>do</strong>s, junto com suas<strong>de</strong>mandas, nas engrenagens da formulação e <strong>de</strong>cisão em políticas públicas. Assim, opúblico estaria liga<strong>do</strong> a mecanismos <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas erepresentações, sen<strong>do</strong> portanto pertinente à esfera tanto <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> quanto da socieda<strong>de</strong>.Da mesma forma, Habermas (1990) <strong>de</strong>fine que o espaço público <strong>de</strong>mocrático correspon<strong>de</strong>a um nível situa<strong>do</strong> entre a esfera privada e o Esta<strong>do</strong>, cuja função principal não é i<strong>de</strong>ntificarproblemas que afetam o conjunto da socieda<strong>de</strong>, mas sim tematizá-los <strong>de</strong> maneiraconvincente e persuasiva para que sejam assumi<strong>do</strong>s e processa<strong>do</strong>s pelo sistema político.Nesse ponto, já é possível reencontrar a temática <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> vis-àviso <strong>de</strong>safio da reforma <strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Por sua configuração e atribuições,esses órgãos po<strong>de</strong>m ser vistos como locus institucionais capacita<strong>do</strong>s a <strong>de</strong>terminar ointeresse público e, como tal, parametrar a ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Conformesuas origens e escopo histórico, os Conselhos situam-se nos marcos <strong>de</strong> um pacto <strong>de</strong><strong>de</strong>mocracia substantiva, expresso nos princípios finalísticos <strong>do</strong> SUS e da ReformaSanitária que, assim, estabelece o mol<strong>de</strong> setorial <strong>do</strong> interesse público.Os Conselhos po<strong>de</strong>m então ser vistos como estruturas permanentes, <strong>de</strong> caráterpúblico, que, à luz <strong>do</strong> pacto <strong>de</strong> bem-comum estabeleci<strong>do</strong> para a saú<strong>de</strong>, examina e acolhe<strong>de</strong>mandas, compatibiliza interesses e chancela uma agenda setorial “<strong>de</strong> interessepúblico”, capaz então <strong>de</strong> parametrar a ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Seu lugar ou papel no sistemaestatal <strong>de</strong> formulação e implementação <strong>de</strong> políticas seria o <strong>de</strong>, operacionalmente,estabelecer ou discriminar aquilo que é <strong>do</strong> interesse público, no processo cotidiano <strong>do</strong>processo <strong>de</strong> apresentação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas e conflito/pactuação <strong>de</strong> interesses. Muito mais<strong>do</strong> que uma “porta <strong>de</strong> acesso” ao aparelho estatal e seus mecanismos <strong>de</strong>cisórios, osConselhos são, para os diversos grupos <strong>de</strong> interesse, uma arena <strong>de</strong> tematização epublicização <strong>de</strong> seus interesses específicos. Embora sejam <strong>de</strong>tentores <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res legais,sua principal característica não é a <strong>de</strong> operar com os po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> governo e sim processarinteresses <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a estabelecer o interesse público.Não sen<strong>do</strong> canais passivos <strong>de</strong> captação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas para fins <strong>de</strong> registro formale posterior processamento, os Conselhos funcionam estabelecen<strong>do</strong> o interesse público.Ribeiro (1996) observou que os Conselhos po<strong>de</strong>m assumir <strong>do</strong>is perfis principais: o <strong>de</strong>vocalização <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas e o <strong>de</strong> pactuação <strong>de</strong> interesses. Na verda<strong>de</strong>, isso po<strong>de</strong>ria servisto como a própria dinâmica <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> estabelecimento <strong>do</strong> interesse públicoquanto a temas específicos. O pre<strong>do</strong>mínio da vocalização ou da pactuação po<strong>de</strong>riamexpressar momentos distintos <strong>de</strong> um mesmo processo volta<strong>do</strong> para operacionalizar ointeresse comum para cada questão ou <strong>de</strong>manda tematizada por um grupo específico<strong>de</strong> interesses. O interesse público, assim, não é da<strong>do</strong> previamente, e sim socialmenteconstruí<strong>do</strong>, num processo político <strong>de</strong> conflito e pactuação.Os Conselhos não são o “outro”, o alter, a socieda<strong>de</strong> ou movimento social emrelação ao Esta<strong>do</strong>, e sim o lugar, o espaço no interior <strong>do</strong> aparellho estatal, on<strong>de</strong> o “outro”se expressa, por isso, o espaço público, on<strong>de</strong> atores sociais se constroem como atorespúblicos. É claro que tal processo não se dá ao arrepio <strong>do</strong> que se passa na socieda<strong>de</strong>, nosdiversos territórios on<strong>de</strong> se materializa a esfera da política. A obtenção <strong>de</strong> status público,que qualifica um segmento ou grupo <strong>de</strong> interesses a ter assento no Conselho, assimcomo o peso relativo das diversas representações, que <strong>de</strong>finem uma certa correlação <strong>de</strong>forças, não são da<strong>do</strong>s arbitrariamente pelo Esta<strong>do</strong>, e sim pela dinâmica global da disputa<strong>de</strong> interesses.104 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Assim pensa<strong>do</strong>s, os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> são instâncias públicas <strong>de</strong> formação <strong>de</strong>opinião e vonta<strong>de</strong> política, muito mais <strong>do</strong> que instrumentos <strong>do</strong> governo ou da socieda<strong>de</strong>.Atuam na tematização e formulação da agenda pública, muito mais <strong>do</strong> que na suaexecução, na medida em que conce<strong>de</strong>m ou negam a chancela <strong>de</strong> “interesse público” às<strong>de</strong>mandas e interesses específicos ali apresentadas.Toman<strong>do</strong> a recente trajetória <strong>do</strong> Conselho Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, é possível acompanharalguns episódios ilustrativos <strong>do</strong> processo canônico <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> interessepúblico, quanto a temas e <strong>de</strong>mandas específicas.É o caso <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> lei <strong>de</strong> regulamentação <strong>do</strong>s planos priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,recentemente aprova<strong>do</strong> pelo Conselho para ser submeti<strong>do</strong> ao Legislativo. O tema vinha,há anos, sen<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates postergatórios no âmbito da Câmara Fe<strong>de</strong>ral, sem quese lograsse chegar a uma redação que, pelo menos, organizasse as divergências equalificasse o projeto para ser submeti<strong>do</strong> à <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> Legislativo. Objeto <strong>de</strong> alto nível<strong>de</strong> conflito, a postergação favorecia diretamente a situação vigente, ou seja, os interesses<strong>do</strong>s empresários <strong>do</strong> setor que há anos se beneficiam da ausência <strong>de</strong> regulamentação. Aoassumir a tarefa <strong>de</strong> construir um projeto a ser encampa<strong>do</strong> pelo Executivo, o CNS iniciaum processo intensivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>bates, envolven<strong>do</strong> os diversos segmentos interessa<strong>do</strong>s(empresários, profissionais, tecnoburocracia, usuários), cuja interação se dá numambiente que associa alta <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> técnica com alta dramaticida<strong>de</strong> política. A conclusãofoi um projeto que, em substância, incorpora as principais <strong>de</strong>mandas das clientelas <strong>de</strong>ssesplanos, expandin<strong>do</strong> claramente o campo <strong>do</strong>s direitos <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> consumi<strong>do</strong>r. Poroutro la<strong>do</strong>, em que pese a representação <strong>do</strong>s empresários diretamente interessa<strong>do</strong>s, oprojeto veta algumas das principais <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong>sse grupo, que pleiteava a manutenção<strong>do</strong>s prazos <strong>de</strong> carência e a não cobertura <strong>de</strong> certas patologias. Os grupos maisempenha<strong>do</strong>s no <strong>de</strong>senho final <strong>do</strong> projeto, que po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s vitoriosos, foramos profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, os porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> patologias e setores da burocracia governamental.Entretanto, o importante é que, ao ser ali aprova<strong>do</strong>, o projeto ganha o selo <strong>de</strong>interesse público. É claro que isso não garante sua aprovação pelo Legislativo, o que<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> como estarão lá distribuídas as influências <strong>do</strong>s diversos grupos, assimcomo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> sua mobilização no âmbito da socieda<strong>de</strong>. Entretanto, é inquestionávelque a existência <strong>do</strong> Conselho e a sua chancela <strong>de</strong> interesse público representam umanova variável no processo, que contribui para qualificar e <strong>de</strong>limitar os marcos <strong>de</strong>legitimida<strong>de</strong> em que tal <strong>de</strong>cisão será tomada, influin<strong>do</strong> portanto no cálculo político <strong>do</strong>smandatários e políticos interessa<strong>do</strong>s.Po<strong>de</strong>-se dizer que a existência <strong>de</strong> um circuito <strong>de</strong> tematização da agenda públicacomo o CNS impediu que os temas examina<strong>do</strong>s fossem discuti<strong>do</strong>s apenas à luz <strong>do</strong>auto-interesse <strong>do</strong>s grupos envolvi<strong>do</strong>s, introduzin<strong>do</strong> a mediação ou a referência aparâmetros <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>res <strong>do</strong> interesse público.Fica, então, claro que os Conselhos não governam, mas estabelecem os parâmetros<strong>do</strong> interesse público para o governo. Definem o que <strong>de</strong>ve ser feito e verificam / avaliamo que foi feito. Ao examinar <strong>de</strong>mandas e proposições, os Conselhos não as consi<strong>de</strong>ramem seu esta<strong>do</strong> bruto - como manisfestações <strong>de</strong> auto-interesse <strong>de</strong>ste ou daquele grupo -mas a partir <strong>de</strong> um processamento político-técnico que permite que sejam julgadasquanto à pertinência, viabilida<strong>de</strong>, priorida<strong>de</strong>, etc, <strong>de</strong> tal maneira que o auto-interesse<strong>de</strong>va se apresentar e se habilitar como interesse público. A <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong>ixa então <strong>de</strong> seruma <strong>de</strong>corrência imediata da correlação <strong>de</strong> forças, apurada através <strong>de</strong> votação simples,e passa a ser mediada por um rito <strong>de</strong> fundamentação e qualificação das propostasenquanto interesse público.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>105


Cabe aqui um rápi<strong>do</strong> comentário sobre o caráter <strong>de</strong>liberativo e a composiçãoparitária <strong>do</strong>s Conselhos. Na verda<strong>de</strong>, esses órgãos não <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m quais políticas e açõesserão executadas, mas <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m se correspon<strong>de</strong>m ou não ao interesse público. A composiçãoparitária, como se viu, discrimina positivamente os segmentos e grupos com menor po<strong>de</strong>rno sistema, não como um expediente para assegurar maiorias nominais, embora inefetivas,mas sim para explicitar a vigência <strong>de</strong> um pacto redistribuitivo e operacionalizar o concursodaqueles setores que mais têm necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vocalizar e ter absorvidas suas <strong>de</strong>mandas,<strong>de</strong> resto não contempladas pelos canais normais.Como porta<strong>do</strong>res ou sinaliza<strong>do</strong>res <strong>do</strong> interesse público, os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,no contexto <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>m muito bem cumprir a função <strong>de</strong>indutores <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> governamental ou accountability, entendida como aqualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s governos <strong>de</strong> estar à altura da confiança e das expectativas <strong>do</strong>s cidadãos 5 .Na verda<strong>de</strong>, nasci<strong>do</strong>s sob a égi<strong>de</strong> <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> autoritário e exclu<strong>de</strong>nte, numaconjuntura <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>scrença na ativida<strong>de</strong> político-eleitoral, os Conselhos são muitomais marca<strong>do</strong>s pela idéia <strong>de</strong> controle social (socieda<strong>de</strong> x esta<strong>do</strong>) <strong>do</strong> que pela <strong>de</strong> controleeleitoral (eleitores x governantes). A suposição <strong>de</strong> imperfeição ou insuficiência <strong>do</strong> controleeleitoral, como mecanismo por excelência da <strong>de</strong>mocracia representativa, era naturalnas condições vigentes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social e restrições à participação política, on<strong>de</strong>o fator econômico reproduzia a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> no merca<strong>do</strong> político. Entretanto, conduziaao para<strong>do</strong>xo <strong>de</strong> se atribuir ao espaço estatal uma espécie <strong>de</strong> caráter neutro, on<strong>de</strong> seconsi<strong>de</strong>rava mais fácil ou viável influenciar a tecno-burocracia <strong>do</strong> que trocar os políticos.Por outro la<strong>do</strong>, embora a maior expectativa ou possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle sobre osgovernos concentre-se nos momentos eleitorais, enquanto mecanismos <strong>de</strong> julgamento<strong>de</strong> governos, nos marcos da <strong>de</strong>mocracia representativa e da escolha racional e individual<strong>do</strong>s cidadãos eleitores, cada vez mais tem-se amplia<strong>do</strong> o consenso a respeito da necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> mecanismos complementares. Para que as eleições possam significarefetivamente o julgamento <strong>de</strong> governos e portanto funcionar como mecanismos indutores<strong>de</strong> accountability, garantin<strong>do</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> governamental aos interesse públicos, é necessárioque, além <strong>do</strong> arsenal específico <strong>de</strong> procedimentos e mecanismos garanti<strong>do</strong>res <strong>do</strong>momento eleitoral (liberda<strong>de</strong>, acesso universal ao voto, etc.), o Esta<strong>do</strong> seja <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong>outros mecanismos que permitam ao cidadão comum o acesso a informações que ocapacitem a conhecer o governo, não só nos seus resulta<strong>do</strong>s, mas no seu funcionamento.Instâncias ou instituições que, com in<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> governo, pu<strong>de</strong>ssem funcionarcomo auditorias in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, controlarias, ombudsman, conselhos in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, enfim,accountability agencies., capazes <strong>de</strong> favorecer a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s cidadãos <strong>de</strong> monitorare julgar o comportamento e as ações governamentais (Przeworski & Stokes, 1996).Parece que os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> po<strong>de</strong>riam ir inclusive mais longe. Embora nãopossam funcionar como instrumentos diretos <strong>de</strong> accountability, na medida em que nãodispõem <strong>de</strong> mecanismos <strong>de</strong> recompensas nem <strong>de</strong> punições <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a fazer valer sua<strong>de</strong>terminações, os Conselhos, ao tematizarem a agenda setorial, a partir <strong>do</strong> choques econvergências <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> interesses, produzem um campo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> interessepúblico que, ainda que não se transforme em <strong>de</strong>cisão governamental, é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong>pública. Assim, além da disseminação <strong>de</strong> informações técnicas, factuais, quedêem transparência ao processo governamental, os Conselhos po<strong>de</strong>rão também difundirtópicos da agenda <strong>de</strong> “interesse público”, ajudan<strong>do</strong> a consolidar parâmetros para aformação da opinião pública e para o julgamento eleitoral. É claro que, então, suaefetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>rá <strong>de</strong> sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> articulação e visibilida<strong>de</strong> perante o conjuntoda socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s cidadãos, e não apenas <strong>de</strong> seus segmentos organiza<strong>do</strong>s.106 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Nessa perspectiva, a própria agenda <strong>de</strong> ação <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong>veria sofrer umarevisão, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> aproximá-los mais <strong>de</strong>sse papel. Desse ponto <strong>de</strong> vista, os Conselhos<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> estariam precisan<strong>do</strong> não <strong>de</strong> mais normas, ou mais po<strong>de</strong>res legais, ou maisinstitucionalida<strong>de</strong>, e sim <strong>de</strong> mais política, mais vocalização, mais visibilida<strong>de</strong>, envolven<strong>do</strong><strong>de</strong> forma muito mais direta e orgânica as questões <strong>de</strong> informação qualificada eda comunicação <strong>de</strong> massa. A segmentação social e as enormes <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acessoà informação vigentes no Brasil são uma dificulda<strong>de</strong>, mas atestam a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> secaminhar nessa direção.Embora tenha si<strong>do</strong> um caminho até hoje pouco <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se dizer que,no cenário brasileiro <strong>de</strong> consolidação <strong>de</strong>mocrática, com a universalização <strong>de</strong> regras <strong>de</strong>disputa e o or<strong>de</strong>namento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> político, instâncias como os Conselhos <strong>de</strong>vem servistas como potentes instrumentos auxiliares <strong>de</strong> indução <strong>de</strong> responsiveness e estímulo àaccountability, com condições potenciais <strong>de</strong> exercer forte influência no julgamentoeleitoral.É, então, como parte <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, mas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> governo, que os Conselhospo<strong>de</strong>rão encontrar seu papel renova<strong>do</strong> nos marcos da reforma <strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,não apenas da saú<strong>de</strong>. Embora a mera existência <strong>do</strong>s Conselhos já tenha um efeito geral,cultural, digamos assim, é no processo cotidiano da tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão pública queesses órgãos po<strong>de</strong>m encontrar seu maior alcance <strong>de</strong>mocrático, qual seja o <strong>de</strong> fazer pesarna <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> interesse público as <strong>de</strong>mandas e necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s setores com menorpresença nas arenas políticas tradicionais. A multiplicação <strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> agências po<strong>de</strong>viabilizar uma porosida<strong>de</strong> <strong>do</strong> aparelho estatal que o qualifique, não como um gran<strong>de</strong>receptáculo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas, mas como uma re<strong>de</strong> flexível <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> micro<strong>de</strong>cisõesrelacionadas à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> interesse público, assim como à sua garantia eefetivação através das políticas públicas.CONSELHOS COMO ESPAÇOS DE EXERCÍCIO DA CIDADANIA:CONSTITUIÇÃO DE SUJEITOS E IDENTIDADES COLETIVASA idéia da reforma <strong>de</strong>mocrática <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> tem como contraparte a <strong>de</strong>mocratizaçãoda socieda<strong>de</strong>, na medida em que a efetivação <strong>de</strong> espaços públicos a partir <strong>do</strong> aparelhoestatal, apropria<strong>do</strong>s para tematizar a agenda e modular a formação da vonta<strong>de</strong> políticagovernamental, supõe a emergência <strong>de</strong> sujeitos capazes <strong>de</strong> discriminar interesses epactuá-los no processo <strong>de</strong> construção <strong>do</strong> interesse comum.Para melhor sublinhar que não se trata <strong>de</strong> pensar a socieda<strong>de</strong> ou o merca<strong>do</strong> comoespaços alternativos ao Esta<strong>do</strong> para a distribuição <strong>de</strong> justiça e para a efetivação <strong>de</strong> direitos,prefere-se aqui tratar com a noção <strong>de</strong> cidadania, no lugar <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> ousocieda<strong>de</strong> civil.5. Przeworsky (1996) tem usa<strong>do</strong> também o termo responsiveness para <strong>de</strong>signar a subordinação <strong>do</strong> governoao interesse público, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>de</strong> se e como os cidadãos o enunciem. Assim, accountabilityteria mais a ver com o empenho em <strong>de</strong>tectar e seguir o interesse público tal como é expresso pelasocieda<strong>de</strong>, enquanto responsiveness estaria mais relacionada com a capacida<strong>de</strong>, inclusive técnica, <strong>de</strong>saber o que é melhor para a socieda<strong>de</strong>.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>107


Enten<strong>de</strong>-se, então, por sujeitos, mais <strong>do</strong> que grupos porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> interessescomuns e mais <strong>do</strong> que titulares <strong>de</strong> direitos formais, aqueles agentes sociais que, a partirda fixação <strong>de</strong> interesses e valores, constituem-se politicamente na interlocução com outrossujeitos ou instituições.De forma bastante evi<strong>de</strong>nte, os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> vêm funcionan<strong>do</strong> comoespaços fomenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong>ssa constituição <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s coletivas e sujeitos políticos. Amera existência <strong>do</strong>s Conselhos representa uma oferta <strong>de</strong> participação e inclusão, senãona <strong>de</strong>cisão, pelo menos na discussão pública, configuran<strong>do</strong> um fenômeno inédito nahistória brasileira, pela escala e pela velocida<strong>de</strong> em que ocorre. Isso tem significa<strong>do</strong>uma nova feição institucional e uma nova dinâmica para o setor. O início <strong>do</strong>s anos 90marcou a proliferação extremamente veloz <strong>de</strong> Conselhos por to<strong>do</strong> o país. Entre 1991 e1993, foram constituí<strong>do</strong>s cerca <strong>de</strong> <strong>do</strong>is mil Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (Carvalho, 1995), o quesignifica um ritmo <strong>de</strong> praticamente <strong>do</strong>is novos Conselhos por dia. Em julho <strong>de</strong> 1996,uma estimativa baseada no número <strong>de</strong> municípios já habilita<strong>do</strong>s à municipalizaçãosugere que cerca <strong>de</strong> 65% <strong>do</strong> universo <strong>de</strong> municípios brasileiros dispõem <strong>de</strong> Conselhos,correspon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a mais <strong>de</strong> 80% da população brasileira. 6 Isso significa a existência <strong>de</strong>algumas <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> conselheiros, número equivalente ao <strong>de</strong> verea<strong>do</strong>res.Embora o dinamismo <strong>de</strong>sses órgãos possa variar conforme a tradição <strong>de</strong> culturapolítica ou a conjuntura local, o fato é que eles representam para os cidadãos a abertura<strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s inéditas <strong>de</strong> se incorporarem ao <strong>de</strong>bate e à vida política, através <strong>de</strong> umfórum que, como se viu, processa <strong>de</strong>mandas específicas segun<strong>do</strong> o interesse público,nos marcos <strong>de</strong> um pacto <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> por referência a valores <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong> e justiçadistribuitiva.Como espaços <strong>de</strong> representação <strong>de</strong> interesses, os Conselhos funcionam tambémcomo cataliza<strong>do</strong>res ou indutores da disseminação <strong>de</strong> organizações civis. Seriam necessáriosestu<strong>do</strong>s empíricos para verificar a dimensão, no Brasil, <strong>do</strong> fenômeno mundialrepresenta<strong>do</strong> pela explosão <strong>de</strong> organizações não governamentais. Agrupadas peloHuman Development Report 1993 como CBO’s - Comunity Based Organizations, essasorganizações reuniam 100 milhões <strong>de</strong> pessoas em 1980, passan<strong>do</strong> a 250 milhões no início<strong>de</strong>sta década (Dowbor, 1996).São numerosos os grupos <strong>de</strong> interesses que ganharam i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e organicida<strong>de</strong>a partir <strong>do</strong> advento <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Especialmente notável foi o aumento daparticipação, da visibilida<strong>de</strong> e da efetivida<strong>de</strong> política das organizações <strong>de</strong> pacientes ou<strong>de</strong> porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> patologias. Esses vêm comparecen<strong>do</strong> ao cenário setorial não só com<strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> ampliação <strong>do</strong> acesso a bens e serviços específiccos ou especializa<strong>do</strong>s, mastambém reivindican<strong>do</strong> alterações no mo<strong>de</strong>lo assistencial. Engloban<strong>do</strong> os renais crônicos,cardiopatas, hansenianos, HIV positivos e vários outros, além <strong>do</strong>s porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong><strong>de</strong>ficiência, esses grupos têm presença quase universal nos Conselhos. Ocupam hojeseis das <strong>de</strong>zesseis ca<strong>de</strong>iras <strong>de</strong>stinadas a usuários no Conselho Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.É significativo como os Conselhos, na medida em que consolidam uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>institucional, vão geran<strong>do</strong> entre seus membros um senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> pertencimento ei<strong>de</strong>ntificação recíproca bastante inova<strong>do</strong>r na cultura política brasileira. Como instituiçõescomprometidas com o interesse público, nos marcos <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> bem-comum <strong>de</strong>caráter redistribuitivo, os Conselhos ten<strong>de</strong>m a tornar seus membros embeb<strong>de</strong>d 7 por essasidéias, <strong>de</strong> forma relativamente autônoma em relação aos interesses sociais que maisimediatamente representam.108 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O caráter <strong>de</strong> re<strong>de</strong> nacional adquiri<strong>do</strong> pelos Conselhos expressa um interessanteprocesso <strong>de</strong> articulação e interlocução, simultaneamente vertical e horizontal, que unenão só os Conselhos mas as organizações <strong>de</strong> seus diversos segmentos. A realização, emmaio <strong>de</strong> 1995, <strong>do</strong> I Encontro Nacional <strong>de</strong> Conselheiros <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> marca esse processo.Embora, <strong>de</strong> início, tal articulação tenha atendi<strong>do</strong> à necessida<strong>de</strong> política <strong>de</strong> os Conselhosse diferenciarem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (relação nós-eles), a tendência hoje aponta não para umaorganização nacional <strong>de</strong> conselheiros, mas para uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> intercâmbio <strong>de</strong> práticas ecrenças, on<strong>de</strong> o interesse público em saú<strong>de</strong> passa a balizar a discussão das <strong>de</strong>mandasespecíficas, sen<strong>do</strong> tematiza<strong>do</strong> em ambientes on<strong>de</strong> as exigências locais combinam-se comas referências gerais.É também visível e promissora a emergência <strong>de</strong> manifestações individuais <strong>de</strong>exercício da cidadania que, se não são fruto imediato <strong>do</strong>s Conselhos, recebem <strong>de</strong>les umestímulo colateral importante. A criação <strong>de</strong> Ouvi<strong>do</strong>rias e outros mecanismos para oacolhimento <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias ou <strong>de</strong>mandas individuais expressam a disseminação <strong>de</strong>sseespírito participacionista. Mais <strong>do</strong> que uma proposta <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocracia direta, os Conselhosexpressam um processo <strong>de</strong> capilarização da <strong>de</strong>mocracia on<strong>de</strong>, conforme a sugestão <strong>de</strong>Bobbio, o importante “não é só quantos votam, mas sim em quantos lugares se vota”,ou seja, a diversida<strong>de</strong> das situações em que se vota.Ainda sobre a questão <strong>do</strong> indivíduo, alguns autores, como Santos (1994), vemapontan<strong>do</strong> o risco <strong>de</strong> um empobrecimento da cidadania por força <strong>do</strong>s excessos <strong>de</strong>regulação estatal, numa padronização <strong>de</strong>corrente da universalização <strong>de</strong> direitos, eprovocan<strong>do</strong> um abafamento da subjetivida<strong>de</strong>, num cerceamento das diferenças e dasautonomias individuais e <strong>de</strong> grupos específicos. Defen<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um novomarco que rearticule regulação com emancipação para dar conta <strong>de</strong> um novo equilíbrioentre cidadania e subjetivida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma que a busca da igualda<strong>de</strong> não se dê às custas<strong>do</strong> abafamento das diferenças. A esse respeito, Bodstein (1996) lembra que “a atualcidadania, como inovação política da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, vincula-se <strong>de</strong> forma estreita aoindividualismo, com a constituição sempre renovada <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s e novos sujeitos”.A revalorização, na agenda <strong>de</strong>mocrática contemporânea, <strong>do</strong> pluralismo e a respectivaaceitação “<strong>de</strong> concepções divergentes a respeito <strong>de</strong> nossa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> como cidadãos”(Mouffe, 1996), tem trazi<strong>do</strong> novas exigências para o difícil processo <strong>de</strong> construção dacidadania no Brasil, on<strong>de</strong> pre<strong>do</strong>minam <strong>de</strong> forma dramática as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais.A experiência <strong>do</strong>s Conselhos têm certamente servi<strong>do</strong> <strong>de</strong> campo para a consi<strong>de</strong>ração<strong>do</strong> interesse público, não apenas na perspectiva da busca <strong>de</strong> igualda<strong>de</strong>s básicas,mas também <strong>do</strong> respeito às diferenças, propician<strong>do</strong> e acolhen<strong>do</strong> <strong>de</strong>mandas que buscamlegitimação e solução não pela extensão <strong>de</strong> direitos iguais ou prestações padronizadas,mas sim pela discriminação <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s específicas, <strong>de</strong>correntes da diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>situações sociais e culturais. Como se viu no caso <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> pacientes, tal processoprece<strong>de</strong> e presi<strong>de</strong> a constituição permanente <strong>de</strong> novos sujeitos sociais que, impulsiona<strong>do</strong>spelo auto-interesse, tematizam suas necessida<strong>de</strong>s à luz <strong>do</strong> interesse público.Essa diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> situações tem na exclusão social <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> brasileirosseu exemplo extremo e mais dramático. Aqui, a vivência <strong>do</strong> pluralismo e a sua valorizaçãopolítica abre caminho para compreen<strong>de</strong>r que o princípio da universalida<strong>de</strong>,6. A estimativa é conserva<strong>do</strong>ra, já que muitos municípios ainda não habilita<strong>do</strong>s já constituíram seusConselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (Carvalho, 1996). Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s publica<strong>do</strong>s no Conjuntura e Saú<strong>de</strong> nº 25,correspon<strong>de</strong>nte ao terceiro trimestre <strong>de</strong> 1996, existiam cerca <strong>de</strong> 3200 municípios habilita<strong>do</strong>s.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>109


construí<strong>do</strong> para superar <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s e segmentações sociais, é insuficiente emsituações <strong>de</strong> exclusão social, on<strong>de</strong> são necessários esforços diferencia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> compensação,concentra<strong>do</strong>s e focaliza<strong>do</strong>s nos grupos mais frágeis (Fleury, 1995).Dowbor (1996), discutin<strong>do</strong> os impactos da globalização sobre a esfera local prevêuma reconstituição das comunida<strong>de</strong>s, a partir da incorporação das novas tecnologiashoje <strong>de</strong>sagrega<strong>do</strong>ras, mas com potencial para provocar novas formas <strong>de</strong> articulaçãosocial em torno <strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> conhecimento compartilha<strong>do</strong>. Segun<strong>do</strong> ele, trata-se <strong>de</strong> “... uma re<strong>de</strong>finição da cidadania e, em particular, uma re<strong>de</strong>finição das instituições paraque os espaços participativos coincidam com as instâncias <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões significativas”.O advento <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, pelas práticas sociais que suscita e conforma,po<strong>de</strong> contribuir para que as diversas dimensões <strong>do</strong> indivíduo como ser social - trabalha<strong>do</strong>r,usuário, consumi<strong>do</strong>r, cliente - possam se encontrar ou integrar na condição eixo<strong>de</strong> sujeito-cidadão. Assim, contribuir para uma reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que, ainda que sirvapara reorientar a economia, precisa ser reorientada para servir à cidadania.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASALMEIDA, Célia M. (1995). As reformas sanitárias <strong>do</strong>s anos 80: crise ou transição? Tese <strong>de</strong> Doutoramento.Escola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública, Fundação Oswal<strong>do</strong> Cruz. Rio <strong>de</strong> Janeiro.BODSTEIN, Regina C.A. (1996). Inovações na análise das políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no campo da saú<strong>de</strong>coletiva. In Nilson <strong>do</strong> Rosário Costa & José Men<strong>de</strong>s Ribeiro (org.). Política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e inovaçãoinstitucional. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Secretaria <strong>de</strong> Desenvolvimento Educacional/Ensp/Fiocruz.BRASIL, Congresso Nacional (1990). Lei 8142. Brasília DFCARVALHO, Antônio I. (1995). Conselhos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no Brasil: participação cidadã e controle social. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Ibam/Fase.CORTES, Soraya M.V. (1996). Fóruns participatórios na área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>: teorias <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, participantese modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> participação. Saú<strong>de</strong> em Debate, nº 49/50, 73-79. Londrina.COUTINHO, Carlos N. (1989). Representação <strong>de</strong> interesses, formulação <strong>de</strong> políticas e hegemonia. InSonia Fleury (org.) Reforma Sanitária: em busca <strong>de</strong> uma teoria. São Paulo: Cortez Editora/AbrascoCUNILL, Nuria (1995). La rearticulación <strong>de</strong> las relaciones Esta<strong>do</strong>-sociedad: en búsqueda <strong>de</strong> nuevossenti<strong>do</strong>s. Reforma e Democracia nº 4, 25-58.DOWBOR, Ladislau (1996). Da globalização ao po<strong>de</strong>r local: a nova hierarquia <strong>do</strong>s espaços. In MarcosCezar <strong>de</strong> Freitas (org) A reinvenção <strong>do</strong> futuro. São Paulo: Cortez Editora/USF-IFANFERNANDES, Rubem C. (1994). Priva<strong>do</strong> porém público: o Terceiro Setor na América Latina. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Relume-Dumará.FLEURY, Sonia. (1996). Saú<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida: combater a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> e a exclusão. Conjunturae Saú<strong>de</strong>, nº 25, jul-ago-set. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nupes/Ensp/FiocruzGENRO, Tarso (1996). O novo espaço público: 21 teses para a criação <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong>mocrática e socialista.São Paulo: Folha <strong>de</strong> São Paulo, 9/6/96, ca<strong>de</strong>rno Mais, pag. 3.GIDDENS, Anthony. (1996). Para além da esquerda e da direita - 0 futuro da política radical. São Paulo:Editora UnespHABERMAS, Jürgen (1990). Soberania popular como procedimento: um conceito normativo <strong>de</strong> espaçopúblico. Novos Estu<strong>do</strong>s CEBRAP nº 26. São Paulo.7. Termo <strong>de</strong> difícil tradução, emprega<strong>do</strong> na literatura neo-institucionalista para <strong>de</strong>signar a influência <strong>do</strong>ambiente institucional na formação das idéias <strong>do</strong>s agentes institucionais.110 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


LONDOÑO, J.L. & FRENK, J. (1995). Structured pluralism: towards a new mo<strong>de</strong>l for health system reformin Latin America. (mimeo)MOUFFE, Chantal (1996). O regresso <strong>do</strong> político. Lisboa: Gradiva.OFFE, Claus. (1984). Problemas estruturais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> capitalista. Rio <strong>de</strong> janeiro: Tempo Brasileiro.OSBORNE, David & GAEBLER, Ted (1995). Reinventan<strong>do</strong> o governo: como o espírito empreen<strong>de</strong><strong>do</strong>r estátransforman<strong>do</strong> o setor público. Brasília DF: Editora MH Comunicação.PEREIRA, L.C. Bresser (1995). A reforma <strong>do</strong> aparelho <strong>de</strong> esta<strong>do</strong> e a Constituição Brasileira. Brasília: MARE/ENAPPRZEWORSKI, Adam & STOKES, Susan C. (1996). Citizen information and government accountability:what must citizens know to control governments? American Political Science Association (mimeo).PRZEWORSKI, Adam (1996). Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: responsabilida<strong>de</strong> política e intervenção econômica.Revista Brasileira <strong>de</strong> Ciências Sociais nº 32, 20-40, outubro.RIBEIRO, J. Men<strong>de</strong>s (1996). Estruturas tecno-burocráticas e instâncias colegiadas no SUS - umaabordagem <strong>do</strong>s fundamentos da política setorial. In Nilson <strong>do</strong> Rosário Costa & José Men<strong>de</strong>sRibeiro (org.). Política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e inovação institucional. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Secretaria <strong>de</strong> DesenvolvimentoEducacional/Ensp/Fiocruz.SANTOS, Boaventura S. (1994). Pela mão <strong>de</strong> Alice - o social e o político na pós-mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Porto: EdiçõesAfrontamento.STOTZ, Eduar<strong>do</strong> N. (1994). Movimentos sociais e saú<strong>de</strong>: notas para uma discussão. Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Pública. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 10 (2) 264-268, abril-junho.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>111


112 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Análise Crítica das Constribuiçõesda Saú<strong>de</strong> Coletiva à Organização dasPráticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> no SUSGastão Wagner <strong>de</strong> Sousa CamposANÁLISE ASSISTEMÁTICAVinte anos <strong>de</strong> movimento sanitário. Julgá-los, como? Foram vinte anos <strong>de</strong> minhavida. O que fizemos? O que fiz? Como separar uma questão da outra e escrever umartigo científico e objetivo, frio. Jamais po<strong>de</strong>ria, po<strong>de</strong>rei. Há alguns dias fui apresenta<strong>do</strong>na Conferência Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Pernambuco como professor e sanitarista polêmico.Marca permanente? Medalha pelos serviços e <strong>de</strong>sserviços presta<strong>do</strong>s, inseparáveis.Agora, avalio, seria momento <strong>de</strong> recompor forças. Somar resistências. Lutar emprol <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> mais justa e solidária anda muito difícil. Excesso <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotas,excesso <strong>de</strong> pragmatismo, <strong>de</strong> realismo cínico. O pensamento “neoliberal” pesa comouma canga, to<strong>do</strong>s estamos obriga<strong>do</strong>s a carregá-la. Alguns para melhor <strong>de</strong>sfrute próprioe pessoal; outros, somente para melhor combatê-lo. O antigo movimento sanitário seesfrangalhou, dividi<strong>do</strong>s em escolas com capital <strong>de</strong> saber que preservamos compulsivamenteda contaminação alheia - paranóias à parte -; em grupos <strong>de</strong> interesse monta<strong>do</strong>spara fazer carreira nas instituições - vaida<strong>de</strong>s e ambições à parte -; em tendências partidáriasou semi-partidárias zelan<strong>do</strong> por currais on<strong>de</strong> poucos aceitam encerrar-se; poisbem, excessivamente dividi<strong>do</strong>s raramente logramos oposição concreta ao peso <strong>de</strong>stacangalha neoliberal. Haveríamos que re<strong>de</strong>scobrir pontos <strong>de</strong> convergência.Convergência, contu<strong>do</strong>, nunca po<strong>de</strong>ria significar também unanimida<strong>de</strong>. Isto nãoseria nem possível, nem agradável e nem sa<strong>luta</strong>r. Tampouco recriar um centro dirigentepara o movimento seria a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>. Talvez construir uma plataforma operacional,diretrizes mais concretas que permitissem a neoconstrução <strong>do</strong> SUS. Relevar as diferenças;revelan<strong>do</strong>-as, entretanto. Cuidar com carinho <strong>de</strong> nossas incertezas, abri-las ao sol <strong>do</strong><strong>de</strong>bate livre. Fazer isto sem que a dissensão implicasse em <strong>de</strong>sarticulação da frentepolítica em <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> SUS. Por isso não quero mais ser polêmico, sonho participar <strong>de</strong>um movimento que acumulasse vitórias, que resultasse eficaz na <strong>de</strong>fesa da vida, queevi<strong>de</strong>nciasse a potência das experiências nas quais a solidarieda<strong>de</strong> fosse o cimento <strong>de</strong>união das pessoas.A<strong>de</strong>mais, não há como <strong>de</strong>sconhecer que o Esta<strong>do</strong> brasileiro - esta<strong>do</strong> opera<strong>do</strong> poratores sociais realmente existente, como i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> bem marcada - vem ele próprioimpedin<strong>do</strong> a efetiva implantação <strong>do</strong> SUS. Primeiro, porque não o financia <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>conveniente; segun<strong>do</strong>, porque, ao gerenciá-lo, não tem busca<strong>do</strong> qualida<strong>de</strong> e eficácia daatenção ; terceiro, porque não realiza reformas da máquina administrativa e assistencialSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>113


sem as quais o SUS não conseguirá passar <strong>do</strong> papel. Depois, estes mesmos atores da<strong>de</strong>struição ou da inércia bradam contra o estatismo <strong>do</strong> SUS, alegam que a legislaçãosanitária não seria razoável e propõem esquemas para <strong>de</strong>struí-la. Sugerem retorno àprivatização, esquecen<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> que no Brasil a atenção individual sempre esteveprivatizada e a coisa nunca funcionou. É um <strong>de</strong>scaramento; mas, com certeza, virãodistintos governistas falar em parceria, em <strong>de</strong>smonte da re<strong>de</strong> pública, em privatização<strong>do</strong>s hospitais públicos, etc.Não obstante, o SUS já tem respostas para muitos problemas. E mais, já provou,em inúmeras experiências locais, que a coisa po<strong>de</strong> funcionar. Isto amarga a vida <strong>do</strong>sprivatistas compulsórios. Afinal, em vários municípios <strong>de</strong>monstrou-se a potencialida<strong>de</strong><strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção que viemos inventa<strong>do</strong>. São <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s nas quais osistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> avançou muito, citar alguma seria injustiça com outras. São <strong>de</strong>zenas,mas não são ainda a maioria. Na maioria das localida<strong>de</strong>s a população sofre com o <strong>de</strong>scaso.Nem saú<strong>de</strong> coletiva, nem atenção individual se equacionaram bem na maioria <strong>do</strong> país.Menos <strong>de</strong> vinte por cento da população, por exemplo, vive em municípios que assumirama gestão semi-plena, nossa maior receita contra a burocratização e a corrupção <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lotradicional <strong>de</strong> financiamento das ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. O controle social <strong>do</strong>s Conselhos <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> ou das Comissões multipartites mal começou a ser experimenta<strong>do</strong>. Poucossaberiam que estas alternativas estão prometen<strong>do</strong> melhoria <strong>do</strong> SUS. A maioria sofre<strong>de</strong>sassistência, sofre epi<strong>de</strong>mias intermináveis, e, pior, sofre um constante bombar<strong>de</strong>ioda mídia e <strong>do</strong>s porta-vozes <strong>do</strong> “neoliberalismo” responsabilizan<strong>do</strong> o SUS por males<strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> mau-governo <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s que se isentam da responsabilida<strong>de</strong>,responsabilizan<strong>do</strong> o SUS.Ou seja, precisamos compor um bloco coeso para assegurar a divulgação e a multiplicação<strong>de</strong>stas experiências. Respeitarmos o trabalho alheio. Reconhecermos o trabalhoalheio. Apoiarmo-nos no trabalho alheio. Escaparmos da mesquinharia das vaida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> autoria, da estreiteza <strong>do</strong> interesse político-partidário coloca<strong>do</strong> na frente <strong>de</strong> to<strong>do</strong> oresto, <strong>do</strong> cálculo miú<strong>do</strong> das disputas por cargos burocráticas, é preciso. É necessáriosermos mais generosos e ousa<strong>do</strong>s. Entretanto, a busca da ação unitária não po<strong>de</strong>riaredundar em congelamento das discussões, <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates, da procura <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los,<strong>de</strong> novas maneiras <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>rmos aos <strong>de</strong>safios sanitários e políticos <strong>do</strong> país. Senãoseria um discurso moralista, vazio, este apelo à unificação <strong>do</strong>s <strong>de</strong>fensores <strong>do</strong> SUS.Restaria a questão: como não ser polêmico? Não encontro outra forma viávelpara viver. Na verda<strong>de</strong>, talvez seja difícil encontrar equilíbrio para <strong>do</strong>sar respeito aotrabalho passa<strong>do</strong> com críticas elaboradas a posteriori. Saber combinar reconhecimentocom crítica e com a reconstrução <strong>de</strong> novos projetos é arte para sábios. E apesar da meiaida<strong>de</strong>,estaríamos, muitos, ainda longe da sabe<strong>do</strong>ria. Não obstante, não custaria semprebuscá-la.Ou seja, julgo conveniente prosseguirmos analisan<strong>do</strong> criticamente os mo<strong>do</strong>s comofazemos saú<strong>de</strong>. Permanecermos abertos ao novo, a <strong>de</strong>scobertas, que somente acontecerãose não pasteurizarmos o <strong>de</strong>bate e, sobretu<strong>do</strong>, a experimentação.Neste artigo, <strong>de</strong>stacarei pontos <strong>de</strong> algumas experiências municipais que,segun<strong>do</strong> meu entendimento, lançaram luzes ou sombras sobre nossas <strong>do</strong>utrinas preestabelecidas.Examinarei eventos ou projetos que ou reafirmaram certezas queconstruíramos, ou criaram campo <strong>de</strong> dúvidas e <strong>de</strong> incertezas nas quais agora nosatolamos. Tentarei avançar nesta linha, sem intenção <strong>de</strong> <strong>de</strong>rrotar a ninguém mais <strong>do</strong>que aos adversários <strong>do</strong> SUS, sem outra pretensão que a <strong>de</strong> contribuir para a reflexão <strong>de</strong>114 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


to<strong>do</strong>s aqueles meti<strong>do</strong>s na construção <strong>do</strong> SUS. E, goiano antigo que sou, vou logorepetin<strong>do</strong> como meus antepassa<strong>do</strong>s: - <strong>de</strong>sculpem-me, qualquer coisa... qualquer coisa.Afinal, as coisas não são controláveis, ninguém as controla, nem os planeja<strong>do</strong>res maisestratégicos. Em nenhuma situação. Nos laboratórios e em programas <strong>de</strong> computa<strong>do</strong>res,talvez, quem sabe, se invente aparência <strong>de</strong> controle que nos apaziguaria. Já na vida real,é melhor <strong>de</strong>sculpar-se, em princípio, pelo <strong>de</strong>scontrole!Analisarei circuitos reiterativos, falas que repetimos e caminhos que insistimosem percorrer em reiterações “neuróticas”. Neuróticas porque, às vezes, não nos permitimosa liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> repensar teorias reprovadas no teste <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>.Assim, farei análise assistemática. A eleição <strong>de</strong> temas examina<strong>do</strong>s ocorreu-me tão-somentepela insistência com que os repetimos em nossos discursos. Este seria o méto<strong>do</strong>.NO MEIO DO CAMINHO, ENTRE O GERAL E O PARTICULAR, HÁ TODO UMMUNDO DESCONHECIDO A SER EXPLORADOE. Menen<strong>de</strong>z e Ricar<strong>do</strong> Bruno contribuíram para a reconstrução <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong>. O primeiro adaptou ao campo das práticas sanitárias asnoções <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo médico hegemônico e <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los alternativos <strong>de</strong> organização <strong>de</strong>ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (Menen<strong>de</strong>z, 1985 ); o segun<strong>do</strong> elaborou o conceito <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los tecnológicospara <strong>de</strong>signar <strong>de</strong>terminada composição <strong>de</strong> tecnologias incorporadas emprogramas específicos (Bruno Gonçalvez, 1994). É um veio rico prosseguirmos na linha<strong>de</strong>stes autores toman<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo como uma categoria <strong>de</strong> mediação entre <strong>de</strong>terminaçãohistórico-estrutural <strong>de</strong> políticas sociais e as práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Ou seja, uma instância naqual atores sociais reelaborariam <strong>de</strong>terminantes macro-sociais e <strong>de</strong>terminantesdisciplinares em função <strong>de</strong> seus projetos singulares. Tomarei a implantação concreta <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>los como uma espaço <strong>de</strong> autonomia relativa <strong>de</strong> sujeitos coletivos atuan<strong>do</strong> eminstituições ou em organizações <strong>do</strong> campo da saú<strong>de</strong>.Para analisar os mo<strong>do</strong>s como o SUS tem se transforma<strong>do</strong> em realida<strong>de</strong> haveriaque se consi<strong>de</strong>rar duas dimensões. Uma <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mais macro, on<strong>de</strong> condicionanteseconômicos, políticos e sociais <strong>de</strong>marcariam espaços potenciais que po<strong>de</strong>riam ou nãoser ocupa<strong>do</strong>s por atores concretos. A segunda dimensão, embora envolta por estes<strong>de</strong>terminantes mais gerais, seria também um espaço <strong>de</strong> embate político e i<strong>de</strong>ológicoque influenciaria as práticas sanitárias concretamente implementadas. A maioria <strong>do</strong>sestu<strong>do</strong>s tem da<strong>do</strong> mais ênfase à primeira <strong>de</strong>stas dimensões. Neste trabalho estarei maispreso à segunda linha <strong>de</strong> análise.Não que a dimensão socio-econômico seja menos importante. Ao contrário. Háto<strong>do</strong> um contexto <strong>de</strong> enfrentamento obrigatório para qualquer ator interessa<strong>do</strong> emimplantar o SUS. A hegemonia neoliberal é um obstáculo pesa<strong>do</strong> a to<strong>do</strong> projetoredistributivo. Do valor atribuí<strong>do</strong> à vida humana pela socieda<strong>de</strong>, até a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>dinheiro investida na saú<strong>de</strong>, tu<strong>do</strong> está em reviravolta e em disputa.O tema <strong>do</strong> financiamento: sem dúvida há falta <strong>de</strong> recursos. Entretanto, seenganaria quem imaginasse que maior aporte resolveria automaticamente o acesso oua qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>do</strong> SUS. Não. O atual mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização das práticas éina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>. Corruptela latinizada <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> norte-americano <strong>de</strong> atenção: especializaçãocrescente, resolutivida<strong>de</strong> cada vez menor <strong>de</strong> cada serviço ou <strong>de</strong> cada agente, <strong>de</strong>svalo-SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>115


ização da clínica e da saú<strong>de</strong> pública e hipervalorização <strong>de</strong> procedimentos diagnósticosou terapêuticos sem consi<strong>de</strong>ração por to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s, centralida<strong>de</strong> <strong>do</strong>hospital que funciona tanto como porta <strong>de</strong> entrada quanto como linha <strong>de</strong> saída. Ou seja,sem modificação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção seria realmente utópico pensar-se na universalização.A prevalecer a lógica médica tradicional a atenção à saú<strong>de</strong> seria, realmente, umsaco sem fun<strong>do</strong>. Não haveria dinheiro que cobrisse o número crescente <strong>de</strong> intervenções,<strong>de</strong> atendimentos especializa<strong>do</strong>s, etc. A universalização pressupõe alteração <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo,portanto. No caso <strong>de</strong> privatização, a mercantilização da saú<strong>de</strong> recriaria o mo<strong>de</strong>lo norteamericano,sempre, automaticamente. Ou seja, a receita <strong>do</strong>s neoliberais, se implementada,agravaria o problema que quereriam resolver. Ironia, safada e trágica.No Brasil, com a municipalização surgiram inúmeras experiências alternativas<strong>de</strong> construção e operacionalização <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Cada uma <strong>de</strong>stas experiênciasreelaborou aspectos <strong>do</strong> pensamento, <strong>do</strong> saber e das práticas tradicionais. Particularmente,por seu caráter hegemônico, estes projetos <strong>de</strong> mudança se enfrentaram com a práticamédica; com escolas <strong>de</strong> medicina, enfermagem, o<strong>do</strong>ntologia, etc; mas também comaspectos da regulamentação corporativa; com a lógica <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> tão presente noexercício profissional; isto sem mencionar a maneira clientelista e autoritária <strong>de</strong> gerirserviços públicos e, portanto, também <strong>de</strong> administrar o SUS.Estes inova<strong>do</strong>res, para opor-se a todas estas dificulda<strong>de</strong>s, apoiaram-se em<strong>do</strong>utrinas elaboradas pela saú<strong>de</strong> coletiva (medicina social, epi<strong>de</strong>miologia, ciênciassociais, planejamento e administração <strong>do</strong> público, etc.); no corpo programático <strong>de</strong>entida<strong>de</strong>s como OMS/OPS; e mesmo em linhas reformistas <strong>do</strong> pensamento clínico, quevieram divulgan<strong>do</strong> programas com visão mais holística <strong>do</strong>s <strong>de</strong>terminantes <strong>do</strong> processosaú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença e com propostas mais amplas <strong>de</strong> intervenção. Sem dúvida, a atuação <strong>de</strong>parti<strong>do</strong>s políticos, movimentos sociais e <strong>de</strong> agrupamentos específicos ( por exemplo oda reforma psiquiátrica, ou o mais amplo ainda da reforma sanitária, articula<strong>do</strong> aore<strong>do</strong>r <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>) também contribuíram para a construção e experimentação <strong>de</strong> distintosmo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção.Por último, valeria consi<strong>de</strong>rar que inúmeros governos bancaram estas iniciativasreformistas. Se houve centenas <strong>de</strong> municípios em que os governantes não ousaram “fazercumprir a lei”, <strong>de</strong>scuidan<strong>do</strong> <strong>do</strong> SUS; não há como <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o papel <strong>de</strong> algumas<strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> governos municipais que funcionaram como testemunhos, provan<strong>do</strong> comsua ação que serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m funcionar muito bem e dar conta datarefa social que lhes caberia pela Constituição.Neste senti<strong>do</strong>, as diretrizes ético-políticas <strong>do</strong> SUS, transcritas no texto constitucional,tomaram distintas feições ao se transformarem em projetos operativos <strong>de</strong>sistemas locais específicos. É possível i<strong>de</strong>ntificar-se certo padrão <strong>do</strong>minante <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lotécno-assistencial implanta<strong>do</strong> na maioria <strong>do</strong>s municípios. Contu<strong>do</strong>, mesmo sen<strong>do</strong> hegemônico,este padrão não é único. Há importante heterogeneida<strong>de</strong> nos mo<strong>do</strong>s como estasdiretrizes <strong>do</strong> SUS vieram passan<strong>do</strong> à prática. Alguns municípios avançaram mais epromoveram mais mudanças <strong>do</strong> que outros. E, mesmo nestes avanços, houve<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s.O exame reflexivo <strong>de</strong>stas experiências indicam-nos algumas certezas, que po<strong>de</strong>ríamosjá tomar como lições; mas nos apontam também algumas incertezas, campos <strong>de</strong>possibilida<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>veriam quebrar a dureza <strong>do</strong>utrinária com que a saú<strong>de</strong> coletivatem brandi<strong>do</strong> uma série <strong>de</strong> <strong>do</strong>gmas.116 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


SAÚDE COLETIVA: DA ONIPOTÊNCIA DO DISCURSO A UMAQUASE IMPOTÊNCIA DAS PRÁTICASEvidência 1Se o discurso da saú<strong>de</strong> coletiva tresanda onipotência; sua prática - afora programasmuito específicos, como os <strong>de</strong> vacinação ou <strong>de</strong> controle da mortalida<strong>de</strong> infantil - beira aimpotência inocente, sem culpa, já que os motivos da inoperância estariam localiza<strong>do</strong>sem outros sujeitos, ou em outras <strong>de</strong>terminações, sempre distantes da própria saú<strong>de</strong>pública.A prática - em Icapuí, Quixadá e Fortaleza, no Ceará; ou em Olinda em Pernambuco;ou em várias cida<strong>de</strong>s das regiões sul ou su<strong>de</strong>ste - <strong>de</strong>monstrou a eficácia <strong>de</strong> algunsprogramas com enfoque pontual. Demonstrou-se que a mortalida<strong>de</strong> infantil ligada a<strong>de</strong>snutrição, ou a diarréias, ou a enfermida<strong>de</strong>s previníveis por vacinação, é controlável.Graças à articulação <strong>de</strong> agentes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, intervenção na comunida<strong>de</strong>, atenção levadaaté os <strong>do</strong>micílios e pouquíssimos médicos - alguns <strong>de</strong> família, outros pediatras, ouepi<strong>de</strong>miologistas, ou sanitaristas - e vonta<strong>de</strong> política, e milagre: em <strong>do</strong>is ou três anos, eos índices atingem padrões mais condizentes com nossa noção <strong>de</strong> civilização. Quan<strong>do</strong> aestas iniciativas emergenciais se somam outras mais estruturais - habitação e saneamentobásico -, aí, então, os resulta<strong>do</strong>s são maravilhosos. Vários municípios conseguiram isto.Problema: ten<strong>do</strong> em vista o inegável sucesso <strong>de</strong>stes programas, vários intelectuaistêm transforma<strong>do</strong> estas linhas <strong>de</strong> trabalho no MODELO IDEAL. Não seria apenasuma alternativa para enfrentar <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas estaríamos dianteDO MODELO. Ações que <strong>de</strong>ram certo no enfrentamento <strong>de</strong> alguns eventos produtores<strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s são transformadas em receitas para to<strong>do</strong>s os processos.No entanto, o resulta<strong>do</strong> não tem si<strong>do</strong> o mesmo quan<strong>do</strong> os danos à saú<strong>de</strong> são<strong>de</strong>correntes da violência, por exemplo. Este estilo <strong>de</strong> programa po<strong>de</strong> pouco contra assassinatosem massa <strong>de</strong> jovens nas periferias das gran<strong>de</strong>s cida<strong>de</strong>s. Tampouco têm interferi<strong>do</strong>para valer na gravi<strong>de</strong>z precoce in<strong>de</strong>sejada, ou no ciclo da AIDS, ou em aci<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>trabalho, ou na ampliação da qualida<strong>de</strong> e da quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos, ou emproblemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental. São fatores <strong>de</strong> risco e enfermida<strong>de</strong>s que exigiriam mo<strong>de</strong>losmais complexos, intervenções mais crônicas e mais amplas.O pensamento pre<strong>do</strong>minante na saú<strong>de</strong> coletiva, segun<strong>do</strong> minha percepção, temsimplifica<strong>do</strong> o processo saú<strong>de</strong>-enfermida<strong>de</strong>-atenção. E. Menen<strong>de</strong>z, perceben<strong>do</strong> estaslimitações, sugeriu agregar a dupla polarida<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença com que usualmente temostrabalha<strong>do</strong>, um terceiro fator - os mecanismos <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong> -, sugerin<strong>do</strong> com isso que nãonos esquecêssemos, ao analisar estes processos, da interferência permanente e <strong>de</strong>liberadada socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> nesta dinâmica (Menen<strong>de</strong>z, 1985).Mas além <strong>de</strong>ste aspecto, praticaríamos ainda outras simplificações. Primeiro, aoa<strong>do</strong>tarmos conceito positivista e mecanicista <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação para os processos saú<strong>de</strong><strong>do</strong>ença-intervenção.Mesmo quan<strong>do</strong> a saú<strong>de</strong> coletiva atribui ao social a <strong>de</strong>terminaçãobásica, ela o faz cristalizan<strong>do</strong> esta linha <strong>de</strong> condicionamento. Ou seja, no fun<strong>do</strong>, faz-sea suposição <strong>de</strong> que somente por meio da eliminação <strong>de</strong> um fator que originou um perfil<strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>, se conseguiria modificar este perfil. O que não é verda<strong>de</strong>iro, felizmente.Os resulta<strong>do</strong>s sanitários acima indica<strong>do</strong>s confirmam esta crítica. Não houve mudançaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>117


significativa <strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> renda naqueles municípios e, mesmo assim,houve modificação da mortalida<strong>de</strong> infantil e da incidência <strong>de</strong> pólio ou <strong>de</strong> sarampo.Parece reacionário admitir isto. Creio que mais conserva<strong>do</strong>ra ainda é a postura que serecusa a reconhecer os clamores <strong>do</strong> empírico. Ela torna-se empecilho para toda e qualquerreelaboração teórica, transforman<strong>do</strong> ferramentas <strong>de</strong> intervenção em <strong>do</strong>gmas imutáveise, portanto, inúteis na maioria das situações. Não reconhecer e não analisar evidênciasmata o espírito crítico e a criativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inventar novas formas <strong>de</strong> intervenção.Ou seja, atuar nos <strong>de</strong>terminantes <strong>do</strong>s processos saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença é quase sempretarefa impossível. Mesmo porque estes <strong>de</strong>terminantes são múltiplos, embora não <strong>de</strong>peso equivalente. Não estou aqui concordan<strong>do</strong> com a teoria da multicausalida<strong>de</strong>. Apenaschamo atenção para um fato sociológico: há re<strong>de</strong>s e fluxos <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação. A violência,por exemplo, seria <strong>de</strong>terminada por quais fatores? Trabalhar com a noção <strong>de</strong> causalida<strong>de</strong>sdiretas não nos ajudaria muito. A <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social explicaria países violentos. Noentanto, haveria que se consi<strong>de</strong>rar também a cultura <strong>do</strong> machismo, ou o individualismoexacerba<strong>do</strong> que transforma to<strong>do</strong> ser humano em objeto, quan<strong>do</strong> o outro não valerianada e, portanto, qualquer ato violento seria banaliza<strong>do</strong>. Estas linhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminaçãose somam, se potencializam e seria inútil - como discutir o sexo <strong>do</strong>s anjos - brigar porqual <strong>de</strong>stes fatores seria o <strong>de</strong>terminante principal. Depois, no momento da intervenção,on<strong>de</strong> atuar? Em qualquer <strong>do</strong>s pontos da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação, em qualquer que fossepossível e necessário. Ao mesmo tempo, com múltiplos instrumentos.O controle da poliomielite, outro analisa<strong>do</strong>r. O fato da saú<strong>de</strong> pública brasileirahaver atua<strong>do</strong> numa linha secundária da ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação da incidência <strong>de</strong> pólio,a imunida<strong>de</strong> humana, diminuiria o valor <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s que alcançamos? Na Europa, amelhoria das condições <strong>de</strong> salubrida<strong>de</strong> agiu antes que campanhas massivas <strong>de</strong> vacinação,e daí? Aqui, vacinamos compulsivamente enquanto continuávamos impotentes paramelhorar as condições <strong>de</strong> vida. E será que universalizar a vacinação não teria reflexossobre as noções <strong>de</strong> cidadania, ainda que um pouquinho? Ao introduzirmos um programa<strong>de</strong> reidratação oral - evitar mortes imediatas por diarréias - não se po<strong>de</strong>ria mobilizarpara a cidadania, junto, ao mesmo tempo, enquanto, especificamente, com recursoscaracterísticos da saú<strong>de</strong> pública mais tradicional, iríamos salvan<strong>do</strong> vidas?A medicina social, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua origem, insinuou a utopia <strong>de</strong> que a socieda<strong>de</strong> justaseria uma socieda<strong>de</strong> sem <strong>do</strong>enças. Assim, aconteceu com o pensamento sanitário darevolução francesa e da medicina social alemã ( Rosen, 1994). Depois, a epi<strong>de</strong>miologiasocial e a saú<strong>de</strong> coletiva revitalizaram esta tradição crítica mas simplifica<strong>do</strong>ra darealida<strong>de</strong>. Não que as reformas sociais e o bom governo não produzam saú<strong>de</strong>. Produzem,e há uma série <strong>de</strong> questões que somente se equacionariam com o <strong>de</strong>senvolvimento socialjusto e harmônico. E a saú<strong>de</strong> pública tem obrigação <strong>de</strong> revelar estas evidências. Oproblema estaria no concomitante borramento da importância específica <strong>do</strong>s serviços<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> na produção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. E, em conseqüência, na superestimação <strong>de</strong> certas receitas- reformas sociais não eliminariam todas as <strong>do</strong>enças, apenas mudariam o perfil prevalente<strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s -; e, por para<strong>do</strong>xal que pareça, na subestimação da potência <strong>de</strong> algunstipos <strong>de</strong> intervenção. Refiro-me à prática clínica em geral, ou mesmo a alguns projetos<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública que não interfeririam diretamente com os <strong>de</strong>terminantes principais<strong>do</strong> processo saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença.Nos anos sessenta, setores mais puristas da saú<strong>de</strong> pública pregavam a revolução.Somente o povo organiza<strong>do</strong> autonomamente e enfrentan<strong>do</strong> o capitalismo produziriasaú<strong>de</strong>. Muito bem. Isto aju<strong>do</strong>u. Daí se <strong>de</strong>senvolveram as propostas <strong>do</strong>s movimentos118 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


sociais que <strong>luta</strong>ram por saú<strong>de</strong> e alcançaram a lei <strong>do</strong>s Conselhos. Agora, a revoluçãosaiu <strong>de</strong> moda. Mas a saú<strong>de</strong> coletiva, continua predican<strong>do</strong> que a produção da saú<strong>de</strong><strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria <strong>do</strong> bom governo. Certo, certíssimo. Daí surgiram as propostas <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>ssaudáveis, valorizan<strong>do</strong>-se a inevitável ação intersetorial. Muito bem. Acontece que osprojetos elabora<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong>sta concepção esclarecem o papel <strong>do</strong> governo e dasocieda<strong>de</strong> na produção <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas explicitam pouco sobre o papel específico <strong>do</strong>sserviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Além <strong>de</strong> superegos sociais, o que mais caberia aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>?Analisar a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações complexas <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença, cobran<strong>do</strong>ação e reformas. Muito bem. Mas e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, o que fariam? Engenharia <strong>de</strong>tráfego, educação pública básica, urbanismo, distribuição <strong>de</strong> renda, reforma agrária,abastecimento?Não vai aqui <strong>de</strong>mérito a esta lógica. Vai cobrança. Falta ainda precisarmos o quefaremos com nossos instrumentos específicos: ferramentas da saú<strong>de</strong> pública e daassistência individual. Como potencializá-las? Em que medida investirmosespecificamente nelas? Como reorganizá-las? Quais nossos limites <strong>de</strong> competência e <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong>?Onipotência da análise, pequena potência da prática. No fun<strong>do</strong>, ven<strong>de</strong>mos aidéia <strong>de</strong> que a promoção da saú<strong>de</strong> e a prevenção esgotariam to<strong>do</strong> o cardápio <strong>de</strong> ofertas<strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Ou seja, promoção e prevenção seriam O MODELO. “O”, artigo<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>, transforma<strong>do</strong> no “OM” místico 1 , na idéia totalitária <strong>de</strong> um holismo que produzbelas <strong>de</strong>clarações em um ponta e impotência na outra. Tu<strong>do</strong> estaria <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pelosocial, e o social somente po<strong>de</strong>ria ser muda<strong>do</strong> com ações “OM”. Projetos <strong>de</strong> macropolítica.Equação complicada <strong>de</strong> se lidar, porque contém verda<strong>de</strong> e mentira <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la,ao mesmo tempo.Um <strong>do</strong>s sintomas <strong>de</strong> onipotência é a arrogância com que se suce<strong>de</strong>m assertivastotaliza<strong>do</strong>ras. A saú<strong>de</strong> coletiva, no fun<strong>do</strong>, também se imagina auto-suficiente para <strong>de</strong>finirnecessida<strong>de</strong>s. As necessida<strong>de</strong>s epi<strong>de</strong>miologicamente <strong>de</strong>finidas seriam mais necessárias<strong>do</strong> que as outras, em princípio. Se, por um la<strong>do</strong>, jamais po<strong>de</strong>ríamos renunciar ao olharcrítico que a epi<strong>de</strong>miologia nos fornece; por outro, seria bom nos recordarmos da noção<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Canguilhem. Para ele, saú<strong>de</strong> seria a maior ou menor capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cadaum gastar sua própria vida (Canguilhem, 1982). Os projetos existenciais imbutem riscos,alguns, eleitos pelas pessoas, outros, impostos pelas circunstâncias. Corre<strong>do</strong>res daFórmula Um trocam segurança pela glória e riqueza. Motoristas que trafegam pelasestradas brasileiras arriscam-se para sobreviver.Freqüentemente, a saú<strong>de</strong> coletiva tem produzi<strong>do</strong> um discurso moralista sobreestilos <strong>de</strong> vida, tentan<strong>do</strong> apresentar um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> andar a vida como sen<strong>do</strong>o mais racional, o mais salubre. A saú<strong>de</strong> pública oficial, em muitas situações, beira ofundamentalismo mais torpe. Estaria coloca<strong>do</strong> para a saú<strong>de</strong> coletiva o <strong>de</strong>safio <strong>de</strong>combinar seu discurso sobre o saudável com as <strong>de</strong>clarações em que os váriosagrupamentos da socieda<strong>de</strong> civil reelaborariam estas <strong>de</strong>finições. O velho dilema, daparticipação, mas também o <strong>de</strong> apren<strong>de</strong>rmos a escutar outras formas da socieda<strong>de</strong> seexpressar. Seria tempo <strong>de</strong> reconhecermos a complexida<strong>de</strong> das mensagens inscritas na<strong>de</strong>manda. Há pilhas e pilhas <strong>de</strong> textos comprovan<strong>do</strong> o movimento medicalizante econsumista <strong>de</strong>ste fluxo “espontâneo”. Há montes <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s atestan<strong>do</strong> a indução <strong>de</strong>steespontâneo pelo aparelho médico-hospitalar-industrial. Agora, haveria que se reconhecer1. “OM” - conceito budista que simbolizaria o to<strong>do</strong>.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>119


que este movimento por atenção também traria, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>le, sofrimento, <strong>do</strong>r, me<strong>do</strong> <strong>de</strong>morrer, riscos reais <strong>de</strong> óbito, dúvidas, etc. Como dialogar com a <strong>de</strong>manda senão falan<strong>do</strong>com ela. Como inventar um mo<strong>de</strong>lo que atuasse tanto sobre necessida<strong>de</strong>sepi<strong>de</strong>miologicamente <strong>de</strong>finidas, quanto sobre a <strong>de</strong>manda por atenção?É verda<strong>de</strong>, que ao escolher tal percurso a saú<strong>de</strong> coletiva preocupava-se em secontrapor ao saber médico tradicional. Saber limita<strong>do</strong>, como já tanto <strong>de</strong>monstramos.Contu<strong>do</strong>, penso que nossa crítica per<strong>de</strong> força quan<strong>do</strong> se <strong>de</strong>ixa dissolver no social. Além<strong>de</strong>stas elaborações mais gerais - histórico-estruturais - haveria que se reconstruir opensamento médico, passar por ele para ultrapassá-lo, para enriquecê-lo. Ignorá-lo ounegá-lo somente tem empobreci<strong>do</strong> nosso discurso.O saber e a prática sanitária não po<strong>de</strong>rão nunca escapar da centralida<strong>de</strong> que a<strong>do</strong>ença ocupa em nosso campo. Preten<strong>de</strong>r tratar somente da saú<strong>de</strong>, afirmar que centros<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> não <strong>de</strong>veriam se ocupar da <strong>do</strong>ença mas da saú<strong>de</strong>, são reações <strong>de</strong>lirantes <strong>de</strong>auto-afirmação perante o discurso médico hegemônico. Declarações que mais nos infantilizam<strong>do</strong> que nos permitiriam superar as limitações da prática clínica mercantilizada.A especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nosso campo, tarefa esperada e cobrada pela socieda<strong>de</strong>, é a <strong>de</strong> pensara enfermida<strong>de</strong>, o risco <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ecer, para daí inventarmos mecanismos <strong>de</strong> produzir saú<strong>de</strong>.Espera-se que os profissionais e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>scubram meios <strong>de</strong> ampliar nossocontrole sobre o corpo, sobre a quantida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> da vida. Nosso objetivo é asaú<strong>de</strong>, certo. Mas nosso objeto <strong>de</strong> investigação e <strong>de</strong> trabalho é a enfermida<strong>de</strong> ou o risco<strong>de</strong> enfermar-se. Parece heresia, mas não ó é. Afirmo que o objeto da saú<strong>de</strong> coletiva e daclínica são os processos saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença-atenção. Nosso objetivo, produzir saú<strong>de</strong>. Senãoconfundiríamos nosso papel com o das instituições políticas, ou <strong>do</strong>s movimentos sociais,ou <strong>de</strong> outras agências governamentais.Evidência 2Dilacerada entre a onipotência explicativa e a dificulda<strong>de</strong> em operacionalizarprojetos, a saú<strong>de</strong> coletiva é cada vez mais, principalmente, sistema <strong>de</strong> informações oulinha auxiliar <strong>de</strong> assessoria <strong>de</strong> outras instâncias que executariam ações produtoras <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>.Observei, em vários municípios, a instalação <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnos Centros <strong>de</strong> Informação,com mapeamento <strong>de</strong> óbitos, <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> risco por áreas homogênease até por <strong>do</strong>micílio, sem, contu<strong>do</strong>, haver, como contrapartida, um aumento dacapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervenção <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Culto à vigilância, ao esquadrinhamentodas cida<strong>de</strong>s; sem criativida<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>nte no tocante às ações práticas.Sem dúvida, aqui caberia uma longa digressão sobre po<strong>de</strong>r. Muitas ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>pública confrontam-se com interesses particulares. Polêmica sobre distribuição <strong>de</strong> verbas,o quê tem si<strong>do</strong>, <strong>de</strong> fato, prioriza<strong>do</strong>? Dificulda<strong>de</strong> para interferir na dinâmica <strong>de</strong>organizações privadas - o merca<strong>do</strong> ser soberano - e, em conseqüência, não tem si<strong>do</strong> fácilfiscalizar fábricas para proteger a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res, ou controlar a indústria <strong>de</strong>alimentos ou <strong>de</strong> medicamentos, etc e etc. Contu<strong>do</strong>, questiono, aqui, uma certa <strong>de</strong>sistênciainterna aos próprios agentes da saú<strong>de</strong> coletiva. I<strong>de</strong>ntifico sinais <strong>de</strong> autocastraçãoquan<strong>do</strong> inventamos mais mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> conhecer indica<strong>do</strong>res <strong>do</strong> que <strong>de</strong> intervir na realida<strong>de</strong>.Não que as intervenções sejam simples, ao contrário. I<strong>de</strong>ntifico em nossas práticas maisrespeito à proprieda<strong>de</strong> privada <strong>do</strong> que a vida <strong>do</strong>s cidadãos. Para a saú<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>fesa davida <strong>de</strong>veria aparecer em primeiro lugar; <strong>de</strong>pois, haveria o jogo social, a disputa. Percebo120 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


certo grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>sistência, à priori. Os <strong>de</strong>sastres da hemodiálise em Caruaru ou dasClínicas Geriátricas no Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong>monstram a constatação. Haveria, apesar dacultura neoliberal hegemônica, espaço para avançarmos na <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res e<strong>do</strong>s cidadãos em geral. Tanto que sanitaristas acabam processa<strong>do</strong>s por omissão, omissãoimposta pelo sistema, è verda<strong>de</strong>. Entretanto, a saú<strong>de</strong> pública não tem <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong>vonta<strong>de</strong> política <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> outra forma. Instituição conformada, <strong>do</strong>mesticada.Ou seja, po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>sempenhar o papel <strong>de</strong> vanguarda da <strong>de</strong>fesa da vida.Vanguarda, não. Este termo não está bem coloca<strong>do</strong>. À saú<strong>de</strong> coletiva caberia o papel <strong>de</strong>ator social que mais radicalmente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>sse a vida, é isto. Para isso, inventar mo<strong>do</strong>sdistintos <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r. Na realida<strong>de</strong>, sequer temos enfrenta<strong>do</strong> estas batalhas, uma vezque já nos <strong>de</strong>rrotamos por antecipação ao não ousarmos enfrentar lógicas privatistasem <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> interesse coletivo. Cabería-nos a invenção <strong>de</strong> outros mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> açãosanitária.Problema: há cada vez um grau maior <strong>de</strong> especialização <strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong>informação. Em geral, estão sen<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneira estanque, separa<strong>do</strong>s dasinstâncias responsáveis pelo planejamento e gestão das equipes encarregadas daintervenção concreta na realida<strong>de</strong>. Separação entre coletores e analisa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> informação<strong>de</strong> quem possuiria autorida<strong>de</strong> e capacida<strong>de</strong> para intervir. Distanciamento entreinformação e instâncias responsáveis pelo planejamento e administração <strong>do</strong>s serviços.Fratura entre vigilância epi<strong>de</strong>miológica e vigilância sanitária. A saú<strong>de</strong> pública confinadaà epi<strong>de</strong>miologia <strong>de</strong>scritiva.Nada contra conhecer realida<strong>de</strong>s epi<strong>de</strong>miológicas, ao contrário. Tratar-se-ia <strong>de</strong>inventarmos mecanismos <strong>de</strong> aproximação <strong>de</strong>stes pólos dilacera<strong>do</strong>s. Por que, porexemplo, não ampliar a responsabilida<strong>de</strong> e o papel <strong>de</strong>stes Centros <strong>de</strong> InformaçãoEpi<strong>de</strong>miológica, transforman<strong>do</strong>-os em Centros <strong>de</strong> Controle <strong>de</strong> Enfermida<strong>de</strong>s?Inteligência acoplada à responsabilida<strong>de</strong> interventora.Superar a impotência da suposta onisciência. Vi, com <strong>do</strong>is imensos olhos arregala<strong>do</strong>s,mais <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> geoprocessa<strong>do</strong>res acompanham, com minúcias,epi<strong>de</strong>mias <strong>de</strong> <strong>de</strong>ngue - um pontinho para cada novo caso. Surtos que o SUS não conseguecontrolar e que a inteligência sanitária julga impossível erradicar.Consi<strong>de</strong>ro necessário reforçarmos as instâncias responsáveis pela saú<strong>de</strong> coletiva.Trabalhar com a diretriz segun<strong>do</strong> a qual cada região, ou município, ou distrito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><strong>de</strong>veria contar com pelo menos uma equipe especializada em saú<strong>de</strong> pública. Órgão quecoletasse informações e, ao mesmo tempo, coor<strong>de</strong>nasse todas as ações <strong>de</strong> promoção eprevenção. Equipes que tanto agiriam diretamente sobre o território, <strong>de</strong> forma complementar,quanto também articulariam as ações <strong>de</strong> outros agentes, fossem eles <strong>de</strong> outrossetores ou <strong>do</strong> próprio sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>: médicos <strong>de</strong> família, equipes da re<strong>de</strong> básica, etc.Com a <strong>de</strong>scentralização das práticas sanitárias tornou-se urgente a eleição <strong>de</strong>centros que coor<strong>de</strong>nem e complementem a ação <strong>do</strong>s níveis <strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>s. Equipes<strong>de</strong> sanitaristas <strong>de</strong> Secretarias estaduais que analisassem informações da região, propusessempriorida<strong>de</strong>s, programas, cronogramas articula<strong>do</strong>s <strong>de</strong> intervenção e que atéatuassem diretamente em campo auxilian<strong>do</strong> os municípios. Por outro la<strong>do</strong>, equipes <strong>de</strong>sanitaristas em cada município que <strong>de</strong>sempenhassem as mesmas funções, coor<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>o trabalho <strong>do</strong>s profissionais <strong>de</strong> nível local.Estou sugerin<strong>do</strong>, portanto, consi<strong>de</strong>rar-se a saú<strong>de</strong> pública tanto uma especialida<strong>de</strong>,quanto um corpo <strong>de</strong> saberes, básico, para todas as profissões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Ou seja, açõesSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>121


<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> coletiva seriam atribuição tanto da re<strong>de</strong> básica, quanto <strong>de</strong> Núcleos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Coletiva, centros integra<strong>do</strong>res da análise das informações com a operacionalização <strong>de</strong>programas consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s prioritários segun<strong>do</strong> uma perspectiva coletiva <strong>de</strong> atuação.Evidência 3A compulsão pela integralida<strong>de</strong> da atenção, muitas vezes, tem impedi<strong>do</strong> açõesparciais que po<strong>de</strong>riam resolver os problemas em questão.A integralida<strong>de</strong> seria assegurada pelo sistema como um to<strong>do</strong>, cada parte po<strong>de</strong>ria,em tese, exercer seu papel <strong>de</strong> parte, sem culpa.Colocações singelas, mas complicadas <strong>de</strong> serem praticadas. Sem a<strong>de</strong>rir àspropostas <strong>de</strong> “focalização” das políticas sociais <strong>de</strong> recorte neoliberal - reduzir a cobertura<strong>do</strong>s programas, aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> apenas aos extremamente carentes -, sou tenta<strong>do</strong> aadmitir que a saú<strong>de</strong> pública, enquanto especialida<strong>de</strong>, somente conseguiria <strong>de</strong>slancharprojetos eficazes se, antes, houvesse <strong>de</strong>finição muito precisa <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s. Ou seja, osinstrumentos da saú<strong>de</strong> coletiva têm <strong>de</strong>stinação mais ou menos precisa. Não há comofugir a isto. Estes Núcleos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Coletiva <strong>de</strong>veriam, sempre, coor<strong>de</strong>nar a negociação<strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atenção. É impossível vigiar tu<strong>do</strong>, é impossível prevenir tu<strong>do</strong>. Ações<strong>de</strong> promoção são mais inespecíficas, produzem efeitos em múltiplos processos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><strong>do</strong>ença.Mas fora daí, precisamos pensar mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> intervenção para cada problema,ou, às vezes, para cada grupo homogêneo <strong>de</strong> problemas. Dengue: necessitaríamos <strong>de</strong>um programa nacional <strong>de</strong> combate ao <strong>de</strong>ngue. Com execução e acréscimoscomplementares <strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>s, mas o básico, este, haveria que articulá-lo o Ministérioda Saú<strong>de</strong>, as Secretarias <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s ou <strong>de</strong> municípios, e ainda as equipes <strong>de</strong> distrito. Omesmo, po<strong>de</strong>ríamos dizer da AIDS, <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças crônicas ou epidêmicas.Dentro <strong>de</strong>sta lógica, não haveria, em princípio, um mo<strong>de</strong>lo melhor <strong>do</strong> que outro.Nem haveria porque se <strong>de</strong>scartar, à priori, qualquer alternativa <strong>de</strong> intervenção. Porexemplo, campanhas sanitárias. Em algumas circunstâncias po<strong>de</strong>riam ser eficazes eracionais. Tomemos o exemplo <strong>do</strong> cólera no Brasil. Começou pelo Amazonas. O quefizemos? Implementamos um complexo conjunto <strong>de</strong> medidas em to<strong>do</strong> o país. Contu<strong>do</strong>,e se tivéssemos monta<strong>do</strong> uma campanha <strong>de</strong> cerco no esta<strong>do</strong> por on<strong>de</strong> se introduziu aepi<strong>de</strong>mia no país? Cair matan<strong>do</strong> sobre o vibrião. E vigiar, nada mais <strong>do</strong> que vigiar o quepo<strong>de</strong>ríamos ter segura<strong>do</strong> na região norte.Por outro la<strong>do</strong>, haveria que se reconhecer a eficácia <strong>de</strong> alguns esquemas <strong>de</strong>intervenção hetero<strong>do</strong>xos. A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santos enfrentou os temas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental e daAIDS com relativo sucesso. Examinan<strong>do</strong> a experiência <strong>de</strong>les constatamos que forammonta<strong>do</strong>s serviços específicos, articula<strong>do</strong>s à re<strong>de</strong>, mas com gran<strong>de</strong> grau <strong>de</strong> autonomia.Além <strong>do</strong> mais, criaram serviços síntese, que misturaram, <strong>de</strong>liberadamente, a rigi<strong>de</strong>ztradicional da hierarquização assistencial. Os Núcleos <strong>de</strong> Apoio Psicossocial fazematendimento individual ou em grupos, atendimento <strong>de</strong> urgência, internação, reabilitação,etc. Equipes especializadas em DST/AIDS cuidam da <strong>do</strong>ença em suas distintas fases:previnem, tratam, cuidam da integração social e profissional <strong>do</strong>s pacientes e ainda zelampelo envolvimento <strong>do</strong> restante <strong>do</strong> sistema: centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, hospitais, etc.Estarmos abertos à criação <strong>de</strong> soluções singulares, sem preconceitos, mas tambémsem <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar o esta<strong>do</strong> da arte. Experiências anteriores, saberes acumula<strong>do</strong>s eas limitações <strong>do</strong> contexto institucional e político. Fazer saú<strong>de</strong>, é a regra básica. O resto,estaria aberto à análise e ao exame <strong>de</strong> alternativas. Sempre.122 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Evidência 4Exigimos muito da atenção primária, prometemos muito como resulta<strong>do</strong> da ação<strong>de</strong> centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> equipes multiprofissionais inseridas no primeiro nível <strong>de</strong>atendimento. No entanto, a re<strong>de</strong> básica nem se transformou em porta <strong>de</strong> entrada <strong>do</strong>SUS e nem logrou fazer toda a saú<strong>de</strong> coletiva que insinuávamos. Depois <strong>de</strong> vinte anosinvestin<strong>do</strong> na re<strong>de</strong> básica, agora, há como que uma <strong>de</strong>sistência oficial <strong>de</strong> fazê-la funcionarpara garantir atenção integral. Reconhecimento da impotência <strong>de</strong> promessas onipotentes.Como fuga para frente, sem exame franco <strong>do</strong> relativo insucesso, surge nova receita,grandiloqüente: médicos <strong>de</strong> família e agentes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> supririam todas as falhas daatenção primária à saú<strong>de</strong>.A proposta da saú<strong>de</strong> coletiva para a re<strong>de</strong> básica tem si<strong>do</strong> também muito “OM”,totaliza<strong>do</strong>ra. Caberia-lhe simplesmente funcionar como porta <strong>de</strong> entrada - resolven<strong>do</strong>90% da <strong>de</strong>manda clínica - e, ao mesmo tempo, executar a maioria das ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>pública. Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, vigilância epi<strong>de</strong>miológica, visitas <strong>do</strong>miciliares,intervenção sobre a comunida<strong>de</strong>, prevenção <strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mias e en<strong>de</strong>mias. Sem dúvida,tratou-se <strong>de</strong> uma exorbitância. Super-trabalha<strong>do</strong>res primários. E a coisa não temfunciona<strong>do</strong>.Como já sugeri, enten<strong>do</strong> que as responsabilida<strong>de</strong>s pela saú<strong>de</strong> pública <strong>de</strong>veriamser divididas entre a re<strong>de</strong> básica e núcleos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> coletiva em cada distrito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Ou seja, mesmo quan<strong>do</strong> as equipes locais interviessem diretamente, <strong>de</strong>veriam serapoiadas por grupos <strong>de</strong> sanitaristas. E mais, algumas medidas <strong>de</strong>veriam estar à cargo<strong>de</strong>stes sanitaristas: vigilância em saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, por exemplo; ou coor<strong>de</strong>nação<strong>de</strong> campanhas para controle <strong>do</strong> <strong>de</strong>ngue, ou investigação <strong>de</strong> um agravo súbito einespera<strong>do</strong>, etc.Quanto à porta <strong>de</strong> entrada... bem, assegurar acesso à toda a <strong>de</strong>manda é um mecanismoindispensável para marcar um sistema como integral. E aí estamos falhan<strong>do</strong>. Falhamosporque não se conseguiu responsabilizar, <strong>de</strong> fato, aos médicos pela atenção clínica<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> no nível básico. Quan<strong>do</strong> muito, alguns realizam pronto-atendimento - asfamigeradas 4 consultas por hora. Na verda<strong>de</strong>, tratar-se-ia <strong>de</strong> elaborar um novo contrato<strong>de</strong> trabalho entre equipes multiprofissionais da re<strong>de</strong> básica e usuários. O mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>trabalho seria semelhante ao proposto para os médicos <strong>de</strong> família. Aliás esta é gran<strong>de</strong>incógnita que <strong>de</strong>veria ser esclarecida: por que razão nossas autorida<strong>de</strong>s propõem mecanismos<strong>de</strong> atenção integral e resolutiva, com responsabilização <strong>do</strong>s médicos e auxiliarespelo cuida<strong>do</strong> integral <strong>de</strong> um certo número <strong>de</strong> pacientes, apenas para o programa <strong>de</strong>médicos da família? Por que não organizar a porta <strong>de</strong> entrada, toda re<strong>de</strong> básica, <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong>stes princípios? Por que situar o médico <strong>de</strong> família fora e distante <strong>do</strong>s centros ou postos<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>? Receio <strong>de</strong> quebrar o compromisso sujo sela<strong>do</strong> entre médicos e governantes?Enfim, sem a criação <strong>de</strong> uma porta <strong>de</strong> entrada que assegurasse amplo acesso eacolhida aos problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> - ou seja, universalida<strong>de</strong> -; intervenção personalizadacomo projetos terapêuticos singulares - eqüida<strong>de</strong> -; e alta resolutivida<strong>de</strong>, nunca teremoso SUS socialmente legitima<strong>do</strong>. Não custa caro montar um sistema com estascaracterísticas. Custaria transformações culturais, organizacionais e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r. Porexemplo, <strong>de</strong>legar às equipes locais, ao médicos <strong>de</strong> família, ou aos clínicos, pediatras, ocontrole sobre as internações e utilização <strong>de</strong> recursos especializa<strong>do</strong>s, públicos oucontrata<strong>do</strong>s. Há saídas, mas há também um imobilismo assusta<strong>do</strong>r em relação a medidasradicais <strong>de</strong> transformação <strong>do</strong>s atuais padrões <strong>de</strong> funcionamento da atenção básica.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>123


APENAS MAIS UMA EVIDÊNCIA DELIRANTE: Por último, <strong>de</strong>lírios onipotentespor <strong>de</strong>lírios onipotentes, melhor <strong>de</strong>lírios mais passíveis <strong>de</strong> sublimação. Mais próximosda realida<strong>de</strong>, talvez? Falo da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> radicalizarmos as noções <strong>de</strong> autocuida<strong>do</strong>e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> maior grau <strong>de</strong> autonomia para pacientes, famílias e comunida<strong>de</strong>s.Quem sabe incluin<strong>do</strong> estas diretrizes em nosso conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Quanto maior acapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autocuida<strong>do</strong>, quanto maiores os coeficientes <strong>de</strong> autonomia mais saudáveisas pessoas. Ou não? Talvez, sim. Neste caso, por exemplo, o SUS não po<strong>de</strong>ria resolver acrise nacional <strong>de</strong> empregos, mas po<strong>de</strong>ríamos investir em projetos que criassem espaço<strong>de</strong> trabalho para pacientes cronicamente vincula<strong>do</strong>s aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, como nocaso da saú<strong>de</strong> mental, ou <strong>de</strong> porta<strong>do</strong>res <strong>do</strong> HIV ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>scapacida<strong>de</strong>s físicas, ou <strong>de</strong>outras enfermida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> curso prolonga<strong>do</strong>. Esta seria uma via tanto para ampliação <strong>de</strong>nossos horizontes terapêuticos, como para aumentar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negociação dasocieda<strong>de</strong> com o autoritarismo inerente a todas as práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.São análises, parciais. Mais sensações <strong>do</strong> que certezas duras. No entanto,mereceriam certa consi<strong>de</strong>ração. Serem <strong>de</strong>smontadas em função <strong>de</strong> outras <strong>de</strong>scobertas,em razão <strong>de</strong> experimentos que <strong>de</strong>sconheci. Somente não suporto nossas velhasreiterações. Afinal, boa parte <strong>de</strong>las já <strong>de</strong>sfrutam status <strong>de</strong> argumento <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>,inscritas que foram em diversos manuais <strong>de</strong> alta respeitabilida<strong>de</strong> científica. Sinalinequívoco <strong>de</strong> envelhecimento, vinte anos é tempo. Muito. Que venham novas vozes eoutros ouvi<strong>do</strong>s. Afinal, algumas <strong>de</strong> nossas falas per<strong>de</strong>ram a clareza e nossa escuta seensur<strong>de</strong>ceu. Nada incurável, exige-se apenas alguns saltos para fora <strong>do</strong>s circuitos <strong>de</strong>repetição onanista. Cuida<strong>do</strong>, contu<strong>do</strong>. Não vale <strong>de</strong>sligar-se da velha e avassala<strong>do</strong>raesperança <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> paz e justiça.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASCANGUILHEM, Georges - “O Normal e o Patológico”. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ed. Forense-Universitária,1982, segunda edição.GONSALVEZ, Ricar<strong>do</strong> Bruno M. - “Tecnologia e Organização Social das Práticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>”. SãoPaulo, Ed. Hucitec, 1994.MENENDEZ, Eduar<strong>do</strong> - “La Crisis y el Mo<strong>de</strong>lo Medico Hegemonico”. Cua<strong>de</strong>rnos Médico Sociales,Rosario/Ag., n.33, set/85, pag. 55 a 65.ROSEN, George - “Uma História da Saú<strong>de</strong> Pública”. São Paulo, Ed. Hucitec/ABRASCO, 1994.124 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O SUS e um <strong>do</strong>s seus Dilemas: Mudar a Gestão e aLógica <strong>do</strong> Processo <strong>de</strong> Trabalho em Saú<strong>de</strong> (umEnsaio sobre a Micropolítica <strong>do</strong> Trabalho Vivo)Emerson Elias Merhy *Para além da crise <strong>do</strong> atual padrão <strong>de</strong> relações entre o esta<strong>do</strong> e a socieda<strong>de</strong> noBrasil, que em si tem gera<strong>do</strong> uma enormida<strong>de</strong> <strong>de</strong> problemas no interior <strong>do</strong>s equipamentosinstitucionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, convivemos no dia a dia com uma gama muito ampla<strong>de</strong> outros problemas que alteram intensamente a capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> emcumprir com o seu papel <strong>de</strong> instrumentos à serviço da vida individual e coletiva.Ao la<strong>do</strong> da: falta <strong>de</strong> dinheiro; <strong>do</strong> uso político clientelista das políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>por parte das esferas fe<strong>de</strong>rais, estaduais e municipais; das disputas entre os diferentesministérios sociais por recursos financeiros; da intensa campanha neo-liberal para <strong>de</strong>smoralizarqualquer ação competente por parte <strong>do</strong> setor público; da ausência <strong>de</strong> umalegislação a<strong>de</strong>quada à importância das políticas sociais no interior <strong>do</strong>s governos e dafrágil estrutura tributária <strong>do</strong>s governos municipais, que convivem com uma gran<strong>de</strong>retração <strong>do</strong>s gastos fe<strong>de</strong>rais e estaduais no setor; convivemos com uma profunda crise<strong>de</strong> falta <strong>de</strong> eficácia e efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, públicos e priva<strong>do</strong>s.Inúmeros são os exemplos que mostram a <strong>de</strong>sumanização <strong>do</strong>s serviços em relaçãoa clientela; a falta <strong>de</strong> compromisso <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> com o sofrimento<strong>do</strong>s usuários; a baixa capacida<strong>de</strong> resolutiva das ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>; a intensa <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>no atendimento <strong>do</strong>s diferentes estratos econômico-sociais e o privilegiamento <strong>do</strong>scidadãos, que po<strong>de</strong>m pagar altos preços pelos serviços, no acesso ao melhor que se temno setor.Alia-se a isto o baixo impacto que as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> têm ti<strong>do</strong> nos principais problemasda população e a sua pouca contribuição para a melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vidadas pessoas, ocorren<strong>do</strong> em muitos casos o contrário, uma piora <strong>de</strong> alguns indica<strong>do</strong>res<strong>do</strong> padrão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> das populações, revela<strong>do</strong> no aumento da presença <strong>de</strong> <strong>do</strong>ençasevitáveis e erradicáveis. O que po<strong>de</strong> mostrar uma contribuição pouco efetiva das atuaisações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> na promoção e proteção <strong>do</strong>s indivíduos e da coletivida<strong>de</strong>, expressan<strong>do</strong>a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> impacto <strong>do</strong> atual <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo tecno-assistencial a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo sistema<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, brasileiro.Este quadro tem esta<strong>do</strong> presente cotidianamente na vida das instituições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,no Brasil, e tem se expressa<strong>do</strong> não só na total insegurança da clientela no tipo <strong>de</strong> atendimento<strong>do</strong> qual muitas vezes está sen<strong>do</strong> vítima, mas também na profunda crise <strong>de</strong>realização e satisfação, como cidadão e profissional, <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong>setor saú<strong>de</strong>.Entretanto, é interessante observar que, para<strong>do</strong>xalmente, a Constituição <strong>de</strong> 1988procura garantir a saú<strong>de</strong> como um direito <strong>do</strong> cidadão, como um bem <strong>de</strong> relevânciapública, mostran<strong>do</strong> que qualquer interesse <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m privatizante, na área da saú<strong>de</strong>,SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>125


<strong>de</strong>veria se pautar pelo respeito a estes princípios constitucionais, subordinan<strong>do</strong>-se aointeresse coletivo da cidadania, expressa no radical vínculo <strong>do</strong> conjunto das ações <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> com a DEFESA DA VIDA, INDIVIDUAL E COLETIVA.Assim, tem si<strong>do</strong> um <strong>de</strong>safio para o conjunto <strong>do</strong>s agentes sociais, mas em particularpara os trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e os usuários <strong>do</strong> sistema, a busca <strong>de</strong> uma compreensão<strong>de</strong>ste quadro global e o apontamento <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenções narealida<strong>de</strong> que possa superar um sentimento <strong>de</strong> intensa impotência, dada à gran<strong>de</strong> negritu<strong>de</strong><strong>do</strong> quadro <strong>de</strong>senha<strong>do</strong> e à pre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong>s interesses mesquinhos da maioria<strong>do</strong>s membros das elites econômica e política.Sabemos que se não alterarmos o mo<strong>do</strong> como os trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> se relacionamcom o seu principal objeto <strong>de</strong> trabalho - a vida e o sofrimento <strong>do</strong>s indivíduos eda coletivida<strong>de</strong>, representa<strong>do</strong> como <strong>do</strong>ença - não basta corrigirmos procedimentosorganizacionais e financeiros das instituições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Temos como <strong>de</strong>safios efetivos a busca <strong>de</strong> um outro mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar o trabalho emsaú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> construir a relação <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r com os usuários <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> atenção àsaú<strong>de</strong>, edifican<strong>do</strong> uma relação mais solidária entre os trabalha<strong>do</strong>res e os usuários e ospróprios trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> seu <strong>de</strong>sempenho técnico, e da construção <strong>de</strong>um trabalha<strong>do</strong>r coletivo na área da saú<strong>de</strong>.Para isto, <strong>de</strong>vemos procurar construir um outro tipo <strong>de</strong> vínculo entre os trabalha<strong>do</strong>res<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e os usuários, no interior <strong>do</strong> conjunto das instituições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, nãosó <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da participação conjunta nas <strong>luta</strong>s por melhores condições <strong>de</strong>assistência, mas principalmente na produção <strong>do</strong> compromisso cotidiano <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> diante <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong>. Os trabalha<strong>do</strong>res têm que se responsabilizar por uma boaparte da qualida<strong>de</strong> da assistência que ofertam, pois sen<strong>do</strong> o trabalho em saú<strong>de</strong> umtrabalho vivo em ato <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, po<strong>de</strong>m colocar todas as suas sabe<strong>do</strong>rias, como opçõestecnológicas <strong>de</strong> que dispõem para a produção <strong>de</strong> proce<strong>de</strong>res eficazes a serviço <strong>do</strong> usuárioe <strong>de</strong> seu problema. Assim, temos que primar pela “cidadanização” da assistência à saú<strong>de</strong>,construin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste jeito tanto a dignida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, quanto a <strong>do</strong> paciente.Como já dissemos em outro texto 1 , obviamente não se está sugerin<strong>do</strong> que ninguémse torne um “piegas” e que ninguém <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> reivindicar os seus direitos comotrabalha<strong>do</strong>r, mas sim que, nós os trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, não nos recusemos a dispor<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que temos para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a vida, como possui<strong>do</strong>res <strong>do</strong> que melhor a tecnologia emsaú<strong>de</strong> nos fornece - que é o nosso saber, o nosso conhecimento e o nosso trabalho em ato (oexercício <strong>do</strong> nosso autogoverno) - pois esta é uma das melhores formas <strong>de</strong> se somar nadireção apontada até aqui e construir uma mútua “cumplicida<strong>de</strong>” entre usuários e trabalha<strong>do</strong>res,na melhoria real da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida.Parece, a nós trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, que é no cotidiano <strong>do</strong>s nossos trabalhos eno processo coletivo <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong>s nossos serviços, afim <strong>de</strong> resolver os problemas quei<strong>de</strong>ntificamos no dia a dia, que iremos caminhar nesta direção, construin<strong>do</strong> um outroproce<strong>de</strong>r em saú<strong>de</strong> que se oriente pela constituição <strong>de</strong> um vínculo efetivo entre o usuárioe os trabalha<strong>do</strong>res <strong>do</strong> setor, na busca <strong>de</strong> uma resolutivida<strong>de</strong> que se oriente por ganhos<strong>de</strong> autonomia <strong>do</strong>s usuários perante os seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> andar na vida.1. Merhy, E.E. - Em busca da qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, in Cecílio, L.C.O. - Inventan<strong>do</strong> a Mudançana Saú<strong>de</strong>, Hucitec, São Paulo,1994.126 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Como pressuposto básico neste caminhar consi<strong>de</strong>ramos necessário que o conjunto<strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, pelo menos:– garantam o acesso <strong>do</strong>s usuários às ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ofertan<strong>do</strong> múltiplas opçõestecnológicas para enfrentar os seus distintos problemas;– acolham os usuários em to<strong>do</strong>s os momentos <strong>de</strong> relacionamento com os mesmos;– dêem a máxima resolutivida<strong>de</strong> às ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, procuran<strong>do</strong> impactar osquadros <strong>de</strong> morbi-mortalida<strong>de</strong> a partir da associação mais ampla possível <strong>de</strong>todas as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> individuais e coletivas, tecnologicamente disponíveis.Para conseguirmos construir uma competência nesta direção achamos que oconjunto <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> setor público tem que se pautar pela <strong>luta</strong> emtorno <strong>de</strong> um SUS efetivo, publicamente centra<strong>do</strong> no usuário e <strong>de</strong>mocratiza<strong>do</strong>, controla<strong>do</strong>por organismos públicos estatais e não estatais; e, para tanto, é necessário <strong>de</strong>svendar osmecanismos pelos quais os processos <strong>de</strong> gestão da política e <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> possamse tornar um tema público, tanto para o trabalha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, quanto para o usuário.Para andar nesta direção consi<strong>de</strong>ramos necessário <strong>de</strong>bruçarmo-nos sobre umaanálise mais apurada da micropolítica <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>se pensar as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção nos cotidianos institucionais na busca <strong>de</strong> umnovo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong>, como políticas 2 .Este tema tem si<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> pauta em vários <strong>de</strong>bates atuais no interior <strong>do</strong>s paísesda América Latina, dada a atual conjuntura <strong>de</strong> reformas institucionais que passam.Entretanto, os projetos neo-liberais têm ti<strong>do</strong> um certo pre<strong>do</strong>mínio no mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> colocarestas questões, o que nos estimula a inicialmente apontar a maneira <strong>de</strong> como temosinterpreta<strong>do</strong> este processo, e para o qual tomamos como ponto <strong>de</strong> análise um eventovivencia<strong>do</strong> em 1995, na Argentina, como apontamos abaixo.ALGUMAS IDÉIAS SOBRE O DEBATE EM TORNO DAS REFORMASINSTITUCIONAIS E A NECESSIDADE DA MUDANÇA DOS PROCESSOS DETRABALHOTanto os <strong>de</strong>bates em geral na área da saú<strong>de</strong>, quanto o conjunto <strong>de</strong> intervenções<strong>do</strong>s vários grupos sociais interessa<strong>do</strong>s no setor, têm <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudanças<strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalhar na área, em to<strong>do</strong>s os seus níveis <strong>de</strong> organização.Entretanto, tem si<strong>do</strong> comum que o maior parte <strong>de</strong>stas falas <strong>do</strong>bra-se principalmentesobre as dimensões mais macroestruturais <strong>de</strong>stes processos, e poucos têm si<strong>do</strong>aquelas que <strong>de</strong>stacam a intimida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas pretensões com a aquisição <strong>de</strong> uma certacapacida<strong>de</strong> teórica e operacional <strong>de</strong> ação sobre os aspectos mais micropolíticos <strong>de</strong>stesprocessos.2. Apesar <strong>de</strong> tratarmos a noção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong> como o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> se produzir saú<strong>de</strong>, através<strong>do</strong> conjunto das ações individuais e coletivas, em um dada territorialida<strong>de</strong> populacional e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> àexistência <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s serviços, para efeito <strong>de</strong>ste material estaremos centralmente nos referin<strong>do</strong> amo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção <strong>de</strong> serviços e não <strong>de</strong> sistemas, pois centralmente nos <strong>de</strong>bruçamos sobre o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>produzir ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e é neste âmbito micro o nosso olhar reflexivo irá se centrar prioritariamente.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>127


Sem querer negar a importância <strong>de</strong> qualquer situação mais macro no que toca aorganização das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, neste texto vamos tomar como privilegiada umareflexão sobre as questões micropolíticas <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, na tentativa<strong>de</strong> procurar novas pistas para tratar as intenções <strong>de</strong> transformações que permeiam osetor saú<strong>de</strong>.É neste senti<strong>do</strong> que inicialmente <strong>de</strong>stacamos uma percepção por nós sentida sobreesta relação entre aspirações <strong>de</strong> mudanças e as dimensões micro e macropolíticas nosetor saú<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um <strong>de</strong>bate sobre as atuais modificações <strong>do</strong> campo <strong>de</strong> políticaspúblicas na América Latina e a organização <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>.Em setembro <strong>de</strong> 95, ao participar <strong>de</strong> uma discussão em torno <strong>do</strong> tema “As Políticas<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> na América Latina e a Política <strong>do</strong> Ajuste”, na <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Ciências Sociais daU.B.A., Buenos Aires, tivemos a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sistematizar parte <strong>de</strong> uma reflexãosobre as possíveis relações que as políticas a<strong>do</strong>tadas pelos atuais governos da Argentinae <strong>do</strong> Brasil, <strong>de</strong>nominadas <strong>de</strong> Ajuste Econômico, po<strong>de</strong>riam ter com o processo atual <strong>de</strong>ré-or<strong>de</strong>namento das práticas gerenciais nas instituições (públicas) <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e o campo eos tipos <strong>de</strong> disputas ali instaladas, em termos das possibilida<strong>de</strong>s da (ré)invenção <strong>de</strong>novos mo<strong>de</strong>los tecno-assistenciais 3 das políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. E, ainda, pu<strong>de</strong>mos pensarsobre o mo<strong>do</strong> como esta peleja vem sen<strong>do</strong> travada pelas distintas forças instituintes emjogo.Procuraremos, antes <strong>de</strong> mais nada, alinhavar o que seriam os “sinais” maiscaracterísticos <strong>de</strong>stas políticas <strong>de</strong> ajuste com implicações no processo <strong>de</strong> ré-or<strong>de</strong>namentodas práticas <strong>de</strong> gestão.Em primeiro lugar, consi<strong>de</strong>ramos como relevante, <strong>de</strong>ntre outras possíveis, que asatuais políticas <strong>de</strong> ajuste colocadas em prática se fazem acompanhar:– por um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smonte <strong>de</strong> vários mecanismos estatais que mediam econtrolam o conjunto das práticas gerenciais e administrativas das instituiçõespúblicas;– por uma quebra <strong>do</strong>s mecanismos <strong>de</strong> controle mais centraliza<strong>do</strong>s e tradicionais,que existiam no interior <strong>do</strong>s serviços, com liberação <strong>de</strong> processos instituintesbasea<strong>do</strong>s em atos voluntários <strong>de</strong> alguns atores institucionais, muitos <strong>de</strong>lesgrupos instituí<strong>do</strong>s, como corporações profissionais; ou mesmo basea<strong>do</strong>s ematos isola<strong>do</strong>s <strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> interesses que atuam fortemente em benefíciopróprio, como os “corruptos” e “oportunistas” <strong>de</strong> distintos tipos;– pela presença <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>roso imaginário instituinte pauta<strong>do</strong> na importânciada lógica <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e da <strong>do</strong> “laissez-faire” (i<strong>de</strong>ologia <strong>do</strong> “<strong>de</strong>ixar fazer” comoenergia libera<strong>do</strong>ra e criativa <strong>do</strong> indivíduo e <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> seu próprio livrearbítrio),para regularem o processo “satisfação <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s-produção <strong>de</strong>bens e serviços”, com implicações nítidas nas práticas <strong>de</strong> apropriação particular(privatização em lato senso) <strong>do</strong> espaço público. E, que pela sua força instituintefunciona como um po<strong>de</strong>roso produtor permanente <strong>de</strong> “sujeitos institucionais”que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m a privatização <strong>do</strong> espaço público, além <strong>de</strong> gerar uma perspectiva<strong>de</strong>slegitima<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s direitos sociais e coletivos;3. Sob esta <strong>de</strong>nominação estamos procuran<strong>do</strong> enten<strong>de</strong>r o mo<strong>do</strong> como nas formulações <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> se articulam uma <strong>de</strong>terminada concepção <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e o <strong>de</strong>senho assistencial etecnológico <strong>do</strong>s serviços existentes, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada dinâmica gerencial. Para maiorentendimento ver Merhy, E,E. - “Saú<strong>de</strong> Pública como Política”, Hucitec, São Paulo, 1992.128 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


– por um cenário <strong>de</strong> disputa com outras linhas <strong>de</strong> forças - que apontam paraoutros processos contrapostos à esta política <strong>do</strong> ajuste - marca<strong>do</strong> por umanítida <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> a uma gran<strong>de</strong> fragilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stas outrasforças opositoras como imaginários instituintes;– por uma situação favorável muito específica nas instituições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, porencontrar nestas uma articulada e po<strong>de</strong>rosa força instituinte centrada na linhapolítica <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo médico hegemônico (neo-liberal), que bem antes dainstalação plena <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong> mudança já vinha atuan<strong>do</strong>, instituída, nosespaços gestores (macro e micro) on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>finem os processos <strong>de</strong> trabalhoem saú<strong>de</strong> 4 ;– por uma prática institucional nos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> marcada pela fragmentação<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho, pelo <strong>de</strong>scompromisso e alienação <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong>strabalha<strong>do</strong>res com a produção <strong>de</strong> seus produtos e resulta<strong>do</strong>s; atingin<strong>do</strong>, assim,o principal núcleo no cotidiano institucional que constrói o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operarcom as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e que é o espaço micropolítico <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong>processo <strong>de</strong> trabalho.Nesta situação percebermos o duplo movimento que os processos <strong>de</strong> gestão envolvemao nível <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> torna-se fundamental, pois os mesmos revelamque na ação <strong>do</strong>s conjuntos <strong>do</strong>s agentes envolvi<strong>do</strong>s, no cotidiano <strong>do</strong> “fazer” em saú<strong>de</strong>,<strong>de</strong> um la<strong>do</strong> encontram-se práticas gerenciais que tomam o território <strong>de</strong> formulação e<strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> políticas como o seu campo e <strong>de</strong> um outro práticas que enfrentam o fabricar“bens” <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>; e a gestão nesta <strong>do</strong>bra torna-se lugar <strong>de</strong> possíveisintervenções impactantes sobre a política e o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong>.Assim, partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>stes pontos foi possível refletirmos sobre algumas frentes <strong>de</strong><strong>luta</strong>s que se po<strong>de</strong>m tomar quan<strong>do</strong> se preten<strong>de</strong> criar processos concretos <strong>de</strong> contraposiçãoà aquelas práticas, no interior <strong>de</strong> cada serviço, como por exemplo as <strong>luta</strong>s:– por uma imaginário em <strong>de</strong>fesa da vida e da solidarieda<strong>de</strong>, que permita instituiruma orgânica ligação entre saberes da saú<strong>de</strong> sobre o combate ao “sofrimentorepresenta<strong>do</strong> como <strong>do</strong>ença” e “o controle e prevenção <strong>do</strong>s riscos e das <strong>do</strong>enças”,e um novo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> realizar cotidianamente as práticas <strong>do</strong>s serviços, a partir<strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo tecno-assistencial centra<strong>do</strong> no usuário. Aliás diga-se <strong>de</strong> passagemque esta <strong>luta</strong> é muito dura, pois seu cenário principal está marca<strong>do</strong> poruma íntima relação entre o campo macro e micropolítico, o que exige aexistência <strong>de</strong> “sujeitos políticos” 5 <strong>do</strong> porte <strong>de</strong> movimentos, parti<strong>do</strong>s, entreoutros, com características “trans-institucionais”;– por processos - micropolíticos - que possibilitam “publicizar” o espaço públicoda gestão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho na busca <strong>de</strong> novos senti<strong>do</strong>s e formatos;– pela produção <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los tecno-assistenciais que possam se contrapor- em termos <strong>de</strong> eficácia e resolutivida<strong>de</strong> - ao mo<strong>de</strong>lo altamente custoso e poucoefetivo <strong>do</strong> projeto médico hegemônico (neo-liberal) <strong>do</strong>s serviços públicose priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. E,– pela tomada estratégica <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> como analisa<strong>do</strong>rinstitucional privilegia<strong>do</strong> para orientar uma gran<strong>de</strong> parte <strong>de</strong>sta disputa, nointerior <strong>do</strong>s distintos equipamentos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.4. Para uma visão mais elaborada <strong>de</strong>sta questão consultar Campos, G.W.S. - “Reforma da Reforma”,Hucitec, São Paulo, 1992.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>129


Deste mo<strong>do</strong> há um permanente <strong>de</strong>safio para to<strong>do</strong>s aqueles que tomam comotarefa organizar novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> se gerir os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> se produzir açõesque tenham impacto na criação, manutenção, ou recuperação da saú<strong>de</strong>; e que é o <strong>de</strong> darconta da especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> campo <strong>de</strong> produção no qual atua.A não percepção <strong>de</strong>sta especificida<strong>de</strong>, ou mesmo a não possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreendê-lacom clareza, tem leva<strong>do</strong> muitos - <strong>do</strong>s que buscam a reorganização <strong>do</strong> mo<strong>do</strong><strong>de</strong> se trabalhar em saú<strong>de</strong> - a se inspirarem nos conhecimentos e técnicas gera<strong>do</strong>s nointerior <strong>de</strong> várias correntes organizacionais (veja o que se faz hoje com a proposta daQualida<strong>de</strong> Total) <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> acrítico, e com uma prática meramente copia<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>receitas sobre o como fazer, sem a <strong>de</strong>vida “reconstrução” <strong>de</strong>stes conhecimentos e técnicaspara o singular campo da saú<strong>de</strong>.Sem ter em mente o mo<strong>do</strong> muito próprio <strong>de</strong> como se <strong>de</strong>senvolve o processo <strong>de</strong>trabalho em saú<strong>de</strong> e a sua gestão, o ato <strong>de</strong> buscar receitas em experimentos <strong>de</strong> outrasnaturezas ten<strong>de</strong> a ser profundamente frustrante <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da capacida<strong>de</strong> que asações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> têm <strong>de</strong> gerar melhorias efetivas para a vida das pessoas.Neste senti<strong>do</strong>, procuraremos mostrar, a partir <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> ângulo <strong>de</strong>análise sobre o trabalho em saú<strong>de</strong>, a especificida<strong>de</strong> das “ferramentas” que po<strong>de</strong>mcontribuir com os processos <strong>de</strong> “análise das instituições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>” na direção daelaboração <strong>de</strong> novas práticas organizacionais e novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> trabalhar.Ultimamente temos nos ocupa<strong>do</strong>, cada vez mais, <strong>de</strong> uma reflexão sobre as questõesreferentes à dinâmica micropolítica <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, tanto no que se refere à suadimensão mais articulada às práticas produtivas <strong>de</strong> bens e serviços, quanto na sua relaçãocom os complexos processos <strong>de</strong> reformas institucionais. Neste senti<strong>do</strong>, temos visto quea micropolítica <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho, no cotidiano institucional <strong>do</strong> “fazer saú<strong>de</strong>”,coloca em foco os distintos mo<strong>do</strong>s instituintes <strong>de</strong> como vem se disputan<strong>do</strong>, nos processos<strong>de</strong> gestão institucional <strong>do</strong> trabalho, pelas distintas forças sociais envolvidas no mesmo,a configuração <strong>de</strong> singulares mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong>. Assim, a partir <strong>de</strong> um quadroteórico centra<strong>do</strong> na busca <strong>de</strong> sua compreensão po<strong>de</strong>-se permitir a conformação <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s<strong>de</strong> intervenção institucional que tenham operacionalmente mais efetivida<strong>de</strong> no senti<strong>do</strong>da mudança da direcionalida<strong>de</strong> das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Nesta linha, preten<strong>de</strong>mos explorar e abrir algumas questões sobre o que seconsi<strong>de</strong>ra uma das fragilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> movimento em torno da reforma sanitária no Brasil,e que se expressa, por uma falta <strong>de</strong> consenso no interior das distintas forças sociais queo protagonizam, quanto ao “<strong>de</strong>senho” efetivo <strong>de</strong> como se <strong>de</strong>ve “agir em saú<strong>de</strong>”, no diaa dia da produção das ações, <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s referenciais da construção da cidadania. Alémdisso, preten<strong>de</strong>mos também alertar aqueles que não têm percebi<strong>do</strong> o quanto esta temáticaatravessa os processos macropolíticos básicos para a reforma das relações esta<strong>do</strong>,socieda<strong>de</strong> e políticas.A construção da figura institucional <strong>do</strong> gestor único com capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervirna construção <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção passa diretamente pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stecomponente <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> impactar os processos micropolíticos em saú<strong>de</strong>, que constroem5. Sujeitos políticos são trata<strong>do</strong>s como aqueles que geram, com suas formulações e práticas, quadrosdiscursivos referenciais <strong>de</strong> disputas para os senti<strong>do</strong>s das ações sociais e o conjunto <strong>do</strong>s agentes sociais“em cena”. Veja mais <strong>de</strong>talhe em Merhy, E.E. - Saú<strong>de</strong> Pública como Política, op.cit.130 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


os bens e os serviços, e mesmo as próprias organizações, como relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res eprojetos.Em 1994, tentan<strong>do</strong> analisar e compreen<strong>de</strong>r a experiência vivida junto à re<strong>de</strong> <strong>de</strong>serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> Município <strong>de</strong> Ipatinga, em Minas Gerais - na qual pretendíamosalterar a lógica da relação <strong>do</strong>s serviços com os usuários intervin<strong>do</strong> na porta <strong>do</strong>sistema - produzimos um material analítico 6 que, apesar <strong>de</strong> já ter em esboço algumasdas interrogações que nos levaram à construção <strong>de</strong>ste texto, ainda mostrava uma baixaelaboração da complexa dinâmica que o processo micropolítico em saú<strong>de</strong> configura; e,com isto, não permitia uma compreensão suficiente sobre o que vivenciamos. Pois, nãotínhamos então uma visão mais clara da dinâmica <strong>do</strong> trabalho vivo em ato, no interior<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>.Entretanto, já éramos sensíveis à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se buscar uma compreensão sobreo processo experimenta<strong>do</strong>, aprimoran<strong>do</strong> algumas questões já, ali, antecipadas, sobre aimportância <strong>do</strong> “autogoverno” <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no interior <strong>do</strong> processo <strong>de</strong>trabalho e o lugar estratégico ocupa<strong>do</strong> pela dinâmica <strong>do</strong> trabalho vivo em ato naconformação <strong>do</strong>s processos institucionais.Em um outro material, mais teórico 7 , tomamos como centro <strong>de</strong> nossa reflexãoexatamente esta temática apontada acima. Neste material procuramos <strong>de</strong>monstrar algunsaspectos básicos <strong>do</strong> trabalho vivo em ato, ao fabricar as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> individuais e/ou coletivas, no que se refere ao seu <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramento tecnológico no espaço da gestão,tanto na sua <strong>do</strong>bra ao nível <strong>do</strong> processo produtivo, quanto na das relações institucionais,tentan<strong>do</strong> com isso enten<strong>de</strong>r e mostrar a importância <strong>de</strong>ste elemento na análise ecompreensão das várias propostas, que vêm sen<strong>do</strong> geradas no interior <strong>do</strong>s distintosexperimentos <strong>do</strong> SUS, e ainda quanto às suas capacida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gerarem dispositivos(analisa<strong>do</strong>res) modifica<strong>do</strong>res <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>.Acreditamos que uma boa parte <strong>de</strong>stas distintas experiências, apesar <strong>de</strong> ricas <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista macropolítico, têm falha<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> conseguir pensar a elaboração<strong>de</strong> “tecnologias” para o trabalho vivo em ato que enfrentem as situações efetivas enecessárias <strong>de</strong> mudanças. E, assim, não têm da<strong>do</strong> conta da vitalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste trabalho noseu fazer, inclusive como chave estratégica para a “publicização” <strong>do</strong>s mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> “fazera política e <strong>de</strong> fabricar as ações nos espaços <strong>de</strong> autogoverno existentes no interior dasequipes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e expressos nas relações institucionais com os usuários” 8 .Por isso, inclusive tomamos como centro <strong>de</strong> nossa reflexão o posicionamento estratégicoda relação trabalha<strong>do</strong>r-usuário como elemento analisa<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s processos institucionaisem saú<strong>de</strong> e como o lugar <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> possíveis dispositivos institui<strong>do</strong>res <strong>de</strong>novas lógicas para o processo <strong>de</strong> trabalho.Institui<strong>do</strong>res que possam contribuir para dar maior capacida<strong>de</strong> operacional aoconjunto das intervenções que preten<strong>de</strong>m transformar os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong>,na direção da construção <strong>de</strong> um SUS comprometi<strong>do</strong> com a vida e a cidadania, e com asaú<strong>de</strong> como um patrimônio público, no Brasil.6. Merhy, E.E. - Em busca da qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, op. cit..7. Merhy, E.E. - “Agir em Saú<strong>de</strong>: micropolítica <strong>do</strong> trabalho vivo”, impresso como parte <strong>do</strong> relatório dapesquisa “Em busca <strong>do</strong> gestor único”, DMPS/FCM/UNICAMP, 1996. (140 páginas)SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>131


EM SAÚDE, ANTES DE TUDO, SE PRODUZ “BENS RELAÇÕES”,PRODUTOS DE PROCESSOS INTERCESSORESPara realizarmos a nossa reflexão vamos partir <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> “intercessores”que estaremos usan<strong>do</strong> com senti<strong>do</strong>s semelhantes ao <strong>de</strong> Deleuze no livro “Conversações” 9 ,que com este termo preten<strong>de</strong> “figurar” a intersecção que ele e Guattari constituíram naprodução <strong>do</strong> livro “Anti-Edipo” 10 , procuran<strong>do</strong> passar a idéia <strong>de</strong> que esta junção não foiuma simples somatória <strong>de</strong> um com o outro, e muito menos que aquele livro foi umproduto <strong>de</strong> 4 mãos, mas sim o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> um processo singular, constituí<strong>do</strong> peloencontro <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is em um único momento.O uso <strong>de</strong>ste termo é portanto para <strong>de</strong>signar o espaço <strong>de</strong> relação que se produz noencontro <strong>de</strong> “sujeitos”, isto é, nas suas intersecções, e que é um produto que existe paraos “<strong>do</strong>is” em ato, não ten<strong>do</strong> existência sem este momento em processo, e no qual os“inter” se colocam como instituintes em busca <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> instituição muitopróprio, <strong>de</strong>ste sujeito coletivo novo que se formou.De posse <strong>de</strong>sta idéia, estamos queren<strong>do</strong> dizer também que quan<strong>do</strong> um trabalha<strong>do</strong>r<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> encontra-se com um usuário, no interior <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> trabalho, estabelece-seentre eles um espaço intercessor que sempre existirá nos seus encontros, massó nos seus encontros, e em ato.A imagem <strong>de</strong>ste espaço é semelhante à da construção <strong>de</strong> um espaço comum <strong>de</strong>intersecção entre <strong>do</strong>is conjuntos, ressalvan<strong>do</strong> que este espaço não existe só nesta situação,e nem só na saú<strong>de</strong>, pois tanto a relação entre <strong>do</strong>is trabalha<strong>do</strong>res inseri<strong>do</strong>s em um mesmoprocesso <strong>de</strong> trabalho é intercessora, quanto em outros processos <strong>de</strong> trabalho, que não sóo da saú<strong>de</strong>, também há os processos intercessores.Deste mo<strong>do</strong>, além <strong>de</strong> reconhecer a existência <strong>de</strong>ste processo singular é fundamental,em uma análise <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> trabalho, se tentar <strong>de</strong>scobrir o tipo <strong>de</strong>intersecção que se constitui e os distintos motivos que operam no seu interior.Vejamos isto <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong> esquemático, para que <strong>de</strong>pois possamos tirar conseqüênciasanalíticas <strong>de</strong>ste entendimento.1. Os esquemas mais comuns em processos <strong>de</strong> trabalho como o da saú<strong>de</strong>, querealizam atos imediatamente <strong>de</strong> assistência com o usuário, apresentam-se comoo <strong>do</strong> diagrama abaixo, que chamamos <strong>de</strong> uma “intersecção partilhada”.2. Os que se constituem nos casos mais típicos <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> trabalho, como o<strong>de</strong> um marceneiro que produz uma ca<strong>de</strong>ira, mostram que o usuário é externoao processo, pois o momento intercessor se dá com a “ma<strong>de</strong>ira”, que éplenamente contida pelo espaço <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, como uma “intersecçãoobjetal”.Esta distinção da constituição <strong>do</strong>s processos intercessores mostra como a dinâmicaentre o produtor e o consumi<strong>do</strong>r, e os jogos entre necessida<strong>de</strong>s ocorrem em espaços bem8. Merhy, E.E. - Agir em Saú<strong>de</strong>, op.cit.9. Deleuze, G. - Conversações, Editora 34, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1992.10. Guattari, F. e Deleuze, G. - El Antiedipo - capitalismo y esquizofrenia, Ediciones Corregi<strong>do</strong>r, BuenosAires, 1974.132 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


usuário indiv.e/ou coletivoxxxxx xxxxxx xxxxxxxx xxxx xxxmarceneiroxxxxxxxma<strong>de</strong>iraxxxxxxxusuárioca<strong>de</strong>iradistintos, e, inclusive, como os possíveis mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> configuração <strong>de</strong>sta dinâmica po<strong>de</strong>mser mais ou menos permeáveis a estas características.Por exemplo, po<strong>de</strong>mos dizer que nos mo<strong>de</strong>los tecno-assistenciais pre<strong>do</strong>minanteshoje na saú<strong>de</strong>, no Brasil, as relações entre usuários <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e trabalha<strong>do</strong>resse produzem em espaços intercessores preenchi<strong>do</strong>s pela “voz” <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r e pela“mu<strong>de</strong>z” <strong>do</strong> usuário, como se o processo <strong>de</strong> relação trabalha<strong>do</strong>r-usuário fosse mais <strong>do</strong>tipo da “intersecção objetal”.Entretanto, como efetivamente a relação em saú<strong>de</strong> é a <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> “interseção partilhada”,com certeza estes tipos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> assistência realizam-se com intensas perdasquanto ao mútuo processo instituinte, conti<strong>do</strong> no momento da produção e consumo <strong>de</strong>atos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.No jogo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s que se coloca para o processo <strong>de</strong> trabalho é possívelentão pensarmos:1. que no processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> há um encontro <strong>do</strong> agente produtor,com suas ferramentas (conhecimentos, equipamentos, tecnologias <strong>de</strong> um mo<strong>do</strong>geral), com o agente consumi<strong>do</strong>r, tornan<strong>do</strong>-o em parte objeto da ação daqueleprodutor, mas sem que com isso <strong>de</strong>ixe <strong>de</strong> ser também um agente que, em ato,coloca seus conhecimentos e representações, inclusive expressos como ummo<strong>do</strong> <strong>de</strong> sentir e elaborar necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, para o momento <strong>do</strong> trabalho;e,2. que no seu interior há uma busca <strong>de</strong> realização <strong>de</strong> um produto/finalida<strong>de</strong>,expresso <strong>de</strong> distintos mo<strong>do</strong>s por estes agentes, que po<strong>de</strong>m até mesmocoincidirem.O que, <strong>de</strong> uma certa forma, mostra que a análise <strong>do</strong> processo intercessor que seefetiva no cotidiano <strong>de</strong>stes encontros po<strong>de</strong> nos revelar a maneira como estes agentes secolocam enquanto “porta<strong>do</strong>res/elabora<strong>do</strong>res” <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s no interior <strong>de</strong>ste processo<strong>de</strong> “intersecção partilhada”.Os agentes produtores e consumi<strong>do</strong>res são “porta<strong>do</strong>res” <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s macroe micropoliticamente constituídas, bem como são institui<strong>do</strong>res <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s singutrabalha<strong>do</strong>r<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>133


lares que atravessam o mo<strong>de</strong>lo instituí<strong>do</strong>, no jogo <strong>do</strong> trabalho vivo e morto ao qualestão vincula<strong>do</strong>s.A conformação das necessida<strong>de</strong>s, portanto, dá-se em processos sociais e históricos<strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s pelos agentes em ato, como positivida<strong>de</strong>s, e não exclusivamente comocarências, <strong>de</strong>terminadas <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro. Aqui, não interessa o julgamento <strong>de</strong> valoracerca <strong>de</strong> qual necessida<strong>de</strong> é mais legítima que outra, este é um posicionamento necessáriopara a ação mas não po<strong>de</strong> ser um “a priori” para a análise, porque o importante épercebermos que to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> trabalho e <strong>de</strong> intersecção é atravessa<strong>do</strong> por distintaslógicas que se apresentam para o processo em ato como necessida<strong>de</strong>s, que disputamcomo forças instituintes suas instituições.Assim, a presença <strong>de</strong> uma linha <strong>de</strong> força médico-hegemônica que venha positivamente,através <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> (e não <strong>de</strong> qualquer um) trabalho médico, atua comoinstituinte pela ação efetiva <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> agente que é seu constitui<strong>do</strong>r no processo<strong>de</strong> trabalho, em ato. Do mesmo mo<strong>do</strong>, uma outra linha <strong>de</strong> força que venha peloconsumi<strong>do</strong>r, como uma busca <strong>de</strong> um ato que lhe permita restituir sua “autonomia” noseu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> andar a vida, atua também como instituinte pela ação positiva <strong>do</strong> usuáriono espaço intercessor partilhável.O espaço intercessor é assim um lugar que revela esta disputa das distintas forçasinstituintes, como necessida<strong>de</strong>s, e o mo<strong>do</strong> como socialmente um da<strong>do</strong> processo instituí<strong>do</strong>as captura ou é invadi<strong>do</strong> pelas mesmas.Isto é um tema para ser entendi<strong>do</strong> pela discussão sobre a relação entre mo<strong>de</strong>los<strong>de</strong> atenção e a construção <strong>do</strong>s espaços intercessores. A caixa preta <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>sque ocorre entre o produtor e o consumi<strong>do</strong>r abre-se e po<strong>de</strong> revelar aspossibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção <strong>do</strong>s distintos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> eseus compromissos. Mas, fica registra<strong>do</strong> que, se o trabalho é em saú<strong>de</strong>, o espaçointercessor será sempre partilha<strong>do</strong>, mesmo que o mo<strong>de</strong>lo que se institua seja o <strong>de</strong> seuabafamento; porém os instituintes em ato estarão sempre geran<strong>do</strong> ruí<strong>do</strong>s no seu interior.Estes são os casos <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sencontros que os usuários relatam quan<strong>do</strong> falam dafalta <strong>de</strong> acolhimento e <strong>de</strong> responsabilização que vivenciam atualmente nas suas relaçõestrabalho em saú<strong>de</strong>/consumo.Os espaços intercessores na saú<strong>de</strong>, as vozes e as escutasDentro <strong>de</strong>sta compreensão sobre a constituição <strong>do</strong> espaço intercessor no processo<strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> é possível introduzirmos uma discussão da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ntificarmos situações <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong> no cotidiano <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, com a finalida<strong>de</strong><strong>de</strong> se analisar a própria dinâmica daquele processo, i<strong>de</strong>alizan<strong>do</strong> possíveis intervençõesque permitam alterar a direcionalida<strong>de</strong> das ações em saú<strong>de</strong>, no próprio ato <strong>do</strong> processo<strong>de</strong> trabalho.Esta idéia <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong> vem da imagem <strong>de</strong> que cotidianamente as relações entre os agentesinstitucionais ocorre no interior <strong>de</strong> processos silenciosos até o momento que a lógica funcional,pre<strong>do</strong>minante e instituída, seja rompida. Porém, este rompimento é normalmente percebi<strong>do</strong>como uma disfunção, como um <strong>de</strong>svio <strong>do</strong> normal que <strong>de</strong>veria ocorrer.Com ruí<strong>do</strong> queremos introduzir a noção, basea<strong>do</strong> em Fernan<strong>do</strong> Flores 11 , <strong>de</strong> que aquebra <strong>do</strong> silêncio <strong>do</strong> cotidiano po<strong>de</strong> ser, e <strong>de</strong>ve ser, percebi<strong>do</strong> como a presença <strong>de</strong>134 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


processos instituintes que não estão sen<strong>do</strong> contempla<strong>do</strong>s pelo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização egestão <strong>do</strong> equipamento institucional em foco, mostran<strong>do</strong> os distintos possíveis caminhar<strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> ações <strong>do</strong>s agentes envolvi<strong>do</strong>s, e, portanto, abrin<strong>do</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>interrogações sobre o mo<strong>do</strong> instituí<strong>do</strong> como se opera o trabalho e o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> suasações, naquele equipamento.A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> escutar os ruí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cotidiano institucional é parte <strong>de</strong> ferramentasanalisa<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s processos institucionais e po<strong>de</strong> permitir a reconstrução <strong>de</strong> novosmo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gerir e operar o trabalho em saú<strong>de</strong>. Permite interrogar sobre a captura <strong>do</strong>trabalho vivo e sobre a constituição <strong>do</strong> processo intercessor.É neste senti<strong>do</strong> que gostaríamos <strong>de</strong> explorar tal caminho pelo la<strong>do</strong> da constituição<strong>do</strong> espaço intercessor como lugar <strong>de</strong> vozes e <strong>de</strong> escutas, isto é, como o lugar querevela, no interior <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, o encontro <strong>de</strong> <strong>do</strong>is instituintes quequerem falar e serem escuta<strong>do</strong>s em suas necessida<strong>de</strong>s - <strong>de</strong>mandas.Os construtores <strong>de</strong> um da<strong>do</strong> espaço intercessor atuam instituintemente, e se umda<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo tecno-assistencial, como aquele que procura construir este processo intercessorpartilha<strong>do</strong> como um processo objetal (veja o que foi fala<strong>do</strong> mais atrás) não permitea plena expressão <strong>de</strong> um <strong>de</strong> seus partícipes, este não some, não apaga a sua presença<strong>de</strong>ste espaço, mas age “ocultamente” em relação à possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua não explicitação.Quan<strong>do</strong>, em um da<strong>do</strong> serviço <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, há o encontro <strong>de</strong> um usuário com umtrabalha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> - qualquer um <strong>de</strong>les ou mesmo um usuário coletivo - forma-seum jogo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s no qual o usuário coloca pelo menos a sua perspectiva <strong>de</strong> quenaquele processo <strong>de</strong> “consumir” atos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (ou pelo menos o que ele enten<strong>de</strong> porisso) vai haver um ganho seu em termos <strong>de</strong> controlar problemas que i<strong>de</strong>ntifica comonecessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e para os quais aquele momento parece construir um caminho<strong>de</strong> solução. Mas solução para o quê?Para várias coisas. Para aplacar aquilo que consi<strong>de</strong>ra como um sofrimento, tantoquanto para possibilitar que o seu “organismo” possa estar “bem” funcionalmente paracontinuar caminhan<strong>do</strong> na sua vida. Isto é, associa aquele processo como umapossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> retornar a um certo esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> exercício <strong>de</strong> sua autonomia no seu mo<strong>do</strong><strong>de</strong> andar a sua vida.Não muito estranhamente o trabalha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntifica aquele encontrotambém como o lugar <strong>de</strong> realizar soluções para várias questões. Mas quais? Depen<strong>de</strong><strong>do</strong>s interesses que o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> explicita. Depen<strong>de</strong><strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como socialmente as distintas necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>são capturadas pelo mo<strong>de</strong>lo tecno-assistencial. Depen<strong>de</strong> <strong>do</strong> universo i<strong>de</strong>ológico <strong>do</strong>próprio trabalha<strong>do</strong>r.Assim, se for uma captura comprometida com um mo<strong>de</strong>lo médico hegemônicovincula<strong>do</strong> à medicina tecnológica, que coloca a produção <strong>de</strong> procedimentos como oprincipal produto a realizar - a “finalida<strong>de</strong>” <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> - pelo la<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a linha <strong>de</strong> força representada pelos usuários será anulada por umprocesso <strong>de</strong> não escuta <strong>de</strong> sua atuação e pela imposição, no espaço intercessor, da vozúnica <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo na qual o usuário será só um “objeto” a viabilizar a ação <strong>de</strong> produção<strong>de</strong> procedimentos.11. Flores, F. - Inventan<strong>do</strong> la empresa <strong>de</strong>l siglo XXI, Hachete, Chile, 1989.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>135


Ora, mesmo que isto ocorra, o usuário não <strong>de</strong>ixará <strong>de</strong> estar ali e <strong>de</strong> continuar“<strong>de</strong>sejan<strong>do</strong>” o que ele queria daquele momento. E se isto não for viabiliza<strong>do</strong> na produção<strong>do</strong>s atos pelo trabalha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ele sai dali e vai atrás <strong>de</strong> outro processo <strong>de</strong>consumo que lhe possa trazer a idéia <strong>de</strong> satisfação e <strong>de</strong> produto/resulta<strong>do</strong> realiza<strong>do</strong>.Em parte o usuário será conforma<strong>do</strong> pelo processo <strong>de</strong> produção, mas na testagemque a vida lhe coloca no seu caminhar, em parte este processo não consegue contê-loplenamente (veja a imagem <strong>do</strong> intercessor partilha<strong>do</strong> e <strong>do</strong> objetal).Esta situação se apresenta como um processo gera<strong>do</strong>r <strong>de</strong> ruí<strong>do</strong>s e que po<strong>de</strong>m ser“gerencialmente” escuta<strong>do</strong>s pelos trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ou mesmo pelos usuários.Para tanto, po<strong>de</strong>mos fazer perguntas para o mo<strong>do</strong> como no espaço intercessor seconcretiza a produção <strong>de</strong> processos típicos <strong>de</strong>ste espaço enquanto um lugar <strong>de</strong> efetivação<strong>de</strong> ações suportadas por um universo <strong>de</strong> “tecnologias leves”, <strong>de</strong> tecnologias <strong>de</strong>“relações” que se concretizam com a produção <strong>de</strong> “produtos” simbólicos, básicos paraoperar este tipo <strong>de</strong> processo <strong>de</strong> trabalho.Destacamos como produtos <strong>de</strong>ste tipo, à semelhança <strong>do</strong> jogo transferencial nosprocessos psicanalíticos, o acolhimento e o vínculo que são construí<strong>do</strong>s neste espaço emato, permanentemente. E estamos indican<strong>do</strong> que a pergunta sobre os mesmos po<strong>de</strong>mostrar como que se dá a construção <strong>de</strong> um da<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo tecno-assistencial <strong>do</strong> ponto<strong>de</strong> vista <strong>do</strong> jogo instituinte das necessida<strong>de</strong>s entre o trabalha<strong>do</strong>r e o usuário. Revelan<strong>do</strong>a situação vital ocupada pelo trabalho vivo em ato no interior <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalhoem saú<strong>de</strong> e evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> como no interior <strong>do</strong>s processos cotidianos <strong>do</strong>s serviços seproduzem as vozes, as escutas e os silêncios, entre os trabalha<strong>do</strong>res e os usuários,expressos em formas <strong>de</strong>finidas nos mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção construí<strong>do</strong>s no interior <strong>do</strong>sequipamentos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Deste mo<strong>do</strong> a busca é a <strong>de</strong> colocar sob interrogação o encontro trabalha<strong>do</strong>r-usuáriocomo um po<strong>de</strong>roso processo revela<strong>do</strong>r das distintas lógicas que operam no interior <strong>do</strong>smo<strong>do</strong>s como se trabalha em saú<strong>de</strong>, o que permite perceber distintas linhas <strong>de</strong> fuga quepo<strong>de</strong>m abrir este processo a novos significa<strong>do</strong>s ético-políticos e operativos. Com estasinterrogações po<strong>de</strong>-se procurar colocar em cheque a natureza pública e privada <strong>de</strong>steencontro, os processos <strong>de</strong> captura a que o trabalho vivo está subordina<strong>do</strong> e os tipos <strong>de</strong>interesses que pre<strong>do</strong>minam neste espaço, os ocultamentos e “abafamentos”.Criar ferramentas para um olhar analisa<strong>do</strong>r neste senti<strong>do</strong>, então, é conseguiroperar no interior <strong>de</strong>stas próprias lógicas e torná-las rui<strong>do</strong>sas, e assim temas públicospara o coletivo/“equipe <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>”, inclusive nas suas relações com os usuários.Neste senti<strong>do</strong>, enten<strong>de</strong>mos que há dispositivos “naturais” <strong>de</strong>ste processo <strong>de</strong>scola<strong>do</strong>sda própria tecnologia leve que opera nestes espaços intercessores, como porexemplo o acolhimento, que tem um gran<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> gerar ruí<strong>do</strong>s por expor maisclaramente a razão ético-política, e não só instrumental, que opera no seu interior. Entretanto,po<strong>de</strong>mos também criar dispositivos “artificiais” que possam interrogar estesprocessos instituintes e instituí<strong>do</strong>s; alguns experimentos <strong>do</strong>s quais temos participa<strong>do</strong>têm mostra<strong>do</strong> uma certa eficácia interessante no repensar o trabalho em saú<strong>de</strong>. Nesteparticular temos trabalha<strong>do</strong> com a construção <strong>de</strong> ferramentas, como fluxogramas e re<strong>de</strong>s<strong>de</strong> petições e compromissos, analisa<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>stes encontros singulares.136 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Dos ruí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> cotidiano a novos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> gerir e trabalhar em saú<strong>de</strong> -algumas ferramentas que armam os olhares analisa<strong>do</strong>resCom a compreensão <strong>de</strong>stas questões, não fica difícil enten<strong>de</strong>r da possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> se criar analisa<strong>do</strong>res institucionais sobre o espaço intercessor em saú<strong>de</strong>, que permitaminterrogar o mo<strong>do</strong> como o trabalho vivo opera com esta “tecnologia leve das relações”e como produz estes “produtos da intersecção”, que consi<strong>de</strong>ramos como “bens relações”fundamentais em saú<strong>de</strong>; e que também permitem analisar o mo<strong>do</strong> como o processo <strong>de</strong>gestão <strong>do</strong> trabalho se realiza aproprian<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> espaço institucional da gestão organizacional,inclusive expon<strong>do</strong> a dinâmica da relação <strong>de</strong> apropriação pública ou privada<strong>de</strong>ste processo.Através da interrogação que po<strong>de</strong>mos realizar sobre o processo <strong>de</strong> trabalho <strong>do</strong>ponto <strong>de</strong> vista, por exemplo, <strong>do</strong> acolhimento po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>monstrar a potencialida<strong>de</strong><strong>de</strong>ste caminho para repensar processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> e da abertura que permitepara se olhar o mo<strong>do</strong> como os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção capturam o trabalho vivo em ato;potencialida<strong>de</strong> que se expõe nas distintas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> linhas <strong>de</strong> fuga que po<strong>de</strong>mse constituir no interior <strong>do</strong> processo produtivo e gerencial.Vale a pena, antes, falar um pouco sobre o que po<strong>de</strong> significar a perspectiva <strong>de</strong>operar em um terreno que preten<strong>de</strong> criar “ferramentas” para intervir em processosinstitucionais. Parece-nos, que isto não <strong>de</strong>va ser muito próximo ao mo<strong>do</strong> como se atuaem processos produtivos, mais diretamente vincula<strong>do</strong>s à realização <strong>de</strong> um produtomaterial explícito e bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>; além <strong>de</strong> ter algumas implicações distintas sobre acompreensão <strong>do</strong> que <strong>de</strong>va ser entendimento sob a ótica <strong>de</strong> saber tecnológico.Como já dissemos em vários outros momentos, tecnologia não é confundida aquicom instrumento (equipamento) tecnológico e nem é valorizada como algo necessariamentepositivo, pois damos a este termo uma imagem <strong>do</strong>s saberes que permitem, emum processo <strong>de</strong> trabalho específico, operar sobre recursos na realização <strong>de</strong> finalida<strong>de</strong>sperseguidas e postas para este processo produtivo.Deste mo<strong>do</strong>, uma máquina como um computa<strong>do</strong>r não seria em si uma tecnologia,mas um equipamento tecnológico expressão <strong>de</strong> uma tecnologia, que se apresenta paranós como saberes que buscam na máquina-computa<strong>do</strong>r uma ferramenta que possibilitaoperar com processamentos rápi<strong>do</strong>s e massivos <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s, por exemplo. A tecnologiaseria então o saber, ou saberes, que permitiram construí-la e que estão comprometi<strong>do</strong>scom a realização <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas finalida<strong>de</strong>s previamente colocadas para os processos<strong>de</strong> trabalhos que lhe são pertinentes.Por isso, tratamos a clínica e a epi<strong>de</strong>miologia como saberes tecnológicos. Por seremsaberes que são produzi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> compromissa<strong>do</strong> com a realização <strong>de</strong> intervençõesprodutivas <strong>do</strong> trabalho humano sobre os “processos da vida, como a saú<strong>de</strong> e a <strong>do</strong>ença”.E, que estão, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, imediatamente implica<strong>do</strong>s com processos <strong>de</strong> intervenção. Sãodistintos, nesta dimensão, em relação a outros saberes que não tenham esta implicaçãoimediata.Entretanto, isto não lhes retira a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estarem também produzin<strong>do</strong>conhecimento sobre a realida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> não imediatamente comprometi<strong>do</strong>s com aação operatória. Um saber tecnológico opera em uma <strong>do</strong>bra na qual, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> expressaseu compromisso com a “razão instrumental”, e, <strong>de</strong> um outro, com a “razão teórica”.Deven<strong>do</strong>, como tal, estar aberto às leituras <strong>de</strong> seus pressupostos <strong>de</strong> construção, <strong>de</strong> suasintencionalida<strong>de</strong>s e finalida<strong>de</strong>s, em ambas dimensões.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>137


De um la<strong>do</strong> reverso, um saber que se proponha a ser conhecimento científicomais <strong>do</strong> que tecnológico também nos apresenta esta <strong>do</strong>bra <strong>de</strong> revelar “o mun<strong>do</strong>” e <strong>de</strong>permitir uma ação sobre o mesmo.Mas, aqui estamos operan<strong>do</strong> com saberes que têm uma distinção importante aconsi<strong>de</strong>rar, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que, como um saber tecnológico, está imediatamente referi<strong>do</strong> e concretiza<strong>do</strong>em processos <strong>de</strong> trabalhos bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, que expõem diretamente suas intencionalida<strong>de</strong>s.Entretanto, tu<strong>do</strong> indica que quan<strong>do</strong> estamos diante <strong>de</strong> uma tecnologia <strong>do</strong> tipoleve (como o acolhimento) a situação é um pouco distinta <strong>de</strong> quan<strong>do</strong> estamos peranteuma tecnologia <strong>do</strong> tipo dura (como o realizar uma conduta totalmente normalizada oumesmo o processo incorpora<strong>do</strong>r <strong>de</strong> máquinas-ferramentas), e isto nos coloca que nooperar das leves, como a própria clínica ou os processos das tecnologias das relações(como é o caso <strong>do</strong> acolhimento ou <strong>do</strong> vínculo), o processo operatório é bem mais abertoao fazer <strong>do</strong> trabalho vivo em ato. O que também permite-nos re<strong>de</strong>finir o conceito quetemos <strong>de</strong> recursos escassos, pois tecnologia leve nunca é escassa ela sempre é em processo,em produção. (Aqui há que rever a noção cara às políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública que operamcom o conceito <strong>de</strong> escassez permanente e priorida<strong>de</strong> focal exclu<strong>de</strong>nte).Por isso, procurar ferramentas para operar sobre relações institucionais é umatarefa um pouco mais árdua <strong>do</strong> que estar tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> um processo bem <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> e normatiza<strong>do</strong>,pois vem impregnada <strong>de</strong> uma quase igual importância tanto <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> <strong>de</strong>instrumentalizar a ação humana <strong>de</strong> intervir na realida<strong>de</strong> como em um processo <strong>de</strong>trabalho, quanto <strong>do</strong> seu la<strong>do</strong> <strong>de</strong> estar revelan<strong>do</strong> “o mun<strong>do</strong>” e seus senti<strong>do</strong>s e significa<strong>do</strong>spara os “opera<strong>do</strong>res/interventores”. Pois estamos diante <strong>de</strong> uma situação muitoparecida com a dinâmica <strong>do</strong> trabalho vivo na saú<strong>de</strong> que nos coloca perante uma realida<strong>de</strong>operatória que é sempre um “em processo”, um “dan<strong>do</strong>”, no qual os homens são aomesmo tempo opera<strong>do</strong>res, sujeitos e objetos <strong>do</strong>s trabalhos-intervenções.A perspectiva <strong>de</strong> construir analisa<strong>do</strong>res rui<strong>do</strong>sos para compreen<strong>de</strong>r processos <strong>de</strong>trabalho em saú<strong>de</strong> é marcada pela idéia pouco positiva <strong>de</strong> criar dispositivos que tenhamo compromisso com a abertura <strong>de</strong> linhas <strong>de</strong> fuga em processos instituí<strong>do</strong>s, mais <strong>do</strong> quecom a produção <strong>de</strong> receitas sobre como construir o trabalho <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> correto e certo.A criação <strong>de</strong>stes dispositivos não obe<strong>de</strong>ce a um processo aleatório qualquer, poiscomo já dissemos os mesmos estão marca<strong>do</strong>s pelas distintas lógicas instituintes queoperam no interior <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>. Assim, tomar os processosinstituintes que operam no interior <strong>do</strong>s espaços intercessores e tentar operar comferramentas-dispositivos que “abrem” estas presenças lógicas é uma perspectiva vitalpara criar “olhares analisa<strong>do</strong>res rui<strong>do</strong>sos” sobre o mo<strong>do</strong> como se constituem as práticas<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, suas tecnologias e direcionalida<strong>de</strong>s, e seus mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> gestão.Em algumas experiências em serviços que vivenciamos, estivemos diante <strong>de</strong> umasituação problema que mostrava que um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> grupo populacional - crianças<strong>de</strong>snutridas - só tinham acesso aos serviços da re<strong>de</strong> básica <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> estavam“sem problema imediato”, pois sempre que apresentavam uma “intercorrência” eramrecusadas (nunca tinha vaga, filas enormes para chegarem à recepção, etc...) e acabavamsen<strong>do</strong> atendidas em um “pronto-atendimento” qualquer, sem o mínimo compromissomédico-sanitário e sem capacida<strong>de</strong> resolutiva.Diante <strong>de</strong> uma situação <strong>de</strong>ste tipo consi<strong>de</strong>ramos como fundamental colocar oconjunto <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em situação e produzin<strong>do</strong> um certo138 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


conhecimento sobre o seu cotidiano, sobre o seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalhar. Para que, a partir<strong>de</strong> então, interrogassem o seu cotidiano e pensassem sobre a situação problema.Trabalhamos intensamente uma ferramenta analisa<strong>do</strong>ra, o fluxograma analisa<strong>do</strong>r12 , e fizemos coletivamente uma análise <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> acolhimento quepermeavam o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção em pauta.Acolhimento que inclusive adquiriu nas discussões uma dupla dimensão: pois,se <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> era uma etapa <strong>do</strong> conjunto <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho, realiza<strong>do</strong> em serviçosconcretos, em particular no momento da recepção <strong>de</strong>stes serviços, que estabeleciao mo<strong>do</strong> como o serviço fazia o seu primeiro contato com a sua clientela, em um processomútuo <strong>de</strong> reconhecimento - on<strong>de</strong> o usuário se reconhecia como cliente daquele serviçoe o serviço o reconhecia como um usuário com direitos em relação aos serviços realiza<strong>do</strong>s- crian<strong>do</strong> suas barreiras e mecanismos <strong>de</strong> acesso; por outro la<strong>do</strong> era também umatecnologia leve <strong>do</strong> processo intercessor <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> que ocorria em to<strong>do</strong>s oslugares em que se constituíam os encontros trabalha<strong>do</strong>res-usuários.Nestas experiências, vivenciamos um processo coletivo diretamente comprometi<strong>do</strong>com a busca <strong>de</strong> ferramentas tecnológicas que procuravam mostrar com maisclareza o nosso papel <strong>de</strong> construtor e/ou faze<strong>do</strong>r <strong>de</strong> processos analisa<strong>do</strong>res, quepermitissem colocar em questão o espaço da gestão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho, lugarprivilegia<strong>do</strong> <strong>de</strong> realização <strong>do</strong> trabalho vivo em ato, junto ao conjunto <strong>do</strong> processo <strong>de</strong>trabalho em si.Com isso conseguimos criar mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> operar no interior <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho,nas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, no espaço <strong>do</strong>s “autogovernos”, situações interroga<strong>do</strong>ras daforma como opera o espaço da gestão (on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> pressupostos éticopolíticos,que se refletem em lemas e missões, on<strong>de</strong> se intervém <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> público e/oupriva<strong>do</strong>, com compromissos <strong>de</strong> responsabilizações mais ou menos a<strong>de</strong>ridas aos usuários,etc...).Além disso, colocou-se em cheque tanto o mo<strong>do</strong> como se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bravam as realizações<strong>de</strong> um trabalho em ato com um outro trabalho em ato, cristaliza<strong>do</strong>s nos processosintercessores, <strong>de</strong>stes trabalhos, como construção conjunta trabalha<strong>do</strong>r-trabalha<strong>do</strong>r;quanto aqueles cristaliza<strong>do</strong>s pela relação trabalha<strong>do</strong>r-usuário expressos nas práticasprodutoras <strong>do</strong> acolhimento e <strong>do</strong> vínculo/responsabilização. Permitin<strong>do</strong> assim, analisaro quanto os trabalha<strong>do</strong>res estão efetivamente compromissa<strong>do</strong>s, ou não, com os processos<strong>de</strong> “autonomização” <strong>do</strong> usuário no seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> andar a vida, e com as ações <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesada vida individual e coletiva.Esta busca <strong>de</strong> ferramentas dispara<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>stes processos <strong>de</strong> interrogação sobre otrabalho vivo em ato, que po<strong>de</strong>m abri-lo para novos mo<strong>do</strong>s instituintes, e a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> seu compartilhamento público no interior <strong>do</strong>s coletivos <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res foi o gran<strong>de</strong><strong>de</strong>safio <strong>de</strong>stes trabalhos experimenta<strong>do</strong>s em serviços.No que toca em particular a relação <strong>de</strong> intersecção <strong>de</strong> um trabalho em ato comoutro em ato (trabalha<strong>do</strong>r-trabalha<strong>do</strong>r), operamos com uma ferramenta analisa<strong>do</strong>radistinta <strong>do</strong> fluxograma, e que é a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> petição e compromisso, o que permitiu abrir acaixa preta das relações micropolíticas institucionais, revela<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s tipos efetivos <strong>de</strong>contratos <strong>de</strong> relações que os vários agentes institucionais em cena realizam entre si, emum processo silencioso. Muitos <strong>do</strong>s quais obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> a um padrão <strong>do</strong> tipo “pacto damediocrida<strong>de</strong>” no qual o usuário sai sempre como o gran<strong>de</strong> prejudica<strong>do</strong>.12. Veja com mais precisão no texto “Agir em Saú<strong>de</strong>”, op. cit.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>139


Esta re<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser organizada em qualquer situação na qual se i<strong>de</strong>ntifique umcerto jogo entre forças institucionais bem territorializadas que realizam e cristalizaminteresses <strong>de</strong> distintos tipos e que se organizam com linhas <strong>de</strong> forças que disputam asvárias lógicas que a instituição esta expressan<strong>do</strong>, explícita ou implicitamente. De ummo<strong>do</strong> genérico uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> petição e compromisso para a análise <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho e <strong>do</strong> equipamento institucional <strong>de</strong>ve or<strong>de</strong>nar, para interrogar,uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> expectativas entre as unida<strong>de</strong>s produtoras que atuam no interior <strong>de</strong> umequipamento institucional governan<strong>do</strong> recursos e fins.Estes processos expõem privilegiadamente a dinâmica <strong>de</strong> presta<strong>do</strong>r consumi<strong>do</strong>rintra-equipamento, porém po<strong>de</strong>mos também com o mesmo abrir o jogo <strong>de</strong> expectativasenvolvi<strong>do</strong> na relação entre o serviço e o usuário final das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, procuran<strong>do</strong>problematizar as próprias disputas entre o que são necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção e <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> usuário, abrin<strong>do</strong> uma reflexão sobrerepresentações sociais <strong>do</strong> sofrimento como <strong>do</strong>ença e <strong>do</strong>s agravos como problemas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> e o seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> incorporação pelos serviços. Para em última instância perguntar:é <strong>de</strong>ste jeito que vale a pena trabalhar? é isto mesmo que queremos produzir comoresulta<strong>do</strong>s?Neste senti<strong>do</strong>, e para terem possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> viabilizar as respostas às questõesacima, o conjunto das ferramentas analisa<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>vem ter a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> instrumentalizaro conjunto <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res, como gestores efetivos <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho,em pelo menos três campos <strong>de</strong> interrogações sobre os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção e osprocessos gerenciais, e que são:a. <strong>de</strong>vem ter a capacida<strong>de</strong> e sensibilida<strong>de</strong>, como qualquer instrumento, para abrira caixa preta sobre “o como” se trabalha, e neste senti<strong>do</strong> revelar qualitativamenteo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar cotidianamente a construção <strong>de</strong> um certo mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>atenção em serviços concretos;b. <strong>de</strong>vem ter a capacida<strong>de</strong> e sensibilida<strong>de</strong> para revelar “o quê” este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>trabalhar está produzin<strong>do</strong>, e assim mostrar em que tipo <strong>de</strong> produtos eresulta<strong>do</strong>s se <strong>de</strong>semboca com este mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> operar o cotidiano <strong>do</strong> trabalho emum da<strong>do</strong> serviço;c. <strong>de</strong>vem também, pelo menos, ter a capacida<strong>de</strong> e sensibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> permitir ainterrogação sobre o “para quê” se está trabalhan<strong>do</strong>, tentan<strong>do</strong> revelar osinteresses efetivos que se impõem sobre a organização e realização cotidiana<strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> atenção nos diferentes serviços; este momento é privilegiadamenteuma interrogação sobre os princípios ético-políticos quecomandam a existência <strong>de</strong> um serviço <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.CONCLUSÃOCom toda esta análise e exemplificações estamos queren<strong>do</strong> <strong>de</strong>monstrar que asdistintas experiências, que buscam a mudança efetiva <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>,têm necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> incorporar novas questões ao nível <strong>do</strong>s processos micropolíticos <strong>do</strong>trabalho em saú<strong>de</strong>.Destacamos que as relações macro e micropolíticas na saú<strong>de</strong> encontram-se nosespaços <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho e das organizações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, e que as confi-140 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


gurações que adquirem passam necessariamente pela presença <strong>do</strong> trabalho vivo emato.Destacamos, também, que mais <strong>do</strong> que questionar o que ocorre nos serviços apartir <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo “a priori” <strong>de</strong> organização <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, quedispute com o já da<strong>do</strong>, o já instituí<strong>do</strong>, <strong>de</strong>vemos é <strong>de</strong>senvolver a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criarinterrogações sobre o que está ocorren<strong>do</strong>, abrin<strong>do</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r coletivoinventar mo<strong>do</strong>s novos e singulares <strong>de</strong> realizar o trabalho em saú<strong>de</strong> em situaçõesconcretas.Procuran<strong>do</strong> criar nos trabalha<strong>do</strong>res, através <strong>do</strong> uso <strong>de</strong> dispositivos interroga<strong>do</strong>res,a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> refletirem sobre duas questões chave para a configuração <strong>de</strong> qualquermo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção preocupa<strong>do</strong> centralmente com o usuário:Uma, que diz respeito ao mo<strong>do</strong> como se usa privadamente - com um compromissocom o coletivo <strong>de</strong> forma restritiva e com uma maneira <strong>de</strong> se responsabilizar eprestar contas <strong>do</strong> que se faz <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> limites <strong>do</strong> tipo corporativo - a capacida<strong>de</strong> eautonomia que to<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> tem <strong>de</strong> “autogovernar” o seu trabalho, porser como trabalha<strong>do</strong>r em ação o próprio trabalho vivo em ato. E, neste senti<strong>do</strong> po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>seinterrogar a essência <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> como vem se instituin<strong>do</strong> a gestão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong>trabalho, e a que interesses e intencionalida<strong>de</strong>s ele obe<strong>de</strong>ce; e, outra, que coloca emdúvida o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>los instituí<strong>do</strong>s captura<strong>do</strong>res, seus conteú<strong>do</strong>s tecnológicos epossibilida<strong>de</strong>s, abrin<strong>do</strong> a chance <strong>de</strong> pensar sobre seus pressupostos ético-políticos, esobre os procedimentos eficazes na produção <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s pretendi<strong>do</strong>s, com a capturaque fazem <strong>do</strong> trabalho vivo em ato; abrin<strong>do</strong> dúvidas quanto aos paradigmas persegui<strong>do</strong>s,permitin<strong>do</strong> interrogar mais sistematicamente os mo<strong>de</strong>los que têm servi<strong>do</strong>s como pre<strong>do</strong>minantese seus possíveis limites no mo<strong>do</strong> como o trabalho vivo vem se conforman<strong>do</strong>no seu interior.Com estas <strong>de</strong>scrições o que temos interroga<strong>do</strong> e leva<strong>do</strong> a campo é a relação entreo trabalho vivo em ato que é captura<strong>do</strong> por estes mo<strong>de</strong>los e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que omesmo seja <strong>de</strong>sterritorializa<strong>do</strong> e (ré)captura<strong>do</strong> para gerar o oposto, isto é, um melhorequacionamento <strong>do</strong> uso <strong>do</strong>s meios e <strong>do</strong>s benefícios produzi<strong>do</strong>s e uma diminuição da<strong>de</strong>pendência, geran<strong>do</strong>-se maior autonomia <strong>do</strong>s “usuários” nos seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> andar assuas vidas.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>141


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Gestão em Saú<strong>de</strong>: o Desafio <strong>do</strong>s Hospitaiscomo Referência para Inovações emto<strong>do</strong> o Sistema <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Pedro Ribeiro BarbosaALGUNS MOVIMENTOS PARA UMA NOVA GESTÃO EM SAÚDE: A GESTÃOHOSPITALAR ENQUANTO OPORTUNIDADE PARA NOVAS PRÁTICAS DEPLANEJAMENTO E ADMINISTRAÇÃO 1Debate recente tem levanta<strong>do</strong> novas possibilida<strong>de</strong>s para a gestão das organizaçõespúblicas no país. No processo <strong>de</strong> transformação <strong>do</strong> próprio Esta<strong>do</strong> brasileiro, algunsprincípios ganham corpo e buscam novas formas organizativas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a permitiremnovos papéis e novas performances às organizações públicas, não apenas hospitalares.Organizações em geral, bastante <strong>de</strong>sgastadas frente aos anseios e necessida<strong>de</strong>s sociais,mas também em relação aos seus membros, que a constituem e que com elas tão poucose i<strong>de</strong>ntificam e se comprometem.Neste artigo, a gestão hospitalar é valorizada enquanto área <strong>de</strong> conhecimentos epráticas diferenciadas no processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e implementação <strong>do</strong> SUS. Apenasmuito recentemente a saú<strong>de</strong> pública e os sanitaristas em geral, vêm tomar aorganização hospitalar enquanto preocupação a <strong>de</strong>mandar <strong>de</strong>senvolvimento teórico emsaú<strong>de</strong>, com a concomitante pressão para assumi-la profissionalmente. Por longo tempo,a área hospitalar ficou ao largo <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> Movimento Sanitário. Boa parte <strong>de</strong> to<strong>do</strong> oprocesso político e teórico <strong>de</strong> crítica ao mo<strong>de</strong>lo médico-assistencial previ<strong>de</strong>nciário, queteve seu alge no final <strong>do</strong>s anos 70, chegava mesmo a i<strong>de</strong>ntificar o hospital como umaespécie <strong>de</strong> vilão da crise que se alargava. A maior parte, senão a totalida<strong>de</strong> dasalternativas assistenciais passava um pouco a margem da opção hospitalar, no momentoem que era importante <strong>de</strong>nunciar e superar o mo<strong>de</strong>lo médico-hospitalar-individualcurativo,ampara<strong>do</strong> na compra <strong>de</strong> serviços priva<strong>do</strong>s com o financiamento da previdência.Os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> sucesso e <strong>de</strong> futuro eram aqueles que valorizavam a atenção básica.Algumas poucas iniciativas e proposições consi<strong>de</strong>ravam o papel <strong>do</strong> hospital no sistema.O Convêncio MEC-MPAS foi um <strong>de</strong>les, <strong>de</strong>stinan<strong>do</strong> não apenas recursos diferencia<strong>do</strong>s1. A separação entre administração e planejamento é intencional, pois assume-se como origem <strong>do</strong>planejamento em saú<strong>de</strong> no Brasil a <strong>do</strong>utrina cepalina que <strong>de</strong>senvolveu importantes aportes teóricos emeto<strong>do</strong>lógicos no campo <strong>do</strong> planejamento econômico-social na América Latina (Rivera, F. Javier (org.).Planejamento e Programação em Saú<strong>de</strong>: um enfoque estratégico. São Paulo. Ed. Cortez, 1989.;<strong>de</strong> outrola<strong>do</strong>, ao falar-se <strong>de</strong> administração, <strong>de</strong>nota-se o campo das teorias administrativas, classicamente voltadaspara o interior <strong>de</strong> organizações produtivas, fabris ou não.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>143


para os hospitais universitários, mas especialmente, contribuin<strong>do</strong> para inseri-los<strong>de</strong>finitivamente no sistema <strong>de</strong> atenção mais amplia<strong>do</strong>, ao mesmo tempo em que eramassumi<strong>do</strong>s como unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> referência maior nas suas localida<strong>de</strong>s. O Convênio MEC-MPAS foi precursor no processo <strong>de</strong> fortalecimento <strong>do</strong> setor público, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a fazerfrente à ampla hegemonia <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> contrata<strong>do</strong> no acesso e utilização <strong>do</strong>s recursosprevi<strong>de</strong>nciários. Depois vieram as Ações Integradas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Os antigos asilos <strong>do</strong> Ministérioda Saú<strong>de</strong> também operaram importantes transformações no início <strong>do</strong>s anos 80 2 ,quan<strong>do</strong> evoluíram com alguma dificulda<strong>de</strong> para hospitais gerais ou especializa<strong>do</strong>s,mas também inseri<strong>do</strong>s na lógica das respectivas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atenção 3 . O hospital, agoranão mais asilar, especialmente nos últimos 10 a 20 anos, também é espaço <strong>do</strong> sanitarista,agora um novo profissional, também um dirigente hospitalar, <strong>de</strong> serviços ou <strong>de</strong> sistemas,a ser forma<strong>do</strong> não no espaço exclusivo da administração, mas no espaço da gestão <strong>de</strong>organizações complexas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Ainda que outras iniciativas relacionadas com a áreahospitalar e a saú<strong>de</strong> pública possam ser i<strong>de</strong>ntificadas, não chegam a ser suficientes emarcantes no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> configurarem um espaço <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> no seio da Reforma Sanitária,entendida enquanto conjunto <strong>de</strong> teses e práticas progressistas e transforma<strong>do</strong>ras emsaú<strong>de</strong> no país. Será apenas nos anos 90, que a gestão hospitalar e a importância <strong>do</strong>hospital no SUS ganhará maior espaço <strong>de</strong> reflexão e <strong>de</strong> práticas inova<strong>do</strong>ras a seremconsi<strong>de</strong>radas. O momento é <strong>de</strong> evolução e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> SUS, ainda que tambémmarca<strong>do</strong> por crises <strong>de</strong> diversas naturezas. O hospital ou o nível <strong>de</strong> atenção hospitalar éparte importante <strong>de</strong>sse processo, tanto por ser foco <strong>de</strong> graves <strong>de</strong>núncias, quanto pelosurgimento <strong>de</strong> referências inova<strong>do</strong>ras e promissoras em termos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> assistenciale <strong>de</strong> gestão. Poucos hospitais no país chamam a atenção por suas performances. Éreforça<strong>do</strong> o <strong>de</strong>bate em torno <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los gerenciais hospitalares a serem difundi<strong>do</strong>s eaplica<strong>do</strong>s mais largamente em unida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> SUS. O hospital é recoloca<strong>do</strong> enquantoorganização diferenciada e igualmente estratégica, no processo <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> novose mais eficientes e eficazes mo<strong>de</strong>los assistenciais.O campo <strong>do</strong> planejamento e da tradicional administração experimentam no seioda saú<strong>de</strong> coletiva (especialmente com os aportes da epi<strong>de</strong>miologia), novos <strong>de</strong>safios enovos arranjos teóricos e práticos, mescla<strong>do</strong>s por insumos <strong>do</strong> próprio campo da saú<strong>de</strong>pública, agora oportunamente contamina<strong>do</strong>s com aportes tanto históricos quanto bemrecentes, advin<strong>do</strong>s das chamadas teorias organizacionais. Não que esse encontro <strong>de</strong>conhecimentos nunca tenha existi<strong>do</strong>, mas, com certeza, não havia ocorri<strong>do</strong> na profundida<strong>de</strong>e extensão com que se vê atualmente e que parece ser ainda um começo. Essamesclagem extremamente oportuna, encontra no seio da gestão hospitalar um terrenoextremamente fértil, <strong>de</strong>corrente especialmente ao fato <strong>do</strong> objeto, uma organização2. Uma importante análise sobre o processo <strong>de</strong> transformação <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sses hospitais po<strong>de</strong> ser encontradaem Lemos, Sheyla M. O Processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e implementação <strong>de</strong> objetivos numa organização <strong>do</strong>setor saú<strong>de</strong>: <strong>do</strong> conjunto sanatorial <strong>de</strong> Curicica ao Hospital <strong>de</strong> Clínicas Básicas Raphael <strong>de</strong> Paula eSouza. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>. EBAP/FGV, 1994, mimeo.3. São exemplos neste caso as transformações operadas nos hospitais psiquiátricos <strong>do</strong> Rio e no Hospital<strong>de</strong> Curicica, que se transformou a partir <strong>do</strong> antigo Sanatório Raphael <strong>de</strong> Paula Souza; outros hsopitaisasilares <strong>do</strong> MS também operaram semelhantes transformaçòes Adriano Jorge em Manaus, Barros Barretoem Belém e Maracanaú em Fortaleza; alguns asilos sob gestão estadual também o fizeram, como oHospital <strong>do</strong> Portão em Curitiba e o Hospital Júlia Kubschek em Belo Horizonte, para citar algunsexemplos; também vale o registro <strong>de</strong> que no processo <strong>de</strong> transformação <strong>do</strong>s hospitais <strong>do</strong> MS, foisignificativa a participação <strong>de</strong> profissionais sa área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, inicialmente através <strong>de</strong> umConvênio entre o MS e o Instituto <strong>de</strong> Medicina Social da Universida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro eque <strong>de</strong>pois evoluiu através <strong>de</strong> parceria entre o MS e a Escola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública, com a criaçãoem 1983 <strong>do</strong> atual Núcleo <strong>de</strong> Formação <strong>de</strong> Dirigentes Hospitalares.144 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


complexa o hospital, exigir para a sua condução eficiente e eficaz, aportes <strong>de</strong>conhecimentos, méto<strong>do</strong>s, técnicas e instrumentos que estejam condizentes com as práticasgerenciais mais avançadas, <strong>de</strong>senvolvidas em qualquer outra organização social <strong>de</strong>ponta. Até a pouco, a área <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, que inclusive não tinha o hospital enquantoespaço <strong>de</strong> atuação e <strong>de</strong> produção teórica, também não tinha a gestão <strong>de</strong> organizações,enquanto disciplina ou área <strong>de</strong> investimento profissional e institucional.De maneira geral, o tradicional campo <strong>do</strong> planejamento foi o que mais se modificoucom os novos <strong>de</strong>safios e a importante aproximação às teorias organizacionais. Hoje, emsaú<strong>de</strong>, as concepções teóricas e meto<strong>do</strong>lógicas <strong>do</strong> planejamento, mais disseminadas eassumidas no país como mais avançadas, po<strong>de</strong>m ser referenciadas em torno <strong>do</strong>planejamento estratégico-situacional (PES) 4 e <strong>de</strong> suas diversas aproximações. Esse corpoteórico e meto<strong>do</strong>lógico possui mais <strong>do</strong> que interfaces e intersecções com o campo dasteorias organizacionais e em saú<strong>de</strong>, forçosamente com a epi<strong>de</strong>miologia. Sob <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>spontos <strong>de</strong> vista, o PES po<strong>de</strong> e <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> enquanto partilhan<strong>do</strong> oterreno das abordagens organizacionais. Sem intenção <strong>de</strong> enveredar nesta tese, afirmaseapenas a convergência recente <strong>do</strong>s tradicionais campos <strong>do</strong> planejamento e daadministração, como historicamente aborda<strong>do</strong>s pela saú<strong>de</strong> pública. A gestão hospitalarem muito contribui para o terreno on<strong>de</strong> se fertiliza esse processo, ainda que não <strong>de</strong>forma exclusiva, pois a concepção e implementação <strong>de</strong> sistemas ou re<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scentralizadas<strong>de</strong> atenção também tem acumula<strong>do</strong> importantes contribuições e avanços.Ainda que se tenha alcança<strong>do</strong> avanços significativos no campo <strong>do</strong> planejamentoe da gestão em saú<strong>de</strong>, assume-se como imperiosa a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inovações reais, aonível <strong>do</strong>s sistemas e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> que novas conformações e práticasorganizacionais em saú<strong>de</strong> redun<strong>de</strong>m em melhores indica<strong>do</strong>res sanitários e <strong>de</strong> satisfação,tanto profissional como <strong>de</strong> seus clientes. Embora haja gran<strong>de</strong> consenso quanto ànecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mudanças no mo<strong>de</strong>lo assistencial e em sua gestão, são poucas aspropostas e iniciativas convergentes, que possam ser implementadas <strong>de</strong> forma maisextensiva no setor saú<strong>de</strong> e, especialmente, no parque hospitalar público brasileiro. Temsecomo consequência, um escasso consenso e pouca clareza sobre o que mudar ou paraon<strong>de</strong> mudar. Na área hospitalar, encontramos um conjunto significativo <strong>de</strong> iniciativas<strong>do</strong> tipo voluntarista, quase sempre conforman<strong>do</strong> propostas que estão mais preocupadasem escapar <strong>do</strong>s controles centrais e <strong>do</strong> processualismo da administração pública. Não épor acaso que as chamadas “fundações privadas <strong>de</strong> apoio” 5 provocam gran<strong>de</strong> simpatia,especialmente entre os dirigentes locais. Mais recentemente, opções por cooperativas<strong>de</strong> profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> também tem propicia<strong>do</strong> alterações político-organizativas, <strong>de</strong>maior ou menor envergadura 6 .Enten<strong>de</strong>-se que tal situação se <strong>de</strong>va, naturalmente, a enormes discrepâncias entreas realida<strong>de</strong>s organizacionais, o que origina diagnósticos os mais varia<strong>do</strong>s, mas tambémpor serem realida<strong>de</strong>s que vêm sen<strong>do</strong> explicadas a partir <strong>de</strong> categorias tomadas comosuficientes (excesso <strong>de</strong> controles e escassez <strong>de</strong> recursos) e que uma vez satisfeitas,gerariam soluções satisfatórias. O maior exemplo <strong>de</strong>ssa limitada análise, encontra-sena explicação que supervaloriza o volume escasso <strong>de</strong> recursos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s ao setor saú<strong>de</strong>e aos hospitais ou ainda, as suas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pagamento, consi<strong>de</strong>radas ina<strong>de</strong>quadas.4. Ao falar-se <strong>de</strong> planejamento estratégico-situacional (PES), tem-se como autor <strong>de</strong> referência o chilenoCarlos Matus, mas também diversos outros autores que tem contribuí<strong>do</strong> com o enfoque <strong>do</strong> planejamentoestratégico aplica<strong>do</strong> em saú<strong>de</strong>, tais como Mario Testa, F. Javier Uribe Rivera, Gastão Wagner, EmersonMerhy, Luís Carlos Cecílio, Jairnílson Paim, Eugênio Villaça, entre outros.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>145


Sem eliminar esta e outras dimensões explicativas, é necessário, no entanto, que sejamagrupadas e interrelacionadas outras causas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que seja facilitada aimplementação <strong>de</strong> alternativas <strong>de</strong> transformação mais abrangentes.Mas sobretu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ve fazer parte <strong>de</strong>sse processo <strong>de</strong> análise, a a<strong>de</strong>quada compreensãoda natureza mais específica das organizações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, particularmente hospitalares,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a permitir não apenas a construção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> referência paraanálises mais pertinentes, mas também, para que as soluções sejam mais ajustadas ea<strong>de</strong>quadas às condições e condicionamentos particulares <strong>de</strong>ste tipo organizacional, ohospital público.Procuran<strong>do</strong> satisfazer esses pressupostos, concebe-se a organização <strong>de</strong>ste texto,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que num primeiro momento, procura-se i<strong>de</strong>ntificar algumas dimensões aconcorrerem para a crise <strong>do</strong> setor hospitalar público. Em seguida são exploradas ascaracterísticas mais marcantes das organizações hospitalares públicas, tanto em seuscomponentes intrínsicos, <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s da natureza <strong>de</strong> seu trabalho, como em relação aoscondicionamentos advin<strong>do</strong>s da sua condição <strong>de</strong> vinculação à administração pública esua inserção no Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS).DIMENSÕES DA CRISE NO SETOR HOSPITALAR PÚBLICO:UMA REFERÊNCIA PARA OS DESAFIOS DE TODO O SISTEMAAo tomar esse tema para trabalho, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar a crise que envolveo setor saú<strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong> ao nível da atenção médica-hospitalar. Naturalmente que nãose preten<strong>de</strong> uma análise <strong>de</strong>ssa crise, mas ao menos uma localização das suas dimensõesque mais diretamente interagem com o que será trata<strong>do</strong> ao longo <strong>do</strong> texto.Vecina Neto e Malik (1991), propõem uma análise <strong>de</strong>sta crise a partir <strong>de</strong> trêsdimensões 7 . Uma primeira a nível estrutural, mais associada à importância política conferidaao setor, que se expressa na baixa priorida<strong>de</strong> enquanto área <strong>de</strong> governo. Isso po<strong>de</strong>ser diagnostica<strong>do</strong> pelos limita<strong>do</strong>s recursos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a área, mas também pelos baixossalários, pela qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços presta<strong>do</strong>s, pelo reduzi<strong>do</strong> controle social, peloscritérios clientelistas para ocupação <strong>de</strong> cargos <strong>de</strong> gerência, entre outros. O segun<strong>do</strong> grupo<strong>de</strong> causas encontra-se a nível organizacional, naturalmente que condicionadas pelasprimeiras. Entre tais causas, <strong>de</strong>stacam-se a inexistência <strong>de</strong> objetivos claramente <strong>de</strong>fi-5. Fundações privadas são organizações legalmente constituídas com personalida<strong>de</strong> jurídica própria eregidas pelo direito priva<strong>do</strong>; as fundações privadas <strong>de</strong> apoio são constituídas em função e ao la<strong>do</strong> <strong>de</strong>uma organização pública e formalmente com ela estabelecem relações formais (convênios), <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> aviabilizar através da fundação diversas ações e processos que legalmente não são possíveis naorganização <strong>de</strong> direito público adm. direta e mesmo indireta.6. Há distintas formas <strong>de</strong> inserir a lógica da cooperativa no setor saú<strong>de</strong>: como exemplo mais radical, nãoapenas terceiriza-se a responsabilida<strong>de</strong> pela prestação <strong>de</strong> serviços finalísticos para uma cooperativa <strong>de</strong>profissionais, ou para várias, como também vincula-se uma nova modadlida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pagamento, o prépagamentoper capita; neste caso o melhor exemplo se <strong>de</strong>u em boa parte <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> daPrefeitura <strong>de</strong> São Paulo, na gestão <strong>do</strong> Prefeito Paulo Maluf (93-96); outros exemplos <strong>de</strong> cooperativa,restringem-se à terceirização <strong>do</strong> trabalho à profissionais coopera<strong>do</strong>s, cujo contrato posui valor fixo,basea<strong>do</strong> no número <strong>de</strong> profssionais que a cooperativa obriga-se a manter no serviço; os exemplos estãoem alguns hospitais <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> janeiro, tanto estaduais, quanto municipais.146 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


ni<strong>do</strong>s, gerentes sem compromisso com a profissionalização, escassez <strong>de</strong> recursosfinanceiros, limitada utilização <strong>de</strong> instrumentos <strong>de</strong> gestão, tais como planejamento,orçamento, custos, sistemas <strong>de</strong> controle, etc.. Além <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, a completa ausência <strong>de</strong>padrões <strong>de</strong> trabalho, que limita a busca da eficiência e acrescenta-se, <strong>de</strong> eficácia. Noterceiro plano <strong>de</strong> análise, estão as causas <strong>de</strong> caráter individual, das quais faz parte alimitação profissional <strong>do</strong>s gerentes, que se sentem inseguros em suas funções, tanto porserem instáveis, sujeitos a trocas repentinas, como também pela ausência <strong>de</strong> capacitaçãoespecífica. Para os <strong>de</strong>mais funcionários, quase sempre o clima é <strong>de</strong> <strong>de</strong>smotivação e<strong>de</strong>scompromisso, estan<strong>do</strong> o gerente incapacita<strong>do</strong> para lidar com essa “<strong>de</strong>smotivaçãogeneralizada..., no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> oferecer-lhes, ao menos, objetivos organizacionais clarosa atingir, no mínimo como forma <strong>de</strong> garantir algum grau <strong>de</strong> compromisso, se não com aorganização, ao menos com suas tarefas” 8 .Depara-se com realida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gestão na sua maioria marcadas pela improvisação,pelas ações voltadas para emergências, pela gran<strong>de</strong> centralização e baixa autonomia<strong>do</strong>s dirigentes locais, pela ausência quase completa <strong>de</strong> compromissos com os resulta<strong>do</strong>sfinais, pela irracionalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> recursos, etc..É sabi<strong>do</strong> que a reversão <strong>de</strong>sse quadro não se dará por soluções parcializadas. Demaneira geral, a exclusiva injeção <strong>de</strong> recursos redundará quase sempre em maiores<strong>de</strong>sperdícios, caso não sejam acompanha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> novas práticas, forçosamente amparadasem bases <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> social e profissionalismo renova<strong>do</strong>. Aqui, referin<strong>do</strong>-se ato<strong>do</strong>s os profissionais, não apenas aos dirigentes, o que <strong>de</strong>manda uma imperiosanecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação da cultura que hoje impregna tais organizações, expressa,<strong>de</strong> maneira geral, por práticas profissionais <strong>de</strong> limita<strong>do</strong> compromisso com a razão <strong>de</strong>ser <strong>de</strong>ssas organizações: a satisfação <strong>de</strong> seus usuários e a otimização <strong>de</strong> seus recursos.Portanto, transformar tais organizações significará um pouco mais <strong>do</strong> que anecessária, mas não suficiente, elevação <strong>do</strong> montante <strong>de</strong> recursos a serem aloca<strong>do</strong>s.Neste quadro <strong>de</strong> crise relativamente profun<strong>do</strong> e extenso em que estão envolvidasas organizações hospitalares públicas brasileiras, seus dirigentes tornam-se merospersonagens, na maioria das vezes leva<strong>do</strong>s por ela, poucas vezes conseguin<strong>do</strong> dimensioná-lamais <strong>de</strong>tidamente. Para a maioria <strong>de</strong>les, o “fio da meada” para o seu enfrentamentoé o problema que lhes espera ao chegar a cada dia ao seu hospital. Com certeza,até hoje, não foram poucos os problemas enfrenta<strong>do</strong>s e supera<strong>do</strong>s. Mas ao final <strong>do</strong> dia,poucos saem <strong>de</strong> seus hospitais com o espírito renova<strong>do</strong>, por terem alcança<strong>do</strong> resulta<strong>do</strong>smarcantes. A maioria das vezes, ainda carregam a sensação <strong>de</strong> frustração, por nãoconseguirem concretizar planos que acalentam e que po<strong>de</strong>m mudar o hospital. O tempose esvai rapidamente, muitas vezes os planos também!Depois <strong>de</strong> alguns anos <strong>de</strong> <strong>do</strong>cência em administração hospitalar, não é difícilperceber o quanto a maioria <strong>de</strong>sses profissionais se entregam às suas causas, buscan<strong>do</strong>levar seus hospitais à frente. Não sem angústia e muito <strong>de</strong>sgaste, por se verem limita<strong>do</strong>snas suas práticas cotidianas, ao mesmo tempo em que os obstáculos se repetem e seavolumam. Enfrentam uma realida<strong>de</strong> on<strong>de</strong> as <strong>de</strong>cisões programadas são exceções. Nãosão poucos os que já passaram por <strong>de</strong>cisões cruéis, <strong>do</strong> tipo “A Escolha <strong>de</strong> Sofia” 9 . Que7. Malik, Ana Maria e Vecina Neto, Gonzalo. Desenhan<strong>do</strong> Caminhos Alternativos para a Gerência <strong>de</strong>Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, São Paulo, mimeo, 1991. pp.1-3.8. Malik, Ana Maria e Vecina Neto, Gonzalo. op.cit. p. 2.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>147


organizações e que mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> gestão são esses, on<strong>de</strong> seus diretores, quase sempremédicos, são chama<strong>do</strong>s a partilhar <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>sse tipo?Neste trabalho, o campo da gestão e <strong>do</strong> profissionalismo na gestão hospitalar sãoassumi<strong>do</strong>s enquanto estratégias não apenas para o enfrentamento da crise, masespecialmente, visan<strong>do</strong> à condução <strong>de</strong>ssas organizações. Essas organizações necessitamser conduzidas e isto é algo mais <strong>do</strong> que simplesmente existirem e estarem a mercê <strong>de</strong>inúmeros condicionamentos e por eles erraticamente serem levadas. Assim, seuscondicionamentos, sejam oportunida<strong>de</strong>s, sejam fraquezas e limitações, <strong>de</strong>vem seri<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s e compreendi<strong>do</strong>s. Compreen<strong>de</strong>r os fatores intervenientes na dinâmica dasorganizações, é no mínimo estar atento ao que interfere na vida <strong>de</strong> qualquer pessoa,pois a sua quase totalida<strong>de</strong> está permanentemente nas organizações ou <strong>de</strong>las sofren<strong>do</strong>algum efeito 10 . Mas quanto aos dirigentes, estes não apenas estão nos hospitais, não sãoseus pacientes, fornece<strong>do</strong>res ou funcionários, assim como num avião, o piloto não é umpassageiro a mais! Conhecer a complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um avião intercontinental, no caso <strong>de</strong>um piloto, é uma interessante analogia para o diretor hospitalar. Esse conhecimentopara o piloto, não significa que ele <strong>de</strong>va saber fazer a manutenção <strong>de</strong> sua turbina, omesmo para o diretor em relação ao seu tomógrafo. Mas ambos são ou <strong>de</strong>vem serresponsáveis por uma “rota” e mesmo, “rotas alternativas” para suas “organizações”.Também <strong>de</strong>vem saber a importância <strong>de</strong> todas as partes, interações internas e externas,necessida<strong>de</strong>s, insumos e produtos, relaciona<strong>do</strong>s com sua organização, para com elesinteragir, valorizan<strong>do</strong> permanentemente a razão <strong>de</strong> ser <strong>do</strong> to<strong>do</strong> organizacional ou seja,ser elemento vital para a sua eficiência e eficácia.É inegável e cada vez mais inadiável, a necessida<strong>de</strong> que a gestão hospitalar públicatem <strong>de</strong> encontrar novos caminhos, que seus diretores, ainda que muitos não seapresentem como conscientes <strong>de</strong>ssa obrigação, sejam cada vez mais, condutores <strong>de</strong> suasorganizações.A COMPLEXIDADE DAS ORGANIZAÇÕES HOSPITALARESNo campo da gestão, teoria e prática, já é bastante difundida a noção <strong>de</strong> que oshospitais encontram-se entre as organizações mais complexas que existem. Essa noção<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> encerra pelo menos duas dimensões. Uma primeira relacionada àorganização <strong>do</strong> trabalho em si, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> tanto o processo, como o produto. Asegunda, em consequência, <strong>de</strong>corre das exigências para a sua condução, o que significaa coor<strong>de</strong>nação das ações específicas <strong>de</strong> cada parte <strong>de</strong>sse trabalho, no intento <strong>do</strong> alcance<strong>de</strong> produtos e resulta<strong>do</strong>s globais em níveis <strong>de</strong> eficiência e eficácia.9. Diversas matérias jornalísticas nos últimos anos vem veiculan<strong>do</strong> as precárias condições <strong>de</strong> trabalhonos hospitais públicos brasileiros; esse tema é trata<strong>do</strong> em reportagem da Revista Veja <strong>de</strong> 18/08/93 <strong>do</strong>jornalista Elio Gaspari, sen<strong>do</strong> tomada como ilustrativa; expressa uma analogia ao famoso filme em queuma mãe durante a II Gran<strong>de</strong> Guerra, é colocada diante da situação em que <strong>de</strong>ve escolher um <strong>de</strong> seus<strong>do</strong>is filhos para salvar das mãos <strong>do</strong>s nazistas; o outro fatalmente morreria; em vários hospitais, essaescolha já é feita, como por exemplo, no caso <strong>de</strong> <strong>do</strong>is pacientes que necessitam respira<strong>do</strong>r (aparelhopara manter função respiratória disponível em setores <strong>de</strong> emergência e centro <strong>de</strong> terapia intensiva) e háapenas um disponível; o médico, com assentimento <strong>de</strong> seu diretor ou mesmo orienta<strong>do</strong> por ele, <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>em qual paciente utilizar o aparelho; o outro...; na matéria <strong>de</strong> fortes <strong>de</strong>poimentos quanto a esse tema <strong>de</strong>diversos profissionais, incluin<strong>do</strong> diretores <strong>de</strong> hospitais no Rio e em S. Paulo.148 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Portanto, a perspectiva <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los gerenciais aplicáveis às organizaçõeshospitalares, forçosamente exige compreensão acerca da natureza particularda sua complexida<strong>de</strong>.As formulações sobre as organizações, que compõem o campo da Teoria dasOrganizações, ou como prefere Motta (1990), das teorias organizacionais 11 , constituemcampo bastante vasto, embora num perío<strong>do</strong> histórico relativamente curto, sen<strong>do</strong> que, aevolução <strong>do</strong>s conhecimentos não tem necessariamente, provoca<strong>do</strong> <strong>de</strong>scarte <strong>de</strong>contribuições anteriores. O que se percebe é mais um processo cumulativo on<strong>de</strong> novasênfases e abordagens tratam <strong>de</strong> subordinar lógicas formuladas anteriormente. Po<strong>de</strong>-sedizer que esse processo traduz mesmo os limites para se produzir “teorias” queexpressem toda a complexida<strong>de</strong> que cercam as organizações. Dussault (1992) em poucaspalavras i<strong>de</strong>ntifica as principais abordagens que historicamente se apresentaram.“A visão <strong>de</strong>las (teorias das organizações) passou <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s programáveis, funcionan<strong>do</strong>como máquinas, a sistemas complexos.... Gradualmente, a visão racionalista e positivista (“onebest way”) foi trocada por outra que aceitava a existência da inter<strong>de</strong>terminação (contingência) e,mais recentemente, segun<strong>do</strong> uma nova corrente da literatura (Lincoln 1985, Weick 1989) comuma visão naturalística, que enfatiza a complexida<strong>de</strong>, o caráter sistêmico, holográfico...” 12 .Há ainda outras formas <strong>de</strong> explicar as organizações. O uso <strong>de</strong> metáforas é uma<strong>de</strong>las, sen<strong>do</strong> Morgan (1991) um autor <strong>de</strong> referência nessa forma <strong>de</strong> teorizar as organizações.São conhecidas as suas metáforas 13 , que possibilitam explicar o funcionamentodas organizações, o que “ilustra eloquentemente a dificulda<strong>de</strong> da teorização <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong>tão complexa” 14 .A opção neste trabalho, para explicação das organizações hospitalares estáamparada na lógica construída por Mintzberg (1989), que “as consi<strong>de</strong>ra em termos <strong>de</strong>configurações, isto é, <strong>de</strong> sistemas típicos <strong>de</strong> relações entre atributos básicos, cada uma(configuração) ten<strong>do</strong> características, mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> funcionamento e problemas específicos” 15 .Para a diferenciação organizacional, Mintzberg (1989) trabalha com algumascombinações <strong>de</strong> variáveis. Um primeiro grupo <strong>de</strong> variáveis, é construí<strong>do</strong> a partir dai<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> partes componentes <strong>de</strong> qualquer organização, sen<strong>do</strong> elas: o centrooperacional, on<strong>de</strong> se localizam os opera<strong>do</strong>res que produzem os bens ou serviços típicosda organização; o centro <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, on<strong>de</strong> estão os dirigentes; o nível intermediário (mid<strong>de</strong>line), composto por gerentes e supervisores; a tecnoestrutura, on<strong>de</strong> se localizam osespecialistas, técnicos ou analistas que planejam o trabalho <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res e; o pessoal<strong>de</strong> apoio 16 .O outro conjunto <strong>de</strong> variáveis consi<strong>de</strong>radas, diz respeito aos mecanismos <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação<strong>do</strong> trabalho, que po<strong>de</strong>m ser: <strong>de</strong> ajuste mútuo, supervisão direta e ainda <strong>de</strong>padronização <strong>de</strong> qualificações, <strong>de</strong> processos, <strong>de</strong> produtos e <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> comportamento17 .10. Essas idéias <strong>de</strong>rivam da compreensão <strong>de</strong> Etzioni <strong>de</strong> que cada vez mais as pessoas nascem, vivem emorrem por ação direta das organizações; vive-se uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> organizações; Etzioni, Amitai. in:Lemos, Sheyla. “O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e implementação <strong>de</strong> objetivos numa organização <strong>do</strong> setorsaú<strong>de</strong>: <strong>do</strong> conjunto sanatorial <strong>de</strong> Curicica ao Hospital das Clínicas Raphael <strong>de</strong> Paula Souza” Tese <strong>de</strong>Mestra<strong>do</strong> EBAP/FGV, mimeo 1993.p.4.11. Motta, Fernan<strong>do</strong> C. Prestes., Teoria da Administração: alcance, limites, perspectivas. mimeo., ENSP/FIOCRUZ/FUNDAP, out. 1990, RJ. p.4.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>149


Um terceiro conjunto <strong>de</strong> variáveis são <strong>de</strong>signa<strong>do</strong>s por Mintzberg <strong>de</strong> parâmetrosbásicos, que compreen<strong>de</strong>m: o grau <strong>de</strong> especialização das funções, <strong>de</strong> formalização <strong>do</strong>scomportamentos, o tipo <strong>de</strong> treinamento necessário, <strong>de</strong> agrupamento das unida<strong>de</strong>s (tipo<strong>de</strong> <strong>de</strong>partamentalização), <strong>do</strong>s mecanismos <strong>de</strong> ligação entre as unida<strong>de</strong>s, <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong>planejamento e <strong>de</strong> controle e finalmente, <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> centralização das <strong>de</strong>cisões 18 .Por último, enquanto variáveis a se combinar para a conformação das configurações,há os fatores contingentes ou situacionais, on<strong>de</strong> se enquadram a ida<strong>de</strong> daorganização, seu tamanho, o sistema técnico <strong>de</strong> produção, a complexida<strong>de</strong> tecnológica(essencialmente equipamentos), o nível <strong>de</strong> estabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ambiente e a organização <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r (nível <strong>de</strong> autonomia em relação a controle externo) 19 .São sete as configurações concebidas por Mintzberg, que expressam sete combinaçõestípicas entre o conjunto <strong>de</strong> variáveis apresentadas. Neste caso, importa a configuraçãoprofissional que em função <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong> será especialmente <strong>de</strong>senvolvida. Noentanto, está ressalva<strong>do</strong> a própria compreensão <strong>do</strong> autor, <strong>de</strong> que numa mesma organização,convivem todas as configurações, sen<strong>do</strong> uma <strong>de</strong>las a que mais se sobressai 20 .O conceito <strong>de</strong> organizações profissionais, é assumida neste trabalho, como categoria<strong>de</strong> referência para a caracterização <strong>do</strong>s hospitais. Nas organizações profissionais, avariável mais expressiva está no fato <strong>de</strong> que o trabalho finalístico, próprio <strong>de</strong> seu centrooperacional, exige qualificações <strong>de</strong> nível eleva<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> dificilmente passíveis <strong>de</strong>formalização e normatização. O centro operacional ten<strong>de</strong> a ser a parte mais <strong>de</strong>senvolvidae forte da organização. O mecanismo <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> trabalho que prevalece estábasea<strong>do</strong> na padronização das qualificações. Esse saber e as habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidassão alcançadas em to<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> formação profissional, exterior e quase sempreantece<strong>de</strong>nte à condição <strong>de</strong> vínculo numa dada organização 21 .Essa condição, on<strong>de</strong> o profissional é porta<strong>do</strong>r <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong>s construídasin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente da organização e que também são legitimadas por fora, ao nível <strong>de</strong>órgãos classistas e científicos <strong>de</strong> base corporativa, tem por consequência uma fracavinculação entre profissional e organização, on<strong>de</strong> o primeiro <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da segunda apenaspara prover os meios necessários à sua prática, sen<strong>do</strong> esta bastante <strong>de</strong>terminada por simesmo. Significa dizer que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão sobre o seu trabalho é bastante pessoal e,on<strong>de</strong> a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> controle da organização sobre este trabalho fica portanto, limitada.Mintzberg (1989) assinala que esses profissionais ten<strong>de</strong>m a possuir maior compromissocom sua tarefa e com sua profissão (expressos por seus órgãos <strong>de</strong> classe), versus ocompromisso com o to<strong>do</strong> organizacional.12. Dussault, Gilles. A Gestão <strong>do</strong>s Serviços Públicos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: características e exigências, Rev.Adm.Publ.,RJ, n.2, vol.26, FGV, 1992. pp.9-1013. Esse autor concebe oito metáforas, cada uma <strong>de</strong>las traduzin<strong>do</strong> uma ênfase a ser valorizada na forma <strong>de</strong>compreen<strong>de</strong>r as organizações e assim, caracterizá-las e diferenciá-las; são elas: a máquina, o organismo,o cérebro, a cultura, o sistema político, o presídio psíquico, fluxos e transformações e um instrumento<strong>de</strong> <strong>do</strong>minação; MORGAN, Gareth. Images of Organizations, USA, 3a ed, Sage Publications, Inc.,1991.14. Dussault, Gilles.op.cit. p.1015. I<strong>de</strong>m.Ibi<strong>de</strong>m. p.1016. MINTZBERG, Henry. Mintzberg on Management: insi<strong>de</strong> our strange world of organizations. The FreePrees, New York, 1989. pp.98-100.17. MINTZBERG, Henry. op.cit. p.101.18. I<strong>de</strong>m.Ibi<strong>de</strong>m. p.103-105.150 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Os profissionais operam com base na perícia, também fonte <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r, enfatizan<strong>do</strong>a autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s especialistas 22 . Há, especialmente para o médico, uma importanteautonomia em relação às suas <strong>de</strong>cisões técnico-profissionais, com um conseqüente<strong>de</strong>safio: como coor<strong>de</strong>nar a existência <strong>de</strong> trabalhos com significativa autonomia, a sermesmo assegurada em algum nível, articulan<strong>do</strong>-os racionalmente em torno <strong>de</strong> umamissão e objetivos pactua<strong>do</strong>s para a organização como um to<strong>do</strong>?Nas organizações profissionais, o papel da tecnoestrutura, <strong>do</strong> nível intermediárioe mesmo <strong>de</strong> seu centro <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão, é limita<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong> como referência o grau <strong>de</strong>condicionamento sobre o trabalho <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res, no caso <strong>de</strong> um hospital, seus médicose, no caso <strong>de</strong> uma universida<strong>de</strong>, seus professores e/ou pesquisa<strong>do</strong>res.Segun<strong>do</strong> Dussault (1992), os profissionais vão tentar controlar a organização paramanter e até mesmo reforçar o seu po<strong>de</strong>r sobre as <strong>de</strong>cisões que influenciam o seu trabalho.Nesse caso, os profissionais buscam ocupar espaços em outros setores organizacionais,seja no centro <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão (os médicos passam a ser dirigentes também), ao nível datecnoestrutura (interferin<strong>do</strong> nas condições <strong>de</strong> trabalho tecnologia, procedimentos geraiscomo mecanismos <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> recursos, <strong>de</strong> salários, <strong>de</strong> outros prêmios, etc.) emesmo nas ativida<strong>de</strong>s logísticas 23 .Dussault (1992) faz uma outra observação <strong>de</strong> suma importância para que secompreenda o contexto e as exigências <strong>de</strong> aperfeiçoamento da gestão em organizações<strong>de</strong> tipo profissionais. Diz esse autor: “Autonomia profissional ten<strong>de</strong> a favorecer a segmentaçãoem grupos (<strong>de</strong> profissionais) com interesses divergentes, o que explica a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> sefazer mudanças na organização inteira. Para<strong>do</strong>xalmente, mudanças acontecem facilmente, aonível das unida<strong>de</strong>s, justamente por causa da autonomia <strong>do</strong>s opera<strong>do</strong>res” 24 .Esse para<strong>do</strong>xo, po<strong>de</strong> ser trabalha<strong>do</strong> como problema tipo oportunida<strong>de</strong> para organizaçõesprofissionais que optem por mo<strong>de</strong>los gerenciais <strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>s e com sistemas<strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação basea<strong>do</strong>s enfaticamente nos resulta<strong>do</strong>s, como explora<strong>do</strong> adiante.É inegável que sejam organizações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r comparti<strong>do</strong>. Mesmo entre os profissionais,como assinala Lemos (1994), há uma tendência para o isolamento entre si, <strong>de</strong>grupos e mesmo sub-grupos, com o surgimento <strong>de</strong> objetivos diferentes, “on<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong>especialistas médicos, ten<strong>de</strong>m a abordar os problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, enfática ou exclusivamente apartir da perspectiva da sub-especialida<strong>de</strong> em questão” 25 .Não é difícil perceber que tal processo gere repercussões negativas sobre o to<strong>do</strong>organizacional, on<strong>de</strong> objetivos pulveriza<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>sconexos comprometem os resulta<strong>do</strong>sfinais da organização.A natureza <strong>do</strong> trabalho médico possui ainda uma outra importante característica,qual seja a <strong>de</strong> ser consumi<strong>do</strong> no próprio processo <strong>de</strong> produção e on<strong>de</strong> cada processoapresenta singularida<strong>de</strong>s condicionadas pelo cliente. São processos não padronizáveis,com muito pouca tolerância ao erro e bastante <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s pelo po<strong>de</strong>r/saberprofissional, que condiciona enormemente a sua <strong>de</strong>cisão a cada tarefa enfrentada.19. I<strong>de</strong>m.Ibi<strong>de</strong>m. p.106-109.20. Essa noção é interessante e significa compreen<strong>de</strong>r cada configuração enquanto uma força que age juntocom as <strong>de</strong>mais (forças) numa tensão dialética, on<strong>de</strong> cada uma possui pesos específicos e sen<strong>do</strong> uma<strong>de</strong>las mais potente, com isso, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> um tipo organizacional particular.21. Mintzberg, Henry, op.cit.p.174-176.22. Lemos, Sheyla. op.cit.p.120.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>151


OS CONDICIONAMENTOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICAA seguir, são apresentadas algumas características particulares das organizaçõesvinculadas a administração pública. É natural no entanto, que em cada organizaçãopública, essa condição e suas consequências, se expressem diferentemente, o que levaMotta (1989) a utilizar o termo “repleto <strong>de</strong> incongruências e ambigüida<strong>de</strong>s” quan<strong>do</strong> se reportaa algumas características da administração pública 26 . Mas também é preciso compreen<strong>de</strong>rtais características no quadro mais geral da própria administração pública, procuran<strong>do</strong>ainda i<strong>de</strong>ntificar os imediatos e potenciais condicionamentos às suas organizações.Uma condição que afeta particularmente as organizações públicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, dizrespeito ao fato <strong>de</strong>stas comporem o Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS) 27 . Essa condiçãoadicional, traz consequências importantes, entre elas a própria tendência a uniformida<strong>de</strong><strong>de</strong> regras extensivas a todas as organizações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>, muitas vezes,as suas especificida<strong>de</strong>s. No caso <strong>do</strong> SUS as regras uniformizadas <strong>de</strong> financiamento sãoum exemplo, assim como todas as <strong>de</strong>mais regulamentações universais específicas <strong>do</strong>setor público <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Dussault (1992) concorda que as organizações públicas sejam mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<strong>do</strong> ambiente socio-político <strong>do</strong> que as <strong>de</strong>mais e afirma que “seu quadro <strong>de</strong> funcionamento éregula<strong>do</strong> externamente à organização” 28 .Neste caso, uma das dimensões da regulação está <strong>de</strong>terminada pelos sistemas <strong>de</strong>controles, enfaticamente sobre os meios e os processos. Esses controles, externos e centraliza<strong>do</strong>s,são em geral extensivos, não importan<strong>do</strong> a diversida<strong>de</strong> organizacional e ascaracterísticas <strong>de</strong> cada processo <strong>de</strong> trabalho. Dussault (1992) <strong>de</strong>fine essa regulaçãoexterna indiferenciada <strong>de</strong> “contaminação burocrática” 29 .Do la<strong>do</strong> das organizações, o melhor seria que não houvesse controles, não seconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira geral, a substituição das lógicas <strong>do</strong>s controles sobre os meios,para controles sobre os fins. A dimensão corporativa, <strong>de</strong> auto-<strong>de</strong>fesa, refratária àprestação <strong>de</strong> quaisquer contas, prevalece, configuran<strong>do</strong> o que Campos (1990) <strong>de</strong>nomina<strong>de</strong> “imunida<strong>de</strong> a controles externos” 30 . A administração pública e suas regras, ten<strong>de</strong>m areagir com aumento <strong>do</strong>s controles, sobre os meios, mais uma vez!. Configura-se umatendência ao exagero <strong>de</strong> normas e ao seu “formalismo” 31 , uma vez ser comum, como dizCampos (1990), “o <strong>de</strong>srespeito ao seu cumprimento”, chegan<strong>do</strong> mesmo a ser popular anoção <strong>de</strong> que tal lei ou norma po<strong>de</strong> pegar ou não pegar, mesmo porque algumas “não são<strong>de</strong>stinadas a serem obe<strong>de</strong>cidas” 32 .Como resulta<strong>do</strong>. a racionalida<strong>de</strong> burocrática, que expressa o pretenso valor <strong>do</strong>cumprimento <strong>de</strong> normas <strong>de</strong> processo, prevalece sobre a racionalida<strong>de</strong> sobre os resulta<strong>do</strong>s.Aqui é possível se fazer uma digressão sobre o que significa a lógica burocráticaaplicada a organizações <strong>do</strong> tipo profissional, como é o caso <strong>de</strong> hospitais. Como vistoanteriormente, com os aportes <strong>de</strong> Mintzberg (1989) e Dussault (1992), a burocraciacentraliza<strong>do</strong>ra seria característica <strong>do</strong>minante <strong>de</strong> organizações mecanísticas, on<strong>de</strong> omecanismo <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação principal é a padronização <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> produção. Quan<strong>do</strong>o principal mecanismo <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação <strong>do</strong> trabalho é a padronização <strong>de</strong> qualificações, a23. Dussault, Gilles.op.cit. p.1124. I<strong>de</strong>m.Ibi<strong>de</strong>m. p.1125. LEMOS, Sheyla. op.cit.p.121.152 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


lógica burocrática acaba por não surtir efeito, servin<strong>do</strong> mesmo para gerar disfunçõesorganizacionais.A administração pública, apesar <strong>de</strong> conter organizações diversas, com vários tipos<strong>de</strong> trabalho e portanto, necessitan<strong>do</strong> <strong>de</strong> diferentes mecanismos <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação e controle,ainda é uma gran<strong>de</strong> burocracia. Castor e França (1986), afirmam que a “administraçãopública brasileira tem si<strong>do</strong> fortemente fascinada pela uniformida<strong>de</strong>.... Apesar <strong>do</strong>s baixos níveis<strong>de</strong> eficiência e a<strong>de</strong>quação <strong>de</strong>sses sistemas (nacionais)...” 33 .A centralização da administração pública é uma condição associada à sua lógicaburocrática e também impacta fortemente a performance das suas organizações. A limitadaautonomia local é a sua contrapartida. Como já referi<strong>do</strong> acima, a centralização expressasequase exclusivamente sobre os meios.Assim, a centralização é sem dúvida um gran<strong>de</strong> obstáculo à melhor performanceorganizacional. A baixa governabilida<strong>de</strong>, praticamente sinônimo <strong>de</strong> baixa autonomia,condiciona negativamente as regras <strong>de</strong> direcionalida<strong>de</strong> e responsabilida<strong>de</strong>, ainda que aprimeira se apresente como regra mais condicionada 34 .A <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> objetivos, outra categoria a ser consi<strong>de</strong>rada na análise das organizaçõespúblicas, também está forçosamente referida a fortes condicionamentos <strong>do</strong>sistema maior. Os objetivos seriam <strong>de</strong> competência local, nos limites que os meiospossibilitam e obe<strong>de</strong>cidas diretrizes centrais. No entanto, centralmente, associada àênfase <strong>de</strong> controles nos meios e processos, as diretrizes enquanto expressão <strong>de</strong> políticas,se traduzem em uma in<strong>de</strong>finição generalizada <strong>de</strong> objetivos. Segun<strong>do</strong> Lemos (1994),apoiada em Motta (1985), há dificulda<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s dirigentes para assumir objetivosclaramente especifica<strong>do</strong>s nos níveis centrais, assim, “se não se sabe claramente o que se<strong>de</strong>ve fazer, e se também, não se tem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> <strong>de</strong>cidir como fazer, qualquer coisa que se faça po<strong>de</strong>ser apresentada como satisfatória” 35 .Essa condição <strong>de</strong> pouca clareza na <strong>de</strong>finição externa <strong>de</strong> objetivos não eliminapara as organizações públicas, o que salienta Thompson (1976), <strong>de</strong> que além <strong>do</strong>s objetivospróprios, <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s no seu interior, haverá os objetivos “para” a organização,propostos a partir <strong>de</strong> fora 36 . Os objetivos “para” a organização, são <strong>de</strong>terminantes parao seu próprio surgimento. Esses objetivos <strong>de</strong> fora, que são mesmo antece<strong>de</strong>ntes a elaprópria, po<strong>de</strong>m vir a conflitar com novos objetivos que se <strong>de</strong>senvolvam no seu interior,ou ao contrário, quan<strong>do</strong> os objetivos <strong>de</strong> fora se modificam.Para uma organização que compõe um sistema (<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>), essa (<strong>de</strong>s)harmonia<strong>de</strong> objetivos é ainda mais importante. O princípio <strong>de</strong> complementarieda<strong>de</strong> (<strong>de</strong> objetivos),expressa o quanto os objetivos <strong>de</strong> uma dada organização só se justificam quan<strong>do</strong>articula<strong>do</strong>s àqueles das <strong>de</strong>mais organizações <strong>do</strong> sistema ou pelo menos das organizações26. MOTTA, Paulo R. Gestão Governamental: a busca <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição e <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise.Síntese da palestra realizada na FUNDAP, S.Paulo, mimeo.,1989. p.8.27. O Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> está <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> constitucionalmente, através <strong>do</strong> artigo 198 da Constituição <strong>de</strong>5/10/88 e regulamenta<strong>do</strong> na Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong> n. 8080/9028. DUSSAULT, Gilles. A Gestão <strong>do</strong>s Serviços Públicos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: características e exigências. Rev.Adm.Pub,Rio <strong>de</strong> Janeiro, 26 (2), 1992. p.13.29. DUSSAULT. Gilles. op.cit. p.13.30. CAMPOS, Ana Maria. Accountability: Quan<strong>do</strong> po<strong>de</strong>remos traduzi-la para o português? Rev.Adm.Publ.Rio <strong>de</strong> Janeiro, 24 (2)30-50, 1990. p.42.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>153


com que mantém maiores interações. Aqui resi<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>safio para as organizaçõespúblicas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Uma outra dimensão a ser analisada e característica da adminstração pública,está relacionada com o caráter compulsório <strong>de</strong> atendimento a clientela, on<strong>de</strong> as necessida<strong>de</strong>ssociais emergem como direitos, sem correspondência a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong> recursospara satisfação das pressões <strong>de</strong> consumo. Dussault (1992) diz que “as organizações públicastem o <strong>de</strong>ver (grifo nosso) <strong>de</strong> prestar atendimento, o que não existe no setor priva<strong>do</strong>”. Continuao autor: “o que significa em princípio, que não existe a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> selecionar a clientela, osproblemas a aten<strong>de</strong>r, nem os serviços a produzir” 37 . É interessante perceber como tal“princípio” não é universalmente aplica<strong>do</strong> às organizações públicas, a maioria <strong>de</strong>laspor <strong>de</strong>scompromisso público, <strong>de</strong>scaso com a clientela ou mesmo por tu<strong>do</strong> isso soma<strong>do</strong>à busca por mais recursos. Explica-se: o atual mecanismo <strong>de</strong> financiamento das ativida<strong>de</strong>shospitalares públicas, prestadas em serviços estatais ou priva<strong>do</strong>s contrata<strong>do</strong>s, basea<strong>do</strong>na remuneração por uma tabela <strong>de</strong> preços mais vantajosa para alguns procedimentos eextremamente <strong>de</strong>svantajosa para outros, acarreta a preferência por atendimentos <strong>de</strong>casos melhor remunera<strong>do</strong>s.Mas se essa condição acima <strong>de</strong>scrita é verda<strong>de</strong>ira, também o é a <strong>de</strong> que as organizaçõespúblicas não são regidas por leis <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, <strong>de</strong>las não se cobran<strong>do</strong> eficiênciae nem sen<strong>do</strong> punidas por seus escassos resulta<strong>do</strong>s, tanto quantitativos, quantoqualitativos. Uma organização pública raramente fecha e praticamente nunca vai àfalência, mesmo com gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sequilíbrios, inclusive financeiros. A sua sobrevivênciaestá assegurada na sua própria origem!Há ainda as instabilida<strong>de</strong>s e incongruências <strong>de</strong> diversos outros setores governamentaiscom os quais relacionam-se os hospitais, organizações próprias <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>,como outros hospitais com os quais se <strong>de</strong>veria manter relações <strong>de</strong> referência e contrareferência38 . São condições já salientadas e que contribuem para gerar in<strong>de</strong>finições quantoàs <strong>de</strong>cisões e projetos <strong>de</strong> médio e longo prazo, como chama atenção Motta (1991), aoanalisar as implicações <strong>de</strong> uma gestão submetida à lógica da administração pública 39 .31. Na sociologia formal, “a forma e a relação entre indivíduos, feita a abstração <strong>do</strong>s objetos por eles<strong>de</strong>seja<strong>do</strong>s” (ARON, R. La sociologia alemana contemporanea. B. Anes, Par<strong>do</strong>s, 1953, p.12) ver Dicionário<strong>de</strong> Ciências Sociais/Fundação Getúlio Vargas Benedicto Silva coord. geral et. al, 2ª ed. Rio <strong>de</strong> Janeiro.1987. p. 498. Na lógica formal, as formas (e o jornalismo) se referem aos elementos que constam <strong>do</strong>juízo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> concreto...;32. CAMPOS, Ana Maria. op.cit.p.42.33. CASTOR, B.O. e FRANÇA, C.Administração Pública no Brasil exaustão e revigoramento <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo.Rev.Adm.Publ. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 20 (3):3-26, 1986. p. 6.34. Matus <strong>de</strong>fine 4 regras básicas que embasam suas proposições para um a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> gestão; aomesmo tempo, tais regras possibilitam análise <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> gestão: direcionalida<strong>de</strong>, que correspon<strong>de</strong>a uma a<strong>de</strong>quada <strong>de</strong>finição e implementação <strong>de</strong> missão e objetivos organizacionais; responsabilida<strong>de</strong>,que correspon<strong>de</strong> à existência <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> contas <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s que confirme osobjetivos; <strong>de</strong>partamentalização, que correspon<strong>de</strong> à divisão <strong>do</strong> trabalho organizacional e a<strong>de</strong>quada<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> competências; e governabilida<strong>de</strong>, que correspon<strong>de</strong> à capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> governo <strong>do</strong> sistema,expresso no po<strong>de</strong>r que os dirigentes possuem sobre as variáveis que importam ao sistema; é oportunofrisar que para o autor, as regras <strong>de</strong> direcionalida<strong>de</strong> e responsabilida<strong>de</strong> são mais condionantes que asduas outras, na conformação <strong>de</strong> um eficaz sistema <strong>de</strong> gestão. Matus, Carlos. O Planejamento estratégicosituacional(PES) na prática. Fundação Altadir, Caracas. mimeo, 1987.154 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


TENDÊNCIAS E DESAFIOS PARA A GESTÃO DE HOSPITAIS PÚBLICOS:POSSIBILIDADES EXTENSIVAS AO SISTEMAEm termos ten<strong>de</strong>nciais, observa-se que o hospital está ainda condiciona<strong>do</strong> poroutros fatores, <strong>de</strong>correntes da condição <strong>de</strong> organização pública <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Sobre isso,<strong>de</strong>vem ser observadas algumas alterações ocorridas nos últimos anos, que não têm si<strong>do</strong>a<strong>de</strong>quadamente consi<strong>de</strong>radas. Não são <strong>de</strong>sconhecidas as exigências <strong>de</strong> maiorracionalida<strong>de</strong> quanto à utilização <strong>de</strong> recursos públicos. Igualmente, há uma série <strong>de</strong>medidas que enfatizam incrementos <strong>de</strong> produção nessas organizações. Para os hospitaispúblicos, a introdução <strong>de</strong> novos mecanismos <strong>de</strong> financiamento e <strong>de</strong> custeio Sistema <strong>de</strong>Autorização <strong>de</strong> Internação Hospitalar/AIH 40 tem o significa<strong>do</strong> da necessária associaçãoentre recursos e produção, regra até há pouco <strong>de</strong>sprezada em boa parte da administraçãopública. Apesar <strong>de</strong> submeti<strong>do</strong>s a este novo sistema, não se esboçam transformaçõesimportantes nas suas racionalida<strong>de</strong>s administrativas. Até hoje não dispõem <strong>de</strong> sistemas<strong>de</strong> apuração <strong>de</strong> custos! Tais tendências i<strong>de</strong>ntificadas na própria administração públicaem geral, e não apenas na saú<strong>de</strong>, com certeza acarretarão em prazos relativamente curtos,novas lógicas <strong>de</strong> acesso a recursos 41 .As condições ambientais no entanto, estão a indicar uma tendência à valorização<strong>de</strong> mecanismos mais competitivos no interior das próprias organizações públicas, quantoao acesso a recursos, o que significa vincular disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos à produção eà qualida<strong>de</strong>.Não é menos importante, sen<strong>do</strong> mesmo associa<strong>do</strong> à condição referida acima, atendência à maior autonomia das organizações públicas. No setor saú<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>scentralizaçãoé um <strong>do</strong>s princípios da diferenciação <strong>do</strong> sistema, embora que ainda não esteja,até o momento, a<strong>de</strong>quadamente implementa<strong>do</strong>. No entanto, as experiências sanitáriasque experimentam maior sucesso e inovação, encontram nos caminhos da<strong>de</strong>scentralização e maior autonomia, pelo menos parte das razões que explicam amelhoria <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s.Como alerta Men<strong>de</strong>s (1993), <strong>de</strong>scentralizar não significa tornar in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes asunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, mas sim criar um relação “biunívoca” entre as dimensões centralizaçãoe <strong>de</strong>scentralização, “on<strong>de</strong> a cada momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização <strong>de</strong>ve correspon<strong>de</strong>r um outro, <strong>de</strong>centralização subordinada” 42 .Finalmente, as tendências <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> reforma constitucional no campo daadministração pública brasileira <strong>de</strong>vem induzir à a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> maior autonomiadas organizações estatais, com a contrapartida da centralização sen<strong>do</strong> expressana lógica da cobrança <strong>de</strong> resulta<strong>do</strong>s, acompanhada <strong>de</strong> mecanismos recompensa<strong>do</strong>resem função <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhos satisfatórios 43 . Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as propostas <strong>do</strong> governo <strong>do</strong>squatro possíveis níveis da administração pública brasileira, ao menos em três <strong>de</strong>les,está preconiza<strong>do</strong> a introdução <strong>do</strong>s contratos <strong>de</strong> gestão 44 . A introdução <strong>do</strong>s contratos <strong>de</strong>gestão po<strong>de</strong> expressar pura e simplesmente uma nova racionalida<strong>de</strong> para aadministração pública brasileira, on<strong>de</strong> a noção <strong>de</strong> concorrência por recursos e a sua35. LEMOS, Sheyla. op.cit. p.130.36. Thompson, J.D.. Dinâmica Organizacional. São Paulo, Ed. McGraw Hill <strong>do</strong> Brasil, 1976 in Lemos,op.cit.p.12637. DUSSAULT. Gilles. op.cit. p.13.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>155


capacida<strong>de</strong> em otimizá-los constituem o ponto essencial. Essa concepção estariaarticulada à uma dada compreensão <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> com menor responsabilida<strong>de</strong> sobre oprovimento <strong>de</strong> recursos, bem como sobre a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s e objetivos, no casoassistenciais, que passariam a estar mais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> interações no seio da socieda<strong>de</strong>,reguladas fortemente pelas relações no merca<strong>do</strong> sanitário, entre ofertas e <strong>de</strong>mandas.No entanto, a configuração <strong>de</strong> relações entre o Esta<strong>do</strong> e organizações públicas ou privadastambém com base em contratos <strong>de</strong> gestão, po<strong>de</strong>m, além <strong>do</strong>s efeitos racionaliza<strong>do</strong>res <strong>de</strong>recursos (leia-se busca <strong>de</strong> maior eficiência através <strong>de</strong> alguns mecanismosconcorrencionais), propiciar impacto na eficácia <strong>do</strong> sistema e mesmo na equida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>que o Esta<strong>do</strong> e não simplesmente o merca<strong>do</strong>, possam atuar como função regula<strong>do</strong>ra.Neste caso, os contratos <strong>de</strong>vem propiciar uma relação biunívoca <strong>de</strong> autonomia (na gestão<strong>do</strong>s recursos organizacionais) com regulação (na gestão e alcance <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s produtose impacto sanitário). As priorida<strong>de</strong>s, ações, ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (volume e qualida<strong>de</strong>) emesmo condições <strong>de</strong> acesso, seriam objeto da regulação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ou por agências/instâncias <strong>de</strong>legadas.As possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aplicação <strong>do</strong>s chama<strong>do</strong>s contratos <strong>de</strong> gestão estão <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<strong>do</strong> quanto, no caso da saú<strong>de</strong>, interajam a Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro com osprincípios da Reforma Sanitária, especialmente em quatro <strong>de</strong>les, o acesso universal aosserviços, a equida<strong>de</strong>, a <strong>de</strong>scentralização e a <strong>de</strong>mocratização.No que tange ao processo <strong>de</strong> Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, as suas tendências formais,quais sejam aquelas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> mudanças constitucionais e <strong>do</strong> aparato legal, estãoa evoluir com enormes limitações, atreladas que estão a tantos impasses <strong>de</strong> naturezacorporativa e conserva<strong>do</strong>ra. Proposições recentes ao nível <strong>do</strong> Congresso parecemrestringir a Reforma a questões <strong>de</strong> teto salarial <strong>do</strong>s funcionários e ainda, à possívelquebra da estabilida<strong>de</strong> no emprego. No entanto, em paralelo e a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> processolegislativo, inúmeras ações reformistas ganham corpo e tornam-se realida<strong>de</strong>, quase todasinauguran<strong>do</strong> novas práticas organizacionais e até mesmo geran<strong>do</strong> alternativashetero<strong>do</strong>xas na administração pública, tais como o surgimento <strong>de</strong> cooperativas <strong>de</strong>trabalho, <strong>de</strong> consórcios <strong>de</strong> natureza privada entre governos, etc.. É verda<strong>de</strong> que há fortesmotivações escapistas em relação aos controles e a operação em geral, da administraçãopública conforme a legislação vigente. No entanto, ainda que indiretamente, tambémexpressam-se novas relações entre Esta<strong>do</strong>, organizações, seus profissionais e os usuários.38. Referência expressa uma relação <strong>de</strong> encaminhamento formal <strong>de</strong> pacientes <strong>de</strong> uma dada unida<strong>de</strong> <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> para outra, com tecnologia mais apropriada à resolução <strong>do</strong> caso e contra-referência oencaminhamento <strong>de</strong> retorno à unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> origem após intervenção; essas relações <strong>de</strong>notam a necessáriacomplementarieda<strong>de</strong> entre serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que componham uma re<strong>de</strong>.39. MOTTA, Paulo. Alguns <strong>de</strong>safios administrativos na gestão pública <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, trabalho apresenta<strong>do</strong> noSeminário Novas Concepções Em Administração e Desafios <strong>do</strong> SUS: Em Busca <strong>de</strong> Estratégias para oDesenvolvimento Gerencial. ENSP/FIOCRUZ FUNDAP/SP, mimeo, 1990. p.23.40. O Sistema AIH, já pratica<strong>do</strong> como modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pagamento <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s hospitais priva<strong>do</strong>s contrata<strong>do</strong>spelo po<strong>de</strong>r público, foi estendi<strong>do</strong> ao setor público em 1991; baseia-se numa tabela <strong>de</strong> procedimentosassocia<strong>do</strong>s a diagnósticos específicos, para os quais, há valores <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s a serem pagos aos presta<strong>do</strong>resda assistência; esses valores são fixos por patologia, existin<strong>do</strong> valores adicionais segun<strong>do</strong> a complexida<strong>de</strong>da unida<strong>de</strong> presta<strong>do</strong>ra.41. No momento, há estu<strong>do</strong>s preliminares no interior da própria FIOCRUZ para o <strong>de</strong>senvolvimento eimplantação <strong>de</strong> contratos <strong>de</strong> objetivos ou <strong>de</strong> gestão, que procurariam articular o acesso a recursos coma eficiência e eficácia da respectiva unida<strong>de</strong> técnica; num primeiro momento, talvez já em 1995, osprimeiros indica<strong>do</strong>res para acompanhamento <strong>de</strong> performance já estejam sen<strong>do</strong> utiliza<strong>do</strong>s, com metasassumidas tanto pela unida<strong>de</strong> quanto pela Presidência da instituição.156 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Muitas <strong>de</strong>ssas relações são <strong>de</strong> compromisso, on<strong>de</strong> o Esta<strong>do</strong> reforça seu papel regula<strong>do</strong>re mesmo <strong>de</strong> prove<strong>do</strong>r e redistribui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> recursos em função <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s sociais.Quase sempre, nas áreas sociais, são os municípios (alguns poucos) que tem apresenta<strong>do</strong>inovações. Há exemplos limites, em que a gestão municipal conseguiu acabar com osfuncionários públicos, com a exceção <strong>do</strong> prefeito, seu vice e os nove verea<strong>do</strong>res,simplesmente, contratan<strong>do</strong> uma cooperativa para cumprir suas funções 45 . Sem entrarno mérito <strong>de</strong>ssas iniciativas, percebe-se apenas que na ausência <strong>de</strong> <strong>de</strong>finições extensivaspara a Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, o processo existe <strong>de</strong> fato.No caso da saú<strong>de</strong>, as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> inovação com a modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> gestãomunicipal semi-plena e plena 46 , são bastante extensas, chegan<strong>do</strong> mesmo a ser possível asuperação da atual modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pagamento <strong>de</strong> serviços com base na AIH e na UCA.Ainda que não tal prática não tenha si<strong>do</strong> experimentada, está aberto o caminho paracriativida<strong>de</strong>s. Diferentemente <strong>de</strong> outros setores, a Reforma <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> por <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>setor saú<strong>de</strong>, encontra balizamentos muito claros, já expressos legalmente. Sem dúvida,as regras <strong>de</strong> financiamento estão ausentes, sem que no entanto, impeçam em <strong>de</strong>finitivoavançar-se, como po<strong>de</strong>m comprovar diversas experiências existentes no país.CONSIDERAÇÕES FINAISO chama<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> exige a superação <strong>de</strong> <strong>de</strong>safios<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> monta. Primeiramente, há que se ter claro o que <strong>de</strong>ve estar ao nível <strong>do</strong> próprioEsta<strong>do</strong> e submeti<strong>do</strong> à sua maior regulação e controle. De outro, i<strong>de</strong>ntificar, aperfeiçoare introduzir mecanismos <strong>de</strong> operação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> mais eficientes e eficazes. É o campoda gestão propriamente dita, combina<strong>do</strong> com a formulação e implementação <strong>de</strong> políticaspúblicas.Quanto à atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no setor saú<strong>de</strong>, assume-se sua pertinência e obrigatorieda<strong>de</strong>,ainda que seja polêmica a extensão da sua intervenção. Para to<strong>do</strong>s os efeitos,enten<strong>de</strong>-se que é imperiosa a atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nas áreas sociais, tanto como presta<strong>do</strong>r,sem a pretensão <strong>de</strong> exclusivida<strong>de</strong>, mas fundamentalmente como regula<strong>do</strong>r, aqui sim,com a obrigação <strong>de</strong> atuação sobre todas as práticas. A maior ou menor intervenção, aser expressa pelo oferecimento direto <strong>de</strong> serviços ou através <strong>de</strong> terceiros, é uma questão<strong>de</strong> compromissos políticos <strong>do</strong>s governos e naturalmente, <strong>de</strong> competência para fazê-lo<strong>de</strong> forma eficiente e eficaz.42. MENDES, Eugênio V. op.cit. p.111.43. PEREIRA, L.C. Bresser. A Reforma <strong>do</strong> aparelho <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a Constituição Brasileira. Conferência emseminários realiza<strong>do</strong>s com parti<strong>do</strong>s políticos. Brasília, jan. 1995. revisa<strong>do</strong> em abril. mimeo.44. O atual Ministro Bresser Pereira Ministério da Administração Fe<strong>de</strong>ral e da Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>a organização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em quatro níveis a saber: o núcleo burocrático, tipicamente estatal (ativida<strong>de</strong>stípicas e exclusivas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>); o núcleo monopolista <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (ativida<strong>de</strong>s não exclusivas, mas<strong>do</strong>minadas pela atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>); a esfera pública competitiva (ativida<strong>de</strong>s não exclusivas, on<strong>de</strong> oEsta<strong>do</strong> po<strong>de</strong>/<strong>de</strong>ve competir com a iniciativa privada e; a esfera não pública (reservada às funçõestípicas <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ou não ter atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>); exceto no núcleo burocrático, os <strong>de</strong>mais<strong>de</strong>vem ser geri<strong>do</strong>s mediante contratos <strong>de</strong> gestão entre cada organização e a esfera que a subordina nonúcleo burocrático <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; essas consi<strong>de</strong>rações foram colhidas em conferência realizada pelo MinistroBresser em julho <strong>de</strong> 1995 no Hotel Glória, RJ.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>157


Não se está afirman<strong>do</strong> que a intervir <strong>de</strong> forma ineficiente seja melhor retirar-se.Ao contrário, enfrentar os sistemáticos apelos para o chama<strong>do</strong> enxugamento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> requer uma administração pública eficiente. Movimentos nesse senti<strong>do</strong>não são apenas necessários, são possíveis, conforme <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> em outros países. Ocaso brasileiro, bastante atrasa<strong>do</strong> nesse senti<strong>do</strong> e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> enfrentar processosabso<strong>luta</strong>mente erráticos, como a “reforma Collor”, está diante <strong>de</strong> novas oportunida<strong>de</strong>s.Na área da saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ve-se ler a crise atual como oportunida<strong>de</strong>. Uma crise queatravessa diversas dimensões, conforme explorada no início <strong>de</strong>ste trabalho. Mas umacrise que encontra um espaço <strong>de</strong> intersecção <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> potencialida<strong>de</strong>, localiza<strong>do</strong> nasdimensões estrutural e organizacional, ou seja, <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> gestão e <strong>de</strong> interrelacionamentoentre o Esta<strong>do</strong> e suas organizações.Não há dúvidas <strong>de</strong> que este espaço não dá conta diretamente <strong>de</strong> outras dimensõesda crise, localizadas por exemplo no campo da disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos para osetor. No entanto, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se que não se trata <strong>de</strong> resolver um ou outro problema, mas<strong>de</strong> resolver os <strong>do</strong>is, ou melhor ainda, ambos só tem senti<strong>do</strong> caso sejam trata<strong>do</strong>s eenfrenta<strong>do</strong>s simultaneamente. Ambos se condicionam tanto negativa, quantopositivamente.Defen<strong>de</strong>-se que a lógica <strong>de</strong> organização da administração pública toman<strong>do</strong> porbase os “contratos <strong>de</strong> gestão”, alteram significativamente importantes estrangulamentosa dificultarem atualmente a melhor performance das organizações públicas, em diversossetores, neste caso, os hospitais, mas também e porque não, os sistemas ou re<strong>de</strong>s <strong>de</strong>serviços. Nesse senti<strong>do</strong>, há uma analogia possível: os atuais módulos <strong>de</strong> médicos/equipes<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da família dissemina<strong>do</strong>s pelo país, possuem um tipo <strong>de</strong> relação contratualcom o po<strong>de</strong>r público muito próximo da lógica <strong>do</strong> contrato <strong>de</strong> gestão. Tais equipes sãocontratadas e remuneradas por capitação, isto é, salários fixos em função <strong>do</strong> volume <strong>de</strong>vidas sob responsabilida<strong>de</strong>. Há na NOB/96 47 a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aplicação <strong>do</strong> Índice <strong>de</strong>Valorização <strong>de</strong> Resulta<strong>do</strong>s IVR, que viria a agregar recompensa financeira variável emfunção <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s sanitários <strong>de</strong>correntes entre outros, da atuação das referidasequipes, a serem apura<strong>do</strong>s através da aplicação sistemática <strong>de</strong> alguns indica<strong>do</strong>res <strong>de</strong>resulta<strong>do</strong>s.A ausência <strong>de</strong> objetivos externos claros, ao nível <strong>do</strong>s órgãos centrais, o centralismoadministrativo, a ênfase nos controles sobre os meios e processos são característicasa serem revertidas. O contrato <strong>de</strong> gestão permite isso. Ao nível <strong>do</strong>s hospitais, a baixaresponsabilida<strong>de</strong> em relação aos resulta<strong>do</strong>s, a ausência <strong>de</strong> objetivos, a limitada autonomiagerencial, a improvisação gerencial, o <strong>de</strong>sperdício, etc., po<strong>de</strong>m ser melhor enfrenta<strong>do</strong>s.Particularmente para as características da ativida<strong>de</strong> hospitalar, on<strong>de</strong> o mais essencial<strong>do</strong> seu trabalho, o trabalho médico, exige liberda<strong>de</strong> e autonomia relativa, po<strong>de</strong> serestendida a mesma concepção <strong>de</strong> gerência. A prática formal <strong>de</strong> autonomias internascom base nos serviços/unida<strong>de</strong>s organizacionais/centros <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>s, respeitae valoriza a liberda<strong>de</strong> e autonomia <strong>do</strong> trabalho médico, mas <strong>de</strong>le cobra resulta<strong>do</strong>s,responsabilida<strong>de</strong>s, coor<strong>de</strong>nação com o to<strong>do</strong> organizacional e <strong>de</strong>ste com a própriadimensão maior <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> atenção preconiza<strong>do</strong> pelo SUS um mo<strong>de</strong>lo interessa<strong>do</strong>em resulta<strong>do</strong>s (sanitários).45. Matéria publicada no Jornal <strong>do</strong> Brasil <strong>de</strong> 15/12/96.46. Conforme regulamentação na Norma Operacional Básica <strong>de</strong> 1993 e mais recentemente na NOB 96.158 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Isso tu<strong>do</strong> significará um reforma na administração pública e particularmente,nos princípios <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong> SUS, hoje enfaticamente concentra<strong>do</strong>s nos meios.No setor saú<strong>de</strong> e, especialmente, para o parque hospitalar vincula<strong>do</strong> ao SUS,tanto em relação aos hospitais estatais, quanto aos contrata<strong>do</strong>s, as iniciativas controlistascentradas exclusivamente sobre as faturas <strong>de</strong> produção (AIH e UCA), não parecem termuito futuro. Ainda que sejam aperfeiçoa<strong>do</strong>s esses processos, <strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>s seuscontroles, etc., não há nada que indique, quan<strong>do</strong> coteja<strong>do</strong>s com outros mecanismos <strong>de</strong>controle no país e no mun<strong>do</strong>, que o seu maior e melhor aperfeiçoamento, redundará emgarantias <strong>de</strong> melhores e mais racionais serviços hospitalares.Passa<strong>do</strong>s 20 anos em que a relação entre Esta<strong>do</strong> e presta<strong>do</strong>res priva<strong>do</strong>s se dánessas bases, não há indícios <strong>de</strong> que a racionalida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços presta<strong>do</strong>stenha se altera<strong>do</strong> por <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> tais mecanismos. A conclusão é semelhante paraos serviços públicos, apesar <strong>de</strong> uma experiência similar <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 5 anos. Não háindícios <strong>de</strong> que qualquer <strong>do</strong>s importantes hospitais públicos ou priva<strong>do</strong>s que apresentammo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> gestão inova<strong>do</strong>res, o tenham alcança<strong>do</strong> como <strong>de</strong>corrência daquele sistema.Se tal sistema <strong>de</strong> relacionamento nível central/nível local gerou alguma alteraçãona gestão local, não ultrapassou os limites <strong>do</strong> setor <strong>de</strong> faturamento, on<strong>de</strong> <strong>de</strong> fato po<strong>de</strong>mser encontra<strong>do</strong>s “faturistas profissionais”, muitas vezes firmas contratadas sen<strong>do</strong>remuneradas proporcionalmente às faturas que propiciam aos hospitais.Na introdução, i<strong>de</strong>ntificou-se diversas causas a concorrerem para a atual crise <strong>do</strong>parque hospitalar público brasileiro (SUS). Não há dúvidas <strong>de</strong> que a nível estrutural, sejafundamental que a saú<strong>de</strong> se expresse enquanto questão <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e que isto se manifestepela maior capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> intervenção/regulação estatal. Tal presença importa enquantoaporte/redistribuição <strong>de</strong> recursos, mas sobretu<strong>do</strong> pela <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> políticas claras,objetivas, formulan<strong>do</strong> priorida<strong>de</strong>s sanitárias e crian<strong>do</strong> condições para viabilizá-las.Não restam dúvidas que, a nível organizacional, boa parte <strong>do</strong>s problemas sejaconsequência da ausência <strong>de</strong> recursos e da in<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> objetivos <strong>de</strong> governo. Noentanto, a esse nível po<strong>de</strong>mos encontrar espaços potencialmente estratégicos parareformulações que sejam impactantes no sistema como um to<strong>do</strong>.Reafirma-se que o mo<strong>de</strong>lo basea<strong>do</strong> nos contratos <strong>de</strong> gestão permite uma engenhosae abrangente concepção <strong>de</strong> gestão. A gestão contratualizada, po<strong>de</strong> impactar aadministração pública no seu to<strong>do</strong>, <strong>de</strong>notan<strong>do</strong> compromisso e capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> governoem propor e zelar pelo papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. O processo <strong>de</strong> contratualização que se inicia nogoverno, através <strong>de</strong> seus órgãos centrais e <strong>de</strong> caráter regulatório, esten<strong>de</strong>-se às organizaçõescontratadas, públicas ou privadas, mas acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> reguladas, na medidaem que ao submeterem-se ao contrato, passam a respon<strong>de</strong>r e a ter que cumprir funções<strong>de</strong> natureza pública. Ao nível <strong>de</strong> cada organização, a noção <strong>de</strong> contratualização <strong>de</strong>vepermear a sua própria lógica gerencial, <strong>de</strong> tal mo<strong>do</strong> que se manifesteorganizacionalmente, uma ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> compromissos cujo elo final é o seu cliente externo,a socieda<strong>de</strong>, materializada em clientes com necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>mandas específicas. Adimensão mais nobre <strong>de</strong>sse processo estará na competência e qualida<strong>de</strong> das relaçõesúltimas, entre os profissionais e seus clientes e, finalmente, na resultante e impacto sobre47. Norma Operacional Básica. Ministério da Saú<strong>de</strong>. Diário Oficial <strong>de</strong> 2/9/96. A partir <strong>de</strong> 1993, as NormasOperacionais contém os critérios básicos <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong> SUS, especialmente no que diz respeito aos aspectosintergovernamentais (União, Esta<strong>do</strong>s e Municípios).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>159


os problemas <strong>de</strong>manda<strong>do</strong>s a esta organização por cada usuário. Contratualizar, seráportanto enca<strong>de</strong>ar <strong>de</strong> forma eficiente e eficaz, as funções e recursos públicos, com asnecessida<strong>de</strong>s econômicas e sociais, em cada ramo <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>, neste caso, em saú<strong>de</strong>,consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> os princípios fundamentais <strong>do</strong> SUS.As novas concepções <strong>de</strong> gestão em saú<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m assim agregar três importantespilares, historicamente aparta<strong>do</strong>s ou pelo menos, não a<strong>de</strong>quadamente articula<strong>do</strong>s comtodas as potencialida<strong>de</strong>s exigidas pela complexida<strong>de</strong> contemporânea. As atuaisexigências da gestão em saú<strong>de</strong> estão a <strong>de</strong>mandar os aportes da administração, <strong>do</strong>planejamento e especialmente, da epi<strong>de</strong>miologia, na medida em que as duas primeirasdimensões subordinem-se ao campo mais estrito <strong>do</strong> objeto a ser gerencia<strong>do</strong>, necessida<strong>de</strong>se problemas sanitários. A conformação <strong>de</strong> novos mo<strong>de</strong>los assistenciais a serem pratica<strong>do</strong>stanto a nível hospitalar, quanto a nível sistêmico, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m fundamentalmente dasinterações <strong>de</strong>sses três <strong>do</strong>mínios <strong>de</strong> conhecimento.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASANDRÉ, Maristela A. Contratos <strong>de</strong> Gestão: contradições e caminhos da administração pública. Revista<strong>de</strong> Administração <strong>de</strong> Empresas, São Paulo, v.35, n.3. 1995.BARBOSA, Pedro R. e LEMOS, Sheyla M. Gestão em Saú<strong>de</strong>: bases para maior responsabilida<strong>de</strong>,eficiência e eficácia. Revista Espaço para a Saú<strong>de</strong>, v. 5, n.5, set.96, Nesco. Paraná.CAMPOS, Ana Maria. Accountability: Quan<strong>do</strong> po<strong>de</strong>remos traduzi-la para o português? Rev.Adm.Publ.Rio <strong>de</strong> Janeiro, 24 (2)30-50, 1990.CASTOR, B.O. e FRANÇA, C.Administração Pública no Brasil - exaustão e revigoramento <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo.Rev.Adm.Publ. Rio <strong>de</strong> Janeiro,20 (3):3-26, 1986.DUSSAULT, Gilles. A Gestão <strong>do</strong>s Serviços Públicos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: características e exigências,Rev.Adm.Publ., RJ, n.2,vol.26,FGV,1992.DUSSAULT, Gilles. A Gestão <strong>do</strong>s Serviços Públicos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: características e exigências. Rev.Adm.Pub,Rio <strong>de</strong> Janeiro, 26 (2), 1992.ENAP. O contrato <strong>de</strong> gestão no serviço público. Escola Nacional <strong>de</strong> Administração Pública, SAF,1993.ETZIONI, Amitai. in: LEMOS, Sheyla.”O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e implementação <strong>de</strong> objetivos numaorganização <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>: <strong>do</strong> conjunto sanatorial <strong>de</strong> Curicica ao Hospital das Clínicas Raphael<strong>de</strong> Paula Souza” Tese <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> - EBAP/FGV, mimeo 1993.IPEA/IBAM/ENAP, Subsídios para a Reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: Contratos <strong>de</strong> Gestão” vol. IV, <strong>de</strong>z. 1994.LEMOS, Sheyla.”O processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição e implementação <strong>de</strong> objetivos numa organização <strong>do</strong> setorsaú<strong>de</strong>: <strong>do</strong> conjunto sanatorial <strong>de</strong> Curicica ao Hospital das Clínicas Raphael <strong>de</strong> Paula Souza” Tese<strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong> EBAP/FGV, mimeo 1994.LORNE, Michel. O contrato <strong>de</strong> plano entre o esta<strong>do</strong> e a região Provence Alpes Côte D’Azur, in Contrato<strong>de</strong> Gestão e a Experiência Francesa <strong>de</strong> Renovação <strong>do</strong> Setor Público, Fundação Escola Nacional <strong>de</strong>Administração Pública (ENAP), Brasília, 1993.MALIK, Ana Maria e VECINA NETO, Gonzalo. Desenhan<strong>do</strong> Caminhos Alternativos para a Gerência<strong>de</strong> Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, São Paulo, mimeo, 1991.MATUS, Carlos. O Planejamento estratégico-situacional (PES) na prática. Fundação Altadir, Caracas.mimeo, 1987.MINTZBERG, Henry. Mintzberg on Management: insi<strong>de</strong> our strange world of organizations. TheFree Prees, New York, 1989.MORGAN, Gareth. Images of Organizations, USA, 3a ed, Sage Publications, Inc.,1991.160 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


MOTTA, Fernan<strong>do</strong> C. Prestes., Teoria da Administração: alcance, limites, perspectivas. mimeo., ENSP/FIOCRUZ/FUNDAP, out. 1990, RJ.MOTTA, Paulo. Alguns <strong>de</strong>safios administrativos na gestão pública <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, trabalho apresenta<strong>do</strong>no Seminário Novas Concepções Em Administração e Desafios <strong>do</strong> SUS: Em Busca <strong>de</strong> Estratégiaspara o Desenvolvimento Gerencial. ENSP/FIOCRUZ FUNDAP/SP, mimeo, 1990.MOTTA, Paulo R. Gestão Governamental: a busca <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>finição e <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> análise.Síntese da palestra realizada na FUNDAP, S.Paulo, mimeo.,1989.PEREIRA, L.C. Bresser. A Reforma <strong>do</strong> aparelho <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e a Constituição Brasileira. Conferência emseminários realiza<strong>do</strong>s com parti<strong>do</strong>s políticos. Brasília, jan. 1995. revisa<strong>do</strong> em abril. mimeo.THOMPSON, J.D.. Dinâmica Organizacional. São Paulo, Ed. McGraw Hill <strong>do</strong> Brasil, 1976 in LEMOS,op.cit.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>161


162 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Loucura, Cultura e Subjetivida<strong>de</strong>:Conceitos e Estratégias, Percursos e Atoresda Reforma Psiquiátrica BrasileiraPaulo AmarantePARECE QUE FOI ONTEM... A LOUCURA INVADE A CIDADEO Movimento, que se convencionou <strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> Reforma Psiquiátrica, temamplia<strong>do</strong> visivelmente seu campo <strong>de</strong> influência política e cultural em nosso país nestadécada <strong>de</strong> 90. Constituí<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s anos 70, o Movimento surge em meio aoclima <strong>de</strong> efervescência que <strong>do</strong>minava o Brasil nestes anos <strong>de</strong> organização social e civilcontra a ditadura militar. O ano <strong>de</strong> 76, por exemplo, registra o espancamento <strong>do</strong> BispoDon Adriano Hipólito; as mortes <strong>do</strong> operário Manuel Fiel Filho, nos porões <strong>do</strong> DOI-CODI, e <strong>do</strong>s três dirigentes <strong>do</strong> PC <strong>do</strong> B em São Paulo; a cassação <strong>de</strong> inúmerosparlamentares; a edição da famigerada Lei Falcão; as explosões <strong>de</strong> bombas na ABI, naOAB, no CEBRAP, na Editora Civilização Brasileira. São tempos duros <strong>de</strong> violência e <strong>de</strong>resistência.Neste mesmo ano, a partir <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> sanitaristas, nasce em São Paulo, aidéia da criação <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> e da Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, com o objetivo <strong>de</strong> produzir eorganizar o pensamento e as práticas críticas no campo da saú<strong>de</strong> pública. No Rio <strong>de</strong>Janeiro é cria<strong>do</strong> o Movimento <strong>de</strong> Renovação Médica, com o propósito <strong>de</strong> dar um fim aopeleguismo que vinha <strong>do</strong>minan<strong>do</strong> o setor sindical <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 64 1 .Dois anos após, ainda no Rio <strong>de</strong> Janeiro, a partir <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adaspor jovens médicos psiquiatras, é constituí<strong>do</strong> o Movimento <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resem Saú<strong>de</strong> Mental (MTSM). Atuan<strong>do</strong> sob sua própria legenda ou no interior <strong>de</strong> outrosespaços <strong>de</strong> representação (<strong>CEBES</strong>, Sindicatos, Parti<strong>do</strong>s Políticos, Associações, Re<strong>de</strong> <strong>de</strong>Alternativas à Psiquiatria, Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Psicossíntese, etc.), o MTSM torna-se o primeiroe mais importante ator <strong>de</strong> renovação no campo da saú<strong>de</strong> mental, que vai estabeleceruma agenda para o setor que, sob o título <strong>de</strong> Reforma Psiquiátrica, introduz a estratégiada <strong>de</strong>sinstitucionalização no âmbito das políticas públicas 2 .1. Sobre os aspectos conceituais da reforma sanitária brasileira po<strong>de</strong> ser consulta<strong>do</strong> o livro organiza<strong>do</strong>por Teixeira, Sonia Fleury, 1989. Reforma sanitária - Em busca <strong>de</strong> uma teoria. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Cortez/Abrasco.2. Em trabalho anterior, a partir <strong>de</strong> uma pesquisa <strong>de</strong>senvolvida no NUPES/FIOCRUZ, fizemos um extensoestu<strong>do</strong> da trajetória prática e teórica <strong>do</strong> MTSM, o que torna <strong>de</strong>snecessário um maior apronfundamentoneste capítulo. Para maiores informações sobre o MTSM, e também sobre a reforma psiquiátrica brasileira,consultar Amarante, Paulo, org., 1995, Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Panorama ENSP.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>163


As <strong>de</strong>núncias <strong>do</strong>s médicos diziam respeito às precárias condições a que eramsubmeti<strong>do</strong>s os pacientes <strong>do</strong>s hospitais psiquiátricos <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, que respon<strong>de</strong>ucom a <strong>de</strong>missão <strong>de</strong> 260 profissionais que ali trabalhavam. Os profissionaisreceberam o apoio <strong>do</strong> REME, que exercia sua primeira gestão no Sindicato <strong>do</strong>s Médicos<strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro e, <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>, que já representava os setores críticos <strong>do</strong> pensamentosanitário.Como conseqüência das <strong>de</strong>missões e da insensibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>teve início, em abril <strong>do</strong> mesmo ano, a primeira greve no setor público no país após ainstalação <strong>do</strong> regime <strong>de</strong> exceção política, num episódio que ficou conheci<strong>do</strong> como a“crise da Dinsam” (Divisão Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>). A grevefoi logo acompanhada pelo Movimento <strong>do</strong>s Médicos Resi<strong>de</strong>ntes que, em poucos meses,tomou praticamente toda a extensão <strong>do</strong> país. Neste interim, foi <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada ainda ahistórica greve <strong>do</strong>s metalúrgicos <strong>do</strong> ABC que, persistin<strong>do</strong> até julho, fez com que fossepromulga<strong>do</strong> o Decreto-Lei 1632, <strong>do</strong> Presi<strong>de</strong>nte Ernesto Geisel, que proibia qualquerespécie <strong>de</strong> greve nos setores consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s essenciais.Em pouco tempo o MTSM se expandiu por to<strong>do</strong> o país. Em parte, no interior <strong>do</strong>REME e <strong>CEBES</strong>, em parte, em alguns centros acadêmicos vincula<strong>do</strong>s aos campos dasaú<strong>de</strong> pública e da medicina social, os membros <strong>do</strong> MTSM amadurecem sua leituracrítica quanto ao aparato institucional e quanto ao estatuto epistemológico da psiquiatria.Por iniciativa <strong>do</strong> MTSM, foram organizadas Comissões <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental emNúcleos Estaduais <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong> (SP, BA, MG e RJ) e em sindicatos <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>, quepassaram a funcionar como uma espécie <strong>de</strong> articulação nacional para o primeiro gran<strong>de</strong>encontro <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res da área, que teve lugar no Congresso Brasileiro <strong>de</strong> Psiquiatriaem Camboriú, em outubro <strong>de</strong> 78. Graças à intervenção <strong>de</strong>stes grupos, aquele Congresso,que prometia reproduzir o caráter técnico-especialístico das edições anteriores,transformou-se em um gran<strong>de</strong> evento político, inclusive com repercussão externa aocampo psiquiátrico e sanitário.Com a “crise da Dinsam”, o Congresso <strong>de</strong> Camboriú - que ficou conheci<strong>do</strong> comoo “Congresso da Abertura” - e, logo após, com o I Simpósio <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da Câmara <strong>do</strong>sDeputa<strong>do</strong>s 3 , o Movimento saiu <strong>do</strong> campo exclusivo da comunida<strong>de</strong> técnica e, com ele,a questão da loucura e da instituição asilar seguiram a mesma trajetória: o <strong>de</strong>bate sobrea loucura saía <strong>do</strong> interior <strong>do</strong>s muros <strong>do</strong> hospício para o <strong>do</strong>mínio público. A loucura/<strong>do</strong>ença mental 4 <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> interesse e discussão exclusiva <strong>do</strong>s técnicos ealcançava as principais entida<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong> civil (ABI, OAB, CNBB, CONTAG,FETAG, etc), e a gran<strong>de</strong> imprensa, que noticiava, com <strong>de</strong>staque e ininterruptamente porcerca <strong>de</strong> quase um ano, as condições relativas aos hospitais psiquiátricos e às distorçõesda política nacional <strong>de</strong> assistência psiquiátrica: a “questão psiquiátrica” tornara-se umaquestão política.De uma maneira geral, todas estas iniciativas, em que pesem suas diferenças,tinham uma <strong>de</strong>terminada agenda em comum, na medida em que, superan<strong>do</strong> a prática3. No I Simpósio <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s, realiza<strong>do</strong> em 1979, foram apresenta<strong>do</strong>s os relatórios<strong>do</strong> MTSM/<strong>CEBES</strong>, (<strong>CEBES</strong>, 1980a, 1980b). Trata-se <strong>do</strong> mesmo Simpósio on<strong>de</strong> o <strong>CEBES</strong> apresentou aproposta <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> que viria a inspirar a Constituição <strong>de</strong> 88 e a Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>(Lei 8080, 19/09/90).164 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


e os pressupostos teóricos da instituição psiquiátrica tradicional - que somente via <strong>de</strong>feito,irracionalida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>srazão e periculosida<strong>de</strong> no louco/<strong>do</strong>ente -, colocavam em discussãoa possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resgatar histórias, biografias e subjetivida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s sujeitos porta<strong>do</strong>res<strong>de</strong> sofrimento psíquico. Traziam ao <strong>de</strong>bate a cidadania e os direitos humanos <strong>do</strong> <strong>do</strong>entee, mesmo, o direito a um verda<strong>de</strong>iro e digno tratamento.Desta forma, retira<strong>do</strong> o manto <strong>de</strong> cientificida<strong>de</strong> da psiquiatria, torna-se possívelpercebê-la como instrumento técnico-científico <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r ou como saber e práticadisciplinares e normaliza<strong>do</strong>ras. A <strong>de</strong>núncia da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s hospitais psiquiátricostornou possível verificar sua função mais custodial que assistencial, mais iatrogênicaque terapêutica, mais aliena<strong>do</strong>ra que liberta<strong>do</strong>ra. Se por um la<strong>do</strong> a psiquiatria <strong>de</strong>ixava<strong>de</strong> ser questão exclusiva <strong>do</strong>s técnicos para tornar-se uma questão que diz respeito àtoda a socieda<strong>de</strong>, por outro, o objeto da psiquiatria <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser a <strong>do</strong>ença - contra aqual ela se mostrara impotente - para tornar-se o sujeito da experiência <strong>do</strong> sofrimento.Como conseqüência, em torno <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate da Reforma Psiquiátrica passava a existir um<strong>do</strong>s mais expressivos e atuantes movimentos sociais, com uma proposta radical <strong>de</strong>transformação <strong>do</strong> setor, que tem mereci<strong>do</strong> um <strong>de</strong>staque sem igual na história da saú<strong>de</strong>pública <strong>do</strong> país.Assim, antes <strong>de</strong> mais nada, é preciso explicitar o que se está enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, ou construin<strong>do</strong>,sob o título <strong>de</strong> Reforma Psiquiátrica. Em que pesem os problemas que estaexpressão po<strong>de</strong> causar (fazen<strong>do</strong> menção ao velho antagonismo entre reformismo erevolução), a Reforma Psiquiátrica da qual se está falan<strong>do</strong> não diz respeito,exclusivamente, à medidas <strong>de</strong> caráter tecnocientífico ou organizacional. ReformaPsiquiátrica, neste contexto, é um processo permanente <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> reflexões etransformações que ocorrem a um só tempo, nos campos assistencial, cultural, econceitual.Se fôsse oportuno, neste contexto complexo, questionar-se quanto ao principalobjetivo da Reforma Psiquiátrica, talvez fôsse possível respon<strong>de</strong>r que seria po<strong>de</strong>r transformaras relações que a socieda<strong>de</strong>, os sujeitos e as instituições estabeleceram com aloucura, com o louco e com a <strong>do</strong>ença mental, conduzin<strong>do</strong> tais relações no senti<strong>do</strong> dasuperação <strong>do</strong> estigma, da segregação, da <strong>de</strong>squalificação <strong>do</strong>s sujeitos ou, ainda, nosenti<strong>do</strong> <strong>de</strong> estabelecer com a loucura uma relação <strong>de</strong> coexistência, <strong>de</strong> troca, <strong>de</strong>solidarieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> positivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s. É o que preten<strong>do</strong> argumentar daqui paradiante...4. Aparentemente estou utilizan<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma indistinta os termos loucura e <strong>do</strong>ença mental, pois existeentre os mesmos uma diferença fundamental. Grosso mo<strong>do</strong>, loucura é uma expressão genérica, que dizrespeito às representações sociais <strong>do</strong>s fenômenos percebi<strong>do</strong>s como opera<strong>do</strong>res <strong>de</strong> uma ruptura com ospadrões éticos, morais, sociais, culturais ou, ainda comportamentais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada estruturaaceita enquanto norma i<strong>de</strong>al. Doença mental, por outro la<strong>do</strong>, diz respeito à construção no âmbito <strong>do</strong>saber médico que busca apreen<strong>de</strong>r aqueles mesmos fenômenos enquanto distúrbios, transtornos oulesões, com etiologias <strong>de</strong>finidas ou por <strong>de</strong>finir, com cursos e terminações mais ou menos precisos oupassíveis <strong>de</strong> serem precisa<strong>do</strong>s. Em que pese a distinção entre os conceitos, o uso indiscrimina<strong>do</strong> temcomo objetivo, provisoriamente, apontar para o caráter necessariamente complexo <strong>do</strong>s fenômenos emquestão e, por outro la<strong>do</strong>, não abon<strong>do</strong>nar, ainda, a expressão <strong>do</strong>ença mental (embora eu a a<strong>do</strong>te emsenti<strong>do</strong> crítico), na medida em que é aquela que mais caracteriza, nos tempos atuais, o objeto daspráticas psiquiátricas e psicológicas.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>165


MANICÔMIOS, COMO VIVER SEM ELES?AS TRANSFORMAÇÕES NO CAMPOS ASSISTENCIALNão é nada, não é nada, passaram-se vinte anos!Quan<strong>do</strong> teve início o Movimento da Reforma Psiquiátrica, sabia-se com certezaque as transformações não ocorreriam da noite para o dia. Afinal, seriam duzentos anos<strong>de</strong> história da psiquiatria a ser muda<strong>do</strong>s: duzentos anos <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tipo <strong>de</strong>prática que instruiu à socieda<strong>de</strong> na forma <strong>de</strong> lidar com a loucura. Naqueles anos eraextremamente grave a situação da assistência psiquiátrica no Brasil, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com osrelatórios <strong>do</strong> próprio MTSM que forneciam alguns indícios da árdua <strong>luta</strong> que se tinhapela frente.A assistência psiquiátrica era prestada pelo Ministério da Saú<strong>de</strong> (MS), pelo Ministérioda Previdência e Assistência Social (MPAS) e pelas próprias Secretarias Estaduais<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SES). Ao MS e às SES competia, basicamente, a assistência à populaçãoindigente, isto é, sem direito à Previdência Social (PS) 5 . Suas re<strong>de</strong>s eram compostas <strong>de</strong>macro-hospitais com características fortemente asilares e manicomiais: a abso<strong>luta</strong>ausência <strong>de</strong> recursos técnicos e materiais marcavam estas unida<strong>de</strong>s que, apenas por seuestatuto jurídico-institucional po<strong>de</strong>riam ser <strong>de</strong>nominadas <strong>de</strong> hospitais. Ou seja, o MS eas SES apenas administravam macro asilos para a população em gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>svantagemsocial, isto é, um misto <strong>de</strong> loucos, um misto <strong>de</strong> indigentes, os <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s “casossociais” 6 . Por outro la<strong>do</strong>, ao MPAS competia a assistência aos previ<strong>de</strong>nciários e seus<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes. Sem qualquer re<strong>de</strong> própria, o MPAS exercitava, principalmente a partirda criação <strong>do</strong> INPS em 1967, a política da compra <strong>de</strong> serviços da re<strong>de</strong> privada, que erapaga por Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Serviço, ou seja, cada ato realiza<strong>do</strong> pelo serviço ao paciente previ<strong>de</strong>nciário.Carlos Gentile <strong>de</strong> Mello, precursor e histórico combatente contrário a esta políticaprivatizante, insistia, persistentemente, em <strong>de</strong>nunciar as distorções que este sistemaacarretava:1. pagamento <strong>de</strong> serviços que não são produzi<strong>do</strong>s (pacientes fantasmas, medicamentosnão emprega<strong>do</strong>s);2. pagamento <strong>de</strong> serviços que são produzi<strong>do</strong>s mas não são necessários (intervençõescirúrgicas sem indicação técnica);3. pagamento <strong>de</strong> serviços que são produzi<strong>do</strong>s, são necessários, mas po<strong>de</strong>riamser realiza<strong>do</strong>s com racionalida<strong>de</strong> (internações <strong>de</strong> casos que po<strong>de</strong>m e <strong>de</strong>vemser trata<strong>do</strong>s em ambulatórios) 7 .Tais distorções levaram ao diagnóstico, por parte <strong>do</strong>s técnicos <strong>do</strong> próprio INAMPS,<strong>de</strong> que em 1977 ocorreram 195.000 internações <strong>de</strong>snecessárias em psiquiatria no país, e5. Com exceção da Secretaria <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo que, além <strong>de</strong> manter hospitais próprios,contratava leitos priva<strong>do</strong>s a preços mais atraentes que aqueles pagos pelo MPAS.6. Para se ter uma idéia da dimensão <strong>de</strong>stes hospitais/albergues, no ano <strong>de</strong> 1967, o Hospital Colônia <strong>de</strong>Juqueri (SP) tinha 13.637 leitos, enquanto que o <strong>de</strong> Barbacena (MG) 5.103, a Colônia Juliano Moreira4.923 e o São Pedro (RS) 4.308. Cumpre assinalar que era muito comum, tanto nos hospitais públicosquanto nos priva<strong>do</strong>s, o expediente <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong> <strong>de</strong> “leito-chão”, um eufemismo cínico que justificava ainternação sem o leito correspon<strong>de</strong>nte que, mesmo assim, era pago pela PS. A este respeito ver Cerqueira,Luis, 1984. Psiquiatria social - Problemas brasileiros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental. Rio <strong>de</strong> Janeiro-São Paulo, Atheneu,pp. 73.166 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


ainda, <strong>de</strong> que o percentual <strong>de</strong> internações <strong>de</strong>sta especialida<strong>de</strong> foi eleva<strong>do</strong> em 344% <strong>de</strong>1973 para 1976 8 .Embora <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta época os técnicos progressistas <strong>do</strong> MPAS, inspira<strong>do</strong>s no mo<strong>de</strong>loda psiquiatria comunitária norte-americana, já preconizassem os recursos então<strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s <strong>de</strong> “extra-hospitalares” (ambulatório, pensão protegida, hospital-dia,programas <strong>de</strong> atenção primária, etc), <strong>do</strong> total <strong>de</strong> gastos com a assistência psiquiátricadaquele Ministério no mesmo ano <strong>de</strong> 1977, 96% foram <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à re<strong>de</strong> hospitalar e osrestantes à re<strong>de</strong> extra-hospitalar, composta exclusivamente <strong>de</strong> ambulatórios 9 .A política <strong>de</strong> privatização <strong>do</strong> MPAS era acompanhada <strong>de</strong> um expressivo lobby nointerior e em torno <strong>de</strong> sua máquina administrativa, o que afastava qualquer possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> inversão na política <strong>de</strong> compra <strong>de</strong> serviços. Assim, enquanto os leitos psiquiátricospúblicos passaram <strong>de</strong> 21.079 em 1941 para 22.603 em 1978, os priva<strong>do</strong>s passaram <strong>de</strong>3.034 para 55.670 no mesmo perío<strong>do</strong> 10 . O crescimento maior <strong>de</strong>stes últimos foi observa<strong>do</strong>a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong>s anos 60: em 65 existiam 100 hospitais priva<strong>do</strong>s convenia<strong>do</strong>s,enquanto que em 1979 este número chegava aos 276 11 .Em que pese o caráter priva<strong>do</strong> <strong>do</strong>s serviços contrata<strong>do</strong>s pela PS, a situação <strong>do</strong>shospitais e da assistência aos <strong>do</strong>entes era a mesma das unida<strong>de</strong>s públicas (carência <strong>de</strong>recursos materiais e humanos, maus tratos e violências), aos quais se somava um agravamentono que dizia respeito à falta <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> direitos (tempos <strong>de</strong> internaçãoaumenta<strong>do</strong>s, proibição <strong>de</strong> visitas, etc.). Os tempos médios <strong>de</strong> permanência hospitalarem alguns casos, chegavam a 25 anos: as pessoas entravam em num hospital psiquiátricosem a certeza <strong>de</strong> um dia po<strong>de</strong>r sair.Com um quadro <strong>de</strong>sta natureza, e com as bases teóricas que orientavam o Movimentoda Reforma Psiquiátrica nos seus momentos iniciais, a ação reformista consistia,por um la<strong>do</strong>, em <strong>de</strong>nunciar as distorções conclaman<strong>do</strong> a uma participação da socieda<strong>de</strong>civil nas “tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão” das políticas públicas, o que refletia os anseiospopulares no perío<strong>do</strong> da re<strong>de</strong>mocratização. Por outro, e simultaneamente, em preconizarduas or<strong>de</strong>ns <strong>de</strong> princípios, quanto: 1. a inversão da política nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental,<strong>de</strong> privatizante para estatizante e, 2. a implantação <strong>de</strong> alternativas extra-hospitalaresque, neste contexto, significavam a inversão <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo: <strong>de</strong> hospitalar para ambulatorial,<strong>de</strong> curativo para preventivo/promocional.Muito embora a qualida<strong>de</strong> da assistência pública não se diferenciasse daquela<strong>do</strong>s serviços priva<strong>do</strong>s, a sua <strong>de</strong>fesa era calcada, por um la<strong>do</strong>, em um postula<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ológico,qual seja, a <strong>de</strong>fesa da coisa pública e, por outro, na hipótese <strong>de</strong> que a <strong>de</strong>terioraçãoda coisa pública era conseqüência da política <strong>de</strong> privilégio <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>.Assim é que, para o MTSM a mudança <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo impunha-se pela ênfase na“<strong>de</strong>sativação hospitalar (...) como a única medida para conter a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> internações,7. Carlos Gentile <strong>de</strong> Mello, apud <strong>CEBES</strong>/Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental <strong>do</strong> <strong>CEBES</strong>/RJ, 1980a. A psiquiatriano âmbito da Previdência Social. Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, nº 10, abr/mai/jun, 45-48, pp. 46. A persistência<strong>de</strong> Gentile era tão gran<strong>de</strong>, assim como seu bom humor, que ele chegou a registrar em sua secretáriaeletrônica, após a mensagem tradicional: “E lembre-se, a Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Serviço é um fator incontrolável<strong>de</strong> corrupção!”8. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, pp. 47.9. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m, pp. 46.10. I<strong>de</strong>m., pp. 47.11. I<strong>de</strong>m, pp. 229.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>167


transforman<strong>do</strong>-a em <strong>de</strong>manda ambulatorial. A <strong>de</strong>sativação progressiva <strong>do</strong>s hospitaispsiquiátricos implicará, naturalmente, numa triagem mais eficaz e eficiente, comdiminuição das internações novas, reinternações e <strong>do</strong> tempo médio <strong>de</strong> permanênciahospitalar. Isto significa ainda uma hierarquização <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> atenção psiquiátrica,on<strong>de</strong> o hospital será a última instância a ser empregada”. E mais adiante: “A <strong>de</strong>sativaçãoda assistência hospitalar <strong>de</strong>ve ser feita pela redução continuada <strong>do</strong>s leitos contrata<strong>do</strong>se convenia<strong>do</strong>s. Ou seja, as medidas que visam apenas a normalização <strong>do</strong>s serviçosambulatoriais, como forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sospitalização da assistência, sem a <strong>de</strong>vida <strong>de</strong>sativaçãohospitalar, apenas impulsionam a utilização <strong>do</strong>s ambulatórios <strong>de</strong> terceiros, crian<strong>do</strong>lhesum novo tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>manda, que não vem <strong>do</strong> hospital” 12 . Como se po<strong>de</strong> perceber, oconjunto <strong>de</strong> orientações <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m técnica comportava nítida influência da psiquiatriapreventivo/comunitária, on<strong>de</strong> o fio condutor <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo proposto era a<strong>de</strong>sinstitucionalização em sua versão norte-americana, isto é, entendida fundamentalmenteenquanto medidas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sospitalização.Na década <strong>de</strong> 80, o <strong>de</strong>bate sobre a assistência médica era marca<strong>do</strong> por maisuma crise da PS. Esta crise <strong>de</strong>nunciava o caráter mais amplo da falência <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>loprevi<strong>de</strong>nciário, que era mascarada nas edições anteriores, em que eram consi<strong>de</strong>radascomo meramente “financeiras” 13 . Assim, com o objetivo <strong>de</strong> frear as distorções acarretadaspelo mo<strong>de</strong>lo privatizante e curativista da PS, teve início uma nova modalida<strong>de</strong><strong>de</strong> convênio entre a PS e o Ministério da Saú<strong>de</strong>, que previa a colaboração da primeirano custeio, planejamento e avaliação das unida<strong>de</strong>s hospitalares <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>, que passoua ser <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> Co-gestão.A relevância <strong>de</strong>sta modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> convênio, então inicia<strong>do</strong>, está no fato histórico<strong>de</strong> ser uma primeira experiência no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> estabelecer uma relação <strong>de</strong> co-participaçãodas instituições públicas <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong> que, até então, atuavam <strong>de</strong> forma abso<strong>luta</strong>menteisolada e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, ou então, em que a PS simplesmente comprava serviços <strong>do</strong>s<strong>de</strong>mais órgãos públicos, como o fazia com o setor priva<strong>do</strong>.Para o campo da assistência psiquiátrica esta possibilida<strong>de</strong> seria muito promissora,na medida em que os únicos três hospitais psiquiátricos <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>serão incluí<strong>do</strong>s entre as primeiras unida<strong>de</strong>s a serem administradas pelo novo regime.Por outro la<strong>do</strong>, a Co-gestão vai ser o balão <strong>de</strong> ensaio <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que temcomo princípios a <strong>de</strong>scentralização, a integração interinstitucional, a hierarquização, aregionalização e a participação comunitária, que vai marcar as políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> nosanos subseqüentes, tal como virá a ocorrer no Plano <strong>do</strong> Conasp, nas Ações Integradas<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (AIS), nos Sistemas Unifica<strong>do</strong>s e Descentraliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUDS) e, porfim, no Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (SUS).Nasci<strong>do</strong> no contexto <strong>de</strong> uma forte crise <strong>de</strong> legitimida<strong>de</strong> <strong>do</strong> regime militar, o Esta<strong>do</strong>busca qualificar suas políticas sociais no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r à algumas das <strong>de</strong>mandasbásicas da população, assim como passa a incorporar algumas da propostas provenientes<strong>do</strong>s setores críticos ou <strong>de</strong> oposição. A Co-gestão, e as políticas daí advindas, surgem noespírito da construção <strong>de</strong>stas novas bases sociais e políticas, procuran<strong>do</strong> representar aa<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira Política <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> caráter popular e <strong>de</strong>mocrático, on<strong>de</strong> o12. <strong>CEBES</strong>, Comissão <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental, op. cit. pp. 48.13. Para um estu<strong>do</strong> mais completo da Previdência Social, sua história e crises, remeto ao estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Oliveira,Jaime Araújo e Teixeira, Sonia Fleury, 1986. (Im)previdência social - 60 anos <strong>de</strong> história da Previdência Socialno Brasil. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Vozes.168 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


setor público, sucatea<strong>do</strong> e <strong>de</strong>sgasta<strong>do</strong>, seria recupera<strong>do</strong> e assumiria a condução dasquestões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população.Neste senti<strong>do</strong>, a Co-gestão no âmbito <strong>do</strong>s hospitais psiquiátricos, tornou possívelo aproveitamento <strong>de</strong> propostas que, poucos anos antes, eram consi<strong>de</strong>radas totalmenteinviáveis e in<strong>de</strong>sejáveis. A partir daí, tanto nos hospitais <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> e,posteriormente, com a aprovação <strong>do</strong> Plano <strong>do</strong> Conasp no âmbito da assistênciapsiquiátrica 14 , quanto em outros hospitais psiquiátricos <strong>do</strong> país, foram exercita<strong>do</strong>sprojetos <strong>de</strong> reestruturação tal como apregoada pelo MTSM, que também esteve à frenteda maior parte <strong>de</strong>stas experiências.Com o Plano <strong>do</strong> Conasp foram reforça<strong>do</strong>s os princípios <strong>de</strong> resgate <strong>do</strong> serviçopúblico <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, com a conseqüente <strong>luta</strong> contra a privatização. Dentre outros princípiosestavam ainda presentes a priorida<strong>de</strong> aos serviços ambulatoriais como elementoscentrais <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo assistencial, a redução <strong>do</strong> número <strong>de</strong> internações e reinternações, aredução <strong>do</strong> tempo médio <strong>de</strong> permanência hospitalar, a regionalização, hierarquização eintegração <strong>do</strong>s serviços.Os princípios, diretrizes e estratégias <strong>do</strong> MTSM tornaram-se tão dissemina<strong>do</strong>sno aparelho <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> que, em 1985 teve lugar o primeiro Encontro <strong>de</strong> Coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>res<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental da Região Su<strong>de</strong>ste, em Vitória <strong>do</strong> Espírito Santo. Neste momento,algumas das principais Coor<strong>de</strong>nações <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental, tanto estaduais quantomunicipais, e mesmo algumas instituições universitárias eram ocupadas por dirigentesoriun<strong>do</strong>s <strong>do</strong> MTSM. A Carta <strong>de</strong> Vitória, como ficou conheci<strong>do</strong> o <strong>do</strong>cumento final <strong>de</strong>steencontro viria influenciar <strong>de</strong>cisivamente os relatórios da I Conferência Estadual <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Mental <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro e da I Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental. Uma <strong>de</strong> suascontribuições mais fundamentais está em retomar a premissa da superação <strong>do</strong> hospitalpsiquiátrico (aí <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> reversão <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo hospitalocêntrico), <strong>do</strong>minada pelatendência estratégica da superação mediante a construção <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> alternativa ouparalela ao hospital psiquiátrico.Tais conferências surgiram em <strong>de</strong>corrência da 8ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>que, já sob a égi<strong>de</strong> da influência <strong>do</strong> Movimento da Reforma Sanitária no contexto daNova República possibilitaram, pela primeira vez na história, uma ampla participaçãoda socieda<strong>de</strong> civil na formulação da Política Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Como <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentoda 8ª CNS foram propostas conferências sobre áreas temáticas específicas, <strong>de</strong>ntre asquais a da Saú<strong>de</strong> Mental.Contu<strong>do</strong>, a direção da Dinsam, sob administração claramente oposta aosprincípios <strong>do</strong> MTSM, frente à ameaça <strong>do</strong> visível crescimento político <strong>do</strong> Movimento,postergou e tentou evitar que fôsse realizada a Conferência <strong>do</strong> setor. Neste senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>useinício à organização, à revelia <strong>do</strong> MS, da Conferência <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, à qualseguiram-se outras em alguns <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, o que obrigou o Ministério da Saú<strong>de</strong> a seposicionar, convocan<strong>do</strong> a Conferência Nacional.Num clima <strong>de</strong> claro embate, a I Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental (I CNSM)realizou-se em 1987, quan<strong>do</strong> o MTSM rejeitava o encaminhamento da<strong>do</strong> pelo MS, cujopropósito era efetivar um evento <strong>de</strong> caráter congressual e não <strong>de</strong>mocrático e participativo,retroce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> em relação à tradição iniciada com a 8ª Conferência.14. Portaria MPAS nº 3.108 <strong>de</strong> 21/11/82, <strong>do</strong> Conselho Consultivo da Administração <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Previ<strong>de</strong>nciária(Conasp).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>169


Rejeita<strong>do</strong> e reverti<strong>do</strong> o encaminhamento da<strong>do</strong> pelo MS, o evento pô<strong>de</strong> prosseguirsob o coman<strong>do</strong> político <strong>do</strong> MTSM que então introduziu na política nacional alguns <strong>de</strong>seus temas programáticos, <strong>de</strong>ntre os quais a cidadania <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes mentais, a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> revisão da legislação ordinária (tanto no que diz respeito à legislação civil, quanto aocódigo penal e à legislação sanitária), e a premissa da reorientação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo médicopsiquiátrico<strong>de</strong> assistência 15 .Por outro la<strong>do</strong>, a partir <strong>de</strong> uma dissidência surgida no MTSM em São Paulo, coma criação da Plenária <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental, a política <strong>de</strong> “ocupação <strong>de</strong> espaços públicos” <strong>do</strong>MTSM entrava <strong>de</strong>finitivamente em xeque. Composta basicamente por jovens profissionais,cuja base teórico-prática tinha a hegemonia da experiência <strong>de</strong>senvolvida porFranco Basaglia, a Plenária questionava as diretrizes e estratégias <strong>do</strong> MTSM 16 .Reunin<strong>do</strong>-se em encontro paralelo à I CNSM, e a partir <strong>de</strong> uma convocação <strong>do</strong>smembros da Plenária, o MTSM viu-se frente à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reavaliação <strong>de</strong> suasestratégias e princípios e aceitou agendar o II Congresso Nacional <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>resem Saú<strong>de</strong> Mental 17 .Em Bauru o MTSM sofreu uma profunda e radical transformação, dissolven<strong>do</strong>seenquanto agremiação <strong>de</strong> técnicos e reconstruin<strong>do</strong>-se enquanto Movimento Social 18 .Como conseqüência, o projeto <strong>do</strong>minante <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> ser a transformação <strong>de</strong> carátertecnocientífico para tornar-se um rompimento com a solução daquela or<strong>de</strong>m 19 .“Por uma socieda<strong>de</strong> sem manicômios” o lema surgi<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste encontro <strong>de</strong> Bauru,expressava uma ruptura, tanto epistemológica, quanto estratégica que marcaria os anossubseqüentes, on<strong>de</strong> o eixo <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates saía <strong>do</strong>s limites meramente assistenciais e, maisainda, da simples oposição entre serviços extra-hospitalares versus serviços hospitalares,para a superação radical <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo psiquiátrico tradicional, expresso tanto nomanicomial quanto no saber médico sobre a loucura.Dois anos após, com a possibilida<strong>de</strong> surgida a partir da intervenção na Casa <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> Anchieta, em Santos, concretizou-se uma outra dimensão histórica. Com asinovações introduzidas pela Reforma Sanitária, que permitiram uma efetiva <strong>de</strong>scentralizaçãono sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, em 03 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1989, a Prefeitura <strong>de</strong> Santos<strong>de</strong>cidiu intervir naquela clínica psiquiátrica privada, on<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> mortes e outrassituações <strong>de</strong> violência vinham ocorren<strong>do</strong>.Com a intervenção, diferentemente <strong>de</strong> outras ocorridas em outros momentos ecida<strong>de</strong>s, surgiu a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pôr em prática a experiência radical: a <strong>de</strong>smontagem<strong>do</strong> aparato institucional manicomial, com a conseqüente implantação <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong>15. Quanto ao Relatório Final da I CNSM ver Ministério da Saú<strong>de</strong>, 1988. I Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Mental. Brasília: Centro <strong>de</strong> Documentação <strong>do</strong> MS.16. Algumas especificida<strong>de</strong>s quanto as contribuições <strong>de</strong> Franco Basaglia serão abordadas mais adiante.17. O II Congresso Nacional <strong>de</strong> Trabalha<strong>do</strong>res em Saú<strong>de</strong> Mental foi realiza<strong>do</strong> em Bauru, em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong>1987. O primeiro tinha si<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong> em São Paulo, em janeiro <strong>de</strong> 1979.18. Movimento Social Por Uma Socieda<strong>de</strong> Sem Manicômios.19. É neste momento que a expressão manicômio passa a ser a<strong>do</strong>tada estrategicamente como termo geralpara <strong>de</strong>finir qualquer tipo <strong>de</strong> instituição psiquiátrica pautada na tutela e custódia, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> acentuarseu caráter ambíguo ou híbri<strong>do</strong>, isto é, semi-médico/semi-jurídico. Aqui também são <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s o Dia ea Semana Nacional da Luta Antimanicomial, que passarão a ser comemora<strong>do</strong>s anualmente até o presentemomento.170 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


territorial <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong> mental substitutiva ao mo<strong>de</strong>lo psiquiátrico tradicional,além <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> outras experiências culturais e sociais.Neste contexto passaram a ser constituí<strong>do</strong>s os Núcleos <strong>de</strong> Atenção Psicossocial(NAPS), como protótipos <strong>do</strong>s novos serviços autenticamente substitutivos ao aparatomanicomial 20 : centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental “fortes” isto é, com funcionamento ininterrupto(24 horas/dia-365 dias/ano), que são responsáveis por to<strong>do</strong> e qualquer tipo <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandapsiquiátrico-psicológico <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada região geo-político-cultural da cida<strong>de</strong> que,neste contexto, vai ser <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong> território. Em outras palavras, o território não éapenas uma região geográfica ou uma área <strong>de</strong> planejamento ou administrativa,<strong>de</strong>correntes da regionalização ou distritalização <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>; é o conjunto <strong>de</strong> saberese práticas políticas, sociais e culturais, que atuam em um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> contexto histórico.Os NAPS, ao contrário das versões até então conhecidas como “centro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>mental”, exercem um mosaico <strong>de</strong> ações que o caracterizam como estrutura complexa.Têm leitos <strong>de</strong> apoio para acompanhamento <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> crise; aten<strong>de</strong>m à <strong>de</strong>mandasem residências, em locais <strong>de</strong> trabalho ou públicos; oferecem atendimento <strong>do</strong> tipoemergencial ou ambulatorial; respon<strong>de</strong>m à várias <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> caráter social e nãoapenas, como tradicionalmente reconhecidas, “terapêuticas”. Dito <strong>de</strong> outra forma, osNAPS assumem o caráter complexo da <strong>de</strong>nominada <strong>de</strong>manda psiquiátrica que é sempremenos uma <strong>de</strong>manda apenas clínica e mais uma <strong>de</strong>manda social, on<strong>de</strong> a clínica é apenasuma das dimensões.Os NAPS <strong>de</strong>vem estar efetivamente presentes nas questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental <strong>do</strong>território ao qual pertencem, a partir <strong>de</strong> um princípio que Dell’Acqua <strong>de</strong>nomina <strong>de</strong>“tomada <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>” 21 : são as estruturas nucleares <strong>do</strong> programa <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>mental em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> território, por on<strong>de</strong> passam as <strong>de</strong>finições estratégicas e asiniciativas <strong>de</strong> respostas.Por outro la<strong>do</strong>, conforme estratégia <strong>de</strong>finida no Congresso <strong>de</strong> Bauru, <strong>de</strong>ver-se-iaprocurar romper com a tradição <strong>de</strong> recorrer à comunida<strong>de</strong> tão-somente em busca <strong>de</strong>apoio nas situações <strong>de</strong> crise vivenciadas pelo Movimento, e procurar estabelecer com amesma uma relação permanente e contínua, <strong>de</strong> apoio e participação regulares naconstrução <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> transformação. Neste senti<strong>do</strong>, na experiência santista, váriasoutras estratégias não técnico-assistenciais foram colocadas em prática. Como exemplos,o Projeto Tam-Tam, o Centro <strong>de</strong> Valorização da Criança ou as Cooperativas Sociais.O Projeto Tam-Tam envolve um conjunto <strong>de</strong> iniciativas culturais que buscamaproximar o território para as questões <strong>do</strong> campo. Esta aproximação se dá tanto noenvolvimento <strong>de</strong> voluntários <strong>do</strong> próprio território, quanto na natureza das ativida<strong>de</strong>s:programa <strong>de</strong> rádio, produção <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os, artes plásticas e dramáticas, etc.O Centro <strong>de</strong> Valorização da Criança permite reconstruir a noção <strong>de</strong> prevençãoem psiquiatria e saú<strong>de</strong> mental, a partir <strong>de</strong> uma abordagem não apenas médica (controlepreventivo <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças evitáveis, vigilância sanitária e epi<strong>de</strong>miológica), mas <strong>de</strong> uma20. Não apenas sobre os NAPS, mas também sobre o processo santista e sobre to<strong>do</strong> o circuito territorial <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> Mental naquela cida<strong>de</strong>, uma importante fonte <strong>de</strong> consulta é: Nicácio, Fernanda, 1994. O processo<strong>de</strong> transformações em saú<strong>de</strong> mental em Santos - Desconstrução <strong>de</strong> saberes, instituições e cultura. Dissertação <strong>de</strong>Mestra<strong>do</strong>, São Paulo: Programa <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Pós-graduação/Mestra<strong>do</strong> em Ciências Sociais/PUC-SP.21. Dell’Acqua, Giuseppe et alii, 1988. Risposta alla crisi. Strategie ed intenzionalità <strong>de</strong>ll’intervento nelservizio psichiatrico territoriale. In: Per la salute mentale. pp. 03-23. Trieste: Edizione “e”.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>171


política social para o <strong>de</strong>senvolvimento da criança, com ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inscrição e valorizaçãoda criança no contexto da municipalida<strong>de</strong>.As Cooperativas Sociais são constituídas com o objetivo, não mais “terapêutico”,isto é, rompen<strong>do</strong> com a tradição da terapia ocupacional nos mol<strong>de</strong>s propostos por Simone Siva<strong>do</strong>n, mas <strong>de</strong> construção efetiva <strong>de</strong> autonomias e possibilida<strong>de</strong>s sociais e subjetivas.Por um la<strong>do</strong>, o trabalho nas Cooperativas surge como construção real <strong>de</strong> oferta <strong>de</strong>trabalho para pessoas em <strong>de</strong>svantagem social para as quais o merca<strong>do</strong> não facilita oportunida<strong>de</strong>s.Por outro, surge como espaço <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s subjetivas eobjetivas, <strong>de</strong> validação e reprodução social <strong>do</strong>s sujeitos envolvi<strong>do</strong>s em seus projetos. Aocontrário da tradição anterior em nosso país - representada, por exemplo, pela experiência<strong>do</strong> Museu <strong>de</strong> Imagens <strong>do</strong> Inconsciente -, as obras produzidas pelos pacientes são <strong>de</strong> suaproprieda<strong>de</strong>, tanto no que diz respeito ao valor simbólico quanto ao <strong>de</strong> troca e <strong>de</strong> venda.A partir da situação <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada em Santos, uma outra experiência importantefoi resgatada. Trata-se <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Atenção Psicossocial Prof. Luis da Rocha Cerqueira(CAPS), em São Paulo que, ten<strong>do</strong> início em 1987, surgiu como um proposta <strong>do</strong> tipoalternativo intermediário ou transitório, <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo a outro. Isto é, o CAPS surgiuno âmbito <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo sanitário-preventivista, como uma instância intermediária entreo hospital e a comunida<strong>de</strong>, marca<strong>do</strong> também por uma proposta terapêutica influenciadapela tradição da psicoterapia institucional. 22 Seria uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atenção situadano momento da alta hospitalar para a passagem <strong>do</strong> paciente à vida comunitária ouvice-e-versa, como uma alternativa à internação integral e imediata. Assim, o pacienteiria para o CAPS como uma tentativa <strong>de</strong> evitar a internação hospitalar ou quan<strong>do</strong>recebesse alta sem estar apto a retornar plenamente à vida comunitária.Seria ainda intermediário ou provisório no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> que representaria uma alternativaassistencial situada na transição <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo hospitalocêntrico para o mo<strong>de</strong>lopreventivo-comunitário, até o momento em que este último crescesse e <strong>do</strong>minasse ocenário assistencial, com o conseqüente <strong>de</strong>saparecimento <strong>do</strong> primeiro. O CAPS seriaentão o passo inicial da transformação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo no senti<strong>do</strong> da implantação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lopreventivo-comunitário, <strong>do</strong> qual seria um <strong>do</strong>s principais elementos.Como se po<strong>de</strong> perceber, o CAPS nasceu como uma proposta que, entre o alternativo,o intermediário e o provisório, diferia substancialmente <strong>do</strong> NAPS por suaaceitação, mesmo que provisoriamente, <strong>do</strong> hospital psiquiátrico, o que, para o projetono qual se inseria o NAPS seria inadmissível. Por outro la<strong>do</strong> o CAPS seria um serviçosanitário sensu strictu, com uma proposta terapêutica calcada no mo<strong>de</strong>lo médicopsicológico<strong>de</strong> análise, enquanto que os NAPS seriam serviços não apenas médicos, nosenti<strong>do</strong> rigoroso <strong>do</strong> termo, mas assumidamente sociais e culturais.Com o contexto propicia<strong>do</strong> pelo circuito <strong>de</strong> Santos, o CAPS foi resgata<strong>do</strong> comoutra <strong>de</strong>scrição, como uma possibilida<strong>de</strong> que <strong>de</strong>veria caminhar na direção <strong>de</strong> tornar-se,ele próprio, uma proposta substitutiva ao mo<strong>de</strong>lo psiquiátrico tradicional, e não umserviço provisório-permanente.Foi ainda no contexto <strong>do</strong> cenário possibilita<strong>do</strong> pela experiência santista, principalmenteno que diz respeito à possibilida<strong>de</strong> real, <strong>de</strong>monstrada na prática, <strong>de</strong> substituição<strong>do</strong> hospital psiquiátrico por uma re<strong>de</strong> territorial <strong>de</strong> serviços e ações culturais22. Sobre o CAPS, uma importante fonte para consulta é: Goldberg, Jairo, 1992. A <strong>do</strong>ença mental e as instituições- A perspectiva <strong>de</strong> novas práticas. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, São Paulo: Departamento <strong>de</strong> MedicinaPreventiva da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Medicina da USP.172 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


que, em setembro <strong>de</strong> 1989, surgiu o Projeto <strong>de</strong> Lei <strong>do</strong> Deputa<strong>do</strong> Paulo Delga<strong>do</strong>, que setornaria o centro <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates em torno da reforma psiquiátrica nos próximos sete anos 23 .Este PL consolidava no <strong>de</strong>bate nacional, o princípio da superação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lopsiquiátrico tradicional, na medida em que dispunha “sobre a extinção progressiva <strong>do</strong>smanicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais e regulamenta ainternação psiquiátrica compulsória”. Seu surgimento, no entanto, foi acompanha<strong>do</strong>por algumas discordâncias no âmbito <strong>do</strong> Movimento, na medida em que não haviaconsenso quanto ao momento exato <strong>de</strong> sua apresentação. Alguns segmentos <strong>do</strong> Movimentoargumentavam haver pouca discussão interna e, mais que isso, insuficiente construção<strong>de</strong> uma base sólida <strong>de</strong> apoios sociais antes <strong>de</strong> sua apresentação na Câmara <strong>do</strong>sDeputa<strong>do</strong>s. A parte tais discordâncias, prevaleceu a posição <strong>de</strong> apoiá-lo, pois consi<strong>de</strong>rava-seque, uma vez incluí<strong>do</strong> no <strong>de</strong>bate nacional, o Movimento <strong>de</strong>veria <strong>luta</strong>r porsua aprovação.O PL teve o mérito <strong>de</strong> introduzir a questão da assistência psiquiátrica na or<strong>de</strong>m<strong>do</strong> dia da mídia nacional, ao mesmo tempo em que <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> usuáriose familiares, algumas já existentes anteriormente, foram constituídas em função <strong>de</strong>ste<strong>de</strong>bate. Umas contrárias, muitas a favor, o resulta<strong>do</strong> importante <strong>de</strong>ste contexto é que,<strong>de</strong> forma inédita e muito peculiar, o tema da loucura, da <strong>do</strong>ença mental, da assistênciapsiquiátrica e <strong>do</strong>s manicômios, invadiu boa parte <strong>do</strong> interesse nacional.Em que pese a importância <strong>do</strong> PL, contu<strong>do</strong>, algumas questões fundamentais nãoforam contempladas no mesmo (embora este talvez não fosse o seu objetivo):1. não propõe a extinção da relação entre <strong>do</strong>ença mental e periculosida<strong>de</strong>; 2. não propõea extinção da figura jurídico-institucional <strong>do</strong> hospital psiquiátrico (manicômio); e, 3.restringe à responsabilida<strong>de</strong> exclusiva <strong>do</strong> médico (e não da equipe técnica) a emissão<strong>do</strong> lau<strong>do</strong> para a internação psiquiátrica compulsória.Se por um la<strong>do</strong>, em pouco tempo após sua apresentação na Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s,o projeto tivesse si<strong>do</strong> aprova<strong>do</strong> naquela casa, o mesmo não suce<strong>de</strong>ria no Sena<strong>do</strong>,arrastan<strong>do</strong>-se o <strong>de</strong>bate até os dias atuais 24 . Mesmo assim, o PL estimula o surgimento <strong>de</strong>projetos <strong>de</strong> leis estaduais que, seguin<strong>do</strong> suas diretrizes básicas, <strong>de</strong>scentralizaram aatuação política e transforma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Movimento para o âmbito local, sen<strong>do</strong> que emcinco esta<strong>do</strong>s (Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, Ceará, Pernambuco, Minas Gerais e Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong>Norte), foram aprova<strong>do</strong>s projetos <strong>de</strong> lei com o mesmo propósito que o PL 3657/89.A experiência <strong>de</strong> Santos e o PL contribuiram <strong>de</strong>finitivamente para a extensão <strong>do</strong><strong>de</strong>bate e para o surgimento <strong>de</strong> novos e significativos processos, tanto assistenciais quantoculturais. Assim, um novo ator, para além das entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> técnicos, e mesmo <strong>do</strong>transmuta<strong>do</strong> MTSM, aparecia no cenário das políticas públicas: as entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> usuáriose familiares que, simboliza<strong>do</strong>s pela associação nascida em torno <strong>do</strong> Hospital <strong>de</strong> Juqueri,dão bem a tônica <strong>de</strong>ste momento: “Loucos pela Vida” 25 .23. Delga<strong>do</strong>, Paulo, 1989. Projeto <strong>de</strong> Lei nº 3.657/89.24. No Sena<strong>do</strong> foi rejeita<strong>do</strong> o parecer <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Lúcio Alcântara, favorável à aprovação e, em seu lugar,foi aprova<strong>do</strong> o Substitutivo <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>r Lucídio Portela. Este, sob forte lobby da “indústria da loucura”,propõe melhorias superficiais no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> assistência psiquiátrica, inclusive no manicômio, que émanti<strong>do</strong>. Assim, o PL e o Substitutivo ainda <strong>de</strong>verão ser aprecia<strong>do</strong>s pelo Congresso Nacional.25. O nosso livro sobre a trajetória da reforma psiquiátrica brasileira, Loucos pela vida, op. cit., mereceu estetítulo em referência a esta associação.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>173


No início <strong>do</strong>s anos 90, o Ministério da Saú<strong>de</strong>, já sob forte influência política ei<strong>de</strong>ológica <strong>do</strong> Movimento, das experiências santista e paulista e, ainda, <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>pelo PL, a<strong>do</strong>tou a Portaria 189/91, que ampliava e diversificava os procedimentosda Tabela SIH/SUS e SIS/SUS, possibilitan<strong>do</strong> o financiamento <strong>de</strong> novasestruturas assistenciais <strong>do</strong> tipo Centros <strong>de</strong> Atenção Psicossocial, Núcleos <strong>de</strong> AtençãoPsicossocial, hospitais-dia e unida<strong>de</strong>s psiquiátricas em hospitais gerais. A gran<strong>de</strong>inovação trazida por esta portaria está no fato <strong>de</strong> viabilizar a possibilida<strong>de</strong> efetiva <strong>de</strong>financiamento <strong>de</strong> estruturas não manicomiais, o que, embora fosse um princípio existente<strong>de</strong>ste os primeiros momentos <strong>do</strong> MTSM, ainda não tinha sua viabilida<strong>de</strong> concretizada.A Portaria 224/92, por outro la<strong>do</strong>, ao estabelecer condições <strong>de</strong> funcionamento <strong>do</strong>sserviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental (e manicomiais), dava início a um processo <strong>de</strong> fechamento <strong>de</strong>serviços hospitalares abso<strong>luta</strong>mente precários e “qualificava” os existentes 26 .Em <strong>de</strong>corrência da primeira portaria foram cria<strong>do</strong>s 48 hospitais-dia (29 públicos,11 contrata<strong>do</strong>s e 08 universitários), 57 CAPS/NAPS (46 públicos e 11 contrata<strong>do</strong>s), e1765 leitos psiquiátricos em hospitais gerais (595 públicos, 691 contrata<strong>do</strong>s e 434 universitários),o que parece ser suficiente para caracterizar a constituição <strong>de</strong> uma nova re<strong>de</strong>assistencial em psiquiatria. Já como conseqüência da segunda portaria, somada aotrabalho político <strong>de</strong> <strong>de</strong>sgaste da função terapêutica <strong>do</strong> manicômio, existente <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ofinal <strong>do</strong>s anos 70, o número <strong>de</strong> hospitais psiquiátricos que, em 1981 era 430 (357 priva<strong>do</strong>s/filantrópicos e 73 públicos), em 1991 caiu para 313 (259 priva<strong>do</strong>s/filantrópicos e 54públicos) e, ainda, em 1996, para 269 (219 priva<strong>do</strong>s/filantrópicos e 50 públicos). De1991 para 1996 foram fecha<strong>do</strong>s 17575 leitos psiquiátricos manicomiais 27 .Retornan<strong>do</strong> aos primeiros anos da década <strong>de</strong> 90, quan<strong>do</strong> já havia si<strong>do</strong> inicia<strong>do</strong> otrabalho <strong>de</strong> Santos e já estava aprovada na Câmara o PL 3657/89, foram realiza<strong>do</strong>simportantes eventos, <strong>de</strong>ntre os quais <strong>de</strong>stacam-se a 2ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Mental, em Brasília, no ano <strong>de</strong> 1992, e o I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial,realiza<strong>do</strong> em Salva<strong>do</strong>r, em 1993.Contan<strong>do</strong> com mais <strong>de</strong> 1.500 participantes, <strong>de</strong>ntre usuários, familiares, técnicos erepresentantes <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong> civil, a 2ª Conferência reconfirma os princípiosextraí<strong>do</strong>s da Conferência anterior e <strong>do</strong> Movimento, incorporan<strong>do</strong> tanto osprincípios da reforma sanitária como um to<strong>do</strong>, quanto os princípios da <strong>de</strong>sinstitucionalizaçãoenquanto um processo social e epistemológico complexo, centra<strong>do</strong> nãoapenas em medidas sanitárias e assistenciais, mas, também, em princípios conceituais eculturais 28 . Em outras palavras, a 2ª Conferência foi o momento estratégico <strong>de</strong> inclusãona política nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental <strong>do</strong>s princípios básicos da reforma psiquiátrica talcomo <strong>de</strong>finida anteriormente.26. Escrevi qualificava entre aspas no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> questionar, sen<strong>do</strong> coerente com os princípios <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al“uma socieda<strong>de</strong> sem manicômios”, a pertinência <strong>de</strong> humanizar ou mo<strong>de</strong>rnizar manicômios, na mesmalinha em que se po<strong>de</strong>ria argüir se seria possível ou <strong>de</strong>sejável humanizar ou mo<strong>de</strong>rnizar campos <strong>de</strong>concentração, por exemplo.27. Outras informações po<strong>de</strong>m ser encontradas em Alves, Domingos Sávio, et alii, 1996. “A reestruturaçãoda atenção em Saú<strong>de</strong> Mental no Brasil”. Ministério da Saú<strong>de</strong>, mimeo.28. Estima-se que, nas três etapas da Conferência, isto é, <strong>do</strong>s encontros preliminares até sua realização,cerca <strong>de</strong> 20.000 pessoas estiveram diretamente envolvidas no processo. Para maiores <strong>de</strong>talhes sobre aConferência ver: Ministério da Saú<strong>de</strong>, 1994. Relatório Final da 2ª Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental.Brasília: Cosam.174 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


LOUCOS PELA VIDA - AS TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO CULTURALO I Encontro Nacional da Luta Antimanicomial contou com cêrca <strong>de</strong> 500 participantes,<strong>do</strong>s quais um quarto era composto <strong>de</strong> usuários e familiares. Ten<strong>do</strong> como temacentral o próprio Movimento enquanto um movimento social, este encontro possibilitoua reavaliação <strong>de</strong> suas estratégias e princípios. Em alternativa ao lema “saú<strong>de</strong> para to<strong>do</strong>sno ano 2000”, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> vago e <strong>de</strong> utopia impraticável, o encontro lançou a palavra<strong>de</strong>-or<strong>de</strong>m“Brasil sem manicômios no ano 2000”, como base <strong>de</strong> uma outra utopia, possível<strong>de</strong> ser alcançada. Por outro la<strong>do</strong>, o encontro teve como tema a questão da assistênciatomada no contexto da <strong>de</strong>sinstitucionalização, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrar a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> que fossem rompidas as barreiras que a faziam compreen<strong>de</strong>r como merareorganização <strong>do</strong>s serviços sanitários, introduzin<strong>do</strong> a noção <strong>de</strong> “invenção”, isto é, <strong>de</strong>construção <strong>de</strong> novas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atenção e cuida<strong>do</strong> que não as tradicionais,centradas nos serviços <strong>de</strong> ambulatório, hospital-dia, em suma, <strong>de</strong> serviços médicosanitários.Como último tema <strong>de</strong> importância significativa, foi aborda<strong>do</strong> o princípio daintervenção cultural (a cultura como alvo, a cultura como meio), no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> amplificara noção <strong>de</strong>sta intervenção como possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação das práticas sociais nolidar com o sofrimento psíquico, com a <strong>do</strong>ença, com a diferença entre os sujeitos 29 .O Encontro <strong>de</strong> Salva<strong>do</strong>r teve muitos <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos, <strong>de</strong>ntre os quais o II Encontroem Belo Horizonte, em 1995, e os Encontros <strong>de</strong> Associações <strong>de</strong> Usuários e Familiares,inclusive com a elaboração da “Carta <strong>do</strong>s Direitos <strong>do</strong>s Usuários”. No mesmo senti<strong>do</strong>, oDia e a Semana da Luta Antimanicomial foram revigora<strong>do</strong>s com ativida<strong>de</strong>s por to<strong>do</strong> opaís. A socieda<strong>de</strong>, que era convocada a participar apenas em momentos <strong>de</strong> crises e<strong>de</strong>núncias, passava a participar regularmente <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate e das ações no campo da reformapsiquiátrica brasileira.Muitas estratégias foram postas em prática com este objetivo: <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as realizaçõesdas datas Antimanicomiais, com organização <strong>de</strong> eventos não apenas <strong>de</strong> caráter tecnocientífico(congressos, <strong>de</strong>bates, seminários), mas <strong>de</strong> caráter cultural (teatro, cinema,exposições <strong>de</strong> arte, blocos <strong>de</strong> carnaval), que têm como propósito envolver segmentos dasocieda<strong>de</strong> na percepção da questão da loucura/<strong>do</strong>ença mental e na resposta assistenciale cultural para com as mesmas.As camisetas, a<strong>de</strong>sivos e cartazes são um bom exemplo disto. A iniciativa, partida<strong>do</strong> Fórum Gaúcho <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental, em 1990, foi imediatamente a<strong>do</strong>tada peloMovimento em âmbito nacional. Inscrições <strong>de</strong> frases, trechos <strong>de</strong> músicas, poesias oudita<strong>do</strong>s populares, passaram a incitar o imaginário popular nas questões relativas aotema antimanicomial. “Loucos pela vida” (em que se procurava <strong>de</strong>spertar a idéia <strong>de</strong>loucura como possui<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> positivida<strong>de</strong> também, e não apenas <strong>de</strong> negativida<strong>de</strong>), “<strong>de</strong>perto ninguém é normal”, “sou louco por ti cidadania” (ambas <strong>de</strong> músicas <strong>de</strong> CaetanoVeloso), “eu vou ficar, com certeza, maluco beleza” (Raul Seixas, “razão <strong>de</strong>mais é loucura”(Cervantes), “<strong>de</strong> militonto a militante” (muito embora sempre tivesse consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> quepo<strong>de</strong>ríamos ser militontos sem qualquer perda <strong>do</strong> predica<strong>do</strong> da militância) são algumasdas inscrições que passaram a fazer parte <strong>do</strong> cotidiano, principalmente em seconsi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a alta militância política <strong>do</strong>s membros <strong>do</strong> Movimento que, entrementes,29. ver: NÚCLEO DE ESTUDOS PELA SUPERAÇÃO DOS MANICÔMIOS, 1993. Relatório final <strong>do</strong> EncontroNacional da Luta Antimanicomial. Salva<strong>do</strong>r: NESM/Ba.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>175


não <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> participar (com suas camisetas, a<strong>de</strong>sivos e cartazes) <strong>do</strong>s <strong>de</strong>maismovimentos da socieda<strong>de</strong> civil. São os mentaleiros!Na mídia, são poucos os movimentos sociais que conseguiram estar tão presentesnos jornais, rádios e televisões. O Projeto Tam-Tam foi uma das iniciativas que maisabriu perspectivas práticas neste senti<strong>do</strong>. Trabalhan<strong>do</strong> com usuários em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>produção <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o (TV Tam-Tam), <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> rádio (Rádio Tam-Tam), das própriascamisetas, enfim, <strong>de</strong> um tecla<strong>do</strong> <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s culturais, conseguiu chamar a atençãopara uma outra forma - que não aquela tradicional da violência e da estigmatização -,para a condição das pessoas porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> algum sofrimento psíquico ou em<strong>de</strong>svantagem social. Por outro la<strong>do</strong>, a partir da experiência <strong>de</strong> Santos, uma outrainiciativa cultural teve início: as cooperativas sociais. Trata-se <strong>de</strong> cooperativas que, ten<strong>do</strong>como associa<strong>do</strong>s indivíduos em <strong>de</strong>svantagem social, criam espaços para a produção,não apenas <strong>de</strong> materiais a serem comercializa<strong>do</strong>s e os lucros distribuí<strong>do</strong>s, mas <strong>de</strong>sociabilida<strong>de</strong> e subjetivida<strong>de</strong> daqueles que <strong>de</strong>las participam.As cooperativas passam a envolver os usuários como sujeitos sociais ativos que,rompen<strong>do</strong> com as noções <strong>de</strong> ergoterapia, arteterapia e terapia ocupacional, contam como sujeito em sua possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produzir, criar e consumir. Por outro la<strong>do</strong>, ascooperativas abrem uma outra possibilida<strong>de</strong> estratégica para o campo da saú<strong>de</strong> mental,uma vez que possibilitam a produção <strong>de</strong> recursos que po<strong>de</strong>m ser, parcialmente,reconverti<strong>do</strong>s em recursos “assistenciais”, tais como a construção <strong>de</strong> moradias abrigadas,<strong>de</strong> espaços <strong>de</strong> lazer, enfim a construção <strong>de</strong> novas possibilida<strong>de</strong>s sociais e subjetivas.A intervenção cultural tem como objetivo interferir na produção <strong>do</strong> imagináriosocial no que diz respeito à loucura, ao louco ou à <strong>do</strong>ença e ao <strong>do</strong>ente. O saber psiquiátrico,sem dúvida, construiu e legitimou, em gran<strong>de</strong> parte, as representações sociaissobre a questão, vinculan<strong>do</strong>-as às noções <strong>de</strong> irresponsabilida<strong>de</strong>, periculosida<strong>de</strong>, irracionalida<strong>de</strong>,e assim por diante. A intervenção cultural, principalmente partida <strong>do</strong>s própriosusuários e <strong>do</strong>s técnicos que com eles lidam, é uma estratégia fundamental paratransformar este imaginário, produzin<strong>do</strong> uma ruptura com esta escala <strong>de</strong> estigmas epreconceitos.Isto não significa dizer, no entanto, que na loucura inexistam sofrimento ou <strong>do</strong>r,mas que tais condições não invalidam os sujeitos, ou que não os tornam periculosos. Po<strong>de</strong>ríamosousar dizer que, algumas vezes, po<strong>de</strong>m até torná-lo mais susceptível para lidarcom <strong>de</strong>terminadas situações. Mas, é na própria organização <strong>do</strong>s novos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>mental, nos serviços da <strong>de</strong>sinstitucionalização, que este efeito transforma<strong>do</strong>r <strong>do</strong> imagináriosocial é mais eficaz e profun<strong>do</strong>. É no lidar cotidiano com as pessoas e familiares <strong>de</strong>problemas mentais que, superan<strong>do</strong> as formas anteriores <strong>de</strong> tratamento e assistência(internação em hospício, isolamento, invalidação e mortificação), e exercitan<strong>do</strong> novasformas <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong> e acolhimento, centradas em novas escutas, em novas formas <strong>de</strong>convívio, em novas formas <strong>de</strong> ação terapêutica, que as mudanças são maiores. Osfamiliares, que apren<strong>de</strong>ram com as próprias práticas psiquiátricas, que o seu familiar<strong>do</strong>ente <strong>de</strong>veria ser interna<strong>do</strong>, isola<strong>do</strong>, <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> enquanto cidadão, po<strong>de</strong>m apren<strong>de</strong>ruma outra forma <strong>de</strong> lidar com o mesmo, vislumbran<strong>do</strong> suas potencialida<strong>de</strong>s, suasdificulda<strong>de</strong>s e, enfim, uma outra trajetória <strong>de</strong> vida que não a da institucionalização.Um familiar aqui outro ali, um vizinho aqui outro acolá, a ca<strong>de</strong>ia se esten<strong>de</strong> e secomplexifica. As re<strong>de</strong>s sociais em torno <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes passam a perceber o quanto o estigmae a carreira moral são produtoras <strong>de</strong> comportamentos e condições <strong>de</strong> vida ainda mais<strong>de</strong>sviantes e sofridas.176 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O gran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> associações <strong>de</strong> familiares e usuários, este ator que parece terentra<strong>do</strong> <strong>de</strong>finitivamente no cenário da <strong>de</strong>sinstitucionalização, produz uma malha <strong>de</strong>reflexões e atuações permanentes em torno da questão da reforma psiquiátrica. Mesmoalgumas das associações, criadas a partir <strong>de</strong> pressões da Fe<strong>de</strong>ração Brasileira <strong>de</strong> Hospitais(FBH) no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> combater o PL 3657/89 ou o crescimento social e político <strong>do</strong>Movimento da Reforma Psiquiátrica, já não conseguem posicionar-se, como pretendiamos “empresários da loucura”, em <strong>de</strong>fesa irredutível das práticas manicomiais. A partir <strong>de</strong>seu envolvimento com as discussões, com as novas práticas que se estão <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong>,tais associações terminam por serem levadas a aceitar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma reforma nosetor, superan<strong>do</strong> assim alguns <strong>do</strong>s princípios que anteriormente <strong>de</strong>fendiam.Apesar <strong>de</strong> existirem algumas associações <strong>de</strong> familiares <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 70, foia partir da aprovação na Câmara <strong>do</strong> PL 3657/89 que se observou uma visível proliferaçãodas mesmas. Primeiro porque, a partir da Sosintra, uma das mais antigas <strong>de</strong>stasassociações, que passou a apoiar o PL, outras seguiram o mesmo rumo e, outras ainda,foram constituídas com o mesmo objetivo. Por outro la<strong>do</strong>, a FBH, assustada com a rápidaaprovação <strong>do</strong> PL na Câmara, passou a pressionar os familiares comunican<strong>do</strong>-lhes que oprojeto, uma vez a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> obrigalos-ia-os a <strong>de</strong>volver os pacientes às suas famílias que,sem qualquer apoio, assumiriam o pesa<strong>do</strong> ônus <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente em casa, sen<strong>do</strong> então criadaa Associação <strong>do</strong>s Familiares <strong>de</strong> Doentes Mentais (AFDM).Com o apoio da FBH, a AFDM logo tornou-se uma importante associação, namedida em que obteve apoio e recursos para participar <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os eventos relaciona<strong>do</strong>sao <strong>de</strong>bate sobre o PL 30 . A FBH, por outro la<strong>do</strong> ainda, acionou os setores acadêmicoscom os quais mantêm relações, e <strong>do</strong>s quais muitos <strong>do</strong>s proprietários associa<strong>do</strong>sfazem parte, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> opor uma resistência <strong>de</strong> caráter técnico-especialístico. Nestecontexto, o <strong>de</strong>bate sobre o PL acirra-se rapidamente e toma conta <strong>de</strong> sensível parte <strong>do</strong><strong>de</strong>bate nacional.A Associação Brasileira <strong>de</strong> Psiquiatria (ABP), uma das mais legítimas entida<strong>de</strong>s<strong>do</strong> setor, <strong>de</strong>cidiu apoiar o PL na medida em que, ameaçada pela “crise <strong>de</strong> vocações”,isto é, pela preocupante diminuição <strong>de</strong> associa<strong>do</strong>s, vislumbrara colocar-se no <strong>de</strong>bate <strong>de</strong>forma progressista e positiva. Mesmo com tal iniciativa, a ABP não logrou tornar-seuma entida<strong>de</strong> representativa <strong>do</strong>s psiquiatras ou, menos ainda, <strong>do</strong> Movimento da ReformaPsiquiátrica. Sua crise aumentara com o surgimento <strong>de</strong> duas outras entida<strong>de</strong>s, estas <strong>de</strong>tendência mais explicitamente organicistas, que absorveram parcela <strong>do</strong>s psiquiatras.Em resumo, os atores mais importante no atual contexto são as associações <strong>de</strong>usuários e familiares que, sob uma ótica geral, são membros constituintes <strong>do</strong> movimentosocial mais amplo no qual o MTSM pretendia, e alcançou, tornar-se.A DOENÇA ENTRE PARÊNTESES - AS TRANSFORMAÇÕES NOCAMPO CONCEITUALUm <strong>do</strong>s marcos da Reforma Psiquiátrica brasileira foi o alto investimento naquestão da formação <strong>de</strong> quadros. Já em 1982 foram inicia<strong>do</strong>s o Curso <strong>de</strong> Especialização30. O I Forum da AFDM, realiza<strong>do</strong> em Nova Friburgo/RJ, no perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 18 a 20 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1995, tevecomo co-patrocina<strong>do</strong>res a Clínica Santa Lúcia (Nova Friburgo) e os Hospitais Psiquiátricos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong><strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. AFDM, 1995. I Forum da AFDM. Nova Friburgo, RJ.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>177


em Psiquiatria Social (Convênio Colônia Juliano Moreira - Escola Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Pública), e o Curso Integra<strong>do</strong> em Saú<strong>de</strong> Mental (Convênio Centro Psiquiátrico Pedro II- Instituto <strong>de</strong> Medicina Social) que abriram caminho para um amplo processo <strong>de</strong> formação<strong>do</strong> pensamento crítico <strong>do</strong> campo. Atualmente existem muitos outros cursos eoutras modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> formação/reflexão, configuran<strong>do</strong>-se numa estratégia bastanteimportante <strong>do</strong> processo.Nos primeiros passos da reforma psiquiátrica brasileira o campo teórico foifortemente marca<strong>do</strong>, por um la<strong>do</strong>, pelas experiências internacionais <strong>de</strong> transformaçãoda instituição psiquiátrica - comunida<strong>de</strong> terapêutica, psicoterapia institucional,psiquiatria <strong>de</strong> setor, antipsiquiatria - e, por outro, por algumas obras provenientes <strong>de</strong>campos varia<strong>do</strong>s, tais como da filosofia, sociologia e antropologia. Algumas <strong>de</strong>stasinfluências assumem um papel <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>staque nos primeiros momentos <strong>do</strong> MTSM.No âmbito das experiências, merece <strong>de</strong>staque, inicialmente, a <strong>de</strong> Franco Basaglia, namedida em que, no mesmo ano da constituição <strong>do</strong> MTSM (1978) foi aprovada na Itáliaa Lei 180 que propõe, pela primeira vez na história, o fim <strong>do</strong> manicômio enquanto aparatopsiquiátrico, e sua substituição por outros meios <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s e acolhimento. Mais queuma “psiquiatria reformada”, a experiência <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ada por Basaglia <strong>de</strong>u início àuma profunda transformação epistemológica e cultural quanto à questão da loucura eda psiquiatria 31 . A Lei 180 surgia em conseqüência <strong>de</strong> uma longa jornada, iniciada emGorizia e continuada, com correções, em Trieste, que tinha como princípio a<strong>de</strong>sconstrução <strong>do</strong> manicômio como estratégia para a <strong>de</strong>sinstitucionalização. ComBasaglia o Movimento pela Reforma Psiquiátrica vislumbra o prima<strong>do</strong> da negação dapsiquiatria enquanto i<strong>de</strong>ologia, na medida em que se percebe que a psiquiatria “ten<strong>de</strong>a fornecer justificativas teóricas e respostas práticas à uma realida<strong>de</strong> que a própria ciênciacontribui para produzir, nas formas mais a<strong>de</strong>quadas à conservação <strong>do</strong> sistema que estáinserida” 32 .No aspecto <strong>do</strong>s antece<strong>de</strong>ntes mais especificamente teóricos, em primeiro lugar aHistória da loucura na Ida<strong>de</strong> Clássica, <strong>de</strong> Foucault, foi a obra que viria amplificar o contextoprático-teórico da <strong>de</strong>sconstrução 33 . Imerso na problemática da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações entre aspráticas sociais e institucionais e os saberes que fundaram a psiquiatria, o trabalho <strong>de</strong>Foucault <strong>de</strong>monstra que, nem a psiquiatria, nem a <strong>do</strong>ença mental existiram <strong>de</strong>s<strong>de</strong>sempre. A psiquiatria é revelada como um saber historicamente data<strong>do</strong> que, num<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> contexto, edifica o objeto <strong>do</strong>ença mental enquanto objeto médico-científico.O saber psiquiátrico opera a passagem que transforma a loucura em <strong>do</strong>ença mental e,assim, muda a história <strong>do</strong> conceito e da própria experiência da loucura na socieda<strong>de</strong>oci<strong>de</strong>ntal.A partir <strong>de</strong> Foucault a psiquiatria passa a ser entendida não como o lugar <strong>do</strong>tratamento, da libertação da loucura, mas <strong>de</strong> um novo território restrito ao muros <strong>do</strong>31. A expressão “psiquiatria reformada” foi cunhada por Franco Rotelli para caracterizar o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> nãoruptura, ou mais propriamente “mo<strong>de</strong>rniza<strong>do</strong>r” <strong>do</strong> velho espírito psiquiátrico, que estaria manti<strong>do</strong>nas reformas anteriores à italiana (Rotelli, Franco, 1994. Per la normalità - Taccuino di uno psichiatra.Trieste: Edizioni “e”. Em certo senti<strong>do</strong>, correspon<strong>de</strong> à mesma idéia impressa na noção <strong>de</strong> aggiornamento<strong>de</strong> Castel (Castel, Robert, 1978. A or<strong>de</strong>m psiquiátrica - A ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro <strong>do</strong> alienismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal.32. Ver: Basaglia, Franca Ongaro, 1981. Basaglia scritti. Torino: Einaudi, pp. xxii. Quanto à noção <strong>de</strong> negaçãoda instituição psiquiátrica enquanto i<strong>de</strong>ologia ver Basaglia, Franco, et alii, 1985, A instituição negada -Relato <strong>de</strong> um hospital psiquiátrico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal.33. Foucault, Michel, 1978. A história da loucura na Ida<strong>de</strong> Clássica. São Paulo: Perspectiva.178 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


hospício e das malhas <strong>do</strong> discurso e da prática médica. Por outro la<strong>do</strong>, na medida emque a psiquiatria é construída numa zona <strong>de</strong> fronteira entre a justiça e a norma médicae social, o asilo cumpre uma função normaliza<strong>do</strong>ra ao mesmo tempo médica e jurídica,que em nada po<strong>de</strong> ser diferenciada daquela <strong>do</strong> manicômio judiciário. É, <strong>de</strong>sta feita, quea expressão manicômio passa a ser utilizada genericamente para explicitar a função<strong>de</strong>sta instituição ambígua: “a sobreposição entre o gesto que pune e que trata” 34 .O estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> Goffman viria complementar as reflexões quanto à natureza <strong>do</strong> asilopsiquiátrico, contribuin<strong>do</strong> <strong>de</strong>cisivamente para a estratégia da <strong>de</strong>sinstitucionalizaçãodas práticas e saberes psiquiátricos 35 . A partir <strong>de</strong> uma análise microssociológica, o asilopsiquiátrico é iguala<strong>do</strong> à outras instituições <strong>de</strong> controle e violência, que Goffman passaa <strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> “instituições totais”. Esmiuçan<strong>do</strong> os mecanismos e sistemas <strong>de</strong>stamodalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> institucionalização, on<strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacam a carreira moral, a estigmatizaçãoou a mortificação <strong>do</strong> eu, a noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalização torna-se mais completa ecomplexa. Funda<strong>do</strong> no limite da medicina e da justiça, com mecanismos <strong>de</strong> controle,violência e tutela, o hospício não po<strong>de</strong> ser mais vislumbra<strong>do</strong> como um espaço terapêutico.Uma outra obra, em que pese sua natureza não “científica”, é resgatada no contexto<strong>de</strong>stes primeiros passos: trata-se <strong>de</strong> O alienista, <strong>de</strong> Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Assis, a maisimportante obra nacional para o projeto da <strong>de</strong>sinstitucionalização no âmbito em queestá sen<strong>do</strong> abordada neste ensaio. O alienista é, sem dúvida, a mais impie<strong>do</strong>sa crítica,não apenas à psiquiatria, mas ao projeto da ciência da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, que julgaram serpossível <strong>de</strong>terminar e construir, à partir da ciência, uma socieda<strong>de</strong> perfeita 36 .O termo <strong>de</strong>sinstitucionalização, que havia surgi<strong>do</strong> nos EUA, a partir <strong>do</strong> Plano <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> Mental <strong>do</strong> Governo Kennedy, enquanto um conjunto <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sospitalização(prevenção <strong>de</strong> internações, diminuição <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> internação, promoção <strong>de</strong>altas hospitalares), passa a ser re<strong>de</strong>scrito enquanto <strong>de</strong>sconstrução. Embora muitas outrascontribuições tenham si<strong>do</strong> importantes neste senti<strong>do</strong> 37 , foi a experiência <strong>de</strong> Basagliaque <strong>de</strong>monstrou ser possível, na prática, estabelecer uma outra relação com a loucuraque não aquela da psiquiatria tradicional, sen<strong>do</strong> assim fundamental para a estratégiada <strong>de</strong>sinstitucionalização enquanto <strong>de</strong>sconstrução.Inspira<strong>do</strong> pelas experiências sucedidas em outros países, Basaglia iniciou seutrabalho em Gorizia com a expectativa <strong>de</strong> transformar o manicômio em um lugar <strong>de</strong>cura, o que seria viabiliza<strong>do</strong>, basicamente, pela implantação <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong> terapêuticaque teria como base teórica os princípios <strong>de</strong> Maxwell Jones e François Tosquelles.O contato direto com o manicômio faz com que, no entanto, a psiquiatria seja percebidaenquanto um saber que, ao colocar o sujeito entre parênteses, passa a se ocupar <strong>de</strong> umaentida<strong>de</strong> abstrata, a <strong>do</strong>ença que, conforme as verificações <strong>de</strong> Foucault, ela própriacontribui para produzir.34. Barros, Denise Dias, 1994. Jardins <strong>de</strong> Abel: a <strong>de</strong>sconstrução <strong>do</strong> manicômio <strong>de</strong> Trieste. São Paulo: Edusp/Lemos Editorial, pp. 34.35. Goffman, Erwin, 1974. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.36. Sob este aspecto uma importante análise <strong>de</strong> O alienista nos é oferecida por Muricy, Kátia, 1988. A razãocética: Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Assis e as questões <strong>de</strong> seu tempo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Cia das Letras.37. É preciso ressaltar, por exemplo, as contribuições <strong>de</strong> Thomas Szasz, David Cooper, Ronald Laing, RobertCastel, <strong>de</strong>ntre outros, que contém atributos muito importantes para esta trajetória da<strong>de</strong>sinstitucionalização.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>179


A instituição psiquiátrica <strong>de</strong>veria ser então negada, enquanto saber e po<strong>de</strong>r. Numaatitu<strong>de</strong> autenticamente husserliana, Basaglia propõe inverter esta estratégia, isto é,colocar a <strong>do</strong>ença mental entre parênteses, para po<strong>de</strong>r lidar e perceber o sujeito em suaexperiência-sofrimento 38 . Basaglia enten<strong>de</strong> que “a objetivação <strong>do</strong> homem em síndromes(...) tem ti<strong>do</strong> conseqüências extremamente irreversíveis no <strong>do</strong>ente que - originalmenteobjetiva<strong>do</strong> e restrito aos limites da <strong>do</strong>ença - fôra confirma<strong>do</strong> como categoria fora <strong>do</strong>humano por uma ciência que <strong>de</strong>veria distanciar-se e excluir aquilo que não estava emgrau <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r” 39 .O colocar a <strong>do</strong>ença mental entre parênteses não é, portanto, a negação da loucuraou <strong>do</strong> sofrimento, mas um procedimento epistemológico <strong>de</strong> suspen<strong>de</strong>r o conceito <strong>de</strong><strong>do</strong>ença mental enquanto saber produzi<strong>do</strong> pela psiquiatria. Assim, a <strong>do</strong>ença mental entreparênteses é, a um só tempo, a ruptura com o saber psiquiátrico enquanto obstáculoepistemológico, e a condição <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma outra relação da socieda<strong>de</strong> paracom os sujeitos porta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> sofrimento.Sob o diagnóstico <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença mental to<strong>do</strong>s os sujeitos tornam-se iguais, e ainstitucionalização mesma contribui para constituir os próprios estereótipos e trejeitosque serão soma<strong>do</strong>s ao rol <strong>do</strong>s sinais e sintomas. Desconstruir o saber psiquiátrico e omanicômio significa então estabelecer uma relação que não passe primariamente pelodiagnóstico, pelo sintoma ou pela <strong>do</strong>ença. É <strong>de</strong>sta forma que, inspira<strong>do</strong> num texto <strong>de</strong>Artaud 40 , Basaglia <strong>de</strong>senvolve a noção <strong>de</strong> duplo da <strong>do</strong>ença mental, enquanto o conjunto<strong>de</strong> incrustações institucionais, sociais e culturais que são impregnadas aos sujeitosobjetiva<strong>do</strong>s pelo saber e práticas psiquiátricas.A <strong>de</strong>sinstitucionalização surge então como uma estratégia <strong>de</strong> negação da psiquiatriaenquanto i<strong>de</strong>ologia realizada na prática, isto é, na <strong>de</strong>smontagem <strong>do</strong>s aparatosjurídicos, conceituais e sócio-culturais que se edificaram sobre a noção <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença mental.As práticas sociais e culturais para com a loucura tornada <strong>do</strong>ença mental mantém umarelação <strong>de</strong> estreita inter<strong>de</strong>pendência com o saber da medicina mental: Foucault<strong>de</strong>monstra, por exemplo, como a percepção médica incorporou elementos da percepçãosocial para constituir o conceito <strong>de</strong> alienação mental, num primeiro momento, e <strong>de</strong> <strong>do</strong>ençamental, logo após. E, uma vez constituída a psiquiatria enquanto ciência, é esta ainfluenciar o imaginário social quanto ao que vem a ser o louco, o <strong>do</strong>i<strong>do</strong>, o <strong>do</strong>ente, aloucura, a <strong>do</strong>ença mental. Dan<strong>do</strong> continuida<strong>de</strong>, Basaglia parte <strong>do</strong> pressuposto <strong>de</strong> que apsiquiatria <strong>de</strong>veria exercitar uma nova prática para com a loucura e, assim, produzirum novo imaginário social.Após a morte <strong>de</strong> Basaglia, em agosto <strong>de</strong> 1980, o MTSM distanciou-se <strong>de</strong> suasidéias mais fundamentais e viu-se envolvi<strong>do</strong>, a partir da estratégia da ocupação <strong>de</strong>espaços nos centros <strong>de</strong> tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão das políticas públicas, com <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>sprincípios que aproximavam a noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalização daquela <strong>de</strong><strong>de</strong>sospitalização. De uma forma geral, o mesmo aconteceu em outros países, quan<strong>do</strong> aexperiência basagliana per<strong>de</strong>u o interesse que teve originalmente, fortemente associadaao movimento contra-cultural <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 68. Contu<strong>do</strong>, sob a condução <strong>de</strong> Franco Rotelli,38. Trata-se da noção <strong>de</strong> épochè ou redução fenomenológica <strong>de</strong> Edmund Husserl.39. Basaglia, Franco e Basaglia, Franca Ongaro. Un problema di psichiatria istituzionale (dalla vitaistituzionale alla vita di comunità). In: Basaglia scritti I (F.O. Basaglia, 1981, org.), 309-328. Torino: Einaudi,pp. 309-310.40. Trata-se <strong>de</strong> O teatro e seu duplo <strong>de</strong> Antonin Artaud.180 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


a experiência triestina, mais que a média das experiências italianas, sofreu umasubstancial radicalização e, nos últimos anos da década <strong>de</strong> 80, reapareceu como umadas mais importantes no cenário internacional.É Rotelli quem, fundamentalmente, re<strong>de</strong>screve o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalizaçãoenquanto o processo prático-crítico que reorienta instituições e serviços, energiase saberes, estratégias e intervenções, em torno não mais da <strong>do</strong>ença mental, mas daexistência-sofrimento <strong>do</strong>s sujeitos em sua relação com o corpo social. Um novo objeto,portanto, que não é mais objeto, mas sujeito; e, por outro la<strong>do</strong>, não mais uma situaçãoestática, mas em permanente <strong>de</strong>sequilíbrio. Como resulta<strong>do</strong>, a questão torna-se, emsuas palavras, não mais o tratamento, mas a emancipação, não mais a restituição dasaú<strong>de</strong>, mas sua invenção, não a reparação, mas a reprodução social das pessoas, emoutras palavras, o processo <strong>de</strong> singularização e ressingularização 41 . No lugar da práticapsiquiátrica, <strong>de</strong> pesquisar a nosografia da negativida<strong>de</strong>, isto é, <strong>de</strong> operar a i<strong>de</strong>ntificação<strong>do</strong>s sinais e sintomas enquanto representantes da irracionalida<strong>de</strong>, periculosida<strong>de</strong>,insensatez, a nova prática, da nosografia das positivida<strong>de</strong>s, procura perceber e produzirpositivida<strong>de</strong>s e autonomias.As cooperativas sociais, criadas nos primeiros momentos da <strong>de</strong>sconstrução <strong>do</strong>manicômio <strong>de</strong> Trieste, foram amplificadas enquanto empresas sociais, isto é, um conjunto<strong>de</strong> iniciativas, serviços, estruturas, trocas sociais, idéias, que visam produzir os processos<strong>de</strong> singularização e ressingularização. A estratégia da <strong>de</strong>sinstitucionalização se esten<strong>de</strong>no território, modifican<strong>do</strong> as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e saber entre as pessoas em torno <strong>do</strong>sobjetos loucura, <strong>de</strong>svio, diversida<strong>de</strong>.Desconstruí<strong>do</strong> o manicômio, e <strong>de</strong>sconstruídas as relações tradicionais entre psiquiatriae <strong>do</strong>ença mental, que informavam as relações entre socieda<strong>de</strong> e loucura, éinstalada uma extensa e complexa re<strong>de</strong>, não apenas <strong>de</strong> serviços territoriais emblematiza<strong>do</strong>spelos centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental, mas também pelas empresas sociais,associações, iniciativas sociais e culturais.Com tal suporte, por ocasião <strong>do</strong> II Congresso <strong>de</strong> Trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo, surgiu uma nova tendência no interior <strong>do</strong> MTSM, <strong>de</strong>nominada<strong>de</strong> Plenária <strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental. Composta <strong>de</strong> muitos técnicos, recémchega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> perío<strong>do</strong>s <strong>de</strong> estágio em Trieste, a Plenária <strong>de</strong>u início a uma ruptura com asestratégias então hegemônicas no Movimento. Foi por intermédio <strong>de</strong>sta nova tendênciaque o MTSM po<strong>de</strong> reencontrar suas origens mais primárias e, assim, dar início a umprocesso <strong>de</strong> reconstrução <strong>de</strong> sua plataforma. Ao MTSM foi possibilita<strong>do</strong> atualizar-sequanto aos <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos da experiência triestina e, mais que isso, aos <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentosno campo teórico, opera<strong>do</strong>s pelos autores na tradição basagliana.Sob a li<strong>de</strong>rança <strong>do</strong>s participantes da Plenária foi convocada a reunião paralela àI Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Mental e, como conseqüência, o II Congresso Nacional<strong>do</strong>s Trabalha<strong>do</strong>res em Saú<strong>de</strong> Mental, em Bauru, on<strong>de</strong> o Movimento <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser compostopor técnicos em <strong>de</strong>fesa da mo<strong>de</strong>rnização <strong>do</strong> aparato psiquiátrico, para tornar-seuma articulação social <strong>de</strong> <strong>luta</strong> antimanicomial. Ainda pela iniciativa <strong>de</strong> membros daPlenária, foi publica<strong>do</strong> no Brasil o livro Desinstitucionalização 42 , com textos <strong>de</strong> FrancoRotelli e colabora<strong>do</strong>res, que <strong>de</strong>u início a uma nova etapa da discussão e estratégiasquanto à Reforma Psiquiátrica.41. Rotelli, Franco, 1994. Per la normalità - Taccuino di uno psichiatra. Trieste: Edizioni “e”.42. Nicácio, Fernanda, org., 1990. Desinstitucionalização. São Paulo: Hucitec.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>181


DE PERTO NINGUÉM É ANORMAL - A TÍTULO DE INCONCLUSÃOO Movimento da Reforma Psiquiátrica – na permanente falta <strong>de</strong> melhor <strong>de</strong>nominação43 –, tem si<strong>do</strong> caracteriza<strong>do</strong> como um <strong>do</strong>s mais vigorosos e persistentesmovimentos sociais no Brasil contemporâneo. Diferentemente <strong>de</strong> outros movimentos,que apenas reivindicam ganhos materiais (em que pese a importância <strong>de</strong> tais reivindicações),o Movimento da Reforma Psiquiátrica aproxima-se <strong>do</strong>s movimentos <strong>de</strong> caráterautenticamente <strong>de</strong>mocrático e social, na medida em que reivindica e <strong>luta</strong> efetivamentepor uma melhor qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida em seu senti<strong>do</strong> mais amplo (solidarieda<strong>de</strong>,igualda<strong>de</strong>, cidadania). Nasci<strong>do</strong> parcialmente no âmbito <strong>do</strong> Movimento da ReformaSanitária, soube ir bem mais longe: colocou em discussão o mo<strong>de</strong>lo médico-psicológico<strong>de</strong> produção <strong>de</strong> conhecimento sobre o objeto <strong>do</strong>ença e sobre a noção <strong>de</strong> terapêutica.Embora o Movimento da Reforma Sanitária tenha nasci<strong>do</strong> calca<strong>do</strong> fundamentalmentena crítica ao mo<strong>de</strong>lo médico, <strong>de</strong>la se distanciou ao mesmo tempo em que se aproximoudas estratégias <strong>do</strong> planejamento normativo, nas quais é ainda fortemente apega<strong>do</strong>.Por ter rompi<strong>do</strong> com a racionalida<strong>de</strong> médica, o Movimento da Reforma Psiquiátricaconseguiu sair das malhas restritas das políticas oficiais, conseguiu construirsituações no exterior <strong>do</strong> aparato oficial, conseguiu romper com o mo<strong>de</strong>lo assistencialistatradicional. Enquanto o Movimento da Reforma Sanitária continua reivindican<strong>do</strong> maisserviços, mais recursos humanos e mais tecnologias, o da Reforma Psiquiátrica querre<strong>de</strong>fini-los.Embora o Esta<strong>do</strong> tenha incorpora<strong>do</strong> as diretrizes <strong>do</strong> Movimento da Reforma Psiquiátrica,cumpre assinalar uma importante singularida<strong>de</strong>: as formulações <strong>de</strong> políticaspúblicas, que sempre vêm <strong>de</strong> “cima para baixo”, como se usa dizer, no caso específicoda situação que abordamos fizeram o percurso inverso. Neste senti<strong>do</strong>, em que pesem asimportantes medidas assumidas pelo Esta<strong>do</strong> brasileiro no senti<strong>do</strong> da <strong>de</strong>sinstitucionalizaçãopsiquiátrica proposta pelo Movimento, é importante observar que o Esta<strong>do</strong>ten<strong>de</strong> a apropriar-se das mesmas, o que produz efeitos <strong>de</strong> banalização, burocratização e<strong>de</strong>squalificação <strong>do</strong> processo que, por <strong>de</strong>finição, <strong>de</strong>ve estar em permanente <strong>de</strong>sequilíbrio,em permanente <strong>de</strong>sconstrução/invenção.Em outras palavras, o Movimento que conseguiu reunir milhares <strong>de</strong> pessoas emvárias ocasiões po<strong>de</strong> tornar-se um aparelho accessório das políticas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; os interessesque hoje o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> e impõe, não são necessariamente os interesses da<strong>de</strong>sinstitucionalização tal como a enten<strong>de</strong>mos.A preocupação tem fundamento na medida em que esta apropriação existiu nosperío<strong>do</strong>s da Co-gestão ou <strong>do</strong> Conasp, o que se esten<strong>de</strong> também para o Movimento daReforma Sanitária, com a distinção <strong>de</strong> que este último <strong>de</strong>la não conseguiu <strong>de</strong>svencilharse.43. O nome <strong>do</strong> movimento tem si<strong>do</strong> um histórico problema. Nos momentos <strong>de</strong> sua constituição já se discutiase <strong>de</strong>veria <strong>de</strong>nominar-se movimento <strong>de</strong> profissionais ou <strong>de</strong> técnicos, <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> mental ou em saú<strong>de</strong> mental,e assim por diante, refletin<strong>do</strong> posições políticas e i<strong>de</strong>ológicas <strong>de</strong> suas tendências. Por ocasião datransformação em movimento social, o <strong>de</strong>bate em torno da <strong>de</strong>nominação girava em torno <strong>de</strong> seranti(antimanicomial) ou sem(manicômios), ou pró(reforma psiquiátrica). A expressão reforma tambémtem si<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> longas discussões, como vimos, assim como saú<strong>de</strong> mental. Sabemos que a expressãosaú<strong>de</strong> mental nasceu da psiquiatria preventiva como a utopia <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> sem sofrimentos, <strong>do</strong>ençasou <strong>do</strong>res, portanto, um i<strong>de</strong>al higienista. Tenho insisti<strong>do</strong> no termo Movimento da Reforma Psiquiátricapor sua generalida<strong>de</strong>, assim como pela possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> construir parcerias em outros setores, mas sempreten<strong>de</strong>r resolver a questão, na medida em que a enten<strong>do</strong> como um processo permanente.182 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


As portarias <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> que introduzem e normalizam as novas modalida<strong>de</strong>se procedimentos na assistência em saú<strong>de</strong> mental representam um avançosignificativo, na medida em que viabilizam o financiamento <strong>do</strong>s mesmos, sem o qualnão há serviços ou ações. As propostas antes “alternativas” ao mo<strong>de</strong>lo tradicional nãosaíam efetivamente <strong>do</strong> papel ou das idéias, pois não eram <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s recursos financeirospara tanto. Um aspecto, contu<strong>do</strong>, é preocupante: trata-se da equiparação teórica emeto<strong>do</strong>lógica entre CAPS e NAPS. Como vimos, são duas propostas política econceitualmente distintas em que a segunda foi reduzida à primeira. O CAPS é umserviço intermediário e “alternativo” (na medida em que assume o paralelismo com osistema manicomial, embora seja estratégico em <strong>de</strong>terminadas situações); já o NAPS,um serviço substitutivo, que tem fundamento na <strong>de</strong>sconstrução <strong>do</strong> sistema anterior.Esta redução é, sem dúvida, um aspecto que <strong>de</strong>ve ser enfrenta<strong>do</strong> no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> quesejam diferencia<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>is sistemas e que o primeiro caminhe na direção <strong>do</strong> segun<strong>do</strong>.Um outro aspecto importante a ser enfrenta<strong>do</strong> diz respeito à possibilida<strong>de</strong>,oferecida pelo Ministério da Saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> cre<strong>de</strong>nciamento <strong>de</strong> serviços territoriais (CAPS eNAPS) priva<strong>do</strong>s. Ao funcionarem sob a égi<strong>de</strong> <strong>do</strong> lucro, os serviços priva<strong>do</strong>s colocamseriamente em risco um <strong>do</strong>s mais caros princípios da noção <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>, que é oprincípio da “tomada <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong>”. Este refere-se ao compromisso <strong>de</strong> dispor,integral e continuamente, <strong>de</strong> uma gama plurimorfa <strong>de</strong> ações sanitárias, sociais e culturais:as ações privadas, no entanto, como têm <strong>de</strong>monstra<strong>do</strong> suas práticas, terminam quan<strong>do</strong>o lucro se torna ameaça<strong>do</strong>. Mais que isso, os serviços territoriais não po<strong>de</strong>m serentendi<strong>do</strong>s como fornece<strong>do</strong>res <strong>de</strong> ações meramente sanitárias, mas como espaçosconcretos e simbólicos <strong>de</strong> ações complexas, múltiplas e intermitentes, em to<strong>do</strong> o campo<strong>do</strong> território. Em resumo, o cre<strong>de</strong>nciamento <strong>de</strong> serviços priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong>sta natureza indicamuma forte contradição no âmbito da Reforma Psiquiátrica.A questão da <strong>de</strong>nominação <strong>do</strong> Movimento, também não é uma questão menor. Acada vez que se discute a <strong>de</strong>nominação, está-se discutin<strong>do</strong> os projetos, os rumos, asestratégias. “De perto ninguém é normal”, uma importante estratégia no senti<strong>do</strong> daconstrução <strong>de</strong> um imaginário social volta<strong>do</strong> para o questionamento <strong>do</strong>s conceitos <strong>de</strong>normalida<strong>de</strong>/anormalida<strong>de</strong>, e que se tornou emblemática da ação cultural <strong>do</strong>Movimento, por exemplo, <strong>de</strong>ve ser re<strong>de</strong>scrito nas atuais circunstâncias. A indústriafarmacêutica, por exemplo, po<strong>de</strong> se valer <strong>de</strong>sta insígnia para viabilizar um amploprocesso <strong>de</strong> medicalização da normalida<strong>de</strong>: se <strong>de</strong> perto ninguém é normal, então to<strong>do</strong>spo<strong>de</strong>m, ou <strong>de</strong>vem, receber uma prescrição medicamentosa. As pesquisasepi<strong>de</strong>miológicas, cujos méto<strong>do</strong>s são pouco claros ou divulga<strong>do</strong>s, transbordam pela mídiatentan<strong>do</strong> convencer à socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que somos to<strong>do</strong>s fóbicos ou <strong>de</strong>primi<strong>do</strong>s ou ansiosos.Venturini, como exemplo, sugere-nos que se <strong>de</strong> perto ninguém é normal, po<strong>de</strong>-se afirmartambém que “<strong>de</strong> perto ninguém é anormal”, no senti<strong>do</strong> “<strong>de</strong> po<strong>de</strong>r superar o conceito<strong>de</strong> cura com aquele <strong>de</strong> experiência complexa, <strong>de</strong> entrelaçamento <strong>de</strong> ‘sistemas <strong>de</strong>sistemas’”. 44 Por outro la<strong>do</strong>, na crise <strong>do</strong>s princípios e parâmetros da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, éoportuno ter em mente que novos lugares sociais serão construí<strong>do</strong>s a partir <strong>do</strong>s novosparadigmas sociais, culturais e científicos. Assim, um novo lugar para a loucura, para aanormalida<strong>de</strong>, para a diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve estar também em construção. O que faria SimãoBacamarte com a loucura no século XXI?44. Venturini, Ernesto, 1995. Prefácio. In: Loucos pela vida - A trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil, op.cit., pp. 15-19.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>183


Um outro aspecto diz respeito à noção <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinstitucionalização. Esta não é umméto<strong>do</strong> ou <strong>do</strong>gma, mas uma estratégia. Não se alcança a completa e perfeita <strong>de</strong>sinstitucionalizaçãopois trata-se <strong>de</strong> um processo permanente que diz respeito aos entendimentosculturais, sociais e técnicos no lidar com o sofrimento, com as situações <strong>de</strong>diferenças e diversida<strong>de</strong>s. A<strong>do</strong>tar a <strong>de</strong>sinstitucionalização significa também superar aburocratização ou banalização <strong>do</strong>s novos projetos, das relações estabelecidas entre aspessoas envolvidas numa instituição.A <strong>de</strong>sinstitucionalização não é sinônimo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sativação <strong>de</strong> leitos ou hospitaispsiquiátricos (e ainda restam 67.462 por fechar. E quanto à efetiva superação <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>loé necessária uma <strong>de</strong>finição mais precisa <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, somada à uma pressãomais <strong>de</strong>cisiva <strong>do</strong> Movimento). É um processo contínuo <strong>de</strong> invenção <strong>de</strong> novas formassociais no lidar com a loucura, a diferença e o sofrimento humano.Permitam-me finalizar parafrasean<strong>do</strong> Basaglia: espero que, num tempo não muitodistante, a história <strong>de</strong>ste processo seja escrita com a história <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> muitas pessoasque já não estão ten<strong>do</strong> o manicômio, a institucionalização, o estigma e a discriminaçãocomo <strong>de</strong>stino irrefutável. Que seja escrita com muitas histórias <strong>de</strong> muitas novas estóriaspara suas vidas.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASASSOCIAÇÃO DOS FAMILIARES DE DOENTES MENTAIS (AFDM), 1995. I Fórum da AFDM. NovaFriburgo, Rio <strong>de</strong> Janeiro, mimeo.AMARANTE, Paulo, org, 1995. Loucos pela vida: a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Panorama ENSP.BARROS, Denise Dias, 1994. Os jardins <strong>de</strong> Abel: a <strong>de</strong>sconstrução <strong>do</strong> manicômio <strong>de</strong> Trieste. São Paulo:Edusp/Lemos.BASAGLIA, Franca Ongaro, 1981. Basaglia scritti. Torino: Einaudi.BASAGLIA, Franco e BASAGLIA, Franca Ongaro, 1981. Un problema di psichiatria istituzionale (dallavita istituzionale alla vita di comunità). In: Basaglia scritti (F.O Basaglia, org.), Torino: Einaudi,pp. 309-328.BASAGLIA, Franco, 1985. A instituição negada - Relato <strong>de</strong> um hospital psiquiátrico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal.CASTEL, Robert, 1978. A or<strong>de</strong>m psiquiátrica - A ida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ouro <strong>do</strong> alienismo. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal.<strong>CEBES</strong>, 1980a. A psiquiatria no âmbito da Previdência Social. In: Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, 10, abr/mai/jun., pp. 45-48.<strong>CEBES</strong>, 1980b. Condições <strong>de</strong> assistência ao <strong>do</strong>ente mental. In: Revista Saú<strong>de</strong> em Debate, 10, abr/mai/jun., pp. 49-55.CERQUEIRA, Luís, 1984. Psiquiatria social - Problemas brasileiros <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> mental. Rio <strong>de</strong> Janeiro/SãoPaulo: Atheneu.DELGADO, Paulo, 1989. Projeto <strong>de</strong> Lei nº 3.657/89. Brasília: Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s.DELL’ACQUA, Giuseppe et alii, 1988. Risposta alla crisi. Strategie ed intenzionalità <strong>de</strong>ll’interventonel servizio psichiatrico territoriale. Per la Salute Mentale, Trieste: Edizione “e”.FOUCAULT, Michel, 1978. A historia da loucura na Ida<strong>de</strong> Clássica. São Paulo: Perspectiva.GOFFMAN, Erwin, 1974. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva.GOLDBERG, Jairo, 1992. A <strong>do</strong>ença mental e as instituições - A perspectiva <strong>de</strong> novas praticas. Dissertação<strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, São Paulo: Departamento <strong>de</strong> Medicina Preventiva da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Medicina daUSP.184 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


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186 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Direito Sanitário:Inovação Teórica e Novo Campo <strong>de</strong> TrabalhoSueli Gan<strong>do</strong>lfi DallariPaulo Antonio <strong>de</strong> Carvalho FortesA construção <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>; Saú<strong>de</strong> e direitos humanos; Direito sanitário:conceito e evolução; Ensino, pesquisa e prática <strong>do</strong> Direito Sanitário.A CONSTRUÇÃO DO DIREITO À SAÚDEO reconhecimento <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>, nas socieda<strong>de</strong>s contemporâneas, têm si<strong>do</strong>objeto <strong>de</strong> polêmicas envolven<strong>do</strong> políticos, advoga<strong>do</strong>s, cientistas sociais, economistas eprofissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Dicute-se, especialmente, a eficácia <strong>do</strong> argumento jurídico emrelação aos direitos sociais e as externalida<strong>de</strong>s que não po<strong>de</strong>m ser internalizadas naavaliação da saú<strong>de</strong> enquanto bem econômico. Entretanto, nos novos Esta<strong>do</strong>s e naquelesradicalmente reforma<strong>do</strong>s 1 , assim como nas socieda<strong>de</strong>s mais tradicionais e <strong>de</strong>senvolvidas,existe interesse inafastável no tratamento da saú<strong>de</strong> como direito. De fato, auniversalização <strong>do</strong> acesso às ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> - componente essencial <strong>do</strong> direitoà saú<strong>de</strong> - é tema da pauta <strong>de</strong> reivindicações populares e <strong>de</strong> fora científicos, tanto nosEsta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América 2 quanto na África <strong>do</strong> Sul 3 .Para que se possa compreen<strong>de</strong>r a argumentação atual, distinguin<strong>do</strong> as razões <strong>de</strong>ambos os la<strong>do</strong>s - por vezes antagônicos - da polêmica, é preciso examinar o aparecimentoe a evolução <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> direito à saú<strong>de</strong>. Muito já se escreveu a respeito daconceituação da saú<strong>de</strong> durante a história da humanida<strong>de</strong>. Entretanto, o reconhecimento<strong>de</strong> que a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma população está relacionada às suas condições <strong>de</strong> vida e <strong>de</strong> queos comportamentos humanos po<strong>de</strong>m constituir-se em ameaça à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> povo e,consequentemente à segurança <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, presente já no começo <strong>do</strong> século XIX, ficaclaramente estabeleci<strong>do</strong> ao témino da chamada “II Gran<strong>de</strong> Guerra Mundial”. Semdúvida, a experiência <strong>de</strong> uma guerra apenas vinte anos após a anterior, provocada pelasmesmas causas que haviam origina<strong>do</strong> a pre<strong>de</strong>cessora e, especialmente, com capaci-1. Veja-se, por exemplo, a Constituição portuguesa <strong>de</strong> 1972 e a Constituição da República <strong>do</strong> Gabão <strong>de</strong>1975.2. Freqüentemente referida nas reuniões anuais da American Public Health Association durante os últimos<strong>de</strong>cênios, foi concretizada no Presi<strong>de</strong>nt’s Report to the American People, <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1993.3. Especialmente abordada durante as discussões da nova Bill of Rights sul-africana.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>187


da<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição várias vezes multiplicada forjou um consenso. Carente <strong>de</strong> recursoseconômicos, <strong>de</strong>struída sua crença na forma <strong>de</strong> organização social, alijada <strong>de</strong> seus lí<strong>de</strong>res,a socieda<strong>de</strong> que sobreviveu a 1944 sentiu a necessida<strong>de</strong> ineludível <strong>de</strong> promover umnovo pacto, personifica<strong>do</strong> na Organização das Nações Unidas. Esse organismo incentivoua criação <strong>de</strong> órgãos especiais <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a promover a garantia <strong>de</strong> alguns direitosconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s essenciais aos homens. A saú<strong>de</strong> passou, então, a ser objeto da OrganizaçãoMundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, que a consi<strong>de</strong>rou o primeiro princípio básico para a “felicida<strong>de</strong>, asrelações harmoniosas e a segurança <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os povos” 4 . No preâmbulo <strong>de</strong> suaConstituição, assinada em 26 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1946, é apresenta<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>: “Saú<strong>de</strong> é o completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência<strong>de</strong> <strong>do</strong>ença”. Observa-se, portanto, o reconhecimento da essencialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> equilíbriointerno e <strong>do</strong> homem com o ambiente (bem-estar físico, mental e social) para aconceituação da saú<strong>de</strong>, recuperan<strong>do</strong> a experiência pre<strong>do</strong>minante na história dahumanida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> que são reflexos os trabalhos <strong>de</strong> Hipócrates, Paracelso e Engels, porexemplo.O conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> acorda<strong>do</strong> em 1946 não teve fácil aceitação. Diz-se que correspon<strong>de</strong>à <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> felicida<strong>de</strong>, que tal esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> completo bem-estar é impossível <strong>de</strong>alcançar-se e que, além disso, não é operacional. Vários pesquisa<strong>do</strong>res procuraram, então,enunciar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> diferente o conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Assim, apenas como exemplo, paraAlessandro Seppilli saú<strong>de</strong> é “a condição harmoniosa <strong>de</strong> equilíbrio funcional, físico epsíquico <strong>do</strong> indivíduo integra<strong>do</strong> dinamicamente no seu ambiente natural e social” 5 ,para John Last saú<strong>de</strong> é um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> equilíbrio entre o ser humano e seu ambiente,permitin<strong>do</strong> o completo funcionamento da pessoa 6 , e para Clau<strong>de</strong> Dejours, convenci<strong>do</strong><strong>de</strong> que não existe o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> completo bem-estar, a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser entendida como abusca constante <strong>de</strong> tal esta<strong>do</strong> 7 . Esses exemplos parecem evi<strong>de</strong>nciar que, embora sereconheça sua difícil operacionalização, qualquer enuncia<strong>do</strong> <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> queignore a necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> equilíbrio interno <strong>do</strong> homem e <strong>de</strong>sse com o ambiente, o<strong>de</strong>formará irremediávelmente.Dificulda<strong>de</strong> semelhante, ou talvez ainda maior, ocorre com a conceituação <strong>de</strong>direito. Uma simples análise semântica <strong>do</strong> termo direito revela sua complexida<strong>de</strong>. Defato, a palavra direito refere-se a um ramo <strong>do</strong> conhecimento humano - a ciência <strong>do</strong>direito, ao mesmo tempo em que esclarece seu objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>: o direito, um sistema<strong>de</strong> normas que regulam o comportamento <strong>do</strong>s homens em socieda<strong>de</strong>. Muitas vezes seemprega a palavra direito em senti<strong>do</strong> axiológico, como sinônimo <strong>de</strong> justiça, e muitasoutras em senti<strong>do</strong> subjetivo, “a regra <strong>de</strong> direito vista por <strong>de</strong>ntro, como ação regulada”,conforme ensina Miguel Reale 8 . Na reivindicação <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>, o termo é emprega<strong>do</strong>com seu senti<strong>do</strong> subjetivo. Todavia, a referência à regra <strong>de</strong> direito vista por <strong>de</strong>ntro implicanecessariamente a compreensão <strong>do</strong> direito como regras <strong>do</strong> comportamento humano emsocieda<strong>de</strong>. De fato, as normas jurídicas representam as limitações às condutas nocivaspara a vida social. Assim sen<strong>do</strong>, a saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finida como direito, <strong>de</strong>ve inevitavelmenteconter aspectos sociais e individuais.4. Cf. Constituição da Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, a<strong>do</strong>tada pela Conferência Internacional da Saú<strong>de</strong>,realizada em New York <strong>de</strong> 19 a 22 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1946.5. Cita<strong>do</strong> por Berlinguer, G. A <strong>do</strong>ença. São Paulo, HUCITEC/<strong>CEBES</strong>, 1988.p.34.6. Cf. Last, J.M. Health. A dictionary of epi<strong>de</strong>miology. New York, Oxford University Press, 1983.7. Cf. Dejours, C. Por um novo conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Rev.bras.Saú<strong>de</strong> ocup., 14(54):7-11, 1986.8. Cf. Reale, M. Lições preliminares <strong>de</strong> direito. São Paulo, Saraiva, 1976.188 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Documentos da Antigüida<strong>de</strong> possuem, entremeadas com preceitos morais e religiosos,regras que implicam o reconhecimento da saú<strong>de</strong> como indispensável à dignida<strong>de</strong>humana. Existem normas relativas ao zelo exigi<strong>do</strong> <strong>do</strong> profissional que cuida da <strong>do</strong>ençano Código <strong>de</strong> Hamurabi, direito babilônico e no Código <strong>de</strong> Manu, direito hindu, porexemplo 9 . Durante a Ida<strong>de</strong> Média, com o pre<strong>do</strong>mínio da religião, foi estabelecida aobrigação da carida<strong>de</strong>. A Igreja mantinha a responsabilida<strong>de</strong> principal <strong>de</strong> ajuda aos<strong>de</strong>safortuna<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>sempenhava um papel prepon<strong>de</strong>rante no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>sestabelecimentos que lhes eram <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s. Tratava-se, entretanto, <strong>de</strong> obrigação moral.Nos últimos séculos <strong>de</strong>sse longo perío<strong>do</strong> histórico começa-se a observar uma lentainfiltração <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r comunal no funcionamento da assistência “pública” aos <strong>de</strong>sfavoreci<strong>do</strong>sque objetiva, também, a <strong>de</strong>fesa social, inician<strong>do</strong> o processo <strong>de</strong> transformaçãoda obrigação moral em <strong>de</strong>ver legal.A confluência <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais revolucionários <strong>do</strong> liberalismo, em suas vertentes políticae econômica, com o racionalismo <strong>do</strong> méto<strong>do</strong>, propulsores da revolução industrial,alterou radicalmente o comportamento social em relação à saú<strong>de</strong>. Um olhar sobre esseperío<strong>do</strong> po<strong>de</strong> explicar a construção <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong> assim:A urbanização, conseqüência imediata da industrialização no século XIX, foi, juntamentecom o próprio <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> processo industrial, causa da assunção peloEsta<strong>do</strong> da responsabilida<strong>de</strong> pela saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> povo. De fato, é inestimável o papel daproximida<strong>de</strong> espacial na organização das reivindicações operárias. Viven<strong>do</strong> nas cida<strong>de</strong>s,relativamente próximos, portanto, <strong>do</strong>s industriais, os operários passam a almejar padrão<strong>de</strong> vida semelhante. Conscientes <strong>de</strong> sua força potencial, <strong>de</strong>vida à quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong>les esua importância para a produção, organizam-se para reivindicar tal padrão. Entretanto,ce<strong>do</strong> o empresaria<strong>do</strong> percebeu que precisava manter os operários saudáveis para quesua linha <strong>de</strong> montagem não sofresse interrupção. Percebeu, também que, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> àproximida<strong>de</strong> espacial das habitações operárias, ele po<strong>de</strong>ria ser contamina<strong>do</strong> pelas<strong>do</strong>enças <strong>de</strong> seus emprega<strong>do</strong>s. Tais conclusões induziram outra: o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve seresponsabilizar pela saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> povo. É claro que para ele - empresário - o povo eraapenas os operários uma vez que os cuida<strong>do</strong>s individuais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> eram facilmentefinancia<strong>do</strong>s pelos industriais. Por outro la<strong>do</strong>, eles faziam também parte <strong>do</strong> povo quan<strong>do</strong>exigiam que o Esta<strong>do</strong> garantisse a ausência <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças contaminantes em seu meioambiente. E, como o Esta<strong>do</strong> liberal era instrumento <strong>do</strong> empresaria<strong>do</strong> nessa fase dasocieda<strong>de</strong> industrial, foi relativamente fácil a transferência das reivindicações operárias<strong>de</strong> melhores cuida<strong>do</strong>s sanitários, <strong>do</strong>s empresários para o Esta<strong>do</strong>. O processo contínuo<strong>de</strong> organização <strong>do</strong> operaria<strong>do</strong> promovi<strong>do</strong> a partir da conscientização <strong>de</strong> suas condições<strong>de</strong> trabalho e facilita<strong>do</strong> pelo <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> comunicação levou-o areivindicar que o Esta<strong>do</strong>, i<strong>de</strong>almente acima <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>s industriais, se responsabilizassepela fiscalização das condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no trabalho.Outro olhar po<strong>de</strong>, contu<strong>do</strong>, explicar a construção <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>, pela gran<strong>de</strong>influência das idéias revolucionárias <strong>do</strong> liberalismo político <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século XVIII.Como afirma Philippe Ligneau, os filósofos <strong>de</strong>sse século “persuadiram os dirigentesrevolucionários que apenas a carida<strong>de</strong> facultativa para com os infelizes é um sistemahumilhante e aleatório que não estava mais <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as necessida<strong>de</strong>s e o espírito<strong>do</strong>s tempos mo<strong>de</strong>rnos” 10 . Assim, a discussão na Assembléia constituinte francesa <strong>de</strong>1791 apresentou conclusões muito próximas <strong>do</strong> conceito hodierno <strong>de</strong> direito á saú<strong>de</strong>.9. Veja-se os artigos 218 e 219 <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Hamurabi e o artigo 695 <strong>do</strong> Código <strong>de</strong> Manu.10. Cf. Ligneau, P. Droit <strong>de</strong> la protection sanitaire et sociale. Paris, Berger-Levrault, 1980.p 69.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>189


Observa<strong>do</strong> como direito individual, o direito à saú<strong>de</strong> privilegia a liberda<strong>de</strong> emsua mais ampla acepção. As pessoas <strong>de</strong>vem ser livres para escolher o tipo <strong>de</strong> relaçãoque terão com o meio ambiente, em que cida<strong>de</strong> e que tipo <strong>de</strong> vida preten<strong>de</strong>m viver, suascondições <strong>de</strong> trabalho e, quan<strong>do</strong> <strong>do</strong>entes, o recurso médico-sanitário que procurarão, otipo <strong>de</strong> tratamento a que se submeterão entre outros. Note-se, porém, que ainda sob aótica individual o direito à saú<strong>de</strong> implica a liberda<strong>de</strong> <strong>do</strong> profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para<strong>de</strong>terminar o tratamento. Ele <strong>de</strong>ve, portanto, po<strong>de</strong>r escolher entre todas as alternativasexistentes aquela que, em seu enten<strong>de</strong>r, é a mais a<strong>de</strong>quada. É óbvio, então, que a efetivaliberda<strong>de</strong> necessária ao direito à saú<strong>de</strong> enquanto direito subjetivo <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> grau <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. De fato, unicamente no Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> sócio,econômica e culturalmente o indivíduo é livre para procurar um completo bem-estarfísico, mental e social e para, a<strong>do</strong>ecen<strong>do</strong>, participar <strong>do</strong> estabelecimento <strong>do</strong> tratamento.Examina<strong>do</strong>, por outro la<strong>do</strong>, em seus aspectos sociais, o direito à saú<strong>de</strong> privilegiaa igualda<strong>de</strong>. As limitações aos comportamentos humanos são postas exatamente paraque to<strong>do</strong>s possam usufruir igualmente as vantagens da vida em socieda<strong>de</strong>. Assim, parapreservar-se a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s é necessário que ninguém possa impedir outrem <strong>de</strong>procurar seu bem-estar ou induzí-lo a a<strong>do</strong>ecer. Essa é a razão das normas jurídicas queobrigam à vacinação, à notificação, ao tratamento, e mesmo ao isolamento <strong>de</strong> certas<strong>do</strong>enças, à <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> alimentos <strong>de</strong>teriora<strong>do</strong>s e, também, ao controle <strong>do</strong> meioambiente, das condições <strong>de</strong> trabalho. A garantia <strong>de</strong> oferta <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>mesmo nível a to<strong>do</strong>s que <strong>de</strong>les necessitam também respon<strong>de</strong> à exigência da igualda<strong>de</strong>.É claro que enquanto direito coletivo, a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> igualmente <strong>do</strong> estágio <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Apenas o Esta<strong>do</strong> que tiver o seu direito ao <strong>de</strong>senvolvimentoreconheci<strong>do</strong> e assegura<strong>do</strong> po<strong>de</strong>rá garantir as mesmas medidas <strong>de</strong> proteção e iguaiscuida<strong>do</strong>s para a recuperação da saú<strong>de</strong> para to<strong>do</strong> o povo.O direito à saú<strong>de</strong> ao apropriar-se da liberda<strong>de</strong> e da igualda<strong>de</strong> caracteriza-se peloequilíbrio instável <strong>de</strong>sses valores. A história da humanida<strong>de</strong> é farta <strong>de</strong> exemplos <strong>de</strong>movimentos pendulares que ora buscam a liberda<strong>de</strong>, ora a igualda<strong>de</strong>. Os homens sempretiveram a consciência <strong>de</strong> que para nada serve a igualda<strong>de</strong> sob o jugo <strong>do</strong> tirano e <strong>de</strong> quea liberda<strong>de</strong> só existe entre iguais. Sem dúvida, a evolução <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e oreconhecimento da responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no que respeita à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> povo muitocontribuíram na construção <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>, que não pô<strong>de</strong>, entretanto, prescindir daevolução <strong>do</strong>s movimentos que reivindicavam direitos humanos.SAÚDE E DIREITOS HUMANOSUma interessante alegoria foi apresentada por Paul Sieghart 11 , para explicar aexistência <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> normas internacionais referidas aos direitos humanos. Elapo<strong>de</strong> ser assim resumida:Supon<strong>do</strong>-se pacífica a afirmação <strong>de</strong> que os Esta<strong>do</strong>s contemporâneos sejam funda<strong>do</strong>sno consentimento <strong>de</strong> seus membros, que concordam sobre as regras mínimas que<strong>de</strong>vem governar seus próprios comportamentos para o bem-comum, observa-se anecessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ar, da água, <strong>do</strong> alimento e <strong>do</strong> abrigo para que Adão sobrevivesse. A11. Cf. Sieghart, P. The lawful rights of mankind. Oxford, Oxford University Press, 1986.p.3-11190 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


formação da família e da pequena comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>la <strong>de</strong>corrente - “Adãolândia” - percebe,então, que algumas ativida<strong>de</strong>s seriam melhor realizadas se o fossem em conjunto,reconhece diferentes habilida<strong>de</strong>s em diversos indivíduos, e <strong>de</strong>senvolve uma estruturaon<strong>de</strong> os membros exercem funções típicas. Enquanto viven<strong>do</strong> no “paraíso” não haviaqualquer conflito. Entretanto, vin<strong>do</strong> um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> escassez, apresentam-se duas opções:competição ou cooperação 12 . Supon<strong>do</strong>-se que os cidadãos <strong>de</strong> “Adãolândia” tenham<strong>de</strong>cidi<strong>do</strong> cooperar - sob o argumento <strong>de</strong> que dividin<strong>do</strong> amplamente o sofrimento, suaquantida<strong>de</strong> total po<strong>de</strong> ser reduzida - e que ao voltar a prosperida<strong>de</strong> tenham propostouma série <strong>de</strong> regras para a distribuição <strong>de</strong> qualquer bem que no futuro se tornasseescasso, tais regras seriam vinculantes para to<strong>do</strong>s os membros da comunida<strong>de</strong>. Novosproblemas se apresentam em “Adãolândia”: o crime <strong>de</strong> Caim, a chegada <strong>de</strong> novoshabitantes, provocan<strong>do</strong> <strong>de</strong>cisões tais como: fixar uma reparação para o crime e, nãosen<strong>do</strong> ela realizada, expulsar Caim da comunida<strong>de</strong> por não ter respeita<strong>do</strong> as leis;reconhecer e respeitar os direitos <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os recém-chega<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que eles secomprometessem a aceitar as leis <strong>de</strong> “Adãolândia”.Dois conceitos fundamentais à compreensão hodierna <strong>do</strong>s direitos humanos sãoenuncia<strong>do</strong>s nessa alegoria: direito e lei. Um rápi<strong>do</strong> passeio pela história da humanida<strong>de</strong>mostra que já no Renascimento o termo direito começa a se distanciar da justiça,caracterizan<strong>do</strong>-se como a qualida<strong>de</strong> moral que dá ao indivíduo, segun<strong>do</strong> Grócio 13 , aliberda<strong>de</strong>, o <strong>do</strong>mínio sobre as coisas e o crédito sobre o que lhe é <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>. Também paraHobbes, a liberda<strong>de</strong> caracteriza o direito, assim como, a lei representa o constrangimento14 . Max Weber explica com proprieda<strong>de</strong> a evolução mo<strong>de</strong>rna <strong>do</strong> jusnaturalismo,cuja origem revolucionária é rapidamente esquecida quan<strong>do</strong> a burguesia toma o po<strong>de</strong>r,passan<strong>do</strong> a servir <strong>de</strong> justificativa para a conservação da or<strong>de</strong>m estabelecida, com basenos conceitos <strong>de</strong> legalida<strong>de</strong> e legitimida<strong>de</strong>. Em suma, a prática jurídica contemporâneai<strong>de</strong>ntifica como direito, prioritariamente, o direito subjetivo, ignoran<strong>do</strong> a tradição secular<strong>do</strong> direito natural funda<strong>do</strong> na justiça. Valoriza-se sobremaneira a “ciência” <strong>do</strong> direitoconcreto, histórico, positivo 15 ; o individualismo é parte integrante da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Nãose po<strong>de</strong>, contu<strong>do</strong>, ignorar a reação das pessoas que, reconhecen<strong>do</strong> que as leis não têmorigem divina, buscaram a proteção das <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> direitos inseridas no <strong>do</strong>cumentoque fundava to<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r governamental: a Constituição. Isto não implicava a suplantação<strong>do</strong> individualismo, mas, ao contrário, reforçava a tese <strong>de</strong> que os direitos humanospertencem ao indivíduo e, portanto, prece<strong>de</strong>m a formação <strong>de</strong> qualquer socieda<strong>de</strong> política.É curioso notar a diferença essencial das <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> direitos <strong>do</strong> século <strong>de</strong>zoito,com seus antece<strong>de</strong>ntes mais famosos (Magna Carta e a English Bill of Rights).Com efeito, a justificativa para a <strong>de</strong>claração <strong>de</strong> direitos das revoluções burguesas era aexistência <strong>de</strong> direitos inerentes a to<strong>do</strong>s os seres humanos e por isso mesmo inalienáveis,que po<strong>de</strong>riam ser coerentemente enumera<strong>do</strong>s e, portanto, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>s “direitoshumanos”. Não mais se tratava <strong>de</strong> concessões extorquidas <strong>do</strong> governante, o que revelavadisputa entre diferentes grupos <strong>de</strong> interesse. Assim, o respeito aos direitos humanos12. Questão magistralmente apresentada por Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Assis, em Quincas Borba, que popularizou aexpressão “ao vence<strong>do</strong>r as batatas”13. Cf. Grotius, H. The rights of war and peace. Book I, Chap.II.14. Cf. Hobbes, T. Leviathan, Part I, Chap.1415. José Reinal<strong>do</strong> Lima Lopes apresenta excelente resumo <strong>de</strong>ssa evolução em Faria, J. E. (org.) Direitoshumanos, direitos sociais e justiça. São Paulo, Malheiros, 1994.p.113-143.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>191


tornava mais eficiente o governo da socieda<strong>de</strong>, evitan<strong>do</strong>-se a discórdia excessiva e,conseqüentemente, a <strong>de</strong>sagregação da unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r 16 .O individualismo permaneceu a característica <strong>do</strong>minante nas socieda<strong>de</strong>s reaisou históricas que suce<strong>de</strong>ram àquelas diretamente forjadas nas revoluções burguesas.Nem mesmo o socialismo ou as chamadas “socieda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> bem-estar” eliminaram apre<strong>do</strong>minância <strong>do</strong> individualismo, uma vez que são indivíduos os titulares <strong>do</strong>s direitoscoletivos, tais como a saú<strong>de</strong> ou a educação. Justifica-se a reivindicação encetada pelosmarginaliza<strong>do</strong>s <strong>de</strong> seus direitos humanos frente à coletivida<strong>de</strong>, porque os bens por elaacumula<strong>do</strong>s <strong>de</strong>rivaram <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os membros <strong>de</strong>ssa coletivida<strong>de</strong>. Osindivíduos têm, portanto, direitos <strong>de</strong> crédito em relação ao Esta<strong>do</strong> - representante jurídicoda socieda<strong>de</strong> política. Assim, embora o individualismo permaneça como principalcaracterística <strong>do</strong>s direitos humanos enquanto direitos subjetivos, são estabeleci<strong>do</strong>s diferentespapéis para o Esta<strong>do</strong>, <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s da opção política pelo liberalismo ou pelosocialismo. De fato, para a <strong>do</strong>utrina liberal o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser nitidamentelimita<strong>do</strong>, haven<strong>do</strong> clara separação entre as funções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e o papel reserva<strong>do</strong> aosindivíduos. Tradicionalmente, as funções típicas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> restringiam-se à preservaçãoda or<strong>de</strong>m, da moralida<strong>de</strong> e da saú<strong>de</strong> públicas 17 . Já o socialismo, impressiona<strong>do</strong> com osefeitos sociais da implementação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal - e <strong>do</strong> egoísmo capitalista que lheserviu <strong>de</strong> corolário - magistralmente apresenta<strong>do</strong>s por Charles Dickens 18 , por exemplo,reivindicava para o Esta<strong>do</strong> papel radicalmente oposto. Com efeito, os socialistas <strong>do</strong>século <strong>de</strong>zenove <strong>luta</strong>vam para que o Esta<strong>do</strong> interviesse ativamente na socieda<strong>de</strong> paraterminar com as injustiças econômicas e sociais. Entretanto, nem mesmo os socialistasignoraram o valor das liberda<strong>de</strong>s clássicas, <strong>do</strong> respeito aos direitos individuais <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>sna Constituição.O mun<strong>do</strong> contemporâneo vive a procura <strong>do</strong> difícil equilíbrio entre tais papéisheterogêneos, hoje, indubitavelmente, exigência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>mocrático. Todavia, oprocesso <strong>de</strong> internacionalização da vida social acrescentou mais uma dificulda<strong>de</strong> àconsecução <strong>de</strong>ssa estabilida<strong>de</strong>: os direitos cujo sujeito não é mais apenas um indivíduoou um conjunto <strong>de</strong> indivíduos, mas, to<strong>do</strong> um grupo humano ou a própria humanida<strong>de</strong>.Bons exemplos <strong>de</strong> tais direitos <strong>de</strong> titularieda<strong>de</strong> coletiva são o direito ao <strong>de</strong>senvolvimento 19e o direito ao meio-ambiente sadio 20 . Ora, a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conflito entre os direitos <strong>de</strong>uma <strong>de</strong>terminada pessoa e os direitos pertencente ao conjunto da coletivida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> serimediatamente evi<strong>de</strong>nciada e, talvez, os totalitarismos <strong>do</strong> século vinte, supostamenteprivilegian<strong>do</strong> os direitos <strong>de</strong> um povo e, nesse nome, ignoran<strong>do</strong> os direitos <strong>do</strong>s indivíduos,sejam o melhor exemplo <strong>de</strong> uma das faces da moeda. A outra face po<strong>de</strong> ser retratada na<strong>de</strong>struição irreparável <strong>do</strong>s recursos naturais necessários à sadia qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vidahumana <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> absoluto direito individual à proprieda<strong>de</strong>.A lei é inquestionavelmente reconhecida como indispensável à afirmação hodierna<strong>do</strong>s direitos humanos. Isto é, apesar <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> conteú<strong>do</strong> político abriga<strong>do</strong> na expressãodireitos humanos - responsável pelo interesse primário <strong>do</strong>s filósofos - foi necessária a16. Cf. Aron, R. Le spectateur engagé. Paris, Gallimard, 1981.p.289-91.17. funções <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>-polícia, enumeradas no art.356 da Constituição francesa <strong>de</strong> 1795 (termi<strong>do</strong>riana, <strong>de</strong> 5fruti<strong>do</strong>r, ano III)18. Como em Oliver Twist.19. Objeto da Declaração sobre o direito ao <strong>de</strong>senvolvimento, a<strong>do</strong>tada pela Assembléia Geral da ONU em4 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1986.20. Objeto da Declaração <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>de</strong> 1992, da ONU.192 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


gradual positivação <strong>de</strong>sses direitos para torná-los eficazes. Assim, não se pô<strong>de</strong> prescindir<strong>do</strong> estabelecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direito, contemporâneo da a<strong>do</strong>ção da Constituição -limite para todas as ativida<strong>de</strong>s - públicas e privadas - que pu<strong>de</strong>ssem ser exercidas noâmbito <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r estatal 21 . O Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direito se consolida na <strong>do</strong>utrinajurídica clássica como “um Esta<strong>do</strong> cujos atos são realiza<strong>do</strong>s em sua totalida<strong>de</strong> com basena or<strong>de</strong>m jurídica” 22 . Sen<strong>do</strong> esse um Esta<strong>do</strong> que <strong>de</strong>termina a priori a juridicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>toda e qualquer interferência no agir humano, inclusive quan<strong>do</strong> intermedia<strong>do</strong> porentida<strong>de</strong>s políticas, era lógico que se estabelecesse uma hierarquia entre as normas paraque pu<strong>de</strong>sse ser garantida a função limite da Constituição. Hans Kelsen, jurista <strong>do</strong>império autro-húngaro, elaborou a <strong>do</strong>utrina hoje clássica da hierarquia das normas - aestrutura escalonada da or<strong>de</strong>m jurídica - on<strong>de</strong> esclarece que quan<strong>do</strong> se focaliza um Esta<strong>do</strong>,“ a Constituição representa o escalão <strong>de</strong> Direito positivo mais eleva<strong>do</strong>” 23 . Isto significaque a Constituição regula a produção das leis e po<strong>de</strong> regular, também, o conteú<strong>do</strong> dasfuturas leis, não po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser modificada ou extinta se não por meio <strong>de</strong> um processolegislativo diferente, mais exigente. Imediatamente abaixo da Constituição, situa-se aesfera <strong>de</strong> atuação das leis, seguida <strong>do</strong> escalão <strong>do</strong> processo judicial e administrativo.Assim, por exemplo, to<strong>do</strong> ato administrativo <strong>de</strong>ve conformar-se a uma lei que, por suavez, encontra seu limite no texto constitucional.Para a efetivação <strong>do</strong>s direitos humanos, a gradual positivação acima referidaenvolveu, também, a criação <strong>de</strong> um sistema legal específico para a proteção <strong>de</strong>ssesdireitos. A obvieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> tal afirmação <strong>de</strong>corre <strong>do</strong> reconhecimento <strong>do</strong> potencialconflituoso <strong>do</strong>s direitos envolvi<strong>do</strong>s, já menciona<strong>do</strong>. Portanto, apenas se po<strong>de</strong>rá alcançarum equilíbrio entre os direitos humanos e o po<strong>de</strong>r político quan<strong>do</strong> todas as partes estejamsubmetidas a reais limitações, que, sem dúvida, serão estabelecidas pela autorida<strong>de</strong>política. A partir das revoluções liberais <strong>do</strong> século <strong>de</strong>zoito, houve, então, uma introduçãoprogressiva das <strong>de</strong>clarações <strong>de</strong> direitos nos textos constitucionais ao ponto em que ateoria constitucional passou a consi<strong>de</strong>rar que “as Constituições <strong>do</strong>s... Esta<strong>do</strong>s burguesesestão... compostas <strong>de</strong> <strong>do</strong>is elementos: <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, os princípios <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direitopara a proteção da liberda<strong>de</strong> burguesa frente ao Esta<strong>do</strong>; <strong>de</strong> outro, o elemento político<strong>do</strong> qual se <strong>de</strong>duzirá a forma <strong>de</strong> governo... propriamente dita” 24 . O reconhecimento <strong>de</strong>que um <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s objetivos <strong>do</strong> constitucionalismo era a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> limitação <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s governantes é atualmente traduzi<strong>do</strong> na afirmação <strong>de</strong> que a proteção epromoção da dignida<strong>de</strong> humana são as finalida<strong>de</strong>s mais importantes da Constituição 25 .Assim, é perfeitamente possível concluir que o sistema legal <strong>de</strong> proteção <strong>do</strong>s direitoshumanos terá características típicas <strong>de</strong> cada Esta<strong>do</strong> e, parece, portanto, lógico, que aliberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> imprensa seja disciplinada diferentemente conforme a Constituição <strong>de</strong> umEsta<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> ou sub<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>, por exemplo.A aceitação da existência <strong>de</strong> direitos que pertencem a toda a humanida<strong>de</strong> ou aparte <strong>de</strong>la que não está contida em apenas em um Esta<strong>do</strong> fez com que a lei que abriga os21. Tal é a lição <strong>de</strong> Rousseau, no Contrato Social ( livro II, XII ), totalmente absorvida no processo <strong>de</strong>elaboração e ratificação da primeira Constituição escrita: a Constituição <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América,<strong>de</strong> 1787. Cf., especialmente, Hamilton, A., Madison, J., Jay, J. O Fe<strong>de</strong>ralista ( artigo 27 ).22. Cf. Kelsen, H. Teoria General <strong>de</strong>l Esta<strong>do</strong>. Mexico, Editora Nacional,1959.p.120.23. Cf. i<strong>de</strong>m, Teoria Pura <strong>do</strong> Direito. São Paulo, Martins Fontes, 1985.p.240.24. Cf. Schimitt, C. Teoría <strong>de</strong> la Constitución. Madrid, Editorial Revista <strong>de</strong> Derecho Priva<strong>do</strong>, 1934. p.47.25. Dallari, D. A. Elementos <strong>de</strong> teoria geral <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. 9ª ed. São Paulo, Saraiva, 1982.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>193


direitos humanos tivesse um caráter internacional. Contu<strong>do</strong>, não foi essa a origem dasnormas internacionais <strong>de</strong> direitos humanos no século vinte. Szabo 26 afirma que “o queconduziu finalmente à a<strong>do</strong>ção “”oficial”” <strong>de</strong> medidas ten<strong>de</strong>ntes a assegurar a proteçãointernacional <strong>do</strong>s direitos humanos foi a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atrocida<strong>de</strong>s cometidas contra ahumanida<strong>de</strong> pelos po<strong>de</strong>res fascistas durante a segunda guerra mundial”, referin<strong>do</strong>expressamente a <strong>de</strong>claração <strong>do</strong> presi<strong>de</strong>nte Roosevelt 27 que enumerava quatro liberda<strong>de</strong>sbásicas: liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> opinião e expressão, liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> culto, direito a ser liberta<strong>do</strong> damiséria e garantia <strong>de</strong> viver sem ameaças. Dessa forma, quan<strong>do</strong> na conferência <strong>de</strong> SãoFrancisco, em 1945, foi criada a Organização das Nações Unidas-ONU, ficou estabelecidaa necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> redigir um <strong>do</strong>cumento sobre os direitos humanos que <strong>de</strong>veria expressarclaramente to<strong>do</strong>s os direitos humanos, inclusive os direitos econômicos, sociais eculturais, e que se <strong>de</strong>veria criar uma Comissão <strong>de</strong> direitos humanos como uma dasprincipais da nova Organização.Em 10 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1948 a 3ª Assembléia geral da ONU a<strong>do</strong>tou a DeclaraçãoUniversal <strong>do</strong>s Direitos <strong>do</strong> Homem, que não tem, no sistema legal internacional, carátervinculante, ten<strong>do</strong> apenas valor moral. Entretanto, apesar da força apenas moral, aComissão <strong>de</strong> direitos humanos <strong>do</strong> Conselho econômico e social reconheceu a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> redigir um convênio sobre direitos humanos, on<strong>de</strong> os Esta<strong>do</strong>s se comprometeriam arespeitar os direitos <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s, aumentan<strong>do</strong> a força vinculante <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> daquelesdireitos humanos. Em 1966 a Assembléia geral da ONU aprovou <strong>do</strong>is pactos <strong>de</strong> direitoshumanos: o Pacto <strong>de</strong> direitos civis e políticos e o Pacto <strong>de</strong> direitos econômicos, sociais eculturais, curiosamente contrarian<strong>do</strong> o estabeleci<strong>do</strong> pela própria Assembléia geral emsua primeira sessão. Com efeito, havia-se <strong>de</strong>cidi<strong>do</strong>, em 1950, que “o <strong>de</strong>sfrute das liberda<strong>de</strong>scivis e políticas e <strong>do</strong>s direitos econômicos, sociais e culturais são inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes”e que “quan<strong>do</strong> um indivíduo é priva<strong>do</strong> <strong>de</strong> seus direitos econômicos, sociais e culturais,ele não caracteriza uma pessoa humana, que é <strong>de</strong>finida pela Declaração como o i<strong>de</strong>al<strong>do</strong> homem livre” 28 . É importante observar que as convenções são, ainda, o mo<strong>do</strong> maiseficaz para o estabelecimento <strong>do</strong>s direitos humanos na esfera internacional. Esseinstrumento multilateral obriga os Esta<strong>do</strong>s que o ratificarem a garantir expressamenteos direitos nelas incluí<strong>do</strong>s e, também, a proporcionar a seus cidadãos um eficaz sistema<strong>de</strong> acesso aos tribunais para essa garantia. Deve-se lembrar, todavia, que, em relaçãoaos Pactos <strong>de</strong> 1966, apenas os Esta<strong>do</strong>s são sujeitos <strong>de</strong> direito internacional, sen<strong>do</strong> recentea aceitação <strong>do</strong> indivíduo como sujeito <strong>de</strong> direitos na legislação internacional, até omomento restrita às convenções regionais <strong>de</strong> direitos humanos.A saú<strong>de</strong> é indiretamente reconhecida como direito na Declaração Universal <strong>de</strong>Direitos Humanos (ONU), on<strong>de</strong> é afirmada como <strong>de</strong>corrência <strong>do</strong> direito a um nível <strong>de</strong>vida a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>, capaz <strong>de</strong> assegurá-la ao indivíduo e à sua família(art.25). Entretanto, oPacto Internacional <strong>de</strong> Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que entrou em vigorem 3 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1976, dispõe que:“1. Os Esta<strong>do</strong>s Partes no presente Pacto reconhecem o direito <strong>de</strong> toda a pessoa ao<strong>de</strong>sfrute <strong>do</strong> mais alto nível possível <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> física e mental.26. Cf. Szabo, I. Fundamentos históricos <strong>de</strong> los <strong>de</strong>rechos humanos. In: Vasak, K. (ed.) Las dimensionesinternacionales <strong>de</strong> los <strong>de</strong>rechos humanos. Barcelona, Serbal/UNESCO, 1984. V. I, p.50.27. Em 26 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1941.28 Assembléia Geral, resolução 543, 6.194 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


2. Entre as medidas que <strong>de</strong>verão a<strong>do</strong>tar os Esta<strong>do</strong>s Partes no Pacto a fim <strong>de</strong>assegurar a plena efetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse direito, figuram as necessárias para:a) A redução da natimortalida<strong>de</strong> e da mortalida<strong>de</strong> infantil, e o <strong>de</strong>senvolvimentosaudável das crianças;b) A melhoria em to<strong>do</strong>s os seus aspectos da higiene <strong>do</strong> trabalho e <strong>do</strong> meioambiente;c) A prevenção e o tratamento das enfermida<strong>de</strong>s epidêmicas, endêmicas, profissionaise <strong>de</strong> outra natureza, e a <strong>luta</strong> contra elas;d) A criação <strong>de</strong> condições que assegurem a to<strong>do</strong>s assistência médica e serviçosmédicos em caso <strong>de</strong> enfermida<strong>de</strong>.” (art.12).Po<strong>de</strong>-se verificar, portanto, que o conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> nos <strong>do</strong>cumentosinternacionais relativos aos direitos humanos é o mais amplo possível, abrangen<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>a típica face individual <strong>do</strong> direito subjetivo à assistência médica em caso <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença, atéa constatação da necessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> direito <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>senvolvimento, personificadano direito a um nível <strong>de</strong> vida a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> à manutenção da dignida<strong>de</strong> humana. Isso semesquecer <strong>do</strong> direito à igualda<strong>de</strong> implícito nas ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> caráter coletivo ten<strong>de</strong>ntesa prevenir e tratar epi<strong>de</strong>mias ou en<strong>de</strong>mias, por exemplo.O Brasil já havia ratifica<strong>do</strong> o Pacto <strong>de</strong> Direitos Econômicos, Sociais e Culturaisquan<strong>do</strong> elaborou a Constituição promulgada em 1988. Isto é, o ambiente i<strong>de</strong>ológico quecercou a redação da Constituição estava impregna<strong>do</strong> pelo reconhecimento danecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>clarar e assegurar os direitos fundamentais das pessoas e, também,<strong>de</strong> limitar juridicamente to<strong>do</strong>s os po<strong>de</strong>res - inclusive o econômico - que pu<strong>de</strong>ssem vir aameaçar a liberda<strong>de</strong> efetiva e a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s indivíduos 29 . Assim, élógico compreen<strong>de</strong>r que a dignida<strong>de</strong> tenha si<strong>do</strong> afirmada como um <strong>do</strong>s fundamentos<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (C.F.art.1º,III) e que a prevalência <strong>do</strong>s direitos humanos seja um <strong>do</strong>s princípiosque <strong>de</strong>vam reger suas relações internacionais (C.F.art.4º,II). Nesse momento foi,igualmente, lógico que a saú<strong>de</strong> aparecesse como um <strong>do</strong>s direitos sociaisconstitucionalmente reconheci<strong>do</strong>s (C.F.art.6º). E, mais ainda, que a Constituição tenhaa<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> a concepção maior <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>. De fato, ao afirmar que o direito <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser garanti<strong>do</strong> mediante a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> políticas sociais e econômicasque visem a redução <strong>do</strong> risco <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças e outros agravos à saú<strong>de</strong>, mas que visem,também, assegurar a to<strong>do</strong>s, e em iguais condições, o acesso às ações e aos serviçosnecessários para a promoção, proteção e recuperação da saú<strong>de</strong> (C.F.art.196), fica clara acompreensão <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong> envolven<strong>do</strong>, inevitavelmente, o reconhecimento <strong>do</strong>direito <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>senvolvimento que lhe permita ofertar um nível <strong>de</strong> vida a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>à existência <strong>de</strong> um povo saudável, assim como os serviços e as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> quesupram as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os indivíduos. Por outro la<strong>do</strong>, o caráter coletivo <strong>do</strong>direito à saú<strong>de</strong>, ressaltan<strong>do</strong> o valor igualda<strong>de</strong>, é constitucionalmente exemplifica<strong>do</strong> nasatribuições <strong>do</strong> sistema único <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> enumeradas no artigo 200 (controle e fiscalização<strong>de</strong> procedimentos, produtos e substâncias <strong>de</strong> interesse para a saú<strong>de</strong>; vigilância sanitáriae epi<strong>de</strong>miológica; fiscalização e inspeção <strong>de</strong> alimentos, bebidas e águas para consumohumano, entre outras). Assim como fica claro o aspecto individual subjacente ao direitosubjetivo à saú<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> se afirma que o atendimento, ao qual to<strong>do</strong>s têm direito, <strong>de</strong>veser integral, engloban<strong>do</strong> tanto as ativida<strong>de</strong>s preventivas, quanto os serviços assistenciais(C.F. art.1 98, II).29 Cf. Dallari, D.A. Constitição e constituinte. 3ª ed. São Paulo, Saraiva, 1985.p.14.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>195


DIREITO SANITÁRIO: CONCEITO E EVOLUÇÃOAtualmente a humanida<strong>de</strong> não hesita em afirmar - ainda que o matizan<strong>do</strong> - quea saú<strong>de</strong> é um direito humano e que, como os <strong>de</strong>mais direitos humanos, exige o envolvimento<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, ora para preservar as liberda<strong>de</strong>s fundamentais, principalmente pormeio da eficiente atuação <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Judiciário, ora para eliminar progressivamente as<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, especialmente planejan<strong>do</strong> e implementan<strong>do</strong> políticas públicas 30 . Tratase,então, da reivindicação <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>. Por outro la<strong>do</strong>, ten<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> assumi<strong>do</strong>inicialmente a prestação <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como prestação <strong>de</strong> um serviço público,gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> textos legais regem a execução <strong>de</strong>sse serviço. Isso porque todaativida<strong>de</strong> administrativa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rno é realizada sob a lei, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-seprontamente concordar que “administrar (na área pública) é aplicar a lei <strong>de</strong> ofício” 31 .Com efeito, sen<strong>do</strong> a administração pública limitada pelos princípios da supremacia <strong>do</strong>interesse público sobre o priva<strong>do</strong> e pela indisponibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s interesses públicos esen<strong>do</strong> o interesse público <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pela própria socieda<strong>de</strong>, o administra<strong>do</strong>r não po<strong>de</strong>trabalhar senão com o conhecimento <strong>do</strong> interesse público que ele <strong>de</strong>ve realizar. Ora, ointeresse público no mo<strong>de</strong>rno Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Direito, porque sob leis, é <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pelasocieda<strong>de</strong> em forma <strong>de</strong> textos legislativos que representam a vonta<strong>de</strong> geral <strong>de</strong>ssasocieda<strong>de</strong>. A função executiva foi constitucionalmente <strong>de</strong>terminada para realizar osobjetivos <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s na lei. Assim, o administra<strong>do</strong>r público só po<strong>de</strong> agir guia<strong>do</strong> por umasérie <strong>de</strong> leis orientadas para o perfazimento <strong>do</strong> interesse público que, no que respeitaaos cuida<strong>do</strong>s sanitários, <strong>de</strong>limitam os objetivos da atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na área da saú<strong>de</strong>e os meios a serem emprega<strong>do</strong>s para atingí-los.Contu<strong>do</strong>, como já se viu, a saú<strong>de</strong> não tem apenas um aspecto individual e, portanto,não basta que sejam coloca<strong>do</strong>s à disposição das pessoas to<strong>do</strong>s os meios para apromoção, proteção ou recuperação da saú<strong>de</strong> para que o Esta<strong>do</strong> responda satisfatoriamenteà obrigação <strong>de</strong> garantir a saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> povo. Hoje os Esta<strong>do</strong>s são, em sua maioria,força<strong>do</strong>s por disposição constitucional a proteger a saú<strong>de</strong> contra to<strong>do</strong>s os perigos. Atémesmo contra a irresponsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus próprios cidadãos. A saú<strong>de</strong> “pública” temum caráter coletivo. O Esta<strong>do</strong> contemporâneo controla o comportamento <strong>do</strong>s indivíduosno intuito <strong>de</strong> impedir-lhes qualquer ação nociva à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o povo. E o faz pormeio <strong>de</strong> leis. É a própria socieda<strong>de</strong> por <strong>de</strong>corrência lógica que <strong>de</strong>fine quais são essescomportamentos nocivos e <strong>de</strong>termina que eles sejam evita<strong>do</strong>s, que seja puni<strong>do</strong> o infratore qual a pena que <strong>de</strong>ve ser-lhe aplicada. Tal ativida<strong>de</strong> social é expressa em leis que aadministração pública <strong>de</strong>ve cumprir e fazer cumprir. São, também, textos legais queorientam a ação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para a realização <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sócio-econômico ecultural. Conceitualmente, a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>fine os rumos que <strong>de</strong>vem ser segui<strong>do</strong>s paraalcançá-lo, estabelecen<strong>do</strong> normas jurídicas cuja obediência é obrigatória para aadministração pública 32 . E como a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> também <strong>de</strong>sse nível <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento, as disposições legais que lhe interessam estão contidas em tais planos<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.30. Veja-se, por exemplo: Comparato, F,K. Direitos Humanos e Esta<strong>do</strong>. In: Fester, A.C.R.(org.) Direitoshumanos e... São Paulo, Brasiliense,1989.p.93-105.31. Cf. Seabra Fagun<strong>de</strong>s, M.S. Controle <strong>do</strong>s atos administrativos pelo po<strong>de</strong>r jurídico. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Forense,1957.p.17.32. É o que afirma o artigo 174 da Constituição <strong>do</strong> Brasil, por exemplo: “... o Esta<strong>do</strong> exercerá, na forma dalei, as funções <strong>de</strong>... e planejamento, sen<strong>do</strong> este <strong>de</strong>terminante para o setor público...”196 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O direito da saú<strong>de</strong> pública é, portanto, parte <strong>do</strong> direito administrativo, ou umaaplicação especializada <strong>do</strong> direito administrativo. É parte <strong>do</strong> direito administrativoporque refere sempre atuações estatais orientadas o mais exaustivamente possível, pelaprória socieda<strong>de</strong> por meio <strong>do</strong> aparelho legislativo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Em termos práticos, aodireito da saú<strong>de</strong> pública assenta perfeitamente o rótulo <strong>de</strong> direito administrativo porquese trata <strong>de</strong> disciplina normativa que se caracteriza pelo preenchimento daquelesprincípios básicos da supremacia <strong>do</strong> interesse público sobre o particular e da indisponibilida<strong>de</strong><strong>do</strong> interesse público 33 . Entretanto, a referência ao direito administrativo nãoé suficiente, uma vez que na aplicação peculiariza-se o direito da saú<strong>de</strong> pública: ora sãoas atuações <strong>de</strong>correntes <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia, ora a prestação <strong>de</strong> um serviço público, ora,ainda, um imbricamento <strong>de</strong> ambos, como no caso da vacinação obrigatória realizadapelos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, que visam, principal ou exclusivamente, promover,proteger ou recuperar a saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> povo 34 .O direito sanitário se interessa tanto pelo direito à saú<strong>de</strong>, enquanto reivindicação<strong>de</strong> um direito humano, quanto pelo direito da saú<strong>de</strong> pública: um conjunto <strong>de</strong> normasjurídicas que têm por objeto a promoção, prevenção e recuperação da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s osindivíduos que compõem o povo <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, portanto,ambos os ramos tradicionais em que se convencionou dividir o direito: o público e opriva<strong>do</strong>. Tem, também, abarca<strong>do</strong> a sistematização da preocupação ética voltada para ostemas que interessam à saú<strong>de</strong> 35 e, especialmente, o direito internacional sanitário, quesistematiza o estu<strong>do</strong> da atuação <strong>de</strong> organismos internacionais que são fonte <strong>de</strong> normassanitárias e <strong>do</strong>s diversos órgãos supra-nacionais <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à implementação <strong>do</strong>s direitoshumanos. Afirmar que o direito sanitário é uma disciplina nova não significa negar aexistência <strong>de</strong> legislação <strong>de</strong> interesse para a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os perío<strong>do</strong>s mais remotos dahistória da humanida<strong>de</strong> ou a subsunção da saú<strong>de</strong> nos direitos humanos, <strong>de</strong> reivindicaçãoimemorial. Significa, porém, reconhecer que “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o fim <strong>do</strong> século XIX e sobretu<strong>do</strong>nos últimos cinqüenta anos, as relações <strong>de</strong> direito público no campo sanitário e socialforam consi<strong>de</strong>ravelmente ampliadas, multiplicadas, enriquecidas a ponto <strong>de</strong> produziresse “”precipita<strong>do</strong>”” que será ainda relativamente novo em 1990” 36 .Há muito a Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> se interessa pelo direito e a legislaçãosanitária, tanto no plano internacional como nos diferentes Esta<strong>do</strong>s. Todavia, o<strong>de</strong>senvolvimento contemporâneo <strong>de</strong>sse interesse é, também, recente. Apenas em 1977,durante a 30ª Assembléia Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, ficou resolvi<strong>do</strong> que “reconhecen<strong>do</strong> queuma legislação sanitária adaptada aos imperativos nacionais ten<strong>de</strong> a proteger e melhorara saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo e da coletivida<strong>de</strong>” se “pe<strong>de</strong> ao Diretor Geral que reforce o programada OMS no campo da legislação sanitária para ajudar os Esta<strong>do</strong>s membros... estu<strong>de</strong> ecoloque em prática os melhores meios <strong>de</strong> difusão da informação legislativa nos Esta<strong>do</strong>smembros objetivan<strong>do</strong> inspirar a formulação ou a revisão <strong>de</strong> textos <strong>de</strong> leis relativos à33. Cf. Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Mello, C.A. Elementos <strong>de</strong> direito administrativo. São Paulo, Revista <strong>do</strong>s Tribunais,1980.p.5.34. Veja-se Moreau, J. Droit administratif fondamental et droit administratif appliqué: l’exemple du droit<strong>de</strong> la santé publique. In: Truchet, D. (org.) Etu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> droit et d’economie <strong>de</strong> la santé. Paris, Economica,1982.35. Veja-se, por exemplo, a freqüente existência <strong>de</strong> livros <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s aos <strong>do</strong>is temas, como: Hall, M.A. &Ellman, I.M. Health care law and ethics. St. Paul., Minn., West Publishing Co., 1990 e Bourgeault, G.L’éthique et le droit. Bruxelles, De Boeck-Wesmael, 1990.36. Cf. Moreau,J. & Truchet, D. Droit <strong>de</strong> la santé publique. 2ª ed. Paris, Daloz, 1990.p.6.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>197


saú<strong>de</strong>” 37 . Tal Resolução provocou a manifestação da 33ª Assembléia Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>(1980) que, durante sua 17ª Sessão Plenária manifestou-se sobre o “rapport” <strong>do</strong> DiretorGeral, nos seguintes termos: “Notan<strong>do</strong> que uma legislação sanitária apropriada é umelemento essencial <strong>do</strong>s sistemas <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> higiene <strong>do</strong> meio ambiente”,“pe<strong>de</strong> ao Diretor Geral... a elaboração <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong>talha<strong>do</strong> <strong>de</strong> cooperação técnicae <strong>de</strong> transferência <strong>de</strong> informação em matéria <strong>de</strong> legislação sanitária” 38 .O Escritório Regional para a Europa, da Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, criou,em conseqüência <strong>de</strong>ssas recomendações, um Comitê Consultivo <strong>de</strong> Legislação Sanitáriaque, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que “para atuar a política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que <strong>de</strong>seja, um governopo<strong>de</strong> apoiar-se... na legislação e regulamentação propriamente ditas”, <strong>de</strong>cidiu realizaruma pesquisa sobre o ensino <strong>do</strong> tema. O estu<strong>do</strong> tinha os seguintes objetivos: “rever eanalisar a situação européia concernente aos programas e meios <strong>de</strong> formação em direitoe legislação sanitária; comparar a situação nos diferentes países da Europa com relaçãoàs instituições concernentes e os conteú<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s programas <strong>de</strong> ensino; indicar astendências atuais na Europa quanto a esse ensino; formular as recomendações paraencorajar tal ensino e promover seu reconhecimento e sua utilização ótima pelos Esta<strong>do</strong>smembros” 39 . Os resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>ssa pesquisa apontam a existência <strong>de</strong> inúmeros cursos,tanto em escolas <strong>de</strong> formação médica como jurídicas e mesmo em institutos <strong>de</strong> nívelsuperior agrega<strong>do</strong>s ou não às Universida<strong>de</strong>s.Em 1984 o direito sanitário era ensina<strong>do</strong> em to<strong>do</strong>s os Esta<strong>do</strong>s da Comunida<strong>de</strong>Econômica Européia <strong>de</strong> então, com a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> exceção <strong>do</strong> Luxemburgo(on<strong>de</strong> não se conseguiu a informação). Os mais amplos programas <strong>de</strong> pós-graduaçãona matéria eram encontra<strong>do</strong>s na Itália e na França. A <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Direito da Universitá<strong>de</strong>gli studi di Bologna organizou em 1962 um curso <strong>de</strong> aperfeiçoamento emdireito sanitário, que, em 1979, originou a Scuola <strong>de</strong> Perfezionamento in Diritto Sanitário,agregada àquela <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Direito. Esse curso, realiza<strong>do</strong> em <strong>do</strong>is anos, com ummínimo <strong>de</strong> 110 horas, oferece um diploma <strong>de</strong> aperfeiçoamento em direito sanitário,para gradua<strong>do</strong>s em várias áreas (direito, ciência política, economia, medicina, veterinária,farmácia, engenharia, por exemplo), <strong>de</strong>sejosos <strong>de</strong> receber formação especializada emdireito sanitário. Na França, o Centro <strong>de</strong> Direito Sanitário, da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bor<strong>de</strong>auxI, permite aos titulares <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> em direito público ou priva<strong>do</strong> ou gradua<strong>do</strong>s emmedicina, farmácia, o<strong>do</strong>ntologia, entre outros, conquistarem o Diploma <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>sEspecializa<strong>do</strong>s em Direito Sanitário que lhes dá o direito <strong>de</strong>, após <strong>do</strong>is anos, obter ograu <strong>de</strong> <strong>do</strong>utor, pela redação <strong>de</strong> uma tese. O programa tem a duração <strong>de</strong> um ano, com145 horas.Nas Américas, a <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da Columbia University, nos Esta<strong>do</strong>sUni<strong>do</strong>s, um a das três primeiras escolas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública no mun<strong>do</strong>, mantém regularmentedisciplinas como: legislação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, aspectos legais da administração<strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, regulamentação <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e legislação e política37. Word Health Assembly, 30th, Geneva, May, 1977. [Resolution] WHA 30.44. In: World HealthOrganization. Handbook of resolutions and <strong>de</strong>cisions of the World Health Assembly and the ExecutiveBoard: 1973-1984. Geneva, 1985. V.2.38. Word Health Assembly, 33rd, Geneva, May, 1980. [Resolution] WHA 33/17. In: World HealthOrganization. Handbook of resolutions and <strong>de</strong>cisions of the World Health Assembly and the ExecutiveBoard: 1973-1984. Geneva, 1985. V.2.39. Cf. Auby, J-M. Legislation sanitaire: programmes et moyens <strong>de</strong> formation en Europe. Paris, Masson,1984.p.5-7.198 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


populacional. Nelas são aborda<strong>do</strong>s, por exemplo, os seguintes temas: direitos humanose aspectos legais <strong>do</strong> aborto, da esterilização compulsória e <strong>do</strong> acesso à contracepção;análise jurídica <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> atual e das tendências observáveis da legislação dasorganizações <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Também nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s daAmérica, o relatório da “Comissão sobre Educação para Administra<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>”incluiu como o primeiro elemento chave para a gerência administrativa em saú<strong>de</strong> eatenção médica o conhecimento da “legislação que envolve to<strong>do</strong>s os tipos <strong>de</strong> instituições,agências e programas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e atenção médica” 40 . E a Lei 94-484, <strong>de</strong> 1976, conhecidacomo “The Health Profession Educational Assistance Act”, orientou as iniciativas <strong>do</strong>governo fe<strong>de</strong>ral para incluirem entre seus objetivos específicos “o apoio ao <strong>de</strong>senvolvimentoou expansão <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> ou linha mestra <strong>de</strong> programas especializa<strong>do</strong>s em políticae legislação” 41 .Mais recentemente, a Organização Panamericana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, escritório regionalpara as Américas da Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, buscan<strong>do</strong> contribuir para a reorganizaçãoe reorientação <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>, por meio da <strong>de</strong>scentralização e da participaçãosocial, publicou o <strong>do</strong>cumento “Desenvolvimento e Fortalecimento <strong>do</strong>s Sistemas Locais<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: a Administração Estratégica”, on<strong>de</strong> afirma ser a legislação um <strong>do</strong>s meiospara que a saú<strong>de</strong> se converta em ingrediente fundamental <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.Assim, consi<strong>de</strong>ra que “a legislação não é apenas o instrumento formal por meio<strong>do</strong> qual se <strong>de</strong>ve re-estrututar o setor saú<strong>de</strong> a fim <strong>de</strong> permitir seu a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>funcionamento, senão, também, o marco a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> para gerar as condições <strong>de</strong> pleno<strong>de</strong>senvolvimento físico e mental das pessoas e para que elas se integrem no processocomo atores e beneficiários”, acrescentan<strong>do</strong> que ela representa um meio para alcançar o<strong>de</strong>senvolvimento, global e interrelaciona<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>, portanto, ser analizada no contextointernacional, nacional e local 42 .ENSINO, PESQUISA E PRÁTICA DO SANITÁRIODesperta<strong>do</strong>s para a importância social da reivindicação <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong> econvenci<strong>do</strong>s da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aperfeiçoar os instrumentos normativos <strong>do</strong> direito dasaú<strong>de</strong> pública, um grupo <strong>de</strong> profissionais da área da saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong> direito, pre<strong>do</strong>minantementeprofessores das faculda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública e Direito da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong>São Paulo, começou a se reunir em setembro <strong>de</strong> 1987 para discutir o tema. As diferentesorigens acadêmicas geraram a primeira dificulda<strong>de</strong>: o emprego <strong>de</strong> linguagens diversas.Assim, a organização <strong>do</strong> grupo <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s iniciou-se com as sessões em que se discutiuem profundida<strong>de</strong> o conceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e o conceito <strong>de</strong> direito, apresenta<strong>do</strong>s,respectivamente, por professores <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública e direito. Tais encontros foram ogerme das Reuniões Científicas que caracterizaram os primeiros anos <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong>Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas <strong>de</strong> Direito Sanitário-CEPEDISA.40. Cf. W.K. Kellogg Foundation. Sumary and the report of the Comission on Education for healthAdministration. Ann Arbor, Michigan, Health Administration Press, 1974.41. Hatch, T.D. & Holland, W.J. Education for health management: a fe<strong>de</strong>ral perspective. In: Levey, S. &McCarthy, T. Health management for tomorrow. Phila<strong>de</strong>lphia, J.B.Lippincolt, 1980.42. Organización Panamericana <strong>de</strong> la Salud. Desarollo y fortalecimiento <strong>de</strong> los sistemas locales <strong>de</strong> salud: laadministracón estratégica. Washington, 1992.p.27.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>199


A partir daí, <strong>de</strong>finiu-se um currículo básico e <strong>de</strong>cidiu-se organizar um semináriopara o qual seriam convida<strong>do</strong>s professores estrangeiros com experiência no ensino <strong>do</strong>direito sanitário para discutir e avaliar o curriculum proposto. No seminário realiza<strong>do</strong>houve consenso quanto à pertinência da maioria <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s programa<strong>do</strong>s, salvoaqueles mais liga<strong>do</strong>s à reivindicação <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>: ética da saú<strong>de</strong>, filosofia esociologia <strong>do</strong> direito sanitário. Em outras palavras, os especialistas estrangeirosaceitavam com facilida<strong>de</strong> a idéia <strong>de</strong> ensinar o direito da saú<strong>de</strong> pública, contu<strong>do</strong>, apresentavamcerto <strong>de</strong>sconforto frente à hipótese <strong>de</strong> incluir o direito à saú<strong>de</strong>, passan<strong>do</strong>, assim,a ensinar direito sanitário. Um da<strong>do</strong> interessante é que o programa apresenta<strong>do</strong> pelosbrasileiros acabou por servir <strong>de</strong> base a reformas curriculares em alguns centrosuniversitários franceses e foi implanta<strong>do</strong> regularmente na Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo,a partir <strong>de</strong> 1989.Em outra linha <strong>de</strong> trabalho, visan<strong>do</strong> a realização <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s multidisciplinaresem mol<strong>de</strong>s não previstos na Universida<strong>de</strong>, o mesmo grupo <strong>de</strong>cidiu criar uma socieda<strong>de</strong>civil sem fins lucrativos, cuja caracterização estatutária era ser prioritariamente um“órgão científico <strong>de</strong> apoio ao ensino, à divulgação, pesquisa e prestação <strong>de</strong> serviços àcomunida<strong>de</strong>, tanto da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, quantoda <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Direito da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo” 43 . Entretanto, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>institucionalização <strong>de</strong> grupos interdisciplinares era compartilhada por muitos segmentosuniversitários no final da década <strong>de</strong> oitenta e a Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, ao reformarseus Estatutos em 1988, ofereceu abrigo aos Núcleos <strong>de</strong> Apoio, cria<strong>do</strong>s “com o objetivo <strong>de</strong>reunir especialistas <strong>de</strong> um ou mais órgãos e Unida<strong>de</strong>s em torno <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> pesquisaou <strong>de</strong> pós-graduação <strong>de</strong> caráter interdisciplinar” 44 . Por meio da primeira Resolução <strong>do</strong>Magnífico Reitor <strong>de</strong>stinada à criação <strong>de</strong> núcleos <strong>de</strong> apoio à pesquisa, foi cria<strong>do</strong> o Núcleo<strong>de</strong> Pesquisas em Direito Sanitário (Nap-DISA), origina<strong>do</strong> em proposta apresentada àPró-Reitoria <strong>de</strong> Pesquisas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo pelo CEPEDISA 45 e <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>a dar apoio à pesquisa em Direito Sanitário 46 .Outra ativida<strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo, prioritária, foi a criação <strong>de</strong> um banco<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s da legislação sanitária nacional, incluin<strong>do</strong> leis e atos administrativos das trêsesferas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r político, <strong>de</strong> interesse para a saú<strong>de</strong>. Nesse senti<strong>do</strong> foi firma<strong>do</strong> convêniocom a Organização Panamericana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, fazen<strong>do</strong> <strong>do</strong> CEPEDISA o CentroCoor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r da Base <strong>de</strong> Da<strong>do</strong>s LEYES para o Brasil. O projeto piloto para implantação<strong>de</strong>ssa base implicou a sistematização da legislação inci<strong>de</strong>nte no Município <strong>de</strong> São Paulo.Para tanto foram instituí<strong>do</strong>s Centros Informa<strong>do</strong>res no Ministério da Saú<strong>de</strong>, na Secretaria<strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> da Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo e na Secretaria <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> Município <strong>de</strong> São Paulo,to<strong>do</strong>s com responsabilida<strong>de</strong> pelo ingresso das informações <strong>de</strong> interesse para a saú<strong>de</strong>originadas em seu nível <strong>de</strong> governo. Um projeto experimental, para avaliação por parte<strong>do</strong>s usuários das informações fornecidas pelos Centros Informa<strong>do</strong>res, começou a sertesta<strong>do</strong> em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1995, nos vários Centros Informa<strong>do</strong>res.A par disso, <strong>de</strong>u-se também gran<strong>de</strong> ênfase ao ensino <strong>do</strong> Direito Sanitário realizan<strong>do</strong>-se<strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> especialização para alunos provenientes <strong>de</strong> diversas formaçõesprofissionais, uma vez que a formação <strong>de</strong> especialistas em Direito Sanitário é uma43. Cf. Estatuto <strong>do</strong> Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas <strong>de</strong> Direito Sanitário-CEPEDISA, art. 1º.44. Cf. Estatuto da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, art.7º.45. Cf. Resolução nº 3.658, <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1990, <strong>do</strong> Magnífico Reitor da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo.46. Regimento <strong>do</strong> Núcleo <strong>de</strong> Pesquisas em Direito Sanitário da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, art. 2º.200 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


necessida<strong>de</strong> premente da Administração Pública brasileira, assim como das organizaçõesprivadas com interesse na saú<strong>de</strong>. O conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong>s cursos incluiu as bases conceituais e<strong>do</strong>utrinárias sobre as matérias relacionadas ao Direito Sanitário, procuran<strong>do</strong>-se tambémapresentar e discutir a legislação específica e a jurisprudência no campo <strong>do</strong> direito àsaú<strong>de</strong>.Na seleção <strong>do</strong>s alunos é dada preferência aos candidatos <strong>de</strong> diferentes partes <strong>do</strong>país, envolvi<strong>do</strong>s em ativida<strong>de</strong>s ou instituições on<strong>de</strong> possam utilizar os conhecimentosobti<strong>do</strong>s durante o curso, além <strong>de</strong> agirem como dissemina<strong>do</strong>res das idéias <strong>do</strong> direitosanitário.A partir <strong>de</strong> 1995, por <strong>de</strong>cisão tomada em um <strong>do</strong>s encontros periódicos paraavaliação <strong>do</strong> curso, os coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>res e os responsáveis pelos módulos disciplinaresoptaram por <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar o curso <strong>de</strong> especialização em duas etapas. A primeiracompreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a realização <strong>de</strong> um curso <strong>de</strong> propedêutica, <strong>de</strong> 120 horas, <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>“Introdução ao Direito Sanitário”, que po<strong>de</strong>rá ser complementa<strong>do</strong>, em uma segundaetapa, por um “Curso <strong>de</strong> Aperfeiçoamento em Direito Sanitário”, com 260 horas.Preten<strong>de</strong>-se que o aluno <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> introdução, que assim o <strong>de</strong>sejar - e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> queseleciona<strong>do</strong> - possa freqüentar um <strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> aperfeiçoamento, tanto no mesmo anocomo em até quatro anos após ter obti<strong>do</strong> o certifica<strong>do</strong> <strong>de</strong> conclusão da primeira etapa.A<strong>de</strong>mais, o aluno que pretenda ampliar ainda mais seus conhecimentos sobre a matériapo<strong>de</strong>rá completar sua formação e adquirir o título <strong>de</strong> especialista em Direito Sanitário,fazen<strong>do</strong> o curso <strong>de</strong> especialização em Direito Sanitário, com 360 horas e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>monografia <strong>de</strong> fim <strong>de</strong> curso.Além da introdução <strong>de</strong> temas relaciona<strong>do</strong>s ao Direito Sanitário em cursos <strong>de</strong>pós-graduação e especialização em Saú<strong>de</strong> Pública e Administração <strong>de</strong> Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>na <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, bem como da realização<strong>de</strong> oficinas <strong>de</strong> trabalho, o CEPEDISA vem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua criação, colaboran<strong>do</strong> com instituições<strong>de</strong> ensino e órgãos liga<strong>do</strong>s à Administração Pública. Des<strong>de</strong> 1989, ensinamentos<strong>de</strong> direito sanitário estão incorpora<strong>do</strong>s ao ensino <strong>de</strong> “Advocacia em Saú<strong>de</strong>”, matéria <strong>de</strong>disciplina <strong>de</strong> pós-graduação para mestran<strong>do</strong>s e <strong>do</strong>utoran<strong>do</strong>s <strong>do</strong> curso da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> Pública da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo-FSP/USP. Também no Curso <strong>de</strong> Especialização<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da FSP/USP, esses ensinamentos estão incluí<strong>do</strong>s na área <strong>de</strong>concentração temática “Advocacia em Saú<strong>de</strong>”. O ensino <strong>de</strong> Advocacia em Saú<strong>de</strong> fezparte <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Internato <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> em conjunto pelo CEPEDISA e pelo Centerfor Population and Family Health, da School of Public Health, Columbia University(NY, USA), a partir <strong>do</strong> final da década <strong>de</strong> oitenta, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> acompanha<strong>do</strong> por 7 alunosestaduni<strong>de</strong>nses, que, em conjunto com alunos <strong>de</strong>sses cursos na <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Pública-USP, <strong>de</strong>senvolveram projetos e pesquisas <strong>de</strong> campo relacionadas à advocacialegislativa, administrativa ou judiciária, que resultaram em apresentações em eventoscientíficos e publicações em revistas nacionais e internacionais.Para a disseminação <strong>do</strong> Direito Sanitário foram promovidas várias Reuniões Científicas,ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong> pelo CEPEDISA, em 1994, um Forum <strong>de</strong> Debates sobre aSaú<strong>de</strong> na Revisão Constitucional, contan<strong>do</strong> com o apoio da Re<strong>de</strong> IDA/Brasil. Até 1996foram realiza<strong>do</strong>s mais três Seminários Internacionais <strong>de</strong> Direito Sanitário, possibilitan<strong>do</strong>a troca <strong>de</strong> experiências brasileiras e estrangeiras por profissionais liga<strong>do</strong>s às áreas <strong>de</strong>direito e saú<strong>de</strong>, sobre temas como “A Responsabilida<strong>de</strong> pela Saú<strong>de</strong>”, “Saú<strong>de</strong> e DireitoAmbiental: o problema das fronteiras intra e internacionais” e “Relação público/priva<strong>do</strong>na eficácia <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>”.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>201


Após oito anos <strong>de</strong> trabalhos, o balanço das ativida<strong>de</strong>s relacionadas com o DireitoSanitário po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> altamente positivo. A institucionalização <strong>do</strong> DireitoSanitário como disciplina acadêmica foi consolidada e po<strong>de</strong> ser evi<strong>de</strong>nciada no número<strong>de</strong> cursos universitários, em vários Esta<strong>do</strong>s da República, que ou <strong>de</strong>stinam parte <strong>de</strong> suacarga horária ou se <strong>de</strong>dicam integralmente ao ensino da matéria. Seu reconhecimentoacadêmico fica claro, também, quan<strong>do</strong> se consi<strong>de</strong>ra a produção <strong>de</strong> artigos científicossobre o tema, publica<strong>do</strong>s em revistas nacionais ou internacionais; a <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> dissertações<strong>de</strong> mestra<strong>do</strong> e teses <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> e livre-<strong>do</strong>cência em Direito Sanitário; a publicação <strong>de</strong>livros sobre a matéria; e a referência ao tema em diversas conferências e congressoscientíficos. Reforça a conclusão <strong>de</strong> que a disciplina já encontrou abrigo acadêmico acriação, pela Organização Panamericana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> publicações <strong>de</strong>stinadaa divulgar o Direito Sanitário no Brasil, <strong>de</strong>nominada “Direito e Saú<strong>de</strong>”.Numa perspectiva prática, a discussão da Advocacia em Saú<strong>de</strong>, adicionada aotratamento acadêmico <strong>do</strong> Direito Sanitário, <strong>de</strong>ve ser reconhecida como importantecontribuição, talvez fundamental, à efetiva proteção <strong>de</strong>sse direito. Isso porque, se nãoforem conheci<strong>do</strong>s os mecanismos <strong>de</strong> participação popular existentes, ou sem que sejamadapta<strong>do</strong>s ou cria<strong>do</strong>s novos instrumentos <strong>de</strong> participação, aptos a garantir a implementação<strong>de</strong> políticas públicas <strong>de</strong>stinadas à realização <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>, haveria poucoresulta<strong>do</strong> prático e seria difícil sua validação científica.Um da<strong>do</strong> muito significativo é que já está ocorren<strong>do</strong> a provocação <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>rJudiciário para intervir em situações que envolvam o Direito Sanitário. Com efeito, muitos<strong>do</strong>s advoga<strong>do</strong>s associa<strong>do</strong>s ao CEPEDISA têm proposto ações ou da<strong>do</strong> pareceres emprocessos nessa área, assim como membros <strong>do</strong> Ministério Público, tanto em nível fe<strong>de</strong>ralcomo no <strong>de</strong> vários Esta<strong>do</strong>s brasileiros, têm solicita<strong>do</strong> o apoio técnico da entida<strong>de</strong>.Associações <strong>de</strong> juízes vêm publican<strong>do</strong> artigos <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s ao Direito Sanitário, comoreflexo <strong>do</strong> aumento <strong>do</strong> número <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões - a maioria ainda em primeira instância -que têm uma ofensa ao direito à saú<strong>de</strong> como causa da ação. O incremento <strong>do</strong> contenciosoem Direito Sanitário po<strong>de</strong> ser confirma<strong>do</strong>, também, pela crescente procura, por parte<strong>de</strong> promotores <strong>de</strong> justiça e procura<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>s e Municípios, <strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> formaçãoofereci<strong>do</strong>s nessa área.A inserção <strong>do</strong> Direito Sanitário no cotidiano <strong>do</strong> sistema brasileiro <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> temseevi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> na crescente <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> assessorias e consultorias, tanto para instituiçõesgestoras <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e organizações não governamentais, quanto parainstituições <strong>de</strong> ensino que, a partir <strong>do</strong>s anos noventa, começam a se <strong>de</strong>dicar a esse campo<strong>do</strong> saber. A partir <strong>de</strong> 1993 significativo número <strong>de</strong> assessorias foram prestadas aSecretarias Municipais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e a movimentos populares e comunitários visan<strong>do</strong> aelaboração, avaliação ou revisão <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> lei tratan<strong>do</strong> da criação <strong>de</strong> ConselhosMunicipais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. O CEPEDISA atuou, igualmente, analisan<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s e dan<strong>do</strong> auxíliopara elaboração <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> lei referentes a Códigos e leis sanitárias <strong>de</strong> algunsMunicípios e Esta<strong>do</strong>s brasileiros. Seus membros têm si<strong>do</strong> também convida<strong>do</strong>s a prestarassistência técnico-jurídica no campo <strong>do</strong> direito ambiental, assim como na esfera dasaú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r e previ<strong>de</strong>nciária. Tal crescimento da <strong>de</strong>manda, que se originatambém em órgãos <strong>de</strong> direção <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> brasileiro, faz prever que o preparoespecífico <strong>de</strong> profissionais para participarem diretamente da administração, por meio<strong>de</strong> cursos <strong>de</strong> introdução, aperfeiçoamento ou especialização em Direito Sanitário, seráuma exigência natural <strong>do</strong> sistema. Entretanto, a importância social da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>consultoria e assessoria aos movimentos populares e a parlamentares enfatiza anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> não ignorar esse público, tanto quan<strong>do</strong> da produção como no momentoda disseminação <strong>do</strong> conhecimento em Direito Sanitário.202 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


DesafiosSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>203


204 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Do Biológico e <strong>do</strong> Social.Um Pequeno BalançoRicar<strong>do</strong> Lafetá NovaesUM OBJETOAs questões que nos colocamos <strong>de</strong>rivam, essencialmente, da forma <strong>de</strong> “estarmosno mun<strong>do</strong>” e <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r os fenômenos que nele percebemos. As explicações quepara eles construímos são fundamentais na <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> nossos comportamentos,da intervenção que sobre o mun<strong>do</strong> fazemos.Sigerist 1 , por exemplo, nos ensina que o culto a Asclépio torna-se pan-helênico apartir <strong>do</strong> século VI a.C. Em que consistia? Receben<strong>do</strong> os enfermos nos templos <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>sao semi<strong>de</strong>us, os sacer<strong>do</strong>tes relatavam, inicialmente, as curas ali realizadas. A seguir,oferendas e sacrifícios eram a ele feitos. Ao <strong>do</strong>rmir o enfermo, aparecia-lhe em sonhoum “asclepía<strong>de</strong>” recomendan<strong>do</strong> um remédio para o seu mal. Cura<strong>do</strong>, o ex-enfermo<strong>de</strong>dicava ao templo uma “oferenda” em testemunho <strong>de</strong> sua gratidão.É contra esta concepção mítica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, inclusive <strong>do</strong> mal que também se traduzna enfermida<strong>de</strong>, que a Grécia clássica vai forjan<strong>do</strong> um pensamento racional que serevelará como “originário” da civilização oci<strong>de</strong>ntal. É preciso construi-lo segun<strong>do</strong> regrasclaras cujo significa<strong>do</strong> seja universal e cuja ratio <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bre-se, também, na instauração<strong>do</strong> bem como máximo objetivo <strong>do</strong> viver. Essa a tentativa platônica cujo sucesso seráinapelavelmente nega<strong>do</strong> pela dinâmica <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que se move muito mais pela paixãoque o filósofo queria controlar. A lógica que terá maior prestígio será aquela <strong>de</strong> seudiscípulo que tomará a própria experiência vivida como fonte <strong>do</strong> conhecer. Com Aristóteles,não se trata, exatamente, da essência instaura<strong>do</strong>ra, mas sim das regras <strong>do</strong>movimento e <strong>de</strong> sua compreensão, a partir <strong>do</strong> visto e senti<strong>do</strong>.É neste contexto que, rompen<strong>do</strong> (e conviven<strong>do</strong>) com a concepção mítica da <strong>do</strong>ença,a “teoria <strong>do</strong>s humores” inaugura o que por muitos é ti<strong>do</strong> como o “nascimento damedicina científica”. A idéia mestra, como se sabe, é aquela <strong>de</strong> “harmonia” <strong>do</strong>s elementosconstituintes da natureza: quatro são aqueles fundamentais (terra, fogo, ar e água), quatrosão as estações e qualida<strong>de</strong>s (quente, frio, úmi<strong>do</strong> e seco) e quatro são os “humores”constituintes <strong>do</strong> vivo, marcadamente <strong>do</strong> humano (bile, negra e amarela, fleuma e sangue).Equilibra<strong>do</strong>s os humores, isto é, cada qual na sua proporção “justa”, o esta<strong>do</strong> é dito <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>. A <strong>do</strong>ença vem, então, a ser um <strong>de</strong>sequilíbrio humoral “causa<strong>do</strong>” por fatoresexternos (ar, clima, alimentos, bebidas) e internos (“constituição”, excesso e pre<strong>do</strong>minância<strong>de</strong> um humor sobre os outros).1. Sigerist, H.E. A History of Medicine. Oxford University Press, New York. 1955.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>205


Dominantes, as concepções veiculadas pelo Corpus Hippocraticum comportavam,também, idéias das <strong>do</strong>enças como “criaturas” ou “objetos”, principalmente através <strong>de</strong>metáforas militares, como nos mostra Vitrac 2 . Po<strong>de</strong>r-se-ia já aqui se ver um prenúncio<strong>de</strong> uma concepção ontológica da <strong>do</strong>ença, como mais tar<strong>de</strong> se verificará mas, o que nestemomento mais nos interessa é ressaltar é ressaltar a idéia <strong>de</strong> “equilíbrio”, porqueintegra<strong>do</strong>ra. É por ela que não se faz distinção essencial entre os elementos que compõema natureza. A noção <strong>de</strong> physis, ampla, congrega em um só movimento as especificida<strong>de</strong>sque, mais tar<strong>de</strong>, serão criadas. Ou seja, conceben<strong>do</strong> a “totalida<strong>de</strong>” como tu<strong>do</strong> que serefere aos “mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> andar a vida” (como diria Canguilhem), principalmente àquelesque na polis se concretizam, a idéia <strong>de</strong> physis não comporta distinções, hoje existentes,tais física e química, saú<strong>de</strong> e socieda<strong>de</strong>. Objetos esses cria<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong> tempo, emconsonância com a própria mudança <strong>do</strong>s tempos.Desequilíbrio natural, posto que próprio <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> sublunar, como queriaAristóteles, a <strong>do</strong>ença <strong>de</strong>ve ser “naturalmente” enfrentada. Curar se possível, prejudicarjamais, gran<strong>de</strong> lema hipocrático. A cura pela via da natureza (via medicatrix naturae)será o gran<strong>de</strong> esteio da terapêutica hipocrática, pelo menos nos seus primórdios.Essencialmente expectante e pedagógica, po<strong>de</strong>-se nela observar uma certacorrespondência com a forma escravista que se organizava a socieda<strong>de</strong> ateniense,protótipo da civilização grega clássica. Ao homem livre e rico, nos informa Platão,atenção, cortesia, dieta, repouso e termas. Aos pobres ou escravos, or<strong>de</strong>ns rápidas esecas <strong>de</strong> ‘médicos empíricos” ou escravos <strong>de</strong> médicos no exercício <strong>de</strong> uma medicina“resolutiva”, po<strong>de</strong>r-se-ia dizer. Tu<strong>do</strong> em conformida<strong>de</strong> com o que <strong>de</strong>veria ser, conclui ofilósofo.É notável que estas concepções tenham <strong>do</strong>mina<strong>do</strong> o pensamento oci<strong>de</strong>ntal porcerca <strong>de</strong> <strong>do</strong>is mil anos, ainda que características diversas <strong>de</strong> saberes e práticas tenhamsurgi<strong>do</strong>, manten<strong>do</strong>-se o essencial. As razões são variadas. Contam-nos os historia<strong>do</strong>resque os romanos, à par to<strong>do</strong> seu engenho e arte bélico e administrativo (o registro dasleis, por exemplo), nada produziram em termos ditos “científicos”, muito menos noque se refere à arte <strong>de</strong> curar. A gran<strong>de</strong> figura <strong>do</strong>s primeiros tempos <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> Cristo foiGaleno que, ten<strong>do</strong> anda<strong>do</strong> por Roma, portava uma cultura helenística e um saber quese revelou inova<strong>do</strong>r. Forçan<strong>do</strong> um pouco a imagem, po<strong>de</strong>ríamos nele encontrar, porcausa <strong>de</strong> seus estu<strong>do</strong>s anatômicos e preocupações funcionais, um proto-instaura<strong>do</strong>r <strong>de</strong>um novo objeto da medicina. Sobre ele existem referências <strong>de</strong> relações estabelecidasentre certas <strong>do</strong>enças e exposições laborais a agentes “tóxicos”, o que proporcionaria apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um primeiro pensamento <strong>do</strong> que viria a ser uma “medicina <strong>do</strong> trabalho”.Dele, se recorda mais facilmente uma agressiva terapêutica assentada no contrariacontrariis curantur que se <strong>de</strong>ve, a se crer nos historia<strong>do</strong>res, muito mais à afoiteza <strong>de</strong> seussegui<strong>do</strong>res <strong>do</strong> que propriamente <strong>de</strong> suas condutas. Pensamento po<strong>de</strong>roso, certamentepelas fraquezas <strong>de</strong> eventuais alternativas, marcará presença nas socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntaisem épocas não tão distantes <strong>de</strong> nossos dias.O perío<strong>do</strong> medieval é aquele consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> “das trevas” (com alguma razão), mas<strong>do</strong> qual sairão algumas novida<strong>de</strong>s interessantes, principalmente aquelas que aqui nosinteressam mais <strong>de</strong> perto por se tratar da construção <strong>do</strong> novo objeto <strong>do</strong> pensar e <strong>do</strong> agirmédicos.2. Vitrac, B. Mé<strong>de</strong>cine et Philosophie au Temps d’Hippocrate. Press Universitaires <strong>de</strong> Vincennes, Paris. 1989.206 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O traço maior é a cristianização <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, também como elemento <strong>de</strong>terminanteda relação servil como fundamento <strong>do</strong> novo processo <strong>de</strong> produção social. Ten<strong>do</strong>como tônica a verda<strong>de</strong> revelada, o pensamento medieval será, substancialmente umarepetição <strong>do</strong> já pensa<strong>do</strong>. Serão os árabes que, <strong>de</strong>positários da tradição grega, buscarãoalguma inovação na substancial conservação e disseminação <strong>do</strong> pensamento originário.O que <strong>de</strong> notável aqui vai acontecer é uma ação, tipo “social”, que será <strong>de</strong>senvolvidapor segmentos da florescente igreja católica romana. “A propósito da relaçãomédico-paciente, Entralgo sublinha duas características básicas da igualda<strong>de</strong> cristã: aproximida<strong>de</strong>, que consiste em procurar o bem <strong>do</strong> outro pelo simples fato <strong>de</strong> ser homem,e a amiza<strong>de</strong>, quer dizer, o bem procura<strong>do</strong> para aquele que, além <strong>de</strong> ser conheci<strong>do</strong>, é ooutro polo <strong>de</strong> uma ligação afetiva”. 3 Don<strong>de</strong>, <strong>do</strong>is fenômenos <strong>de</strong> alcance social: as “casas<strong>de</strong> Deus”, geralmente nos burgos <strong>de</strong> maior influência on<strong>de</strong> havia um bispo (até mesmoum arcebispo) e os mosteiros que foram gradativamente se espalhan<strong>do</strong> pela Europamedieval. Aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os <strong>de</strong>svali<strong>do</strong>s, abrigan<strong>do</strong> os viajantes, cuidan<strong>do</strong> <strong>do</strong>s enfermos,estas instituições inauguram uma nova forma <strong>de</strong> atenção e organização <strong>do</strong> cuida<strong>do</strong> aosenfermos e que será a base para reformulações que darão origem ao mo<strong>de</strong>rno hospital.De outra parte, pelos seus “copistas”, em muito elas contribuíram para a manutenção<strong>de</strong> saberes (inclusive médicos), sob risco <strong>de</strong> “<strong>de</strong>saparecimento” diante <strong>de</strong> um cristianismo<strong>do</strong>minante e <strong>do</strong>gmático.Dois são os eventos que vão influir em uma “laicização” da medicina, na segundameta<strong>de</strong> <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> medieval. Através <strong>de</strong> resoluções progressivas, a Igreja vai proibin<strong>do</strong>os clérigos <strong>de</strong> assumirem ativida<strong>de</strong>s médicas. A alma em primeiro lugar...O segun<strong>do</strong> é oaparecimento da primeira escola médica laica, em Salerno, no século X. Ponto primeiroque irradia saberes, Bolonha (1302), Montpellier (1360) e Pádua (1429), por exemplo,introduzem o ensino <strong>de</strong> anatomia em seus cursos <strong>de</strong> medicina. Momento significativona materialização <strong>do</strong> objeto da medicina, verifica-se em um perío<strong>do</strong> em que o mun<strong>do</strong>observará reviravoltas em relação aos “centros” então existentes.É por uma certa retomada <strong>do</strong> platonismo que Galileo retirará a terra, <strong>de</strong>finitivamente,<strong>do</strong> centro <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. É pela recusa da “verda<strong>de</strong> revelada” nos textos religiososque o homem se quer novo centro <strong>do</strong> saber, novo centro da existência no qual a experiênciapassa a jogar papel significante. Ten<strong>do</strong> como pano <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> as mudanças naforma da socieda<strong>de</strong> se organizar, política e economicamente, o pensamento oci<strong>de</strong>ntalvai se caracterizar como “cria<strong>do</strong>r <strong>de</strong> objetos” na medida em que, marcan<strong>do</strong> as diferenças,ratifica especificida<strong>de</strong>s.Mirko Grmek, em um bonito livro 4 , propõe a existência <strong>de</strong> três revoluções nabiologia, i<strong>de</strong>ntifican<strong>do</strong> “rupturas epistemológicas” no pensamento sobre o vivo. Aprimeira vai se dar no transcorrer <strong>do</strong> século XVII, com três características básicas:experimentação animal, realizada sob uma dimensão quantitativa; a segunda é ainterpretação mecânica que será dada aos processos vitais e, finalmente, mudanças porele i<strong>de</strong>ntificadas na prática médica.Descartes será um <strong>do</strong>s últimos “obstáculos” a ser supera<strong>do</strong> na afirmação da especificida<strong>de</strong><strong>do</strong> vivo. Como se sabe, ressaltan<strong>do</strong> o méto<strong>do</strong>, ele pensa o mun<strong>do</strong> a partir <strong>de</strong>relações necessárias como se vê, por exemplo, entre as partes <strong>de</strong> uma máquina cujo tipo3. Novaes, R.L. O Tempo e a Or<strong>de</strong>m. Sobre a Homeopatia. Cortez Editora/ABRASCO. São Paulo, 1989.4. Grmek, M.D. La Première Révolution Biologique. Éditions Payot, Paris. 1990.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>207


emblemático é o relógio. O que diferencia o homem <strong>de</strong> toda outra matéria é a alma (rescogitans), cuja única função é o julgamento. Enquanto ser vivo, como to<strong>do</strong>s os outros, aspartes só têm senti<strong>do</strong> enquanto elementos <strong>do</strong> to<strong>do</strong>. Ou seja, sem integrar o mecanismopara o qual foi criada, a parte não tem nenhum senti<strong>do</strong> existencial. A experiência, todavia,não corrobora uma tal afirmação. Um músculo <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> <strong>do</strong> organismo, além <strong>de</strong> nãonecessariamente paralisar o to<strong>do</strong>, mantém por um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> tempo sua “vitalida<strong>de</strong>”,traduzida pela persistência <strong>do</strong> movimento contrátil que se segue a uma estimulação. Anoção <strong>de</strong> “irritabilida<strong>de</strong>” será, talvez, a primeira a marcar uma especificida<strong>de</strong> da vida,não só por referência à matéria bruta físico-química, mas também <strong>de</strong> uma sua concepçãomecânica. É verda<strong>de</strong>, como bem relembra Grmek, que a afirmação da “i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” <strong>do</strong>biológico resultará, também, em pensamentos algo exagera<strong>do</strong>s como o foram o animismo<strong>de</strong> Stahl (1660-1734) e o vitalismo <strong>de</strong> Barthez (1734-1806). Do ponto <strong>de</strong> vista material,após um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> marcada presença da idéia <strong>de</strong> “fibra” como elemento primário econstituinte <strong>do</strong> ser vivo, a “teoria celular”, com todas a dificulda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> formulação eaceitação - como bem o <strong>de</strong>monstrou Canguilhem, vai concretizan<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong>“organismo” como aquele explicativo <strong>do</strong> ser vivo.No que se refere à <strong>do</strong>ença, propriamente dita, um longo caminho foi tambémpercorri<strong>do</strong> e <strong>do</strong> qual se aponta aqui alguns poucos momentos que parecem mais significativos.A “teoria <strong>do</strong>s humores” começa a ser abalada, justamente, pela criação dabiologia e <strong>do</strong> objeto que lhe correspon<strong>de</strong>. É a aproximação <strong>do</strong> concreto material queforjará novas compreensões, inclusive a partir da i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> incorreções. Aanatomia, já se viu, constitui-se em novida<strong>de</strong>, principalmente porque começa a serrealizada em cadáveres humanos. Vesálio se torna o campeão e o De Humani CorporisFabrica terá estatura semelhante ao De revolutionibus <strong>de</strong> Copérnico. Malpighi <strong>de</strong>screvecapilares pulmonares, Harvey a circulação sangüínea e Morgagni, já em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>século XVIII, inicia o esforço para relacionar lesões anatômicas com <strong>do</strong>enças em vidai<strong>de</strong>ntificadas. A materialida<strong>de</strong> <strong>do</strong> processo vai configuran<strong>do</strong> um novo objeto. Bichatnão terá dúvidas em atribuir à lesão orgânica o estatuto <strong>de</strong> “se<strong>de</strong>” e origem das <strong>do</strong>enças.A clínica, em um contexto <strong>de</strong> mudanças conturbadas como foram aquelas relacionadascom a Revolução Francesa, instituirá um novo espaço <strong>de</strong> sua atuação, buscan<strong>do</strong> no<strong>do</strong>ente hospitaliza<strong>do</strong> o máximo <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong>, para uma intervenção ainda muitopouco eficaz. Todavia, <strong>do</strong>is marcos espetaculares vão consolidar o novo objeto <strong>do</strong> saber(biológico e médico) a partir <strong>do</strong> qual novas proposições práticas vão mostrar suapositivida<strong>de</strong> em ritmo até então jamais visto. Trata-se da fisiologia e da bacteriologia. Aprimeira, construin<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> “meio interno”, <strong>de</strong> “homeostáse”, conce<strong>de</strong> ao servivo uma importante “autonomia relativa” por referência ao mun<strong>do</strong>. O segun<strong>do</strong>, aocontrário, <strong>de</strong>monstran<strong>do</strong> a sua vulnerabilida<strong>de</strong>, lançará as bases para procedimentosmédico- sanitários que, mais <strong>do</strong> que eficazes, mostrar-se-ão <strong>de</strong> uma efetivida<strong>de</strong> marcante.Não é <strong>de</strong> se estranhar, assim, que os novos saberes adquirin<strong>do</strong> prestígio crescente,passem a servir <strong>de</strong> paradigma para pensamentos que tomam outros objetos para seuconhecimento.MODO DE PENSARUm pequeno retorno no tempo, mas sob outro ângulo, po<strong>de</strong> ser interessante paraa compreensão <strong>de</strong> oscilações <strong>do</strong> pensamento e, também, <strong>de</strong> proposições técno-sociais.208 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Michel Foucault, por exemplo, relata que, para alguns revolucionários <strong>de</strong> 1789, as <strong>do</strong>ençasnão eram mais <strong>do</strong> que conseqüências das condições <strong>de</strong> existência e das formas <strong>de</strong> vida<strong>do</strong>s indivíduos, sujeitas a influências <strong>de</strong> épocas e lugares. Por isso, a primeira tarefa <strong>do</strong>médico é política e sua <strong>luta</strong> é contra os maus governos: “Quem, portanto, <strong>de</strong>verá<strong>de</strong>nunciar os tiranos ao gênero humano senão os médicos, que fazem <strong>do</strong> homem seuúnico estu<strong>do</strong> e que to<strong>do</strong>s os dias, em casa <strong>do</strong> cidadão e <strong>do</strong> mais po<strong>de</strong>roso, sob umachoça ou moradas suntuosas, contemplam a miséria humana que não têm outra origema não ser a tirania e a escravidão?” 5 .Se <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rarmos o evi<strong>de</strong>nte entusiasmo <strong>de</strong> uma tal assertiva, po<strong>de</strong>mos aíi<strong>de</strong>ntificar condições necessárias, ainda que não suficientes, <strong>do</strong>s sofrimentos humanos.A tirania é, sem dúvida, o oposto da liberda<strong>de</strong>. A privação representa, sem dúvida,obstáculos a uma plenitu<strong>de</strong>. Sua eliminação significa a eliminação <strong>de</strong> toda e qualquer<strong>do</strong>r, <strong>do</strong>s sofrimentos, da <strong>de</strong>cadência e, por extensão, da <strong>do</strong>ença e da morte? Obviamentenão. Claramente, porém, representa uma sua atenuação.Thomas McKeown tem si<strong>do</strong>, recorrentemente, solicita<strong>do</strong> a testemunhar.Constituem-se seus estu<strong>do</strong>s em mais uma <strong>de</strong>monstração <strong>de</strong> mudanças em <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>spadrões e perfis po<strong>de</strong>m ocorrer em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> medidas gerais que, portanto, nãovisam aspectos específicos das situações retratadas. As taxas <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> portuberculose, por ele levantadas na Inglaterra e Gales <strong>de</strong> 1838 a 1970, é um exemplo <strong>do</strong>smais expressivos. Antes mesmo que o bacilo <strong>de</strong> Koch fosse i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> pelos i<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 80<strong>do</strong> século passa<strong>do</strong>, a taxa <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> específica por tuberculose caiu pela meta<strong>de</strong>.Antes <strong>do</strong> advento da quimioterapia e <strong>do</strong> BCG, <strong>de</strong>clínio semelhante se verificou. Susser,recentemente, relembrou conclusões daquele autor: a melhora se <strong>de</strong>ve, não ao que nosacontece quan<strong>do</strong> estamos <strong>do</strong>entes, mas ao fato que estamos menos freqüentemente<strong>do</strong>entes, e permanecemos bem, não por causa <strong>de</strong> medidas específicas, mas porqueusufruímos <strong>de</strong> um alto nível nutricional e <strong>de</strong> vida, em um ambiente saudável 6 .1838 não é uma data aleatória. A “revolução industrial” torna extemporânea, naInglaterra, a “antiga Lei <strong>do</strong>s Pobres”, essencialmente por restringir a mobilida<strong>de</strong> daforça <strong>de</strong> trabalho, legalmente presa à terra. Sua reformulação se dá sob a li<strong>de</strong>rança <strong>de</strong>Chadwick em 1834. A nova “lei <strong>do</strong>s pobres” significa, no essencial, a liberação da “força<strong>de</strong> trabalho” para aten<strong>de</strong>r à nova forma <strong>de</strong> produzir, concentrada em um também novotipo <strong>de</strong> espaço urbano. As conseqüências, to<strong>do</strong>s sabemos, inclusive através <strong>de</strong> Engels,quan<strong>do</strong> nos <strong>de</strong>screve as condições das classes trabalha<strong>do</strong>ras naquele perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> consolidação<strong>do</strong> capitalismo na Inglaterra. Duas ameaças se apresentam: risco <strong>de</strong> que to<strong>do</strong>sos habitantes viessem a a<strong>do</strong>ecer e queda <strong>de</strong> produtivida<strong>de</strong> na produção industrial. Aintervenção estatal vai se construin<strong>do</strong>, principalmente em relação ao saneamentoambiental, em que pese as teses liberais benthamianas esposadas por Chadwick. Amo<strong>de</strong>rna “saú<strong>de</strong> pública” vem a ser, então, uma política <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> que, toman<strong>do</strong> comoobjeto as enfermida<strong>de</strong>s, intervém sobre o social visan<strong>do</strong> os interesses maiores <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>sda nova forma <strong>de</strong> produzir.Dominantes, tais interesses pressupõem a existência <strong>de</strong> outros, certamente<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s. Se os primeiros querem eliminar as <strong>do</strong>enças visan<strong>do</strong> retirar o máximoresulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua forma <strong>de</strong> produzir, os segun<strong>do</strong>s vêem nesta forma mesma a raiz <strong>do</strong>5. Lanthenas, cita<strong>do</strong> por Foucault, M. El Nacimiento <strong>de</strong> la Clínica. Siglo Veintiuno Editores S.A. México,1966. pag.59.6. Susser, M. American Journal of Public Health. 83(3): 422,1993.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>209


a<strong>do</strong>ecer. Tirania não mais política mas, fundamentalmente, econômica. “1848 é o ano <strong>de</strong>nascimento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> Medicina Social. É também o ano <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s movimentosrevolucionários na Europa. Da mesma forma que as revoluções, o conceito <strong>de</strong> medicinasocial surge quase simultaneamente em vários países da Europa. Salomon Neumann eRu<strong>do</strong>lf Virchow falam <strong>de</strong> medicina social na Alemanha. Jules Guérin, na França, WilliamFarr, na Inglaterra e Francesco Puccinotti, na Itália. (...) O conceito, apesar <strong>de</strong> ser utiliza<strong>do</strong><strong>de</strong> forma ambígua, tratava <strong>de</strong> assinalar que a <strong>do</strong>ença estava relacionada com ‘osproblemas sociais’ e que o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>veria intervir ativamente na solução <strong>do</strong>s problemas<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. (...) a Medicina Social aparece como uma concepção ‘mo<strong>de</strong>rna’, a<strong>de</strong>quada àsnovas formas produtivas que estavam se <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> na Europa” 7 .Intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> efetiva e <strong>de</strong>sejada. Uma em consonância com necessida<strong>de</strong>seconômico-políticas, outra refletin<strong>do</strong> posturas político-i<strong>de</strong>ológicas. Politizan<strong>do</strong> a“questão da saú<strong>de</strong>”, tanto a “saú<strong>de</strong> pública” como a “medicina social” concretizam-semuito mais como “práticas objetivantes” <strong>do</strong> que como disciplinas “objetivadas”. Ouseja, não se constituem precisamente em disciplinas científicas com objeto, conceitos emeto<strong>do</strong>logia próprios, mas sim ativida<strong>de</strong>s cuja finalida<strong>de</strong> é a realização <strong>de</strong> um valor:saú<strong>de</strong>, em qualquer acepção que se lhe queira atribuir. Por isso, valem-se <strong>de</strong> disciplinasoutras, <strong>de</strong> conhecimentos produzi<strong>do</strong>s em outros ramos <strong>do</strong> saber.A Saú<strong>de</strong> Pública, intervenção estatal sobre o meio, vai se apoian<strong>do</strong>, progressivamente,em um certo tipo <strong>de</strong> relação unicausal como explicação <strong>do</strong>s eventos mórbi<strong>do</strong>s,principalmente na sua dimensão coletiva. Por isso, se sua primeira técnica referiasea uma certa arrumação <strong>do</strong> espaço urbano, or<strong>de</strong>nan<strong>do</strong>-o e disciplinan<strong>do</strong>-o em função<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada concepção <strong>de</strong> “salubrida<strong>de</strong>”, uma segunda e <strong>de</strong> alcance espetacularserá posta em ação na esteira da “revolução pasteuriana”. Soroterapia e vacinoterapiarepresentaram, como ainda hoje representam, importantíssima arma <strong>de</strong> controle das<strong>do</strong>enças infecto-contagiosas. Posto que necessário se torna conhecer a magnitu<strong>de</strong> <strong>do</strong>sproblemas e explicar suas causas, a Epi<strong>de</strong>miologia se <strong>de</strong>senvolve como méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>sustentação <strong>de</strong> suas ações, assenta<strong>do</strong> que se encontra, cada vez mais, no conhecimento<strong>do</strong>s processos biológicos.A “medicina social” é, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo e ao mesmo tempo, diagnóstico e terapêutica.As causas das <strong>do</strong>enças encontram-se na forma pela qual a socieda<strong>de</strong> se organiza,construin<strong>do</strong> e consolidan<strong>do</strong> <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s que configuram injustiças, gera<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>carências, conflitos e sofrimentos. Posto que o movimento geral não esclarece os <strong>de</strong>talhes<strong>do</strong> processo, é preciso conhecer os meandros <strong>do</strong> movimento social através <strong>de</strong>procedimentos que, toman<strong>do</strong> este “social” como objeto, i<strong>de</strong>ntifique as “razões”. <strong>do</strong>sacontecimentos. Os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> fazê-lo, naturalmente, são múltiplos.Comte, pensan<strong>do</strong> que o espírito humano havia chega<strong>do</strong> à mais alta fase <strong>de</strong> suaevolução, científica ou positiva, imaginou que era o momento <strong>de</strong> instaurar uma físicasocial que completaria o sistema das “ciências naturais”. Privilegian<strong>do</strong> a observação (àqual se subordinaria a imaginação e a argumentação), o “espírito científico” <strong>de</strong>veriaaban<strong>do</strong>nar a idéia da existência <strong>de</strong> “causas” <strong>do</strong>s fenômenos, buscan<strong>do</strong> tão somentei<strong>de</strong>ntificar suas “leis naturais invariáveis”, entendidas como relações invariáveis <strong>de</strong>sucessão e similitu<strong>de</strong>. Por essa via, observa-se que os fenômenos comportam uma dupladimensão: estática e dinâmica. A primeira correspon<strong>de</strong> à or<strong>de</strong>m e a segunda ao progresso7. Garcia, J.C. Apresentação, in Nunes, E.D. (Org.) - As Ciências Sociais em Saú<strong>de</strong> na América Latina. Tendênciase Perspectivas. Organização Pan-americana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. 1985.210 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


que, necessariamente subordina-se à or<strong>de</strong>m ou seja, mudanças só po<strong>de</strong>m se dar no senti<strong>do</strong>previamente estabeleci<strong>do</strong> no mun<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong>. A organização, naturalmente, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> espírito humano: “Não é aos leitores <strong>de</strong>sta obra que acreditaria<strong>de</strong>ver provar que as idéias governam e subvertem o mun<strong>do</strong>, em outros termos, que omecanismo social repousa finalmente em opiniões. Sabem eles sobretu<strong>do</strong> que a gran<strong>de</strong>crise política e moral das socieda<strong>de</strong>s atuais provém, em última análise, da anarquiaintelectual. Nosso mais grave mal consiste nesta profunda divergência entre to<strong>do</strong>s osespíritos quanto a todas as máximas fundamentais, cuja fixi<strong>de</strong>z é a primeira condiçãoduma verda<strong>de</strong>ira or<strong>de</strong>m social” 8 .O positivismo é o pensamento que admitin<strong>do</strong> ter a história chega<strong>do</strong> ao seu maisalto grau, nenhuma mudança qualitativa <strong>de</strong>ve ocorrer e o progresso da socieda<strong>de</strong> não émais <strong>do</strong> que a realização <strong>de</strong> uma harmonia que se concretizará pela boa orientação <strong>do</strong>saber e pela operosida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homem diante da natureza. O pensamento que sabe é aqueleque i<strong>de</strong>ntifica as leis não contraditórias que regem os fenômenos, sejam físicos e químicos,biológicos ou sociais. Não haven<strong>do</strong> nelas contradições os <strong>de</strong>svios são, ou <strong>de</strong>feitos <strong>do</strong>pensamento, ou disfunções passíveis <strong>de</strong> correções, tal qual a medicina realiza com as<strong>do</strong>enças. Compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> os processos, o positivismo se tem como a mais alta terapêuticapara os males sociais, inclusive através <strong>de</strong> um fervor religioso.Estas concepções são claramente interessantes para quem, <strong>de</strong> certa forma, usufrui<strong>do</strong> já estabeleci<strong>do</strong>. Pensamento essencialmente conserva<strong>do</strong>r teve, com certa facilida<strong>de</strong>,gran<strong>de</strong> penetração nos espaços forma<strong>do</strong>res <strong>de</strong> opinião. A sociologia anglo-saxã pareceter si<strong>do</strong> especialmente receptiva, mesmo porque se po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar um feliz encontrocom sua tradição empirista. Enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a socieda<strong>de</strong> como um “sistema funcional”, ouseja, ativida<strong>de</strong>s interrelacionadas visan<strong>do</strong> uma finalida<strong>de</strong> geral, as “questões sociais”tendiam a ser vistas como “disnomias”, isto é, quebra das regras que regem a vida emsocieda<strong>de</strong>, principalmente ao nível <strong>de</strong> grupos/individualida<strong>de</strong>s especifica<strong>do</strong>s. Em outrostermos, dada a estrutura, os conflitos referem-se a insatisfações (em geral <strong>de</strong> minorias)perfeitamente contornáveis se a socieda<strong>de</strong> é competentemente dirigida no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>oferecer oportunida<strong>de</strong>s iguais a to<strong>do</strong>s. Don<strong>de</strong>, um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> papel atribuí<strong>do</strong> aoEsta<strong>do</strong>, se não o máximo prove<strong>do</strong>r, certamente o elemento <strong>de</strong> equilíbrio pois, estan<strong>do</strong>acima <strong>do</strong>s conflitos, <strong>de</strong>les po<strong>de</strong> se ocupar da forma mais isenta possível. A questão, bemse vê, é política e não se constitui em nenhuma novida<strong>de</strong>.UMA MESMA MOEDA?Os anos 60 foram marcantes sob diversos aspectos. Um <strong>de</strong>les, sem dúvidarelevante, foi to<strong>do</strong> um fervilhar sócio-político-cultural que, fazen<strong>do</strong> balançar velhasestruturas, resultou em mudanças e promessas abso<strong>luta</strong>mente fascinantes. Parecia terchega<strong>do</strong> a hora <strong>de</strong>, em <strong>de</strong>finitivo, construir a justiça no mun<strong>do</strong> pela eliminação das<strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s, das discriminações e intolerâncias.Assim, <strong>do</strong>is triunfos pareciam, claramente, se avizinhar. O primeiro, social, atravésda <strong>de</strong>mocracia que em breve iria se instalar. O segun<strong>do</strong>, aquele da ciência e das técnicas8. Comte, A. - Curso <strong>de</strong> Filosofia Positiva. Col. Os Pensa<strong>do</strong>res. Editora Abril Cultural. São Paulo, 1973.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>211


que <strong>de</strong>la <strong>de</strong>rivam que, prometen<strong>do</strong> confortos cada vez maiores, proveria o homem <strong>de</strong>prazeres, inclusive livran<strong>do</strong>-o <strong>de</strong> todas as <strong>do</strong>res. O objeto da Medicina, complexo,tornava-se cada vez mais conheci<strong>do</strong> e passível <strong>de</strong> intervenções cuja eficácia e efetivida<strong>de</strong>não davam mostras <strong>de</strong> ter limites. Às medidas <strong>de</strong> saneamento e <strong>de</strong> vacinação,instrumentos preventivos e já tradicionais da Saú<strong>de</strong> Pública, junta-se um elemento <strong>de</strong>revolucionário sucesso terapêutico como foram, por exemplo, os antibióticos.Todavia, para que todas essas promessas se concretizassem, um questionamentoprofun<strong>do</strong> se mostrou necessário, relativamente aos mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> compreensão <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>nas suas diversas dimensões. Um primeiro refere-se ao próprio objeto da arte <strong>de</strong> curar.Avanços <strong>do</strong> conhecimento e potencialida<strong>de</strong>s técnicas não se traduziam, necessária eimediatamente, em to<strong>do</strong>s os benefícios espera<strong>do</strong>s. Principalmente quan<strong>do</strong> se olhava oconjunto, os avanços mostravam-se aquém <strong>do</strong> <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>, toman<strong>do</strong>-se em consi<strong>de</strong>ração acontabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s mortos e <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes. Torna-se cada vez mais clara a relação das<strong>do</strong>enças e mortes não somente com fatores físico-ambientais, mas com as situações sócioeconômicasocupadas por <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s grupos populacionais.A “velha Saú<strong>de</strong> Pública” é posta em cheque. Tem razão Laurell quan<strong>do</strong> diz que amedicina social latino-americana “é uma corrente <strong>de</strong> pensamento que apareceu originariamentecomo contestação crítica ao pensamento <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública <strong>do</strong>minante. Seutraço característico, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista teórico, é a proposta <strong>de</strong> converter as ciênciassociais em um elemento explicativo central <strong>do</strong> campo sanitário” 9 . Contestação, portanto,que comporta duas dimensões. Uma primeira, “epistemológica”, acusa a velha Saú<strong>de</strong>Pública <strong>de</strong> pensar os fenômenos em uma or<strong>de</strong>m invertida, qual seja, a <strong>de</strong> tomar o efeitocomo causa. O exemplo é simples: se o bacilo <strong>de</strong> Koch é condição necessária, não ésuficiente para <strong>de</strong>terminar a <strong>do</strong>ença. A causa real encontra-se, assim, nas condições quefavorecem seu florescimento e que resultam <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> inserção <strong>do</strong>s sujeitos na socieda<strong>de</strong>.A segunda dimensão e, por conseqüência, refere-se ao “que fazer”. Sen<strong>do</strong> oprocesso saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença mais complexo da<strong>do</strong> que encontra-se socialmente <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>,as formas <strong>de</strong> intervenção <strong>de</strong>vem a ele ter correspondência mais estreita. A começarpelos agentes e suas práticas. “O pensamento hegemônico na saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> suasexpressões menos progressistas, até as ‘atraentes’ propostas social-<strong>de</strong>mocráticas, <strong>de</strong>veser discuti<strong>do</strong> também pela ciência. Os pesquisa<strong>do</strong>res po<strong>de</strong>m produzir conhecimentoobjetivo que contribua para a construção <strong>de</strong> uma contra-hegemonia e para a consolidação<strong>de</strong> múltiplos espaços <strong>de</strong> expressão, necessários para a organização <strong>do</strong>s povos” 10 .A primeira tarefa, agora <strong>do</strong> cientista, é política, enquanto instrumento <strong>de</strong> organizaçãopopular na busca <strong>de</strong> mudanças necessárias. Por isso, “essa ‘socialização’ daEpi<strong>de</strong>miologia científica, que nasceu com os ‘clássicos’ e que se projeta nos esforços <strong>de</strong>múltiplos centros latino-americanos, não po<strong>de</strong> ser obtida por meio <strong>de</strong> um trabalhotecnocrático. Não se conseguirá converter em ação vital o conhecimento epi<strong>de</strong>miológicose este for intermedia<strong>do</strong> pelo aca<strong>de</strong>micismo universitário, pelo burocratismo estatal oupelo utilitarismo da pesquisa com fins <strong>de</strong> lucro” 11 .9. Laurell, A.C. Saú<strong>de</strong> e Trabalho: os Enfoques Teóricos. in Nunes, E.D. As Ciências Sociais em Saú<strong>de</strong> naAmérica Latina. Tendências e Perspectivas. Organização Pan-americana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. 1985, pag. 260.10. Breilh, J. & Granda, E. Os Novos Rumos da Epi<strong>de</strong>miologia. in Nunes, E.D. As Ciências Sociais em Saú<strong>de</strong>na América Latina. Tendências e Perspectivas. Organização Pan-americana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, 1985. Pag 244.11. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m. Pag 245.212 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O materialismo histórico torna-se o fundamento epistemológico <strong>do</strong> “objeto”processo saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença, ao mesmo tempo que se institui como instrumento <strong>de</strong> transformaçãoracional da realida<strong>de</strong>. Por isso, torna-se possível, por exemplo, i<strong>de</strong>ntificar umaepi<strong>de</strong>miologia científica que se contrapõe a uma epi<strong>de</strong>miologia “burguesa”. Assim, acategoria central explicativa <strong>do</strong> processo saú<strong>de</strong>/<strong>do</strong>ença seria, pelo seu máximo grau <strong>de</strong>abstração, aquela <strong>de</strong> “produção” e “reprodução social”, naturalmente intermediada poroutras categorias, quan<strong>do</strong> se consi<strong>de</strong>ra especificida<strong>de</strong>s (socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> classe, porexemplo). São necessárias, assim, categorias <strong>do</strong> tipo: merca<strong>do</strong>ria, valor, força <strong>de</strong> trabalho,classe. “então, a nova síntese po<strong>de</strong> explicar a oposição dialética entre, por exemplo, areprodução social, orientada primeiro para a formação <strong>do</strong> valor e, portanto, para avalorização <strong>do</strong> valor sobre a reprodução natural, e condições naturais externas ou ecológicas.Além disso, ao incorporar na síntese estas novas categorias, aparece, no resulta<strong>do</strong>final da mesma, o ‘perfil epi<strong>de</strong>miológico <strong>de</strong> classe’” 12 .Contra o positivismo, que tomou das “ciências naturais” o mo<strong>de</strong>lo para explicara socieda<strong>de</strong> e sua dinâmica, <strong>de</strong>senvolve-se aqui um esforço para pensar a totalida<strong>de</strong> davida a partir <strong>de</strong> categorias que foram criadas para pensar parte <strong>do</strong> movimento <strong>do</strong> real,que é a história humana. “Sociologizada”, a <strong>do</strong>ença estaria inteiramente explicada peloprocesso que traz consigo a máxima <strong>de</strong>terminação. O conhecimento aqui aproxima-se,e bastante, <strong>de</strong> um mecanismo <strong>de</strong> corroboração <strong>de</strong> situações e <strong>de</strong> causas que, estas sim,precisam ser eliminadas. A “terapêutica” é uma só, ainda que divergências táticas possamser i<strong>de</strong>ntificadas e, até mesmo, admitidas. Vê-se bem que uma finalida<strong>de</strong> acaba pori<strong>de</strong>ntificar, em um primeiro momento, o objetivo com o objeto e, <strong>de</strong> tanto ressaltá-lo,substituir um pelo outro. Em outros termos, tu<strong>do</strong> se passa como, em saben<strong>do</strong> o quequero, sei o que é e como fazer.Na verda<strong>de</strong>, as coisas não se <strong>de</strong>ixam passar exatamente da forma como sãoconcebidas. Uma primeira dificulda<strong>de</strong> refere-se à operacionalização <strong>de</strong> categoriasconceituais chaves da proposição. A primeira, e fundamental, é aquela <strong>de</strong> “classe social”.Não se trata aqui <strong>de</strong> percorrer a história <strong>de</strong>ste conceito mas, muito simplesmente, <strong>de</strong>apontar eventuais razões <strong>de</strong> certo insucesso <strong>de</strong> sua utilização em estu<strong>do</strong>s empíricos,como os empreendi<strong>do</strong>s pela epi<strong>de</strong>miologia. Uma primeira pergunta, por isso mesmo,<strong>de</strong>ve ser formulada: como i<strong>de</strong>ntificar uma “classe social”? Ou, melhor dizen<strong>do</strong>, quemcompõe tal ou qual “classe social”? Sob o capitalismo, duas classes são i<strong>de</strong>ntificadas: aproprietária <strong>do</strong>s meios <strong>de</strong> produção, opon<strong>do</strong>-se àquela que, operan<strong>do</strong> os instrumentos<strong>de</strong> produção, é excluída <strong>de</strong> parcela <strong>do</strong> resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> seu trabalho. Resulta uma questãocrucial: on<strong>de</strong> localizar, por exemplo, os que não produzem e nem se apropriam <strong>do</strong> valorproduzi<strong>do</strong>? Ou seja, o que vem a ser aquele que não é capitalista e nem proletário.Como ser-lhe-ia traça<strong>do</strong> um “perfil epi<strong>de</strong>miológico”?Há aqui um problema, inicialmente meto<strong>do</strong>lógico. A abordagem da realida<strong>de</strong>empírica tem si<strong>do</strong> feita, em geral, utilizan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> categorias relativas a atributos pessoais(sexo, ida<strong>de</strong>, raça) e econômico-culturais (escolarida<strong>de</strong>, ocupação e, fundamentalmente,renda). As “classes sociais” seriam, assim, “vistas” através <strong>de</strong> diferenças estabelecidaspor “faixas <strong>de</strong> ingresso”, ou seja por uma estratificação monetária. Não sen<strong>do</strong> possívelse libertar das categorias que só me<strong>de</strong>m o “funcionalida<strong>de</strong>” <strong>do</strong> sistema social, o“impasse” meto<strong>do</strong>lógico remete a questão, obrigatoriamente, para o plano conceitual.12. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m. Pag. 250.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>213


Ou seja, e em outros termos, como explicar a realida<strong>de</strong> e qual explicação lhe seria a maisa<strong>de</strong>quada?Comte queria ver uma evolução nas formas <strong>de</strong> explicar o mun<strong>do</strong>, mostran<strong>do</strong> queo progresso <strong>do</strong> espírito humano passa <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> teológico àquele metafísico para,finalmente chegar ao esta<strong>do</strong> positivo, científico. Marx ataca os i<strong>de</strong>ólogos alemães, oseconomistas ingleses e reforma<strong>do</strong>res franceses. Enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong> que a história humana <strong>de</strong>veser explicada a partir das formas pelas quais os homens produzem seus bens materiais,encontra relações fundamentais que <strong>de</strong>terminam a posições <strong>de</strong> cada um no espaço socialque lhe é da<strong>do</strong> viver. Constrói a idéia <strong>de</strong> classe social como uma abstração conceitual quevisa explicar sistemas <strong>de</strong> relações. Sua realida<strong>de</strong> empírica se faz presente somente através<strong>de</strong> seus efeitos, isto é, <strong>do</strong>s processos que lhe dão sustentação enquanto “concretopensa<strong>do</strong>”, para usar uma expressão <strong>do</strong> próprio Marx. Em outros termos, se posso alocarindividualida<strong>de</strong>s em partições sociais <strong>de</strong>finidas como “classe(s)”, não há como encontrála(ou encontrá-las) enquanto unida<strong>de</strong>(s) <strong>de</strong>finida(s) e circunscrita(s). A “estrutura <strong>de</strong>classes” não recobre total e imediatamente a empiría, em to<strong>do</strong>s os espaços e em to<strong>do</strong>s ostempos. Da mesma forma, um “mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção” não se encontra inteiramente alocadaem uma dada “formação social”. Houve até quem pensasse, tentan<strong>do</strong> dar conta <strong>do</strong>“impasse meto<strong>do</strong>lógico”, “mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção” <strong>do</strong>minantes e <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s em um espaçogeograficamente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>. Por isso, talvez seja correto pensar que são os efeitos <strong>de</strong>uma “estrutura ausente” (pois trata-se <strong>de</strong> relações) que, perceptíveis em sua concreção,po<strong>de</strong>m ser, inclusive, quantifica<strong>do</strong>s. Por exemplo, embora se possa <strong>de</strong>terminar uma“taxa <strong>de</strong> mais-valia” global, dificilmente se quantificaria o sobre-valor relativo a umúnico trabalha<strong>do</strong>r. No entanto, a conta po<strong>de</strong> ser feita se tomo as carências observadas,por referência a uma máxima plenitu<strong>de</strong>, perfeitamente i<strong>de</strong>ntificável. Em outros termos,é pelo consumo que posso diferenciar o sobre-valor relativo ao indivíduo e/ou a qualquertipo <strong>de</strong> coleção que o conjunto <strong>de</strong>les venha a formar. Assim, ao invés <strong>de</strong> perfilepi<strong>de</strong>miológico <strong>de</strong> “classes”, estou, na verda<strong>de</strong>, diante <strong>de</strong> perfis <strong>de</strong> “grupos”, <strong>de</strong>“segmentos” ou <strong>de</strong> “categorias”, como se queira nominar.Se a reflexão é conseqüente, o “impasse meto<strong>do</strong>lógico” não tem mais razão <strong>de</strong>existir. De fato, tomar os efeitos como índices em nada obscurece a idéia <strong>de</strong> “causa” ouse “<strong>de</strong>terminação”, se se quiser. Mesmo porque, a questão se refere muito mais ao estatutoda “causalida<strong>de</strong>” <strong>do</strong> que a uma sua <strong>de</strong>finição. Por isso, não se trata aqui <strong>de</strong> discutir se a<strong>de</strong>terminação é una ou múltipla, se uni ou bidirecionada. Isso em nada modifica oproblema que, na verda<strong>de</strong>, não é mais <strong>do</strong> que os limites <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> intervenção <strong>do</strong>homem sobre os fenômenos, naturais ou por ele “cria<strong>do</strong>s” como os são, por exemplo,aqueles sociais. Ou seja, a idéia <strong>de</strong> “causa” se estrutura no mesmo espaço no qual sealoca a potentia humana. É pela idéia <strong>de</strong> “causa”, bem se sabe, que se dimensiona o que“contra” ela fazer. O objetivo visualiza o objeto.Se assim é, to<strong>do</strong>s os elementos, mesmos os da mais particular singularida<strong>de</strong>, comportamuma máxima expressivida<strong>de</strong> na medida em que exprimem <strong>de</strong> forma mais oumenos clara, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s mais ou menos mediatiza<strong>do</strong>s, os processos que lhes dão senti<strong>do</strong>.Toma-se aqui a idéia <strong>de</strong> processo no plural, justamente para ressaltar o movimento <strong>do</strong>pensamento que resulta na constituição <strong>de</strong> objetos. A “vida”, por exemplo, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>conotar uma unida<strong>de</strong> “cósmica”, comporta especificida<strong>de</strong>s que convém não mascarar.Sen<strong>do</strong> ela anterior ao pensamento, há que se nela admitir um proce<strong>de</strong>r que <strong>do</strong>pensamento in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>. É certo que o biológico, fundamento, não po<strong>de</strong> ser toda aexplicação, mesmo porque a ele a totalida<strong>de</strong> não se reduz. Todavia, sem ele não háexistência, como se po<strong>de</strong> até mesmo observar quan<strong>do</strong> <strong>do</strong> “social” se é priva<strong>do</strong> e, no214 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


limite, quan<strong>do</strong> a privação é das próprias funções relacionais. Por isso, valeria a penaconsi<strong>de</strong>rar, ainda que provisoriamente, especificida<strong>de</strong>s que se articulam, com grausdiferencia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminações (“causalida<strong>de</strong>s”) e significa<strong>do</strong>s que, não sen<strong>do</strong> eternos,variam segun<strong>do</strong> interesses, padrões e valores que aqui e acolá prevalecem.Se estas consi<strong>de</strong>rações fazem senti<strong>do</strong>, uma questão mais parece ser pertinente: oque vem a ser, exatamente, “<strong>de</strong>terminação social da <strong>do</strong>ença”? Duas respostas parecemaqui possíveis. De imediato, a “causa” da <strong>do</strong>ença advinda da socieda<strong>de</strong>. Ou seja, a<strong>do</strong>ença seria melhor explicada pelos “fatores” sociais <strong>do</strong> que por aqueles biológicos.Será? Uma resposta afirmativa <strong>de</strong>riva <strong>de</strong> observações empíricas: as <strong>do</strong>enças se distribuem<strong>de</strong>sigualmente na população e facilmente se vê “<strong>do</strong>ença <strong>de</strong> pobre” e “<strong>do</strong>ença <strong>de</strong> rico”.Todavia, eliminada a pobreza, sobrariam só as “<strong>do</strong>enças <strong>de</strong> rico”? Ou “<strong>do</strong>enças <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s”? Seja qual for a resposta, o que subsiste é a idéia <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença.O que é evi<strong>de</strong>nte é a antecedência <strong>do</strong> substantivo em relação ao qualitativo.Antecedência cronológica, temporal, mas também lógica. É a <strong>do</strong>ença que inaugura epõe a questão da saú<strong>de</strong>, <strong>do</strong> não sofrimento, na or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> social. É pela sua explicaçãoque nexos se estabelecem, até mesmo em termos <strong>de</strong> relações causais. Mas, para isso, épreciso haver uma teoria que tome o fenômeno como objeto. Don<strong>de</strong>, a segundaconsi<strong>de</strong>ração a propósito da “<strong>de</strong>terminação social”. Na verda<strong>de</strong>, um fenômeno só vema ser um “fato” se sua percepção insere-se no horizonte <strong>de</strong> um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> repertóriocultural. A <strong>do</strong>ença antece<strong>de</strong> à cultura enquanto fundamento material. Todavia, é sópela cultura que o evento, torna<strong>do</strong> “fato”, adquire significação. O sofrimento humano,experiência intransferível mas comunicável, po<strong>de</strong> ser <strong>do</strong>ença ou uma benção. Associeda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais, sem dúvida, ten<strong>de</strong>m a encará-lo como <strong>do</strong>r e, nesse senti<strong>do</strong>,buscam, se não eliminá-lo, pelo menos minimizá-lo. Sen<strong>do</strong> uma ou outra, o que aqui seressalta é não mais <strong>do</strong> que o valor (a boa ou má importância) atribuí<strong>do</strong> ao acontecer.Nesse senti<strong>do</strong>, a <strong>do</strong>ença e seu oposto (saú<strong>de</strong>) são, sem dúvida, socialmente <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s.Talvez por esta via possamos ensaiar alguma <strong>de</strong>finição que auxilie na construçãopermanente <strong>do</strong> “que fazer”. Se <strong>do</strong>ença é um valor, ele se refere a um algo qualifica<strong>do</strong>.Da vida, já se disse, o fundamento é o biológico cujas características básicas assentamseem processos relativamente estáveis, relativamente autônomos e abso<strong>luta</strong>mente reprodutores.O ser vivo é o da estabilida<strong>de</strong> temporária que se regula internamente, mas cujamaior finalida<strong>de</strong>, se se permite uma tal liberda<strong>de</strong> teleológica, é sua continuida<strong>de</strong> nooutro. “O inferno é o outro”, também já se pensou. O salmão, não se sabe bem como enem porque (talvez pelo olfato), enfrenta todas as correntes para, após a postura,encontrar o seu fim. Não sen<strong>do</strong> o homem somente isso, constrói para si finalida<strong>de</strong>s, emgeral as mais belas. Mas, isso é outra história... Por ora, o que interessa é i<strong>de</strong>ntificar aexistência <strong>de</strong> processos guia<strong>do</strong>s por leis próprias, sem que um telos possa neles seri<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s. São normas, diria Canguilhem, que regem os processos vitais. Normasque nós outros vamos consi<strong>de</strong>rar positivamente, se o sucesso <strong>do</strong> indivíduo (e da espécie)for garanti<strong>do</strong>, ou negativamente, se o ser sucumbe no meio <strong>de</strong> catástrofes, entre elas asque vamos conhecer como <strong>do</strong>enças. Normas mutáveis pois, uma vez superada a tormenta<strong>de</strong> “origem” tanto interna como externa, o ser triunfante estará sob o <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> regrassuperiores, novas e enriquece<strong>do</strong>ras. Por aí, uma pequena sugestão para dar significa<strong>do</strong>ao termo saú<strong>de</strong>, escapan<strong>do</strong> da tautologia <strong>de</strong> <strong>de</strong>fini-lo pela simples negação <strong>de</strong> seu oposto.Saú<strong>de</strong> seria não mais <strong>do</strong> que a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ecer e <strong>de</strong> sarar. A <strong>do</strong>ença? A rota queleva à catástrofe, ao fim antes da hora programada. Assim, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> das disposiçõesinternas e externas ao ser, a “boa” ou “má” norma prevalecerá.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>215


IMPASSESObjeto ou objetivo? Eis uma questão. Se é certo que a saú<strong>de</strong> é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>instauração <strong>de</strong> novas e superiores normas vitais, não há, então, nenhum senti<strong>do</strong> lógicoem se pensar a não-<strong>do</strong>ença. Uma primeira conseqüência po<strong>de</strong> daí ser extraída: na vida<strong>do</strong> homem, não há um objetivo final a ser atingi<strong>do</strong>, muito menos aquele no qual sei<strong>de</strong>ntificaria não só a ausência <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças, mas o “completo bem estar físico, mental esocial”. Sob normas sociais, ou seja, condições concretas <strong>de</strong> existência, o homem vaiviven<strong>do</strong> a superação <strong>de</strong> si próprio, também pela mudança <strong>de</strong>ssas condições que lhe sãodadas a viver. Toda a questão, vê-se bem, é <strong>de</strong> como e o que mudar. Aí parece residir umcerto mal estar que tem si<strong>do</strong> expresso através da noção <strong>de</strong> “crise”, dita da saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>um <strong>do</strong>s instrumentos <strong>de</strong> intervenção social que é a saú<strong>de</strong> pública.A crise “da saú<strong>de</strong>” refere-se à constatação <strong>de</strong> que as coisas se agravam, feita atravésda análise as características <strong>do</strong>s perfis epi<strong>de</strong>miológicos que, além das “<strong>do</strong>enças típicas<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento”, ainda comportam aquelas tidas como “próprias da pobreza”;“crise” ainda, da<strong>do</strong> que gran<strong>de</strong>s contingentes populacionais continuam sem acesso aosbens e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s cada vez mais sofistica<strong>do</strong>s e caros. Em relaçãoespecificamente ao setor saú<strong>de</strong>, vale dizer, assistência médica, a “crise” se caracterizariapelo esgotamento <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo “reducionista médico-biologista” e “hospitalocêntrico”que, por sua irracionalida<strong>de</strong>, não faz mais <strong>do</strong> que elevar custos em benefício, aliás, <strong>de</strong>um “complexo médico-hospitalar”.Seria conveniente <strong>de</strong>s<strong>do</strong>brar, ainda que preliminarmente, os temas da “crise”que, diga-se <strong>de</strong> passagem, parece ser permanente. Por mais que se queira (ou se tenhaqueri<strong>do</strong>) proce<strong>de</strong>r <strong>de</strong> forma contrária, as condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma população sãoi<strong>de</strong>ntificadas a partir <strong>de</strong> seu “esta<strong>do</strong> mórbi<strong>do</strong>”, vale dizer, das <strong>do</strong>enças nela existentes.Aqui, <strong>do</strong>is parâmetros interessam: qualida<strong>de</strong> e quantida<strong>de</strong>. Ou seja, é fundamentali<strong>de</strong>ntificar o “tipo da <strong>do</strong>ença” e a magnitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua presença. Os motivos são simples.Se o objetivo é “erradicá-la” ou, mais mo<strong>de</strong>stamente, controlá-la, o seu “tipo” comporáo índice da eficácia da intervenção e a magnitu<strong>de</strong>, comportan<strong>do</strong> elementos técnicosrelativos à efetivida<strong>de</strong>, importará em uma apreciação da eficiência das medidas a serema<strong>do</strong>tadas o que resulta, em última análise, em <strong>de</strong>cisões <strong>do</strong> tipo custo-benefício. (Apropósito <strong>de</strong>ste último aspecto, é bem provável que haja um consenso em torno daassertiva <strong>de</strong> que “saú<strong>de</strong> não tem preço”. Todavia, certamente se concordará que osserviços (inclusive os <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>) têm um custo).Eficácia, bem se sabe, é uma noção que ressalta, essencialmente, o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong>uma ação. Ou seja, é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um procedimento qualquer resultar naquilo queestá inscrito nas suas finalida<strong>de</strong>s. Em outros termos, é a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer aquilo quediz fazer. Uma bomba que não me abastece <strong>de</strong> água não tem nenhuma eficácia, relativamenteaos objetivos para os quais foi construída, em que pese sua eventual e enormeutilida<strong>de</strong> estética. O fazer humano, bem sabemos, é <strong>de</strong> tipo teleológico o que implica,necessariamente, na existência <strong>de</strong> um saber, <strong>de</strong> uma razão. Em conseqüência, oconhecimento aqui é o que se encontra no centro <strong>do</strong> processo. Não importa, exatamente,em que tipo <strong>de</strong> conhecimento se constitui, a não ser no seu traço básico, que é o <strong>de</strong>associação <strong>do</strong> tipo causal. Para tu<strong>do</strong> há uma explicação, ainda que não expressa eadmitida.No caso das <strong>do</strong>enças, e este é o senti<strong>do</strong> da história anteriormente aponta<strong>do</strong>, amudança das explicações resulta na construção <strong>de</strong> novos objetos sobre os quais as216 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


intervenções vão se tornan<strong>do</strong> próximas daquilo para o qual foram elaboradas: vãocumprin<strong>do</strong> com sua finalida<strong>de</strong>, vão sen<strong>do</strong> cada vez mais eficazes. Ao contrário <strong>do</strong>sefeitos obti<strong>do</strong>s pelas primeiras medidas <strong>de</strong> saneamento urbano (incluin<strong>do</strong> melhoriasdas “condições <strong>de</strong> vida”), que atirava no que via e acertava no que não via, a medicinadas <strong>do</strong>enças infecciosas abriu a via <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação precisa <strong>do</strong>s alvos, ainda que muitos<strong>de</strong>les permanecessem camufla<strong>do</strong>s e seu arsenal terapêutico se revelasse relativamenterestrito. As alusões militares não são fortuitas e se inserem muito bem em um contextono qual uma concepção ontológica da <strong>do</strong>ença encontra uma materialida<strong>de</strong>, possibilitan<strong>do</strong>o estabelecimento <strong>de</strong> um objetivo concreto: aniquilar o inimigo. A eficácia varia, repitase,em função <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínio sobre o processo: da erradicação da varíola às aindaincertezas relativas à AIDS. Não sen<strong>do</strong> intervenção dirigida a uma singularida<strong>de</strong> (comose faz, por exemplo, na psicanálise), a eficácia terá que se mostrar efetiva, ou seja, válidae positiva fora <strong>do</strong> contexto em que foi testada, revelan<strong>do</strong> seus efeitos no conjunto <strong>do</strong>sexpostos passíveis <strong>do</strong>s danos que se quer corrigir. A poliomielite seria um bom exemplo.Sabidamente eficaz, a vacina só teve sua finalida<strong>de</strong> plenamente realizada quan<strong>do</strong>,efetivamente, foi <strong>de</strong>clarada a extinção da <strong>do</strong>ença entre nós.Assim, o “tipo <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença” é <strong>de</strong> máximo interesse pois é por ele que saberei seposso algo fazer e como fazê-lo. O processo, como em geral sói acontecer, é complexo,revelan<strong>do</strong> a interveniência <strong>de</strong> fatores outros cuja significação varia <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com ascircunstâncias. Fala-se em “ca<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> transmissão”, por exemplo, e até mesmo em uma“história natural das <strong>do</strong>enças”. Todavia, e isso hoje é fundamental, o que realmenteimporta é a i<strong>de</strong>ntificação das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção visan<strong>do</strong> uma reorientação<strong>de</strong> “normas vitais”, ou ainda, uma reversão <strong>do</strong>s processos, se se quiser. Assim, mesmoque não seja uma exata originalida<strong>de</strong>, é plena <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> a afirmação <strong>de</strong> que a <strong>do</strong>ença<strong>de</strong> Chagas, por exemplo, é “caso <strong>de</strong> BNH e não <strong>de</strong> BHC”. Política habitacional <strong>de</strong> máximoefeito terapêutico, mesmo porque, o saber médico nada produziu até hoje que, em nívelestritamente biológico, previna o a<strong>do</strong>ecer e/ou cure a <strong>do</strong>ença no homem, posto que emratos existem indícios promissores. Se o tivesse feito, é possível que a retórica acimamencionada soasse com outros timbres e harmonia. Nesse senti<strong>do</strong>, a medicina continuaten<strong>do</strong> um importante papel a <strong>de</strong>sempenhar, pelo menos informan<strong>do</strong> sobre “nexoscausais”, ainda que parciais e parcela<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> difícil “controle” quan<strong>do</strong> se trata, porexemplo, da sexualida<strong>de</strong> e erotismo humanos.Por outro la<strong>do</strong>, da<strong>do</strong> que sabemos medir (méto<strong>do</strong>), o que medir (objeto) e paraque medir (objetivo), po<strong>de</strong>mos construir um retrato da situação e a ela atribuir umvalor instantâneo (bom ou mal) ou “evolutivo” (melhor ou pior). Posto que a medidapo<strong>de</strong> ser generalizada, os valores tornam-se comparáveis, no tempo e no espaço. Porisso, usualmente, trabalha-se com “gradientes” que ligam “tipos polares”, o que permitea construção <strong>de</strong> indica<strong>do</strong>res. A partir <strong>de</strong>sta técnica “diagnóstica” (<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>), po<strong>de</strong>-seindagar mais precisamente sobre o significa<strong>do</strong> da “crise da saú<strong>de</strong>”.Se se assume que o termo “crise” quer conotar “algo que não vai bem”, a primeirapossibilida<strong>de</strong> a se admitir é a <strong>de</strong> que “antes, a coisa ia bem”, ou pelo menos, “melhor <strong>do</strong>que agora”. Assim, obrigatório se torna perguntar: quan<strong>do</strong> ia bem?, o que era bom, porque era melhor? A Organização Pan-Americana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> contribui para que se possarefletir sobre uma resposta. Em sua excelente publicação, “As Condições <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> nasAméricas” 13 , mostra que as populações cresceram, têm maior expectativa <strong>de</strong> vida, os13. Organização Pan-americana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - Publicação científica 254 1990.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>217


coeficientes <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> infantil continuam em baixa, morre-se menos por <strong>do</strong>ençasinfecto-contagiosas e muito mais por cânceres, <strong>do</strong>enças cardiovasculares e “causasexternas”. Transição epi<strong>de</strong>miológica, dizem os expertos, para qualificar estas mudanças.Se “crise” significa o pior, estaremos preferin<strong>do</strong> as “<strong>do</strong>enças da pobreza” àquelas “dariqueza”. É óbvio que não pois, no mínimo, vive-se mais. A questão, então é <strong>de</strong> ênfase:i<strong>de</strong>al ou real?, saú<strong>de</strong> como completo bem estar físico, mental e social ou como capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> se obter ganhos com as mudanças, sejam elas naturais ou não, inconscientes ouinduzidas? Enfatizan<strong>do</strong> o primeiro termo, ou a “crise” é permanente (o que não secoaduna com o senti<strong>do</strong> que se lhe quer emprestar) ou, o que vem a dar no mesmo, elasimplesmente não existe. Acentuan<strong>do</strong>-se uma concepção realista, não só a “crise” é umexistente como nela po<strong>de</strong>-se ver uma característica essencialmente positiva, ainda que,como sugeri<strong>do</strong> anteriormente, possa vir a ser enventualmente catastrófica para asindividualida<strong>de</strong>s. A “resolução <strong>de</strong> uma crise” po<strong>de</strong> ser a instauração <strong>de</strong> um novo,superior ao que lhe <strong>de</strong>u origem.Quanto ao segun<strong>do</strong> componente da “crise”, referente ao escasso acesso da populaçãoaos bens e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, um outro tipo <strong>de</strong> relativização parece necessário.Uma primeira interrogação é, aqui, mais <strong>do</strong> que evi<strong>de</strong>nte. De quais bens e serviços setratam? Se se toma a “concepção ampliada” <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como referência, voltamos aoponto anterior <strong>de</strong> que a “crise” é permanente ou, o que é a mesma coisa, é inexistente.Explica-se, facilmente: o “completo bem estar” <strong>de</strong>manda bens e serviços que, certamentenão exclui habitação e equipamentos <strong>do</strong>mésticos (quase to<strong>do</strong>s) que se fazem necessários,escola e lazer para crianças e adultos, transporte e condições <strong>de</strong> trabalho jamais penosas,para to<strong>do</strong>s. Desejo, utopia com a qual, certamente, <strong>de</strong>vemos continuar sonhan<strong>do</strong> mas,efetivamente, somente enquanto sonho existente. Logo, “crise permanente”... Se, aocontrário se lhes imagina enquanto equipamentos e dispositivos para lidar com as<strong>do</strong>enças, seja evitan<strong>do</strong>-as ou controlan<strong>do</strong>-as, “crises” po<strong>de</strong>m, perfeitamente, ser aíi<strong>de</strong>ntificadas. Se é certo que, ten<strong>de</strong>ncialmente, as medidas sanitárias e a assistênciamédica atinge um maior número <strong>de</strong> pessoas, esta tendência po<strong>de</strong>, por vários motivos,ser interrompida e, até mesmo revertida. Insuficiência <strong>de</strong> água tratada e re<strong>de</strong> <strong>de</strong> esgotospo<strong>de</strong> resultar em recru<strong>de</strong>scimento <strong>de</strong> processos patológicos ti<strong>do</strong>s como “<strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”como, por exemplo o cólera. A falta ou a baixa eficácia <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada vacina po<strong>de</strong>,evi<strong>de</strong>ntemente, perturbar o processo <strong>de</strong> “controle epi<strong>de</strong>miológico”. A assistência médicaaos indivíduos, se <strong>de</strong> baixa qualida<strong>de</strong> po<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> ser um con<strong>de</strong>nável mecanismo <strong>de</strong><strong>de</strong>sperdício <strong>de</strong> recursos, constituir-se em um intolerável instrumento <strong>de</strong> iatrogenia, comoqueria Ilich. Tu<strong>do</strong> isso é bem sabi<strong>do</strong> e, para além <strong>de</strong> procedimentos organizacionais quediriam respeito “somente” ao setor, trata-se, evi<strong>de</strong>ntemente, <strong>de</strong> processos da or<strong>de</strong>mpolítica. Nenhuma novida<strong>de</strong>, mesmo porque à política tu<strong>do</strong> se refere e <strong>de</strong>la tu<strong>do</strong> também<strong>de</strong>corre. A questão é: qual a especificida<strong>de</strong> <strong>do</strong> campo que nos é da<strong>do</strong> a agir?Por isso, talvez seja conveniente olhar para a “crise” naquilo que se refere aosaspectos internos <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Um <strong>de</strong> seus ângulos revela-se como “herançatardia <strong>de</strong> um paradigma implanta<strong>do</strong> nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s pela reforma Flexner, a partir<strong>de</strong> 1910, que <strong>de</strong>partamentalizou o ensino médico, separou o ciclo básico <strong>do</strong> profissionale criou o Hospital <strong>de</strong> Ensino ou Universitário (no nosso caso), com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong>mo<strong>de</strong>rnizar a prática médica, através <strong>de</strong> um ensino que incorporasse avanços tecnológicosemergentes à época. Se por um la<strong>do</strong> essa estratégia levou a um extraordinário<strong>de</strong>senvolvimento tecnológico no campo da assistência médica, da qual to<strong>do</strong>s somosbeneficiários, promoveu, também um <strong>de</strong>sastroso efeito sobre a compreensão <strong>do</strong>fenômeno saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença, reduzin<strong>do</strong>-o quase que exclusivamente à sua dimensãobiológica e, conseqüentemente, limitan<strong>do</strong> as intervenções a esse nível” 14 . Assertivaincisiva que não permite escapar da polêmica.218 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Um primeiro elemento da “crise” (não necessariamente o mais importante), seriao elemento humano que imprime dinâmica e senti<strong>do</strong> ao processo. O médico, mal forma<strong>do</strong>porque parcialmente informa<strong>do</strong>, terá sua ação certamente limitada e, por conseqüência,não resolutiva. Reduzida ao biológico, a ação é eminentemente hospitalar, espaço tambémrestrito em relação à <strong>de</strong>manda que a epi<strong>de</strong>miologia nos diz ser prevalente. Não há comodiscordar da racionalida<strong>de</strong> da crítica, principalmente se se consi<strong>de</strong>ra seus pressupostos,ancora<strong>do</strong>s que estão na “concepção ampliada <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>”. Todavia, algumas pon<strong>de</strong>raçõesparecem pertinentes. De on<strong>de</strong> vem a força <strong>do</strong> “mo<strong>de</strong>lo flexneriano” que, engessan<strong>do</strong> oensino médico em torno <strong>do</strong> biológico, resulta em tantos efeitos nefastos? As reformascurriculares, aparentemente e <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, têm si<strong>do</strong> uma permanente “or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> dia “.Com que sucesso? Aparentemente escasso pois, constantemente, reforma-se o reforma<strong>do</strong>.Por isso, há que se perguntar, também, sobre o efetivo alcance das tentativas <strong>de</strong> “expansão<strong>do</strong> objeto”. A “medicina comunitária”, por exemplo e sobre a qual não cabe aqui retomaranálises já muito bem realizadas, pareceu ser estratégia a<strong>de</strong>quada para uma melhorcompreensão tanto <strong>do</strong> objeto quanto <strong>do</strong>s objetivos das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Fora <strong>do</strong> hospital,a realida<strong>de</strong> se apresentaria, por assim dizer, mais inteira. Se <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rarmos as “críticas<strong>de</strong> esquerda” a ela dirigidas, justas, diga-se <strong>de</strong> passagem, em que contribuiu para aresolução <strong>do</strong>s problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> das populações, tanto aqui como em seu terreno <strong>de</strong>origem, os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América? Como se explica a sua “ausência da moda”?Pelas críticas, à esquerda e à direita, ou por limitações <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo que opera só pelojá assenta<strong>do</strong>, bloquean<strong>do</strong>, <strong>de</strong> certa forma, a novida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conhecer?Em outros termos, como ampliar o conhecimento <strong>de</strong>ste objeto - o <strong>do</strong>ente - que,somente por ser social, po<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar e comunicar seu sofrimento no processo <strong>de</strong>ajuda que o faz mover em direção a um saber que po<strong>de</strong>, a seu juízo, lhe aten<strong>de</strong>r. Umaproposição foi, sem dúvida, a <strong>de</strong> ensinar ao futuro profissional a, pelo menos, enten<strong>de</strong>ros “males sociais”. Pelo ensino das ciências sociais se buscava, também, a formação <strong>de</strong>“consciências críticas” que pu<strong>de</strong>ssem dar à ciência e à arte <strong>de</strong> curar um senti<strong>do</strong> político,em princípio, emancipa<strong>do</strong>r.Quer parecer que três elementos, pelo menos, se impuseram como obstáculo a<strong>de</strong>terminadas tentativas <strong>de</strong> remo<strong>de</strong>lação <strong>do</strong> objeto, <strong>do</strong>s saberes e das práticas. Reformulaçõesestas que os levariam a um plano que, <strong>de</strong> pronto, representaria soluções radicaise permanentes para to<strong>do</strong>s os problemas i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s no humano universo da vida. Umprimeiro i<strong>de</strong>ntifica-se nas implacáveis “leis <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>”. O profissional muito maisnelas se mira <strong>do</strong> que em interesses que, maiores, não necessariamente coinci<strong>de</strong>m comos seus, particulares. To<strong>do</strong> um capítulo po<strong>de</strong>ria ser aqui <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>. Outros já o fizeramcom extrema competência e o que se quer aqui marcar é a existência <strong>de</strong> um “obstáculo”constantemente renova<strong>do</strong> que é transposto, eventualmente, muito mais por uma<strong>de</strong>terminada a<strong>de</strong>são político-i<strong>de</strong>ológica <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r <strong>do</strong> que por exigências <strong>de</strong> suaativida<strong>de</strong> profissional. É esta que, instrumento <strong>de</strong> sua vivência, orienta sua inserçãosocial.Um segun<strong>do</strong> refere-se à política e às conjunturas que lhe dão forma. Os processosque resultaram em uma relativa <strong>de</strong>mocratização, pelo menos no âmbito da AméricaLatina, colocaram não só novas questões como também novas formas <strong>de</strong> encaminhálas.Durante os anos ‘60 e ‘70, uma união quase unânime se concretizou contra os regimes14. Rodriguez Neto, E. SUS, O Ensino Médico e os Hospitais Universitários. Saú<strong>de</strong> em Debate, 49-50. Março1996.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>219


ditatoriais militares que <strong>do</strong>minavam quase toda a região. Muito sofrimento resultou <strong>de</strong>toda a <strong>luta</strong> que se travou e os resulta<strong>do</strong>s foram positivos. Travou-se o bom combate,po<strong>de</strong>r-se-ia dizer. A retomada <strong>de</strong> certas liberda<strong>de</strong>s é fundamental para a construção da<strong>de</strong>mocracia, principalmente no que se refere à instituição <strong>de</strong> direitos. Entre nós, o acmefoi a proclamação da nova Constituição em 1988. Entre outros direitos <strong>do</strong> cidadão,encontra-se aquele à saú<strong>de</strong>, responsabiliza<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> pela sua garantia. De fato, pelomenos uma tendência foi consolidada: nenhum cidadão brasileiro, hoje, po<strong>de</strong> ser excluí<strong>do</strong>da assistência <strong>de</strong>vida ao sofrimento ou a ameaça à vida. A questão, então, não é mais daexclusão, mas <strong>de</strong> uma equida<strong>de</strong> almejada. Sob esse ponto <strong>de</strong> vista, parece que a “crise”se faz presente, em gran<strong>de</strong> parte através <strong>do</strong>s escândalos que exalam o amargo o<strong>do</strong>r damorte: pronto-socorros lota<strong>do</strong>s, alga assassina que põe fim ao sofrimento <strong>de</strong> renaiscrônicos e dizimação <strong>de</strong> velhinhos que, por nem mais os filhos po<strong>de</strong>rem (ou quererem)cuidar, encontram em espeluncas um leito para os ossos repousar.No conjunto, “leva-se a vida”. Emprego e segurança parecem ser temas que calammais fun<strong>do</strong> no coração das pessoas. Talvez, por isso, um certo sentimento <strong>de</strong> vazio e, atémesmo, uma certa perplexida<strong>de</strong>. “O <strong>CEBES</strong> segue profundamente preocupa<strong>do</strong> com arelativa <strong>de</strong>smobilização <strong>do</strong> movimento sanitário brasileiro no perío<strong>do</strong> que suce<strong>de</strong>u ànova Constituição e à Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>. Muitos companheiros que participavamdiretamente <strong>de</strong>sse movimento estão hoje atarefa<strong>do</strong>s com administrações municipais,estaduais e até fe<strong>de</strong>rais, restan<strong>do</strong> pouco tempo para a velha militância que sempre foi omotor da <strong>luta</strong> por melhores condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> vida no país. No Brasil, poucascoisas funcionam se não existe participação, controle e pressão. E nesse momento aparticipação está sen<strong>do</strong> pequena e a pressão, muito pequena” 15 . Não seria a “crise”aquela da militância? Administrar não é, também, uma forma <strong>de</strong> <strong>luta</strong>r por melhorescondições <strong>de</strong> vida e saú<strong>de</strong> da população? Ou será que o po<strong>de</strong>r “esmorece”?...Talvezduas questões <strong>de</strong>vessem aqui merecer algum <strong>de</strong>staque na nossa próxima agenda: tomara questão da saú<strong>de</strong> como uma questão política tout court não é preten<strong>de</strong>r, <strong>do</strong> interior <strong>de</strong>um recorte <strong>do</strong> ser social, emanar todas as diretivas? Que componente da “crise”correspon<strong>de</strong>ria a uma certa “frustração” pela não plena realização <strong>de</strong> velhos objetivosque, tal como a Fênix, mostram-se permanentemente ressurgi<strong>do</strong>s? Por fim, qual seriahoje o “projeto global”?O terceiro e último <strong>do</strong>s elementos “obstaculariza<strong>do</strong>res” acima sugeri<strong>do</strong>s, pareceter si<strong>do</strong> a novida<strong>de</strong> que se segue:A QUARTA ONDASeria, talvez, a mais recente das “revoluções”, não analisada por Grmek. Não eraseu objetivo. Trata-se da “vida pequena” e <strong>do</strong> enorme gênio que surge <strong>de</strong> sua invenção.Com Watson e Crick, o código da vida se <strong>de</strong>svenda. “A hereditarieda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá ser<strong>de</strong>clinada em uma linguagem química <strong>de</strong>terminada, um código inscrito no DNA, que nosé transmiti<strong>do</strong> por nossos pais e que eles próprios receberam <strong>de</strong> seus pais. Des<strong>de</strong> logo, ahistória da biologia, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo da dupla hélice (1952) será em gran<strong>de</strong> parte ocupadapelo DNA et, raramente, exceção feita, talvez, à revolução pasteuriana, as ciências<strong>do</strong> ser vivo terão visto sua progressão seguir um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong>dutivo <strong>de</strong> tal perfeição” 16 .15. Garrafa, V. Saú<strong>de</strong> em Debate, 48. Pag 23. Setembro 1995.16. Gros, F. L’Ingénierie du Vivant. Éditions Odile Jacob. Paris, 1990.220 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O biológico vem a ser um campo <strong>de</strong> enorme produção <strong>de</strong> saberes. Reduzin<strong>do</strong>suas lentes, a biologia vai <strong>de</strong>svendan<strong>do</strong> cada vez mais os íntimos “mecanismos” <strong>de</strong>produção, persistência e, <strong>de</strong> fundamental importância, <strong>de</strong> reprodução da vida. Comque utilida<strong>de</strong>? Inúmeras mas, também, eventualmente nenhuma.Pasteur estava interessa<strong>do</strong> nos processos <strong>de</strong> fermentação porque o seu problemaera a qualida<strong>de</strong> inferior da cerveja francesas em relação àquela <strong>de</strong> produção alemã,assim como a conservação <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s vinhos. O resulta<strong>do</strong>, to<strong>do</strong>s sabemos: umaextraordinária seqüência <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobertas guiadas pelo princípio <strong>de</strong> “uma <strong>do</strong>ença umgerme” e pelo processo <strong>de</strong> variação brusca <strong>de</strong> temperaturas que protege o homem <strong>de</strong>alguns dissabores patológicos. O saneamento <strong>do</strong> meio tem, assim, um fundamentopreciso e, <strong>do</strong>s soros às vacinas a distância é enorme, na medida mesmo em que mobilizao organismo na instauração <strong>de</strong> novas e superiores normas vitais. Nessa vertente, não sepo<strong>de</strong> esquecer os antimicrobianos químicos e os antibióticos que, não se constituin<strong>do</strong>panacéias, representaram um <strong>do</strong>s maiores impactos terapêuticos na história da medicina.Tu<strong>do</strong> isso é bem sabi<strong>do</strong> e se aqui é relembra<strong>do</strong> é pelo fato <strong>de</strong> representarem possibilida<strong>de</strong>s<strong>de</strong>rivadas <strong>do</strong> saber, postas para benefício da humanida<strong>de</strong>. Postas e não necessariamenteusadas, também sabemos e, no fundamental, sabemos o porque: a existência <strong>de</strong> interessesque geram <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> social, principalmente no que diz respeito ao consumo <strong>do</strong>sbens torna<strong>do</strong>s necessários à vida e sua continuida<strong>de</strong>. A carência, assim, não <strong>de</strong>riva nem<strong>do</strong> saber e nem das práticas que <strong>de</strong>le <strong>de</strong>correm. Ao contrário, com elas, as possibilida<strong>de</strong>ssão gran<strong>de</strong>s e promissoras.Em que pese o enorme avanço que se obteve no controle das <strong>do</strong>enças infectocontagiosas,problemas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> magnitu<strong>de</strong> ainda se levantam. Não consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>certos perfis epi<strong>de</strong>miológicos, i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s nos países <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> “terceiro mun<strong>do</strong>”,novos problemas estão coloca<strong>do</strong>s. AIDS é o exemplo típico. Talvez não haja outro emque, em tão pouco tempo, quase tu<strong>do</strong> sobre ele se sabe. Des<strong>de</strong> as primeiras investigaçõesepi<strong>de</strong>miológicas até o isolamento <strong>do</strong> “agente causal”, não mais que um piscar <strong>de</strong> olhosse processou, se se consi<strong>de</strong>ra o ritmo <strong>de</strong> construção <strong>do</strong> conhecimento. Esse fato, por sisó, tem uma extraordinária repercussão <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista da progressão da <strong>do</strong>ença,principalmente no que se refere à sua prevenção. Se é problemático o controle da <strong>do</strong>ençano que se refere aos comportamentos humanos, é inadmissível que a transmissão sefaça, por exemplo, através <strong>de</strong> um processo que é, em princípio terapêutico, como atransfusão sangüínea. Resta, sabemos, construir a terapêutica específica e suapossibilida<strong>de</strong> assenta-se inteiramente no conhecimento e manipulação <strong>do</strong> pequeno, comenorme repercussão no plano social. Vacina e drogas antivirais são as vias sobre as quisse trabalha. Certamente no atendimento <strong>de</strong> interesses industriais mas, sem dúvida, nobenefício das pessoas que sofrem duplamente a <strong>do</strong>r física e psíquica da <strong>do</strong>ença, tornan<strong>do</strong>setambém vítimas <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada exclusão social.Se o campo das “<strong>do</strong>enças <strong>de</strong> pobre” permanece problemático, inclusive pelo seurecru<strong>de</strong>scimento em espaços que, “<strong>de</strong> direito” não lhes pertenceria, como é o caso <strong>de</strong>países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s que voltam a conviver com importante incidência <strong>de</strong> tuberculose,o que dizer das <strong>do</strong>enças crônico <strong>de</strong>generativas? Sem dúvida, enormes progressos po<strong>de</strong>mser i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s no que diz respeito à terapêutica. O câncer, por exemplo, já não maisrepresenta a fatalida<strong>de</strong> imediata, pelo menos em gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus tipos, e se o diagnósticoé precoce. A cirurgia tem representa<strong>do</strong> um instrumento cada vez mais importante erefina<strong>do</strong>, a radio e a químio terapias elementos <strong>de</strong> precisão crescentes. Procedimentoscomplexos que exigem especialização, inclusive <strong>de</strong> infra-estrutura. Nesse senti<strong>do</strong>, e <strong>de</strong>passagem, como não ter o hospital como referência, como centro <strong>de</strong> racionalida<strong>de</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>221


“produtiva”, em termos <strong>de</strong> potencialização <strong>de</strong>rivada da concentração <strong>de</strong> recursos? O“mo<strong>de</strong>lo hospitalocêntrico” resulta <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento e ampliação <strong>do</strong>s saberes médicose das novas exigências técnicas da intervenção médica. Por isso, a crítica ao seu “mauuso” é não só pertinente mas necessária posto que, em princípio, to<strong>do</strong> “bom uso” é oalmeja<strong>do</strong>.Todavia, a crítica ao hospital que se fundamenta em proposições que a ele seriamalternativas, parece não atribuir o <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> valor à “essência” <strong>do</strong> processo terapêutico.Segun<strong>do</strong> uma tal visão, o hospital, restringin<strong>do</strong> suas ações ao biológico produziria, pelomenos, <strong>do</strong>is efeitos in<strong>de</strong>sejáveis - já se viu: formar mal o médico que não apren<strong>de</strong> trataros casos “mais simples”, e “inculcar” em to<strong>do</strong>s (médicos e pacientes) a idéia <strong>de</strong> que ohospital é o único espaço <strong>de</strong> resolução <strong>de</strong> nossos males. Sen<strong>do</strong> óbvio que não há um“espaço único”, mas sim a diferenciação <strong>de</strong> espaços existentes, a questão não <strong>de</strong>veria seencaminhar no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma restrição. A “solução” encontra-se, muito mais, namultiplicação, não <strong>de</strong> estruturas físicas, mas <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>los resolutivos”. Quer dizer, épreciso <strong>do</strong>tar <strong>de</strong> resolutivida<strong>de</strong> espaços outros visan<strong>do</strong> retirar a centralida<strong>de</strong> física <strong>do</strong>shospitais. Centralida<strong>de</strong> física, repita-se, da<strong>do</strong> que, se centro há, ele se constrói sobre ossaberes e técnicas da “arte <strong>de</strong> curar”. A idéia <strong>de</strong> “sistema regionaliza<strong>do</strong> e hierarquiza<strong>do</strong>”não é nova, como to<strong>do</strong>s sabemos. A sua não concretização tem raízes históricas bemconhecidas e que, no fundamental, nutrem-se no mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> serviçosque tem como norte a realização <strong>do</strong> “valor <strong>de</strong> troca”.Toda uma discussão po<strong>de</strong>ria ser aqui aberta. Não é o caso, bastan<strong>do</strong> lembrar quea Reforma Sanitária brasileira preten<strong>de</strong>u ser a solução. O que se quer ressaltar sãoelementos da racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> saber médico atual pois, eventualmente, po<strong>de</strong>r-se-á nelaencontrar melhores indicações <strong>de</strong> como os serviços organizar. Desse ponto <strong>de</strong> vista,uma hierarquização só faz senti<strong>do</strong> se se consi<strong>de</strong>ra que o “simples” e o “complexo” emmedicina não representam mais <strong>do</strong> que capacida<strong>de</strong>s diferenciadas <strong>de</strong> intervenção. Porisso, é necessário que “tu<strong>do</strong> se saiba” para que o dimensionamento correto seja realiza<strong>do</strong>.Ou seja, <strong>do</strong> “complexo” posso visualizar o “simples”. A recíproca não é verda<strong>de</strong>ira: o“simples” po<strong>de</strong> obscurecer a existência <strong>do</strong> complexo. Em outros termos, é saben<strong>do</strong>-se<strong>de</strong> um que se po<strong>de</strong> o outro i<strong>de</strong>ntificar. O diagnóstico, por exemplo, é a escolha maisa<strong>de</strong>quada diante <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>svendadas. Escolha probabilística cuja magnitu<strong>de</strong><strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, justamente, <strong>do</strong>s saberes operativos e <strong>do</strong>s instrumentos disponíveis para ainvestigação <strong>do</strong> caso. Assim, quanto maior o saber, maior a probabilida<strong>de</strong> da correta ea<strong>de</strong>quada escolha.Por isso, a permanente presença da idéia <strong>de</strong> “causalida<strong>de</strong>” em medicina. Se sei acausa e os “mecanismos”, minhas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenções eficazes aumentam e,no limite, não haveria <strong>do</strong>ença se a causa fosse toda ela eliminada. É o que, em suaanálise, tem sempre busca<strong>do</strong> a epi<strong>de</strong>miologia. De “caso” ou “controle”, com ou semcomplexos procedimentos meto<strong>do</strong>lógicos (incluin<strong>do</strong> aqueles estatísticos), os estu<strong>do</strong>sfundamentam-se na suposição <strong>de</strong> “relações causais”, medidas através da idéia <strong>de</strong> “forçaassociativa”. Indicativa, a associação entre hábito <strong>de</strong> fumar e câncer <strong>de</strong> pulmão, porexemplo, não esgota a questão posto que genérica em sua explicação. Em outras palavras,se a pergunta não po<strong>de</strong> exatamente ser formulada em termos <strong>de</strong> “o que causa?”,certamente será consistente se pensada através <strong>de</strong> um “como causa?”. Não há, assim,como fugir <strong>do</strong> “pequeno mun<strong>do</strong> da vida”.François Gros nos apresenta um interessante balanço das atuais tendências dapesquisa em biológica. Des<strong>de</strong> a <strong>de</strong>scoberta da estrutura <strong>do</strong> DNA, a compreensão <strong>do</strong>s222 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


processos vitais centra-se, progressivamente, no <strong>de</strong>svendamento da composição e funcionamento<strong>do</strong> “pequeno” mun<strong>do</strong> molecular. Por aí, i<strong>de</strong>ntifica ele a existência <strong>de</strong> um reducionismoestrito, expresso por uma tendência físico-química da chamada biologia molecular.Em que consiste? Precisamente em buscar enquadrar as “ciências naturais” naprecisão da linguagem e procedimentos das experimentações que se fazem em física equímica. Tal é uma via que parece promissora na compreensão das leis que presi<strong>de</strong>mconformações e interações <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>ias protéicas, com uma série <strong>de</strong> conseqüências possíveisem relação, por exemplo, a aspectos imunológicos que envolvem anticorpos. Comuma conotação mais ou menos reativa, uma tendência neofisiológica vem reforçar anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> perseguir a compreensão <strong>do</strong>s fenômenos no nível em que a vida semanifesta, vale dizer, na individualização <strong>do</strong> ser. Don<strong>de</strong>, aponta nosso autor, surgimento<strong>de</strong> novos estu<strong>do</strong>s embriológicos, reforço <strong>de</strong> vertentes fisiopatológicas (hipertensãoarterial, por exemplo) e inúmeros outros campos <strong>de</strong> intervenção médica. Haven<strong>do</strong> aquie ali integração disciplinar, aponta o escasso diálogo hoje existente entre a biologiamolecular e um ramo em franca expansão, como o das neurociências. Para além <strong>de</strong> umamelhor compreensão das transmissões sinápticas e mesmo <strong>do</strong>s elementos que estruturamos neurônios, to<strong>do</strong> um espaço se <strong>de</strong>scortina para o entendimento das alteraçõesbioquímicas que acompanham certas <strong>do</strong>enças genéticas que afetam o sistema nervoso:Parkinson, Alzheimer e psicose maníaco-<strong>de</strong>pressiva. “O caso da PMD po<strong>de</strong>ria serparticularmente ilustrativo, da<strong>do</strong> que esta <strong>do</strong>ença monogenética ligada ao cromossoma12 se acompanharia <strong>de</strong> profundas mudanças no equilíbrio da produção <strong>de</strong> diversasformas (isoformas) da tirosinoquinase” 17 . Po<strong>de</strong>-se, perfeitamente bem, imaginar o alcance<strong>de</strong> um tal progresso. Se se consi<strong>de</strong>ra, por exemplo, o caráter essencialmentemedicamentoso da terapêutica para estes e outros tipos <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças mentais, acompreensão <strong>do</strong>s finos processos patológicos po<strong>de</strong>ria potencializar benefícios não sópara os <strong>do</strong>entes individualmente consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s mas, também pelo aumento <strong>do</strong> suportetécnico que tais conhecimentos proporcionariam ao cuida<strong>do</strong> familiar <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes e, porextensão, à própria organização <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> atenção médica.Uma última tendência seria aquela ecológica, ainda recente e, <strong>de</strong> certa forma“nebulosa”, na medida em que estan<strong>do</strong> diante <strong>de</strong> um universo multiparamétrico quenão se traduz facilmente em <strong>de</strong>mandas científicas, o biologista se vê coloca<strong>do</strong> à provapor ecologistas que estão permanentemente na espera <strong>de</strong> soluções. Soluções que, já seviu acima, são promessas mas, também, elementos <strong>de</strong> processos operativos.Em relação às causas das <strong>do</strong>enças, por exemplo, tome-se novamente o caso <strong>do</strong>câncer. Existin<strong>do</strong> uma terapêutica bastante eficaz, se se consi<strong>de</strong>ra o “esta<strong>do</strong> da arte” <strong>de</strong>20-30 anos atrás, há hoje formas <strong>de</strong> diminuir sua incidência? Os estu<strong>do</strong>s epi<strong>de</strong>miológicos,já se viu, formulam consistentes sugestões. Todavia como evitar um câncer <strong>de</strong> pulmãoem quem nunca fumou? “Depois das teorias que viram no câncer o ressurgimento <strong>de</strong>um esta<strong>do</strong> embrionário, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong>s trabalhos que enfatizaram as causalida<strong>de</strong>s químicase virais, em seguida a constatação <strong>do</strong> caráter multifatorial <strong>de</strong> uma afecção on<strong>de</strong> os<strong>de</strong>sequilíbrios nutricionais e ambientais têm, certamente, sua participação, voltou-semais recentemente para as causalida<strong>de</strong>s genéticas” 18 . Se to<strong>do</strong>s esses elementos estãoenvolvi<strong>do</strong>s na “causalida<strong>de</strong>” <strong>do</strong>s cânceres, continua o autor, tu<strong>do</strong> indica que o câncerresulta, freqüentemente, <strong>de</strong> novos arranjos cromossômicos no interior <strong>de</strong> teci<strong>do</strong>s17. Gros, F. Regard sur la Biologie Contemporaine. Gallimard, Collection Folio/Essais. Paris, 1993. Pag. 74.18. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m. Pag. 93.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>223


somáticos, <strong>do</strong> tipo transposição, amplificação, inserção e mutação no material genético.A <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong>s oncogenes significa a abertura <strong>de</strong> enormes possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> intervenção,em um futuro não exatamente previsível mas, nem por isso, <strong>de</strong>sprezível. Tome-se, porexemplo, a mucovisci<strong>do</strong>se, uma das aproximadamente três mil <strong>do</strong>enças genéticas quepo<strong>de</strong>m acometer o homem e cuja incidência é <strong>de</strong> 1/1.500 crianças. Da<strong>do</strong> o programagenético, canais da membrana celular permeáveis ao cloro estão ausentes. A morte advémpor insuficiência respiratória. Por uma “transgenose” cujo veículo seria um vírus“<strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>”, o novo material genético <strong>de</strong>terminaria a correção <strong>do</strong> “erro” original.Possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>scortinadas essas, em pleno uso outras. Tal é o caso <strong>do</strong>s anticorposmonoclonais, por exemplo, cuja alta sensibilida<strong>de</strong> permite diagnósticos precisos e precoces.Possibilida<strong>de</strong>s técnica pujante na <strong>de</strong>tecção <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>s mórbi<strong>do</strong>s a nívelpopulacional, encontram-se na base <strong>de</strong> proposições como a da epi<strong>de</strong>miologia molecular,por exemplo, que viria ampliar enormemente nossos conhecimentos sobre os “perfisepi<strong>de</strong>miológicos” das populações. De outro la<strong>do</strong>, análises <strong>do</strong> DNA permitem, porexemplo, uma mais precisa <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> paternida<strong>de</strong>, para gáudio <strong>de</strong> uns e <strong>de</strong>cepção<strong>de</strong> outros. E ainda, com as técnicas <strong>de</strong> DNA recombinante, constróem-se sondas genéticasque têm possibilita<strong>do</strong>, entre outros, diagnósticos intra-uterinos como, por exemplo, <strong>de</strong>anemia falciforme. É fácil perceber que tais e tantas possibilida<strong>de</strong>s têm alto valor positivopois, alargan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio sobre os “mecanismos” da vida, permite tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões“mais racionais porque cientificamente fundada”. Todavia, um sentimento <strong>de</strong> inquietaçãoexiste nisso tu<strong>do</strong>. A certeza “objetiva” <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra-se em questões que, para além <strong>de</strong>qualquer individualida<strong>de</strong>, dizem respeito ao comportamento da coletivida<strong>de</strong>, à moralsocial. Po<strong>de</strong>-se interromper uma gravi<strong>de</strong>z na qual foi precocemente diagnosticada umaanemia falciforme? Não é preferível prevenir to<strong>do</strong> um sofrimento que se sabe, fatalmenteocorrerá? É da ética que se trata...Por fim, uma pequena referência a novos resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s <strong>do</strong> “<strong>do</strong>mínio” davida a nível molecular, <strong>do</strong> engenho humano na manipulação <strong>do</strong> ser vivo para seuproveito. A <strong>de</strong>scoberta e posterior purificação da insulina, por exemplo, representouum avanço terapêutico que não é necessário aqui sublinhar. Todavia, quem po<strong>de</strong>riaimaginar que bactérias po<strong>de</strong>riam ter suas funções modificadas <strong>de</strong> forma que produtos<strong>de</strong> sua ativida<strong>de</strong> se pusessem a serviço <strong>do</strong> homem como remédio para seus males? E,para não lembrar mais <strong>do</strong> que um <strong>de</strong>sses resulta<strong>do</strong>s - <strong>de</strong> alcance fundamental no controle<strong>de</strong> <strong>do</strong>enças que, pela sua forma <strong>de</strong> transmissão, têm potencialida<strong>de</strong>s epidêmicas - tomeseas vacinas ditas <strong>de</strong> segunda geração “da qual a representante mais marcante é aquela<strong>de</strong>stinada à proteção contra o vírus da Hepatite B, particularmente temível na Ásia eem certas regiões da América <strong>do</strong> Sul. Esta vacina, atualmente obtida através <strong>de</strong> técnicasgenéticas transferin<strong>do</strong> a informação molecular apropriada para células <strong>de</strong> hamster(procedimento Pasteur) ou para células <strong>de</strong> levedura (procedimento Merck), apresentasobre a vacina convencional a vantagem <strong>de</strong> não mais se utilizar a coleta laboriosa (e nãosem perigo) <strong>do</strong> sangue <strong>do</strong>s ‘porta<strong>do</strong>res sãos” 19 .O conhecimento <strong>do</strong> biológico, sem nenhuma sombra <strong>de</strong> dúvida, tem significa<strong>do</strong>um extraordinário aumento da eficácia da técnica humana no tratamento das <strong>do</strong>enças.Um espírito “conquista<strong>do</strong>r e vitorioso” po<strong>de</strong> aí ver “todas as soluções” que um diaainda existirão. A máxima crença na ciência e na técnica é uma “religião” que tem suaorigem em tempos quase imemoriais. Por isso, trata-se <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o que seria uma19. I<strong>de</strong>m, ibi<strong>de</strong>m. Pag. 110.224 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


“anti-religião”, posto que os termos da questão permaneceriam os mesmo. Contra umreducionismo ao biológico, vislumbra-se a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma sua quase “eliminação”.Haveria um “justo” termo?Dois pensamentos po<strong>de</strong>m aqui ter alguma significação. O primeiro refere-se aoconceito <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, presente em todas as nossas consi<strong>de</strong>rações. Se se o toma na sua acepçãoampla, trata-se <strong>de</strong> um objetivo que se coloca para toda a socieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> forma mais oumenos explícita, com maior ou menor ênfase, segun<strong>do</strong> os diversos interesses que osustentam. Confundi-lo com objeto <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> conhecimento e espaço <strong>de</strong> práticasespecíficas <strong>de</strong> intervenção, significa avocar para elas, as práticas, a totalida<strong>de</strong> das açõespertinentes à consecução <strong>do</strong> objetivo visa<strong>do</strong>. Em outros termos, tomar o objetivo “saú<strong>de</strong>”como objeto é não mais <strong>do</strong> que preten<strong>de</strong>r que as práticas “<strong>de</strong>” saú<strong>de</strong> sejam práticapolítica “tout court”. Se assim é, não há especificida<strong>de</strong> <strong>de</strong> procedimentos e, muito menosespecificida<strong>de</strong> profissional. No limite, medicina e política são uma única e mesma coisacomo queriam, já se viu, almas visionárias que buscavam minorar o sofrimento humano.Nada <strong>de</strong> con<strong>de</strong>nável aqui, bem se sabe, simplesmente é necessário se colocar questõespráticas, <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m operativa. Com que instrumentos se alcançaria tal objetivo?Certamente com to<strong>do</strong>s, o que nada quer dizer. A prática política tem seus próprios mo<strong>do</strong>s<strong>de</strong> realização e seus instrumentos (alguns con<strong>de</strong>náveis) guardam suas próprias especificida<strong>de</strong>s.Uma <strong>de</strong>las, em um regime <strong>de</strong>mocrático representativo, é o convencimentoque se obtém através <strong>do</strong> discurso. Convencimento que resulta em a<strong>de</strong>são, a política, nofundamental, não é mais <strong>do</strong> que um mo<strong>do</strong> organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> enfrentamento <strong>de</strong> interessese, portanto, <strong>de</strong> “gerência” <strong>de</strong> conflitos. Sen<strong>do</strong> amplos, os interesses e os conflitos,englobam, naturalmente, as questões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e as <strong>do</strong>enças que lhes dão suporte.Confundi-las, saú<strong>de</strong> e política, po<strong>de</strong> estar significan<strong>do</strong>, eventualmente, não mais <strong>do</strong>que um exercício discursivo, quem sabe, retórico...Se, por outro la<strong>do</strong>, a concepção é “restrita”, e o objeto se <strong>de</strong>fine por uma concreçãoà qual se dá o nome <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença, o objetivo não mais po<strong>de</strong> ser “totalizante e <strong>de</strong>finitivo”,mas <strong>de</strong> construção progressiva na superação <strong>de</strong> obstáculos permanentemente coloca<strong>do</strong>s.Desse ângulo, emergem potencialida<strong>de</strong>s para a consecução, inclusive, <strong>de</strong> objetivos gerais,quaisquer que eles sejam. O saber aqui, se não é <strong>de</strong>terminante para mudanças globais,certamente é fundamento para <strong>de</strong>cisões que, ten<strong>do</strong> em vista sonhos pessoais ou políticoi<strong>de</strong>ológicos,resultem em ações não só eficazes como efetivas. Em outras termos, se nãosão as ativida<strong>de</strong>s em saú<strong>de</strong> essencialmente políticas, são da política instrumentos comooutros que também <strong>de</strong>rivam <strong>de</strong> saberes e práticas diversos. A César o que é <strong>de</strong> César...Autilida<strong>de</strong> social <strong>do</strong> saber não po<strong>de</strong> ser construída em termos <strong>de</strong> estritas finalida<strong>de</strong>s, sobpena <strong>de</strong> <strong>de</strong>sfigurar sua prática em nome <strong>de</strong> interesses nem sempre universalizáveis.Não “sufoquemos” o biológico. Por ele, problemas específicos têm si<strong>do</strong> resolvi<strong>do</strong>s eoutros, certamente, ainda o serão. Com ele, proposições postas no plano mais geral,fundamenta<strong>do</strong>s, terão mais chance <strong>de</strong> um “convencimento” que se traduzirá em <strong>de</strong>cisões<strong>de</strong> interesse mais amplo. Assim, e por exemplo, o que tem si<strong>do</strong> entre nós o que po<strong>de</strong>riaser chama<strong>do</strong> <strong>de</strong> “política <strong>de</strong> ciência e tecnologia” para a saú<strong>de</strong>? Como temos nos ocupa<strong>do</strong><strong>de</strong>stas questões, inclusive no que se refere a uma produção industrial? E com quecompetência? De outro la<strong>do</strong>, como vigiar e controlar práticas, também <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, quepo<strong>de</strong>m se configurar como “anti-sociais”?Finalmente, como enfrentar os pesa<strong>do</strong>s problemas que vão se apresenta<strong>do</strong> noplano da ética sem nos assenhorarmos das possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compreensão advindas da“vida pequena”, inclusive para melhor <strong>de</strong>limitar o senti<strong>do</strong> da ética?Temos aí alguns poucos e não fáceis <strong>de</strong>safios.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>225


226 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Da Bioética “Privada”à Bioética “Pública”F. Roland SchrammINTRODUÇÃONa sua breve existência <strong>de</strong> um quarto <strong>de</strong> século, a bioética teve duas fases sucessivas:uma que chamaremos <strong>de</strong> “privada”, a outra “pública”.A fase “privada” -<strong>de</strong>finida recentemente também como “fase <strong>do</strong>s pioneiros” 1 -abrange o perio<strong>do</strong> que vai <strong>do</strong> início <strong>do</strong>s anos 70 - quan<strong>do</strong> Van Rensslear Potter criou oneologismo bioethics 2 e André Hellegers fun<strong>do</strong>u o Joseph and Rose Kennedy Institutefor Study of Human Reproduction and Bioethics na Universida<strong>de</strong> Georgetown <strong>de</strong>Washington, D.C. - até sua consolidação, ocorrida ao longo <strong>do</strong>s anos 80, enquanto campointerdisciplinar da ética aplicada ou, como preferem alguns autores, como instrumentocapaz <strong>de</strong> estabelecer interrelações entre questões, abordagens e valores significativosda nossa contemporaneida<strong>de</strong>, referentes ao <strong>do</strong>mínio da vida e da morte 3 .A fase “pública”, começa com os anos 90 e po<strong>de</strong> ser chamada <strong>de</strong> “fase <strong>do</strong>s conflitos”4 . Correspon<strong>de</strong> ao momento <strong>de</strong> aceitação da pertinência teórica para a abordagem<strong>de</strong> conflitos morais e à sua sua consolidação disciplinar (ou interdisciplinar); vê emcampo uma série <strong>de</strong> conflitos <strong>de</strong> valores e princípios inconciliáveis, que adquirempaulatinamente uma relevância pública, fato que outorga à bioética também umalegitimida<strong>de</strong> prática e social.Durante a primeira fase são particularmente relevantes os questionamentosmorais, ou éticos 5 relativos aos avanços das tecnociências biomédicas, aos efeitos sobrea qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das pessoas e os direitos humanos individuais, tais como o direitoà vida, à saú<strong>de</strong>, à liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> consciência, à proprieda<strong>de</strong>, conheci<strong>do</strong>s como direitoscivis e políticos ou “naturais”, ou <strong>de</strong> “primeira geração”.Durante a segunda fase tornam-se paulatinamente relevantes os questionamentosmorais (ou éticos) relativos aos efeitos sobre a saú<strong>de</strong> das coletivida<strong>de</strong>s humanas dasopções escolhidas em matéria <strong>de</strong> políticas sanitárias e políticas ambientais. Neste caso,os direitos em foco são o direito à igualda<strong>de</strong> (ou equida<strong>de</strong>), à justiça, à assistência sanitária- conheci<strong>do</strong>s como direitos econômicos, sociais e culturais ou “sociais”, ou <strong>de</strong> “segundageração”, aos quais <strong>de</strong>vem ser acrescenta<strong>do</strong>s os mais recentes direitos <strong>de</strong> “terceirageração”, conheci<strong>do</strong>s também como direitos ecológicos e das gerações futuras 6 .Abordaremos, a seguir, as duas fases da bioética: a primeira fase, que qualificamoscomo sen<strong>do</strong> sobretu<strong>do</strong> “privada”, a segunda, mais especificamente “pública”, distinçãoque tem sobretu<strong>do</strong> uma finalida<strong>de</strong> heurística, mais <strong>do</strong> que uma fundamentaçãoontológica pois, sobre muitas questões, inclusive sanitárias, o aspecto “publico” éinseparável <strong>do</strong> “priva<strong>do</strong>”.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>227


A FASE “PRIVADA”: OS ANOS 70 E 80Nesta fase “pionerística”, construiu-se a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cultural e social da bioética,<strong>de</strong>terminan<strong>do</strong>:– a sua pertinência cognitiva, enquanto análise crítica e imparcial <strong>do</strong>s dilemasmorais, resultantes das profundas transformações ocorridas nacompetência humana em intervir nos processos <strong>do</strong> nascer, viver, a<strong>do</strong>ecer emorrer;– a sua legitimida<strong>de</strong> social para a tomada das <strong>de</strong>cisões resultantes das análisesjulgadas corretas.Apresentaremos, a seguir, a) o contexto histórico-social <strong>do</strong> surgimento da bioética;b) os aspectos teóricos levanta<strong>do</strong>s por esta nova forma <strong>de</strong> conhecimento.O CONTEXTO HISTÓRICO-SOCIAL DA BIOÉTICAO contexto histórico-social em que surgiu a bioética foi o amplo movimento civil<strong>de</strong> reforma <strong>do</strong>s costumes e <strong>do</strong>s valores que atravessou as socieda<strong>de</strong>s oci<strong>de</strong>ntais <strong>do</strong>spaíses “<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s”, em particular, a socieda<strong>de</strong> norte-americana, durante os anos60. Este movimento amplo inclui os movimentos específicos <strong>de</strong> libertação das mulheres;o movimento ecologista; o movimento <strong>de</strong> contestação juvenil; o movimento das minoriasraciais e sexuais. Apesar <strong>de</strong> suas reivindicações específicas, to<strong>do</strong>s eles visaram à reforma/revolução <strong>do</strong>s costumes e valores herda<strong>do</strong>s das formas <strong>de</strong> vida tradicionais.É neste contexto que <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada a crise das evidências morais da moral<strong>do</strong> senso comum, isto é, “a crise <strong>do</strong> ethos, da ética espontânea, imediata, não-refletida” 7 ,representada pela moral cristã, e que vinha sofren<strong>do</strong> uma lenta, mas inexorável, erosãopelos processos histórico-sociais conheci<strong>do</strong>s como secularização da socieda<strong>de</strong> e<strong>de</strong>sencantamento <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>.Paralelamente, assistia-se à re<strong>de</strong>scoberta da ética em campo filosófico, sob a forma<strong>de</strong> um “resgate” da filosofia prática (ou ética aplicada), capaz <strong>de</strong> encontrar argumentosque legitimassem as escolhas morais já não tanto evi<strong>de</strong>ntes (como para a moraltradicional) mas requeridas pela complexida<strong>de</strong> crescente <strong>do</strong>s problemas <strong>de</strong> convivêncianum mun<strong>do</strong> em rápida transformação e sem um padrão moral comum.Assim, po<strong>de</strong>-se dizer que a reflexão sobre o ethos das socieda<strong>de</strong>s contemporâneas<strong>de</strong>ixava o âmbito da mera ética espontânea para entrar naquele <strong>de</strong> uma ética crítica,consistente em refletir, argumentar e justificar racionalmente e imparcialmente asescolhas morais nas situações concretas.A bioética será uma das formas principais <strong>de</strong>sta filosofia aplicada, junto com aética ambiental, a ética <strong>do</strong>s negócios, a ética pública (ou da política).Esta transformação <strong>do</strong> panorama filosófico ocorreu <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma longa estaçãometa-ética, durante a qual a análise moral concentrou-se essencialmente na avaliaçãoformal <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s das proposições normativas da ética tradicional, fase que inicioucomo reação ao positivismo (e à vertente vienense <strong>do</strong> neopositivismo), imperante duranteas primeiras décadas <strong>do</strong> século, e que durou até os anos 60.228 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


A partir <strong>do</strong>s anos 60, assiste-se a uma guinada pragmática em ética, graças sobretu<strong>do</strong>à influência <strong>do</strong> pensamento norte-americano e, em âmbito europeu, à influênciada tradição analítica, em particular, à lição <strong>do</strong> segun<strong>do</strong> Wittgenstein, que ensinava aosfilósofos a se preocuparem com os efeitos das práticas e <strong>do</strong>s discursos sobre a vida concretadas pessoas.É neste contexto que se torna relevante a ética aplicada ao campo biomédico.Po<strong>de</strong>-se portanto concordar com o filósofo Stephen Toulmin, quan<strong>do</strong> afirma que a éticaaplicada ao campo biomédico “salvou a vida” da própria filosofia moral, que languia,há mais <strong>de</strong> meio século, nos <strong>de</strong>bates “estéreis” da meta-ética 8 . Dito <strong>de</strong> outra forma,po<strong>de</strong>-se dizer que a análise meta-ética (apesar <strong>de</strong> pertinente para testar a consistência<strong>do</strong>s enuncia<strong>do</strong>s morais) teve que confrontar-se com uma série <strong>de</strong> problemas moraisconcretos.Os principais problemas foram substancialmente <strong>de</strong> duas or<strong>de</strong>ns:1) Em primeiro lugar, o novo patamar atingi<strong>do</strong> pela competência tecnocientíficahumana graças aos avanços nas Ciências Biomédicas, emparticular, graças à emergente revolução da biológia molecular. De fato,com esta começava-se a enten<strong>de</strong>r o assim chama<strong>do</strong> “projeto da vida” (<strong>de</strong>signof live 9 ), quer dizer, a capacida<strong>de</strong> que os seres vivos têm em se auto-criaremgraças à “utilização” das informações contidas no DNA <strong>do</strong>s seus genes.O problema prático, moralmente relevante, trazi<strong>do</strong> por este conhecimento eraque com ele se criavam as condições necessárias para uma eventual modificação <strong>do</strong>próprio “projeto”. Esta possibilida<strong>de</strong> justifica-se moralmente em termos terapêuticos,por exemplo, em casos <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças <strong>de</strong> origem genética comprovada. Neste caso, é possívelargumentar a favor da “correção” <strong>do</strong> gene <strong>de</strong>feituoso e da prevenção contra <strong>do</strong>ençasprevisíveis. Mas, a história <strong>do</strong>s abusos cometi<strong>do</strong>s no nosso século contra a pessoa (queveremos mais adiante) nos leva também à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma certa prudência, poisnada impe<strong>de</strong> que, em <strong>de</strong>terminadas circunstâncias históricas, os abusos se repitam, enovos abusos sejam cometi<strong>do</strong>s. Neste caso, por exemplo, o risco <strong>de</strong> querer “purificar” aespécie humana, em nome <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologias e interesses, seria gran<strong>de</strong>. É por isso que aterapia genética representa, atualmente, uma das questões mais “quentes” <strong>do</strong> <strong>de</strong>bateem bioética, sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos possíveis <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos eugênicos e autoritários<strong>do</strong> polêmico Projeto Genoma Humano.É neste senti<strong>do</strong> que se po<strong>de</strong> dizer que a re<strong>de</strong>scoberta da ética (aplicada) constituium “fenômeno típico <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>minada pela ciência, on<strong>de</strong> a ciência é a únicaforma <strong>de</strong> saber verda<strong>de</strong>iramente vence<strong>do</strong>r <strong>do</strong> ethos tradicional... o único saber que resisteà secularização, [razão pela qual] à vitória da ciência acompanha-se a re<strong>de</strong>scoberta daética, o único saber prático compatível com a ciência” 10 .2) Em segun<strong>do</strong> lugar, aquela que po<strong>de</strong>riamos chamar <strong>de</strong> anamnese históricadas ciências biomédicas, referente aos abusos na experimentação científicacom seres humanos, cometi<strong>do</strong>s bem antes da Segunda Guerra Mundial, e<strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>s no começo <strong>do</strong>s anos 70 pelo psiquiatra Jay Katz 11 . Hojesabemos que tais abusos ocorreram à revelia da legislação vigente na época,que era bastante severa, como na Alemanha pré-nazista. 12Dentre os inúmeros abusos cometi<strong>do</strong>s, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>stacar os três casos paradigmáticosque tiveram uma ampla ressonância na opinião pública norte-americana nocomeço <strong>do</strong>s anos 70.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>229


2.1) O caso da pesquisa sobre a sífilis feita com 600 indivíduos afroamericanos,<strong>de</strong> sexo masculino, <strong>de</strong> Tuskegee, AL., entre 1932 e 1972, conheci<strong>do</strong>como o caso <strong>do</strong> “sangue mau” (bad blood). Neste caso, os pesquisa<strong>do</strong>resenvolvi<strong>do</strong>s sonegaram informações e o tratamento a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> disponível(penicilina) a 399 porta<strong>do</strong>res da <strong>do</strong>ença para po<strong>de</strong>r estudar seus efeitos a longoprazo 13 , infringin<strong>do</strong> portanto o princípio <strong>do</strong> consentimento informa<strong>do</strong>, mesmo<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste ter si<strong>do</strong> claramente formula<strong>do</strong> na Declaração <strong>de</strong> Nuremberg <strong>de</strong>1947 (além <strong>de</strong> tratar-se <strong>de</strong> um flagrante caso <strong>de</strong> preconceito racial e social, e<strong>de</strong> infringir os “sagra<strong>do</strong>s” princípios <strong>do</strong> primum non nocere e <strong>do</strong> bonum facereda <strong>de</strong>ontologia médica tradicional). A experiência só será interrompidaquarenta anos mais tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> caso ter si<strong>do</strong> <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong> em 1972 naprimeira página <strong>do</strong> New York Times. Uma comissão, nomeada peloDepartment of Health, Education and Welfare, concluiu em 1973 que o casoera anti-ético e <strong>de</strong>via ser interrompi<strong>do</strong> imediatamente, argumentan<strong>do</strong> que “asocieda<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> mais permitir que o equilíbrio entre direitos individuais eo progresso científico seja <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> unicamente pela comunida<strong>de</strong>científica” 14 .2.2) O caso da injeção <strong>de</strong> células hepáticas cancerígenas vivas, feita em 1964em 22 pacientes i<strong>do</strong>sos <strong>do</strong> Jewish Chronic Disease Hospital <strong>do</strong> Brooklyn emNova Iorque. Também neste caso, os médicos achavam que podiam fazerqualquer tipo <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que fosse (supostamente) em benefício dahumanida<strong>de</strong> porque contribuiria para o avanço da ciência. De fato, tambémneste caso, os pacientes não foram suficientemente, nem a<strong>de</strong>quadamente,informa<strong>do</strong>s para po<strong>de</strong>r dar seu consentimento esclareci<strong>do</strong>. Os médicos foram,portanto, <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s culpa<strong>do</strong>s pelo Board of Regents <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque<strong>de</strong> infringir a <strong>de</strong>ontologia profissional e <strong>de</strong> “frau<strong>de</strong> e <strong>do</strong>lo na prática damedicina” 15 .2.3) O caso da infecção intencional com o vírus da hepatite em aproximadamente700-800 crianças retardadas graves <strong>do</strong> Willowbrook State School forthe Retar<strong>de</strong>d, ocorrida entre 1956 e 1970 16 . Neste caso, infringiu-se, tanto oprincípio <strong>de</strong> beneficência (bonum facere) quanto o princípio <strong>de</strong> não-maleficência(primum non nocere), isto é, os tradicionais princípios da <strong>de</strong>ontologia médica,além <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais princípios, pois a pesquisa aumentava o risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolver<strong>do</strong>enças hepáticas crônicas, já que os pacientes não tinham recebi<strong>do</strong> <strong>do</strong>sesprotetoras <strong>de</strong> gamaglobulina como as outras crianças. Além disso, oconsentimento era obti<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma fraudulenta, pois vinculava-se a aceitaçãoda criança no hospital à condição <strong>de</strong> se submeter à pesquisa. Quan<strong>do</strong> o casofoi <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>, fechou-se o hospital mas ninguém foi persegui<strong>do</strong>judicialmente 17 .Estes casos po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como paradigmáticos para enten<strong>de</strong>r ocontexto <strong>de</strong> apreensão para com os abusos <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s cientistas sobre a vida daspessoas no qual emerge a bioética. Mas, como mostrou o professor Henry K. Beecher daEscola <strong>de</strong> Medicina da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Harvard, num polêmico artigo publica<strong>do</strong> em1966 no New England Journal of Medicine 18 , os casos <strong>de</strong> abusos contra a saú<strong>de</strong> e a vida <strong>do</strong>spacientes submeti<strong>do</strong>s à pesquisa clínica (que infringiam os princípios <strong>de</strong> não-meleficênciae <strong>de</strong> beneficência da <strong>de</strong>ontologia médica tradicional), sem informá-los a<strong>de</strong>quadamenteda relação provável entre riscos previsíveis e benefícios espera<strong>do</strong>s, nem pedir seu consentimento,eram moeda corrente na prática clínica norte-americana. Além disso, para230 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Beecher, os abusos aconteciam quase que exclusivamente com sujeitos vulneráveis, taiscomo prisoneiros, pacientes, <strong>do</strong>entes mentais, solda<strong>do</strong>s ou minorias étnicas (como nocaso <strong>do</strong> “sangue mau”), infringin<strong>do</strong> portanto to<strong>do</strong>s os princípios prima facie da bioética:o princípio <strong>de</strong> autonomia, o da justiça, <strong>de</strong> beneficência, <strong>de</strong> não-maleficência e, sobretu<strong>do</strong>,o princípio <strong>do</strong> consentimento informa<strong>do</strong> que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a Declaração <strong>de</strong> Nuremberg(1947), <strong>de</strong>veria regulamentar a pesquisa com seres humanos.É neste contexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncias sobre os abusos em pesquisas com seres humanosque nasceu oficialmente a bioética, graças a um pesquisa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Madison, Wisconsin, ocancerologista Van Rensslaer Potter, que criou o neologismo “bioética” 19 .OS ASPECTOS TEÓRICOS DA BIOÉTICADo ponto <strong>de</strong> vista teórico (epistemológico e meto<strong>do</strong>lógico) po<strong>de</strong>-se dizer que, nestaprimeira fase, pre<strong>do</strong>minou inicialmente - e apesar da relevância assumida pelas questões“práticas” frente às “teóricas” <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à guinada pragmática em ética ocorrida nos anos60 - uma discussão sobre a pertinência semântica e o valor lógico da palavra “bioética”.A palavra foi questionada enquanto neologismo esteticamente “feio” e pragmaticamente“ambíguo”, ou seja, provi<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como contraditórios20 .Com efeito, para Potter (um <strong>do</strong>s “pais” funda<strong>do</strong>res da disciplina, junto com AndréHellegers) a bioética era um novo tipo <strong>de</strong> ciência, que aliava os da<strong>do</strong>s científicos com osvalores humanos, mais precisamente a “ciência da sobrevivência” 21 , simbolizada pelaimagem da “ponte para o futuro” 22 . Já para outros autores, como os pesquisa<strong>do</strong>res <strong>do</strong>Kennedy Institute da Georgetown University (inclusive Hellegers), a bioética era umadisciplina filosófica, não científica, apesar <strong>de</strong> ser “prática”, quer dizer, referida aosproblemas éticos levanta<strong>do</strong>s pela intervenção humana em campo biomédico.Des<strong>de</strong> o começo, temos, portanto, duas concepções aparentemente inconciliáveis<strong>de</strong> bioética: 1) a concepção <strong>de</strong> Potter, que vinculava duas formas <strong>de</strong> conhecimento que,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a distinção feita no final <strong>do</strong> século XIX por Wilhelm Dilthey, entre Ciências Naturaise Ciências <strong>do</strong> Espírito 23 , funda duas tradições disciplinares diferentes e legítimas, cadauma no seu campo <strong>de</strong> pertinência e <strong>de</strong> aplicação específico; 2) a concepção <strong>de</strong> Hellegersque a consi<strong>de</strong>rava como uma disciplina pertencente ao campo da filosofia, quer dizer,das Ciências <strong>do</strong> Espírito.Devi<strong>do</strong> a esta dupla origem (e duplo senti<strong>do</strong>) a bioética foi questionada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> ocomeço, critican<strong>do</strong> o caráter “ambíguo e <strong>de</strong>snorteante” 24 ”<strong>do</strong> termo. Ambíguo porquereferi<strong>do</strong> seja a uma nova ciência seja a um novo âmbito da teoria moral; <strong>de</strong>snorteanteporque, ao apresentar-se como “nova” forma <strong>do</strong> discurso moral, a bioética pareceiapreten<strong>de</strong>r ser a nova forma “global” <strong>de</strong> eticida<strong>de</strong> na época <strong>de</strong> vigência da biotecnociênciaquan<strong>do</strong>, <strong>de</strong> fato, esta implicaria numa espécie <strong>de</strong> niilismo em que o paradigma da éticaseria, na melhor das hipóteses, uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> éticas particulares, sem umalinguagem moral comum, quan<strong>do</strong> não um mero paradigma perdi<strong>do</strong>, como preten<strong>de</strong> NiklasLuhmann 25 .De fato, este politeismo contemporâneo, sintetizável pela imagem da Torre <strong>de</strong>Babel, seria uma das características específicas e legítimas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> seculariza<strong>do</strong>, noSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>231


qual só po<strong>de</strong>ria existir um pluralismo <strong>de</strong> morais, sem nenhum <strong>de</strong>nomina<strong>do</strong>r comum anão ser, talvez, o projeto <strong>de</strong> um “esperanto moral” (Michael Walzer) 26 que, como sabemos,nunca conseguiu ser uma lingua universal. E isto porque, <strong>de</strong> fato, em bioética, e <strong>de</strong>forma mais geral, na própria ética, convive uma pluralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> linguagens nem semprecompatíveis entre si, como aqueles das “virtu<strong>de</strong>s”, <strong>do</strong>s “<strong>de</strong>veres” e <strong>do</strong>s “princípios”,que vêm <strong>de</strong> tradições culturais diferentes diferentes 27 .Afinal, a concepção que prevalecerá será aquela <strong>do</strong> Kennedy Institute, conhecidatambém como “mo<strong>de</strong>lo Georgetown” 28 .Resumin<strong>do</strong>, nesta fase pre<strong>do</strong>minou a discussão sobre os fundamentos epistemológicosda nova disciplina e sobre os méto<strong>do</strong>s e o campo <strong>de</strong> sua aplicabilida<strong>de</strong>.Depois <strong>de</strong>sta controvérsia inicial entre a visão abrangente (ou “global”), <strong>de</strong>fendidapor Potter, e a visão mais <strong>de</strong>limitada e técnica, <strong>de</strong>fendida pelos pesquisa<strong>do</strong>res <strong>do</strong>Kennedy Institute, em que se discutiu se a bioética <strong>de</strong>via ser uma nova forma <strong>de</strong> relaçãointerdisciplinar entre ciências biomédicas e valores humanos, aborda<strong>do</strong>stradicionalmente pela filosofia e a teologia, pre<strong>do</strong>minou o principialismo 29 , tipo <strong>de</strong> análisemoral conheci<strong>do</strong> também como “mo<strong>de</strong>lo Georgetown.O “principialismo” é o méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> análise moral consistente em utilizar os quatroprincípios prima facie <strong>de</strong> autonomia, justiça, beneficência e não-maleficência, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>scomo valores característicos e mais ou menos abrangentes da moralida<strong>de</strong> da tradiçãooci<strong>de</strong>ntal, apesar da pluraliuda<strong>de</strong> <strong>de</strong> concepções sobre o bem e o mal, o correto e oincorreto, o justo e o injusto, etc. Tais valores (que são, na realida<strong>de</strong>, gui<strong>de</strong>lines para oagir) são chama<strong>do</strong>s “prima facie”, quer dizer, não-absolutos, e é esta a novida<strong>de</strong> principal<strong>do</strong> ethos das socieda<strong>de</strong>s contemporâneas com relação às socieda<strong>de</strong>s tradicionais. Comefeito, o Principialismo nasce essencialmente da constatação <strong>de</strong> que vivemos em ummun<strong>do</strong> seculariza<strong>do</strong>, politeísta, no qual não po<strong>de</strong>mos mais nos referir a fundamentosseguros, <strong>de</strong>finitivos, a-históricos. O principialismo seria portanto a única forma <strong>de</strong>“fundamentação” - <strong>de</strong> fato “débil” ou “enfraquecida”- ainda possível neste contextobastante relativista. Contu<strong>do</strong>, durante os anos 70 e 80 não faltaram críticas a este mo<strong>de</strong>loe a mais contun<strong>de</strong>nte talvez seja aquela <strong>de</strong> Danner K. Clouser e Bernard Gert, publicadano Journal of Medical Philisophy 30 , on<strong>de</strong> os autores consi<strong>de</strong>ram o principialismo totalmenteinconsistente <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à falta <strong>de</strong> uma teoria unificada capaz <strong>de</strong> dirimir os conflitoscom os quais se <strong>de</strong>fronta o médico na sua prática concreta. Tal crítica provocou a resposta<strong>do</strong>s cria<strong>do</strong>res <strong>do</strong> principialismo, Tom Beauchamp e James Childres, na quarta edição <strong>de</strong>sua obra 31 , chegan<strong>do</strong> a classificar seus críticos <strong>de</strong> forma irónica como “<strong>de</strong>dutivistasplenos” (full-fledged <strong>de</strong>ductivists 32 ). Contu<strong>do</strong>, durante esta fase, o “principialismo”conseguiu conviver com as críticas, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> geral sem atritos insanáveis com as outrastendências principais da bioética, tais como o mo<strong>de</strong>lo das “virtu<strong>de</strong>s” <strong>de</strong> EdmundPellegrino e David Thomasma 33 ; o mo<strong>de</strong>lo “casuístico” <strong>de</strong> Albert R. Jonsen e StephenToulmin 34 ; o mo<strong>de</strong>lo <strong>do</strong>s “cuida<strong>do</strong>s” da psicóloga Carol Gilligan 35 ; o mo<strong>de</strong>lo “contratualista”<strong>de</strong> Robert Veatch 36 . Este fato fez com que esta fase pu<strong>de</strong>sse ser <strong>de</strong>nominadapor Daniel Callahan como aquela <strong>do</strong> friendly field 37 .Entre as críticas pertinentes feitas ao “principialismo” <strong>de</strong>stacaremos aquela queacusa este <strong>de</strong> privilegiar <strong>de</strong> fato um único princípio, o da autonomia, relegan<strong>do</strong> emsegun<strong>do</strong> lugar os <strong>de</strong>mais princípios (beneficência, não-maleficência e justiça). Desta forma,argumenta-se, não teríamos propriamente quatro princípios prima facie, mas <strong>de</strong> fato umprincípio único (a autonomia) prevalecen<strong>do</strong> sobre os outros. Esta crítica proce<strong>de</strong>, talvezmenos com relação a Beauchamp e Childress, e mais com relação à primeira edição da232 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


principal obra <strong>de</strong> Engelhardt, para quem o princípio <strong>de</strong> autonomia se <strong>de</strong>staca com relaçãoaos outros 38 . Esta prevalência <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> autonomia é compreensível, por um la<strong>do</strong>,ten<strong>do</strong> em conta o ethos norte-americano, profundamente marca<strong>do</strong> pelo individualismomo<strong>de</strong>rno e a cultura protestante; e, por outro, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a necessida<strong>de</strong> formal <strong>de</strong> seter uma hierarquia <strong>de</strong> valores para dirimir os casos em que existe conflito entre princípios,que não po<strong>de</strong>m ser resolvi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> outra forma; fazen<strong>do</strong>, por exemplo, referência àscircunstâncias. Contu<strong>do</strong>, Engelhardt parece ter si<strong>do</strong> sensibiliza<strong>do</strong> pelos argumentos <strong>de</strong>seus críticos, pois, na 2a edição <strong>de</strong> sua obra, propõe <strong>de</strong> substituir a centralida<strong>de</strong> <strong>do</strong>princípio <strong>de</strong> autonomia com a centralida<strong>de</strong> <strong>do</strong> princípio <strong>do</strong> consentimento (principle ofpermission) 39 , como única forma razoável e imparcial <strong>de</strong> tomar <strong>de</strong>cisões morais numcontexto on<strong>de</strong> é impossível se referir a princípios <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> prévios e a algumaforma <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> pré-estabelecida.A crítica ao “principialismo” na sua vertente “libertária” é patente, por exemplo,no mo<strong>de</strong>lo emergente europeu <strong>do</strong> “personalismo”, ou “antropológico”, inspira<strong>do</strong>, entreoutros, pelos filósofos francêses Paul Ricoeur e Emmanuel Lévinas e o movimento <strong>do</strong>s“direitos humanos”, particularmente vivo na cultura francesa 40 e no pensamento católicoprogressista.Já em âmbito latino-americano a crítica ao individualismo subjacente ao mo<strong>de</strong>loprincipialista que priviligiaria o princípio <strong>de</strong> autonomia, é feita a partir <strong>do</strong>s problemaséticos e políticos concretos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> injustiça social, razão pela qual, se quisessemos<strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r um autêntico mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> quatro princípios prima facie, <strong>de</strong>veriamos recuperarsobretu<strong>do</strong> o princípio <strong>de</strong> justiça, porquanto seja o mais “carente” <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s na nossasituação concreta 41 . Além disso, e intimamente vincula<strong>do</strong> ao princípio <strong>de</strong> justiça, o importanteseria consi<strong>de</strong>rar <strong>de</strong>vidamente a dimensão pública, ou coletiva, <strong>do</strong>s vários problemasmorais relativos ao efetivo bem-estar da coletivida<strong>de</strong> humana. Em particular,como afirma Volnei Garrafa, <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> aos profun<strong>do</strong>s mutamentos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> atual, seriapreciso que a bioética assumisse a análise crítica <strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos sanitários daspolíticas públicas, ou seja, consi<strong>de</strong>rar “a dimensão da ética em saú<strong>de</strong> pública” 42 . E comesta observação já estamos na segunda fase da bioética, na qual se <strong>de</strong>staca a dimensão“pública”.A FASE DOS CONFLITOS “PÚBLICOS”: BIOÉTICA DOS ANOS 90A segunda fase começa praticamente com o início <strong>do</strong>s anos 90. Neste momento, oprincipialismo ainda constitui a corrente pre<strong>do</strong>minante da bioética (especialmente paraaquela norte-americana e a européia <strong>de</strong> tradição analítica como a inglesa), passa a acontecerum recorte mais rigoroso <strong>do</strong> seu campo disciplinar, com o consequente reconhecimento<strong>de</strong> novas dimensões pertinentes à avaliação moral, especialmente àquelarelacionada com a dimensão pública. Esta segunda fase, portanto, passa a proporcionarum “peso” maior às <strong>de</strong>cisões morais, não somente no que diz respeito aos contextosculturais, sociais e políticos, mas também no que se refere aos efeitos contextuais aposteriori. Isso faz com que o grau <strong>de</strong> conflitualida<strong>de</strong> possa ser muitas vezes mais agu<strong>do</strong>.Esta conflitualida<strong>de</strong> fica patente, por exemplo, nos <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos das Conferências<strong>do</strong> Cairo (1994) e <strong>de</strong> Beijin (1995) sobre a situação populacional e a condição da mulher.Sem falar <strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bramentos da Conferência <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro (1992) sobre o meioSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>233


ambiente, sobre a qual não entraremos em matéria, pois cresce atualmente a tendênciaem consi<strong>de</strong>rar as questões morais relativas ao meio ambiente como não pertencentespropriamente à bioética mas sim à ética ambiental 43 . Outro aspecto importante <strong>de</strong>stafase “pública” é o fato <strong>de</strong> que a bioética é hoje praticamente um fenômeno cultural <strong>de</strong>dimensões mundiais, aca<strong>de</strong>micamente instalada em praticamente to<strong>do</strong>s os continentes,o que acentua o conflito entre as várias concepções morais vigentes. 44Nesta segunda fase, persistem obviamente os problemas morais coloca<strong>do</strong>s naprimeira fase (aborto, eutanásia, transplantes etc.), mas surgem <strong>de</strong> forma crescente novasquestões, social e politicamente relevantes. Quer dizer que, nos anos 90, a bioética passaa incorporar no seu <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> pertinência a dimensão da “ética pública”, encaran<strong>do</strong> o<strong>de</strong>safio <strong>de</strong> enfrentar os novos problemas sanitários concretos trazi<strong>do</strong>s tanto pela assimchamada “transição epi<strong>de</strong>miológica” no plano mundial (envelhecimento da populaçãoe prevalência das <strong>do</strong>enças crônico-<strong>de</strong>generativas) quanto pelos avanços da tecnociênciabiomédica (relevância assumida pela “medicina <strong>do</strong>s <strong>de</strong>sejos”, aumento <strong>do</strong>s custossanitários).A transição epi<strong>de</strong>miológica constitui, na prática, uma combinação complexa econtraditória <strong>de</strong> novas e antigas <strong>do</strong>enças, isto é, <strong>de</strong> antigas <strong>do</strong>enças infecto-contagiosas(tornadas insensíveis aos tratamentos tradicionais, como a tubercolose), <strong>de</strong> novas <strong>do</strong>ençasinfecto-contagiosas emergentes (para as quais não existe ainda um tratamento eficaz,como a AIDS) e as emergentes <strong>do</strong>enças crônico-<strong>de</strong>generativas.Outro fator importante, nesta segunda fase da bioética, é o assim chama<strong>do</strong> processo<strong>de</strong> “globalização”, ou “mundialização”, que afeta a economia, a informação, o direito,as políticas sanitárias, as tecnologias, e que, em alguns casos, cria novas formas <strong>de</strong>exclusão entre países, e ao interior <strong>de</strong> um mesmo país ou região.Economicamente falan<strong>do</strong>, a “mundialização” representa a internacionalização<strong>de</strong> um sistema (liberal ou “neoliberal”) fascina<strong>do</strong> pelas “soluções” trazidas pelos merca<strong>do</strong>sfinanceiros; sob o ponto <strong>de</strong> vista social, consiste essencialmente no <strong>de</strong>smantelamento<strong>do</strong>s mecanismos prove<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s mais <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s.Dentro <strong>de</strong>sse contexto, assiste-se também ao fenômeno cultural que o diretor <strong>de</strong>Le Mon<strong>de</strong> Diplomatique, Ignacio Ramonet, acatan<strong>do</strong> uma sugestão <strong>de</strong> Jean-François Kahn 45 ,chama <strong>de</strong> “pensamento único” 46 , quer dizer, “um processo em que, sobre quase to<strong>do</strong>sos argumentos, (...) se constitui uma maneira correta <strong>de</strong> reagir, <strong>de</strong> pensar e <strong>de</strong> dizer” 47 .Trata-se portanto <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> uma “nova or<strong>de</strong>m econômicocomunicativa”48 , que consiste em dizer e fazer praticamente as mesmas coisas, comoforma <strong>de</strong> pertencer ao círculo das “pessoas razoáveis”, fora <strong>do</strong> qual só é possível amarginalida<strong>de</strong>, pois “implícito ao pensamento único está a idéia <strong>de</strong> que, se você não ocompartilha, você é um louco ou um bárbaro” 49 . Mas a esta “mundialização” pelopensamento único e o liberalismo econômico não correspon<strong>de</strong> uma efetiva “globalização”,uma estrutura capaz <strong>de</strong> integrar realmente os cidadãos numa única comunida<strong>de</strong><strong>de</strong> interesses e <strong>de</strong> valores compartilha<strong>do</strong>s 50 .Este é o quadro muito geral em que se configura atualmente o espaço da bioética,e que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como uma nova forma <strong>de</strong> abordagem da ética pública ecomo instrumento <strong>de</strong> construção da cidadania.Assim sen<strong>do</strong>, torna-se indispensável a aplicação <strong>de</strong>ste enfoque no Brasil (e nos<strong>de</strong>mais países latinoamericanos), por uma série <strong>de</strong> razões que sintetizamos como cultura<strong>do</strong>s limítes, ou seja, a convicção cada vez mais compartilhada por especialistas ou não,234 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


<strong>de</strong> que em um mun<strong>do</strong> que vive uma transição epi<strong>de</strong>miológica profunda e uma revoluçãotecnológica radical, a <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> acesso das maiorias populacionais aos recursose benefícios disponíveis (naturais, técnicos e humanos) é progressivamente menor.Com efeito, para Daniel Callahan (talvez o principal teórico da vigência da cultura<strong>do</strong>s limites em campo sanitário) o problema <strong>do</strong>s limites constitui um dilema atualna cultura sanitária 51 , pois: a) está historicamente prova<strong>do</strong> que nenhum país conseguiugastar tu<strong>do</strong>, e bem, o que queria para melhorar a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus cidadãos; b) os cortesorçamentais <strong>do</strong>s governos implicam em reduções nos recursos para a saú<strong>de</strong>; c) os limítesnão são bem aceitos nem pela população nem pelo imaginário médico (este acostuma<strong>do</strong>a crer num progresso sem limites da sua arte); d) a própria dinâmica <strong>de</strong> competição biotecno-científicaentre investiga<strong>do</strong>res obriga à priorização das pesquisas <strong>de</strong> ponta, asquais geram mais vantagens individuais, em termos profissionais, <strong>do</strong> que benefícioscoletivos, em termos sanitários. Neste caso, uma primeira questão publicamente relevantediz respeito ao fato <strong>de</strong> que tal limitação fatual seja também eticamente justificável.Um <strong>do</strong>s caminhos a ser percorri<strong>do</strong> na busca <strong>de</strong> respostas para esta questão, po<strong>de</strong>ser através da utilização <strong>do</strong> principialismo, a partir <strong>de</strong> uma análise mais dialética (oucomplexa) <strong>do</strong>s eventuais princípios que permitam respondê-la. De fato, contrariamenteàs normas - que impõem <strong>de</strong>veres ou proíbem comportamentos sem possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>conciliação entre si para não se invalidarem reciprocamente 52 - os princípios po<strong>de</strong>mentrar em conflito. Neste caso, temos duas soluções, sem precisar eliminar um ou outro<strong>do</strong>s princípios: 1) chegar a um compromisso entre eles; 2) estabelecer uma hierarquia <strong>de</strong>priorida<strong>de</strong>s 53 .No entanto, há que se ressaltar a importância que adquirem neste momento emdiversas partes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (e particularmente no Brasil), as discussões bioéticas quepriorizam as questões relacionadas com o coletivo e, portanto, a relevância crescente <strong>do</strong>princípio <strong>de</strong> justiça no que diz respeito à necessida<strong>de</strong> da construção socio-política dacidadania da população como um to<strong>do</strong>, sem exclusões <strong>de</strong> indivíduos nem <strong>de</strong> grupossociais particulares. Neste contexto, sem negar a importância <strong>do</strong> principialismo embioética, consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> na sua forma canônica <strong>do</strong>s quatro princípios, <strong>de</strong>vem serpesquisa<strong>do</strong>s outros “princípios” ou outras “qualida<strong>de</strong>s” pertinentes para as socieda<strong>de</strong>satuais, que eventualmente guar<strong>de</strong>m relação com questões mais amplas comouniversalida<strong>de</strong>, equida<strong>de</strong>, tolerância, solidarieda<strong>de</strong> e outras que venham a se impôr.Ou mesmo, que tenham relação com os quatro princípios, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que passem a serenfoca<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> outros pontos <strong>de</strong> vista, ou seja, <strong>de</strong> outras características e outrascategorias, construídas para dar senti<strong>do</strong> a novas soluções (o próprio Engelhardt, aosubstituir a importância da “autonomia” com aquela <strong>do</strong> “consentimento”, parece semovimentar nesta direção). Quer dizer, que a dialética <strong>do</strong>s princípios não é ainda asolução <strong>de</strong> um problema concreto; ela é o seu esclarecimento em termos morais e precisa,portanto, da elaboração <strong>de</strong> uma tradução em atos concretos que “corporifiquem” osprincípios em políticas públicas efetivas e eficientes. Neste caso, como afirma o sanitaristaitaliano Giovanni Berlinguer, além <strong>do</strong>s assim chama<strong>do</strong>s “problemas bioéticos <strong>de</strong>fronteira” <strong>de</strong>vemos também consi<strong>de</strong>rar os “problemas bioéticos cotidianos” 54 , que dizemrespeito aos problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da “maioria da espécie humana” 55 e são portanto“públicos”.No seu livro Ética da saú<strong>de</strong> 56 , Berlinguer chama a atenção para o fato <strong>de</strong> que “otema da saú<strong>de</strong> está raramente presente no <strong>de</strong>bate bioético” porque a bioética ter-se-iaocupa<strong>do</strong> essencialmente <strong>de</strong> situações “sobre os limites extremos da vida e da morte” 57 ,SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>235


tais como a fecundação artificial, os transplantes <strong>de</strong> órgãos, as condições <strong>de</strong> sobrevivênciaterminal e a obstinação terapêutica.No entanto, à “ética da saú<strong>de</strong>” pertencem várias questões morais polêmicas queas colocam, portanto, no campo da bioética e, mais especificamente, no âmbito da“bioética pública”.Uma primeira questão polêmica é o “direito à saú<strong>de</strong>” <strong>do</strong> cidadão, <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s oscidadãos, sen<strong>do</strong> que tal direito <strong>de</strong>veria ser garanti<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>, através <strong>de</strong> políticassanitárias eficazes e “fundamentadas” no princípio <strong>de</strong> justiça, entendida, esta, como“equida<strong>de</strong>” (fairness) 58 , isto é, como justa igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s. Como afirmaexplicitamente a Constituição Brasileira <strong>de</strong> 1988, a saú<strong>de</strong> é um direito <strong>do</strong> cidadão e um <strong>de</strong>ver<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Mas, atualmente, consi<strong>de</strong>ra-se cada vez mais que este “direito” <strong>de</strong>va ser vistono contexto <strong>do</strong>s recursos efetivamente disponíveis, quer dizer, relativiza<strong>do</strong> ao interiordaquela “cultura <strong>do</strong>s limites” da qual fala Callahan 59 ou, então, geran<strong>do</strong> novos recursospor novas formas <strong>de</strong> impostos, nem sempre bem aceitos pela população (como foi ocaso recentemente com o polêmico imposto sobre a movimentação financeira, IPMF).Um exemplo <strong>de</strong>sta tendência em vincular o direito à saú<strong>de</strong> aos recursos disponíveisé aquele da Itália. A Constituição Italiana <strong>de</strong> 1948, no seu artigo 32, afirmara queo direito à saú<strong>de</strong> é um direito fundamental <strong>do</strong> indivíduo e interesse da coletivida<strong>de</strong>.Mas, como escreve o jurista italiano Ame<strong>de</strong>o Santosuosso 60 , durante muitos anos estedireito obteve tão somente um reconhecimento formal, não sen<strong>do</strong> praticamenterespeita<strong>do</strong>, nem pelos governos católicos que, sobre outras questões, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram oprincípio absoluto da sacralida<strong>de</strong> da vida (como na questão <strong>do</strong> aborto). Neste senti<strong>do</strong>compreen<strong>de</strong>-se a <strong>de</strong>cisão, tomada em julho <strong>de</strong> 1995 pela Corte Costituzionale Italiana,que estabelece que o direito à saú<strong>de</strong> vale somente ten<strong>do</strong> em conta o contexto <strong>do</strong>s recursoseconômicos realmente disponíveis 61 . Desta forma, aquele que parecia ser um princípioabsoluto, ou fundamental (visto que estava inscrito na própria Constituição), revela-secomo um princípio relativo, ou seja, o direito à saú<strong>de</strong> está vincula<strong>do</strong> à condição <strong>do</strong>smeios disponíveis que o contextualizam e relativizam. Mas o problema, neste caso, écomo preservar a efetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> justiça enquanto “equida<strong>de</strong>” (i., e., dajusta igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s ou da igual consi<strong>de</strong>ração <strong>do</strong>s interesses), semdiscriminar os cidadãos que <strong>de</strong> fato não têm os recursos disponíveis para cuidar <strong>de</strong> suasaú<strong>de</strong>. Evi<strong>de</strong>ntemente que se po<strong>de</strong> sempre afirmar que o mais importante seria umapolítica preventiva <strong>do</strong>s riscos à saú<strong>de</strong>, o que é, em parte, pertinente; mas a prevençãonão resolve obviamente to<strong>do</strong>s os problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong> se temos em conta atransição epi<strong>de</strong>miológica que afeta a maioria das socieda<strong>de</strong>s humanas e que, no casoespecífico brasileiro, o torna um “país jovem com cabelos brancos” como bem afirma oepi<strong>de</strong>miologista Renato Veras 62 . Este fato po<strong>de</strong> ter consequências daninhas <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong>vista <strong>do</strong>s princípios da bioética, como mostra o “caso <strong>de</strong> polícia” (sic) das clínicasgeriátricas <strong>de</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, em que foram <strong>de</strong>srespeita<strong>do</strong>s não somente os princípioshipocráticos legitima<strong>do</strong>res da profissão médica (a beneficência e a não-maleficência),mas também os mais primários direitos que fazem parte da dignida<strong>de</strong> da pessoa.Assim, a “cultura <strong>do</strong>s limites” po<strong>de</strong> ter efeitos negativos sobre a própria qualida<strong>de</strong><strong>de</strong> vida das pessoas e, portanto, <strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong>; em particular, das pessoas mais vulneráveis,como i<strong>do</strong>sos, pobres e, <strong>de</strong> forma geral, todas aquelas que precisam da intervenção<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para ter uma vida minimamente digna, ou consi<strong>de</strong>rada como tal.Mas o corte <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas po<strong>de</strong> ter efeitos negativos sobre to<strong>do</strong> o conjunto dapopulação. Numa recente carta publicada no Newsletter da International Association of236 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Bioethics, o bioeticista J. Stuart Horner estigmatiza o “mito da eficiência managerial” 63 ,segun<strong>do</strong> o qual seria possível produzir bens e serviços a custos cada vez menores emanten<strong>do</strong> constante seu padrão <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, pois, <strong>de</strong> fato, a qualida<strong>de</strong> estariadiminuin<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong> nos serviços básicos que são aqueles que interessam à maioriada população. O autor pergunta-se, então, se este fato teria implicações éticas, e concluique sim, porque: 1) <strong>de</strong>srespeitaria o direito <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r <strong>de</strong> não ser frauda<strong>do</strong>oferecen<strong>do</strong>-lhe <strong>de</strong> fato tão só o mito <strong>do</strong> “mesmo para menos” no lugar <strong>de</strong> produtosconformes; 2) o corte <strong>de</strong> <strong>de</strong>spesas implicaria num aumento <strong>do</strong>s riscos ao bem-estar dapopulação; 3) a <strong>de</strong>gradação <strong>do</strong>s serviços implicaria no <strong>de</strong>clínio <strong>do</strong>s padrões éticos queregem a convivência social.Uma segunda questão polêmica tem a ver com o “direito” à escolha pessoal <strong>do</strong>estilo <strong>de</strong> vida, embasa<strong>do</strong> no princípio <strong>de</strong> autonomia. Inicialmente, contextualiza<strong>do</strong> pelamesma “cultura <strong>do</strong>s limites”, o direito à autonomia <strong>de</strong>veria ser limita<strong>do</strong> pela prevenção<strong>de</strong> comportamentos <strong>de</strong> risco, que possam implicar em <strong>do</strong>enças para si e para os outros.Assim, o princípio <strong>de</strong> autonomia estaria limita<strong>do</strong> pelo menos pelo princípio <strong>de</strong>responsabilida<strong>de</strong>. Neste caso, surge o problema <strong>de</strong> estabelecer: 1) quais comportamentos<strong>de</strong> risco <strong>de</strong>vam ser prioritariamente evita<strong>do</strong>s sem discriminar eventuais “grupos <strong>de</strong>risco” e ten<strong>do</strong> em conta que as socieda<strong>de</strong>s contemporâneas são socieda<strong>de</strong>s nas quaismuitos riscos são estruturais 64 , quer dizer, <strong>de</strong>correntes das próprias escolhas civilizatórias;2) quem estabelece legitimamente que <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s comportamentos <strong>de</strong>vam ser <strong>de</strong>alguma forma sanciona<strong>do</strong>s, sem <strong>de</strong>srespeitar os direitos humanos fundamentais quecada socieda<strong>de</strong> e cultura reconhece como sen<strong>do</strong> os seus, isto é, constitutivos da suai<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> moral.Tais questões não são irrelevantes pois num mun<strong>do</strong> mundializa<strong>do</strong> pela economia,pela técnica e pela informação, as resistências em mudar comportamentos e valores sópo<strong>de</strong>m crescer, pois é <strong>de</strong>stes que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> afinal a própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indivíduosque compõem as socieda<strong>de</strong>s.Uma terceira questão diz respeito à informação <strong>do</strong> paciente, consi<strong>de</strong>rada comocondição prévia <strong>do</strong> consentimento esclareci<strong>do</strong> para se submeter a qualquer tipo <strong>de</strong> investigação(médica, experimental, epi<strong>de</strong>miológica), pois o que está sempre em jogo nestecaso é o direito à privacida<strong>de</strong>, pelo menos nas socieda<strong>de</strong>s que a reconhecem como umdireito <strong>de</strong> seus cidadãos. Este princípio <strong>do</strong> consentimento informa<strong>do</strong>, como já vimos naprimeira parte <strong>de</strong>ste capítulo, foi formula<strong>do</strong> claramente no Código <strong>de</strong> Nuremberg em1947 e, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então, aceito pela maioria das socieda<strong>de</strong>s contemporâneas (pelo menosformalmente) no que diz respeito à pesquisa com seres humanos 65 .O consentimento informa<strong>do</strong>, neste caso, po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como uma espécie<strong>de</strong> síntese <strong>do</strong>s quatro princípios cardinais da bioética, quer dizer:1) <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> beneficência (o bonum facere da tradição hipocrática), porqueestabelece que o bem-estar <strong>do</strong>(s) sujeito(s) da pesquisa na qual é(são) objeto(s)<strong>de</strong>va prevalecer sobre os interesses da ciência;2) <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> não-maleficência (o primum non nocere também <strong>de</strong> tradiçãohipocrática) porque estabelece que na pesquisa a pon<strong>de</strong>ração da relação custos/benefícios, quer dizer, entre riscos previsíveis e benefícios prováveis, <strong>de</strong>vasempre ten<strong>de</strong>r, na medida <strong>do</strong> possível, em favor <strong>de</strong>stes;3) <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> autonomia porque o sujeito-objeto da pesquisa po<strong>de</strong>, emqualquer momento da mesma, interromper sua colaboração sem sofrer pressõesnem retaliações;SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>237


4) <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> justiça porque nenhum grupo po<strong>de</strong> ser estigmatiza<strong>do</strong> e, nocaso <strong>do</strong>s sujeitos vulneráveis, estes <strong>de</strong>vam receber atenções particularescomo forma <strong>de</strong> compensar seu “handicap” inicial.Neste caso os problemas são muitos. Para finalizar, citaremos somente alguns.Por exemplo: como informar alguém sobre questões <strong>de</strong>licadas referentes à sua saú<strong>de</strong>,consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as características peculiares <strong>do</strong> indivíduo (por exemplo, supon<strong>do</strong> quenão “suporte” a informação); quan<strong>do</strong> e como intervir à revelia <strong>do</strong> indivíduo (porexemplo, tentar evitar seu suicídio); o que fazer em casos concretos <strong>de</strong> conflito insolúvelentre o <strong>de</strong>sejo expressa<strong>do</strong> por um paciente e os valores que norteiam a prática <strong>de</strong> ummédico (por exemplo, em caso <strong>de</strong> interrupção da gravi<strong>de</strong>z ou <strong>de</strong> transfusão sanguíneaem pessoas que não a aceitam por motivos religiosos); como propiciar informações a<strong>de</strong>quadasa to<strong>do</strong>s os interessa<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>terminadas situações concretas (por exemplo, sobreos meios mais seguros <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> fertilida<strong>de</strong>).Estas são só algumas questões polêmicas que ilustram o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> problematicida<strong>de</strong>e <strong>de</strong> conflitos em que se encontra o <strong>de</strong>bate em bioética, não somente a bioética<strong>de</strong> fronteira, mas também a bioética cotidiana e a ética da saú<strong>de</strong> (como prefere atualmentechamá-la Berlinguer). Tais questões são propriamente “públicas”, quer dizer, quepertencem ao <strong>de</strong>bate acerca da construção da cidadania das pessoas, cidadania que éfeita também <strong>de</strong> problemas comuns discuti<strong>do</strong>s e resolvi<strong>do</strong>s no espaço comum que jánão é mais a praça pública da antiga polis grega, mas a re<strong>de</strong> complexa das relaçõespúblicas contemporâneas 66 .REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. REICH, W.T. 1994. The Word ‘Bioethics’: Its Birth and the Legacies of Those who Shaped Its Meaning,Kennedy Institute of Ethics Journal, 4(4): 319-335; Id., 1995. The Word ‘Bioethics’: The Struggleover Its Earlier Meaning, Kennedy Institute of Ethics Journal, 5(1): 19- 34.2. POTTER, V.R. 1970. Bioethics, the science of survival, Perspectives Biol. Med., Autumn 1970: 127-153.3. RODOTÀ, S. 1995. In: BRAIDOTTI, R., MAFFETTONE, S., NESPOR, S., RODOTÀ, S., Questioni divita o di morte (a cura di A. Guadagni), Milano, Ed. Reset, p. 14.4. SCHRAMM, F.R. 1996. Bioética nos anos 90. Cad. Saú<strong>de</strong> Públ., Rio <strong>de</strong> Janeiro, 12 (2): 130-131.5. A distinção entre “moral” e “ético”são utiliza<strong>do</strong>s aqui como sinônimos.6. GRACIA, D. 1994. “I diritti in sanità nella prospettiva <strong>de</strong>lla bioetica”, L’Arco di Giano. Rivista dimedical humanities, 4: 29-44.7. BERTI, E. 1993. Soggetti di responsabilità. Questioni di filosofia pratica. Reggio Emilia, Ed. Diabasis,p. 13.8. TOULMIN, S. 1982. How Medicine saved the Life of Ethics, Perspectives Biol. Med., 25: 736-750.9. DULBECCO, R. 1987. The Design of Live, New Haven- Lon<strong>do</strong>n, Yale University Press.10. BERTI, E., 1993, ibi<strong>de</strong>m, p. 15.11. KATZ, J. 1972. Experimentation with Human Beings, New York, Russell Sage Foundation.12. SASS, H.M. 1983. Reichsrundschreiben 1931: Pre-Nuremberg German Regulations ConcerningNew Therapy and Human Experimentation, Journal of Medicine and Philosophy, 8: 99-111.13. JONES, J.H., 1981. Bad Blood: The Tuskegee Syphilis Experiment. New York, Free Press; CAPLAN,A.L., 1992. Twenty Years After: The Legacy of the Tuskegee Syphilis Study When Evil Intru<strong>de</strong>s,Hasting Center Report, 22(6): 29-32; EDGAR, H., 1992. Twenty Years After: The Legacy of the238 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


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O Po<strong>de</strong>r Regulamenta<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>sobre as Ações e os Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Lenir SantosINTRODUÇÃOO presente estu<strong>do</strong> se propõe a analisar, ainda que nos seus lineamentos básicos, opo<strong>de</strong>r regula<strong>do</strong>r, ou regulamenta<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> sobre as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>executa<strong>do</strong>s pelo Po<strong>de</strong>r Público e pela iniciativa privada, e sobre outras ativida<strong>de</strong>s que,<strong>de</strong> alguma forma, interferem na saú<strong>de</strong> individual e coletiva.Inicialmente, convém esclarecer que os termos e expressões regulação, regular, po<strong>de</strong>rregula<strong>do</strong>r, regulamentação, regulamentar, po<strong>de</strong>r regulamentar, normatizar, elaborar normas,norma regulamenta<strong>do</strong>ra e outras <strong>do</strong> gênero — habitualmente usa<strong>do</strong>s em leis e, algumasvezes, na Constituição — indicam que o Po<strong>de</strong>r Público (Legislativo e Executivo) po<strong>de</strong>(em muitos casos, <strong>de</strong>ve) atuar normativamente na salvaguarda <strong>do</strong>s interesses dacoletivida<strong>de</strong> e, para isso, impon<strong>do</strong> condicionamentos administrativos à ativida<strong>de</strong>individual ou <strong>de</strong> um setor isola<strong>do</strong> da socieda<strong>de</strong>.No rigor terminológico e conceitual, norma regulamenta<strong>do</strong>ra é mais que regulamentoe se refere a assuntos previstos na Constituição (reserva <strong>de</strong> lei), sujeitos a regulaçãoou regulamentação por lei. A regulamentação, normalmente praticada pelo chefe<strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivo, nas três esferas <strong>de</strong> governo, mediante expedição <strong>de</strong> regulamento,está sempre subordinada à lei, enquanto a norma regulamenta<strong>do</strong>ra é uma regraconsubstanciada em lei e <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> preceito constitucional 1 .É oportuno lembrar, aqui, a expressão norma regulamenta<strong>do</strong>ra empregada pelaConstituição, nos seus artigos 5º, LXXI e 105, I, “h”, neste último até como expressãoabrangente <strong>de</strong> elaboração normativa <strong>de</strong> instâncias administrativas, e a expressão normaspara regular usada no artigo 15, XI, da Lei 8.080, <strong>de</strong> 19.9.90 (Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>)Embora, a tradição da técnica legislativa e administrativa tenha manti<strong>do</strong> o ato <strong>de</strong>regulamentar na órbita <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivo, usan<strong>do</strong> os termos regulamentação eregulamento para <strong>de</strong>signar o ato normativo da Administração subordina<strong>do</strong> à lei, vamosempregar indistintamente os termos regulação e regulamentação para exprimir tanto anormação <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> lei e com base em preceito constitucional, como os regulamentos<strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivo.1 Pelo artigo 84, IV, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, o chefe <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivo tem o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> expedir <strong>de</strong>cretose regulamentos para a fiel execução das leis. Todavia o po<strong>de</strong>r regulamentar <strong>do</strong> Chefe <strong>do</strong> Executivo nãopo<strong>de</strong> <strong>de</strong>sbordar os limites da lei. Assim, não tem lugar no nosso Direito o <strong>de</strong>creto autônomo.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>241


E a propósito da regulação jurídica, é oportuno transcrever a lição <strong>de</strong> J. J. GomesCanotilho 2 — sempre acolhi<strong>do</strong> entre nós — ao falar <strong>do</strong> <strong>de</strong>safio da regulática no Esta<strong>do</strong>Constitucional Pluralista:“O estu<strong>do</strong> das fontes <strong>de</strong> direito no âmbito <strong>do</strong> direito constitucional está tradicionalmente vincula<strong>do</strong>a uma visão estatocêntrica da criação <strong>do</strong> direito. O monopólio <strong>de</strong> normação jurídica pertenceria aoEsta<strong>do</strong> ou, pelo menos, a entida<strong>de</strong>s públicas <strong>do</strong>tadas <strong>de</strong> prerrogativas normativiza<strong>do</strong>ras. No entanto,<strong>de</strong> vários quadrantes - <strong>de</strong>s<strong>de</strong> algumas correntes <strong>de</strong> filosofia <strong>do</strong> direito e meto<strong>do</strong>logia jurídicas até àsteorias or<strong>de</strong>namentais <strong>do</strong> pluralismo jurídico, passan<strong>do</strong> pelas correntes da sociologia crítica e daantropologia jurídica - se insiste na ina<strong>de</strong>quação e até irrealismo <strong>de</strong> uma tal visão. Nos tempos recentes,tem-se acentua<strong>do</strong> uma nova perspectiva <strong>de</strong>signada por regulática. O ponto <strong>de</strong> partida da regulática é,ten<strong>de</strong>ncialmente, este: as mudanças estruturais da socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação tornam clara a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> o direito não ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como regula<strong>do</strong>r heterónomo <strong>de</strong> relações sociais mas comoinstrumento <strong>de</strong> trabalho para autoregulação das relações sociais. Consequentemente, o problema dasfontes <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>ve ter em consi<strong>de</strong>ração não apenas as questões tradicionalmente ligadas às regulaçõeslegais, mas também normações jurídicas <strong>de</strong> qualquer gênero, como, por exemplo, contratos, sentenças,convenções coletivas <strong>de</strong> trabalho, normas privadas das empresas e <strong>de</strong> associações (ex: fe<strong>de</strong>rações<strong>de</strong>sportivas). Além disso, uma compreensão mo<strong>de</strong>rna (rectius: pós-mo<strong>de</strong>rna) das fontes <strong>de</strong> direito <strong>de</strong>vetambém respon<strong>de</strong>r às mudanças das estruturas sociais num senti<strong>do</strong> individualizante, e, por isso,causa<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> regulação flexíveis. Se olharmos para os mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> regulações opcionais -no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, no sistema <strong>de</strong> segurança social, no sistema <strong>de</strong> subcontratação, nos merca<strong>do</strong>s<strong>de</strong> habitação - verificar-se-á que as perspectivas estáticas-estatocêntricas não respon<strong>de</strong>m aos <strong>de</strong>safios<strong>do</strong> direito “individualizante” e “flexível”.In<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s teóricos e políticos da regulática, é inegávelque não existe um monopólio estatal <strong>de</strong> normação constitucionalmente consagra<strong>do</strong>.Pelo contrário: vários preceitos constitucionais apontam para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>de</strong>sconcentração e <strong>de</strong>scentralização da regulação jurídica e para a indispensabilida<strong>de</strong><strong>de</strong> articular em mol<strong>de</strong>s inova<strong>do</strong>res o direito interno com os fenômenos da internacionalizaçãoe supranacionalização”.As fontes <strong>do</strong> direito e a regulaçãoA regulação está, primeiramente, ligada às fontes <strong>do</strong> direito. As fontes substanciais<strong>de</strong> direito, filosoficamente falan<strong>do</strong>, fazem o direito <strong>de</strong>senvolver-se, sem no entanto darlheforma e obrigatorieda<strong>de</strong>; já as fontes formais <strong>do</strong> direito traduzem-se pelas normascoercitivas, estabelecen<strong>do</strong> regras e padrões <strong>de</strong> comportamentos impositivos à socieda<strong>de</strong>.Vivente Rao 3 assim se expressou ao falar das fontes <strong>do</strong> direito: “As fontes <strong>do</strong> direito, pois,consi<strong>de</strong>radas em sua substância, encontram-se, potencialmente, na consciência comum <strong>do</strong> povo;consi<strong>de</strong>radas, porém, em sua manifestação exterior e formal, encontram-se no Esta<strong>do</strong>, que asatualiza, <strong>de</strong>las extrain<strong>do</strong> normas positivas, <strong>do</strong>tadas <strong>de</strong> vida e forma, e obrigatorieda<strong>de</strong>”.O mestre português Gomes Canotilho 4 <strong>de</strong>fine como fonte formal <strong>do</strong> direito oprocedimento legislativo e como fonte material <strong>do</strong> direito o conteú<strong>do</strong> da norma, esclarecen<strong>do</strong>:“Alu<strong>de</strong>-se a um conceito <strong>de</strong> ‘fonte <strong>de</strong> direito’ puramente formal quan<strong>do</strong> se enfatizaexclusivamente o procedimento <strong>de</strong> produção, relegan<strong>do</strong> para plano secundário o conteú<strong>do</strong>prescritivo. Desse mo<strong>do</strong>, uma lei é fonte <strong>de</strong> direito porque emana <strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong> comcompetência legislativa (...) e é elaborada segun<strong>do</strong> os cânones procedimentais prescritos na2. “Direito Constitucional, Livraria Almedina, Coimbra, pág. 776.3. O Direito e a Vida <strong>do</strong>s Direitos, 3a. ed., vol. I, pag. 213, ed. RT.4. ibi<strong>de</strong>m, pag. 774.242 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


constituição, na lei ou <strong>do</strong>cumentos equipara<strong>do</strong>s (...). Fontes <strong>de</strong> direito em senti<strong>do</strong> material serãoos actos normativos que, além <strong>de</strong> cumprirem certos requisitos formais, apresentam um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>conteú<strong>do</strong> (ex.: ‘inovam’ o direito preexistente, estabecem ‘regras’ gerais, fixam ‘padrões <strong>de</strong>comportamento’, criam ‘normas jurídicas’) (....). Fontes <strong>do</strong> direito serão, por conseguintes, todasas regras e medidas que estabelecem padrões <strong>de</strong> comportamento, fixam os fins e os critérios materiais<strong>de</strong> actuação <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res públicos e <strong>de</strong>terminam o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> litígios jurídicosin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>mente da forma externa <strong>de</strong> revelação”.Fixan<strong>do</strong>-nos no tema saú<strong>de</strong> e sob o aspecto da regulação infraconstitucional oassunto se reveste <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> e é exigente <strong>de</strong> caracterização exata em face <strong>de</strong>alguns elementos constitucionais: a) amplitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> conceito “saú<strong>de</strong>”; b) organização <strong>do</strong>s serviçospúblicos em “re<strong>de</strong> regionalizada e hierarquizada em nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> crescente”; c)<strong>de</strong>scentralização <strong>do</strong>s serviços, com direção única em cada esfera <strong>de</strong> governo; e) distribuição <strong>de</strong>competência entre as três esferas <strong>de</strong> governo; f) relevância pública das ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>;e g) participação da comunida<strong>de</strong> no Sistema Unico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. A questão é tão relevante queentida<strong>de</strong>s públicas e privadas já promoveram, conjuntamente, em julho <strong>de</strong> 1995, umaOficina <strong>de</strong> Trabalho 5 para discutir e equacionar o assunto, e cujo Relatório final foiamplamente divulga<strong>do</strong>.Dentre as conclusões constantes <strong>de</strong>sse Relatório figuram manifestações <strong>de</strong> nossaautoria, como as referentes à regulação sob a ótica jurídica e o que precisa ser regula<strong>do</strong>.Naquela Oficina <strong>de</strong> Trabalho nos coube dizer o seguinte — <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> sintético —a respeito da regulação:“1-A saú<strong>de</strong> tem hoje, no texto constitucional e infraconstitucional, bases jurídicassólidas. Sua conformação jurídica respalda o Po<strong>de</strong>r Público para ações eprocedimentos que garantam a universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> acesso, a equida<strong>de</strong> <strong>do</strong> atendimentoe a integralida<strong>de</strong> das ações e serviços.2- Po<strong>de</strong>-se afirmar, a partir <strong>do</strong> texto constitucional (art. 197), que as ações e osserviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, sejam públicos ou priva<strong>do</strong>s, principalmente por serem <strong>de</strong>relevância pública, submetem-se à normativida<strong>de</strong>, fiscalização e controle <strong>do</strong>Po<strong>de</strong>r Público.3- Entretanto, o Po<strong>de</strong>r Público, ao regular a iniciativa privada que exploraeconomicamente a saú<strong>de</strong>, há <strong>de</strong> se pautar pelos ditames constitucionais <strong>do</strong>capítulo da ORDEM ECONÔMICA (arts. 170 a 181).4- Cabe <strong>de</strong>stacar os artigos 197 e 199 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral bem como os artigos1º, 15, XI e 22 da Lei 8.080/90 como aqueles que expressamente conferem aoPo<strong>de</strong>r Público o seu “po<strong>de</strong>r-<strong>de</strong>ver”<strong>de</strong> regulamentar, fiscalizar e controlar asações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, públicos e priva<strong>do</strong>s.5- No tocante à competência para legislar sobre a saú<strong>de</strong>, a Constituição tratouessa matéria como sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> competência concorrente entre a União, os Esta<strong>do</strong>se o Distrito Fe<strong>de</strong>ral (art. 24. XII). Quan<strong>do</strong> a competência é concorrente, à Uniãocabe a fixação <strong>de</strong> normas gerais e aos Esta<strong>do</strong>s o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> complementar a5. Oficina <strong>de</strong> Trabalho organizada pelo Conselho Nacional <strong>de</strong> Secretários <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - CONASS, o ConselhoNacional <strong>de</strong> Secretários Municipais <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - CONASEMS, Ministério da Saú<strong>de</strong> - MS, OrganizaçãoPan-americana da Saú<strong>de</strong> - OPAS/ Organização Mundial da Saú<strong>de</strong> - OMS, Associação Brasileira <strong>de</strong>Economia em Saú<strong>de</strong> - ABrES, Instituto <strong>de</strong> Direito Sanitário Aplica<strong>do</strong> - IDISA, Associação Brasileira <strong>de</strong>Pós-Graduação em Saú<strong>de</strong> Coletiva - ABRASCO e Centro Brasileiro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s em Saú<strong>de</strong> - <strong>CEBES</strong>, emBrasília, em julho <strong>de</strong> 1995., Brasília.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>243


legislação genérica, nacional, fixada pela União. Ao Município, por força <strong>do</strong>disposto no artigo 30, I e II, da Constituição Fe<strong>de</strong>ral, compete suplementar ecomplementar a legislação fe<strong>de</strong>ral e estadual, no que couber, para aten<strong>de</strong>r aointeresse local”.No que concerne ao assunto saú<strong>de</strong>, ou ao Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - SUS, algunsartigos da Constituição Fe<strong>de</strong>ral e da Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong> - LOS empregam os termose expressões regulamentação, elaboração <strong>de</strong> normas para regular e elaborar normas:CF, art. 197: “São <strong>de</strong> relevância pública as ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, caben<strong>do</strong> ao Po<strong>de</strong>rPúblico dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle...”LOS, art. 15. “XI - elaboração <strong>de</strong> normas para regular as ativida<strong>de</strong>s...XVI - elaborar normas técnico-científicas <strong>de</strong> promoção, proteção e recuperação <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>;”Não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, também, no enfoque da questão, o fato <strong>de</strong> as açõese os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> terem si<strong>do</strong> trata<strong>do</strong>s como <strong>de</strong> relevância pública pela nossa CartaMagna, conforme preceitua o art. 197, já cita<strong>do</strong>: “são <strong>de</strong> relevância pública as ações e serviços<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>...”.A iniciativa privada no campo da assistência à saú<strong>de</strong>Outra consi<strong>de</strong>ração a ser feita é sobre a liberda<strong>de</strong> da iniciativa privada no campoda assistência à saú<strong>de</strong>. A Constituição afirmou que “é livre à iniciativa privada aassistência à saú<strong>de</strong>” (art. 199). Qual o verda<strong>de</strong>iro significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> “assistência” num campotão vasto quanto o da saú<strong>de</strong>?Sabemos que saú<strong>de</strong> tem <strong>de</strong>finição ampla, tanto que a própria Constituição, emseu artigo 196, preceituou: “Saú<strong>de</strong> é direito <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, garanti<strong>do</strong> mediantepolíticas sociais e econômicas que visem à redução <strong>do</strong> risco <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença e <strong>de</strong> outros agravos e aoacesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação,”ten<strong>do</strong> a Lei 8.080, <strong>de</strong> 19.9.90, em seu artigo 2º, §1º, e art 3º, disposto que: “Art. 2º. A saú<strong>de</strong>é um direito fundamental <strong>do</strong> ser humano, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> prover as condições indispensáveisao seu pleno exercício.§ 1º. O <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> garantir a saú<strong>de</strong> consiste na reformulação e execução<strong>de</strong> políticas econômicas e sociais que visem à redução <strong>de</strong> riscos <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças e <strong>de</strong> outrosagravos e no estabelecimento <strong>de</strong> condições que assegurem acesso universal e igualitárioàs ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação....Art. 3º. A saú<strong>de</strong> tem como fatores <strong>de</strong>terminantes e condicionantes, entre outros, aalimentação, a moradia, o saneamento básico, o meio ambiente, o trabalho, a renda, aeducação, o transporte, o lazer e o acesso aos bens e serviços essenciais; os níveis <strong>de</strong>organização <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população expressam a organização social e econômica <strong>do</strong>País.Parágrafo único. Dizem respeito também à saú<strong>de</strong> as ações que, por força <strong>do</strong>disposto no artigo anterior, se <strong>de</strong>stinam a garantir às pessoas e à coletivida<strong>de</strong> condições<strong>de</strong> bem-estar físico, mental e social”.Desse mo<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ve-se perquirir se “assistência à saú<strong>de</strong>” engloba todas as ativida<strong>de</strong>sque possam <strong>de</strong> alguma forma interferir com a saú<strong>de</strong> ou se “assistência à saú<strong>de</strong>”244 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


apenas compreen<strong>de</strong> serviços executa<strong>do</strong>s por profissionais legalmente habilita<strong>do</strong>s,isoladamente, ou através <strong>de</strong> pessoas jurídicas. Cremos que a Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong> fezo enquadramento a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> da assistência. Mas, voltaremos ao assunto mais a frente.A SAÚDE E AS POLÍTICAS SOCIAIS E ECONÔMICASA amplitu<strong>de</strong> dada pela Constituição ao termo ‘saú<strong>de</strong>’ se pren<strong>de</strong> ao fato <strong>de</strong> a saú<strong>de</strong><strong>de</strong> um povo expressar a organização social e econômica <strong>do</strong> País; é <strong>do</strong> conhecimento <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s que os índices <strong>de</strong> mortalida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença têm relação direta com a renda e otrabalho. Os relatórios <strong>de</strong> organismos internacionais (Banco Mundial, OrganizaçãoMundial da Saú<strong>de</strong>, Unicef) confirmam, permanentemente, estes da<strong>do</strong>s. A mortalida<strong>de</strong>infantil em países pobres é muito maior que nos países ricos. A <strong>de</strong>snutrição, a mortematerna, a morte por complicação no parto, problemas respiratórios e infecções são asgran<strong>de</strong>s causas <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças e morte. A baixa renda, as más condições ambientais <strong>de</strong>trabalho, a educação <strong>de</strong>ficiente, a falta <strong>de</strong> acesso a serviços preventivos, a ignorânciaque não permite a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> condutas que preservem a saú<strong>de</strong>, os baixos índicesnutricionais são fatores que interferem na saú<strong>de</strong> individual e coletiva.Sabemos que a pobreza reduz a vida e a riqueza conce<strong>de</strong> mais alguns anos <strong>de</strong>vida a quem <strong>de</strong>la <strong>de</strong>sfruta. GIOVANNI BERLINGUER 6 relata que “O primeiro limiteconsiste em que os progressos das ciências não atingiram toda a humanida<strong>de</strong>. Basta pensar que40% <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os óbitos na América Latina referem-se (assim como na pré-história) a criançasmenores <strong>de</strong> cinco anos <strong>de</strong> ida<strong>de</strong>. A causa principal disso resi<strong>de</strong> nas <strong>do</strong>enças infecciosas, nasubalimentação, na falta <strong>de</strong> habitações sadias, nas <strong>de</strong>ficiências higiênicas, na exploração, naignorância e no <strong>de</strong>semprego. Qual é a causa, ou melhor, o aspecto mais evi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sta limitaçãoda medicina? Vou expô-lo nos mais chocantes termos: po<strong>de</strong>mos dizer que quem é pobre morreantes. Acontecia assim na socieda<strong>de</strong> escravagista, acontece assim em muitas socieda<strong>de</strong>s hoje emdia”.A estatura, o aspecto físico, a beleza física são da<strong>do</strong>s comprova<strong>do</strong>res das condiçõessocio-econômicas <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>. Lembremo-nos da reportagem <strong>de</strong> alguns anos atrássobre a existência <strong>de</strong> homens-gabiru no nor<strong>de</strong>ste. A subnutrição, e não a herança genética,era responsável pela estatura média <strong>de</strong> 1,35 m daquelas pessoas que vivem no interior<strong>do</strong> nor<strong>de</strong>ste. Darcy Ribeiro 7 nos fala sobre a feiura <strong>do</strong> povo brasileiro e as suas mudanças,após algumas gerações, quan<strong>do</strong> os indivíduos atingem uma condição sócio-econômicamais elevada.Desse mo<strong>do</strong>, os fatores que interferem na saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo e da coletivida<strong>de</strong>não são poucos e, se há um direito à saú<strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve ser garanti<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>, essedireito à saú<strong>de</strong> não significa apenas, como somos induzi<strong>do</strong>s a pensar, “acesso a serviçosassistenciais”, ou seja, oportunida<strong>de</strong> a to<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cuidar <strong>de</strong> sua “<strong>do</strong>ença”; direito à saú<strong>de</strong>começa pelo direito a não ficar <strong>do</strong>ente em <strong>de</strong>corrência <strong>de</strong> causas que compete ao Esta<strong>do</strong>regular, mediante intervenção nas suas bases gera<strong>do</strong>ras ou na ca<strong>de</strong>ia causal, como: omeio ambiente, incluí<strong>do</strong>i<strong>do</strong> o <strong>do</strong> trabalho, a instrução, a proibição <strong>de</strong> propagandas6. “Medicina e Política”, editora Hucitec, 3ª edição, pág. 56.7.”O povo brasileiro”, editora Companhia das Letras.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>245


nocivas, o controle <strong>de</strong> agrotóxicos etc.. Se o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve garantir o direito à saú<strong>de</strong>, emconsequência ele po<strong>de</strong> intervir em fontes causa<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças.Como a socieda<strong>de</strong> e o indivíduo também são responsáveis pela sua saú<strong>de</strong>,<strong>de</strong>ven<strong>do</strong> evitar o risco da <strong>do</strong>ença mediante a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> condutas ao seu alcance, quereduzam o agravo à saú<strong>de</strong>, enten<strong>de</strong>mos que também é <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> estimular aformação <strong>de</strong> uma consciência, social e individual, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ver e responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cadaum pela própria saú<strong>de</strong>.Nesta linha <strong>de</strong> raciocínio, as causas <strong>de</strong>terminantes e condicionantes da saú<strong>de</strong> —e não são poucas pelo enuncia<strong>do</strong> <strong>do</strong> artigo 3º da Lei 8.080/90 — ficam todas elas sujeitasao controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>?Como falar em regular, controlar e fiscalizar as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> senão se fizer o mesmo com tu<strong>do</strong> aquilo que interfere na saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> cidadão, colocan<strong>do</strong>-aem risco? Se se protege a vida como um direito fundamental <strong>do</strong> ser humano o mesmohá <strong>de</strong> ser feito com a saú<strong>de</strong>. A saú<strong>de</strong> está na mesma categoria da vida, sen<strong>do</strong>, no fun<strong>do</strong>,a própria vida.Por isso <strong>de</strong>ve-se indagar qual o limite e a amplitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r regula<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>no campo da saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong>-se, também, o conceito <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> “assistência àsaú<strong>de</strong>”, uma vez que é nesta área que a iniciativa privada tem liberda<strong>de</strong> para atuareconomicamente.Agora, já po<strong>de</strong>mos tocar diretamente no tema da regulação da saú<strong>de</strong>, balizan<strong>do</strong>opor esses pontos essenciais enumera<strong>do</strong>s acima.O PODER DA POLÍCIAAo falar em regulação não po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fora o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.No campo da saú<strong>de</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia, em seu duplo senti<strong>do</strong> — po<strong>de</strong>r regula<strong>do</strong>r <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia sanitária da Administração — se reveste <strong>de</strong> singular importânciaem face <strong>do</strong> bem protegi<strong>do</strong>, que em última instância, é a própria vida <strong>do</strong> cidadão.O po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> interferir na vida privada, controlan<strong>do</strong>-a e impon<strong>do</strong>condicionamentos à atuação <strong>do</strong> indivíduo remonta a mais longínqua era, sob as maisvariadas formas, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os regimes <strong>de</strong> governo vigentes.Sempre coube ao Esta<strong>do</strong> restringir a atuação <strong>do</strong> particular em benefício dacoletivida<strong>de</strong> ou, conforme o perío<strong>do</strong> da história, <strong>do</strong> próprio po<strong>de</strong>r estatal constituí<strong>do</strong>.É o chama<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia, expressão que, no dizer <strong>de</strong> Carlos Ari Sunfeld 8 ,não mais se presta nos dias <strong>de</strong> hoje a abarcar todas as operações estatais <strong>de</strong> regulação<strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>-se substituí-la pela expressão “administração or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra”, semque isto constitua mera troca <strong>de</strong> rótulo, mas sim uma nova posição meto<strong>do</strong>lógica frenteà nova realida<strong>de</strong> jurídica.Mas <strong>de</strong> qualquer mo<strong>do</strong>, ainda que se reconheça ampla razão ao brilhanteadministrativista, não se po<strong>de</strong> ignorar a utilização no Direito Administrativo da8. “Direito Administrativo Or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r”, Malheiros Editores.246 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


expressão habitual “ po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia”. Por isso, <strong>de</strong>la trataremos, ainda que aceitemos acrítica que hoje se faz a tal expressão, causa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> muitas confusões.O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia, conforme ensinamento <strong>de</strong> Eros Grau 9 , consiste no <strong>de</strong>ver-po<strong>de</strong>r<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> condicionar a atuação <strong>do</strong> particular em nome <strong>do</strong> interesse coletivo.Para que o cidadão possa exercer os seus direitos estes <strong>de</strong>vem ser limita<strong>do</strong>s, poisa falta <strong>de</strong> limites impediria que o cidadão gozasse <strong>de</strong>sses direitos.O Código Tributário Nacional (art. 78), após tratar da taxa, <strong>de</strong>finiu o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>polícia <strong>do</strong> seguinte mo<strong>do</strong>: “Consi<strong>de</strong>ra-se po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia a ativida<strong>de</strong> da administração públicaque, limitan<strong>do</strong> ou disciplinan<strong>do</strong> direito, interesse ou liberda<strong>de</strong>, regula a prática <strong>de</strong> ato concernenteà segurança, à higiene, à or<strong>de</strong>m, aos costumes, à disciplina da produção e <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, ao exercício<strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s econômicas <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> concessão ou autorização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r público, àtranquilida<strong>de</strong> pública, ou ao respeito à proprieda<strong>de</strong> e aos direitos individuais ou coletivos”.Na conceituação <strong>de</strong> Celso Antonio Ban<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> Mello 10 , que também não <strong>de</strong>ixa<strong>de</strong> tecer críticas à expressão po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia “A ativida<strong>de</strong> estatal <strong>de</strong> condicionar a liberda<strong>de</strong>e a proprieda<strong>de</strong> ajustan<strong>do</strong>-as aos interesses coletivos <strong>de</strong>signa-se ‘Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Polícia’. A expressão,tomada neste senti<strong>do</strong> amplo, abrange tanto atos <strong>do</strong> Legislativo quanto <strong>do</strong> Executivo. Refere-se,pois, ao complexo <strong>de</strong> medidas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que <strong>de</strong>lineia a esfera juridicamente tutelada da liberda<strong>de</strong>e da proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s cidadãos”.Maria Silvia Zanella di Pietro 11 ensina que o conceito mo<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia,a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> pelo direito brasileiro, po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> como: “a ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>consistente em limitar o exercício <strong>do</strong>s direitos individuais em benefício <strong>do</strong> interessepúblico”.Ainda neste campo, a lição <strong>de</strong> Ruy Cirne Lima 12 não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser acolhidapor sua amplitu<strong>de</strong> e singeleza. Assinala o mestre que “na idéia <strong>de</strong> garantia <strong>de</strong> umdireito, vai implícita a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> limitação <strong>de</strong>sse direito ou <strong>do</strong> respectivo exercício. São,realmente, os direitos individuais suscetíveis <strong>de</strong> limitação em seu exercício. Consistirá a limitaçãoem restrição consentida pelo indivíduo, ou provirá, talvez, <strong>de</strong> norma ou ato <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r público.Umas e outras, contu<strong>do</strong>, hão <strong>de</strong> conservar-se <strong>de</strong>ntro da medida, que a or<strong>de</strong>m jurídica prefixa. Alei garante, nessa medida, os direitos individuais contra o próprio indivíduo; a Constituiçãogarante-os contra o po<strong>de</strong>r público”.Hely Lopes Meirelles 13 assim tratou o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia:“Já dissemos, e convém repetir, que o Esta<strong>do</strong> é <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res políticos exerci<strong>do</strong>spelo Legislativo, pelo Judiciário e pelo Executivo, no <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong> suas funçõesconstitucionais, e <strong>de</strong> po<strong>de</strong>res administrativos que surgem secundariamente com aAdministração e se efetivam <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as exigências <strong>do</strong> serviço público e com osinteresses da comunida<strong>de</strong>. Assim, enquanto os po<strong>de</strong>res políticos i<strong>de</strong>ntificam-se com osPo<strong>de</strong>res <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e só são exerci<strong>do</strong>s pelos respectivos órgãos constitucionais <strong>do</strong> Governo,os po<strong>de</strong>res administrativos difun<strong>de</strong>m-se por toda a Administração e se apresentam como9. “Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Polícia”, Revista Trimestral <strong>de</strong> Direito Público, nº 1/93.10. “Curso <strong>de</strong> Direito Administrativo”, 5ª edição, Malheiros Editores, pág. 394.11. “Direito Administrativo”, 3ª edição, Malheiros Editores, pág. 88.12. “Princípios <strong>de</strong> Direito Administrativo”, 6ª edição, Ed. RT, pág. 105.13. “Direito Administrativo Brasileiro”, Malheiros Editores, pág. 113.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>247


meios <strong>de</strong> sua atuação. Aqueles são po<strong>de</strong>res imanentes e estruturais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>; estes sãocontingentes e instrumentais da Administração.Dentre os po<strong>de</strong>res administrativos figura, com especial <strong>de</strong>staque, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>polícia administrativa, que a Administração Pública exerce sobre todas as ativida<strong>de</strong>s ebens que afetam ou possam afetar a coletivida<strong>de</strong>. Para esse policiamento há competênciasexclusivas e concorrentes das três esferas estatais, dada a <strong>de</strong>scentralizaçãopolítico-administrativa <strong>de</strong>corrente <strong>do</strong> nosso sistema constitucional.Em princípio, tem competência para policiar a entida<strong>de</strong> que dispõe <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>regular a matéria. Assim sen<strong>do</strong>, os assuntos <strong>de</strong> interesse nacional ficam sujeitos aregulamentação e policiamento da União; as matérias <strong>de</strong> interesse regional sujeitam-seàs normas e à polícia estadual, e os assuntos <strong>de</strong> interesse local subordinam-se aos regulamentosedilícios e ao policiamento administrativo municipal.Todavia, como certas ativida<strong>de</strong>s interessam simultaneamente às três entida<strong>de</strong>sestatais, pela sua extensão a to<strong>do</strong> território nacional (v.g., saú<strong>de</strong> pública, trânsito,transportes etc.), o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> regular e <strong>de</strong> policiar se difun<strong>de</strong> entre todas as Administraçõesinteressadas, proven<strong>do</strong> cada qual nos limites <strong>de</strong> sua competência territorial. A regra,entretanto, é a exclusivida<strong>de</strong> <strong>do</strong> policiamento administrativo; a exceção é a concorrência<strong>de</strong>sse policiamento.Observamos, ainda, neste preâmbulo, que o ato <strong>de</strong> polícia é um simples atoadministrativo, apenas com algumas peculiarida<strong>de</strong>s que serão apontadas no <strong>de</strong>correr<strong>de</strong>ste assunto. Como to<strong>do</strong> ato administrativo, o ato <strong>de</strong> polícia subordina-se aoor<strong>de</strong>namento jurídico que rege as <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>s da Administração, sujeitan<strong>do</strong>-se,inclusive, ao controle da legalida<strong>de</strong> pelo Po<strong>de</strong>r Judiciário.”O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia em senti<strong>do</strong> estrito (como instrumento da Administração noexercício <strong>de</strong> sua função administrativa <strong>de</strong> disciplinar a vida <strong>do</strong>s particulares para amanutenção da or<strong>de</strong>m pública) está vincula<strong>do</strong> ao princípio da legalida<strong>de</strong>: aadministração só po<strong>de</strong> agir em acatamento à norma. No dizer <strong>de</strong> Eros Grau 14 “Não po<strong>de</strong>fazer mais <strong>do</strong> que <strong>de</strong>va fazer”.O princípio da legalida<strong>de</strong>, ao qual a administração pública direta, indireta oufundacional, <strong>de</strong> qualquer <strong>do</strong>s Po<strong>de</strong>res da União, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral e <strong>do</strong>sMunicípios está submetida, nos termos <strong>do</strong> art. 37, da CF, impõe à administração públicao <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> atuar em consonância à lei, exigin<strong>do</strong>-lhe fazer somente aquilo que a lei<strong>de</strong>termina. A obediência à legalida<strong>de</strong> é a bússola <strong>do</strong> administra<strong>do</strong>r e a garantia <strong>do</strong>indivíduo contra o arbítrio <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público.O princípio da legalida<strong>de</strong> é a garantia <strong>do</strong> indivíduo <strong>de</strong> que a administração há <strong>de</strong>respeitar o seu direito à liberda<strong>de</strong> e à proprieda<strong>de</strong>. O artigo 5º, da CF, em seu inciso II,garante que “ninguém será obriga<strong>do</strong> a fazer ou <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fazer alguma coisa senão em virtu<strong>de</strong><strong>de</strong> lei”. A administração, pelo princípio da legalida<strong>de</strong>, fica jungida à lei, o que asseguraao particular que nenhuma restrição, não prevista em lei, po<strong>de</strong>rá ser-lhe imposta pelaadministração.A administração pública, no dizer <strong>de</strong> Eros Grau 15 , não é titular <strong>de</strong> direitos que sepossa arrogar; <strong>de</strong>ve apenas exercer função pública, ou seja, tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> realizar o14. Obra citada, pág. 96.15. I<strong>de</strong>m248 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


interesse público e nada mais; cumpre função pública e para tanto tem o po<strong>de</strong>r necessário,como instrumental, para o exercício <strong>de</strong> suas finalida<strong>de</strong>s.A autorida<strong>de</strong> pública — ainda na observação <strong>de</strong> Eros Grau 16 — “no <strong>de</strong>sempenho dafunção administrativa, está abrangida por um vínculo imposto à sua vonta<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>ver jurídicoconsubstancia uma vinculação imposta à vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> quem esteja por ela alcança<strong>do</strong>. Econsubstancia, no caso da função administrativa, vinculação imposta à vonta<strong>de</strong> da autorida<strong>de</strong>pública em razão <strong>de</strong> interesse alheio, isto é, <strong>do</strong> to<strong>do</strong> social.Os po<strong>de</strong>res que maneja a autorida<strong>de</strong> pública no <strong>de</strong>sempenho da função administrativasão, <strong>de</strong>starte, po<strong>de</strong>res que <strong>de</strong>tém exclusivamente a fim <strong>de</strong> que possa prestar acatamento ao vínculoque afeta sua vonta<strong>de</strong>. Por isso afirmei inicialmente — e repito — que a Administração, no<strong>de</strong>sempenho da função administrativa, po<strong>de</strong> fazer tu<strong>do</strong> quanto <strong>de</strong>va fazer; mas, apenas isso,nada mais. Não po<strong>de</strong>, por certo, fazer mais <strong>do</strong> que <strong>de</strong>va fazer”.O ato administrativo para ser eficaz <strong>de</strong>ve ser consonante à lei. O administra<strong>do</strong>rnão age <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a sua vonta<strong>de</strong> pessoal. Está ali para exercer os po<strong>de</strong>res que lhessão garanti<strong>do</strong>s com a finalida<strong>de</strong> única <strong>de</strong> cumprir o <strong>de</strong>ver que a lei lhe impõe. Nada ficaao sabor da vonta<strong>de</strong> da administração. Os po<strong>de</strong>res não são meras faculda<strong>de</strong>s, que po<strong>de</strong>mou não ser exercidas na consecução das finalida<strong>de</strong>s públicas. Por isso, dizer <strong>de</strong>ver-po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> fazer. Deve fazer. Tem po<strong>de</strong>res para fazê-lo. Não po<strong>de</strong> renunciá-los nem <strong>de</strong>srespeitálos.Este é o princípio da legalida<strong>de</strong> ao qual o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia está vincula<strong>do</strong>.Na área da saú<strong>de</strong>, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia no seu mais amplo senti<strong>do</strong> — funçõeslegislativas e funções administrativas — abarca todas as ativida<strong>de</strong>s que possam, <strong>de</strong>alguma forma, colocar em risco a saú<strong>de</strong> coletiva e individual, fican<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> com o<strong>de</strong>ver-po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> impor condicionamentos e limites à liberda<strong>de</strong> e à proprieda<strong>de</strong> — sejaatravés <strong>de</strong> méto<strong>do</strong>s persuasivos, educativos, indutivos, orienta<strong>do</strong>res, coercitivos etc. —em nome da garantia <strong>do</strong> direito à vida e à saú<strong>de</strong>.a) Vigilância sanitáriaNesse passo, não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> tecer algumas consi<strong>de</strong>rações a respeito davigilância sanitária, da<strong>do</strong> o seu aspecto <strong>de</strong> polícia sanitária.Primeiramente, <strong>de</strong>ve-se <strong>de</strong>stacar o conceito <strong>de</strong> vigilância sanitária da<strong>do</strong> pela Lei8.080/90, artigo 6º, § 1º, “Enten<strong>de</strong>-se por vigilância sanitária um conjunto <strong>de</strong> ações capaz <strong>de</strong>eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> intervir nos problemas sanitários <strong>de</strong>correntes<strong>do</strong> meio ambiente, da produção e circulação <strong>de</strong> bens e da prestação <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> interesse dasaú<strong>de</strong>, abrangen<strong>do</strong>: I - o controle <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> consumo que, direta ou indiretamente, se relacionemcom a saú<strong>de</strong>, compreendidas todas as etapas e processos, da produção ao consumo; e II - o controleda prestação <strong>de</strong> serviços que se relacionam direta ou indiretamente com a saú<strong>de</strong>”.O artigo 200, II, da CF dispõe que compete ao Sistema Unico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> “executarações <strong>de</strong> vigilância sanitária e epi<strong>de</strong>miológica, bem como a saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r”.A vigilância sanitária se reveste <strong>de</strong> fundamental importância, no campo da saú<strong>de</strong>,em razão <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia ínsito nas suas atribuições. A vigilância sanitária éinstrumento da Administração no exercício <strong>de</strong> suas funções administrativas <strong>de</strong> controle16. Ibi<strong>de</strong>mSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>249


e fiscalização das ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. É através da vigilância sanitária que asautorida<strong>de</strong>s administrativas sanitárias manejam os seus po<strong>de</strong>res <strong>de</strong> impor limites,encargos e sujeições ao exercício <strong>de</strong> direitos individuais e coletivos, com base na lei 17 .A Portaria <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> n. 1.565, <strong>de</strong> 26 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1994, que <strong>de</strong>finiuo Sistema Nacional <strong>de</strong> Vigilância Sanitária e esclareceu sobre a distribuição <strong>de</strong>competência material e legislativa da União, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral e <strong>do</strong>sMunicípios, dispôs, em seu artigo 2º, “que pela inter<strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> seu conteú<strong>do</strong> e <strong>do</strong><strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> suas ações, a vigilância sanitária e a vigilância epi<strong>de</strong>miológica sãoconsi<strong>de</strong>radas, conceitualmente, como vigilância em saú<strong>de</strong>, implican<strong>do</strong> compromisso solidário <strong>do</strong>Po<strong>de</strong>r Público e da socieda<strong>de</strong> na proteção e <strong>de</strong>fesa da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida”.A amplitu<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s da vigilância sanitária se revela nos enuncia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>sartigos 3º e 6º da mencionada Portaria:“Artigo 3º. Enten<strong>de</strong>-se por vigilância sanitária o conjunto <strong>de</strong> ações capaz <strong>de</strong>:I. eliminar, diminuir ou prevenir riscos e agravos à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo e dacoletivida<strong>de</strong>;II. intervir nos problemas sanitários <strong>de</strong>correntes da produção, distribuição,comercialização e uso <strong>de</strong> bens <strong>de</strong> capital e consumo, e da prestação <strong>de</strong>serviços <strong>de</strong> interesse da saú<strong>de</strong>; eIII.exercer a fiscalização e controle sobre o meio ambiente e os fatores queinterferem na sua qualida<strong>de</strong>, abrangen<strong>do</strong> os processos e ambientes <strong>de</strong>trabalho, a habitação e o lazer.Parágrafo único. As ações <strong>de</strong> vigilância sanitária enunciadas neste artigo incluemnecessariamente:a) as medidas <strong>de</strong> interação da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> com as políticas econômicas esociais cujos resulta<strong>do</strong>s constituem fatores <strong>de</strong>terminantes e condicionantes <strong>do</strong>nível <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população;b) as medidas <strong>de</strong> interação <strong>do</strong>s profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em entida<strong>de</strong>s governamentaise não governamentais <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r e cidadania;c) o controle <strong>de</strong> todas as etapas e processos, da produção ao uso <strong>de</strong> bens <strong>de</strong>capital e <strong>de</strong> consumo e <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços, que, direta ou indiretamente,se relacionem com a saú<strong>de</strong>, com vistas à garantia da sua qualida<strong>de</strong>; ed) as ações <strong>de</strong>stinadas à promoção e proteção da saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r submeti<strong>do</strong>aos riscos e agravos advin<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s processos e ambiente <strong>de</strong> trabalho.Art. 6º. São os seguintes os campos on<strong>de</strong> se exercerá, nas três esferas <strong>de</strong> governo <strong>do</strong> SistemaUnico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, e segun<strong>do</strong> a respectiva competência legal, a ação <strong>de</strong> vigilância sanitária:I. proteção <strong>do</strong> ambiente e <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustenta<strong>do</strong>;17. “Nós temos problema <strong>de</strong> legislação? Eu acredito que não. Nós temos uma legislação até a<strong>de</strong>quada paramedicamentos. Ela po<strong>de</strong> ser aperfeiçoada como por exemplo em caso <strong>do</strong>s genéricos em vários outrosaspectos, mas a legislação é. interessante, e tecnicamente boa. Então o problema é <strong>de</strong> cumprimento<strong>de</strong>sta legislação, cumprimento por aqueles que produzem, por aqueles que comercializam e por aquelesque tem a responsabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> garantir isso, ou seja, o governo <strong>de</strong> uma maneira geral, o Esta<strong>do</strong>fundamentalmente o órgão <strong>de</strong> fiscalização — a vigilância sanitária. Entretanto, o que tem aconteci<strong>do</strong>nos últimos tempos é o <strong>de</strong>srespeito à legislação ou um esforço <strong>de</strong> <strong>de</strong>sregulamentação <strong>do</strong> setor eliminan<strong>do</strong>aquilo que já existe na legislação”. Palestra proferida por Eliane Gan<strong>do</strong>lf, representante <strong>do</strong> IDEC noSeminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>”, <strong>do</strong>cumento da Fundação Pedrosoo Horta, 1996.250 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


II. saneamento básico;III.alimentos, água e bebidas para consumo humano;IV. medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos <strong>de</strong>interesse para a saú<strong>de</strong>;V. ambiente e processos <strong>de</strong> trabalho, e saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r;VI.serviços <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>;VII. produção, transporte, guarda e utilização <strong>de</strong> outros bens, substâncias eprodutos psicoativos, tóxicos e radioativos;VIII. sangue e hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s;IX.radiações <strong>de</strong> qualquer natureza; eX. portos, aeroportos e fronteiras.”Vê-se que a vigilância sanitária é abrangente <strong>de</strong> todas ações e serviços que tenhamalguma repercussão na saú<strong>de</strong> coletiva ou individual, caben<strong>do</strong>, nestes casos, aoadministra<strong>do</strong>r público, o exercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia, que se efetivará sob o enfoque<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>riva<strong>do</strong> da lei.Os condicionamentos <strong>de</strong> direitos no campo da vigilância sanitária <strong>de</strong>vem serprecedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ações orienta<strong>do</strong>ras, preventivas e persuasivas. Os limites, encargos esujeições <strong>de</strong>vem ser a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s após esgotada a eficácia das ações orienta<strong>do</strong>ras, cingin<strong>do</strong>sea administração ao princípio da legalida<strong>de</strong>.A Portaria 1.565/94 <strong>de</strong>termina que na realização da ativida<strong>de</strong> administrativaor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra a administração <strong>de</strong>verá observar o seguinte:a. não se a<strong>do</strong>tarão medidas obrigatórias que envolvam ou impliquem risco àvida;b. os condicionamentos administrativos, sob as modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> limites, encargose sujeições, serão proporcionais aos fins que em cada situação sebusquem; ec. se dará preferência, sempre, à colaboração voluntária <strong>do</strong> cidadão e dacomunida<strong>de</strong> com as autorida<strong>de</strong>s sanitárias.A vigilância em saú<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong> as funções legislativas (aquela que cria ocondicionamento ao exercício <strong>de</strong> direitos) e as funções administrativas que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong>as ações persuasivas, educativas e cooperativas até o uso <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>, comoo <strong>de</strong> interditar a proprieda<strong>de</strong> e impedir a produção. Cabe, ainda, à vigilância sanitáriaestimular e fortalecer a participação da comunida<strong>de</strong> nas ações preventivas e corretivas,avaliar a tecnologia em saú<strong>de</strong>, com ênfase na i<strong>de</strong>ntificação <strong>de</strong> ina<strong>de</strong>quações na produçãoe no uso <strong>de</strong> equipamentos, medicamentos, imunobiológicos e outros insumos para asaú<strong>de</strong>.b) Distribuição <strong>de</strong> competênciaQuanto à competência neste campo ela é comum às três esferas <strong>de</strong> governo (União,Esta<strong>do</strong>s-membros e Municípios): a União coor<strong>de</strong>na o sistema nacional <strong>de</strong> vigilânciasanitária, presta cooperação técnica e financeira e executa ações <strong>de</strong> sua exclusivacompetência (aquelas referidas no artigo 16 da Lei 8.080/90); os Esta<strong>do</strong>s coor<strong>de</strong>nam, eem caráter complementar executam ações e implementam serviços <strong>de</strong> vigilânciaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>251


sanitária, em complemento às ativida<strong>de</strong>s municipais e prestam apoio técnico e financeiroaos Municípios; os Municípios executam e implementam serviços <strong>de</strong> vigilância sanitáriacom a cooperação técnica e financeira da União e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. (art. 23, da CF e arts. 16, 17e 18 da Lei 8.080/90).No tocante à competência legislativa, ela é concorrente: União e Esta<strong>do</strong>s po<strong>de</strong>mlegislar sobre assuntos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e proteção da saú<strong>de</strong>, caben<strong>do</strong> à União expedir normaisgerais e cuidan<strong>do</strong> os Esta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> complementá-las para aten<strong>de</strong>r às suas peculiarida<strong>de</strong>s.Na ausência <strong>de</strong> normas gerais, a competência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> é plena. (art. 24, da CF). 18O Município tem competência própria para legislar sobre assuntos <strong>de</strong> interesselocal e po<strong>de</strong> complementar e suplementar a legislação fe<strong>de</strong>ral e estadual, no que couber(art. 30, I, II).Tratamos <strong>de</strong>ste assunto — <strong>de</strong> forma abrangente, situan<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o setor saú<strong>de</strong> enão apenas sob o aspecto da vigilância sanitária — em artigo publica<strong>do</strong> pela OrganizaçãoPan-Americana da Saú<strong>de</strong> - OPAS 19 nos seguintes termos: “A União, os Esta<strong>do</strong>s, oDistrito Fe<strong>de</strong>ral e os Municípios têm competência material para cuidar da saú<strong>de</strong> da população,ou seja, competência para organizar serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Por outro la<strong>do</strong>, a União, os Esta<strong>do</strong>s e o Distrito Fe<strong>de</strong>ral têm competência paralegislar sobre saú<strong>de</strong>.A União legisla sobre normas gerais e os Esta<strong>do</strong>s suplementam a legislação fe<strong>de</strong>ral,legislan<strong>do</strong> exaustivamente a fim <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r às especificida<strong>de</strong>s e pormenores <strong>do</strong>tema regula<strong>do</strong>, genericamente, pela União.Quanto ao Município, a sua competência legislativa no campo da saú<strong>de</strong> irá se referirsempre aos assuntos <strong>de</strong> interesse local. O Município legisla no interesse local, além <strong>de</strong> suplementara legislação fe<strong>de</strong>ral e estadual no tocante à saú<strong>de</strong>, sempre que o interesse local o exigir.Ressalte-se que, no campo das competências, o legisla<strong>do</strong>r constituinte procurouguardar coerência com o princípio da <strong>de</strong>scentralização da execução <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong>assistência à saú<strong>de</strong> propugna<strong>do</strong> na Reforma Sanitária e nos programas governamentaisanteriores à Carta <strong>de</strong> 88 (Programa <strong>de</strong> Interiorização das Ações e Serviços <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> -PIASS, Programa das Ações Integradas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - AIS, Programa <strong>do</strong> Sistema Unifica<strong>do</strong>e Descentraliza<strong>do</strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - SUDS), atribuin<strong>do</strong> às três esferas <strong>de</strong> governo a competênciapara cuidar da saú<strong>de</strong> da população.Aqui cabe chamar a atenção para um fato que ocorre na área da saú<strong>de</strong>. Ten<strong>do</strong> aConstituição cria<strong>do</strong> a segurida<strong>de</strong> social, com três áreas distintas — saú<strong>de</strong>, previdência18. Ver artigo <strong>de</strong> Celso Bastos, intitula<strong>do</strong> o “ O fumo e as 3 proibições”, Folha <strong>de</strong> São Paulo, <strong>do</strong> dia 19.10.96,Ca<strong>de</strong>rno Cotidiano, pag. 3. No referi<strong>do</strong> artigo, o constitucionalista comenta a edição <strong>de</strong> 3 leisdisciplinan<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> fumar: uma da União (Lei n. 9.294/96), outra <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo (Lei9.178/95 e Decreto n. 40.695/96) e outra <strong>do</strong> Município <strong>de</strong> São Paulo. De acor<strong>do</strong> com a competêncialegislativa constitucionalmente fixada, a União e os Esta<strong>do</strong>s têm competência para legislar sobre proteçãoe <strong>de</strong>fesa da saú<strong>de</strong>, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> coexistirem, harmonicamente, as normas editadas. “ Se o assunto pareciainicialmente in<strong>de</strong>cifrável, é porque não se havia aplica<strong>do</strong> a ele as regras constitucionais sobre a partilha<strong>de</strong> competência entre a União, os Esta<strong>do</strong>s e os Municípios. Levada a efeito essa empreitada, a questãofica ofuscamente clara”., esclarece o autor no menciona<strong>do</strong> artigo.19. Lenir Santos, “Distribuição <strong>de</strong> Competência no Sistema Unico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: O papel das três esferas <strong>de</strong>governo no SUS” - Ca<strong>de</strong>rno Série Direito e Saú<strong>de</strong> n. 3 - Organização Pan-Americana da Saú<strong>de</strong> - EscritórioRegional da Organização Mundial da Saú<strong>de</strong> - Brasília, 1994.252 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


e assistência social — e eleva<strong>do</strong> a saú<strong>de</strong> à condição <strong>de</strong> direito social que <strong>de</strong>ve sergaranti<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>, não só através <strong>do</strong> acesso a serviços assistenciais, mas tambémmediante a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> políticas sociais e econômicas que visem à redução <strong>do</strong> risco da<strong>do</strong>ença, toda a legislação anterior à Constituição referente à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser revista, poisalgumas leis estão revogadas ou <strong>de</strong>rrogadas por conflitarem com o novo sistema <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, principalmente no que tange à competência. E gran<strong>de</strong> parte da legislação fe<strong>de</strong>ralque necessita ser revista refere-se à vigilância sanitária 20 .Por conclusivo, po<strong>de</strong>mos repetir o que já dissemos em obra anterior, em co-autoriacom Gui<strong>do</strong> Ivan <strong>de</strong> Carvalho 21 sobre a vigilância sanitária:“a)diante da legislação <strong>do</strong> SUS (constitucional e infraconstitucional), a União terá<strong>de</strong> rever as normas que expediu anteriormente e que hoje extrapolam os limites<strong>de</strong> ‘normas gerais’;b) pela mesma razão, os Esta<strong>do</strong>s - que têm, <strong>do</strong>ravante, um campo mais extensopara legislar - ficam com o encargo <strong>de</strong> legislar exaustivamente sobre vigilânciasanitária, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> editar o seu código <strong>de</strong> proteção sanitária, respeitadas asnormas gerais baixadas pela União;c) em face das normas gerais da União e da normatização suplementar (exaustiva)<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, cabe ao Município executar os serviços e as ações <strong>de</strong> vigilânciasanitária nos termos da legislação nacional e estadual, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> for ocaso, suplementar essa legislação nos estritos limites <strong>do</strong> “interesse local”;DESCENTRALIZAÇÃO, REGIONALIZAÇÃO E HIERARQUIZAÇÃODAS AÇÕES E SERVIÇOS DE SAÚDEAinda com relação à distribuição <strong>de</strong> competência faz-se necessário tocar em <strong>do</strong>ispontos da área da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> fundamental importância para a regulação, conforme jámencionamos acima: a <strong>de</strong>scentralização, com direção única em cada esfera <strong>de</strong> governoe o princípio da regionalização e hierarquização das ações e <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.A Constituição, em seu artigo 198, <strong>de</strong>termina que as ações e os serviços públicos<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> se integrem em uma re<strong>de</strong> regionalizada e hierarquizada, constituin<strong>do</strong> umúnico sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scentralizada, com direção única emcada esfera <strong>de</strong> governo e com a participação da comunida<strong>de</strong>.A <strong>de</strong>scentralização das ações e <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, que antes era feita através<strong>de</strong> programas governamentais e,portanto, mediante convênio, hoje é uma realida<strong>de</strong>20. É o caso da Lei 2.312, <strong>de</strong> 3 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1.954 que foi expressamente revogada pela Lei 8.080/90 (art.55). Esta lei dispunha sobre normas gerais <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e proteção da saú<strong>de</strong> e o seu <strong>de</strong>creto regulamenta<strong>do</strong>rinstituiu o Código Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>.Como os Esta<strong>do</strong>s e Municípios, até o presente momento, não editaram normas sobre a matéria, o mesmoocorren<strong>do</strong> com a União que ainda não expediu algumas normas necessárias à proteção e recuperaçãoda saú<strong>de</strong> em substituição a outras que não mais vigoram, por extrapolarem os limites <strong>de</strong> normas gerais,ou porque foram expressamente revogadas, como é o caso da Lei aqui mencionada, há uma gran<strong>de</strong>lacuna a que até o presente momento não foi preenchida, fican<strong>do</strong> o cidadão <strong>de</strong>sprotegi<strong>do</strong>, por ausências<strong>de</strong> normas e sanções pelo seu <strong>de</strong>scumprimento.21. “Sistema Unico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: Comentários à Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>“, Editora Hucitec, 2a. edição, pág. 166.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>253


constitucional, fixada através da repartição <strong>de</strong> competência entre as entida<strong>de</strong>s estatais -arts. 23, 24 e 30 da CF. Estan<strong>do</strong> distribuída a competência entre as três esferas <strong>de</strong> governo,a responsabilida<strong>de</strong> pela saú<strong>de</strong> — organização <strong>de</strong> serviços e regulação —, também sereparte, possuin<strong>do</strong> cada esfera governamental, nos termos <strong>do</strong> que dispõem a Constituiçãoe a Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong> (Lei 8.080/90, arts. 16, 17 e 18), os po<strong>de</strong>res e instrumentospara atuação neste campo.O conceito <strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços ou seja, a regionalização e a hierarquização, além<strong>de</strong> serem formas <strong>de</strong> organização <strong>de</strong> serviços, são também pressupostos da<strong>de</strong>scentralização. A regionalização, conforme já dissemos em obra anterior aquimencionada 22 , é a distribuição espacial <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, em qualquer nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>,organiza<strong>do</strong>s para aten<strong>de</strong>r à população <strong>de</strong> uma região, exigente <strong>de</strong> simultânea hierarquização<strong>de</strong>sses níveis, cada qual com resolutivida<strong>de</strong> própria. Conhecer primeiro as necessida<strong>de</strong>s e os serviçose, no processo social, hierarquizá-los e regionalizá-los. Regionalizar serviços não significa, portanto,apenas distribuí-los espacialmente, mas também e sobretu<strong>do</strong> organizá-los com o indispensávelsuporte técnico e <strong>de</strong> recursos humanos, com suficiência <strong>de</strong> recursos e po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>. Docontrário, um <strong>do</strong>s objetivos principais da regionalização, que é integrar e racionalizar serviços,evitan<strong>do</strong> duplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> meios, não será consegui<strong>do</strong>, produzin<strong>do</strong>-se, ao revés, efeitos perversos,como <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> prover serviços on<strong>de</strong> estes se fazem necessários e manter serviços ou criar serviçoson<strong>de</strong> <strong>de</strong>les não há necessida<strong>de</strong>.A hierarquização mencionada no artigo 198 da CF, mal compreendida na área <strong>do</strong>direito, é termo técnico, <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>, significan<strong>do</strong> divisão <strong>de</strong> serviços em nível <strong>de</strong>complexida<strong>de</strong> crescente; assim, um serviço primário ao <strong>de</strong>parar-se com um pacienteexigente <strong>de</strong> atenção mais complexa <strong>de</strong>ve saber para on<strong>de</strong> tal paciente <strong>de</strong>ve serencaminha<strong>do</strong>. É a referência e contra-referência: o paciente tem acesso aos serviços <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> através <strong>de</strong> um serviço <strong>de</strong> menor complexida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser referencia<strong>do</strong> paraserviços <strong>de</strong> maior complexida<strong>de</strong> na medida <strong>de</strong> suas necessida<strong>de</strong>s individuais (excetuadasas situações emergenciais). É a hierarquização <strong>de</strong> serviços em nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>crescente. A regionalização pressupõe a hierarquização e aí os serviços se imbricam(<strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> re<strong>de</strong>): serviços municipais e serviços estaduais (raramente fe<strong>de</strong>rais,pois a União não mais executa serviços médico-hospitalares) <strong>de</strong>vem aten<strong>de</strong>r, muitasvezes, um mesmo paciente; <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> da complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua <strong>do</strong>ença, o atendimento,que se iniciou em um serviço municipal, <strong>de</strong>verá prosseguir em um serviço estadual,referencia<strong>do</strong> pelo municipal. Não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista a contra-referência responsávelpelo obrigatório retorno <strong>do</strong> paciente ao serviço originário, ou seja, àquele que oencaminhou para um serviço <strong>de</strong> maior complexida<strong>de</strong>. Após o atendimento <strong>do</strong> pacienteno serviço mais especializa<strong>do</strong>, resolutivo, o paciente <strong>de</strong>verá retornar à sua “porta <strong>de</strong>entrada” no sistema público <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, local responsável pelo seu prontuário assistencial.Nesse senti<strong>do</strong>, a regulação não po<strong>de</strong> se afastar <strong>de</strong>sses conceitos, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> prevertais situações. As normas sobre regionalização — quan<strong>do</strong> se tratar <strong>de</strong> organização <strong>de</strong>serviços interestaduais — <strong>de</strong>verão ser expedidas pela União, caben<strong>do</strong> ao Esta<strong>do</strong> fixaras referentes à organização <strong>de</strong> serviços intermunicipais e estaduais. A Lei Complementarn. 791/95, <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo (Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>, ou Código <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>) dispõeem seu artigo 24, § 2º que “No âmbito <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Executivo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, a <strong>de</strong>scentralização farse-áconforme o exigirem as características <strong>de</strong>mográficas e epi<strong>de</strong>miológicas da região, a capacida<strong>de</strong>instalada e a resolutivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>do</strong> SUS, para permitir o acesso da população a to<strong>do</strong>s os22. Com referência a obra “Comentários à Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>”, já mencionada neste trabalho.254 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


níveis <strong>de</strong> atenção e continuida<strong>de</strong> e qualida<strong>de</strong> da articulação <strong>do</strong>s dirigentes regionais com osMunicípios interessa<strong>do</strong>s, <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> o seu § 3º, que “a responsabilida<strong>de</strong> pública da atençãoambulatorial no SUS será exercida por meio da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s Básicas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, hierarquizadaem nível <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>finida como principal porta <strong>de</strong> entrada seletiva para os serviços <strong>de</strong>maior especialização e os hospitalares”, dizen<strong>do</strong>, ainda, em seu artigo 4º, § 2º “que ahierarquização e a regionalização <strong>do</strong>s serviços e ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> constituem base e estratégia <strong>de</strong><strong>de</strong>scentralização administrativa, <strong>de</strong> municipalização <strong>do</strong> atendimento e <strong>de</strong> integração finalistica,sen<strong>do</strong> a regionalização objeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão conjunta <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s Municípios”..O importante na regionalização é o aspecto da racionalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Nenhum Município <strong>de</strong>ve ter a pretensão <strong>de</strong> esgotar, em seu território, to<strong>do</strong>s osprocedimentos <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> manter serviços condizentes com a suarealida<strong>de</strong> local, interligan<strong>do</strong>-se numa re<strong>de</strong> que mantenha serviços nos seus vários níveis<strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>. Por isso dizer-se que o sistema é uno, unifica<strong>do</strong>, ou seja, Esta<strong>do</strong>s eMunicípios interligam-se numa re<strong>de</strong> única, regional, estadual, nacional, refencian<strong>do</strong> osseus pacientes. Daí a importância das normatização da regionalização, da hierarquização,da referência e contra-referência pelas esferas <strong>de</strong> governo competentes.O conceito <strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> serviços fez nascer importantes fóruns <strong>de</strong> discussão entreos gestores <strong>do</strong> SUS, que são as Comissões Intergestores Tripartite e as ComissõesIntergestores Bipartite 23 , afora os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (Nacional, Estadual e Municipal),nos quais têm assento, além <strong>de</strong> representantes <strong>do</strong> governo, três segmentos sociais:trabalha<strong>do</strong>res <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, presta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e usuários (Lei 8.142/90). Aregulação da organização <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> tem-se pauta<strong>do</strong> pelas <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>ssasComissões.Não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista, também, o papel <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pelos Conselhos<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> no campo da regulação da saú<strong>de</strong>. Os Conselhos têm se<strong>de</strong> constitucional (art.198, III) e infraconstitucional (Lei 8.142/90, art. 1º). Por sua vez, as Conferências <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong>, que ocorrem a cada quatro anos, reunin<strong>do</strong> os vários segmentos sociais, <strong>de</strong>vemavaliar a situação da saú<strong>de</strong> e propor diretrizes para a formulação da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>na esfera <strong>de</strong> governo correspon<strong>de</strong>nte, nos termos da Lei 8.142/90.Desse mo<strong>do</strong>, a regulação da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve levar em conta as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>ssescolegia<strong>do</strong>s, por refletirem os anseios sociais, uma vez que ali se sentam para discutir asaú<strong>de</strong> os mais diversos segmentos da socieda<strong>de</strong>.O SISTEMA NACIONAL DE SAÚDESistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> foi cria<strong>do</strong> pela Constituição da República <strong>de</strong> forma<strong>de</strong>scentralizada, com direção única em cada esfera <strong>de</strong> governo e competências harmo-23. A área da saú<strong>de</strong> avançou consi<strong>de</strong>ravelmente no relacionamento institucional entre as três esferas gestoras<strong>do</strong> SUS, e entre as esferas gestoras <strong>do</strong> SUS, a iniciativa privada e os cidadãos. A existência <strong>do</strong>s conselhos<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, das conferências <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong>mais comissões nas quais a socieda<strong>de</strong> se faz presente temajuda<strong>do</strong> no equacionamento <strong>de</strong> problemas no setor da saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>-se ressaltar o papel<strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pelas comissões <strong>de</strong> gestores públicos da saú<strong>de</strong>. A comissão intergestores tripartite é umfórum on<strong>de</strong> se sentam representantes <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> e das Secretarias Estaduais e Municipais<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> para <strong>de</strong>finirem e acordarem, conjuntamente suas responsabilida<strong>de</strong>s, seus compromissos e asmetas a serem alcançadas, o mesmo ocorren<strong>do</strong> com as comissões intergestores bipartites, das quaisparticipam a Secretaria <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e o conjunto <strong>de</strong> seus Municípios. Por estarem em consonânciacom a Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>, as <strong>de</strong>cisões <strong>de</strong>ssas comissões têm si<strong>do</strong> respeitadas pelos gestores <strong>do</strong> SUS.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>255


nicamente distribuídas entre a União, os Esta<strong>do</strong>s e os Municípios. O SUS consagra,portanto, a <strong>de</strong>scentralização da regulação jurídica a que se refere o eminente constitucionalistaportuguês, J. J. Canotilho 24 com a consequente regulação jurídica das trêsfontes estatais <strong>de</strong> direito, em conformida<strong>de</strong> com o disposto na Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>(Lei 8080/90, arts 16, 17 e 18), prevista no texto constitucional.Vejamos:A Constituição da República, em seus arts. 197, 198 e 199 estabelece:“Art. 197. São <strong>de</strong> relevância pública as ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, caben<strong>do</strong> aoPo<strong>de</strong>r Público dispor, nos termos da lei, sobre a sua regulamentação, fiscalização econtrole, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> a sua execução ser feita diretamente ou através <strong>de</strong> terceiros e, também,por pessoa física ou jurídica <strong>de</strong> direito priva<strong>do</strong>”.“Art. 198. As ações e os serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> integram uma re<strong>de</strong>regionalizada e hierarquizada, e constituem um sistema único, organiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>com as seguintes diretrizes:I - <strong>de</strong>scentralização, com direção única em cada esfera <strong>de</strong> governo;II - atendimento integral, com priorida<strong>de</strong> para as ativida<strong>de</strong>s preventivas, semprejuízo <strong>do</strong>s serviços assistenciais; eIII - participação da comunida<strong>de</strong>.”“Art. 199. A assistência à saú<strong>de</strong> é livre à iniciativa privada”.De seu turno, a Lei 8080/90 (Lei Orgânica Nacional da Saú<strong>de</strong> - LOS), ao fixar asatribuições comuns às três esferas <strong>de</strong> governo (art. 15) e fazer a distribuição <strong>de</strong> competênciaentre cada uma das entida<strong>de</strong>s políticas (arts. 16, 17 e 18) acabou por configuraro sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, dan<strong>do</strong>-lhe os contornos níti<strong>do</strong>s.Assim, pela leitura <strong>do</strong>s artigos cita<strong>do</strong>s, vemos que a Constituição e a LOS conceberamum sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> qual fazem parte o Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>(ações e serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>) e a iniciativa privada.Sabemos que a idéia <strong>de</strong> sistema pressupõe diversos elementos interliga<strong>do</strong>s pelosmesmos princípios; um to<strong>do</strong> orgânico, composto <strong>de</strong> elementos <strong>de</strong> vária natureza eorienta<strong>do</strong> para um fim <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>, que lhe dá consistência e funcionamento harmônicos.É uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elementos atuan<strong>do</strong>, coerente e finalisticamente, comounida<strong>de</strong> conceitual.No presente caso, a caracterização da relevância pública <strong>do</strong>s serviços e ações <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, o reconhecimento da saú<strong>de</strong> como direito social e individual e o fato <strong>de</strong> a saú<strong>de</strong>ser o resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> políticas sociais e econômicas que reduzam o risco da <strong>do</strong>ença são osprincípios essenciais que vão informar todas as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, sejam osexecuta<strong>do</strong>s pelo Po<strong>de</strong>r Público sejam os executa<strong>do</strong>s pela iniciativa privada; to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vemalcançar os mesmos objetivos: proteger, promover e recuperar a saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> cidadão, bemhumano fundamental, protegi<strong>do</strong> pela Constituição, ainda que alguns sejam públicos eoutros priva<strong>do</strong>s: to<strong>do</strong>s <strong>de</strong>vem proteger a vida humana.Fica, pois, patente a idéia <strong>de</strong> um sistema nacional na estruturação da saú<strong>de</strong> naConstituição. A Carta Magna afirmou:24. Ibi<strong>de</strong>m.256 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


a) que a saú<strong>de</strong> é direito <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s e <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, garanti<strong>do</strong> mediante políticassociais e econômicas que visem à redução <strong>do</strong> risco <strong>de</strong> agravo à saú<strong>de</strong> e aoacesso universal aos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.b) que são <strong>de</strong> relevância pública as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, caben<strong>do</strong> aoPo<strong>de</strong>r Público a regulação, o controle e a fiscalização; realmente, todas asativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> setor Saú<strong>de</strong> — por estarem diretamente ligadas ao direito àvida, que é um direito humano universalmente reconheci<strong>do</strong> — são <strong>de</strong>relevância pública.c) que as ações e os serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> constituem um sistema único <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> e integram uma re<strong>de</strong> regionalizada e hierarquizada; ed) que a assistência à saú<strong>de</strong> é livre à iniciativa privada.Nos enuncia<strong>do</strong>s acima transparece a estrutura <strong>do</strong> sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>: asações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, sejam públicos ou priva<strong>do</strong>s, são <strong>de</strong> relevância pública,pois protegem a vida, fican<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s eles sujeitos à regulação, ao controle e à fiscalização<strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público, fazen<strong>do</strong> parte <strong>de</strong>sse Sistema, como um subsistema, o Sistema Unico<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (público) e a iniciativa privada, componente também <strong>do</strong> sistema nacional.Compreen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> o sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>públicos e priva<strong>do</strong>s, e <strong>de</strong>terminan<strong>do</strong> a Lei 8.080/90 em seu artigo 1º, que “Esta lei regula,em to<strong>do</strong> o território nacional, as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, executa<strong>do</strong>s, isoladamente ouconjuntamente, em caráter permanente ou eventual, por pessoas naturais ou jurídicas <strong>de</strong> direitopúblico ou priva<strong>do</strong>” e estabelecen<strong>do</strong> o artigo 22 da mesma Lei que “Na prestação <strong>de</strong> serviçospriva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>, serão observa<strong>do</strong>s os princípios éticos e as normas expedidas peloórgão <strong>do</strong> Sistema Unico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>-SUS quanto às condições para o seu funcionamento”, po<strong>de</strong>mosconcluir que compete à Direção <strong>do</strong> SUS, em cada esfera <strong>de</strong> governo e <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com ascompetências <strong>de</strong>finidas nos artigos 16, 17 e 18 da referida Lei, dispor sobre a regulação,o controle e a fiscalização (art. 197, da CF) das ativida<strong>de</strong>s exercidas pelo setor priva<strong>do</strong>na área da saú<strong>de</strong>.São os dirigentes <strong>do</strong> SUS os responsáveis pelo coman<strong>do</strong> <strong>do</strong> sistema nacional <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, nele compreendi<strong>do</strong>, o próprio SUS. É lógico que não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>scurar <strong>do</strong>spreceitos constitucionais previstos na or<strong>de</strong>m econômica e financeira. Do mesmo mo<strong>do</strong>que não se po<strong>de</strong> preten<strong>de</strong>r aplicar esses mesmos preceitos sem se voltar para os princípiosconstitucionais da or<strong>de</strong>m social, fundamentalmente os da saú<strong>de</strong>.No caso da educação, a Constituição prevê no seu artigo 209 que “O ensino é livreà iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais daeducação nacional; II autorização e avaliação <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> pelo Po<strong>de</strong>r Público”. Enten<strong>do</strong> que aárea da saú<strong>de</strong> também tem um regime especial, pois trata-se <strong>de</strong> uma área consi<strong>de</strong>rada,explicitamente,pela Constituição como <strong>de</strong> relevância pública, caben<strong>do</strong> ao Po<strong>de</strong>rPúblico a regulação, o controle e a fiscalização sobre as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,sejam eles públicos ou priva<strong>do</strong>s.Ainda que a Lei 8.080/90, em seus artigos 20 a 23 tenha da<strong>do</strong> um tratamentotími<strong>do</strong> ao funcionamento <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> no âmbito priva<strong>do</strong>, a Constituição <strong>de</strong>terminouao Po<strong>de</strong>r Público que o regule, controle e fiscalize.Não cabe ao Po<strong>de</strong>r Público restringir a ativida<strong>de</strong> econômica na área da saú<strong>de</strong>,mas cabe-lhe, na realização <strong>do</strong> planejamento econômico, sem cercear a livre iniciativa,indicar, induzir ao cumprimento <strong>de</strong> metas que interessem ao <strong>de</strong>senvolvimento nacional,além <strong>de</strong> impor normas especiais quanto às condições <strong>de</strong> seu funcionamento (art. 22, daLei 8.080/90).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>257


E não seria <strong>de</strong>mais repetir que no sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> está assim distribuídaa competência entre União, Esta<strong>do</strong>s e Municípios:a) A competência para cuidar da saú<strong>de</strong> — competência material — é comum atodas as esferas <strong>de</strong> governo: União, Esta<strong>do</strong>s, Distrito Fe<strong>de</strong>ral e Municípios(art. 23, II, da CF), caben<strong>do</strong> a estes entes políticos competência para exercer opo<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia, no campo <strong>de</strong> suas funções administrativas;b) Sen<strong>do</strong> concorrente a competência para legislar sobre saú<strong>de</strong> — caben<strong>do</strong>atribuições à União, aos Esta<strong>do</strong>s, ao Distrito Fe<strong>de</strong>ral (CF, art. 23, II) e aosMunicípios (CF, art. 30, I e II) — a Lei 8.080/90, em seus artigos 16, 17 e 18<strong>de</strong>finiu as competências específicas <strong>de</strong> cada entida<strong>de</strong> política, ten<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong>logo disposto, em seus artigos 20 a 23, sobre os serviços priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assistênciaà saú<strong>de</strong>;c) A Lei 8.080, <strong>de</strong> 19.9.90 (Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>) <strong>de</strong>finiu, ainda, que é competentepara exercer essa fiscalização e esse controle, <strong>de</strong>ntro das administraçõesfe<strong>de</strong>ral, estadual e municipal, os dirigentes <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,dispon<strong>do</strong> que a direção nacional <strong>do</strong> sistema compete ao Ministério da Saú<strong>de</strong>,caben<strong>do</strong> às secretarias estaduais e municipais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a direção estadual emunicipal <strong>do</strong> SUS (arts. 9º, 16, 17 e 18).Existin<strong>do</strong> um sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, informa<strong>do</strong> e conforma<strong>do</strong> por princípiosúnicos e sen<strong>do</strong> a competência — legistativa e material — concorrente, a regulação, afiscalização e o controle da área da saú<strong>de</strong> po<strong>de</strong>m ser exercidas com mais eficiência evigor pelo fato <strong>de</strong> serem executadas <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>scentralizada, estan<strong>do</strong> seus agentes(secretários <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, verea<strong>do</strong>res, prefeitos, <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s etc.) mais próximos dacomunida<strong>de</strong>, ao mesmo tempo que essas ações se interligam num sistema nacional,manten<strong>do</strong>, assim, a unicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> SUS.A RELEVÂNCIA PÚBLICA DAS AÇÕES E DOS SERVIÇOS DE SAÚDEA Constituição usou a expressão relevância pública para qualificar as ações e osserviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (art. 197). Perquire-se qual o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> relevância pública e se apenasos serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> seriam <strong>de</strong> relevância pública. O constituinte, ao referir-se àrelevância pública das ações e <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, preten<strong>de</strong>u elevar a saú<strong>de</strong> à mesmacondição <strong>do</strong> direito à vida e da dignida<strong>de</strong> da pessoa humana.Isto não quer dizer que outros serviços públicos também não venham a ser <strong>de</strong>relevância pública, como, por exemplo, a educação. Ao explicitar que as ações e osserviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> são <strong>de</strong> relevância pública — tanto os serviços e ações públicos comoos priva<strong>do</strong>s — quis o legisla<strong>do</strong>r <strong>de</strong>stacar que a saú<strong>de</strong> é <strong>de</strong>corrente <strong>de</strong> políticas sociais eeconômicas que visem à redução <strong>do</strong> risco <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença e outros agravos (art. 196 CF) ou,como diz a Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong> (Lei 8080/90, art. 3º), tem a saú<strong>de</strong>, como fatores<strong>de</strong>terminantes e condicionantes, entre outros, a alimentação, a moradia, o saneamento,o meio ambiente, o trabalho, a renda, a educação, o transporte, o lazer e o acesso aosbens e serviços essenciais, ou seja, tu<strong>do</strong> aquilo que é necessário para que a pessoa humanatenha uma vida digna. Assim, to<strong>do</strong>s os serviços públicos são relevantes, pois têminterferência direta com a dignida<strong>de</strong>, a vida e, consequentemente, com a saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>indivíduo 25 .258 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Para se garantir o direito à vida e à dignida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve-se garantir o direito a políticaspúblicas que visem à redução <strong>do</strong> risco da <strong>do</strong>ença e ao acesso universal e igualitário aosserviços <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>.Também não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que o conceito <strong>de</strong> relevância pública contémo aspecto da indisponibilida<strong>de</strong>. A saú<strong>de</strong>, assim como a vida, são bens indisponíveis,não estan<strong>do</strong> sujeito ao livre arbítrio <strong>do</strong> indivíduo, não ten<strong>do</strong> ele o direito <strong>de</strong> se <strong>de</strong>sfazer<strong>de</strong> sua vida, <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>r parte <strong>de</strong> seu corpo, <strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> pesquisas científicas, sen<strong>do</strong>,por isso, igualmente também responsável pela sua saú<strong>de</strong>.Já havíamos menciona<strong>do</strong>, na obra em co-autoria com Gui<strong>do</strong> Ivan <strong>de</strong> Carvalho 26 , que:“Ao qualificar os serviços e ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como <strong>de</strong> relevância pública, não preten<strong>de</strong>u olegisla<strong>do</strong>r constituinte dizer que os <strong>de</strong>mais direitos humanos e sociais não têm relevância; quis olegisla<strong>do</strong>r talvez enunciar a saú<strong>de</strong> como um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> bem-estar prioritário, fora <strong>do</strong> qual o indivíduonão tem condições <strong>de</strong> gozar outras oportunida<strong>de</strong>s proporcionadas pelo Esta<strong>do</strong>, como a educação,antecipan<strong>do</strong>-se, assim, à qualificação <strong>de</strong> “relevância” que a legislação infraconstitucional <strong>de</strong>veráoutorgar a outros serviços, públicos e priva<strong>do</strong>s, para efeito <strong>do</strong> disposto no art. 129, II, daConstituição.”O Ministério Público tem papel relevante neste campo. É função institucional <strong>do</strong>Ministério Público, <strong>de</strong>ntre outras, “zelar pelo efetivo respeito <strong>do</strong>s Po<strong>de</strong>res Públicos e <strong>do</strong>s serviços<strong>de</strong> relevância pública aos direitos assegura<strong>do</strong>s nesta Constituição, promoven<strong>do</strong> as medidasnecessárias à sua garantia” (art. 129, II, da CF).Serviços <strong>de</strong> relevância pública — entendi<strong>do</strong>s como to<strong>do</strong>s aqueles que garantam adignida<strong>de</strong> humana, um <strong>do</strong>s fundamentos da República — ficam sujeitos ao controle <strong>do</strong>Ministério Público, ainda que os mesmos não sejam presta<strong>do</strong>s diretamente pelo Esta<strong>do</strong>.Os serviços <strong>de</strong> relevância pública são serviços essenciais que garantem a dignida<strong>de</strong> <strong>do</strong>ser humano.O agente público, os profissionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> - públicos oupriva<strong>do</strong>s - atuam num campo concretamente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong> pela Constituição como <strong>de</strong>“relevância pública”, <strong>de</strong>corren<strong>do</strong> daí uma co-responsabilida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>rPúblico com a saú<strong>de</strong> pública e individual.Por isso, ao Esta<strong>do</strong> cabe, também, a função <strong>de</strong> conscientizar o indivíduo na proteção<strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong> como requisito <strong>do</strong> seu bem-estar físico e psicológico e da fruição <strong>de</strong> benssociais. As iniciativas <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público na proteção e <strong>de</strong>fesa da saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> indíviduo exigem,como contrapartida mínima <strong>do</strong> indivíduo, cuida<strong>do</strong>s próprios com a sua saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>o Esta<strong>do</strong> e o indivíduo serem co-responsáveis pela saú<strong>de</strong> coletiva e individual.Po<strong>de</strong>mos, então, afirmar que as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ficam to<strong>do</strong>s — públicosou priva<strong>do</strong>s — sujeitos à regulação, ao controle e à fiscalização <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público,incluí<strong>do</strong> o Ministério Público, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> relevância pública permear aatuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no exercício <strong>de</strong> sua função <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> polícia administrativa.Neste passo, não é <strong>de</strong>mais reiterar o disposto no artigo 15, XI, da Lei Orgânica daSaú<strong>de</strong>: “Art. 15. A União, os Esta<strong>do</strong>s, o Distrito Fe<strong>de</strong>ral e os Municípios exercerão, em seuâmbito administrativo, as seguintes atribuições:25. É importante salientar que, enquanto a Emenda Constitucional 1/69 falava em “direitos concernentesà vida (art. 153), a Constituição <strong>de</strong> 88 fala em “direito à vida” (art. 5º), o que constitui inegavelmenteum avanço da consciência coletiva nacional.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>259


...XI - elaboração <strong>de</strong> normas para regular as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> serviços priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ten<strong>do</strong>em vista a sua relevância pública;”A ASSISTÊNCIA À SAÚDE NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (ART. 199)Qual o significa<strong>do</strong> da expressão assistência à saú<strong>de</strong>? Po<strong>de</strong> a iniciativa privada atuarnas mais diversas áreas <strong>do</strong> setor Saú<strong>de</strong>?Para efeito <strong>de</strong> análise <strong>do</strong>s limites <strong>de</strong> atuação da iniciativa privada (indivíduos epessoas jurídicas) no campo da saú<strong>de</strong>, vamos a<strong>do</strong>tar, aqui, a expressão assistência à saú<strong>de</strong>como o atendimento ambulatorial, hospitalar ou em clínica especializada dispensa<strong>do</strong>ao tratamento <strong>de</strong> <strong>do</strong>ença ou à orientação terapêutica.O artigo 199 da Constituição estabelece: “A assistência à saú<strong>de</strong> é livre à iniciativaprivada.”A Lei 8.080/90, em seu artigo 20, diz que “os serviços priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>caracterizam-se pela atuação, por iniciativa própria, <strong>de</strong> profissionais liberais, legalmentehabilita<strong>do</strong>s, e <strong>de</strong> pessoas jurídicas <strong>de</strong> direito priva<strong>do</strong> na promoção, proteção e recuperação dasaú<strong>de</strong>”.Assim, os serviços <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>vem correspon<strong>de</strong>r ao exercício <strong>de</strong>uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhada individualmente por profissional legalmente habilita<strong>do</strong>,ou por meio <strong>de</strong> pessoa jurídica, voltada para a promoção, proteção e recuperação dasaú<strong>de</strong>.Vê-se que a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> atuação da iniciativa privada no campo da saú<strong>de</strong> é maisrestrita que o significa<strong>do</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> na Constituição e na Lei 8.080/90.Muitas ativida<strong>de</strong>s diretamente ligadas à saú<strong>de</strong>, como o saneamento básico, a<strong>de</strong>fesa contra a calamida<strong>de</strong> pública, a utilização <strong>de</strong> radioisótopos em medicina (art. 21,da CF), o fracionamento industrial <strong>do</strong> sangue (art. 199, § 4º, da CF), a manutenção eadministração <strong>de</strong> banco <strong>de</strong> órgãos e partes <strong>do</strong> corpo humano para transplante (Lei n.8.489, <strong>de</strong> 18.9.92 e Decreto n. 879, <strong>de</strong> 22.7.93), o tratamento e abastecimento <strong>de</strong> água; alimpeza urbana, o tratamento <strong>de</strong> lixo são ativida<strong>de</strong>s privativas <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público, algumas<strong>de</strong>las executadas pelo setor priva<strong>do</strong> somente mediante permissão ou concessão, nostermos <strong>do</strong> artigo 175 da Constituição e da Lei 8.987, <strong>de</strong> 13.2.95 27 .Da leitura da legislação sobre transplante vê-se que a manutenção e a administração<strong>de</strong> banco <strong>de</strong> órgãos e partes <strong>do</strong> corpo humano para fins <strong>de</strong> transplante éativida<strong>de</strong> que só compete ao Po<strong>de</strong>r Público, não caben<strong>do</strong> aqui a atuação da iniciativaprivada, nem por concessão ou permissão.Realmente, muitas ativida<strong>de</strong>s que direta ou indiretamente interferem na saú<strong>de</strong> sãoprivativas <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público, não assistin<strong>do</strong> direito ao particular para atuar nestes campos.26. “Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - Comentários à Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong>”, editora Hucitec, 2ª edição, pág. 287.27. O fracionamento industrial <strong>do</strong> sangue é bem fora <strong>do</strong> comércio que, no nosso enten<strong>de</strong>r, po<strong>de</strong> ser objeto<strong>de</strong> concessão ou permissão, nos termos <strong>do</strong> art. 175, da CF e da Lei 8.987/95).260 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Assim, a liberda<strong>de</strong> da iniciativa privada, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com o texto constitucional, érestrita à assistência à saú<strong>de</strong>, ou seja, à organização ou à sua atuação no campo <strong>do</strong>sserviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, caben<strong>do</strong> ao Po<strong>de</strong>r Público outras ativida<strong>de</strong>s que interfiram com asaú<strong>de</strong>, preconizada no artigo 196 da CF, ex., o abastecimento e tratamento <strong>de</strong> água, aenergia elétrica, o saneamento básico, a coleta <strong>de</strong> lixo etc. etc.Nesse passo, <strong>de</strong>ve-se ressaltar a importância da atuação <strong>do</strong>s conselhos <strong>de</strong>fiscalização <strong>do</strong> exercício profissional nas ativida<strong>de</strong>s privadas <strong>de</strong> assitência à saú<strong>de</strong>.O exercício <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong> profissional <strong>de</strong> nível superior encontra-se regulada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>logo, pelos conselhos <strong>de</strong> fiscalização profissional, aos quais é conferi<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r regulatório,principalmente no que tange à ética profissional.Todas as profissões <strong>de</strong> nível superior <strong>de</strong>vem ser exercidas <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>s limites éticostraça<strong>do</strong>s pelos códigos <strong>de</strong> ética profissional, edita<strong>do</strong>s pelo conselho fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> cadaprofissão.Também as pessoas jurídicas que atuam nessas áreas submetem-se a <strong>de</strong>terminadasnormas estabelecidas pelos conselhos <strong>de</strong> fiscalização profissional.É <strong>de</strong> se ressaltar que as normas gerais estabelecidas na Lei 8.080/90 para a iniciativaprivada são muito tímidas, limitan<strong>do</strong>-se à mera repetição <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>sconstitucionais como “ a assistência à saú<strong>de</strong> é livre à iniciativa privada”; “ é vedada aparticipação direta ou indireta <strong>de</strong> empresas ou <strong>de</strong> capitais estrangeiros na assistência àsaú<strong>de</strong>”, ten<strong>do</strong> fica<strong>do</strong> para cada esfera <strong>de</strong> governo a competência para expedir normasquanto às condições <strong>de</strong> funcionamento <strong>do</strong>s serviços priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>(art. 22).Quanto à participação complementar da iniciativa privada no Sistema Único <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong>, a qual se formalizará mediante a celebração <strong>de</strong> contrato ou convênio, é importantelembrar que os serviços contrata<strong>do</strong>s submetem-se às normas técnicas e administrativase aos princípios e diretrizes <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> 28 .Por conclusivo, a assistência à saú<strong>de</strong> é um aspecto <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>, limitan<strong>do</strong>-se ainiciativa privada a atuar apenas neste campo <strong>de</strong> atendimento, sujeita à regulação,controle e fiscalização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que, por sua vez, <strong>de</strong>ve observar os mandamentosconstitucionais da or<strong>de</strong>m econômica e social (arts. 170/181). Salientem-se, mais umavez, os papéis <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong>s, neste campo, pelos conselhos <strong>de</strong> fiscalização profissionale pelos órgãos e entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r.O PAPEL PLANEJADOR DO ESTADO E SUAS IMPLICAÇÕES NA SAÚDEA livre iniciativa na área da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve obe<strong>de</strong>cer aos princípios constitucionaisnortea<strong>do</strong>res da ativida<strong>de</strong> econômica, inscritos no art. 170, além <strong>de</strong> levar em conta queas ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> são <strong>de</strong> relevância pública (art. 197 da CF).28. A participação complementar <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> no SUS po<strong>de</strong>rá ocorrer sempre que a AdministraçãoPública verificar que os seus serviços são insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população<strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada área, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong>-se dar preferência às entida<strong>de</strong>s filantrópicas e às sem fins lucrativos.(art. 24, da Lei 8.080/90).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>261


A função planeja<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser realizada com vistas ao <strong>de</strong>senvolvimentonacional e regional equilibra<strong>do</strong>, à erradicação da pobreza e da marginalização social, àredução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e regionais, à construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> justa esolidária.Reza o art. 174 da CF: “Como agente normativo e regula<strong>do</strong>r da ativida<strong>de</strong> econômica, oEsta<strong>do</strong> exercerá, na forma da lei, as funções <strong>de</strong> fiscalização, incentivo e planejamento, sen<strong>do</strong> este<strong>de</strong>terminante para o setor público e indicativo para o setor priva<strong>do</strong>”. “§ 1º - A lei estabelecerá asdiretrizes e bases <strong>do</strong> planejamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional equilibra<strong>do</strong>, o qual incorporaráe compatibilizará os planos nacionais e regionais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento”.No ensinamento <strong>de</strong> Fábio Kon<strong>de</strong>r Comparato 29 , <strong>de</strong>vem-se cotejar os governantescom os navega<strong>do</strong>res, pois o “<strong>de</strong>senvolvimento nacional é, sem dúvida, a mais importante das“navegações <strong>de</strong> longo curso” que possa empreen<strong>de</strong>r uma socieda<strong>de</strong>. É a principal política pública,aquela <strong>do</strong>tada <strong>de</strong> maior senti<strong>do</strong> arquitetônico — para usarmos da expressão tão cara a Aristótelesna <strong>de</strong>finição da arte política —, pois engloba e harmoniza todas as <strong>de</strong>mais ativida<strong>de</strong>sgovernamentais”.Assim, o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve exercer as funções <strong>de</strong> fiscalização, incentivo e planejamento,na forma da lei. Para o setor público o planejamento é <strong>de</strong>terminante, pois a Administraçãosó po<strong>de</strong> fazer aquilo que a lei <strong>de</strong>termina, não fican<strong>do</strong> ao sabor <strong>do</strong> Administra<strong>do</strong>ratuar <strong>de</strong> tal ou qual forma.Na área da saú<strong>de</strong>, diz a lei 8.080/90, no art. 36, que “o processo <strong>de</strong> planejamento eorçamento <strong>do</strong> sistema unico <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> será ascen<strong>de</strong>nte, <strong>do</strong> nível local até o fe<strong>de</strong>ral, ouvi<strong>do</strong> os seusórgãos <strong>de</strong>liberativos, compatibilizan<strong>do</strong> as necessida<strong>de</strong>s da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> com a disponibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> recursos em planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Municípios, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral e da União”,estabelecen<strong>do</strong>, ainda, no §1º, que os planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> serão a base das ativida<strong>de</strong>s eprogramações <strong>do</strong> SUS.O planejamento na área da saú<strong>de</strong> — que há <strong>de</strong> guardar coerência com o planejamentonacional — <strong>de</strong>ve indicar ao setor priva<strong>do</strong> as linhas básicas para o <strong>de</strong>senvolvimento<strong>do</strong> setor, dirigin<strong>do</strong> o empresaria<strong>do</strong> a observar quais são os objetivos nacionaise regionais que <strong>de</strong>vem ser atingi<strong>do</strong>s na área da saú<strong>de</strong>. Ainda que o planejamento para osetor priva<strong>do</strong> seja indicativo, enquanto para o setor público ele é obrigatório, oplanejamento <strong>de</strong>ve orientar a ativida<strong>de</strong> privada, indican<strong>do</strong>, incentivan<strong>do</strong> realizaçõesque digam respeito aos planos nacionais. Tanto que a LOS fala em plano nacional <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, planos estaduais e planos municipais, to<strong>do</strong>s guardan<strong>do</strong> coerência entre si, comvistas ao <strong>de</strong>senvolvimento nacional equilibra<strong>do</strong> que reduza as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais eregionais.O planejamento <strong>de</strong> programas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ocorrer ouvin<strong>do</strong>-se os órgãos <strong>de</strong>liberativos<strong>do</strong> setor, que são o conselho da segurida<strong>de</strong> social e os conselhos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>(nacional, estadual e municipal) nos quais se fazem presentes representantes da comunida<strong>de</strong>,<strong>do</strong> governo, <strong>do</strong> empresaria<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res da saú<strong>de</strong>.Ainda com referência ao artigo <strong>do</strong> mestre Comparato 30 , registre-se que “aindispensável liberda<strong>de</strong> empresarial há <strong>de</strong> ser dirigida para a consecução <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s objetivosnacionais” e que a “a<strong>de</strong>quada programação <strong>de</strong> políticas públicas, como a <strong>de</strong> investimentos em29. “A organização constitucional da função planeja<strong>do</strong>ra”, Revista Trimestral <strong>de</strong> Direito Público, nº 8.30. Ibi<strong>de</strong>m.262 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


infra-estrutura, por exemplo, representa, por si só, o melhor <strong>do</strong>s estímulos à organização daativida<strong>de</strong> empresarial privada <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com os objetivos fixa<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>”.Sem planejamento <strong>de</strong> médio e longo prazo — não programas eventuais que ficamao sabor da vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> dirigente <strong>do</strong> SUS — compatibiliza<strong>do</strong>s com as políticaspúblicas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional que venham a induzir o setor priva<strong>do</strong> a interagircom a área pública, a harmonia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, no campo da saú<strong>de</strong>, estará comprometida,fican<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> à mercê <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, que passa <strong>de</strong> induzi<strong>do</strong> a indutor daspolíticas públicas, ao arrepio <strong>do</strong> coman<strong>do</strong> constitucional previsto no art. 174.Po<strong>de</strong>mos concluir que o Esta<strong>do</strong> é o agente normativo e regula<strong>do</strong>r da ativida<strong>de</strong>econômica, exercen<strong>do</strong> funções <strong>de</strong> fiscalização, incentivo e planejamento. O Esta<strong>do</strong>, ao<strong>de</strong>sempenhar esse papel, <strong>de</strong>ve observar os princípios consagra<strong>do</strong>s no art. 170, da CF,que também têm por objetivo principal assegurar a to<strong>do</strong>s existência digna. Assim, aativida<strong>de</strong> econômica no campo da saú<strong>de</strong> sujeita-se, também, à regulação e fiscalização<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, além <strong>de</strong> observar os objetivos nacionais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.É tão importante a função planeja<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> em benefício da segurança ebem-estar da socieda<strong>de</strong> que o cita<strong>do</strong> jurista e cientista político 31 propôs um anteprojeto<strong>de</strong> constituição em que se instituísse — na estrutura constitucional <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Brasileiro— órgãos <strong>de</strong> planejamento, a par <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res Executivo, Legislativo e Judiciário.A REGUAÇÃO NA SAÚDE E ALGUMAS ÁREAS ESPECÍFICASA Constituição garantiu ao indivíduo o direito à saú<strong>de</strong> e disse ser <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>efetuar essa garantia. Assim, o Po<strong>de</strong>r Público <strong>de</strong>ve cumprir a sua parte manten<strong>do</strong> serviços<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> para assistir à população e a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> medidas que diminuam o risco <strong>de</strong> agravoà saú<strong>de</strong>, mediante políticas sociais e econômicas que permitam ao cidadão a melhorproteção <strong>de</strong> sua saú<strong>de</strong> e a fruição <strong>do</strong> bem estar.Afirmou, também, a Carta Magna que a regulação, o controle e a fiscalização dasações e <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> competem ao Po<strong>de</strong>r Público.Na lição <strong>de</strong> José Afonso Silva 32 , “Se a Constituição atribui ao Po<strong>de</strong>r Público o controledas ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, significa que sobre tais ações e serviços tem ele integral po<strong>de</strong>r <strong>de</strong><strong>do</strong>minação, que é o senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> termo controle, mormente quan<strong>do</strong> aparece ao la<strong>do</strong> da palavrafiscalização.” (grifou-se)O papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no campo da saú<strong>de</strong> comporta uma série <strong>de</strong> condicionamentosadministrativos em prol <strong>do</strong> bem estar social, caben<strong>do</strong> lembrar que <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> tema saú<strong>de</strong>vamos encontrar toda sorte <strong>de</strong> situações que interferem com o bem estar individual esocial, conforme já menciona<strong>do</strong>: meio ambiente, fármacos, alimentos, drogas, condições elocais <strong>de</strong> trabalho, engenharia genética, bioética, saneamento, ativida<strong>de</strong>s médicas e hospitalares,propagandas, ativida<strong>de</strong>s nucleares etc.Já se fala em direito sanitário como um ramo autônomo <strong>do</strong> direito administrativo,tal a sua importância na vida da socieda<strong>de</strong>; a sistematização das normas sanitárias e os31. Ibi<strong>de</strong>m.32. “Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional Positivo, 6ª edição, Editora RT.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>263


mais aprofunda<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre o tema são hoje iniciativas que estão merecen<strong>do</strong> oestímulo geral, principalmente porque uma gama cada vez mais variada <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>stêm interferência direta ou indireta na saú<strong>de</strong> da população.Ainda que polêmica, a idéia vem sen<strong>do</strong> abordada por diversos <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res einstituições, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser cita<strong>do</strong>s o Instituto <strong>de</strong> Direito Sanitário Aplica<strong>do</strong> - IDISA, oCentro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s e Pesquisas <strong>de</strong> Direito Sanitário - CEPEDISA e o Núcleo <strong>de</strong> Pesquisaem Direito Sanitário da USP, bem como os mais diversos cursos <strong>de</strong> especialização emdireito sanitário, <strong>de</strong>ntre eles, o <strong>de</strong> São Paulo (<strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública-USP eCEPEDISA), e o da <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Direito da Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Feira <strong>de</strong> Santana,Bahia.Repetin<strong>do</strong>, é tão largo o espectro das ativida<strong>de</strong>s que ameaçam a saú<strong>de</strong> e a vida<strong>do</strong>s indivíduos que não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar com precisão o campo <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>na proteção da saú<strong>de</strong>. Seria tarefa inglória elencar a intensa e diversificada gama <strong>de</strong>assuntos e ativida<strong>de</strong>s que interferem na saú<strong>de</strong> coletiva e individual, ainda mais se seconsi<strong>de</strong>rar o avanço, sem prece<strong>de</strong>ntes, da tecnologia, principalmente aquela relativa àsmanipulações biológicas.As manipulações biológicas vão a passos tão largos, que as normas condiciona<strong>do</strong>rasnem sempre as alcançam, afora as dificulda<strong>de</strong>s, perplexida<strong>de</strong>s e polêmicasque encerram, comprometen<strong>do</strong>, cada vez mais, a sua regulação. Voltaremos ao tema emoutro tópico.Polícia SanitáriaHely Lopes Meirelles 33 chama a atenção para o assunto: “O campo <strong>de</strong> atuação dapolícia sanitária é incomensurável, o que levou o eminente Cirne Lima a confessar, judiciosamente,que, ‘na impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fixar limites já ao conceito <strong>de</strong> polícia sanitária, já à competência <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> nesse assunto, <strong>de</strong>vemos limitar-nos a uma classificação meramente <strong>de</strong>monstrativa’.Em verda<strong>de</strong>, a polícia sanitária dispõe <strong>de</strong> um elastério muito amplo e necessário à a<strong>do</strong>ção<strong>de</strong> normas e medidas específicas, requeridas por situações <strong>de</strong> perigo presente e futuro que lesemou ameacem lesar a saú<strong>de</strong> e a segurança <strong>do</strong>s indivíduos e da comunida<strong>de</strong>. Por essa razão o Po<strong>de</strong>rPúblico dispõe <strong>de</strong> largo discricionarismo na escolha e imposição das limitações <strong>de</strong> higiene esegurança, em <strong>de</strong>fesa da população”.Vale aqui registrar a <strong>de</strong>cisão <strong>do</strong> Tribunal <strong>de</strong> Justiça <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo mencionadapor Hely Lopes Meirelles 34 :“Os princípios <strong>de</strong> polícia sanitária, sempre em evolução, na medida das exigênciassociais, não conferem direito adquiri<strong>do</strong>” — sen<strong>do</strong> esta a razão da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong>periódicas autorizações <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público sobre a matéria — e “As normas urbanísticassão <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m pública, cogentes, sem que se possa contrapor direito adquiri<strong>do</strong>”.Portanto, no campo da saú<strong>de</strong> o Esta<strong>do</strong> tem o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> proteger o cidadão <strong>do</strong>sriscos da <strong>do</strong>ença a fim <strong>de</strong> cumprir o mandamento pré-constitucional <strong>do</strong> direito à vida eos mandamentos constitucionais <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong>, à dignida<strong>de</strong>, a não sofrer tratamento<strong>de</strong>sumano, <strong>de</strong> viver em ambiente ecologicamente equilibra<strong>do</strong>, <strong>de</strong> proteção à33. “Direito Administrativo Brasileiro”, 19ª edição, Malheiros Editores, pág. 126.34. Ibi<strong>de</strong>m, pág. 130, TJSP, RT 559/130 E 670/72.264 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


maternida<strong>de</strong>, à infância, à a<strong>do</strong>lescência e à velhice, <strong>de</strong> proteção ao ambiente <strong>de</strong> trabalhoetc., amplian<strong>do</strong>, assim, o horizonte da regulação.Quan<strong>do</strong> se fala em po<strong>de</strong>r regula<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> não se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fora <strong>do</strong>campo regula<strong>do</strong> a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r, hoje consubstanciada no Código <strong>de</strong> Defesa <strong>do</strong>Consumi<strong>do</strong>r - CDC (Lei 8.078, <strong>de</strong> 11.9.90).A Constituição, ao tratar da Or<strong>de</strong>m Econômica e Financeira, <strong>de</strong>stacou a <strong>de</strong>fesa<strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r como um <strong>do</strong>s seus princípios básicos (art. 170, V).O CDC tem por fim proteger as relações <strong>de</strong> consumo <strong>de</strong> bens e serviços. Sãonormas que interferem nas relações <strong>de</strong> consumo na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> uma das partes, oconsumi<strong>do</strong>r.O próprio Po<strong>de</strong>r Público (Ministério Público, União, Esta<strong>do</strong>s, Municípios, DistritoFe<strong>de</strong>ral, entida<strong>de</strong>s e órgãos da administração pública direta e indireta, <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à<strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r) está legitima<strong>do</strong> para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r os direitos einteresses <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res.Cabe aqui abrir um parêntese para dizer que enten<strong>de</strong>mos não ser o CDC aplicávelàs relações <strong>do</strong> cidadão com as ações e os serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (SUS).Por que assim pensamos, embora muitos entendam exatamente <strong>de</strong> formacontrária? Para nós, o CDC protege a relação <strong>de</strong> compra e venda, o contrato oneroso.Ora, no SUS não existe esta relação comutativa, pois os serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> nãopo<strong>de</strong>m ser caracteriza<strong>do</strong>s como “qualquer ativida<strong>de</strong> fornecida no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> consumo,mediante remuneração, inclusive <strong>de</strong> natureza bancária, financeira, <strong>de</strong> crédito e securitária” (art.3º , § 2º, CDC). Logo, os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> oferta<strong>do</strong>s pelo Po<strong>de</strong>r Público não secaracterizam como “ativida<strong>de</strong> fornecida no merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> consumo, medianteremuneração”. Embora o CDC mencione, em seu artigo 22, que “os órgãos públicos, por siou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma <strong>de</strong>empreendimento, são obriga<strong>do</strong>s a fornecer serviços a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s, eficientes, seguros e, quanto aosessenciais, contínuos”, enten<strong>de</strong>mos tratar-se <strong>de</strong> serviços públicos que po<strong>de</strong>m serconcedi<strong>do</strong>s ou permiti<strong>do</strong>s e que são remunera<strong>do</strong>s diretamente pelo cidadão, mediantepagamento <strong>de</strong> taxa ou tarifa, o que não é o caso da saú<strong>de</strong> e da educação.Mas, ainda que não o CDC não se aplique às ações e serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,<strong>de</strong> qualquer forma, o CDC é um importante instrumento <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong>cidadão nas suas relações <strong>de</strong> consumo, <strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser aplica<strong>do</strong> nos serviços priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, mormente no tocante aos planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e ao seguro-saú<strong>de</strong> 35 .35. No Seminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>” (Doc. Fundação Pedroso o Horta, 1996), mencionou-se aimportância <strong>do</strong>s órgãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r. Cabe <strong>de</strong>stacar o pronunciamento <strong>de</strong> CleribertoVenâncio Pereira, representante <strong>do</strong> Conselho Regional <strong>de</strong> Medicina e <strong>do</strong> Deputa<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral SaraivaFelipe, respectivamente: “Nessa questão <strong>de</strong> regulamentação, encaro o IDEC como uma função muitoimportante assim como o PROCOM, nós temos que procurar sempre encentivar o cidadão, reclamar <strong>de</strong>produtos ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s etc.”“Eu acho que falta à população brasileira atuação <strong>de</strong> órgãos como IDEC, que pu<strong>de</strong>ssem trabalharprimeiro contrarian<strong>do</strong> a ocultação da informação pelas autorida<strong>de</strong>s, ou seja, a informação vista nãocomo concessão, como beneplácito, mas como um direito, e rompen<strong>do</strong> o pacto perverso entre os órgãosregula<strong>do</strong>res e as empresas interessadas. É óbvio que há pressão organizada e o Congresso fica cada vezmais sujeito ao lobby das partes interessadas, das empresas interessadas, com um acompanhamento alicontínuo, com informação escrita, bombar<strong>de</strong>an<strong>do</strong> os gabinetes”.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>265


Feitas essas consi<strong>de</strong>rações gerais, vamos a<strong>de</strong>ntrar em alguns temas específicosque julgamos constituir objeto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> preocupação nos dias <strong>de</strong> hoje. Além <strong>do</strong> maissão assuntos que, se por um la<strong>do</strong> exigem uma atuação rigorosa <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na salvaguarda<strong>de</strong> interesses coletivos, por outro, encontra um Esta<strong>do</strong> fraco e omisso diante daforte pressão <strong>do</strong>s lobbies mercantilistas que surgem nestas áreas. São áreas <strong>do</strong>minadaspelo capital, nas quais o dinheiro tem prevalência sobre a saú<strong>de</strong>. A tecnologia, muitasvezes, ao invés <strong>de</strong> estar a serviço da saú<strong>de</strong>, fica a serviço <strong>do</strong> capital, induzin<strong>do</strong> práticas<strong>de</strong>snecessárias em relação à oportunida<strong>de</strong> <strong>do</strong> procedimento.As áreas por nós <strong>de</strong>tectadas são: a) serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, b) planos e seguro-saú<strong>de</strong>,c) manipulações biológicas, d) meio ambiente e e) tecnologia na assistência à saú<strong>de</strong>,embora muitas outras existam, como exemplo, a saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r (objeto <strong>de</strong> disputa<strong>de</strong> competência entre o Ministério <strong>do</strong> Trabalho e os órgãos que compõem o SistemaUnico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, nas esferas fe<strong>de</strong>ral, estadual e municipal), a formulação da política <strong>de</strong>medicamentos, equipamentos, a fiscalização e a inspeção <strong>de</strong> alimentos, água, bebidas, aformulação e execução da política <strong>de</strong> sangue e seus <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s etc.a) Serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>Os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, como já vimos acima, po<strong>de</strong>m ser executa<strong>do</strong>s tanto peloPo<strong>de</strong>r Público como pela iniciativa privada. São serviços ambulatoriais, laboratoriais,hospitalares etc. <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s à <strong>de</strong>tecção e prevenção <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças e à sua cura.Não se po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar, no trato <strong>de</strong>sta questão, que por volta <strong>de</strong> 75% <strong>do</strong>sserviços <strong>de</strong> assistência médico-hospitalar hoje oferta<strong>do</strong>s pelo Po<strong>de</strong>r Público sãoexecuta<strong>do</strong>s pelo setor priva<strong>do</strong>, mediante contrato ou convênio com o SUS.Antigamente (Lei 2.312/54 - art. 6º), o Esta<strong>do</strong> concedia ajuda financeira à iniciativaprivada para que esta organizasse serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ainda que com intuito <strong>de</strong> lucro, oque a Constituição atual proíbe (art. 199 § 2º).Por isso é muito forte a participação <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> na prestação <strong>de</strong> serviçospúblicos à população, uma vez que o Esta<strong>do</strong>, ao regular a saú<strong>de</strong>, outrora <strong>de</strong>u preferênciaà organização <strong>de</strong> serviços priva<strong>do</strong>s, ainda que com recursos públicos, os quais <strong>de</strong>poiseram contrata<strong>do</strong>s pelo Esta<strong>do</strong>.O fato <strong>de</strong> o setor priva<strong>do</strong> <strong>do</strong>minar 75% <strong>do</strong>s serviços ofereci<strong>do</strong>s pelo SUS tornamaior a responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no controle <strong>de</strong>sses serviços.Dentro <strong>de</strong>ste tema lembramos alguns aspectos importantes como a organização<strong>do</strong>s serviços, a relação médico-paciente, a eficiência e eficácia da terapêutica, aincorporação tecnológica induzida pelo capital, a lucrativida<strong>de</strong> excessiva etc.A organização <strong>de</strong> serviços — sejam públicos ou priva<strong>do</strong>s — <strong>de</strong>ve-se dar a favorda saú<strong>de</strong> e não a favor <strong>de</strong> outros interesses. Ainda que nos serviços priva<strong>do</strong>s o seuintuito seja o lucro, não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que estamos atuan<strong>do</strong> em área consi<strong>de</strong>radapela Constituição como <strong>de</strong> “relevância pública”, fundada na dignida<strong>de</strong> da pessoahumana. A regulação neste campo não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rar este princípio constitucional.É lícito obter lucro atuan<strong>do</strong> na área da saú<strong>de</strong>, mas não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista que osvalores aqui protegi<strong>do</strong>s são a vida e a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana, tanto que o CódigoPenal tipifica como crime, a omissão <strong>de</strong> socorro (art. 135, CP) 36 .36. Ver recente artigo publica<strong>do</strong> no jornal “O Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo” (ca<strong>de</strong>rno A, pag. 2, <strong>do</strong> dia 29.10.96), daautoria <strong>do</strong> Dep. Fe<strong>de</strong>ral José Aristo<strong>de</strong>mo Pinotti, intitula<strong>do</strong> “A perda <strong>do</strong> caráter público da saú<strong>de</strong>”.266 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


A organização <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> priva<strong>do</strong>s não se po<strong>de</strong> dar isoladamente,<strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> <strong>de</strong> la<strong>do</strong> a existência <strong>de</strong> um sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que engloba ações eserviços executa<strong>do</strong>s pelo po<strong>de</strong>r público e pelo setor priva<strong>do</strong> (consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s <strong>de</strong> relevânciapública), o qual tem como prima<strong>do</strong> promover, proteger e recuperar a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s.É responsabilida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s Po<strong>de</strong>res Públicos assegurar a saú<strong>de</strong> dapopulação(art. 194 da CF).A <strong>do</strong>ença não po<strong>de</strong> ser tratada como mera merca<strong>do</strong>ria, merecen<strong>do</strong> regulaçãocompatível com o bem protegi<strong>do</strong>: a vida e a dignida<strong>de</strong> da pessoa humana.Os serviços priva<strong>do</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> não po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>svincular-se da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>nacional, caben<strong>do</strong> ao Esta<strong>do</strong>, através <strong>de</strong> atos regulatórios, induzir a iniciativa privada acumprir o objetivo constitucional <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> justa e solidária.Mesmo na vigência da Lei 2.312, <strong>de</strong> 3.9.54, cujo artigo 6º previa a ajuda financeira <strong>do</strong>governo à iniciativa privada, essa ajuda teria <strong>de</strong> dar-se “<strong>de</strong>ntro da orientação traçada pelosórgãos competentes”. Tal orientação é uma modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> regulação, ainda que sob aforma <strong>de</strong> planejamento. Hoje, a Constituição, em seu art. 199, § 2º, veda a <strong>de</strong>stinação <strong>de</strong>recursos públicos para auxílios ou subvenções sociais às instituições privadas com finslucrativos.O planejamento, como já vimos anteriormente, é fator primordial, uma vez que oEsta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve induzir o particular a agir <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as necessida<strong>de</strong>s da socieda<strong>de</strong>.Para isto o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ter metas preestabelecidas e formas <strong>de</strong> valorização daquelesque as cumprem, além <strong>de</strong> possuir mecanismos <strong>de</strong> restrição <strong>de</strong> direitos quan<strong>do</strong> as metassão <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas.A autorização para o funcionamento <strong>de</strong> serviço <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> não po<strong>de</strong> ser feita emcima da verificação, pura e simples, <strong>de</strong> questões <strong>de</strong> engenharia e salubrida<strong>de</strong>. Deve-selevar em conta a necessida<strong>de</strong> da socieda<strong>de</strong> quanto à sua localização, a tecnologia, aefetivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s etc.Também os princípios éticos, os valores morais no relacionamento médico-pacienteconstituem elementos fundamentais para a proteção e recuperação da saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>indivíduo. O po<strong>de</strong>r <strong>do</strong> médico sobre o paciente é indiscutível e não po<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> serconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> em qualquer discussão sobre ética na saú<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>scaso nas consultas, aslongas esperas, as idas e vindas, os inúmeros pedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> exames, a superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>médico etc. são questões que não po<strong>de</strong>m ficar fora da regulação. A regulação <strong>de</strong>stamatéria se insere fundamentalmente na competência <strong>do</strong>s conselhos <strong>de</strong> fiscalização <strong>do</strong>exercício profissional. Mas compete, também, a outras esferas estatais induzir a conduta<strong>do</strong> profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> a respeitar o cidadão, as suas individualida<strong>de</strong>s, idiossincrasiasetc., não bastan<strong>do</strong> para tanto a simples edição <strong>de</strong> normas a respeito <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadasmatérias, mas uma atuação indutora e fiscaliza<strong>do</strong>ra eficaz. (Lembramos que a Lei 8.080/90 dispôs, em seu artigo 7º, como princípios <strong>do</strong> SUS a “preservação da autonomia dapessoa na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> sua integrida<strong>de</strong> física e moral”; a “igualda<strong>de</strong> na assistência à saú<strong>de</strong>,sem preconceitos ou privilégios <strong>de</strong> qualquer espécie”; o “direito à informação, às pessoasassistidas, sobre a sua saú<strong>de</strong>”).A mudança da conduta <strong>do</strong> médico perante situações que requer uma condutaético-social, como aquelas que se referem a pacientes terminais, pacientes com <strong>do</strong>ençascrônicas, abortos legais, recém-nasci<strong>do</strong>s <strong>de</strong> alto-risco ou com <strong>de</strong>ficiências graves,prolongamento quase-artificial da vida, custos excessivos (ou extorsivos), esperasexcessivas etc. não se modificam com a simples edição <strong>de</strong> normas. São situações queSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>267


exigem um controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, muito mais induzi<strong>do</strong> que imposto. São comportamentosque só se alteram se a socieda<strong>de</strong> pu<strong>de</strong>r ser ouvida e o ensino incorporar esses reclamos,forman<strong>do</strong> profissionais que voltem a valorizar o aspecto humano da medicina, em franco<strong>de</strong>saparecimento nos dias <strong>de</strong> hoje, além da necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se encontrar meios <strong>de</strong> fiscalizare avaliar permanentemente o <strong>de</strong>sempenho <strong>de</strong>sses profissionais, com ampla informaçãoao cidadão. Os conselhos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> locais são fóruns importantes para a discussão <strong>do</strong>assunto, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, junto com os conselhos fe<strong>de</strong>rais e estaduais <strong>de</strong> fiscalização da profissãoe os órgãos <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r ajudar na mudança <strong>do</strong> comportamento ético-socialna relação-médico paciente 37 .b) Planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e o seguro-saú<strong>de</strong>Ao falar em regulação da saú<strong>de</strong> não se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> examinar a questão <strong>do</strong>splanos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong> seguro-saú<strong>de</strong>, por tratar-se <strong>de</strong> um comércio que atinge 35 milhões<strong>de</strong> pessoas, com bilhões <strong>de</strong> dólares envolvi<strong>do</strong>s, e que atua num campo consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> <strong>de</strong>relevância pública pela Constituição.Apenas para situar o assunto, lembramos que os contratos <strong>de</strong> seguro-saú<strong>de</strong> e <strong>do</strong>splanos <strong>de</strong> pré-pagamento estão regula<strong>do</strong>s no Decreto-Lei 73, <strong>de</strong> 21.11.66 e em resoluçõese circulares da Superintendência <strong>do</strong> Seguro Priva<strong>do</strong> - SUSEP e <strong>do</strong> Conselho Nacional<strong>do</strong> Seguro Priva<strong>do</strong> - CNPS.A legislação é antiga e não acompanhou as inovações ocorridas na área da saú<strong>de</strong>,principalmente na forma <strong>de</strong> organização das mais diversas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> contratos<strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>, que têm sempre como objeto a cobertura <strong>de</strong> custos <strong>de</strong> assistênciamédica e hospitalar prestada em re<strong>de</strong> cre<strong>de</strong>nciada.A maioria <strong>de</strong>les são típicos contratos <strong>de</strong> seguro, pois têm como objeto o riscofuturo e aleatório da ocorrência <strong>de</strong> um agravo à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> contrata<strong>do</strong>. O pagamento dasmensalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> contrato <strong>de</strong>corre da simples celebração <strong>do</strong> contrato, enquanto o riscoda ocorrência da <strong>do</strong>ença situa-se no campo das probabilida<strong>de</strong>s. São espécies <strong>do</strong> contrato<strong>de</strong> seguro regula<strong>do</strong> nos artigos 129 a 135 <strong>do</strong> menciona<strong>do</strong> Decreto-Lei 73/66.Entretanto, uma série <strong>de</strong> exigências feitas pelo DL 73/66, como a da livre-escolha<strong>do</strong> médico e <strong>do</strong> hospital, não são respeitadas, sob a alegação <strong>de</strong> que muitos planos <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> não têm a característica <strong>de</strong> contrato <strong>de</strong> seguro, não se lhes aplican<strong>do</strong>, portanto, asnormas <strong>do</strong> DL 73/63.Também há a questão <strong>do</strong> pagamento <strong>de</strong> imposto: as entida<strong>de</strong>s que ven<strong>de</strong>m<strong>de</strong>terminadas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> estão ou não sujeitas ao pagamento <strong>do</strong>ISS? São ou não ven<strong>de</strong><strong>do</strong>ras <strong>de</strong> seguro?Outra questão também relevante é o fato <strong>de</strong> o DL 73/66 <strong>de</strong>terminar que asentida<strong>de</strong>s segura<strong>do</strong>ras po<strong>de</strong>m organizar-se sob a forma <strong>de</strong> S/A ou <strong>de</strong> cooperativas. AConstituição, por sua vez, reza em seu artigo 5º, XVIII, que in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> autorização acriação <strong>de</strong> cooperativas, enquanto o artigo 192, II, <strong>de</strong>termina que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> autorização37. Nos últimos três anos, o número <strong>de</strong> queixas protocoladas no CRM só vem aumentan<strong>do</strong>. Passou <strong>de</strong>1.207 em 93 para 1.473 em 94 e subiu para 1.509 no ano passa<strong>do</strong>. “São <strong>de</strong>núncias que envolvem falhasna relação médico-pacinete, má prática por conta das atuais condições <strong>de</strong> trabalho e uso pouco criteriosoda tecnologia”(A Folha <strong>de</strong> São Paulo, 3º Ca<strong>de</strong>rno, pág. 1, <strong>de</strong> 6/10/96).268 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


o funcionamento <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seguro. Entretanto, até o presente momento não foieditada a lei complementar mencionada no art. 192.As cooperativas médicas - UNIMEDs, em sua essência, celebram contratos <strong>de</strong>seguro, pois contratam a cobertura <strong>de</strong> dano eventual e futuro à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> segura<strong>do</strong>. Éum contrato <strong>de</strong> risco futuro e aleatório, cujo valor é calcula<strong>do</strong> em cima das probabilida<strong>de</strong>sda ocorrência <strong>do</strong> risco.Realmente, não faz senti<strong>do</strong> a comercialização <strong>de</strong> planos e seguro-saú<strong>de</strong> por cooperativas,pois as mesmas gozam <strong>de</strong> privilégios fiscais que não se coadunam com as suasfinalida<strong>de</strong>s mercantis, a não ser que se exija contrapartida compatível com os privilégiosconcedi<strong>do</strong>s.Também não é legítimo que algumas entida<strong>de</strong>s ven<strong>de</strong><strong>do</strong>ras <strong>de</strong> planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>se organizem sob a forma <strong>de</strong> entida<strong>de</strong>s sem fins lucrativos, embora exerçam ativida<strong>de</strong>tipicamente comercial, incompatível com a benemerência e filantropia, ainda mais se seconsi<strong>de</strong>rar que a assistência social tem por fim garantir aos necessita<strong>do</strong>s os mínimossociais, nas áreas da proteção à família, à maternida<strong>de</strong>, à infância, à a<strong>do</strong>lescência e àvelhice; ao amparo às crianças e a<strong>do</strong>lescentes carentes; a promoção da integração aomerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho; a habilitação e reabilitação das pessoas porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> <strong>de</strong>ficiênciae a promoção <strong>de</strong> sua integração à vida comunitária.Ora, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse conceito que nos é da<strong>do</strong> pela Lei Orgânica da Assistência Social(Lei 8.742/93) nenhuma entida<strong>de</strong> que atua no ramo <strong>de</strong> planos ou seguro-saú<strong>de</strong> po<strong>de</strong>ser consi<strong>de</strong>rada uma entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> “assistência social”, nos termos da Constituição, arts.150, VI, c e art. 195, § 7º, e, sen<strong>do</strong> assim, estaria impedida <strong>de</strong> gozar da imunida<strong>de</strong> <strong>de</strong>impostos e da isenção das contribuições sociais.Aliás — em função <strong>do</strong> conceito fixa<strong>do</strong> na Lei Orgânica da Assistência Social arespeito <strong>do</strong>s mínimos sociais, e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> que a saú<strong>de</strong> tem conceito próprio, nãoestan<strong>do</strong> mais compreendida <strong>de</strong>ntro da previdência e assistência social, como ocorriaanteriormente à atual Constituição — faz-se necessário aprofundar tal estu<strong>do</strong> em razão<strong>do</strong>s privilégios fiscais, inconcebíveis em área <strong>de</strong> pura mercantilização. No caso <strong>do</strong>s i<strong>do</strong>sos,os cálculos atuariais elevam sobremaneira o valor das mensalida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s seguros e planos<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> que acaba sen<strong>do</strong> fator exclu<strong>de</strong>nte, tangen<strong>do</strong>-os da cobertura assistencial. (E aassistência social tem como um <strong>de</strong> seus objetivos proteger o i<strong>do</strong>so carente). A aplicação<strong>do</strong> disposto no Código Tributário precisa ser revisto em razão da nova conceituação daassistência social.Vemos que estamos em área que necessita <strong>de</strong> urgente regulação, ainda mais se sepensar no crescimento brutal <strong>de</strong>sse merca<strong>do</strong>, em razão das próprias condições precárias<strong>do</strong>s serviços públicos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Não po<strong>de</strong>mos também esquecer a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção ao consumi<strong>do</strong>r nafixação das exclusões <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças, na <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> atendimento, novalor das mensalida<strong>de</strong>s e seus reajustes, nos prazos <strong>de</strong> carência, na conceituação <strong>de</strong><strong>do</strong>enças genéticas, na restrição à livre escolha <strong>de</strong> médico e hospital etc., as quais, namaioria das vezes, lesam o consumi<strong>do</strong>r.Também não po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> criticar a ausência <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> noConselho Nacional <strong>de</strong> Seguro Priva<strong>do</strong> - CNPS, <strong>do</strong> qual era membro <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1966 até oano <strong>de</strong> 1990.Com a reforma administrativa <strong>do</strong> Governo Collor, o Ministério da Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixou<strong>de</strong> fazer parte <strong>do</strong> CNSP. Muitas outras reformas ocorreram neste ínterim, sem, entretanto,SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>269


nenhuma <strong>de</strong>las reincluir o Ministério da Saú<strong>de</strong> no CNSP, o que não faz senti<strong>do</strong>,consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> o seu papel <strong>de</strong> Direção Nacional <strong>do</strong> SUS.A regulação neste campo merece atenção rigorosa <strong>do</strong>s nossos legisla<strong>do</strong>res, pois éuma área com pouco controle <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, embora a socieda<strong>de</strong> venha reclaman<strong>do</strong> a suaatuação.E para <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r o seu direito em área com tão pouco controle, os consumi<strong>do</strong>restêm frequenta<strong>do</strong> os tribunais para fazer valer o seu direito.Assim, urge estabelecer critérios que: a) tornem transparente a composição <strong>de</strong>preços <strong>do</strong>s planos e seguros-saú<strong>de</strong>; b) exijam uma cobertura mínima <strong>de</strong> serviços, <strong>de</strong>finidapelos órgãos públicos competentes e não pelas próprias segura<strong>do</strong>ras, conforme temsi<strong>do</strong> preconiza<strong>do</strong>; e c) <strong>de</strong>finam a natureza jurídica <strong>do</strong>s contratos <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>.São ou não contratos <strong>de</strong> seguro? Se obrigam ou não a reservas técnicas, ao resseguro,cosseguro? 38 .Temos conhecimento que tramitam no Congresso Nacional <strong>do</strong>is projetos <strong>de</strong> leisobre o assunto: um que cuida da regulação <strong>do</strong>s planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (Projeto <strong>de</strong> Lei 4425/94 e apensos)e outro que trata <strong>do</strong> ressarcimento ao Po<strong>de</strong>r Público das <strong>de</strong>spesas havidascom beneficiários <strong>de</strong> planos e seguro-saú<strong>de</strong> 39 .A regulação <strong>de</strong> assunto tão relevante não po<strong>de</strong> ser realizada sem audiência <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s os segmentos envolvi<strong>do</strong>s, principalmente o Ministério da Saú<strong>de</strong>, a quem cabe<strong>de</strong>finir a política nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> 40 .38. O Conselho Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Medicina editou em 11-11-93 a Resolução 1.401 obrigan<strong>do</strong> as entida<strong>de</strong>s quecomercializam planos e seguros saú<strong>de</strong> a garantir o atendimento a todas as enfermida<strong>de</strong>s relacionadasno Código Internacional <strong>de</strong> Doenças da Organização Mundial da Saú<strong>de</strong>.39. Começan<strong>do</strong> pelo segun<strong>do</strong>, o projeto <strong>de</strong> ressarcimento, po<strong>de</strong>mos afirmar que esta questão vem sen<strong>do</strong>discutida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1991, em diversos fóruns, ten<strong>do</strong> si<strong>do</strong> objeto <strong>de</strong> leis estaduais e municipais isoladas.Muitos alegam que não tem fundamento jurídico o menciona<strong>do</strong> ressarcimento.Ora, tanto tem fundamento que a Lei 8.212/91 (Lei Orgânica da Segurida<strong>de</strong> Social) em seu artigo 27,parágrafo único, fez tal <strong>de</strong>terminação com relação às segura<strong>do</strong>ras que comercializam o seguro obrigatório<strong>de</strong> veículos, estipulan<strong>do</strong> que 50% <strong>do</strong> valor total <strong>do</strong> prêmio recolhi<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong>posita<strong>do</strong> no Fun<strong>do</strong>Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> para o financiamento <strong>de</strong> ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, uma vez que a maioria daspessoas aci<strong>de</strong>ntadas são atendidas em hospitais públicos, embora tenham pago um seguro-obrigatóriopara segura<strong>do</strong>ras privadas arcarem com os custos <strong>de</strong> suas <strong>de</strong>spesas.A questão é simples: bastaria a aprovação da lei no Congresso Nacional para que as entida<strong>de</strong>s públicaspu<strong>de</strong>ssem, todas elas, passar a receber o reembolso <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>spesas.Quanto ao projeto <strong>de</strong> lei que trata da regulação <strong>do</strong>s planos e seguro-saú<strong>de</strong>, o substitutivo mantémdiversas distorções existentes na prática.Não coíbe a exclusão abusiva <strong>de</strong> diversas enfermida<strong>de</strong>s, mantém limites máximos <strong>de</strong> dias <strong>de</strong> internação,não <strong>de</strong>lega nenhuma competência normativa ao Ministério da Saú<strong>de</strong> nem o integra no CNSP, emboraacrescente diversos representantes (seis) das entida<strong>de</strong>s nacionais representativas das medicinas <strong>de</strong> grupo,segura<strong>do</strong>ras, cooperativas etc., não fixa prazo máximo para as carências, não fornece nenhuma proteçãoao i<strong>do</strong>so, permitin<strong>do</strong> que as entida<strong>de</strong>s segura<strong>do</strong>ras aumentem o valor das mensalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong>com o aumento da ida<strong>de</strong> <strong>do</strong> segura<strong>do</strong>, ainda que o i<strong>do</strong>so tenha, quan<strong>do</strong> jovem, celebra<strong>do</strong> o seu contrato<strong>de</strong> seguro.Fixa um mínimo <strong>de</strong> exigência para a concessão <strong>de</strong> registro <strong>de</strong> funcionamento da entida<strong>de</strong>, que seráatribuição <strong>do</strong> Ministério da Fazenda e não <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>, o único que tem condições <strong>de</strong> aferir,perante as segura<strong>do</strong>ras, se as instalações e os equipamentos são a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s, se os recursos humanossão qualifica<strong>do</strong>s etc.Mantém a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> cooperativas médicas comercializarem seguros e planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, o queentra em conflito com o artigo 192, II, da CF. Não trata das reservas financeiras.Cria uma comissão consultiva no âmbito <strong>do</strong> CNSP composta por representantes da área.270 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


c) As manipulações biológicasAs <strong>de</strong>scobertas genéticas e o seu campo investigatório estão-se amplian<strong>do</strong> tantoe tão rapidamente que a socieda<strong>de</strong> não terá como prevenir o impacto <strong>de</strong> seus avançosna vida <strong>do</strong> homem. A socieda<strong>de</strong> ainda nem se <strong>de</strong>u conta <strong>do</strong> tamanho <strong>do</strong> <strong>de</strong>safio que seimpõe a to<strong>do</strong>s: conciliar o controle da investigação científica com a sua necessida<strong>de</strong>para proteção e recuperação da saú<strong>de</strong>.As pesquisas científicas no campo da genética fogem ao controle das ciênciassociais, pois nunca se sabe quais serão os seus resulta<strong>do</strong>s e o que po<strong>de</strong>rá ser feito <strong>de</strong>ntro<strong>de</strong> um laboratório.Os conflitos neste campo são inúmeros: se por um la<strong>do</strong> tememos a ameaça àdignida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homem nas manipulações biológicas, por outro também tememos umareação negativa ao progresso das ciências.Giovanni Berlin<strong>de</strong>r e Volnei Garrafa 41 , em excelente obra “O merca<strong>do</strong> humano”,mencionam o dilema moral da ciência:“Do mesmo mo<strong>do</strong>, a comercialização <strong>de</strong> partes <strong>do</strong> corpo humano não <strong>de</strong>ve estimulara rejeição ou a censura nem da ciência mo<strong>de</strong>rna, nem <strong>de</strong> suas inúmeras aplicaçõesbenéficas.Porém o risco existe. Hoje, a reflexão <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> moral sobre a ciência parecedilacerada, baseada nas suas aplicações biomédicas, entre tendências opostas. De umla<strong>do</strong> po<strong>de</strong> afirmar-se que uma bioética justificável correspon<strong>de</strong>ria ao princípio <strong>de</strong> quetu<strong>do</strong> aquilo que é real, não só é racional como também moral. Isto significa, em termospráticos, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que ‘tu<strong>do</strong> que po<strong>de</strong> ser feito, <strong>de</strong>ve ser feito’. Por outro la<strong>do</strong>, o me<strong>do</strong><strong>de</strong> que a vida diária e o próprio futuro da humanida<strong>de</strong> sejam invadi<strong>do</strong>s e toma<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mo<strong>do</strong> violento por tecnologias ameaça<strong>do</strong>ras po<strong>de</strong> levar à procura <strong>de</strong> um culpa<strong>do</strong> e aencontrá-lo erroneamente na matriz das técnicas, ou seja, na própria ciência. Po<strong>de</strong> levar,então, a invocar por esta razão, limites e restrições à sua liberda<strong>de</strong>. Nestas condições, abioética po<strong>de</strong> ser usada por alguns como instrumento para afirmar <strong>do</strong>utrinasanticientíficas, e por outros po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como um irritante obstáculo ao trabalho<strong>do</strong>s cientistas e às ativida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> setor bioindustrial, ou ainda po<strong>de</strong> ser usada como uminstrumento para negar o valor da ciência e como uma validação <strong>de</strong> posições pré ouanticientíficas. Orientar-se entre essas teses opostas não é tarefa fácil. É a própriarealida<strong>de</strong>, os próprios casos, na verda<strong>de</strong>, que são antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> complica<strong>do</strong>s....Toda essa <strong>de</strong>sorganização <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ais e práticas, enfim, não comprometem somenteum povo, mas toda a espécie humana, que se tornou inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte em relação aos40. O Deputa<strong>do</strong> Fe<strong>de</strong>ral Eduar<strong>do</strong> Jorge assim se pronunciou a respeito <strong>do</strong> assunto: “A regulamentação <strong>do</strong>splanos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> já vem sen<strong>do</strong> tentada há muito tempo no Congresso. Sou <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> há alguns anos e jáacompanhei, na Comissão <strong>de</strong> Segurida<strong>de</strong> Social, várias tentativas <strong>de</strong> fazê-lo, e sempre um lobbypo<strong>de</strong>rosíssimo das empresas <strong>de</strong> medicina <strong>de</strong> grupo não <strong>de</strong>ixa essas votações chegarem ao término.Por que acontece isso? É um po<strong>de</strong>r muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> lobby no Congresso Nacional interessa<strong>do</strong> na nãoregulamentação. Querem ficar completamente soltos para aplicar os planos, ter lucros in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>qualquer regulamentação e proteção ao consumi<strong>do</strong>r”. Seminário - O cidadão e a saú<strong>de</strong>, <strong>do</strong>cumentoedita<strong>do</strong> pela Fundação Pedrosoo Horta, 1996.41. “O merca<strong>do</strong> humano”, editora UnB, 1ª edição, pág. 147.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>271


fatos, ainda que por sorte se mantenha diversificada em termos <strong>de</strong> história, leis e culturas.A relação entre inter<strong>de</strong>pendência, diversida<strong>de</strong> e liberda<strong>de</strong> po<strong>de</strong>rá tornar-se um fatorpositivo somente se nas escolhas práticas e nas orientações da bioética for reforçada, nanossa opinião, as tendências ao pluralismo e à tolerância”.A possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se po<strong>de</strong>r usar teci<strong>do</strong>, órgãos e partes <strong>do</strong> corpo humano embenefício <strong>do</strong> homem traz em si o outro la<strong>do</strong> da moeda que não po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>e necessita <strong>de</strong> proteção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>: o homem à mercê <strong>de</strong> um merca<strong>do</strong> <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong> <strong>de</strong>qualquer princípio moral, num comércio <strong>de</strong> vidas, sem nenhuma dimensão da dignida<strong>de</strong>da pessoa humana.Po<strong>de</strong>mos citar os conflitos que po<strong>de</strong>m gerar a “barriga <strong>de</strong> aluguel”, ou o aluguel<strong>de</strong> úteros, o empréstimo remunera<strong>do</strong> <strong>do</strong> corpo humano para pesquisas científicas, apatente <strong>de</strong> genomas, a venda <strong>de</strong> órgãos duplos, como o rim, o congelamento <strong>de</strong> espermae óvulos, a fertilização “in vitro”, os bancos <strong>de</strong> esperma, a reprodução <strong>de</strong> embriões paraexperimentação, o <strong>de</strong>scarte <strong>de</strong> embriões exce<strong>de</strong>ntes etc.A quem pertence o filho <strong>de</strong> uma mulher que alugou o seu útero para gerá-lo?como proteger os casamentos consanguíneos numa socieda<strong>de</strong> que compra esperma ouóvulo <strong>de</strong> um banco <strong>de</strong> teci<strong>do</strong>? o homem po<strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> patente? po<strong>de</strong>-se reproduzirparte <strong>do</strong> corpo humano em laboratório e patenteá-lo? po<strong>de</strong> haver <strong>de</strong>scarte <strong>de</strong> embriões?É váli<strong>do</strong> o contrato <strong>de</strong> aluguel <strong>de</strong> útero?São situações reais e não ficção científica, todas causa<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> indagações, controvérsias,perplexida<strong>de</strong>s.Não se po<strong>de</strong> per<strong>de</strong>r <strong>de</strong> vista também a questão da utilização <strong>de</strong> partes <strong>do</strong> corpo<strong>de</strong> animais <strong>de</strong> espécies diferentes que guar<strong>de</strong>m alguma afinida<strong>de</strong> (são os chama<strong>do</strong>sxenotransplantes) e as suas consequências, inclusive na transmissão <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças.Lembremos que o vírus da AIDS po<strong>de</strong> ter si<strong>do</strong> uma mutação <strong>de</strong> um vírus <strong>do</strong> macacotransmiti<strong>do</strong> casualmente pelos babuínos ao ser humano 42 .O Esta<strong>do</strong> não po<strong>de</strong> ficar inerte diante <strong>de</strong> tais questões, competin<strong>do</strong>-lhe regulartu<strong>do</strong> aquilo que estiver ao seu alcance para não permitir que a ciência se volte contra opróprio homem.A Constituição fixou, em seu artigo 199, § 4º, que “a lei disporá sobre as condições eos requisitos que facilitem a remoção <strong>de</strong> órgãos, teci<strong>do</strong>s e substâncias humanas para fins <strong>de</strong>transplante, pesquisa e tratamento, bem como a coleta, processamento e transfusão <strong>de</strong> sangue eseus <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> veda<strong>do</strong> to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> comercialização”. Em consequência <strong>de</strong>ste coman<strong>do</strong>constitucional foram edita<strong>do</strong>s a Lei nº 8.489, <strong>de</strong> 18-9-92 e o Decreto nº 879, <strong>de</strong> 22-7-93que tratam <strong>do</strong> transplante <strong>de</strong> órgãos, teci<strong>do</strong>s e partes <strong>do</strong> corpo humano, não estan<strong>do</strong> aicompreendi<strong>do</strong>s o sangue, o esperma e o óvulo, ambos revoga<strong>do</strong>s pela recente Lei n 09434, <strong>de</strong> 4.2.97Também temos a Lei nº 8.974, <strong>de</strong> 5.1.95, que trata da biosegurança, e suaregulamentação, o Decreto nº 1752, <strong>de</strong> 20-12-95. Quanto ao sangue, até o presentemomento não foi expedida nenhuma lei 43 .Há, ainda, a Lei nº 8.501, <strong>de</strong> 30-11-92 que trata <strong>do</strong> cadáver não reclama<strong>do</strong>.42. “O merca<strong>do</strong> humano”, conforme citação anterior.272 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Na ausência <strong>de</strong> legislação maior, o Conselho Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> editou a Resoluçãonº 196, <strong>de</strong> 10-10-96, que cuida da utilização <strong>do</strong> ser humano para fins <strong>de</strong> pesquisa.Até o presente momento as fertilizações in vitro, prática rotineira no nosso meiocientífico, não foram objeto <strong>de</strong> mínima regulação.São extensas as implicações jurídicas <strong>de</strong>sse tema no campo da bioética. A suaregulação <strong>de</strong>ve ser feita com base nos princípios constitucionais da liberda<strong>de</strong>, dadignida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> direito à vida, à saú<strong>de</strong>, à igualda<strong>de</strong>, à segurança, à indisponibilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>corpo humano, à justiça e a outros valores éticos e culturais sedimenta<strong>do</strong>s na nossasocieda<strong>de</strong>. No dizer <strong>de</strong> Sérgio Ferraz 44 “A ciência está agora permitin<strong>do</strong> ‘brincar <strong>de</strong> Deus’. Apartir daí, é impossível <strong>de</strong>ixar que esse cabedal <strong>de</strong> conhecimentos se mantenha unicamente aoalvedrio <strong>de</strong> seus cria<strong>do</strong>res, sem regulação alguma”.As questões aqui tratadas não envolvem nem dizem respeito apenas a uma nação;são temas <strong>de</strong> interesse supranacional que interessa à espécie humana in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<strong>de</strong> raízes étnicas, geografia ou cre<strong>do</strong> politico. Por isso, os trata<strong>do</strong>s internacionais <strong>de</strong>vemser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s como a principal fonte <strong>de</strong> regulação das manipulações biológicas.d) Meio ambienteO meio ambiente está reconheci<strong>do</strong> na Lei Orgânica da Saú<strong>de</strong> (art. 3º) como um <strong>do</strong>sfatores <strong>de</strong>terminantes e condicionantes da saú<strong>de</strong> da população.O meio ambiente é, junto com a saú<strong>de</strong> que <strong>de</strong>le <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, um direito individual <strong>de</strong>terceira geração, um bem indisponível protegi<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong>.Segun<strong>do</strong> os <strong>do</strong>utrina<strong>do</strong>res e especialistas no campo <strong>do</strong> Direito Ambiental e no <strong>de</strong>suas duas extensões, o Direito Ecológico e o Direito Urbanístico, a legislação brasileira éuma das mais completas e avançadas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, a começar da Constituição Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong>88, que tem um capítulo pioneiro e conceitualmente primoroso sobre o meio ambiente. Alegislação fe<strong>de</strong>ral infraconstitucional, as constituições estaduais e as leis orgânicas municipaisseguiram a esteira da Carta Republicana, inspirada na <strong>luta</strong> persistente dacomunida<strong>de</strong> ambientalista.Repassamos essa legislação, reunida, organicamente, por Edis Milaré 45 em suainsuperada obra “Legislação Ambiental <strong>do</strong> Brasil”. Nela verificamos que o Po<strong>de</strong>r Públicodas três esferas <strong>de</strong> governo dispõe <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o arsenal legislativo <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa e proteção <strong>do</strong>meio ambiente e, consequentemente, <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa da vida e da saú<strong>de</strong> humana.43. Embora a Constiituição tenha veda<strong>do</strong>, na forma da lei, a,comercialização <strong>do</strong> sangue e seus <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s,retiran<strong>do</strong>-os <strong>do</strong> comércio, até o presente momento esta lei não foi editada. Existem diversos projetos <strong>de</strong>lei que tramitam no Congresso Nacional <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1990, po<strong>de</strong>n<strong>do</strong> ser cita<strong>do</strong> o substitutivo <strong>do</strong> Dep. J.Linhares (que englobou os três projetos) e o projeto <strong>do</strong> Dep. Sérgio Arouca. Participei em 1994, daelaboração <strong>de</strong> um projeto <strong>de</strong> lei para a Secretaria da Saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo (na gestão <strong>do</strong> Dr.Cármino Antonio <strong>de</strong> Souza, médico hematologista da UNICAMP), que foi encaminha<strong>do</strong> à AssembléiaLegislativa, mas que até o presente momento não foi vota<strong>do</strong>. O referi<strong>do</strong> projeto muito bem tratou aquestão da não comercialização <strong>do</strong> sangue, ten<strong>do</strong> entendi<strong>do</strong> como passível <strong>de</strong> concessão, ofracionamento industrial <strong>do</strong> sangue.44 “As manipulações biológicas e princípios constitucionais: uma introdução.” Sérgio Antonio Fabris Editor,pág. 75.45. “Legislação Ambiental <strong>do</strong> Brasil” Edições APMP, 1991.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>273


Basta mencionar o estabeleci<strong>do</strong> no artigo 225 da Constituição Fe<strong>de</strong>ral:“Art. 225. To<strong>do</strong>s têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibra<strong>do</strong>, bem<strong>de</strong> uso comum <strong>do</strong> povo e essencial à sadia qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, impon<strong>do</strong>-se ao Po<strong>de</strong>rPúblico e à coletivida<strong>de</strong> o <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> <strong>de</strong>fendê-lo e preservá-lo para as presentes e futurasgerações.§ 1º. Para assegurar a efetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse direito, incumbe ao Po<strong>de</strong>r Público:I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejoecológico das espécies e ecossistemas;II - preservar a diversida<strong>de</strong> e a integrida<strong>de</strong> <strong>do</strong> patrimônio genético <strong>do</strong> País efiscalizar as entida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>dicadas à pesquisa e manipulação <strong>de</strong> material genético;III - <strong>de</strong>finir, em todas as unida<strong>de</strong>s da Fe<strong>de</strong>ração, espaços territoriais e seus componentesa serem especialmente protegi<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> a alteração e a supressão permitidassomente através <strong>de</strong> lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integrida<strong>de</strong> <strong>do</strong>satributos que justifiquem sua proteção;IV - exigir, na forma da lei, para instalação <strong>de</strong> obra ou ativida<strong>de</strong> potencialmentecausa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> significativa <strong>de</strong>gradação <strong>do</strong> meio ambiente, estu<strong>do</strong> prévio <strong>de</strong> impactoambiental, a que se dará publicida<strong>de</strong>;V - controlar a produção, a comercialização e o emprego <strong>de</strong> técnicas, méto<strong>do</strong>s esubstâncias que comportem risco para a vida, a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e o meio ambiente;VI - promover a educação ambiental em to<strong>do</strong>s os níveis <strong>de</strong> ensino e a conscientizaçãopública para a preservação <strong>do</strong> meio ambiente;VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquemem risco sua função ecológica, provoquem a extinção <strong>de</strong> espécies ou submetam osanimais a cruelda<strong>de</strong>.”...Mas a realida<strong>de</strong> da vida urbana e rural tem mostra<strong>do</strong> pela imprensa e televisãoque não basta a existência <strong>de</strong> legislação mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> proteção ambiental, com seus mandamentosdirigi<strong>do</strong>s às autorida<strong>de</strong>s públicas das três esferas <strong>de</strong> governo, aos cidadãos e aosetor econômico. É indispensável que os órgãos competentes para atuar, <strong>de</strong> fato atuem;que a administração pública (fe<strong>de</strong>ral, estadual e municipal) exerça o respectivo po<strong>de</strong>r<strong>de</strong> policia administrativa (ambiental); e que o Município, na medida <strong>do</strong> interesse local,pratique a polícia ambiental em <strong>de</strong>fesa da saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s seus munícipes (CF, arts. 23, VI; 30,I, II e VII).É o momento em que a chamada polícia ambiental penetra no âmbito da vigilânciasanitária.Aqui, notamos que é <strong>de</strong>ficiente a regulamentação da matéria na esfera municipalou, melhor dizen<strong>do</strong>, que:a) falta aos órgãos municipais <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> um marco <strong>de</strong> referência legal e operacionalpara agirem eficaz e efetivamente no meio ambiente; eb) faltam as condições <strong>de</strong> recursos humanos, financeiros e materiais paraexecutar a polícia ambiental ou a vigilância sanitária <strong>do</strong> meio ambiente (p. ex.: sãoinsuficientes o pessoal habilita<strong>do</strong> e os meios financeiros e materiais para o exercício da274 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


fiscalização da poluição em todas as suas formas, <strong>do</strong> <strong>de</strong>smatamento, da fabricação <strong>de</strong>produtos ina<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>s para o consumo humano).Cabe, também, lembrar a importância <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na conscientização dasocieda<strong>de</strong> na <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> meio ambiente. A sua preservação <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> nível <strong>de</strong>consciência da coletivida<strong>de</strong>. Aqui as práticas educativas <strong>de</strong>vem ser priorizadas.e) A tecnologia na assistência à saú<strong>de</strong>A incorporação tecnológica na assistência à saú<strong>de</strong> constitui hoje um aspecto a serconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> com muito cuida<strong>do</strong>, pois se <strong>de</strong> um la<strong>do</strong> não se po<strong>de</strong> ignorar o seu benefíciopara a saú<strong>de</strong>, por outro não se po<strong>de</strong> esquecer o peso <strong>do</strong> capital em <strong>de</strong>trimento da saú<strong>de</strong>.A mesma tecnologia que po<strong>de</strong> salvar o indíviduo também po<strong>de</strong> estar sen<strong>do</strong>utilizada apenas a serviço <strong>do</strong> capital. Sabemos que quem <strong>de</strong>fine o grau <strong>de</strong> incorporaçãoda tecnologia na saú<strong>de</strong> são os seus produtores, jamais o paciente. A divulgação dasinovações farmacológicas e tecnológicas e a sua utilida<strong>de</strong> para a saú<strong>de</strong> são induzidaspelos seus fabricantes. Aqui a lei <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> se inverte, sen<strong>do</strong> a <strong>de</strong>manda induzidapela oferta. A propaganda <strong>de</strong> certos planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ven<strong>de</strong>n<strong>do</strong> antecipadamente examessofistica<strong>do</strong>s, induzin<strong>do</strong> o indivíduo a crer que sem tais exames não po<strong>de</strong>rá se protegercontra a <strong>do</strong>ença; a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medicamentos novos cuja eficácia é duvi<strong>do</strong>sa; arealização <strong>de</strong> exames <strong>de</strong>snecessários para manter a máquina em funcionamento e cobriro seu custo; a indução <strong>de</strong> que o que é mo<strong>de</strong>rno é melhor para a saú<strong>de</strong>, tu<strong>do</strong> isto <strong>de</strong>ve serconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> na regulação <strong>do</strong>s serviços e ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.O custo-benefício <strong>de</strong>ve ser analisa<strong>do</strong> sempre que se incorporar uma novatecnologia cara e sofisticada, pois a saú<strong>de</strong> pública jamais terá recursos suficientes paraenfrentar esse avanço tecnológico e nem temos a certeza <strong>de</strong> sua efetivida<strong>de</strong> em muitasocasiões.O Ministério da Saú<strong>de</strong> tem que avaliar a introdução <strong>de</strong> novas tecnologias emedicamentos a fim <strong>de</strong> evitar que sejam coloca<strong>do</strong>s no merca<strong>do</strong> produtos nem sempreeficazes, ou cuja eficácia não se coaduna com o seu custo. A utilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> equipamento<strong>de</strong>ve ser avaliada sempre que se pensar em incorporar uma nova tecnologia em umhospital e a autorização para a fabricação <strong>de</strong> um equipamento ou um medicamento<strong>de</strong>ve levar em conta o bem protegi<strong>do</strong>, que é a vida humana 46 .Aqui também não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser pelo menos lembrada a questão daspatentes <strong>de</strong> medicamentos e outros insumos que interferem diretamente com a saú<strong>de</strong>.A regulação <strong>de</strong> tema tão relevante para as políticas públicas não foi <strong>de</strong>batida o suficienteem fóruns como os Conselhos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, ten<strong>do</strong> havi<strong>do</strong> forte pressão <strong>de</strong> lobbieseconômicos po<strong>de</strong>rosos, como a indústria farmacêutica.No presente caso, a Lei <strong>de</strong> Patentes, como é chama<strong>do</strong> o Código <strong>de</strong> Proprieda<strong>de</strong>Industrial (Lei 9.279, <strong>de</strong> 14.05.96) não levou em conta a necessária conciliação que <strong>de</strong>ve46. “A indústria farmacêutica controla a cabeça <strong>do</strong> médico e este por sua vez, faz com que o consumi<strong>do</strong>r,ou seja, o paciente, ao receber uma primeira prescrição <strong>de</strong>senvolva o fenômeno da cascata negativa.Cada um <strong>de</strong> nós, ao receber uma prescrição, vai passar a sugerir isto para o amigo, para o vizinho, parao parente. Não é possível, isso não existe no Primeiro Mun<strong>do</strong>. Um cidadão inglês não faz isso, umcidadão americano também não”. Pronunciamento <strong>de</strong> José Rubens A. Bonfim, Presi<strong>de</strong>nte da Sobravimeno Seminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>”. publicação da Fundação Pedrosoo Horta, 1996.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>275


haver entre os interesses nacionais e os interesses internacionais e <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>smundiais. O Esta<strong>do</strong>, como agente normativo e regula<strong>do</strong>r da ativida<strong>de</strong> econômica (art.174, da CF) há <strong>de</strong> obe<strong>de</strong>cer aos noves princípios constitucionais inscritos no art. 170,principalmente o da soberania nacional e da redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s regionais esociais 47 . Não se po<strong>de</strong> olhar apenas a expressão “livre iniciativa”, isoladamente; sãonove os valores ali inscritos; to<strong>do</strong>s <strong>de</strong> observância obrigatória e que <strong>de</strong>vem ser analisa<strong>do</strong>sconjuntamente.CONCLUSÃOEm face <strong>do</strong>s apontamentos feitos, po<strong>de</strong>mos concluir que a regulação na área dasaú<strong>de</strong> pressupõe, em primeiro lugar, a existência <strong>de</strong> um sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,compreensivo das ativida<strong>de</strong>s públicas e privadas, <strong>de</strong>scentraliza<strong>do</strong>, com direção únicaem cada esfera <strong>de</strong> governo, regionaliza<strong>do</strong>, hierarquiza<strong>do</strong> em níveis <strong>de</strong> complexida<strong>de</strong>crescente e com participação da comunida<strong>de</strong>.Mas esse reconhecimento <strong>de</strong> um sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> não basta — operativamente— para <strong>de</strong>marcar, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong>finitivo, o campo da regulação, que é vasto eabrange aspectos como estes:a) que a saú<strong>de</strong> tem como fatores <strong>de</strong>terminantes e condicionantes a política sociale econômica <strong>do</strong> governo;b) que as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, sejam públicos ou priva<strong>do</strong>s, são <strong>de</strong> relevânciapública;c) que a liberda<strong>de</strong> da iniciativa privada na assistência à saú<strong>de</strong> restringe-se a <strong>de</strong>terminadasativida<strong>de</strong>s;d) que as políticas públicas não po<strong>de</strong>m ser concebidas <strong>de</strong> forma <strong>de</strong>sarticulada,<strong>de</strong>ven<strong>do</strong> ser planejadas integradamente, com vistas ao atingimento <strong>do</strong>sobjetivos fundamentais da República, inscritos no art. 3º, da CF (construção<strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> livre, justa e solidária; garantia <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional;e erradicação da pobreza e da marginalização e redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>ssociais e regionais), pois a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> um povo é o reflexo <strong>de</strong>ssas conquistas;e) que o planejamento nacional <strong>de</strong>ve comportar os planos nacionais <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,que, por sua vez, <strong>de</strong>vem ter um papel indutor na atuação da iniciativa privada;f) que os conselhos <strong>de</strong> fiscalização <strong>do</strong> exercício profissional e os conselhos <strong>de</strong><strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r <strong>de</strong>sempenham importante papel na regulação;g) que áreas críticas como os planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, seguro-saú<strong>de</strong>, incorporaçãotecnológica, manipulações biológicas, meio ambiente, condições <strong>de</strong> trabalho,47. O Dep. Fe<strong>de</strong>ral Al<strong>do</strong> Rebelo, em artigo publica<strong>do</strong> no jornal Correio Popular (Campinas,SP), <strong>do</strong> dia 10<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 1996, Opinião-3, intitula<strong>do</strong> “Patentes e Preços <strong>de</strong> Remédio”, assim se manifestou: “Naausência <strong>de</strong> patentes, esses merca<strong>do</strong>s tornam-se mais competitivos, na medida em que empresas menoresentram no merca<strong>do</strong> oferecen<strong>do</strong> produtos similares a preços menores, limitan<strong>do</strong> o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> merca<strong>do</strong><strong>de</strong>ssas gran<strong>de</strong>s corporações e garanti<strong>do</strong> assim maior possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acesso aos medicamentos para as camadas da população <strong>de</strong> renda mais baixa. (...) Quanto aos milhões <strong>de</strong> pessoas que estão <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong><strong>de</strong> tratar-se por causa <strong>do</strong> preço exorbitante <strong>do</strong>s remédios é apenas um problema <strong>de</strong> menor importância...”.Questões <strong>de</strong>ssa envergadura não po<strong>de</strong>m ser trata<strong>do</strong>s como assuntos meramente comerciais.276 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


sangue etc. <strong>de</strong>vem aten<strong>de</strong>r aos reclamos sociais, não se admitin<strong>do</strong> que questões<strong>de</strong>ssa relevância fiquem submetidas a pressões <strong>de</strong> grupos econômicos nacionaise internacionais em <strong>de</strong>trimento da consecução <strong>do</strong>s objetivos nacionais <strong>de</strong>erradicar as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e regionais, a pobreza e a marginalização;h) que a regulação no campo da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve levar em conta outras fontes <strong>de</strong>direito como: acor<strong>do</strong>s e trata<strong>do</strong>s internacionais; acor<strong>do</strong>s coletivos <strong>de</strong> trabalho(questões que digam respeito à saú<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r e ambiente <strong>de</strong> trabalho);contratos e convênios, principalmente na área <strong>do</strong> meio ambiente; <strong>de</strong>cisõesjudiciais (principalmente no tocante aos planos e aos seguros-saú<strong>de</strong>, erromédico etc.); acor<strong>do</strong>s entre os gestores <strong>do</strong> SUS, a iniciativa privada e oscidadãos, <strong>de</strong>ntre outros;i) que os conselhos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, as comissões intergestores bipartites, as comissõesintergestores tripartites, as comissões intersetoriais são fóruns apropria<strong>do</strong>spara a fixação <strong>de</strong> metas, <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> priorida<strong>de</strong>s e responsabilida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>(expressões da regulação) e da socieda<strong>de</strong> na construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>justa e igualitária no campo da saú<strong>de</strong>;j) que o Esta<strong>do</strong>, na sua função legislativa, há <strong>de</strong> observar os preceitos constitucionaise as competências <strong>de</strong> cada entida<strong>de</strong> política (União, Esta<strong>do</strong>s-membrose Municípios), sen<strong>do</strong> a competência para legislar sobre saú<strong>de</strong> concorrente (aUnião edita normas gerais, os Esta<strong>do</strong>s e o Distrito Fe<strong>de</strong>ral as suplementam eos Municípios têm competência própria para complementar e suplementar alegislação estadual e fe<strong>de</strong>ral, no que couber, a fim <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r ao interesse local);l) que a competência para a execução <strong>de</strong> ações e serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (competênciamaterial) é comum da União, <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s, <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral e <strong>do</strong>s Municípios,observada a repartição especificada nos artigos 16, 17 e 18 da Lei 8.080/90; em) que o Executivo, em cada esfera <strong>de</strong> governo, no exercício <strong>do</strong> seu po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>polícia administrativa, está jungi<strong>do</strong> à lei e aos limites <strong>de</strong> sua competênciaconstitucionalmente fixada.Aliás, na Oficina <strong>de</strong> Trabalho sobre Regulação 48 foi menciona<strong>do</strong> que:“Partin<strong>do</strong> <strong>do</strong> pressuposto <strong>de</strong> que as ações e os serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> públicos e priva<strong>do</strong>s(art. 198 e 199 da constituição) compõem um sistema nacional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e estãosujeitos a regulação, controle e fiscalização <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público, sob o coman<strong>do</strong>, no âmbitoda União, <strong>do</strong> Ministério da saú<strong>de</strong> e no âmbito <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s e Municípios, das Secretarias<strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, é <strong>de</strong> se afirmar que:a) o Po<strong>de</strong>r Público <strong>de</strong>ve regular o subsistema público (SUS), bens, serviços eprocessos <strong>de</strong> produção bem como a ação <strong>do</strong>s seus diversos agentes, com ênfaseno estabelecimento da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> ações e serviços <strong>de</strong> promoção, proteção erecuperação da saú<strong>de</strong> e suas inter-relações e responsabilida<strong>de</strong>s. Que população,em que territórios, com que serviços e ações, para quais problemas?b) O Po<strong>de</strong>r Público <strong>de</strong>ve regular o subsistema priva<strong>do</strong> - ações, bens e serviçosexecuta<strong>do</strong>s pelo setor priva<strong>do</strong>, em especial as mais diversas modalida<strong>de</strong>ssupletivas <strong>de</strong> assistência à saú<strong>de</strong>, com os seus planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> ou segurosaú<strong>de</strong>,bem como os produtos <strong>de</strong> equipamentos, medicamentos e outros.48. Ibi<strong>de</strong>m.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>277


A regulação se faz necessária e é inadiável enquanto instrumento <strong>de</strong> viabilização<strong>de</strong> uma verda<strong>de</strong>ira “revolução intramuros”, mediante a qual as ações <strong>do</strong>s diversosagentes <strong>do</strong> SUS confluam harmonicamente em direção a um mo<strong>de</strong>lo assistencial coerentecom os princípios da integralida<strong>de</strong> da assistência, universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> acesso e equida<strong>de</strong><strong>do</strong> atendimento, com vistas ao alcance <strong>de</strong> serviços e ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> eficientes e eficazes.Desse mo<strong>do</strong>, o Po<strong>de</strong>r Público <strong>de</strong>ve priorizar as questões aqui mencionadas, regulan<strong>do</strong>-as,fiscalizan<strong>do</strong>-as e controlan<strong>do</strong>-as”.Registre-se, finalmente, que ao estudar qualquer assunto liga<strong>do</strong> ao sistema único<strong>de</strong> saú<strong>de</strong> verificamos que a sua concepção constitucional compreen<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os elementos<strong>de</strong> um verda<strong>de</strong>iro fe<strong>de</strong>ralismo cooperativo: <strong>de</strong>scentralização das ações e <strong>do</strong>s serviços;cooperação técnica e financeira da União para com Esta<strong>do</strong>s e Municípios e <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>spara com os Municípios; participação da socieda<strong>de</strong> na <strong>de</strong>finição da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,através <strong>do</strong>s conselhos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e das conferências <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>; comissões intersetoriais;planejamento ascen<strong>de</strong>nte: compatibilização <strong>do</strong>s planos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> municipal e estadualcom o planejamento nacional; solidarieda<strong>de</strong> na divisão <strong>do</strong>s recursos da segurida<strong>de</strong> sociale suas três áreas: previdência, saú<strong>de</strong> e assistência social; participação da iniciativa privadano SUS; comissões intergestores bipartite; comissões intergestores tripartite.Vê-se que no setor saú<strong>de</strong> existem instrumentos para uma atuação positiva <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> em relação ao cidadão na construção <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> justa e igualitária. Estãoto<strong>do</strong>s à disposição <strong>do</strong>s governantes e políticos, requeren<strong>do</strong>, apenas, a vonta<strong>de</strong> políticapara a sua concretização. 49REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. BASTOS, Celso - Jornal “Folha <strong>de</strong> São Paulo”, <strong>de</strong> 19.10.96, artigo “O fumo e as 3 proibições”.2. BERLINGUER, Guiovanni e Volnei Garrafa - O merca<strong>do</strong> humano, ed. UnB.49. O princípio da solidarieda<strong>de</strong> existente na área da segurida<strong>de</strong> social tem si<strong>do</strong> rompi<strong>do</strong> na prática pelaação <strong>do</strong>s setores econômicos <strong>do</strong> governo, que vêm impedin<strong>do</strong> a partilha solidária <strong>do</strong>s recursos <strong>do</strong>orçamento da segurida<strong>de</strong> social, sufocan<strong>do</strong> o setor da saú<strong>de</strong> e enfraquecen<strong>do</strong> o conceito <strong>de</strong> “relevânciapública” assegura<strong>do</strong> pela Constituição. O <strong>de</strong>srespeito <strong>do</strong> Po<strong>de</strong>r Público pela saú<strong>de</strong> é ação indutora:convence o merca<strong>do</strong> a <strong>de</strong>srespeitá-la também.Por oportuno, não po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar o gran<strong>de</strong> erro da teoria neo-liberal <strong>de</strong> pregar aausência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> na regulação da economia, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong> o controle na mão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>. ALAINTOURRAINE diz que “... seria um erro crasso afirmar que a <strong>de</strong>struição <strong>do</strong> antigo sistema <strong>de</strong> regulação conduzpor si só à criação <strong>de</strong> um novo sistema estável, que po<strong>de</strong>ríamos <strong>de</strong>nominar <strong>de</strong> liberal. Erro que se torna catastróficose pensarmos que a queda <strong>de</strong> antigos controles políticos e sociais da vida econômica abriria caminho a umaeconomia ‘livre’, isto é, <strong>de</strong>sembaraçada <strong>de</strong> to<strong>do</strong> controle externo e regulada somente por si própria”. (“Ecos daausência <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>”, Folha <strong>de</strong> S.Paulo, <strong>de</strong> 17.10.96, ca<strong>de</strong>rno MAIS!, pag. 11).Num país como o nosso, no qual, em plena era da globalização <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s, existem quase 50 milhões<strong>de</strong> brasileiros sem registro <strong>de</strong> nascimento, sen<strong>do</strong> o Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Maranhão recordista <strong>de</strong>sta ‘clan<strong>de</strong>stinida<strong>de</strong>’(Fonte: IBGE, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com matéria publicada na Folha <strong>de</strong> S.Paulo, <strong>de</strong> 17.11.96, pags. 12 e 13, ca<strong>de</strong>rno1) fica difícil falar em economia <strong>de</strong>sregulada, numa socieda<strong>de</strong> com milhões <strong>de</strong> <strong>de</strong>spossui<strong>do</strong>s, excluí<strong>do</strong>s<strong>do</strong> merca<strong>do</strong> pelo próprio merca<strong>do</strong>. Como falar em saú<strong>de</strong> para pessoas <strong>de</strong>snutridas, sem registro civil,cujos filhos morrem antes <strong>de</strong> atingir um ano <strong>de</strong> ida<strong>de</strong> da <strong>do</strong>ença chamada “miséria”. O Esta<strong>do</strong> nãopo<strong>de</strong> fugir <strong>de</strong> suas responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fazer cumprir a Constituição, promoven<strong>do</strong> o <strong>de</strong>senvolvimentonacional, com redução das <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais e regionais, com erradicação da pobreza, mediante aelaboração <strong>de</strong> um planejamento global, capaz <strong>de</strong> implementar o progresso social e econômico, intervin<strong>do</strong>,sempre que necessário ao interesse público, nas ativida<strong>de</strong>s privadas, atuan<strong>do</strong> como agente regula<strong>do</strong>r.278 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


3. BERLINGUER, Guiovanni - Medicina e Política - Ed. Hucitec, 3a. edição.4. BONFIM, José Rubens A. (SOBRAVIME) - Seminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>” - Documento daFundação Pedrosoo Horta - 1996.5. CANOTILHO, J.J. Gomes - Direito Constitucional, Livraria Almeidina, Coimbra.6. CARVALHO, Gui<strong>do</strong> Ivan e Lenir Santos - Sistema Unico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: Comentários à Lei Orgânica daSaú<strong>de</strong>, editora Hucitec, 2a. edição.7. COMPARATO, Fabio Kon<strong>de</strong>r - “A organização constitucional da função planeja<strong>do</strong>ra” - RevistaTrimestral <strong>de</strong> Direito Público - n. 8.8. Conselho Nacional <strong>de</strong> Secretários <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - CONASS - Publicação referente à Oficina <strong>de</strong> Trabalho“A regulação na saú<strong>de</strong>”, Brasília, 1995.9. EDUARDO Jorge (Dep. Fe<strong>de</strong>ral) - Seminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>” - Documento da FundaçãoPedrosoo Horta, 199610. FERRAZ, Sérgio - As manipulações biológicas e os princípios constitucionais: uma introdução.Sérgio Antonio Fabris Editor.11. Folha <strong>de</strong> São Paulo - dia 6.10.96 - artigo sobre <strong>de</strong>núncias no Conselho Regional <strong>de</strong> Medicina <strong>de</strong> SãoPaulo - CRM12. GANDOLF, Eliane (IDEC) - Seminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>” - Documento da Fundação PedrosooHorta, 1996.13. GRAU, Eros Roberto - O Po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Polícia - Revista Trimestral <strong>de</strong> Direito Público n. 1/93.14. LIMA, Rui Cirne - Princípios <strong>de</strong> Direito Administrativo - Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais - 6a. edição.15. MEIRELLES, Hely Lopes - Direito Administrativo Brasileiro - 19a. edição, Malheiros Editores.16. MELLO, Celso Antonio Ban<strong>de</strong>ira - Curso <strong>de</strong> Direito Administrativo - 5a. edição - Malheiros Editores.17. MILARÉ, Edis - Legislação Ambiental - Edições APMP - 1991.18. PEREIRA, Cleriberto Venâncio (CRM) - Seminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>” - Documento da FundaçãoPedrosoo Horta, 1996.19. PIETRO, Maria Silvia Zanella - Direito Administrativo - 3a. edição- Malheiros Editores.20. PINOTTI, José Aristo<strong>de</strong>mo - “A perda <strong>do</strong> caráter público da saú<strong>de</strong>” - Jornal O Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> SãoPaulo, dia 29.10.96.21. RAO, Vicente - O direito e a vida <strong>do</strong>s direitos - vol. I, 3a. edição - Editora Revista <strong>do</strong>s Tribunais.23. RIBEIRO, Darcy - O povo brasileiro - Editora Companhia das Letras.24. SANTOS, Lenir - Distribuição <strong>de</strong> Competências no Sistema Unico <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> - Série Direito e Saú<strong>de</strong>n. 3 - Publicação da Organização Pan-Americana <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>/Organização Mundial da Saú<strong>de</strong>,Brasília, 1994.22. REBELO, Al<strong>do</strong> - “Patentes e Preços Públicos” - Jornal o Correio Popular - dia 10.11.96.25. SARAIVA, Felipe - (Dep. Fe<strong>de</strong>ral) - Seminário “O cidadão e a saú<strong>de</strong>” - Documento da FundaçãoPedrosoo Horta, 1996.26. SILVA, José Afonso - Curso <strong>de</strong> Direito Constitucional Positivo - 6a. edição - Editora Revista <strong>do</strong>sTribunais.27. SUNDFELD, Carlos Ari - Direito Administrativo Or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r - Malheiros Editores.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>279


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Trabalha<strong>do</strong>res da Saú<strong>de</strong>:uma Nova Agenda <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s sobreRecursos Humanos em Saú<strong>de</strong> no BrasilLilia Blima SchraiberMaria Helena Macha<strong>do</strong>INTRODUÇÃOEmbora seja uma preocupação constante nas políticas públicas e nas discussõesacerca da qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, “recursos humanos” mantêm-se como um<strong>de</strong>safio. Quer como objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> científico ou objeto <strong>de</strong> intervenção social, este campoainda nos oferece mais problemas que referenciais para transformações. Neste texto,preten<strong>de</strong>mos refletir sobre essa característica <strong>do</strong> campo e i<strong>de</strong>ntificar, para o momentomais atual da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no país, suas principais problemáticas, buscan<strong>do</strong>analisá-las como questões das profissões e <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>. Visan<strong>do</strong> à compreensão<strong>de</strong>sse recorte, “profissões e trabalho”, examinaremos as várias aproximações <strong>de</strong> que osrecursos humanos têm si<strong>do</strong> alvo. Nosso propósito é resgatar o movimento histórico <strong>de</strong>sua produção técnico-científica e os principais pontos <strong>de</strong> inflexão a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>s para tratar<strong>de</strong>ssa realida<strong>de</strong>, trabalhan<strong>do</strong>-se através <strong>de</strong>sse percurso algumas das principais questõescontemporâneas acerca das profissões em saú<strong>de</strong> no Brasil. No percurso histórico examina<strong>do</strong>também encontraremos a presença <strong>do</strong> movimento sanitário brasileiro, o quenos permitirá comentá-la igualmente através <strong>do</strong>s recortes que toda a contribuição <strong>do</strong>sintelectuais e militantes da Saú<strong>de</strong> Coletiva produziu acerca da Reforma Sanitária, emuitas vezes prioritariamente, <strong>do</strong>s recursos humanos. Um segun<strong>do</strong> enfoque <strong>do</strong> textoexamina mais especificamente novas aproximações e questões ainda por se trabalhar,principalmente as <strong>do</strong> atual momento político e sanitário, buscan<strong>do</strong> apresentar ospercursos ainda necessários para <strong>de</strong>slindar seus <strong>de</strong>safios, como nova agenda <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>ssobre o campo.Um outro ponto a consi<strong>de</strong>rar, central para toda nossa argumentação, resi<strong>de</strong> nofato <strong>de</strong> que a Saú<strong>de</strong> Coletiva brasileira tem elabora<strong>do</strong> conhecimentos sempre sob <strong>do</strong>isdistintos mo<strong>do</strong>s: o vincula<strong>do</strong> à produção científica e o vincula<strong>do</strong> à intervenção social.Aliás, sua marca tem si<strong>do</strong> buscar exatamente uma articulação permanente entre esses<strong>do</strong>is ramos <strong>do</strong> conhecimento e da ação. Mas essa pretensão não anula as diferenciaçõesexistentes entre eles. Seria, pois, interessante nomearmos diferentemente essas modalida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> produção intelectual. Além <strong>do</strong> que, provavelmente porque seus estu<strong>do</strong>s, emambos os casos, tomam problemas <strong>de</strong> natureza política para respon<strong>de</strong>r, a confusão entreelas é bastante gran<strong>de</strong>. E em áreas cujas problemáticas estão colocadas <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> urgentee imediato nos serviços, o que freqüentemente ocorre com os recursos humanos, estamescla <strong>de</strong> produção é ainda maior.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>281


Recursos humanos apresentam problemas gerenciais importantes, cujos estu<strong>do</strong>s,<strong>de</strong> natureza administrativa, são muito freqüentes 1 . Basta pensarmos na <strong>de</strong>finição <strong>de</strong>cargos e carreiras ou nas relações <strong>de</strong> trabalho e suas negociações, por exemplo. Essetipo <strong>de</strong> abordagem tem si<strong>do</strong> mais freqüente que estu<strong>do</strong>s que possam situar tanto ascarreiras ou cargos e as relações <strong>de</strong> produção como dimensão das práticas sociais emgeral, como componente da vida social em que se produzem os problemas com os quais<strong>de</strong>vemos lidar. É o caso, por exemplo, da pequena quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s existenteacerca <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produzir serviços e forma <strong>de</strong> se trabalhar em saú<strong>de</strong>, cuja teoriapo<strong>de</strong>ria nos explicar os padrões <strong>de</strong> trabalho e postos técnicos, quan<strong>do</strong> então cargos ecarreiras ganhariam senti<strong>do</strong> político-social.Diremos, pois, que no caso da produção intelectual acerca da prática <strong>do</strong>s serviços,quer tratemos suas questões como gestão <strong>de</strong> serviços, ou gerência, ou planejamentonormativo, ou <strong>de</strong> algum outro mo<strong>do</strong> conceitual, formula-se um discurso que é“projeto da ação política” e pertence ao plano <strong>de</strong>sta última. Enquanto que, no caso daprodução intelectual científica, formula-se um discurso <strong>de</strong> natureza teórica que é“explicação sobre a ação política”. Este último discurso está apenas indiretamente vincula<strong>do</strong>à ação, por meio da pesquisa científica que estuda a própria ação como seu objeto <strong>de</strong>conhecimento. Ele pertence ao plano <strong>do</strong> saber teórico, ou da teoria, ou, se quisermos, <strong>do</strong>conhecimento científico.Note-se que a ambos os mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> produção intelectual atribuímos a capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> conhecer e distinguimos a competência própria <strong>de</strong> cada um. Ao primeiro, cabe serparte da ação, mesmo sen<strong>do</strong> reflexão e, portanto, um certo distanciamento (abstração)<strong>do</strong> fazer. Seu conhecimento caracteriza o saber prático, que está no âmbito <strong>do</strong> concreto<strong>do</strong>s serviços e tem respostas pragmáticas (práticas e imediatas a problemas da<strong>do</strong>s). Aosegun<strong>do</strong>, cabe ser prática <strong>do</strong>s serviços apenas mediatamente, por estar no âmbito daabstração maior, isto é, em outro plano <strong>de</strong> reflexão, como que em suspenso por sobre ocotidiano, ainda que possa estar também refletin<strong>do</strong> sobre esse mesmo cotidiano. Porisso para se obter respostas ao dia-a-dia <strong>do</strong>s serviços, transforman<strong>do</strong>-se em prática, ateoria requer um espaço e um tempo <strong>de</strong> re-formulação.Essa nossa distinção preten<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar mais claro as diferenças <strong>de</strong> atribuições esobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong> temporalida<strong>de</strong> nas conexões entre teoria e prática, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e projetos<strong>de</strong> ação e execução, <strong>de</strong> outro. Essa distinção nos serve, ainda, para mostrarmos queembora a imensa produção intelectual em Recursos Humanos, ao trabalhar no âmbito<strong>do</strong> “projeto da ação”, estará consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> estes recursos como trabalha<strong>do</strong>res, poucosestu<strong>do</strong>s existem na produção da teoria política, ou da sociológica ou ainda da econômica,diretamente sobre o trabalho em saú<strong>de</strong>. Por isso temos um gran<strong>de</strong> conhecimento práticoacumula<strong>do</strong>, mas não temos referenciais explicativos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s a ponto <strong>de</strong> nosorientar a multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisas científicas, das mais às menos aplicadas,necessárias ao aprofundamento <strong>do</strong> saber prático referi<strong>do</strong>.Atentos a essa característica da produção no campo, <strong>de</strong>vemos <strong>de</strong>stacar o que, anosso ver, tem marca<strong>do</strong> em especial o Movimento Sanitário Brasileiro, cujas proposições,em parte, como dissemos, confun<strong>de</strong>m-se com a produção em geral neste mesmo1. Cf. Schraiber, L. B.; Peduzzi, M. - Tendências e possibilida<strong>de</strong>s da investigação <strong>de</strong> Recursos Humanosem Saú<strong>de</strong> no Brasil, Educación Medica Y Salud 27 (3): 295-313, 1993; PAIM, J. S.- Recursos Humanosem Saú<strong>de</strong> no Brasil: problemas crônicos e <strong>de</strong>safios agu<strong>do</strong>s, São Paulo, <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Públicada USP, 1994.282 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


campo. Po<strong>de</strong>mos afirmar que pelo menos <strong>do</strong>is postula<strong>do</strong>s ético-políticos têmacompanha<strong>do</strong> a produção sobre a Reforma Sanitária no Brasil, no que tange os recursoshumanos: a tomada <strong>de</strong>stes como problemática institucional e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho(força <strong>de</strong> trabalho; relações <strong>de</strong> trabalho), mas também, <strong>de</strong> outro la<strong>do</strong>, como realida<strong>de</strong>até certo ponto in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, na tentativa <strong>de</strong> tratar com oproblema “recursos” por seu la<strong>do</strong> “humano”, isto é, como pessoas a serem valorizadasem suas necessida<strong>de</strong>s e <strong>de</strong>mandas. Como este segun<strong>do</strong> aspecto é mais complexo, nãovamos simplesmente exemplificá-lo aqui. Vamos recuperar, da história, os enfoques elinhas <strong>de</strong> reflexão <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, para mostrarmos os <strong>do</strong>is princípios menciona<strong>do</strong>s eseus conflitos, além <strong>de</strong> indicarmos nossa própria perspectiva <strong>de</strong> tratamento <strong>de</strong>ssarealida<strong>de</strong>.O CONHECIMENTO PRODUZIDO: BREVE INCURSÃO HISTÓRICARecursos humanos são constantemente problematiza<strong>do</strong>s no interior da questãosaú<strong>de</strong>. Ganham sempre gran<strong>de</strong> ênfase e não poucas vezes são trata<strong>do</strong>s como se conformassem,em si, um problema soberano às <strong>de</strong>mais questões das práticas em saú<strong>de</strong>,particularmente por referência às condições e contextos <strong>do</strong> trabalho e produção social<strong>do</strong>s serviços. Nesta situação, usualmente são trata<strong>do</strong>s como problema isola<strong>do</strong> e suasquestões específicas ten<strong>de</strong>m a surgir como o alvo, senão único, certamente o maisrelevante para resolver crises da produção <strong>do</strong>s serviços ou a qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalhoexecuta<strong>do</strong>.Esta importância creditada aos recursos humanos não é recente. O <strong>de</strong>staque quese dá ao componente “pessoa” no trabalho e na organização <strong>do</strong>s serviços, individualizan<strong>do</strong>-se“o profissional” ou “o trabalha<strong>do</strong>r”, é, em realida<strong>de</strong>, a primeira formahistórica com que são toma<strong>do</strong>s os problemas das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Relativamente aospróprios recursos humanos, em princípio po<strong>de</strong>mos dizer que eles têm si<strong>do</strong> trata<strong>do</strong>s sobtrês distintas esferas <strong>de</strong> qualificação, ao longo da história das práticas a partir damo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e, portanto, da emergência das práticas científicas e tecnológicas em saú<strong>de</strong>.São elas:1. recursos humanos como pessoas porta<strong>do</strong>ras <strong>de</strong> saber, vale dizer, o recursohumano como sujeito priva<strong>do</strong> <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> conhecimento complexo;2. recursos humanos como instrumento <strong>de</strong> saber, isto é, como insumo <strong>de</strong> processoprodutivo e prolongamento mecânico <strong>do</strong> saber em sua aplicação, coisifican<strong>do</strong>a pessoa <strong>de</strong>tentora <strong>do</strong> saber; e finalmente,3. recursos humanos como trabalha<strong>do</strong>res. Trabalha<strong>do</strong>res no interior da ativida<strong>de</strong><strong>do</strong> trabalho (3.1); e/ou em merca<strong>do</strong> (3.2). Sua peculiarida<strong>de</strong> é <strong>de</strong>ter sabercomplexo e, simultaneamente, submeter-se a regras <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> e produção<strong>de</strong> serviços socialmente organizada, estabelecen<strong>do</strong>, ainda, relaçõesextremamente diferenciadas quer com o Esta<strong>do</strong>, enquanto sen<strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>rsocial, quer com as condições objetivas <strong>de</strong> trabalho, enquanto sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>tentor<strong>de</strong> saber complexo.A primeira correspon<strong>de</strong> à mais antiga abordagem. Po<strong>de</strong>mos registrá-la <strong>de</strong>s<strong>de</strong> osmovimentos por reforma médica <strong>do</strong>s anos 40-50, nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, por exemplo 2 .Toda uma recomposição da prática médica era esperada ten<strong>do</strong> por base mudanças noSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>283


ensino médico. Estes movimentos, caracterizan<strong>do</strong>, sobretu<strong>do</strong>, a Medicina Integral e aMedicina Preventiva americanas e em parte também a Medicina Comunitária, voltaramsepara reorientar o ato médico através <strong>de</strong> mudanças no <strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong> médico,individualmente pensa<strong>do</strong>. Este, com base em uma aprendizagem <strong>de</strong> novo caráter(medicina preventiva), diante da especialização médica, retomaria a abordagem integral<strong>do</strong> <strong>do</strong>ente (“to<strong>do</strong> bio-psico-social”) e ainda saberia atuar sobre as <strong>de</strong>mandastecnologicamente simples, mas bastante expressivas <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista epi<strong>de</strong>miológico:as “reais necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da população”, termos usa<strong>do</strong>s pelos própriosmovimentos reforma<strong>do</strong>res.Observemos a natureza exterior ao trabalho <strong>de</strong>sta proposição. Atribui à Educaçãoo valor <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminante <strong>do</strong>s fenômenos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, ao supor apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> alterar os recursos humanos por anteriorida<strong>de</strong> relativamente àscondições concretas no trabalho e esperar que eles atuem como agentes <strong>de</strong> mudança daprópria prática. Para problemas <strong>do</strong> tipo: fragmentação na assistência médica, elitização<strong>do</strong> consumo e restrição <strong>do</strong> acesso aos serviços; qualida<strong>de</strong> variável na produção <strong>do</strong>scuida<strong>do</strong>s; cuida<strong>do</strong>s muito diferencia<strong>do</strong>s pelos diversos segmentos populacionais;insuficiência “resolutiva” <strong>do</strong>s serviços; e, por fim, <strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> da assistência, oinstrumento <strong>de</strong> transformação pensa<strong>do</strong> foi exclusivamente o próprio trabalha<strong>do</strong>r, combase na transformação <strong>de</strong> sua formação escolar.Essa forma <strong>de</strong> abordagem representou, portanto, a tomada das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>como objeto <strong>de</strong> intervenção, mas também, simultaneamente, a tomada <strong>do</strong>s recursoshumanos. Na realida<strong>de</strong>, trata-se da tomada <strong>de</strong>ste último em substituição ou comorepresentante das práticas.Por outro la<strong>do</strong>, é interessante notar que, relativamente à pretensão <strong>de</strong> se formarprofissionais mais volta<strong>do</strong>s para a apreensão <strong>do</strong> processo saú<strong>de</strong>-<strong>do</strong>ença como processosocial e <strong>de</strong> se politizar a prática médica (e em saú<strong>de</strong>), esta proposição <strong>de</strong> MedicinaPreventiva/Integral que faria tal reforma foi objeto <strong>de</strong> duras críticas, por parte <strong>do</strong>sintelectuais da Saú<strong>de</strong> Coletiva e precursores <strong>do</strong> movimento pela reforma sanitária. Masa essa mesma crítica escaparam os significa<strong>do</strong>s técnicos e sociais, as repercussões éticopolíticase as concepções sobre a saú<strong>de</strong> e suas práticas, que estavam no núcleo da proposição,qual seja, realizar a intervenção na produção <strong>do</strong>s serviços e no trabalho por meioda reforma escolar, exclusiva ou centralmente. Em realida<strong>de</strong> isto viria a ser objeto <strong>de</strong>discordância, ainda que não alvo direto <strong>de</strong> crítica, em outra postura reforma<strong>do</strong>ra <strong>de</strong>stesmesmos intelectuais, na concepção <strong>do</strong>s recursos humanos como força <strong>de</strong> trabalho, comoveremos.As outras abordagens <strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s sobre recursos humanos(2. e 3a/3b) são maisrecentes e emergem ligadas à introdução <strong>do</strong> pensamento econômico em saú<strong>de</strong>. Abrema possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se tomar diretamente as práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> eintervenção, ou se tomar a perspectiva <strong>de</strong> trabalho em socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção 3 .2. Cf. Arouca, A.S.- O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão crítica da MedicinaPreventiva, <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Ciências Médicas da Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas (UNICAMP),SãoPaulo,Brasil,Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>,1975;Donnangelo, M.C.F. e Pereira, L.- Saú<strong>de</strong> e Socieda<strong>de</strong>, DuasCida<strong>de</strong>s, São Paulo, Brasil, 1976.3. A bibliografia neste caso é extensa e po<strong>de</strong> ser consultada ao final. Vale notar a completa sistematizaçãoque aparece em PAIM, J. S.- Recursos Humanos em Saú<strong>de</strong> no Brasil..., op.cit.284 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Uma das matrizes <strong>de</strong>sse pensamento econômico em saú<strong>de</strong> foi conexa à introdução<strong>do</strong> planejamento e também da teoria <strong>do</strong>s sistemas, no setor. Viu no processo <strong>de</strong>produção, social e em saú<strong>de</strong>, uma estrutura em dinâmica processual, na qual seuselementos eram componentes subordina<strong>do</strong>s e conforma<strong>do</strong>s à estrutura. Se isto representouum olhar diretamente dirigi<strong>do</strong> ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, tratou <strong>do</strong>s recursoshumanos como ferramentas, instrumental <strong>do</strong> próprio trabalho.A outra matriz <strong>do</strong> pensamento econômico, já em adição com estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> naturezasociológica na vertente <strong>do</strong> trabalho, introduzirá, nos anos 70-80, a dimensão <strong>de</strong> relativaautonomia <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r por referência à estrutura <strong>de</strong> trabalho, ainda que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntepor referência ao mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção social. Trata-se <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s que abordam o merca<strong>do</strong><strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, e em seu <strong>de</strong>senvolvimento, os recursos humanos como força <strong>de</strong>trabalho, e, pois, indivíduos ou pessoas 4 . Como tal não per<strong>de</strong>m nunca a possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> crítica e recusa, <strong>de</strong>senvolven<strong>do</strong> estratégias <strong>de</strong> insubordinação, mesmo quan<strong>do</strong> emsituação <strong>de</strong> extremo constrangimento <strong>de</strong> sua ação. Aliás este é o caso da mecanização erotinização <strong>do</strong> trabalho, situação em que o próprio conceito <strong>de</strong> “força <strong>de</strong> trabalho” surge,quan<strong>do</strong> significa pessoas que são reduzidas, em razão <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produção <strong>do</strong> trabalho,ao corpo instrumental: corpo e mente ferramentas <strong>do</strong> trabalho.O movimento traça<strong>do</strong> pelos diferentes olhares para os recursos humanos é revela<strong>do</strong>rda historicida<strong>de</strong> na construção <strong>de</strong>sse conhecimento, e não há dúvida que <strong>de</strong>vemosencontrar uma explicação para tal. Também <strong>de</strong>vemos ter claro que encontraremos umadisputa histórica entre interesses e concepções <strong>de</strong> vida social distintos. De um la<strong>do</strong>, aprodução conserva<strong>do</strong>ra das políticas vigentes, e, pois, guardiã da hegemonia políticoi<strong>de</strong>ológicae suas proposições técnicas. De outro, a perspectiva crítica, em que se inserea produção particular <strong>de</strong> grupamentos e movimentos contesta<strong>do</strong>res, tal como o <strong>CEBES</strong>,entre outros. Contu<strong>do</strong>, também é preciso ter claro, que o próprio movimento críticocujas bases foram a discordância política e i<strong>de</strong>ológica, nem sempre conseguiu percebersecomo participante, <strong>de</strong> algum mo<strong>do</strong>, da cultura técnica e social que historicamentegerou a hegemonia, e, ainda que não completamente inseri<strong>do</strong> nesta, <strong>de</strong> viés ou soslaio,também contribuía em sua reprodução, já que a crítica político-i<strong>de</strong>ológica nem semprealcança também a dimensão <strong>do</strong>s valores culturais. Aliás, o estu<strong>do</strong> das transformações<strong>do</strong> discurso crítico, mostram a dificulda<strong>de</strong> e o amadurecimento <strong>do</strong> movimento pelaReforma Sanitária, neste percurso.O que nos daria uma primeira idéia sobre essa dificulda<strong>de</strong> na crítica? Enten<strong>de</strong>mosque uma possível explicação funda-se no valor culturalmente da<strong>do</strong> ao sabercientífico no interior das práticas em saú<strong>de</strong> 5 . Como constituinte <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>,o saber tem si<strong>do</strong> ora toma<strong>do</strong> como exclusivo <strong>de</strong>terminante das ações profissionais, ora,em outro extremo, anula<strong>do</strong> como componente estrutura<strong>do</strong>r das ações, e toma<strong>do</strong> comofator totalmente <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> no plano das condições concretas <strong>do</strong> trabalho. Seria,portanto, o peso <strong>do</strong> saber ou sua qualificação como problemática <strong>de</strong> recursos humanosno mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, o que produz essa oscilação e dinâmica <strong>de</strong> enfoques/abordagens.Aliás, a classificação que acima realizamos, refletiu exatamente esse nosso entendimento.4. Não há neste caso a preocupação <strong>de</strong> <strong>de</strong>limitar com maior precisão os conceitos <strong>de</strong> pessoa, indivíduo,sujeito, personagem, cidadão ou ator social. A referência aqui é num plano muito genérico, e quercontrastar a coisa e o humano, ou a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vonta<strong>de</strong> própria e a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> anulaçãocompleta da vonta<strong>de</strong> própria, e, portanto, em situação <strong>de</strong> abso<strong>luta</strong> <strong>de</strong>terminação <strong>de</strong> comportamento,ação ou <strong>de</strong>sempenho.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>285


Por isso individualizamos os enfoques segun<strong>do</strong> o mo<strong>do</strong> como que cada qual toma osaber, ou melhor, como vê a relação entre o saber e o processo <strong>de</strong> trabalho e, ao mesmotempo, entre o trabalha<strong>do</strong>r neste processo e o saber científico.Po<strong>de</strong>mos ver, nessa variabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> abordagens, <strong>do</strong>is recortes principais: umexterior e outro interior ao mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, respectivamente equivalen<strong>do</strong> à primeiraabordagem acima discriminada (1ª) e, em conjunto, a segunda e a terceira registradas.O que distingue uma da outra, para estas duas últimas, é a natureza da reflexão,em termos teóricos e meto<strong>do</strong>lógicos. Problematizam suas questões <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>s muitodiversos, ora toman<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho como estruturas sistêmicas em que o to<strong>do</strong>é forma<strong>do</strong> por conjuntos <strong>de</strong> elementos homogêneos (2ª); ou (3ª) como estruturas históricae socialmente <strong>de</strong>terminadas em que a totalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho é formada porconstituintes econômica e politicamente articula<strong>do</strong>s em hierarquias.Além <strong>do</strong> que, subdividin<strong>do</strong>-se a terceira em duas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> aproximação,teremos estu<strong>do</strong>s dirigi<strong>do</strong>s a <strong>do</strong>is planos distintos <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho: o <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>e o da ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho (ou processo <strong>do</strong> trabalho).Na primeira abordagem, os recursos humanos são vistos como questão pertencenteà produção e aquisição <strong>do</strong>s conhecimentos científicos, como algo da esfera da ciência eda educação escolar. Nesse “mun<strong>do</strong> pré-trabalho”, que a<strong>de</strong>mais é concebi<strong>do</strong> como fatoranterior e soberano ao trabalho (o saber presi<strong>de</strong> o trabalho), encontrar-se-iam asexplicações e soluções para os problemas <strong>do</strong> trabalho. O que seria o trabalho, nestavisão? Seria prática, aplicação, <strong>de</strong> saberes. Como um “espelho” da formação escolar ouda capacitação profissional, o trabalho <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ria principalmente <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenhopessoal e individualiza<strong>do</strong> <strong>de</strong> cada profissional. Por isso, este trabalha<strong>do</strong>r (ou agente <strong>do</strong>trabalho) é concebi<strong>do</strong> como indivíduo particular e priva<strong>do</strong>.De mo<strong>do</strong> diverso teremos as abordagens em que recursos humanos são elemento<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. Neste caso, como dissemos, recorta<strong>do</strong> em planos diversos <strong>do</strong>social: na situação <strong>de</strong> estar em merca<strong>do</strong>, logo pertencente à transição entre produto daeducação e agente <strong>do</strong> trabalho; ou como já pertencente ao processo <strong>de</strong> trabalho.O ângulo <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> introduz o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho pela dimensão da dinâmica<strong>de</strong> oferta e utilização <strong>do</strong>s postos <strong>de</strong> trabalho. Deste mo<strong>do</strong> o trabalho será visto como umlugar na estrutura produtiva, por isso também um reflexo da organização social daprodução e distribuição <strong>do</strong>s serviços, espelhan<strong>do</strong> a própria estrutura institucional e ossetores, público e priva<strong>do</strong>, <strong>de</strong> produção <strong>do</strong>s serviços, no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho. Tambémse evi<strong>de</strong>nciarão, aí, as características sócio-<strong>de</strong>mográficas da força <strong>de</strong> trabalho.Já pelo ângulo <strong>do</strong> trabalho em operação, uma das concepções existentes, que vêrecursos humanos como insumo e não como, ao revés, agente ou ator no trabalho, tomao trabalho como estrutura técnica isolada e auto-<strong>de</strong>terminada, situação em que seusrecursos, inclusive o humano, reduzem-se a componentes-objeto <strong>do</strong> processo. Nestecaso, os agentes <strong>de</strong> trabalho não po<strong>de</strong>riam dispor-se como sujeitos ou como atores sociais5. Veja-se SCHRAIBER, L. B. - O médico e seu trabalho. Limites da liberda<strong>de</strong>, São Paulo, Hucitec, 1993;MENDES-GONÇALVES, R. B. - Tecnologia e Organização Social das Práticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: características<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho na re<strong>de</strong> estadual <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, Hucitec /Abrasco, 1994; Macha<strong>do</strong>, M.H.- Sociologia <strong>de</strong> las profesiones: un nuevo enfoque Educación Médica ySalud 25 (1): 28-36, 1991.286 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


e o termo trabalha<strong>do</strong>r indica a <strong>de</strong>ssubjetivação da pessoa e a sujeição completa <strong>do</strong>indivíduo em ação.Mas também há outra concepção na qual po<strong>de</strong>-se ver o trabalho como subtotalida<strong>de</strong>social. Receben<strong>do</strong> <strong>do</strong> to<strong>do</strong> social <strong>de</strong>terminações e, ainda, interagin<strong>do</strong> com ele,o trabalho como estrutura técnica resultaria da dinâmica entre macro estruturas <strong>de</strong> suaprodução, tal como, por exemplo, a organização social da produção <strong>do</strong>s serviços, asorganizações corporativas e interesses profissionais coletivos ou as políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>,tanto quanto resultaria da dinâmica <strong>de</strong> relações entre os constituintes da microfísicadas ações, no processo <strong>de</strong> trabalho: dinâmica entre conhecimentos, insumos materiais(instrumentos) e o trabalha<strong>do</strong>r (agente). Em qualquer <strong>de</strong>sses <strong>do</strong>is últimos casos, e háestu<strong>do</strong>s que se voltam mais para uma ou mais para outra <strong>de</strong>ssas esferas, a pessoa <strong>do</strong>trabalha<strong>do</strong>r figura como agente que é também ator social e po<strong>de</strong> vir a ser sujeito notrabalho, interligan<strong>do</strong>-se as temáticas <strong>do</strong> sujeito individual e sujeito coletivo na cenainstitucional e na cena social.Estas últimas situações <strong>de</strong> produção científica, já nos anos 90, introduzem temascomo a flexibilização <strong>do</strong>s merca<strong>do</strong>s e das estruturas <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, a pluralida<strong>de</strong>das questões organizacionais, a dimensão das relações interindividuais e intersubjetivasnas ações <strong>do</strong> trabalho e assim por diante. Reconhecemos estes temas, entre outros, nosestu<strong>do</strong>s sobre: regulação da força <strong>de</strong> trabalho e ética <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> nas políticas sociais;gestão <strong>do</strong>s recursos humanos e <strong>de</strong>mocratização das estruturas institucionais;multiplicida<strong>de</strong> profissional e pluralismo nas relações <strong>de</strong> trabalho; agir comunicacionale agir estratégico nas práticas em saú<strong>de</strong>; ética e técnica das práticas em saú<strong>de</strong>, etc...Estas novas temáticas somente agora são trabalhadas da perspectiva reforma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>sserviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, introduzin<strong>do</strong> para o interior <strong>do</strong> movimento pela Reforma Sanitáriabrasileira, a crítica e reforma das ações técnicas, das ações organizacionais e gerenciais,das práticas em saú<strong>de</strong> como um to<strong>do</strong> e da autopercepção <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>res da saú<strong>de</strong>enquanto agentes e cidadãos no trabalho, seja transforman<strong>do</strong> seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> representação<strong>de</strong> interesses coletivos, seja sua cultura profissional e seu papel na reforma das instituiçõese das políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.No entanto, se to<strong>do</strong> esse movimento ocorre na produção técnico-científica e seatribuímos importante papel para o saber científico nessa trajetória, é fundamentalbuscarmos algumas possíveis razões para isso.ENTRE A CIÊNCIA E O TRABALHO: O TRABALHADORRetomemos a primeira forma mencionada <strong>de</strong> reflexão sobre recursos humanos.Tratava-se ali <strong>de</strong> reforma <strong>do</strong> ato médico, através da criação da medicina preventiva ecomunitária, ou proposições afins, surgidas nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s nos anos 40-50. Proposiçõessimilares, embora específicas à realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Brasil, surgiram nas décadas <strong>de</strong> 60 e 70.Como se viu, nessa forma <strong>de</strong> pensar, se o problema centra-se na produção concretadas práticas em saú<strong>de</strong> e a correspon<strong>de</strong>nte qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s assistenciaisofereci<strong>do</strong>s à população, ele está sen<strong>do</strong> toma<strong>do</strong> como se fosse resulta<strong>do</strong> da qualida<strong>de</strong>,vista como ruim, <strong>do</strong>s recursos humanos, em razão <strong>de</strong> ina<strong>de</strong>quada formação escolar 6 .Observamos nessas proposições que há redução importante <strong>do</strong> problema. Elegeseo trabalha<strong>do</strong>r como componente capaz <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r por toda a produção <strong>do</strong>s serviçosSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>287


e condições concretas <strong>do</strong> trabalho. Além disto, ele próprio surge como um mero aplica<strong>do</strong>r<strong>do</strong>s conhecimentos adquiri<strong>do</strong>s, uma vez que adquirin<strong>do</strong> outros conhecimentos ele,automaticamente, mudaria sua prática e o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho! Deixan<strong>do</strong> mais claro, osproblemas <strong>do</strong> trabalho são transforma<strong>do</strong>s em problemas apenas <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho pessoale individual <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r, como se fossem apenas problemas <strong>de</strong> seu <strong>do</strong>mínio em umsaber-fazer. Em segun<strong>do</strong> lugar, esse <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> um saber-fazer, isto é, <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> umaefetiva tecnologia <strong>de</strong> trabalho, reduz-se a <strong>de</strong>ter saberes ao término <strong>de</strong> uma capacitação escolar.Estes <strong>de</strong>slocamentos reduzem o problema inicial. Assim, questões geradas naprodução das ações <strong>de</strong> assistência, <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas tanto pelo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> produzir cuida<strong>do</strong>sa<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, quanto pelas condições concretas da produção e distribuição social <strong>do</strong>sserviços (e <strong>do</strong> trabalho) na socieda<strong>de</strong>, tornam-se questões <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r e, ainda porcima, <strong>de</strong> sua base escolar.Ora, sabemos que a assistência produzida e as condições e contextos <strong>do</strong> trabalhosão realida<strong>de</strong>s em que objetivos técnicos estão articula<strong>do</strong>s aos objetivos institucionais,sob os quais a técnica organiza-se em tal ou qual forma <strong>de</strong> produzir cuida<strong>do</strong>s. E estaorganização representa interesses e políticas administrativas <strong>de</strong> diferentes empresas;representa compromissos junto a complexos financeiros ou médico-industriais;representa certas disponibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> meios <strong>de</strong> trabalho, instalações e formas <strong>de</strong> interagircom a clientela; representa, ainda, maior ou menor satisfação no trabalho. Tu<strong>do</strong> isso éque conformará os padrões <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho profissional, para o conjunto <strong>do</strong>strabalha<strong>do</strong>res, em geral, e com diferenciações <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> certa gama possível <strong>de</strong>comportamentos individuais, para profissionais particulares.Essa situação complica-se ainda mais se consi<strong>de</strong>rarmos o mo<strong>do</strong> como os profissionaisadquirem seus conhecimentos científicos e a<strong>de</strong>stramento técnico, pois esse mo<strong>do</strong>correspon<strong>de</strong> a situações extremamente selecionadas <strong>de</strong> aprendiza<strong>do</strong>. To<strong>do</strong>s sabemosdas críticas <strong>de</strong> que são alvo os hospitais-escola, por exemplo. Nesse processo <strong>de</strong> ensinocom sua pré-seleção <strong>de</strong> casos e patologias, <strong>de</strong> regra com base em interesse <strong>de</strong> pesquisacientífica <strong>do</strong> tipo biomédica, ocorre um aprendiza<strong>do</strong> que em termos práticos to<strong>do</strong>s osprofissionais sabem não correspon<strong>de</strong>r a situações equiparáveis <strong>do</strong> cotidiano assistencial.Centra-se a aprendizagem na vivência <strong>do</strong> mais difícil, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista científico, comose isto recobrisse a gama <strong>de</strong> situações <strong>do</strong> dia-a-dia <strong>do</strong> trabalho, que quase sempre, aocontrário, correspon<strong>de</strong> a <strong>de</strong>mandas mais simples, <strong>do</strong> mesmo ponto <strong>de</strong> vista científico.Trabalho simples ou trabalho complexo são vistos como se fossem a mesma coisa queconhecimento científico simples ou complexo. Mas, <strong>de</strong> fato, no mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho, a“simplicida<strong>de</strong>” é apenas da patologia, sen<strong>do</strong> a assistência ou o cuida<strong>do</strong> a ser produzi<strong>do</strong>um trabalho complexo <strong>de</strong> outra natureza que aquele da prática hospitalartecnologicamente armada. E apenas em algumas das situações <strong>de</strong> trabalho, é que teremosuma proximida<strong>de</strong> daquelas experimentadas na escola.Muitas vezes buscamos resolver esse impasse por meio <strong>de</strong> capacitações profissionais,que, contu<strong>do</strong>, são repetições <strong>do</strong>s padrões escolares <strong>de</strong> qualificação, visan<strong>do</strong> àatualização <strong>do</strong>s conhecimentos científicos mais recentes e da tecnologia <strong>de</strong> ponta, apenas.Dominar o conhecimento científico, porém, não é o mesmo que <strong>do</strong>minar a habilida<strong>de</strong> tecnológica6. É necessário lembrar que as propostas <strong>do</strong> tipo “medicina comunitária” representam relativamente àsoutras uma reflexão que avança na direção <strong>do</strong>s próprios serviços e da produção <strong>do</strong> trabalho, ao conectaras questões <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho e formação profissional com a organização institucional da produção, atravésda preocupação com as necessida<strong>de</strong>s sociais em saú<strong>de</strong> e a participação “comunitária”.288 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


<strong>do</strong> trabalho. Por isso, por mais que aprimoremos a dimensão educacional ou o ensinoescolar, nossa ação, se restrita a isto, apenas atingirá aspectos parciais <strong>do</strong> trabalho.Por outro la<strong>do</strong>, o trabalha<strong>do</strong>r, consoante com sua condição humana que o capacitaefetivamente para criar, inventar soluções e adaptar-se a situações muito diversas, tem<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> habilida<strong>de</strong>s tecnológicas concretas. Po<strong>de</strong>mos auxiliá-lo neste <strong>de</strong>senvolvimentoe, também, tentar promovê-lo <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a articular sua habilida<strong>de</strong> a questõessócio-sanitárias conhecidas, discutidas e valorizadas, quer pelos profissionais, ou pelapopulação. Tal seria o caso em nossa pretensão <strong>de</strong> tratarmos <strong>do</strong>s problemasepi<strong>de</strong>miologicamente significativos para nós, técnicos da Saú<strong>de</strong>, em negociação <strong>de</strong>ssaimportância junto à população.Mas, o que se po<strong>de</strong> verificar é que têm si<strong>do</strong> extremamente freqüentes as formas<strong>de</strong> aproximação <strong>do</strong>s recursos humanos que são redutoras <strong>de</strong> suas problemáticas, talcomo as que acima apontamos. Por isso, seria oportuno indagarmos, por que, afinal, aformação <strong>do</strong> tipo escolar <strong>de</strong> cada profissional parece ser o mais importante em todaessa realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho? Por que é essa formação aquilo que <strong>de</strong>ve ser muda<strong>do</strong>?A resposta encontra-se na História. Nela observaremos as razões <strong>de</strong>sse proce<strong>de</strong>r,que tecnicamente falan<strong>do</strong> se amparam no estatuto que o saber científico adquiriu parao trabalho em saú<strong>de</strong>, ao longo <strong>do</strong> século XIX, enquanto ainda sobretu<strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>smédicos, e que, inclusive, possibilitou a estes o monopólio <strong>de</strong> praticar e conhecer,fornecen<strong>do</strong> também bases i<strong>de</strong>ológicas e políticas para aquele mesmo estatuto <strong>do</strong> sabere, pois, para aquele mesmo mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r o trabalho e seus problemas.Vale a pena, então, examinarmos um pouco esse momento histórico da constituiçãoda medicina mo<strong>de</strong>rna, quan<strong>do</strong>, a prática médica se estabelecerá como um trabalho <strong>de</strong>natureza muito peculiar, relativamente aos outros trabalhos da socieda<strong>de</strong>. Essa suapeculiarida<strong>de</strong> permitirá que sua ação técnica seja concebida sobretu<strong>do</strong> como aplicaçãodireta da ciência; exercício <strong>de</strong> um especial saber; uma profissão. Profissão, naquelecontexto, significou uma intervenção técnica nuclearmente apoiada na atuação <strong>de</strong> seuagente para a produção <strong>do</strong> trabalho. Por esse motivo o conceito <strong>de</strong> profissão refere-se aum trabalho que nasceria como ativida<strong>de</strong> que se dá fundamentalmente pelascaracterísticas vinculadas ao profissional, concepção que ainda guardamos da medicinaaté hoje.Estamos, portanto, diante <strong>de</strong> um trabalho em que o caráter <strong>de</strong> intervenção eficazé muito relevante, daí buscar amparo em uma fundamentação científica para sua açãotécnica, mas esta, mesmo sen<strong>do</strong> intervenção direta e manual sobre seu objeto, tal comoqualquer outro trabalho, será concebida como radicalmente distinta <strong>de</strong> outras tecnologiasou trabalhos manuais. A profissão médica será sempre vista como algo muito distinto<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais trabalhos, não só porque suas ações são especializadas, ou porque oconhecimento (a Ciência) envolvi<strong>do</strong> seja complexo e extenso, ou mesmo porque tenharegras próprias <strong>de</strong> exercício, mas porque lhe é dada uma rígida moral <strong>de</strong> prática,implican<strong>do</strong> uma habilida<strong>de</strong> tecnológica peculiar: uma sabe<strong>do</strong>ria especial acerca <strong>do</strong> uso<strong>do</strong>s conhecimentos científicos, tanto quanto <strong>do</strong>s valores éticos. A prática médica e, emcerta medida, to<strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, não serão vistos sob a imagem comum <strong>de</strong> trabalho.Por isso, a primeira noção <strong>de</strong> profissão é a <strong>de</strong> um trabalho quase não-trabalho!Isto conferirá a seus agentes, no conjunto <strong>do</strong>s trabalhos sociais, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> socialbem circunscrita e protegida, elitizan<strong>do</strong>-os socialmente. A intervenção manual, nestecaso, transcen<strong>de</strong>ria o senti<strong>do</strong> técnico comum <strong>de</strong> manipulação pura e simples <strong>de</strong> umSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>289


objeto <strong>de</strong> prática, para significar um ato também moral. Trata-se <strong>de</strong> uma ação técnicaque se funda e se realiza na <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> uma ética das relações intersubjetivas, nainteração médico-<strong>do</strong>ente (técnica moral-<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte) 7 .Assim, a habilida<strong>de</strong> tecnológica <strong>do</strong> profissional envolve, neste caso, também, senãoprincipalmente, o “bom” uso da ética, expresso através <strong>do</strong> mo<strong>do</strong> a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>de</strong> comportarsediante <strong>do</strong> <strong>do</strong>ente. Note-se que o senti<strong>do</strong> produzi<strong>do</strong> aqui para este “mo<strong>do</strong> a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong><strong>de</strong> comportar-se” implica a interpessoalida<strong>de</strong> e ao mesmo tempo o correto a<strong>de</strong>stramentotécnico, por isso esta profissão não exigiria somente práticas peculiares, senão pessoaspeculiares, “homens <strong>de</strong> <strong>do</strong>m”. O <strong>do</strong>m ou a vocação pessoal <strong>de</strong> cada profissional tem si<strong>do</strong>sempre, até mesmo nos anos 90, lembra<strong>do</strong> como uma espécie <strong>de</strong> exigência da profissão.Esses qualificativos, que são pessoais e individuais e encontram-se mescla<strong>do</strong>s aosaber, recobrem o agir técnico. E o fazem porque contêm <strong>do</strong>is significa<strong>do</strong>s individualizáveis,embora combina<strong>do</strong>s: a habilida<strong>de</strong> (<strong>de</strong> técnica) e uma tendência natural para (ahabilida<strong>de</strong>).Esse duplo senti<strong>do</strong> resulta, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, da valorização da técnica na mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,expressan<strong>do</strong> o <strong>do</strong>mínio da natureza pelo homem como parte <strong>do</strong>s valores <strong>do</strong> novo projetosocial (a socieda<strong>de</strong> industrial capitalista). Essa nova socieda<strong>de</strong> marca-se, pois, pelaconquista da gran<strong>de</strong> intervenção <strong>do</strong> homem sobre o mun<strong>do</strong> natural e sua capacida<strong>de</strong><strong>de</strong> recriar o seu natural, uma “sobre-natureza”. De outro la<strong>do</strong> e ao mesmo tempo, essasconcepções se originam com a progressiva elaboração, por parte da elite <strong>do</strong>minante, <strong>de</strong>justificativas para os acontecimentos sociais, em especial a <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>, on<strong>de</strong> diferenças<strong>de</strong> classes são ancoradas na idéia <strong>de</strong> natural. Passariam, pois, as diferenças sociais a<strong>de</strong>correr <strong>de</strong> “causas individuais”, competências ou incompetências estritamente pessoais,diante <strong>de</strong> oportunida<strong>de</strong>s sociais “iguais”, idéia a que se reduz a <strong>de</strong>terminação socialdas ações e das situações <strong>de</strong> vida.Será através <strong>de</strong> to<strong>do</strong> esse conjunto <strong>de</strong> formulações que a noção <strong>de</strong> profissão cunhaa concepção <strong>de</strong> um agir no trabalho em saú<strong>de</strong>, e um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> prática, basea<strong>do</strong> especialmenteem seu agente ou em seu <strong>de</strong>sempenho pessoal. Eis porque o profissional não sei<strong>de</strong>ntifica a um trabalha<strong>do</strong>r, no senti<strong>do</strong> <strong>do</strong> que o agente seria apenas um <strong>do</strong>s componentes<strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho, mas, neste caso, seria quase o próprio processo inteiro. Portanto,tal como <strong>de</strong> princípio formulada e utilizada <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> hegemônico, até pelo menos osanos 50 <strong>de</strong>ste século, esta concepção <strong>de</strong> trabalho reduz o processo <strong>de</strong> intervenção quasetotalmente às dimensões <strong>do</strong> agente.O trabalho parece <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r ou ser <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong> pela vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo,sujeito particular e priva<strong>do</strong>. Este <strong>de</strong>ve <strong>de</strong>senvolver no <strong>de</strong>sempenho cotidiano virtu<strong>de</strong>s(produto <strong>de</strong> sua correta conduta moral), como, por exemplo, da “responsabilida<strong>de</strong> ehonra<strong>de</strong>z”. Por outro la<strong>do</strong>, se essas virtu<strong>de</strong>s po<strong>de</strong>m ser “aprendidas” no longotreinamento escolar, em razão <strong>do</strong> tipo <strong>de</strong> conhecimento que envolve (complexo e difícil,sobre pessoas), não po<strong>de</strong>m ser exercidas por coação institucional, governamental oucomercial. A complexida<strong>de</strong> <strong>do</strong> saber envolvi<strong>do</strong> exigiria essa disposição pessoal, atéporque a prática é uma relação pessoal e direta <strong>do</strong> médico com o cliente 8 .7. Veja-se SCHRAIBER, L.B.- O médico e seu trabalho..., op. cit.8. Cf. FREIDSON, E. - Profession of Medicine - a Study of the Sociology of Applied Knowledge, Dodd,Mead and Company, Inc., New York,1970.290 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O fato <strong>de</strong> que nos dias <strong>de</strong> hoje a interação médico-paciente continue sen<strong>do</strong> taltipo <strong>de</strong> relação, o que ocorre também para vários outros trabalha<strong>do</strong>res em saú<strong>de</strong>,contrasta, porém, com o fato concomitante <strong>de</strong> que a organização da produção <strong>do</strong>scuida<strong>do</strong>s passe a ter estrutura complexa empresarial, que terminará influencian<strong>do</strong>fortemente a conformação <strong>do</strong> trabalho a ser realiza<strong>do</strong>. Isto, <strong>de</strong> certo, matiza tanto a basepessoal, quanto a base institucional-social <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação <strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho profissional 9 .Adicionalmente não po<strong>de</strong>mos esquecer que esse estatuto <strong>do</strong> saber teve um suportematerial e bem objetivo para sustentar tal representação <strong>do</strong> trabalho: havia poucosequipamentos e o médico, <strong>do</strong> século XIX até mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s anos 50 <strong>do</strong> século XX, tem àsua disposição, como tecnologia, quase que só o saber. Por isso, não apenas o <strong>de</strong>sempenhopessoal e individual embasam esse trabalho em sua constituição histórica, mas o saber,como sen<strong>do</strong> quase o único recurso tecnológico. Por isso também este saber se estabelececomo componente <strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor. Contu<strong>do</strong>, essa concepção vigora atémesmo nos dias atuais, já ten<strong>do</strong> muda<strong>do</strong> a base técnica e material da inserção <strong>do</strong> sabercomo tecnologia, em uma prática mais tecnicista, mais equipada. E também sua origemcomo prática liberal e organizada na forma <strong>do</strong> pequeno produtor isola<strong>do</strong> e priva<strong>do</strong> <strong>de</strong>consultório particular, é substituída pela medicina das instituições e <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>scomplexos <strong>de</strong> produção <strong>do</strong>s serviços, muito embora a representação <strong>de</strong> trabalhomantenha-se bastante próxima daquela anterior.Esta medicina mais contemporânea explicitou progressivamente sua face <strong>de</strong>prática social, isto é, compromissos sociais e disposições <strong>de</strong> coletivo, em que a dimensãopessoal <strong>de</strong> cada trabalha<strong>do</strong>r individual articula-se a uma gama ampla <strong>de</strong> fatoreslimitantes, conti<strong>do</strong>s nas condições <strong>de</strong> trabalho e na equipe <strong>de</strong> trabalho.O “<strong>de</strong>sempenho <strong>do</strong> profissional” será tensiona<strong>do</strong> pela situação particular econcreta em que, objetivamente, encontra-se o trabalha<strong>do</strong>r. Não será por outra razãoque, ao tempo <strong>de</strong>ssas transformações históricas, ocorridas entre os anos 60 e 70, ascondições <strong>de</strong> trabalho e o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho passam a ganhar importância paraexpressar as problemáticas <strong>do</strong>s recursos humanos. Nesses anos, produzem-se váriosestu<strong>do</strong>s preocupa<strong>do</strong>s com o mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho e serão temáticas freqüentes: asprodutivida<strong>de</strong>s, os custos-benefícios, por um la<strong>do</strong>, caracterização da distribuição <strong>do</strong>sprofissionais em merca<strong>do</strong>, por outro, e ainda insuficiência <strong>de</strong> recursos materiais ouinstalações como responsáveis pela baixa qualida<strong>de</strong> assistencial.A concepção <strong>do</strong>s recursos humanos como força <strong>de</strong> trabalho e agente <strong>de</strong> trabalho,em síntese, tal como se <strong>de</strong>u no Brasil notadamente a partir da década <strong>de</strong> 80, ultrapassousua apreensão mais aparente <strong>de</strong> “profissional”, naquele primeiro senti<strong>do</strong>, e permitiucompreen<strong>de</strong>r a produção das práticas como um trabalho social, lançan<strong>do</strong> <strong>de</strong>finitivamentea noção <strong>de</strong> ‘trabalha<strong>do</strong>res em saú<strong>de</strong>’ como categoria <strong>de</strong> análise e interpretação teórica.Essa noção já não po<strong>de</strong> satisfazer-se com a mesma representação anterior e praticamenteresumir a tecnologia <strong>de</strong> trabalho à condição <strong>de</strong> seu agente, menos ainda reduzir estaúltima a especificida<strong>de</strong>s da formação escolar: enquanto trabalha<strong>do</strong>r, o agente i<strong>de</strong>ntificasecomo um <strong>do</strong>s constituintes <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho.No entanto, no interior <strong>de</strong>sse novo estatuto, algumas reflexões vão, em movimentopolar ao anterior, proce<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>slocamentos redutores <strong>do</strong>s problemas <strong>do</strong> trabalho9. SCHRAIBER, L. B. - O trabalho médico: questões acerca da autonomia profissional, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Pública 11(1):57-64, Rio <strong>de</strong> Janeiro, ENSP/Fio Cruz, 1995.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>291


no senti<strong>do</strong> oposto: uma total dissolução <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r nas condições <strong>de</strong> trabalho,restan<strong>do</strong> os questionamentos <strong>do</strong> trabalho, <strong>de</strong>sta feita, reduzi<strong>do</strong>s à estruturaorganizacional, gerencial ou empresarial, da produção <strong>do</strong>s serviços. “Dissolver”, aqui,não quer dizer ignorar que o trabalha<strong>do</strong>r faça parte da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho. Mas querdizer, nos estu<strong>do</strong>s acerca <strong>do</strong>s problemas <strong>do</strong> trabalho, tomar o trabalha<strong>do</strong>r <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> játão conjuga<strong>do</strong> às condições em que trabalha, que se termina por <strong>de</strong>squalificar o agente<strong>do</strong> trabalho como um possível ator social. Vale dizer <strong>de</strong>squalificar o momento <strong>do</strong> agentecomo dimensão também problemática, em que surgem igualmente obstáculos para aconcretização <strong>do</strong> trabalho, obstáculos que são problemas específicos da esfera <strong>do</strong> trabalha<strong>do</strong>r.Entre esses extremos, inscrevem-se, recentemente, algumas abordagens quebuscam relativizar os estatutos absolutos em que recursos humanos foi encerra<strong>do</strong>, comoprofissional <strong>de</strong> autonomia plena ou como instrumental da produção. Reconhecen<strong>do</strong>,porém, a força histórica <strong>de</strong>ssas produções anteriores, ressaltamos aqui o fato <strong>de</strong> que, aomenos em parte, essa polarização <strong>de</strong>veu-se às necessida<strong>de</strong>s urgentes das intervençõessociais por reformas da assistência e ao pequeno <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong>s referenciais naprodução científica correspon<strong>de</strong>nte: os paradigmas <strong>de</strong> interpretação não foramsuficientemente explora<strong>do</strong>s, como produção teórica, em parte para servir rapidamenteà intervenção social, como saber prático. Assim, a constatação da insuficiência <strong>de</strong> quadrosexplicativos que funcionem como marcos <strong>de</strong> referência mais substantivos, constataçãoessa presente, hoje, em quase to<strong>do</strong>s os intelectuais da Reforma Sanitária brasileira liga<strong>do</strong>sà temática <strong>do</strong>s recursos humanos, cabe também à confusão entre saber teórico e projetos<strong>de</strong> ação. Se a possibilida<strong>de</strong> das concepções que foram elaboradas sobre o trabalho advêm<strong>de</strong> parte das características concretas <strong>de</strong>sse trabalho, também são produzidas porquetomamos acriticamente o mo<strong>do</strong> mais aparente com que o trabalho e sua produção socialse apresenta. E nesta aparência, ora uma, ora outra das características -entre saber comotecnologia e os equipamentos; entre indivíduo e a organização - parecem estabelecer-secomo “o fator” responsável pela configuração final <strong>do</strong>s serviços.No plano mais pragmático, quan<strong>do</strong> elaboramos projetos <strong>de</strong> ação, essa perda dacapacida<strong>de</strong> crítica po<strong>de</strong> prevalecer, o que torna o conhecimento produzi<strong>do</strong> nestamodalida<strong>de</strong>, como antes mencionamos, mais vulnerável aos <strong>de</strong>svios redutores. Maisvulnerável, porém, não necessariamente fada<strong>do</strong> a isto. Por outro la<strong>do</strong>, será mais fácilpara a produção teórica evitar essas reduções, por ser elaboração mais abstrata, temporalmentemais amadurecida e controlada pela meto<strong>do</strong>logia científica. Mas isto tampoucogarante, por si só, o sucesso da empreitada. E ocorre, tal como também já mencionamos,que há, <strong>de</strong> fato, existência conflituosa <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s relativas a ambas as produções,no cotidiano <strong>do</strong>s serviços. Dar conta, seja <strong>do</strong> fato <strong>de</strong> existirem ambas exigências práticas(<strong>de</strong> intervenção rápida e <strong>de</strong> conhecimento mais elabora<strong>do</strong>), seja <strong>de</strong> suas naturezasconflitantes nos tempos e dimensões a se tomar, significará esforço em prol da ReformaSanitária ainda maior e a percepção <strong>de</strong> que seria muito produtivo diversificarmos nossasproduções.Desse mo<strong>do</strong>, não se trata <strong>de</strong> negar aspectos <strong>de</strong> “profissionalismo” <strong>do</strong>s trabalha<strong>do</strong>resem saú<strong>de</strong>, como tampouco as características que adquirem em sua disposiçãoenquanto “agentes” <strong>de</strong> trabalho, componente <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho ou <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.Estas são efetivamente ocorrências na realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>, e portanto,participam também da substância <strong>de</strong> suas situações, qualifican<strong>do</strong>-as.No entanto, da perspectiva <strong>de</strong> ‘trabalha<strong>do</strong>r’ são recompostas em outras especificida<strong>de</strong>s.Recursos humanos, nessa aproximação, passa a significar subtotalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>292 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


trabalho, aspecto parcial da realida<strong>de</strong> <strong>do</strong> trabalho. E será nesse mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> trabalho quesuas características se estruturarão, das mais visíveis às menos (tecnicida<strong>de</strong>/subjetivida<strong>de</strong> ou vice-versa); das mais técnicas às mais intelectuais (habilida<strong>de</strong>s/ <strong>do</strong>mínioe uso <strong>de</strong> saber), das mais mecanizadas às mais humanistas (intervenção manual e instrumental/relações intersubjetivas e agir comunicacional).É importante notar que ao inserirmos o próprio trabalha<strong>do</strong>r em um contexto como qual guarda relações, senão <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminação total ao menos algumas “regiões” <strong>de</strong>trocas e mútua influência, evitamos tomar <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> absoluto e sempre unilateral aresponsabilização pela qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s e competência técnica <strong>de</strong> resolução das<strong>de</strong>mandas. Essa responsabilização têm surgi<strong>do</strong> quer só como atribuível ao profissional,quer somente às políticas institucionais ou públicas, em razão das condições da estrutura<strong>de</strong> trabalho. Escaparemos, assim, <strong>de</strong> uma total responsabilização individual ou privada,e no polo oposto, total <strong>de</strong>scompromisso <strong>de</strong> indivíduo-cidadão por parte <strong>do</strong> profissional,com a responsabilização total da “estrutura”, até como se nesta não estivesse tambémparticipan<strong>do</strong> o profissional (ou seus representantes).Quan<strong>do</strong> as condições <strong>de</strong> estruturação institucional das práticas, as modalida<strong>de</strong>sempresariais <strong>de</strong> sua disposição em merca<strong>do</strong>, as conexões da área pública e privada naprodução social <strong>do</strong>s serviços e as formas correspon<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> institucionalização daclientela, para além da constituição <strong>do</strong> trabalho coletiviza<strong>do</strong> em saú<strong>de</strong>, são componentestambém consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s nas problemáticas <strong>do</strong>s recursos humanos, essas abordagensremetem a “resolução” e a “responsabilida<strong>de</strong>” <strong>do</strong>s serviços para espaços progressivamentepúblicos.Assim, também essa preocupação pareceu mover nossa história da produçãotécnico-científica sobre os recursos humanos e suas aproximações contrastantes. Noprimeiro caso, está-se diante <strong>do</strong> valor da<strong>do</strong> à esfera privada e a liberda<strong>de</strong> individual, naresponsabilização por realizar a ética da igualda<strong>de</strong> no trabalho em saú<strong>de</strong>, como <strong>de</strong>verpessoal: ética traduzida para uma <strong>de</strong>ontologia médica, a <strong>de</strong> assistir a to<strong>do</strong>s e qualquerum por igual. No segun<strong>do</strong> caso, está-se diante <strong>do</strong> valor da<strong>do</strong> à responsabilização <strong>do</strong>representante da esfera pública, <strong>de</strong>ver <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, por realizar a mesma ética da igualda<strong>de</strong>,mas através da lei e garantias <strong>do</strong>s direitos sociais. Mas, num e noutro caso, não háconexões que articulem, quer as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> responsabilização social <strong>de</strong> cada indivíduo,quer as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong> individual na or<strong>de</strong>m social. Nossa proposição preten<strong>de</strong>repensar também por este eixo uma forma distinta <strong>de</strong> tomar as profissões em saú<strong>de</strong>, embusca <strong>de</strong> novas pautas <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>s para os recursos humanos.TRABALHADOR DA SAÚDE: OUTRO CONCEITO DE PROFISSÃO ENOVA AGENDA PARA FUTUROS ESTUDOSAo nos filiarmos à nova abordagem teórico-meto<strong>do</strong>lógica para enfocar “recursoshumanos”, cremos ter <strong>de</strong>ixa<strong>do</strong> claro nosso aban<strong>do</strong>no <strong>do</strong> tratamento <strong>de</strong>sses recursoscomo insumos <strong>de</strong> uma estrutura organizacional, para vê-los como atores privilegia<strong>do</strong>s<strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, ao tempo em que se dispõem na estrutura <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> serviços,respon<strong>de</strong>n<strong>do</strong> a questões da organização social <strong>de</strong>sta e <strong>de</strong> seu conseqüente merca<strong>do</strong>.O merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong> guarda características particulares pelaespecificida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s serviços presta<strong>do</strong>s, sen<strong>do</strong> seu profissional um ator social tambémSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>293


astante específico. Ser profissional <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> implica em ter além <strong>de</strong> um conhecimentopróprio e complexo, uma disposição subjetiva especial para lidar com pessoas, quasesempre, em situação frágil e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> suas orientações, o que “... exigeconhecimento específico, disciplina, responsabilida<strong>de</strong>, atenção e acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> gran<strong>de</strong>capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conviver com o stress, o sofrimento, a <strong>do</strong>r e a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> resolverproblemas alheios.” (Macha<strong>do</strong>, 1995:54) 10Por essa sua especificida<strong>de</strong> a prática requer <strong>do</strong> profissional uma forma <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenhoarticulada ao comportamento e atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> seu próprio objeto <strong>de</strong> intervenção,também um indivíduo e ator social. Alian<strong>do</strong> obediência com <strong>de</strong>pendência e confiança,<strong>do</strong> paciente para com o profissional (especialmente o médico), a relação entre esses <strong>do</strong>isatores tem se estabeleci<strong>do</strong> com nítida autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> profissional.Agin<strong>do</strong> como intermedia<strong>do</strong>res entre a ciência e a realida<strong>de</strong> cotidiana osprofissioanis <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> passam a ter status diferencia<strong>do</strong>, com representação social singulare <strong>de</strong>stacada. Concordamos com Starr (1982:18) 11 , quan<strong>do</strong> apresenta os médicos como“... intermediários entre a ciência e a experiência privada, interpretan<strong>do</strong> problemaspessoais na linguagem abstrata <strong>do</strong> conhecimento científico, para muita gente, o únicocontato com o mun<strong>do</strong> científico que <strong>de</strong> outra maneira estaria a uma distância proibitiva.Os médicos oferecem uma espécie <strong>de</strong> objetivida<strong>de</strong> individualizada, uma relação pessoal,um conselho autoriza<strong>do</strong>. Pelas circunstâncias da enfermida<strong>de</strong> induzem a aceitar seusjuízos. Quase sempre com <strong>do</strong>res, temen<strong>do</strong> a morte, os enfermos têm uma necessida<strong>de</strong>especial <strong>de</strong> confiança e são muito propensos a crer”.Desta forma, é pru<strong>de</strong>nte pensarmos os recursos humanos em saú<strong>de</strong> como atorescentrais <strong>de</strong> qualquer ação terapêutica, seja ela <strong>de</strong> natureza hospitalar, ambulatorial ouaté mesmo <strong>de</strong> intervenção preventiva da saú<strong>de</strong> pública. E mais, esses profissionais têm,por natureza <strong>do</strong> ofício e conhecimento específico, processos <strong>de</strong> trabalhos singulares noqual, a abso<strong>luta</strong> rotinização, burocratização e indiferenciação não são “bem vin<strong>do</strong>s”. Aqualida<strong>de</strong> da assistência à saú<strong>de</strong>, portanto, <strong>de</strong>manda não apenas a<strong>de</strong>quadas condiçõesobjetivas para seu <strong>de</strong>senvolvimento, senão flexibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> formas e dinâmica <strong>de</strong>reavaliação permanente <strong>de</strong> sua organização. Em suma, que seja vista como trabalho emprocesso, além <strong>de</strong> processo <strong>de</strong> trabalho. E aqui estamos nos referin<strong>do</strong> tanto aoconhecimento técnico-científico adquiri<strong>do</strong> nas escolas profissionais e suas formas <strong>de</strong>atualização e aprimoramento, como, e principalmente, as condições <strong>de</strong> sua utilizaçãoem transformações dadas da realida<strong>de</strong>.Mudanças ocorridas no campo das ciências médicas e da estrutura <strong>de</strong> produção<strong>de</strong> serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> nestas últimas décadas, têm provoca<strong>do</strong> alterações significativastanto no processo <strong>de</strong> trabalho como na própria composição da estrutura ocupacional<strong>do</strong>s profissionais que produzem serviços <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. Assistimos ao nascimento <strong>de</strong> algumasprofissões (fisioterapia, nutrição, psicologia, etc.), o fortalecimento <strong>de</strong> outras (medicina,o<strong>do</strong>ntologia, etc.) e o <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> profissões até então consi<strong>de</strong>radas tradicionaisna estrutura ocupacional (farmácia, por exemplo). Um novo cenário <strong>de</strong> organização <strong>de</strong>interesses corporativo surge no setor saú<strong>de</strong>. Estas profissões passam a disputar ereivindicar áreas monopolistas <strong>de</strong> atuação e prática profissionais. Os conflitos sãoinevitáveis e a disputa por clientela se dá <strong>de</strong> forma acentuada, por vezes, ferin<strong>do</strong> osprincípios éticos da prática profissional. O merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho hoje é segmenta<strong>do</strong> e10. MACHADO, M.H. - Trabalha<strong>do</strong>res da Saú<strong>de</strong>: um bem público?, op. cit., p. 54.294 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


altamente especializa<strong>do</strong>, exigin<strong>do</strong> <strong>do</strong> paciente a disposição <strong>de</strong> buscar serviçosespecializa<strong>do</strong>s para cada mal <strong>de</strong> pa<strong>de</strong>ce.Afirma Macha<strong>do</strong> (1995:56) 12 que “O fenômeno da especialização e da profissionalização(surgimento <strong>de</strong> novas profissões) reflete esse cenário <strong>de</strong> disputa <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>,ou seja, especializa-se, profissionaliza-se para manter a autonomia técnica e, consequentemente,a econômica”.Fruto também <strong>de</strong>ssas transformações é a implosão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho individualiza<strong>do</strong><strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por cada profissão. Cada vez mais, os médicos, os enfermeiros,os fisioterapeutas, os o<strong>do</strong>ntólogos, os psicólogos, e os nutricionistas, por exemplo, sevêm inclina<strong>do</strong>s e por vezes, compeli<strong>do</strong>s à executarem suas tarefas em comum acor<strong>do</strong>com outras profissões que divi<strong>de</strong>m fronteiras <strong>de</strong> conhecimentos e práticas profissionais(psiquiatra e psicólogo; fisiatra e fisioterapeuta; nutrólogo e nutricionista; enfermeiro eadministra<strong>do</strong>r hospitalar, entre outros exemplos). O trabalho compartilha<strong>do</strong>, coletiviza<strong>do</strong>tem si<strong>do</strong> imposto como rotina no novo contexto <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho em saú<strong>de</strong>.Por outro la<strong>do</strong>, esse processo <strong>de</strong> especialização e coletivização leva à uma crescentebusca <strong>de</strong> racionalização <strong>do</strong> trabalho:...”a rotinização das ativida<strong>de</strong>s, até então <strong>de</strong> cunhoindividual e artesanal, tradicionais da farmácia e medicina, por exemplo, é fatoincontestável nas socieda<strong>de</strong>s <strong>do</strong> fim <strong>do</strong> milênio. Situações, ativida<strong>de</strong>s, funções e tarefas<strong>de</strong>senvolvidas <strong>de</strong> forma tradicional e <strong>de</strong> exclusiva proprieda<strong>de</strong> técnica <strong>do</strong> profissional,passam a ser executadas e planejadas por profissionais alheios à ativida<strong>de</strong>, conferin<strong>do</strong>uma baixíssima possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> criativida<strong>de</strong>. Estamos aqui falan<strong>do</strong> <strong>de</strong> exemplos como:controle <strong>de</strong> tempo <strong>de</strong> permanência <strong>do</strong> paciente no hospital; medicamentos e exames aserem ministra<strong>do</strong>s e/ou solicita<strong>do</strong>s ao paciente, que passaram das mãos <strong>do</strong>s médicospara os <strong>do</strong>s gerentes hospitalares que, são cada vez mais, indivíduos com formação emeconomia, administração ou até em engenharia <strong>de</strong> produção” (MACHADO, 1995:56) 13 .A perda progressiva <strong>de</strong> amplas esferas <strong>de</strong> controle <strong>do</strong> trabalho e o constrangimentoda histórica autonomia profissional é fato que po<strong>de</strong>mos perceber quotidianamente nasorganizações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. A erosão da autonomia (técnica e econômica) é experimentadapor to<strong>do</strong>s os profissionais que atuam em organizações (empresariais ou estatais) <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>, nas quais o assalariamento é uma situação dada.Se por um la<strong>do</strong>, os avanços tecnológicos têm trazi<strong>do</strong> benefícios às ciências médicas,no esclarecimento e <strong>de</strong>svendamentos <strong>de</strong> males até então in<strong>de</strong>cifráveis; por outro,estes avanços têm produzi<strong>do</strong> efeitos problemáticos tanto na forma <strong>de</strong> produção como<strong>de</strong> consumo <strong>de</strong>sses serviços. A assistência à saú<strong>de</strong> tornou-se complexa, cara e inacessívelao consumo <strong>de</strong> massa. Cada vez mais, a saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> ser um bem público e universale se torna um bem privativo e exclu<strong>de</strong>nte. Os altos custos <strong>do</strong>s serviços especializa<strong>do</strong>s etecnologiza<strong>do</strong>s têm leva<strong>do</strong> o sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> à situações para<strong>do</strong>xais: produziu-se aidéia <strong>de</strong> que as ciências médicas po<strong>de</strong>m tu<strong>do</strong> esclarecer e resolver e, ao mesmo tempo,o acesso a esses avanços são caros e restritos. Produziu-se também a noção <strong>de</strong> que otratamento especializa<strong>do</strong> é mais seguro e mais mo<strong>de</strong>rno. Elevou-se a um statusdiferencia<strong>do</strong> os profissionais ultra-especialistas, <strong>de</strong>sprezan<strong>do</strong> o atendimento <strong>do</strong>sprofissionais <strong>de</strong> prática generalista ou até especialista em gran<strong>de</strong>s ramos <strong>do</strong>11. STARR, P., op. cit, p. 18.12. MACHADO, M.H. - Trabalha<strong>do</strong>res da Saú<strong>de</strong>: um bem público?, op. cit.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>295


conhecimento. A valorização <strong>do</strong>s atos tecnológicos é um fato em quase to<strong>do</strong>s osatendimentos médicos presta<strong>do</strong>s no nosso sistema <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Enfim, acreditamos que as questões que envolvem a área <strong>de</strong> recursos humanosno contexto <strong>do</strong> SUS são preocupantes e <strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ras. O movimento da Reforma Sanitáriabem como o <strong>de</strong>bate fomenta<strong>do</strong> e produzi<strong>do</strong> pelo <strong>CEBES</strong> nesta última década, emparticular, no campo <strong>do</strong>s recursos humanos tem aponta<strong>do</strong> para questões e temas queenvolvem: qualida<strong>de</strong>, produção <strong>de</strong> serviços eticamente comprometi<strong>do</strong>s com umaestrutura <strong>de</strong> serviços compatível com as necessida<strong>de</strong>s da população, políticas <strong>de</strong> RHjustas e coerentes com os princípios <strong>de</strong> valorização, qualida<strong>de</strong> e incentivo ao profissionalque lida com a saú<strong>de</strong>. Os inúmeros <strong>de</strong>bate<strong>do</strong>res que, ao longo <strong>de</strong>sses anos, buscaramimprimir uma nove forma <strong>de</strong> “olhar” estas, enfocaram sempre o retorno da idéia <strong>de</strong>que o trabalha<strong>do</strong>r em saú<strong>de</strong> é um trabalha<strong>do</strong>r especial, <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s técnicas ehumanas o que faz “diferente” <strong>do</strong>s <strong>de</strong>mais trabalha<strong>do</strong>res. A apreensão <strong>do</strong>s recursoshumanos por outro ângulo é uma imposição <strong>do</strong>s tempos atuais. Os recursos humanostêm que ser pensa<strong>do</strong>s no intercruzamento da esfera assistencial e da esfera gerencial e,sobretu<strong>do</strong>, inseri<strong>do</strong> em situações <strong>de</strong> conflito entre essas mesmas esferas. Tomá-los comosíntese <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s em disputa, na busca pela recuperação <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões maisautônomas, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e, <strong>de</strong> outro, na busca pela racionalização <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o processo talcomo realiza<strong>do</strong> pela perspectiva administrativa, conforme dito anteriormente, será aabordagem fundamental para qualquer organização mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong> prestação <strong>de</strong> serviços<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Insistimos na idéia <strong>de</strong> que o trabalha<strong>do</strong>r em saú<strong>de</strong>, pela sua especificida<strong>de</strong> esingularida<strong>de</strong> (objeto, processo e forma <strong>de</strong> apreensão <strong>do</strong> mesmo) é converti<strong>do</strong>, em um“bem público”, que <strong>de</strong>verá ser pensa<strong>do</strong>, trata<strong>do</strong> e visto como algo a ser preserva<strong>do</strong>,valoriza<strong>do</strong> e acima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> manti<strong>do</strong> em “bom esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> conservação”. Aqui, estamosfalan<strong>do</strong>, como vimos <strong>de</strong>bater ao longo <strong>de</strong>stes anos nos <strong>CEBES</strong>, por exemplo, aimportância <strong>de</strong> preservar: salários, condições <strong>de</strong> trabalho e valorização <strong>do</strong> seus serviçospresta<strong>do</strong>s à socieda<strong>de</strong>.Questão científica e tecnológica, os recursos humanos terão que ser, comotrabalha<strong>do</strong>res da saú<strong>de</strong>, objeto <strong>de</strong> novos e mais aprofunda<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s. Questão políticae social, os recursos humanos terão que <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser retórica vazia <strong>de</strong> políticos egovernantes <strong>de</strong>magógicos para tornar-se objeto da retórica fundamentada, e, então,questão efetiva na agenda política <strong>do</strong>s gestores, sejam eles da re<strong>de</strong> pública ou privada<strong>de</strong> serviços. Priorida<strong>de</strong> técnico-científica e priorida<strong>de</strong> ético-política, recursos humanosterá que se tornar efetivamente, um eixo <strong>do</strong> conhecimento e da prática política <strong>de</strong><strong>de</strong>senvolvimento social e humano.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. AROUCA, A.S.- O Dilema Preventivista: contribuição para a compreensão crítica da MedicinaPreventiva, <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Ciências Médicas da Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Campinas(UNICAMP),São Paulo, Brasil, Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>, 1975.13. MACHADO, M.H. - Trabalha<strong>do</strong>res da Saú<strong>de</strong>: um bem público?, op. cit.296 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


2. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. COORDENAÇÃO GERAL DE DESENVOLVIMENTO DERECURSOS HUMANOS PARA O SUS. II Conferência Nacional <strong>de</strong> recursos Humanos, (relatóriofinal) Brasília, Ministério da Saú<strong>de</strong>, 19933. BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. SECRETARIA DE MODERNIZAÇÃO ADMINISTRATIVARECURSOS HUMANOS, Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Diretrizes para a formulação <strong>de</strong> Política <strong>de</strong>Recursos Humanos, Brasília, 1989.4. DONNANGELO, M. C. F.- Medicina e Socieda<strong>de</strong> o médico e seu merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabalho, Pioneira,São Paulo, 1975.5. DONNANGELO, M.C.F. E PEREIRA, L.- Saú<strong>de</strong> e Socieda<strong>de</strong>, Duas Cida<strong>de</strong>s, São Paulo, Brasil,1976.6. FREIDSON, E. - Profession of Medicine - a Study of the Sociology of Applied Knowledge, Dodd,Mead and Company, Inc., New York,1970.7. GIRARDI, S.N.- La fuerza <strong>de</strong> trabajo en el sector salud: elementos teóricos y evi<strong>de</strong>ncias empiricas.Educación Médica y Salud 25 (1):37-47, 1991.8. MACHADO M. H.- As corporações profissionais: sindicalismo e corporativismo IN GALLO, E.;RIVERA, F. J. U.; MACHADO, M. H.- Planejamento criativo: novos <strong>de</strong>safios em políticas <strong>de</strong>saú<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Relume/Dumara, 1992 p. 93-1149. MACHADO, M.H. Sociologia <strong>de</strong> las profisiones: un nuevo enfoque Educación Médica y Salud 25(1):28-36, 1991.10. MACHADO, M.H. Profissões em Saú<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Ed. FioCruz, 1996.11. MÉDICI, A.C. (org.) - Textos <strong>de</strong> Apoio - Planejamento I - Recursos Humanos em Saú<strong>de</strong>, PEC/ENSP/ABRASCO, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1988.12. MEDICI, A.C.; MACHADO, M.H.; NOGUEIRA, R.P.; GIRARDI, S.N.- El merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabajo ensalud: aspectos teóricos, conceptuales y meto<strong>do</strong>logicos. Educacion Medica y Salud 25 (1): 1-14,1991.13. MENDES-GONÇALVES, R. B. - Tecnologia e Organização Social das Práticas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>:características <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> trabalho na re<strong>de</strong> estadual <strong>de</strong> centros <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, SãoPaulo, Hucitec / Abrasco, 1994.14. NOGUEIRA, R. P. - A Força <strong>de</strong> Trabalho em Saú<strong>de</strong>, in MÉDICI, A. C. (org.) - Textos <strong>de</strong> Apoio -Planejamento I - Recursos Humanos em Saú<strong>de</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, PEC/ENSP/ABRASCO, 1988,pp. 13-18.15. NOGUEIRA, R.P.- Pessoal <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>: a discussão teórica e a produção científica sobre o tema, inNUNES, E. D.- As Ciências Sociais em Saú<strong>de</strong> na América Latina. Tendências e Perspectivas,OPAS, Brasilia, 1985.16. PAIM, J. S.- Recursos Humanos em Saú<strong>de</strong> no Brasil: problemas crônicos e <strong>de</strong>safios agu<strong>do</strong>s, SãoPaulo, <strong>Faculda<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública da USP, 1994.17. PAIM, J.S. - A reorganização das práticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em distritos sanitários in MENDES, E.V. (org.)- Distrito Sanitário. O processo social <strong>de</strong> mudança das práticas sanitárias <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong>, São Paulo/ Rio <strong>de</strong> Janeiro, Hucitec-ABRASCO, 1993, pp. 187-220.18. RIBEIRO, J. M.; SCHRAIBER, L. B. - A Autonomia e O Trabalho em Medicina, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>Pública, 10(2): 190-99, 1994.19. SANTANA, J. P; GIRARDI, S. N.- Recursos Humanos em saú<strong>de</strong>: reptos atuais Educacion Médicay Salud 27 (3): 341-56, 1993.20. SCHRAIBER, L. B. - O trabalho médico: questões acerca da autonomia profissional, Ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong>Saú<strong>de</strong> Pública 11(1):57-64, Rio <strong>de</strong> Janeiro, ENSP/Fio Cruz, 1995.21. SCHRAIBER, L. B. - O médico e seu trabalho. Limites da liberda<strong>de</strong>, São Paulo, Hucitec, 1993.22. SCHRAIBER, L. B.; PEDUZZI, M. - Tendências e possibilida<strong>de</strong>s da investigação <strong>de</strong> RecursosHumanos em Saú<strong>de</strong> no Brasil, Educación Medica Y Salud 27 (3): 295-313, 1993.23. SILVA, J. A. da- Desarrollo <strong>de</strong> recursos humanos para los sistemas locales <strong>de</strong> salud: Brasil, EducaciónMédica y Salud 27 (1):32-49, 1993.24. STARR, PAUL. - The Social Transformation of American Medicine. BasicBooks, United States ofAmerica, 1982.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>297


298 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Produção Farmacêutica e <strong>de</strong> Imunobiológicosno Brasil: a Necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um Novo Padrão<strong>de</strong> Intervenção EstatalCarlos Augusto Grabois Ga<strong>de</strong>lhaJosé Gomes TemporãoDentro <strong>do</strong> amplo leque <strong>de</strong> objetos <strong>de</strong> análise que compõe o campo da saú<strong>de</strong> coletiva,a questão <strong>do</strong>s insumos vem ganhan<strong>do</strong> importância crescente. A mo<strong>de</strong>rna tecnologia<strong>de</strong> diagnose e terapia, a produção e o consumo <strong>de</strong> medicamentos e imunobiológicos,entre outros produtos, integram um universo que permite múltiplas abordagens.Optamos por trabalhar com um recorte limita<strong>do</strong> – imunobiológicos e medicamentos– buscan<strong>do</strong> enfatizar a realida<strong>de</strong> da produção estatal e ten<strong>do</strong> como objetivoapontar diretrizes para o redirecionamento da presença <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nestes setores.A tendência atual, presente em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, <strong>de</strong> reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>de</strong> questionamento<strong>de</strong> sua função executora e produtora, é um aspecto adicional que, sem dúvida,aumentará a polêmica sobre estes setores, já fortemente marca<strong>do</strong>s por questões <strong>de</strong> fun<strong>do</strong>político e i<strong>de</strong>ológico.Por fim, a importância <strong>de</strong>stes segmentos para a viabilização plena <strong>do</strong>s princípiosda Reforma Sanitária e da construção <strong>do</strong> Sistema Único <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e sua íntima relaçãocom as áreas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e ciência e tecnologia, justificam o esforço<strong>de</strong> ampliar sua compreensão e <strong>de</strong> introduzir novas abordagens quan<strong>do</strong> se trata <strong>de</strong>repensar seu futuro em nosso país.A POLÍTICA DE MEDICAMENTOSIntroduçãoA questão <strong>do</strong>s medicamentos no Brasil, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seus primórdios, sempre estevemarcada por um forte conflito político e i<strong>de</strong>ológico. Por envolver facetas extremamenteheterogêneas e vincular-se às políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento industrial, científicotecnológicae <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>; ela sempre foi palco <strong>de</strong> acalora<strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates e confrontos quepersistem até os dias “pós-mo<strong>de</strong>rnos” e “globaliza<strong>do</strong>s” <strong>de</strong> hoje.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>299


Prova disto são as inúmeras Comissões Parlamentares <strong>de</strong> Inquérito (CPIs) realizadaspara apurar <strong>de</strong>núncias vinculadas às questões <strong>do</strong>s medicamentos, sempre <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adasa partir <strong>de</strong> situações <strong>de</strong> conflito entre a indústria, o governo e instituições dasocieda<strong>de</strong> civil. A última, realizada em 1994, repete, sem nenhuma originalida<strong>de</strong>, odiagnóstico e as recomendações <strong>de</strong> suas antecessoras, sem que nada <strong>de</strong> inova<strong>do</strong>r aconteçano concreto da política setorial. Da mesma forma, não foram nada originais as discussõessobre o tema durante a VIII Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, realizada em 1985. Ali,parte da responsabilida<strong>de</strong> pelo caos então vigente na saú<strong>de</strong> era atribuída ao controle <strong>do</strong>setor <strong>de</strong> medicamentos e equipamentos pelas multinacionais e a solução proposta foi ada estatização da indústria farmacêutica. 1De fato, para o movimento sanitário, as questões envolven<strong>do</strong> medicamentos evacinas, sempre foram remetidas para o espaço da <strong>luta</strong> i<strong>de</strong>ológica o que explica o baixonúmero e a baixa <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> das propostas <strong>de</strong> intervenção que surgiram até aqui. Friseseque, em todas elas, o Esta<strong>do</strong> tem um papel abso<strong>luta</strong>mente central. Claro que por seruma área <strong>de</strong> atuação com alto grau <strong>de</strong> inter-relação com outras áreas das políticaseconômicas, industriais e sociais, são limitadas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> transformações maisprofundas a partir <strong>de</strong> uma atuação isolada <strong>do</strong> setor saú<strong>de</strong>.Inúmeros <strong>do</strong>cumentos produzi<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong>s últimos anos, ao se <strong>de</strong>bruçaremsobre os <strong>de</strong>terminantes estruturais da crise <strong>de</strong> medicamentos no país invariavelmentereferiam-se <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> enfático a <strong>do</strong>is <strong>de</strong>les: o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> pelas empresasmultinacionais e a <strong>de</strong>pendência <strong>do</strong> país em relação á produção <strong>do</strong>s insumos básicos(matérias-primas e intermediários). Esses <strong>do</strong>is argumentos refletem bem esse dilemada utilização estratégica da questão <strong>do</strong>s medicamentos como espaço <strong>de</strong> <strong>luta</strong> estritamentei<strong>de</strong>ológica. Estaríamos em situação mais favorável se o merca<strong>do</strong> brasileiro estivessecontrola<strong>do</strong> por empresas privadas <strong>de</strong> capital nacional? Estas, em nosso país, pautariamsua conduta pelo respeito aos consumi<strong>do</strong>res, pelo acatamento aos princípios das políticassetoriais e por uma postura ética irrepreensível? E o que dizer <strong>do</strong>s produtores nacionais<strong>de</strong> insumos que com freqüência oferecem produtos mais caros e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> duvi<strong>do</strong>saem relação àqueles oferta<strong>do</strong>s por outros países produtores ?Porém apesar das CPIs e das <strong>de</strong>liberações das diferentes Conferências <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>,a cada ano fortalece-se um mo<strong>de</strong>lo que tem como características básicas:• A conformação, como em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, <strong>de</strong> um merca<strong>do</strong> controla<strong>do</strong> porum número relativamente pequeno <strong>de</strong> empresas que ten<strong>de</strong>m a impor suaslógicas empresariais ao merca<strong>do</strong> e ao interior <strong>do</strong> aparato estatal.• O enfraquecimento da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> Laboratórios Públicos.• A manutenção da exclusão <strong>de</strong> amplas parcelas da população <strong>do</strong> acesso aosmedicamentos essenciais. Estima-se que hoje cerca <strong>de</strong> 23% da populaçãoconsome 60% da produção nacional (Bermu<strong>de</strong>z, 1995).• O esvaziamento e a perda progressiva <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r da Central <strong>de</strong> Medicamentos(CEME), <strong>de</strong>scaracterizada por sucessivos escândalos. Sua concepçãooriginal <strong>de</strong> centralizar as compras para os programas <strong>de</strong> distribuição <strong>do</strong>governo fe<strong>de</strong>ral, imaginan<strong>do</strong> com isso obter um alto po<strong>de</strong>r indutor sobre aestrutura <strong>de</strong> produção mas também sobre os preços a nível <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>,fracassou na prática. Hoje, essa estrutura centralizada que insiste em resistir,está na contramão <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização <strong>do</strong> SUS.1. Ministério da Saú<strong>de</strong>, 1985 –Relatório Final da VIII Conferência Nacional <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>, Brasília / DF.300 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


• A nível <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>, as distorções se multiplicam. A <strong>de</strong>sestruturação davigilância sanitária, a aquisição <strong>de</strong> medicamentos sem receita, prescritasmuitas vezes por balconistas; a ausência <strong>do</strong> profissional <strong>de</strong> farmácia noato da dispensação; a comercialização <strong>de</strong> apresentações proibidas em outrospaíses ou sem eficácia terapêutica comprovada; o estímulo ao consumo <strong>de</strong>medicamentos através da publicida<strong>de</strong> enganosa; a autorização para acomercialização <strong>de</strong> medicamentos <strong>de</strong> venda livre nos supermerca<strong>do</strong>s sãosinais evi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> ausência <strong>de</strong> regulação e controle. Segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>Sistema Nacional <strong>de</strong> Informação Tóxico-Farmacológica (SINITOX) <strong>do</strong>Ministério da Saú<strong>de</strong>, em 1993 ocorreram no país 11405 casos <strong>de</strong> intoxicaçãohumana por medicamentos, 24,28% <strong>de</strong> todas as intoxicações registradas,levan<strong>do</strong> a 69 óbitos, da<strong>do</strong>s que obviamente estão subestima<strong>do</strong>s.• A ausência <strong>de</strong> políticas setoriais que tratem <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> consistente a questão<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento científico e tecnológico neste setor.Ou seja, a trajetória <strong>de</strong>ste setor neste perío<strong>do</strong> da história recente da ReformaSanitária Brasileira não conseguiu aproximar a questão <strong>do</strong>s medicamentos <strong>do</strong>s princípiosali preconiza<strong>do</strong>s: universalida<strong>de</strong>, gratuida<strong>de</strong>, qualida<strong>de</strong>, preço acessível, ou, emoutras palavras, o medicamento visto como um bem social.Apesar disso, o setor já foi razoavelmente estuda<strong>do</strong>, ressaltan<strong>do</strong>-se os trabalhos<strong>de</strong> Frenkel (1978), Giovanni (1980), Cor<strong>de</strong>iro (1985), Bermu<strong>de</strong>z (op. cit.), Lefreve (1991),Ga<strong>de</strong>lha (1990), Temporão (1986), Barros (1995) 2 , entre outros, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong>encontros, seminários e inúmeros <strong>do</strong>cumentos críticos e propositivos elabora<strong>do</strong>s pelaALFOB, <strong>CEBES</strong>, OPAS, SOBRAVIME, ALANAC 3 , além das já citadas CPIs. Em essência,as propostas <strong>de</strong> mudança apontam para os seguintes princípios:• A universalização <strong>do</strong> acesso <strong>de</strong>ve ser <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> a partirda <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> estratégias que priorizem o fortalecimento <strong>do</strong>sLaboratórios Oficiais e das empresas privadas <strong>de</strong> capital nacional.• A implantação <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> medicamentos genéricos, vista como umaimportante estratégia <strong>de</strong> estimular a concorrência e reduzir o preço finalpara o consumi<strong>do</strong>r.• Restringir o número e formas <strong>de</strong> apresentação disponíveis no merca<strong>do</strong> apenaspara aqueles produtos que efetivamente possuam reconhecida eficáciaterapêutica buscan<strong>do</strong> compatibilizar a oferta e a nosologia prevalente nasdistintas regiões <strong>do</strong> país. A Relação Nacional <strong>de</strong> Medicamentos (RENAME),<strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, possui essa função <strong>de</strong>limita<strong>do</strong>ra em relação ao espaço <strong>do</strong> que2. Barros, J.A.C., 1995. Propaganda <strong>de</strong> Medicamentos Atenta<strong>do</strong> à Saú<strong>de</strong>? São Paulo: Hucitec Sobravime.Cor<strong>de</strong>iro, H., 1985 – A Indústria da Saú<strong>de</strong> no Brasil. Rio <strong>de</strong> janeiro: Cebes/Graal. Frenkel, J.; Reis, J. A.;Araújo Júnior, J. T. & Naidin, L. C. (1978) – Tecnologia e Competição na Indústria Farmacêutica Brasileira.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Finep. Mimeo. Ga<strong>de</strong>lha, C. A. G., 1990 – Biotecnologia em Saú<strong>de</strong>: Um Estu<strong>do</strong> da MudançaTecnológica da Indústria Farmacêutica e das Perspectivas <strong>de</strong> Seu Desenvolvimento no Brasil. Tese <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>.Campinas: Instituto <strong>de</strong> Economia da Unicamp. Giovanni G, 1980 – A Questão <strong>do</strong>s Remédios no Brasil –Produção e Consumo. São Paulo: Ed. Polis. Lefevre, F, 1991 – O Medicamento Como Merca<strong>do</strong>ria Simbólica.São Paulo: Ed.Cortez. Temporão J. G. – 1986. A Propaganda <strong>de</strong> Medicamentos e o Mito da Saú<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Ed. Graal.3. ALFOB – Associação <strong>do</strong>s Laboratórios Farmacêuticos Oficiais <strong>do</strong> Brasil; <strong>CEBES</strong> – Centro Brasileiro <strong>de</strong>Estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>; OPAS – Organização Panamericana da Saú<strong>de</strong>; SOBRAVIME – Socieda<strong>de</strong> Brasileira<strong>de</strong> Vigilância <strong>de</strong> Medicamentos; ALANAC – Associação <strong>do</strong>s Laboratórios Farmacêuticos Nacionais.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>301


comporia o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> ilusões, <strong>de</strong> outro, atua nos aspectos macro das políticassanitárias, como por exemplo a padronização <strong>de</strong> esquemas terapêuticos,a racionalida<strong>de</strong> no uso <strong>do</strong> medicamento, os aspectos econômicos apartir da redução <strong>do</strong>s custos com embalagens, publicida<strong>de</strong>, etc. Essaestratégia enfrenta dificulda<strong>de</strong>s junto aos médicos, principalmente por nãotrabalhar com o nome <strong>de</strong> fantasia e por não utilizar conteú<strong>do</strong>s <strong>de</strong> marketingque possam concorrer com a publicida<strong>de</strong> “ética” <strong>do</strong>s produtores priva<strong>do</strong>s.• Restrição <strong>do</strong>s espaços publicitários, seja da propaganda ética ou popular,até porque são extremamente tênues os limites entre a publicida<strong>de</strong> enganosae aquela praticada pela indústria sob a <strong>de</strong>nominação <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong> ética.• Combater a venda <strong>de</strong> medicamentos sem controle médico e exigir a presença<strong>do</strong> farmacêutico no ato da dispensação. O Brasil, em 94, possuía 1farmácia para cada grupo <strong>de</strong> 3214 habitantes, enquanto na Alemanha estarelação é <strong>de</strong> 1 para 15000 e na Holanda <strong>de</strong> 1 para 14500. O Ministério daSaú<strong>de</strong> advoga uma relação i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> 8 farmácias para cada grupo <strong>de</strong> 10.000habitantes (Comissão Parlamentar <strong>de</strong> Inquérito, 94).• O fortalecimento da Vigilância Sanitária e sua <strong>de</strong>scentralização, incluin<strong>do</strong>os laboratórios <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, a fiscalização <strong>de</strong> indústrias e farmácias.• A implementação <strong>de</strong> uma política científica e tecnológica ativa que permitaa absorção <strong>de</strong> tecnologias não protegidas por patentes e a progressivaconstituição <strong>de</strong> uma base <strong>de</strong> inovações no país, notadamente nos grupos<strong>de</strong> produtos on<strong>de</strong> existem mais vantagens locais, a exemplo <strong>do</strong>s produtosnaturais.Optamos neste trabalho em aprofundar a discussão sobre a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> laboratóriosestatais, como uma alternativa real <strong>de</strong> política setorial. Essa re<strong>de</strong>, estruturada ao longo<strong>do</strong>s últimos 20 anos e que hoje congrega 17 laboratórios 4 , encontra-se diante <strong>de</strong> 2 <strong>de</strong>safios:<strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, a questão da reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e os programas <strong>de</strong> privatização <strong>de</strong> empresasestatais, <strong>de</strong> outro, o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico, torna<strong>do</strong> agora mais problemáticocom o recente reconhecimento das patentes na nova lei <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> industrial.– A Indústria Farmacêutica MundialA indústria farmacêutica internacional é caracterizada como um oligopólioconstituí<strong>do</strong> por um conjunto reduzi<strong>do</strong> <strong>de</strong> empresas que exercem sua li<strong>de</strong>rança no níveldas distintas classes terapêuticas (tais como antibióticos, anti-<strong>de</strong>pressivos, etc.). Emtermos absolutos, os da<strong>do</strong>s impressionam. Em 1994, as 10 maiores companhias mundiaisapresentaram um faturamento conjunto <strong>de</strong> US$71 bilhões, sen<strong>do</strong> que a maior, a GlaxoWellcome, isoladamente, teve suas vendas situadas em US$ 12 bilhões, o que foi superiorao orçamento total anual <strong>do</strong> governo fe<strong>de</strong>ral para as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> no Brasil em 1994,sen<strong>do</strong> semelhante ao gasto total em 1995 (em torno <strong>de</strong> R$ 13 bilhões - Time, 1995) 5 .A estratégia competitiva <strong>de</strong>stas empresas centra-se no estabelecimento <strong>de</strong>estruturas complexas <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa e <strong>de</strong>senvolvimento (P&D) e <strong>de</strong> marketing.A base <strong>do</strong> sucesso empresarial é constituída pelo <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> novas linhas <strong>de</strong>4. FARMANGUINHOS, FUNED, FURP, IQUEGO, IVB, LAFEPE, LAFESC, Laboratório <strong>do</strong> Espírito Santo,Laboratório da Aeronáutica, Laboratório <strong>do</strong> Exército, Laboratório da Marinha, LAFERGS, LIFAL,Universida<strong>de</strong> Estadual <strong>de</strong> Londrina, BAHIAFARMA, CEMEPAR e NUPLAN.302 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


produtos protegi<strong>do</strong>s por patentes e sua difusão internacional, a partir <strong>de</strong> uma custosaativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> propaganda, notadamente sobre a classe médica.Com relação à ativida<strong>de</strong> tecnológica, estu<strong>do</strong>s recentes mostram que mais <strong>de</strong> 90%<strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s comerciais nos primeiros 3 anos <strong>de</strong> lançamento <strong>de</strong> novos princípios ativosconcentram-se nas 20 maiores empresas <strong>do</strong> planeta. Os custos para o lançamento <strong>de</strong> umnovo produto no merca<strong>do</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> seu <strong>de</strong>senvolvimento até a aprovação final pelasautorida<strong>de</strong>s sanitárias, tem cresci<strong>do</strong> significativamente ao longo das últimas décadas.Estima-se que, atualmente, a <strong>de</strong>spesa envolvida para a introdução <strong>de</strong> uma nova drogasupere o valor <strong>de</strong> US$ 200 milhões. O orçamento anual <strong>de</strong> P&D das empresas lí<strong>de</strong>res daindústria, freqüentemente, ultrapassa o valor <strong>de</strong> US$ 1 bilhão e raramente é inferior aUS$ 500 milhões (Grabowsky, H. & Vernon, J., 1994). 6Na outra ponta <strong>de</strong>sta estratégia competitiva, encontra-se uma ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>marketing que geralmente representa <strong>de</strong> 30% a 40% <strong>do</strong> preço <strong>do</strong> medicamento. Estaestratégia estrutura-se <strong>de</strong> forma bastante ampla, envolven<strong>do</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> representantesque fazem a propaganda junto aos médicos, “promoções” junto às farmácias, realizações<strong>de</strong> congressos e propaganda na mídia.As estratégias <strong>de</strong> inovações e <strong>de</strong> marketing são, assim, fortemente articuladas. Ageração <strong>de</strong> novos produtos – que se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra em múltiplos produtos <strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s e formas<strong>de</strong> apresentação – é a base sobre a qual se consolida a li<strong>de</strong>rança e a imagem dasfirmas junto aos forma<strong>do</strong>res <strong>de</strong> opinião especializada. O marketing, por sua vez, potênciaesta imagem inova<strong>do</strong>ra, seja através <strong>de</strong> inovações substantivas ou pelo lançamento <strong>de</strong>“novida<strong>de</strong>s” sem qualquer avanço terapêutico significativo.Neste campo, falar em soberania <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res – um <strong>do</strong>s fundamentos básicos<strong>do</strong> liberalismo – é bastante problemático. Não existem bens competitivos que oconsumi<strong>do</strong>r possa optar em caso <strong>de</strong> restrições orçamentárias. Quem <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sobre oconsumo (o médico) não é o responsável pela compra <strong>do</strong> produto, não sen<strong>do</strong> restringi<strong>do</strong>pelo seu custo. O lançamento <strong>de</strong> novida<strong>de</strong>s no merca<strong>do</strong> torna-se o mecanismo <strong>de</strong> competiçãoprivilegia<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong> a concorrência em preço importante somente para segmentosmenos relevantes <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista econômico.Deste mo<strong>do</strong>, a gran<strong>de</strong> empresa farmacêutica é, ao mesmo tempo, o agente, porexcelência, <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> novos fármacos e medicamentos e um agente que semove obe<strong>de</strong>cen<strong>do</strong> uma lógica mercantil, que po<strong>de</strong> se contrapor às necessida<strong>de</strong> dapopulação e às ações públicas <strong>de</strong> promoção à saú<strong>de</strong>.Esta duplicida<strong>de</strong> constitui o elemento essencial que tem permea<strong>do</strong> as políticaspúblicas para a área nos países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s. Os Esta<strong>do</strong>s Nacionais são os agentes que<strong>de</strong>vem mediar o conflito entre os interesses priva<strong>do</strong>s e as necessida<strong>de</strong>s sociais. De umla<strong>do</strong>, impõe-se a garantia <strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>rio inova<strong>do</strong>r das empresas através<strong>de</strong> mecanismos como subsídios às ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> P&D, compras governamentais diretase indiretas, garantia <strong>do</strong>s direitos <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> industrial, estímulo a fusõesempresariais, etc. De outro la<strong>do</strong>, a dimensão social <strong>do</strong>s medicamentos impõe umarigorosa intervenção estatal na indústria, envolven<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a vigilância sanitária e asações <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> até o acompanhamento e restrições às políticas <strong>de</strong> preços,5. Time, 1995. Remaking an industry. Time Magazine, September, 4, 19956. Grabowisky, H. & Vernon, J., 1994. “Innovation and Structural Change in Pharmaceuticals andBiotechnology”. Industrial and Corporate Change; Vol. 3, No 2.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>303


a regulação <strong>do</strong> suprimento <strong>de</strong> medicamentos essenciais, o controle da publicida<strong>de</strong> edivulgação, a produção direta, entre outros mecanismos.Um estu<strong>do</strong> recente (QUEIROZ, 1993) 7 mostra que as formas <strong>de</strong> intervenção sãobastante variadas entre os distintos países. Na França e Inglaterra, por exemplo, há umsistema bastante amplo <strong>de</strong> acompanhamento e controle <strong>de</strong> preços e <strong>de</strong> lucrativida<strong>de</strong>.Na Espanha, o 8º merca<strong>do</strong> mundial, o governo possui uma política agressiva <strong>de</strong> apoioàs empresas nacionais, notadamente no fomento à pesquisa, já ten<strong>do</strong> alcança<strong>do</strong>resulta<strong>do</strong>s expressivos na balança comercial e na inserção da indústria nas ativida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> P&D. Outros exemplos ainda po<strong>de</strong>m ser cita<strong>do</strong>s, como o caso japonês (e, maisrecentemente, o coreano), on<strong>de</strong> algumas empresas já adquiriram porte internacional,inclusive em termos <strong>de</strong> inovações, basean<strong>do</strong>-se num apoio estatal bastante ativo.A presença <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> torna-se uma necessida<strong>de</strong> justamente pela dupla dimensão<strong>de</strong>ste produto. Pela ótica industrial, é uma merca<strong>do</strong>ria típica <strong>de</strong> uma indústria inova<strong>do</strong>raque <strong>de</strong>ve ser analisada pelo retorno econômico que representa. Pela ótica <strong>do</strong> consumi<strong>do</strong>r,é um bem associa<strong>do</strong> aos seus direitos à saú<strong>de</strong> enquanto cidadão. O Esta<strong>do</strong> tem, assim, opapel <strong>de</strong> fazer a mediação entre estas duas lógicas, direcionan<strong>do</strong> sua resultante no senti<strong>do</strong><strong>de</strong> privilegiar os aspectos <strong>de</strong> política sanitária. A participação <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Nacionaisnos gastos com medicamentos, por sua vez, torna sua atuação também crucial sob aperspectiva da <strong>de</strong>stinação <strong>do</strong>s recursos públicos. Somente para ilustrar este papel, bastasaber que a participação pública nos gastos com medicamentos é superior a 60% naAlemanha, França e Itália e supera 70% na Espanha e na Inglaterra (International MedicalStatistics – IMS). No Brasil em 1995 a participação da aquisição <strong>de</strong> medicamentos nosgastos fe<strong>de</strong>rais com saú<strong>de</strong> limitou-se a cerca <strong>de</strong> 5%.Uma das ações governamentais mais importantes – e <strong>de</strong> especial interesse para apolítica brasileira – é o apoio governamental que vem sen<strong>do</strong> conferi<strong>do</strong> a empresasin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes para a produção <strong>de</strong> produtos genéricos. Estes são produtos cujas patentesjá estão expiradas e que são vendi<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> a <strong>de</strong>signação <strong>do</strong> princípio ativo (semmarca comercial), a um preço substancialmente inferior, já que não embutem a margempara o marketing e a amortização <strong>do</strong>s gastos com P&D, além <strong>de</strong> ser um merca<strong>do</strong> no quala competição em preços é mais relevante.Em função <strong>do</strong> estímulo <strong>de</strong> políticas industriais e sanitárias – como a exigência <strong>de</strong>menores requerimentos para a aprovação <strong>de</strong> princípios ativos bioequivalentes e aautorização para que as farmácias substituam os produtos receita<strong>do</strong>s com o nome <strong>de</strong>fantasia por genéricos com o mesmo princípio ativo – o merca<strong>do</strong> <strong>do</strong>s genéricos hoje jáchega a representar uma parcela importante <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> farmacêutico <strong>de</strong> diversos países<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s. Nos Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s, Japão e Canadá esta participação já se amplioupara a faixa <strong>de</strong> 20% a 30% das vendas <strong>de</strong> medicamentos e na Itália e Reino Uni<strong>do</strong> paraa faixa <strong>de</strong> 10%, ten<strong>do</strong> impacto expressivo na racionalização <strong>do</strong>s recursos públicos(Queiroz, op. cit.).Este crescente peso <strong>do</strong>s genéricos possui uma importância bastante abrangente<strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong> impacto na dinâmica industrial. Além <strong>de</strong> se constituir num referencialque impõe um limite aos preços <strong>do</strong>s novos medicamentos que sejam similares,representa um forte mecanismo indutor para que as ativida<strong>de</strong>s tecnológicas das empresasse voltem para inovações substantivas que representem ganhos terapêuticos efetivos,7. Queiroz, S. R. R., 1993. Competitivida<strong>de</strong> da Indústria <strong>de</strong> Fármacos. Estu<strong>do</strong> da Competitivida<strong>de</strong> da IndústriaBrasileira. Campinas: Unicamp.304 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


não se restringin<strong>do</strong> à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> lançamento <strong>de</strong> novos produtos para efeito <strong>do</strong>marketing característico da indústria.Adicionalmente, os genéricos são um mecanismo importante para o aumento daconscientização <strong>do</strong>s consumi<strong>do</strong>res acerca das substâncias terapêuticas que são a base<strong>de</strong> uma miría<strong>de</strong> <strong>de</strong> nomes <strong>de</strong> fantasia. Isto acaba favorecen<strong>do</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento dacapacida<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisória <strong>do</strong> paciente, tornan<strong>do</strong>-o menos vulnerável às orientações médicasque, como vimos, são fortemente condicionadas pelas formas específicas <strong>de</strong> publicida<strong>de</strong>na indústria.No Brasil, o Decreto 793 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1993 estabelece a exigência <strong>de</strong> constar naembalagem <strong>do</strong>s medicamentos a <strong>de</strong>nominação genérica <strong>do</strong> produto. Uma longa batalhajudicial aliada a contradições <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> próprio governo e a óbvia falta <strong>de</strong> interesse <strong>do</strong>sempresários concorreu para que, apesar da lei estar em pleno vigor, ainda não tenhasi<strong>do</strong> tomada nenhuma medida concreta para o seu cumprimento.Enfim, é importante esclarecer que as políticas a<strong>do</strong>tadas não visam se contrapor,<strong>de</strong> forma simplista, às gran<strong>de</strong>s empresas farmacêuticas que, no sistema econômico emque vivemos, exercem a li<strong>de</strong>rança <strong>do</strong> progresso técnico na área. A questão tem si<strong>do</strong>trabalhada na perspectiva da construção <strong>de</strong> um ambiente institucional e competitivoa<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> que exerça um po<strong>de</strong>r indutivo sobre sua capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inovações, sobre ospreços que executam e sobre a conformação da linha <strong>de</strong> produtos às necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>sSistemas <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong>. Para tanto, a<strong>do</strong>tam-se políticas que contemplam, simultaneamente,estímulo, regulação, controle e, especialmente, pressão competitiva, fatores estesconforma<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as situações concretas <strong>do</strong>s distintos Esta<strong>do</strong>s Nacionais.A Fragilida<strong>de</strong> da Indústria NacionalO Brasil está atualmente entre os maiores merca<strong>do</strong>s da indústria farmacêuticamundial, ten<strong>do</strong> o setor atingi<strong>do</strong> um faturamento superior a US$8 bilhões ao ano (verQuadros apresenta<strong>do</strong>s adiante). A estrutura da indústria é a mais internacionalizada <strong>do</strong>país: as empresas estrangeiras <strong>de</strong>tém uma participação superior a 80% <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> local,estan<strong>do</strong> a produção das empresas nacionais pulverizada em algumas centenas <strong>de</strong> firmas.O padrão produtivo que se consoli<strong>do</strong>u no país está totalmente assenta<strong>do</strong> nosestágios finais das ativida<strong>de</strong>s da indústria. As empresas, tanto nacionais quanto estrangeiras,baseiam sua ativida<strong>de</strong> manufatureira na formulação <strong>de</strong> medicamentos a partir<strong>do</strong>s princípios ativos (ou fármacos) importa<strong>do</strong>s e das tecnologias geradas no âmbitodas matrizes das gran<strong>de</strong>s empresas multinacionais <strong>do</strong> setor. Enquanto o gasto comativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> P&D <strong>de</strong>stas empresas situa-se por volta <strong>de</strong> 10% <strong>do</strong> faturamento, no Brasilraramente ultrapassa a 1%, sen<strong>do</strong> na realida<strong>de</strong> vincula<strong>do</strong> a ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> menor conteú<strong>do</strong>tecnológico, como adaptação das condições <strong>de</strong> produção aos insumos locais, controle<strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, entre outros exemplos. Somente para ilustrar a precária capacitação localna área, basta ter o da<strong>do</strong> <strong>de</strong> que nenhum <strong>do</strong>s princípios ativos disponíveis no merca<strong>do</strong>nacional foi <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> com aporte tecnológico gera<strong>do</strong> internamente. Dos 2015 novosprincípios ativos <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s no mun<strong>do</strong> no perío<strong>do</strong> 1961/1990, o Brasil não apresentouqualquer contribuição (Scrip World Pharmaceutical News, vários números).Sucintamente, a questão <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico coloca-se nos seguintestermos:a) As empresas estrangeiras, que possuem po<strong>de</strong>rio econômico para fazer faceaos riscos e custos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesquisa, não têm estímulos paraSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>305


internalizar suas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> P&D, dada a precária capacitação qualitativae quantitativa <strong>do</strong>s recursos humanos locais. Mesmo a produção industrial <strong>de</strong>matérias-primas que, por si, já envolveria uma maior contribuição local,mostra-se pouco estimulante, uma vez que os custos unitários <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>obrae <strong>de</strong> transporte não são expressivos.b) As empresas privadas nacionais não possuem porte financeiro e <strong>de</strong> recursoshumanos para se envolver em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maior risco tecnológico e econômico,haven<strong>do</strong> ainda a presença <strong>de</strong> fatores históricos e culturais que tornamsuas estratégias extremamente míopes, voltadas para resulta<strong>do</strong>s imediatos.Entra-se, assim, num círculo vicioso no qual a precária capacitação local<strong>de</strong>sestimula os investimentos em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maior conteú<strong>do</strong> tecnológico e em que osbaixos investimentos em tecnologia não alavancam a base nacional para a geração oumesmo a absorção <strong>de</strong> tecnologias mais complexas.Caberia indagar qual seria o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento qualitativoda indústria local num mun<strong>do</strong> crescentemente globaliza<strong>do</strong>, on<strong>de</strong> a tendênciainternacional seria a da especialização das estruturas produtivas <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as<strong>do</strong>tações específicas a cada país ou região. Esta questão merece uma reflexão cuida<strong>do</strong>sa,engloban<strong>do</strong> múltiplas dimensões, uma vez que constitui o suporte conceitual que permeiaas concepções hegemônica sobre o tema.Partin<strong>do</strong>-se <strong>de</strong> uma concepção realista, <strong>de</strong>ve-se reconhecer que seria <strong>de</strong>sastrosouma política avessa às gran<strong>de</strong>s empresas farmacêuticas, uma vez que estas respon<strong>de</strong>mquase pela totalida<strong>de</strong> das inovações setoriais, mesmo daqueles produtos liga<strong>do</strong>s diretamenteàs ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública como é o caso das vacinas. Todavia, o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>que possuem, expresso numa elevada concentração da produção nas diferentesclasses terapêuticas, po<strong>de</strong> implicar em práticas prejudiciais ao consumi<strong>do</strong>r e ao Esta<strong>do</strong>como fonte essencial <strong>do</strong> financiamento <strong>do</strong> consumo farmacêutico.De acor<strong>do</strong> com da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1990 (IMS), as 4 maiores empresas em cada classe terapêuticachegam a controlar até 100% <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> (medicamentos para terapiacoronariana), sen<strong>do</strong> este pre<strong>do</strong>mínio quase sempre superior a 80 % (Vitamina B e C,tranqüilizantes, etc.). Isto, alia<strong>do</strong> às características gerais <strong>do</strong> padrão competitivo vigente(vi<strong>de</strong> item anterior), traz riscos concretos <strong>de</strong> a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> estratégias empresariais<strong>de</strong>svinculadas das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> em termos das tecnologias utilizadas, daa<strong>de</strong>quação da linha <strong>de</strong> produtos e <strong>do</strong>s preços pratica<strong>do</strong>s.Neste contexto, e isto é reconheci<strong>do</strong> mesmo nos países industriais <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s,a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> estratégias progressistas por parte das empresas lí<strong>de</strong>res <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>, em gran<strong>de</strong>medida, da existência <strong>de</strong> pressão competitiva no merca<strong>do</strong> local que estimule a introdução<strong>de</strong> inovações substantivas no merca<strong>do</strong> (e não somente <strong>de</strong> “fachada”) e a prática <strong>de</strong>preços competitivos.Como vimos, nos países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, a produção <strong>do</strong>s medicamentos genéricosvem cumprin<strong>do</strong> este papel, sem restringir os esforços tecnológicos empresariais. NoBrasil, o problema que se coloca é mais complexo, uma vez que o teci<strong>do</strong> industrialforma<strong>do</strong> pelas empresas privadas nacionais é mais frágil, sen<strong>do</strong> a precarieda<strong>de</strong>tecnológica o fator <strong>de</strong>terminante principal, uma vez que a limitada estrutura <strong>de</strong> marketingpo<strong>de</strong>ria ser parcialmente superada mediante a política <strong>de</strong> compra <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> (nos mol<strong>de</strong>sda presente mesmo nos países mais avança<strong>do</strong>s).306 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Deste mo<strong>do</strong>, mesmo que pela via da produção <strong>de</strong> genéricos – através da importação<strong>de</strong> matérias-primas ou <strong>de</strong> esforços para sua produção local –, as empresas nacionais,públicas e privadas, nunca chegaram a exercer um pressão competitiva sobre as empresaslí<strong>de</strong>res, <strong>de</strong> sorte a tornar o funcionamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> mais próximo <strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>sconsumi<strong>do</strong>res.Especificamente no que se refere à produção <strong>de</strong> matérias-primas farmacêuticas(seja pela via <strong>de</strong> síntese química ou biotecnológica), ao longo da década <strong>de</strong> 1980 houveuma série <strong>de</strong> iniciativas <strong>de</strong> política industrial que estimularam fortemente sua produção(crédito <strong>do</strong> BNDES e FINEP, barreiras tarifárias e não tarifárias, entre outras). Entre1982 e 1991 a produção local <strong>de</strong> fármacos aumentou <strong>de</strong> US$ 270 milhões para aproximadamenteUS$ 600 milhões (QUEIROZ, op. cit.).A iniciativa tecnológica mais <strong>de</strong>stacada se <strong>de</strong>u através da criação da Conpanhia<strong>de</strong> Desenvolvimento Tecnológico (CODETEC) a partir <strong>de</strong> uma ação da Central <strong>de</strong>Medicamentos (CEME) e da antiga Secretaria <strong>de</strong> Tecnologia Industrial (STI). A idéiabásica era atuar, simultaneamente, nos <strong>do</strong>is gargalos estruturais <strong>do</strong> setor: o merca<strong>do</strong>final e a tecnologia. Vale dizer, a CODETEC foi constituída como uma empresa <strong>de</strong> basetecnológica para <strong>de</strong>senvolver processos <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> fármacos disponíveisinternacionalmente para empresas nacionais. Estas empresas, por sua vez, contavamcom apoio financeiro para adquirir as tecnologias <strong>de</strong>senvolvidas e, sobretu<strong>do</strong>, com umagarantia <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, através das compras da CEME, que permitia reduzir os riscosinerentes as estratégias <strong>de</strong> inovação. Esta seria a base local da produção <strong>de</strong> matériasprimasgenéricas que po<strong>de</strong>ria elevar o grau <strong>de</strong> competitivida<strong>de</strong> da indústria e o benefíciosocial da ativida<strong>de</strong>.Nos anos 90, com a abrupta liberalização comercial e a crise financeira <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> setor químico-farmacêutico ficou seriamente ameaça<strong>do</strong>. Diversasempresas nacionais que tinham inicia<strong>do</strong> a produção <strong>de</strong> produtos mais integra<strong>do</strong>s commaior conteú<strong>do</strong> tecnológico, passaram a eliminar as ativida<strong>de</strong>s intermediárias, seconcentran<strong>do</strong> somente naquelas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lucrativida<strong>de</strong> mais imediata e <strong>de</strong> menorvalor agrega<strong>do</strong>. A própria CODETEC acabou in<strong>do</strong> à falência, abortan<strong>do</strong> toda umatrajetória <strong>de</strong> capacitação empresarial e <strong>de</strong> recursos humanos <strong>do</strong> país em tecnologiasfarmacêuticas. As empresas lí<strong>de</strong>res tiveram, assim, a pressão competitiva sobre suasativida<strong>de</strong>s bastante reduzida, levan<strong>do</strong>-as a regredir em suas estratégias (limitadas) <strong>de</strong>gerar no país uma linha <strong>de</strong> produção com maior aporte tecnológico.Esta questão da fragilida<strong>de</strong> da competição no merca<strong>do</strong> local coloca em cheque ahipótese central da eficiência das forças <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>. Sem competição, mesmo as visõesmais liberais, concordariam que a eficiência <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> é prejudicada, para não falar<strong>de</strong> sua eficácia social.Observe-se que o merca<strong>do</strong> brasileiro não é um merca<strong>do</strong> marginal <strong>de</strong> reduzidasdimensões, on<strong>de</strong> a questão da especialização <strong>do</strong> parque produtor se coloca facilmente(como seria o caso <strong>de</strong> pequenos países europeus, como Holanda, ou latino-americanos,como o Chile). Ainda mais relevante, há o fato <strong>de</strong> que o potencial <strong>de</strong> crescimento <strong>do</strong>merca<strong>do</strong> é bastante amplo, sen<strong>do</strong> uma clara necessida<strong>de</strong> para as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>.Contemplan<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s no Quadros I e II, é possível ter uma idéiada magnitu<strong>de</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> farmacêutico nacional, assim como as características <strong>do</strong>padrão competitivo vigente. No final <strong>do</strong>s anos 80, o Brasil era o 9º merca<strong>do</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>capitalista com um faturamento <strong>de</strong> aproximadamente US$2,5 bilhões. Em 1995, o fatu-SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>307


amento bruto já atingia um valor superior a US$8 bilhões, ten<strong>do</strong> mais <strong>do</strong> que triplica<strong>do</strong>num perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> apenas 6 anos, o que constitui algo sem paralelo em qualquer outrosetor da indústria brasileira. Provavelmente, o merca<strong>do</strong> <strong>de</strong> medicamentos <strong>do</strong> Brasil já éhoje o 5º ou o 6º merca<strong>do</strong> no ranking da indústria farmacêutica. Todavia, e surpreen<strong>de</strong>ntemente,os da<strong>do</strong>s agrega<strong>do</strong>s não indicam que houve um crescimento expressivo dadisponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medicamentos para a população. Enquanto, em termos <strong>de</strong> valor,houve uma expansão <strong>de</strong> 72% entre 1993 e 1995 (sen<strong>do</strong> 28% em 94 e 34% em 95), emtermos físicos, a produção <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s farmacêuticas expandiu-se em apenas 9%, ten<strong>do</strong>,inclusive, <strong>de</strong>cresci<strong>do</strong> 6% no perío<strong>do</strong> 93/94.Comparan<strong>do</strong> a expansão em termos <strong>de</strong> valor e <strong>de</strong> quantida<strong>de</strong>, o valor médio <strong>de</strong>uma unida<strong>de</strong> farmacêutica (medi<strong>do</strong> em termos <strong>do</strong> faturamento bruto) elevou-se <strong>de</strong>US$2,99 para US$4,67, representan<strong>do</strong> um crescimento <strong>de</strong> 56% num intervalo <strong>de</strong> 2 anos!Mesmo consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a limitação <strong>de</strong> uma análise tão agregada, é abso<strong>luta</strong>mente improvávelque uma elevação <strong>de</strong>sta natureza possa estar associada principalmente àintrodução <strong>de</strong> novos produtos com qualida<strong>de</strong> superior, ainda mais num prazo tão curto.Por trás <strong>de</strong>stes da<strong>do</strong>s, está a questão da liberalização <strong>de</strong> preços numa indústria fortementeoligopolizada e pouco exposta à concorrência, uma vez que foi justamente no início <strong>do</strong>sanos 90 que o setor foi <strong>de</strong>sregulamenta<strong>do</strong>.O discurso da eficiência e competitivida<strong>de</strong> da indústria frente a estes da<strong>do</strong>s ficabastante prejudica<strong>do</strong>. Se a regulamentação burocrática prejudica os interesses empresariaise origina o gasto com recursos e esforços na obtenção <strong>de</strong> favores públicos(fenômeno conheci<strong>do</strong> como rent seeking), a <strong>de</strong>sregulamentação <strong>de</strong> um setor estrutura<strong>do</strong>como um oligopólio, que apresenta impacto direto nas políticas sociais, originacomportamentos priva<strong>do</strong>s fortemente <strong>de</strong>letérios e ineficientes para o consumi<strong>do</strong>r.Voltan<strong>do</strong> à questão tecnológica, pela análise das informações disponíveis, assistesea uma forte discrepância entre a posição <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> e a base tecnológica <strong>do</strong> país. OBrasil é o único país, entre os 10 primeiros merca<strong>do</strong>s <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, com ativida<strong>de</strong>s tecnológicase base <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> princípios ativos quase que <strong>de</strong>sprezíveis, não acompanhan<strong>do</strong>,minimamente, mesmo países com um grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento mais próximo,como a Espanha e a Coréia <strong>do</strong> Sul.Deste mo<strong>do</strong>, a dimensão <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> nacional, a reduzida pressão competitiva sobreas empresas lí<strong>de</strong>res, a inexpressiva contribuição da indústria para a capacitação tecnológicae a formação <strong>de</strong> recursos humanos em áreas estratégicas (biotecnologia, produtos naturais,entre outras) e a dimensão social <strong>do</strong> medicamento <strong>de</strong>scartam a concepção simplista,atualmente hegemônica, <strong>de</strong> que o Brasil <strong>de</strong>veria a<strong>do</strong>tar um padrão <strong>de</strong> especialização que sevoltasse para ativida<strong>de</strong>s menos complexas. A inserção num merca<strong>do</strong> mundial globaliza<strong>do</strong>não requer que se abra mão da conformação <strong>de</strong> um padrão <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento assenta<strong>do</strong>no trabalho qualifica<strong>do</strong> e em ativida<strong>de</strong> com maior substância tecnológica.O Sistema Produtor Oficial: uma alternativa <strong>de</strong> política?Os tempos mudaram. Para os que atuam no setor público, a ultima década acentuoufrustrações e perplexida<strong>de</strong>s. A tendência <strong>do</strong>s governos em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong> – inclusivesocialista – é transferir para o merca<strong>do</strong> o eixo das estratégias <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentoeconômico e social. Nesta concepção o Esta<strong>do</strong> se afasta da órbita direta <strong>de</strong> produção <strong>de</strong>bens e serviços, limitan<strong>do</strong>-se à função regula<strong>do</strong>ra e prove<strong>do</strong>ra em áreas específicas comoeducação e saú<strong>de</strong>.308 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


QUADRO I - Merca<strong>do</strong> Farmacêutico <strong>do</strong> Mun<strong>do</strong> Capitalista - (1989) - (US$ 170 bilhões)Colocação País População Merca<strong>do</strong> Consumo per Participação Participação(milhões hab.) (US$ milhões) Capita (US$) no Merca<strong>do</strong> (%) Acumulada (%)1 EUA 245 44500 182 26,2 26,22 Japão 122 31250 256 18,4 44,63 Alemanha 61 10980 180 6,5 51,04 França 56 9140 163 5,4 56,45 Itália 57 8390 147 4,9 61,46 Reino Uni<strong>do</strong> 57 4530 79 2,7 64,07 Canadá 26 3510 135 2,1 66,18 Espanha 39 3350 86 2,0 68,19 Brasil 144 2480 17 1,5 69,510 Coréia <strong>do</strong> Sul 43 2160 50 1,3 70,8Fonte: International Medical Statistics, Pharmaceutical Market World Review 1989, Apud Queiroz (op. cit.).QUADRO II - Indústria Farmacêutica - (1993/1995)Evolução <strong>do</strong> Faturamento Bruto e da Produção FísicaANO FATURAMENTO PRODUÇÃO EVOLUÇÃO DO EVOLUÇÃO DA VALOR DABRUTO FÍSICA (BILHÕES FATURAMENTO PRODUÇÃO UNIDADE(US$BILHÕES) DE UNIDADES) (%) FÍSICA (%) FÍSICA1993 4,84 1,62 – – 2,991994 6,18 1,52 + 28 – 6 4,071995 8,27 1,77 + 34 +116 4,671995/93 – – + 72 +9 + 56(Var. %)Fonte: Tabela elaborada a partir <strong>de</strong> da<strong>do</strong>s forneci<strong>do</strong>s pela Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica (Abifarma).A redução das atribuições <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, sua menor interferência na economia e osprocessos <strong>de</strong> privatização em vigor acentuam o <strong>de</strong>bate sobre a necessida<strong>de</strong> da existência<strong>de</strong> laboratórios estatais produtores <strong>de</strong> medicamentos como um instrumento eficaz <strong>de</strong><strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> acesso ao medicamento.O fato é que essa re<strong>de</strong> hoje opera com tecnologias <strong>de</strong>fasadas, apresenta altos níveis<strong>de</strong> ociosida<strong>de</strong> e não <strong>de</strong>senvolve pesquisas, seja por <strong>de</strong>ficiências <strong>de</strong> infra estrutura, <strong>de</strong>recursos humanos capacita<strong>do</strong>s, ou <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão política <strong>do</strong>s diversos governo. Estarealida<strong>de</strong> vem colocan<strong>do</strong> limites à <strong>de</strong>fesa da existência <strong>de</strong>sse parque produtor no interior<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. De fato, o argumento sempre utiliza<strong>do</strong> pelo Movimento Sanitário na <strong>de</strong>fesa<strong>de</strong> propostas “estatistas” rígidas neste setor foi o da segurança nacional, no fun<strong>do</strong> umfetiche i<strong>de</strong>ológico e que hoje aparece apenas como um ranço <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> recente.Esta discussão, portanto, <strong>de</strong>ve superar seu caráter meramente i<strong>de</strong>ológico, em favor<strong>de</strong> uma visão que privilegie os aspectos substantivos liga<strong>do</strong>s ao <strong>de</strong>senvolvimento daSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>309


indústria no país e à sua contribuição concreta para as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública. O vínculo<strong>do</strong> setor farmacêutico com as políticas <strong>de</strong> atenção à saú<strong>de</strong>, o marco regulatório abrangente<strong>do</strong> ambiente que o circunda, a importância <strong>do</strong> aporte <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> C&T no <strong>de</strong>senvolvimento<strong>de</strong> novos produtos e processos impõem um enfoque que não se limite aos<strong>do</strong>gmas <strong>do</strong> liberalismo ou <strong>do</strong> estatismo imobilista. Mesmo nas economias mais<strong>de</strong>senvolvidas, o Esta<strong>do</strong> continua sen<strong>do</strong> um ator essencial para o setor, haven<strong>do</strong>, istosim, um processo <strong>de</strong> re<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> suas atribuições e das formas <strong>de</strong> intervenção.Neste senti<strong>do</strong>, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> as peculiarida<strong>de</strong>s da área e <strong>do</strong> país, <strong>de</strong>ve-se pensaro papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção e <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> fármacos e medicamentos,sem se pren<strong>de</strong>r a mo<strong>de</strong>los rígi<strong>do</strong>s e simplistas que <strong>de</strong>limitem sua atuação. Comonão é possível i<strong>de</strong>ntificar um padrão único <strong>de</strong> intervenção, nem mesmo uma tendênciageral, o <strong>de</strong>safio que se coloca é o <strong>de</strong> pensar criativamente um padrão <strong>de</strong> intervençãoque respeite as peculiarida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> país, sem se opor, aprioristicamente, à re<strong>de</strong>finição <strong>do</strong>papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, mas também não cain<strong>do</strong> numa postura simplista que advoga apenassua retirada numa área crucial para as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública. O balizamento últimodas estratégias para a área <strong>de</strong>ve ser a melhoria das condições <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> como um <strong>do</strong>sfundamentos essenciais da cidadania.É neste contexto concreto, nacional e internacional – e não a partir <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ologiasconvencionais que chegam sempre com atraso ao país –, que <strong>de</strong>ve ser pensada a questão<strong>do</strong> papel <strong>do</strong> parque produtor público <strong>de</strong> medicamentos.Esta re<strong>de</strong> <strong>de</strong> empresas emprega cerca <strong>de</strong> 4000 funcionários, ten<strong>do</strong> uma capacida<strong>de</strong>nominal <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> 6,5 bilhões <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s jamais alcançada. Fornece<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> medicamentospara um único cliente, a Central <strong>de</strong> Medicamentos <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>,ostentou em 1993 uma ociosida<strong>de</strong> média <strong>de</strong> 70%. A participação <strong>do</strong>s Laboratórios Oficiaisna distribuição <strong>do</strong>s recursos orçamentários para o fornecimento <strong>de</strong> medicamentos àCEME tem oscila<strong>do</strong>, atingin<strong>do</strong> seu maior índice em 1976, com 77%, e o menor em 94,com apenas 32% <strong>de</strong> participação (Quadro III).Os investimentos <strong>do</strong> governo fe<strong>de</strong>ral nesta re<strong>de</strong>, incluin<strong>do</strong> pesquisa, <strong>de</strong>senvolvimento,controle <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> e mo<strong>de</strong>rnização, atingiram, no perío<strong>do</strong> 1972-1995, omontante <strong>de</strong> 213 milhões <strong>de</strong> dólares, com uma média <strong>de</strong> 9,26 milhões por ano. 8Comparan<strong>do</strong> os da<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s Quadros II e III, temos que a produção estatal, historicamente,tem representa<strong>do</strong> uma parcela reduzida <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> farmacêutico. Em 1995,as aquisições <strong>de</strong> medicamentos pela CEME junto a re<strong>de</strong> oficial somente representaram3% <strong>do</strong> faturamento da indústria farmacêutica, refletin<strong>do</strong> o caráter marginal da participação<strong>de</strong>ste segmento no merca<strong>do</strong> nacional. Esta produção é dirigida, fundamentalmente,para aten<strong>de</strong>r aos programas prioritários <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong> (Programas<strong>de</strong> AIDS, Saú<strong>de</strong> Mental, Dermatologia Sanitária, Malária, Esquistossomose, Saú<strong>de</strong> daMulher e da Criança, etc.), haven<strong>do</strong> também o atendimento à <strong>de</strong>manda pública <strong>de</strong> outrasesferas da fe<strong>de</strong>ração.É evi<strong>de</strong>nte que a produção estatal ocupa um segmento limita<strong>do</strong> <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>, sen<strong>do</strong>,todavia, essencial para o a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento das ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> (ver para mais<strong>de</strong>talhes o <strong>do</strong>cumento ALFOB, 1994). Por um la<strong>do</strong>, existem os aspectos já clássicos quejustificam a atuação estatal na área, notadamente aqueles referentes aos preços pratica<strong>do</strong>s– que são substancialmente inferiores ao da re<strong>de</strong> privada, uma vez que não incorporamos gastos com marketing – e à garantia <strong>do</strong> suprimento <strong>de</strong> produtos essenciais quenão apresentam gran<strong>de</strong>s estímulos para a entrada <strong>de</strong> empresas privadas (os chama<strong>do</strong>sprodutos órfãos).310 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Por outro la<strong>do</strong>, e por para<strong>do</strong>xal que possa parecer aos a<strong>de</strong>ptos <strong>do</strong> liberalismo, aprodução estatal adquire um papel crucial para garantia da competição no merca<strong>do</strong>farmacêutico. A fragilida<strong>de</strong> das empresas nacionais, torna o merca<strong>do</strong> farmacêutico brasileiropouco exposto à competição, que é o mecanismo básico <strong>de</strong> regulação <strong>de</strong> umaeconomia capitalista. Em outras palavras, o funcionamento <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> farmacêuticosegun<strong>do</strong> os critérios <strong>de</strong> eficiência <strong>de</strong> uma economia capitalista, pressupõe pressãocompetitiva. Como o merca<strong>do</strong> é extremamente oligopoliza<strong>do</strong> e as empresas privadasnacionais são fragilizadas e atrasadas, a consolidação <strong>de</strong> um segmento público maiseficiente, que possa constituir-se num padrão <strong>de</strong> referência para o consumi<strong>do</strong>r e para aação estatal, po<strong>de</strong> representar um elemento fortemente favorável ao <strong>de</strong>senvolvimentoda indústria farmacêutica em geral.Enquanto nos países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, a produção <strong>de</strong> produtos genéricos porempresas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong>sempenhou este papel, no Brasil o segmento público po<strong>de</strong>ria,em simultâneo, se constituir no alicerce produtivo das políticas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e em um fator<strong>de</strong> estímulo à competição no merca<strong>do</strong> priva<strong>do</strong>. Este papel po<strong>de</strong>ria induzir estratégiasmais benéficas ao país por parte das empresas privadas, levan<strong>do</strong> à introdução <strong>de</strong>QUADRO III - Orçamento Ceme - 1972 / 1995 - (US$ milhões)Ano Orçamento % Aquisição Aquisição / % Aquisição Aquisição/C E M E Distribuição Distribuição Laboratórios DistribuiçãoOficiaisOficiais1972 11,00 83,40 9,20 73,60 6,801973 25,70 94,90 24,40 74,90 18,301974 49,50 87,70 43,30 48,00 20,801975 46,80 86,30 40,40 64,10 25,901976 45,30 88,70 40,20 77,00 30,901977 57,60 96,00 55,30 55,50 30,701978 70,90 93,90 66,60 56,80 37,801979 70,90 96,00 68,10 70,60 48,001980 85,50 96,30 82,30 60,90 50,101981 128,00 97,90 125,30 55,80 69,901982 123,00 97,10 119,40 62,40 74,501983 136,90 93,80 128,40 63,90 82,001984 96,10 94,90 91,20 62,60 57,101985 153,50 93,70 143,80 66,30 95,401986 254,00 92,40 234,70 53,80 126,301987 229,10 94,00 215,30 44,60 96,001988 205,50 91,20 187,40 45,60 85,501989 482,40 95,60 461,20 56,00 256,271990 482,40 90,00 456,81 38,00 173,591991 506,45 90,00 304,26 73,00 222,111992 338,60 94,00 203,47 94,00 191,261993 215,99 97,00 595,30 69,00 410,761994 401,76 93,00 375,34 32,00 120,111995 675,07 96,00 646,98 40,00 260,15Fonte: Central <strong>de</strong> Medicamentos/Ministério da Saú<strong>de</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>311


produtos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> superior, a uma maior integração <strong>do</strong> processo produtivo – coma internalização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> maior valor adiciona<strong>do</strong> – e ao estabelecimento <strong>de</strong>políticas <strong>de</strong> preços menos predatórias para o consumi<strong>do</strong>r e para o orçamento público.Da mesma forma, a baixa capacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> regulação <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> e <strong>do</strong>setor produtivo priva<strong>do</strong> alia<strong>do</strong> a uma forte presença <strong>de</strong> interesses priva<strong>do</strong>s ao seuinterior, fortalece a idéia da existência <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> produtora estatal com ascaracterísticas aqui apontadas que atue como instrumento <strong>de</strong> regulação, possibilitan<strong>do</strong>colocar limites às relações comerciais entre o Esta<strong>do</strong> e a indústria privada.Especificamente no que se refere ao aspecto tecnológico, a experiência daCODETEC mostra como o investimento em tecnologia no país envolve riscos dificilmenteassumi<strong>do</strong>s pela iniciativa privada. Uma experiência que foi rica na capacitaçãotecnológica <strong>do</strong> país, que formou recursos humanos em processos <strong>de</strong> síntese e quealavancou um potencial empresarial antes inexistente, acabou naufragan<strong>do</strong>, em gran<strong>de</strong>parte, em função da evolução da política macroeconômica e industrial (altas taxas <strong>de</strong>juros, abertura comercial abrupta, etc.).Isto mostra que o Esta<strong>do</strong> tem um papel crucial na formação <strong>de</strong> uma base tecnológicano país. Mesmo países que hoje fazem parte <strong>do</strong>s “manuais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento”<strong>do</strong>s organismos internacionais, como Coréia <strong>do</strong> Sul e Formosa, têm no Esta<strong>do</strong> – e nosseus institutos <strong>de</strong> pesquisa – um agente central para o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico.Mais uma vez o corte simplista entre Esta<strong>do</strong> e merca<strong>do</strong> não se sustenta. O Esta<strong>do</strong> po<strong>de</strong>vir a se constituir num fator central da competitivida<strong>de</strong> da iniciativa privada, na medidaem que estabeleça formas <strong>de</strong> articulação tecnológica com empresas nacionais. Com isto– e já existem iniciativas concretas, a exemplo da Fundação Oswal<strong>do</strong> Cruz –, a açãoestatal po<strong>de</strong> contribuir <strong>de</strong>cisivamente para a superação da fragilida<strong>de</strong> tecnológica <strong>do</strong>setor farmacêutico nacional, alavancan<strong>do</strong> sua competitivida<strong>de</strong> e sua base <strong>de</strong> recursoshumanos no <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico.Uma estratégia simplista <strong>de</strong> liberalização, teria o efeito <strong>de</strong> acomodar as posiçõesoligopólicas <strong>de</strong> merca<strong>do</strong> já consolidadas no país, reduzin<strong>do</strong> a competitivida<strong>de</strong> nacional,a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> inovações substantivas, a eficiência <strong>do</strong> gasto público com medicamentose o potencial tecnológico <strong>do</strong> país. A retirada <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> farmacêuticoseria, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, contrária ao <strong>de</strong>senvolvimento capitalista da indústria e à concepção<strong>de</strong> políticas farmacêuticas a<strong>de</strong>quadas a um país <strong>de</strong> dimensão continental, com 50 milhões<strong>de</strong> pessoas excluídas <strong>do</strong> acesso aos medicamentos pela via privada.Todavia, frente às mudanças verificadas em âmbito mundial no que se refere àReforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, não se trata <strong>de</strong> simplesmente <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a preservação da re<strong>de</strong> oficialexistente, mas sim, fundamentalmente, <strong>de</strong> pensar sua transformação, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>fortalecer a contribuição tecnológica, o papel regula<strong>do</strong>r e a eficiência e eficácia da açãopública.Neste senti<strong>do</strong>, o autofinanciamento <strong>de</strong>ssa re<strong>de</strong>, inclusive <strong>do</strong>s investimentos emmo<strong>de</strong>rnização industrial, <strong>de</strong>ve ser uma meta, sem a qual não se justificaria a ação estatalem virtu<strong>de</strong> da crise financeira <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Para tanto, os Laboratórios Oficiais precisam,em simultâneo ao reforço <strong>de</strong> sua missão pública, operar com flexibilida<strong>de</strong> gerencial eadministrativa que tenha na eficiência produtiva e econômica um parâmetro básico <strong>de</strong><strong>de</strong>sempenho. Um aspecto <strong>de</strong> extrema importância e que não tem si<strong>do</strong> <strong>de</strong>vidamente8. Informações Gerenciais da CEME, 1996.312 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


avalia<strong>do</strong> é o <strong>do</strong> conjunto <strong>de</strong> obstáculos legais e estruturais que o próprio Esta<strong>do</strong> colocapara o funcionamento <strong>de</strong> suas instituições sejam Fundações, Autarquias ou Empresas, eque, na prática, compromete o <strong>de</strong>sempenho a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista gerencial e daeficiência econômica. Enquanto festejávamos em 1988 a aprovação <strong>do</strong> capítulo da Saú<strong>de</strong>da Constituição, perdi<strong>do</strong>s em <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> artigos, caputs e parágrafos, estabelecia-se ateia <strong>de</strong> obstáculos que, na prática, impe<strong>de</strong> que o setor público possa oferecer produtose serviços <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> a custos compatíveis. Se isso é fato para um hospital ouuniversida<strong>de</strong> o que dizer para uma fábrica?Um aspecto adicional: durante mais <strong>de</strong> duas décadas essa re<strong>de</strong> <strong>de</strong> empresas einstitutos públicos forneceu medicamentos para um único cliente, o Ministério da Saú<strong>de</strong>.O que se imaginava fazer parte <strong>de</strong> uma estratégia <strong>de</strong> fortalecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, a partirda <strong>de</strong>limitação <strong>de</strong> um merca<strong>do</strong> cativo, transformou-se na prática em uma relaçãopaternalista e que tem leva<strong>do</strong> ao <strong>de</strong>sestímulo da mo<strong>de</strong>rnização tecnológica e gerencial.Nessa perspectiva os Laboratórios Oficiais acomodaram-se na oferta <strong>de</strong> produtos <strong>de</strong>baixa <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> tecnológica e não foram estimula<strong>do</strong>s a diversificar a oferta e aincorporação tecnológica. É crucial submeter essas unida<strong>de</strong>s à competição <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.Claro que não se está propon<strong>do</strong> a sua entrada no merca<strong>do</strong> priva<strong>do</strong>, mas sim o <strong>de</strong>estimular a competição <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> próprio espaço público e <strong>do</strong>s diversos merca<strong>do</strong>s queo compõe (municípios em processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralização, política <strong>de</strong> compras <strong>do</strong>sorganismos <strong>de</strong> assistência médica <strong>de</strong> empresas estatais, o próprio Ministério da Saú<strong>de</strong>etc.).Um esforço, certamente mais complexo, <strong>de</strong>ve ser busca<strong>do</strong> na área tecnológica. Afunção <strong>de</strong> referência <strong>de</strong> preços e <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> suprimento estratégico <strong>de</strong> produtosessenciais e <strong>de</strong> estímulo à competitivida<strong>de</strong> nacional, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> crucialmente da capacida<strong>de</strong>pública para construir uma base tecnológica endógena e para se articular com ainiciativa privada na absorção e transferência <strong>de</strong> novas tecnologias.No momento atual <strong>de</strong> esgotamento <strong>do</strong>s paradigmas tecnológicos hegemônicosno pós-guerra (síntese química a partir <strong>de</strong> procedimentos empíricos) e <strong>do</strong> surgimento<strong>de</strong> novos paradigmas tecnológicos (biotecnologia e síntese química baseada no conhecimentocientífico racional da interação das substâncias com o organismo humano), aquestão da constituição <strong>de</strong>sta base tecnológica torna-se a questão mais importante parao dinamismo da indústria local a longo prazo. Sem tecnologia, o papel <strong>do</strong> país na áreafarmacêutica será o <strong>de</strong> atuar nos segmentos finais e menos complexos da indústria,agregan<strong>do</strong> pouco valor à produção e prescindin<strong>do</strong> <strong>de</strong> um aporte mais sofistica<strong>do</strong> <strong>do</strong>srecursos humanos <strong>do</strong> país. Cabe, assim, ao Sistema Oficial transformar-se, <strong>de</strong> formaprofunda, no senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> justificar sua atuação tanto em termos da política <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>quanto em termos da política <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento científico e tecnológico.Em suma, o Sistema Produtor Oficial, ao invés <strong>de</strong> ser um ente estranho à competitivida<strong>de</strong>capitalista, po<strong>de</strong>ria ser um elemento indutor <strong>de</strong> comportamentos progressistase não predatórios, constituin<strong>do</strong>-se em um pilar fundamental <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento daindústria instalada no Brasil, compatibilizan<strong>do</strong> os requerimentos das ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>com o seu dinamismo a longo prazo.Para isto, em primeiro lugar os Laboratórios Oficiais <strong>de</strong>vem conjugar um altograu <strong>de</strong> senti<strong>do</strong> social e ético a um a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> <strong>de</strong>sempenho técnico e gerencial. Sua produção<strong>de</strong>ve estar voltada para aten<strong>de</strong>r às questões centrais das políticas sanitárias. Deoutro la<strong>do</strong>, a existência <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> laboratórios públicos será <strong>de</strong> extrema importânciaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>313


para implantar com sucesso qualquer tentativa <strong>de</strong> política <strong>de</strong> assistência farmacêuticaque não se limite ao assistencialismo ou que não se entregue às ilusões <strong>do</strong> merca<strong>do</strong>.Será nessa re<strong>de</strong> que o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>verá ter não apenas uma referência <strong>de</strong> custos e qualida<strong>de</strong>,mas também um espaço concreto para a pesquisa, o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e aformação <strong>de</strong> RH estratégicos. Além disso, os Laboratórios Oficiais são uma garantiapermanente à ameaça <strong>de</strong> interrupção <strong>de</strong> oferta <strong>de</strong> produtos não rentáveis (drogas órfãsda OMS).Mas, para viabilizar essa proposta, são necessárias algumas medidas <strong>de</strong> caráterestrutural, entre as quais citaríamos:• Proce<strong>de</strong>r a uma radical reformulação das atuais atribuições da CEME. Esta<strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> <strong>de</strong>dicar-se à aquisição <strong>de</strong> medicamentos que seriam <strong>de</strong>scentralizadaspara os Esta<strong>do</strong>s e Municípios. Esta idéia visa também que os LaboratóriosOficiais passem a disputar entre si este merca<strong>do</strong> público conforma<strong>do</strong>por centenas <strong>de</strong> municípios em pleno processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scentralizaçãoa nível <strong>do</strong> SUS, rompen<strong>do</strong> com a relação <strong>de</strong> cliente único e merca<strong>do</strong> garanti<strong>do</strong>.Isto po<strong>de</strong>ria levar ao fechamento <strong>de</strong> alguns Laboratórios Oficiais?Sem dúvida, principalmente aqueles que operam em bases tecnológicasmuito <strong>de</strong>fasadas.• Obter as condições gerenciais necessárias para que os Laboratórios Oficiaispossam operar competitivamente principalmente em relação à área <strong>de</strong>pessoal e <strong>de</strong> compras.• A nova CEME, liberada das funções <strong>de</strong> aquisição, passaria a <strong>de</strong>dicar-se aformular e implementar políticas <strong>de</strong> fun<strong>do</strong> estratégico que permitam aopaís sair <strong>do</strong> grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência atual.• A criação <strong>de</strong> linhas <strong>de</strong> financiamento (através <strong>do</strong> BNDES, por exemplo)para a mo<strong>de</strong>rnização e expansão da capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> produção.• O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> estratégias articuladas <strong>de</strong> política entre osministérios envolvi<strong>do</strong>s (Saú<strong>de</strong>, Ciência e Tecnologia, Indústria e Comércio,Educação).• Dentro <strong>de</strong> tão aguardada reforma estrutural <strong>do</strong> Ministério da Saú<strong>de</strong>,propõe-se a criação <strong>de</strong> um órgão que aglutine as áreas <strong>de</strong> imunobiológicos,ciência e tecnologia, sangue e hemo<strong>de</strong>riva<strong>do</strong>s e medicamentos, com umaperspectiva integra<strong>do</strong>ra, potencializa<strong>do</strong>ra e estratégica.POLÍTICA DE IMUNOBIOLÓGICOS 9O Programa <strong>de</strong> Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos (PASNI), formula<strong>do</strong>em 1985 e inicia<strong>do</strong> no ano seguinte, constitui o marco político contemporâneo daprodução <strong>de</strong> soros e vacinas no Brasil.9. A avaliação da política nacional <strong>de</strong> imunobiológicos insere-se num projeto <strong>de</strong> pesquisa efetua<strong>do</strong> noâmbito da Fiocruz, sob a coor<strong>de</strong>nação geral <strong>do</strong> Dr. Dalton Mario Hamilton, Vice-Presi<strong>de</strong>nte <strong>de</strong>Desenvolvimento Institucional da Instituição. O levantamento e sistematização das informaçõesquantitativas apresentadas foi efetua<strong>do</strong> pela consultora Maria Lenora Ciardullo Girafa.314 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


O contexto da formulação <strong>do</strong> Programa situa-se no início da década <strong>de</strong> 1980,quan<strong>do</strong> o país se <strong>de</strong>frontou com uma séria crise <strong>de</strong> suprimento <strong>de</strong> imunobiológicos,com o fechamento <strong>do</strong> maior produtor local, a Sintex <strong>do</strong> Brasil 10 . Esta era uma empresaprivada <strong>de</strong> capital estrangeiro que atendia a <strong>de</strong>manda <strong>de</strong> soros e da vacina tríplicebacteriana/DPT (difteria, tétano e coqueluche), entre outros produtos. O fechamento<strong>de</strong>sta empresa esteve liga<strong>do</strong> ao fortalecimento das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> controle <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>,fruto da criação <strong>do</strong> Instituto Nacional <strong>de</strong> Controle <strong>de</strong> Qualida<strong>de</strong> em Saú<strong>de</strong> (INCQS) em1981, no âmbito da Fiocruz, que con<strong>de</strong>nou diversas linhas <strong>de</strong> produtos disponíveis nopaís.A maior rigi<strong>de</strong>z das especificações e <strong>do</strong> controle <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sestimulava aentrada <strong>de</strong> produtores priva<strong>do</strong>s, uma vez que o setor apresentava baixo dinamismoeconômico mesmo nos países <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong>s, ainda mais se compara<strong>do</strong> com o setorfarmacêutico que, tradicionalmente, é bastante lucrativo.A produção local, além <strong>de</strong> insuficiente para aten<strong>de</strong>r a <strong>de</strong>manda nacional – emmeio a uma aguda crise no balanço <strong>de</strong> pagamentos que impunha rígi<strong>do</strong>s controles àsimportações–, mostrava-se precária em termos <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> e <strong>do</strong>s padrões <strong>do</strong>sorganismos internacionais. Sem aporte <strong>do</strong> setor priva<strong>do</strong> e com diversos laboratóriospúblicos em condições precárias <strong>de</strong> funcionamento, o Ministério da Saú<strong>de</strong> viu-se quaseque obriga<strong>do</strong> a formular uma resposta nacional agressiva para viabilizar as ações <strong>de</strong>saú<strong>de</strong> pública.A idéia básica era a <strong>de</strong> estabelecer uma ação coor<strong>de</strong>nada entre os produtoresnacionais, estimulan<strong>do</strong> os investimentos e a melhoria da qualida<strong>de</strong> da produção local,<strong>de</strong> sorte a se atingir a auto-suficiência nacional nos produtos vincula<strong>do</strong>s aos programas<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>. A partir da estimativa das necessida<strong>de</strong>s nacionais com base nos programas<strong>de</strong> imunizações, <strong>de</strong>senhou-se uma estratégia <strong>de</strong> substituição progressiva das importaçõese <strong>de</strong> expansão articulada <strong>de</strong> 7 Laboratórios Oficiais (posteriormente amplia<strong>do</strong>s para 9),além <strong>de</strong> contemplar, em sua fase inicial, também uma empresa privada <strong>de</strong> capitalnacional (Quadro IV).O Programa tinha estabeleci<strong>do</strong> como meta a total substituição das importações<strong>de</strong> soros e vacinas por produção nacional num perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> 5 anos. Em 1990, a produçãonacional <strong>de</strong> vacinas se elevaria <strong>de</strong> 101,5 milhões <strong>de</strong> <strong>do</strong>ses para 187,7 milhões,representan<strong>do</strong> uma expansão quantitativa <strong>de</strong> 85%. Esta expansão concentrava-sesobretu<strong>do</strong> na produção da vacina tríplice, toxói<strong>de</strong> tetânico e contra poliomielite, cuja<strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> importações era mais <strong>de</strong>stacada. Na área <strong>de</strong> soros, a expansão previstada produção local concentrava-se nos soros antitetânico, anti-rábico e antiofídico(antibotrópico e anticrotálico). 11Adicionalmente a esta expansão quantitativa, tinha-se como um <strong>do</strong>s objetivosprincipais a elevação da qualida<strong>de</strong> da oferta interna para um nível compatível com ospadrões da Organização Mundial da Saú<strong>de</strong>, uma vez que o fator <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong>r dacrise tinha si<strong>do</strong> a falta <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong> suprimento nacional. Com isto, o INCQS foiincorpora<strong>do</strong> ao Programa como um agente <strong>de</strong> suporte (além <strong>de</strong> sua função <strong>de</strong> controle)da elevação <strong>do</strong>s padrões <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s Laboratórios Oficiais.10. Esta apresentação <strong>do</strong> PASNI utilizou, parcialmente, a apresentação <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate sobre a produção <strong>de</strong>vacinas no Brasil, publicada na revista História, Ciências, Saú<strong>de</strong>, 1996, Vol. III, No 1 (Casa <strong>de</strong> Oswal<strong>do</strong>Cruz/ Fiocruz, 1996), efetuada por Carlos A. G. Ga<strong>de</strong>lha.11. Para uma visão mais <strong>de</strong>talhada das metas iniciais <strong>do</strong> PASNI vi<strong>de</strong> Ga<strong>de</strong>lha, 1990 (op. cit.).SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>315


Em termos operacionais, o PASNI constitui essencialmente um programa <strong>de</strong>investimentos. A institucionalida<strong>de</strong> pública organiza-se da seguinte forma: as necessida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> vacinação são <strong>de</strong>finidas pelo Programa Nacional <strong>de</strong> Imunizações (PNI),situa<strong>do</strong> no âmbito da Fundação Nacional da Saú<strong>de</strong>. Com base nesta estimativa, são<strong>de</strong>finidas cotas <strong>de</strong> produção para os laboratórios da re<strong>de</strong>, estiman<strong>do</strong>-se, simultaneamente,a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> importações, a partir da diferença entre a capacida<strong>de</strong>produtiva e as necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> vacinação e <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> soros. Neste momento, ospreços da produção local são <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s, com base nos valores internacionais e, quan<strong>do</strong>possível, na planilha <strong>de</strong> custos <strong>do</strong>s laboratórios (PASNI, 1995). O PASNI exerce umafunção coor<strong>de</strong>na<strong>do</strong>ra da distribuição das cotas entre os produtores, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong> tanto aocupação da capacida<strong>de</strong> produtiva instalada, quanto a sua ampliação ao longo <strong>do</strong> tempo.É nesta última atribuição que se situa o principal instrumento <strong>do</strong> programa, mediante a<strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s investimentos em obras e equipamentos e a provisão <strong>do</strong> financiamentocom base em recursos <strong>do</strong> tesouro a fun<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong>.Como po<strong>de</strong> ser visto no Quadro V, o Programa já investiu nos laboratórios umvalor superior a US$120 milhões, o que certamente representa um <strong>do</strong>s maioresinvestimentos <strong>do</strong> governo fe<strong>de</strong>ral na produção <strong>de</strong> insumos em saú<strong>de</strong>. Como fruto <strong>de</strong>stesinvestimentos, já se obteve alguns resulta<strong>do</strong>s favoráveis como a melhoria da qualida<strong>de</strong>da produção local – aten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>, em gran<strong>de</strong> parte, aos padrões da Organização Mundialda Saú<strong>de</strong> –, a auto-suficiência em soros (com exceção <strong>de</strong> alguns itens <strong>de</strong> valor poucoexpressivo), a expansão da produção da vacina contra a raiva e DPT (ainda como previsão<strong>de</strong> curto prazo) e a implantação <strong>de</strong> uma capacida<strong>de</strong> produtiva no país, em termos <strong>de</strong>instalações físicas, capaz <strong>de</strong> suprir, em gran<strong>de</strong> medida, as necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s programas<strong>de</strong> vacinação. Somente a capacida<strong>de</strong> instalada <strong>de</strong> envazamento <strong>de</strong> vacinas em Biomanguinhos/Fiocruz – o laboratório que contou com a maior parte <strong>do</strong>s investimentosrealiza<strong>do</strong>s – é capaz <strong>de</strong> suprir quase a totalida<strong>de</strong> da necessida<strong>de</strong> quantitativa nacional,se utilizada num nível ótimo <strong>de</strong> ocupação.QUADRO IV - Laboratórios Produtores que Compõem oPrograma <strong>de</strong> Auto-Suficiência Nacional em ImunobiológicosLaboratório Localização Tipo <strong>de</strong> Entida<strong>de</strong>Instituto Butantan São Paulo Pública - EstadualInstituto <strong>de</strong> Tecnologia <strong>do</strong> Paraná - TECPAR Paraná Pública - EstadualInstituto Vital Brazil - IVB Rio <strong>de</strong> Janeiro Empresa PúblicaBIOMANGUINHOS(*) - FIOCRUZ Rio <strong>de</strong> Janeiro Pública - Fe<strong>de</strong>ralFundação Ezequiel Dias - FUNED Minas Gerais Pública - EstadualFundação Ataulpho <strong>de</strong> Paiva - FAP Rio <strong>de</strong> Janeiro Privada - FilantrópicaInstituto <strong>de</strong> Pesquisas Biológicas- IPB Rio Gran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul Pública - EstadualVallée (**) Minas Gerais Empresa Privada NacionalInstituto <strong>de</strong> Biologia <strong>do</strong> Exército - IBEX(***) Rio <strong>de</strong> Janeiro Pública - Fe<strong>de</strong>ralInd. Química <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Goiás IQUEGO (***) Goiás Pública - EstatalFonte: Programa <strong>de</strong> Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos/ Ministério da Saú<strong>de</strong> e levantamento <strong>de</strong> campoNotas: (*) Biomanguinhos: Instituto <strong>de</strong> tecnologia em imunobiológicos.(**) A Valée fazia parte <strong>do</strong> PASNI inicialmente, mas não chegou a participar <strong>de</strong> forma efetiva ao longo <strong>de</strong> sua implementação(***) Estes <strong>do</strong>is laboratórios somente recentemente foram incluí<strong>do</strong>s nos investimentos <strong>do</strong> programa, não fazen<strong>do</strong> parte daestratégia inicial316 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Todavia, quan<strong>do</strong> se analisa os da<strong>do</strong>s da produção nacional e das importações <strong>de</strong>imunobiológicos <strong>do</strong>s últimos 10 anos constata-se que as metas não foram atingidas,requeren<strong>do</strong> uma avaliação crítica <strong>do</strong>s rumos <strong>do</strong> Programa. Enquanto na área <strong>de</strong> soros oPrograma obteve sucesso, na área <strong>de</strong> vacinas – que é a mais crítica, complexa <strong>do</strong> ponto<strong>de</strong> vista tecnológico e que envolve o maior volume <strong>de</strong> recursos – os resulta<strong>do</strong>s até opresente são frustrantes.O Quadro VI procura apresentar retratos instantâneos <strong>do</strong> PASNI em três momentosdistintos que permitem avaliar a evolução <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua implementação até 1995. No início<strong>do</strong> Programa, em 1986, partia-se <strong>de</strong> um quadro geral em que somente 47% da necessida<strong>de</strong>estimada <strong>do</strong> país era suprida por produção nacional, haven<strong>do</strong> uma forte <strong>de</strong>pendênciano grupo <strong>de</strong> produtos já menciona<strong>do</strong>s. Em 1990, ano em que estava prevista a totalsuperação das necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> importações, a produção nacional somente representava41% da meta formulada no início <strong>do</strong> programa. Nenhum avanço significativo tinhasi<strong>do</strong> atingi<strong>do</strong> na vacina contra poliomielite e na tríplice bacteriana (DPT), haven<strong>do</strong>somente um avanço na vacina anti-rábica humana. 12Finalmente, a situação atual, conforme da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1995, evi<strong>de</strong>ncia uma falta <strong>de</strong>suprimento interno para aten<strong>de</strong>r as necessida<strong>de</strong>s locais, apresentan<strong>do</strong> um hiato aindasuperior ao estima<strong>do</strong> no início <strong>do</strong> Programa! A participação da produção nacional nanecessida<strong>de</strong> estimada pelos programas <strong>de</strong> imunização <strong>de</strong> 1995 somente alcançou a 36%,a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> vigoroso programa <strong>de</strong> investimentos realiza<strong>do</strong>s. Por um la<strong>do</strong>, mantevesea <strong>de</strong>pendência <strong>de</strong> vacinas tradicionais como a <strong>de</strong> poliomielite e DPT, sen<strong>do</strong> que nocaso <strong>de</strong>sta última, 3 Laboratórios Oficiais (Butantan, Tecpar e Biomanguinhos) <strong>de</strong>vemcomeçar sua produção em maior escala proximamente (haven<strong>do</strong> inclusive uma avaliação<strong>de</strong> excesso <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> produtiva – PASNI, 1995). Por outro la<strong>do</strong>, produtostradicionalmente oferta<strong>do</strong>s no país, como as vacinas contra o sarampo e a febre amarela,passaram a apresentar problemas <strong>de</strong> produção, tornan<strong>do</strong> seu suprimento irregular.Adicionalmente, novas vacinas foram introduzidas nos programas <strong>de</strong> vacinação paraas quais o país não dispõe (pelo menos até o momento) <strong>de</strong> capacida<strong>de</strong> tecnológica parasua produção. Neste grupo, está a vacina contra a hepatite B, haven<strong>do</strong> previsão <strong>de</strong>a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> outras como a tríplice viral, que po<strong>de</strong> inclusive inviabilizar a produção davacina contra o sarampo <strong>de</strong> forma não combinada com as vacinas contra rubéola ecaxumba.Em termos <strong>de</strong> valor, o país ainda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> fortemente <strong>de</strong> importações <strong>de</strong> vacinas,sen<strong>do</strong> que o volume <strong>de</strong> recursos dispendi<strong>do</strong>s po<strong>de</strong> se ampliar, uma vez que os novosimunobiológicos para os quais se possui capacitação para a produção local, normalmente,apresentam um preço muito superior (como é o caso das vacinas contra hepatiteB e meningite B que possuem um preço pelos menos 10 vezes superior ao da febreamarela e sarampo). Como mostra o Quadro VII, a participação das importações novalor da <strong>de</strong>manda pública <strong>de</strong> imunobiológicos tem oscila<strong>do</strong> entre 50% e 71%, refletin<strong>do</strong>o comprometimento <strong>do</strong>s gastos públicos com importações, a <strong>de</strong>speito <strong>do</strong> esforço <strong>de</strong>investimento realiza<strong>do</strong> na re<strong>de</strong> oficial, cujos preços, tradicionalmente, são bem inferioresaos pratica<strong>do</strong>s nas licitações internacionais.Os da<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>s colocam a necessida<strong>de</strong> premente <strong>de</strong> se repensar os rumosda política nacional <strong>de</strong> imunobiológicos, assim como os fatores que levaram à frustraçãodas expectativas <strong>de</strong>positadas no Programa. Segun<strong>do</strong> nosso diagnóstico, duas questõescentrais permearam o reduzi<strong>do</strong> nível <strong>de</strong> resposta <strong>do</strong>s laboratórios apoia<strong>do</strong>s frente aoaporte <strong>de</strong> recursos oferta<strong>do</strong>s:SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>317


QUADRO V - Recursos Repassa<strong>do</strong>s aos Laboratórios Nacionais - 1986-1995Programa <strong>de</strong> Auto Suficiência Nacional em Imunobiológicos - em US$LABORA- PERÍODO TOTALTÓRIO 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995BUTANTAN 1.287.758 1.553.065 3.641.614 665.454 5.629.846 1.388.496 1.919.316 5.891.230 5.250.000 27.226.779FUNED 601.612 399.170 808.483 16.400 446.284 201.816 942.626 3.416.391I P B 169.793 295.034 146.378 281.437 892.642I V B 1.011.561 1.207.136 1.116.089 255.179 396.563 201.816 1.537.088 5.725.432TECPAR 969.540 270.162 179.577 1.620.819 3.453.599 160.988 3.142.085 2.352.941 12.149.711INCQS 578.035 441.146 245.488 2.957.189 185.328 4.407.186BIOMAN- 1.589.595 2.208.315 3.067.579 5.288.519 5.293.482 6.817.289 5.694.045 13.235.962 12.093.533 55.288.319GUINHOSF A P 543.663 629.045 640.319 2.282.627 1.901.221 1.242.608 569.213 1.056.546 352.941 3.000.000 12.218.183IQUEGO 287.270 10.356 297.626IBEX 234.673 2.045.452 2.280.125TOTAL 6.751.557 7.003.073 9.845.527 13.367.624 3.031.338 15.619.535 9.339.618 14.722.063 21.833.074 22.388.985 123.902.394Fonte: Programa <strong>de</strong> Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos/Ministério da Saú<strong>de</strong>.Nota: Nos anos <strong>de</strong> 1994 e 1995 os recursos <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s a BIOMANGUINHOS foram repassa<strong>do</strong>s através <strong>do</strong> orçamento da FIOCRUZ,sen<strong>do</strong> portanto consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s os valores forneci<strong>do</strong>s por esta Unida<strong>de</strong>318 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


• a <strong>de</strong>spreocupação com o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico; e• a crescente rigi<strong>de</strong>z da estrutura administrativa <strong>do</strong> setor público para fazerfrente às necessida<strong>de</strong>s nacionais.Quanto ao <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico, a capacitação nacional é claramentelimitada. Não há, no Brasil, nenhuma vacina comercializada com base nas novas biotecnologiasem saú<strong>de</strong> que tenha se origina<strong>do</strong> <strong>de</strong> uma contribuição tecnológica importante<strong>de</strong> empresas ou instituições nacionais. Isto, no referi<strong>do</strong> momento <strong>de</strong> globalização daprodução, coloca o risco concreto <strong>de</strong> sobrevivência, a longo prazo, da capacitação nacional.Os resulta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> PASNI são preocupantes. Além <strong>do</strong> atraso já expressivo na operacionalização<strong>do</strong>s projetos, as tecnologias a serem utilizadas não são as <strong>de</strong> última geraçãoe, o que é pior, não se está constituin<strong>do</strong> uma capacida<strong>de</strong> endógena <strong>de</strong> absorção e geração<strong>de</strong> inovações. Isto po<strong>de</strong> implicar num sério risco <strong>de</strong> obsolescência precoce <strong>de</strong> umPrograma que <strong>de</strong>man<strong>do</strong>u um enorme esforço em termos <strong>de</strong> canalização <strong>de</strong> recursosfinanceiros e humanos.Na realida<strong>de</strong>, na última década, colocaram-se novos <strong>de</strong>safios que engendraramquestões impensáveis há 10 anos atrás. Se, mesmo no início <strong>do</strong>s anos 80, já era clara anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> investir no <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico, ao longo da década o mun<strong>do</strong>assistiu a uma revolução tecnológica e organizacional que representou uma forte<strong>de</strong>scontinuida<strong>de</strong> com o padrão vigente no pós-guerra. As novas formas <strong>de</strong> organizaçãoda produção, as novas biotecnologias e a revolução microeletrônica somente po<strong>de</strong>riamser enfrentadas com esforços não marginais para o <strong>de</strong>senvolvimento tecnológico e paraa reestruturação das bases tradicionais <strong>de</strong> organização da produção. Sem tecnologia,era claro que o objetivo <strong>de</strong> auto-suficiência seria frustra<strong>do</strong> a cada momento. É da lógicada competição num setor <strong>de</strong> fronteira tecnológica (como se tornou a área das vacinas),o lançamento incessante <strong>de</strong> novos produtos. Sem capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhar estedinamismo, quan<strong>do</strong> se atinge uma meta, o alvo já se <strong>de</strong>slocou para mais adiante. Nocaso das vacinas, surgem a cada momento novos produtos e processos, tais como hepatiteB, haemophilus influenza tipo B, vacinas combinadas em geral, vacinas baseadas no DNA,possibilida<strong>de</strong>s diversas <strong>de</strong> utilização <strong>de</strong> engenharia genética, entre outras. Talvez, naconjuntura atual, o objetivo <strong>de</strong> auto-suficiência tivesse que ser substituí<strong>do</strong> pelo objetivo<strong>de</strong> capacitação tecnológica.Para enfrentar estes <strong>de</strong>safios, seria imprescindível superar o caráter artesanal e alógica acadêmica da produção local, mediante uma profunda transformação <strong>do</strong> padrãogerencial consolida<strong>do</strong> ao longo da história. Infelizmente, o PASNI não procurou, emconjunto com o aporte <strong>de</strong> recursos forneci<strong>do</strong>s, garantir as formas apropriadas <strong>de</strong> gestão.Com o investimento realiza<strong>do</strong>, houve um salto quantitativo da escala da capacida<strong>de</strong>produtiva, sem que houvesse maiores ações na transformação qualitativa da forma <strong>de</strong>gerenciamento <strong>do</strong>s Laboratórios Oficiais. Normalmente, estruturas não afetas à lógicaeconômica viram-se obrigadas a lidar com um contexto produtivo e competitivo para oqual não tinham a menor experiência e estrutura administrativa. A fragilida<strong>de</strong> dasistemática <strong>de</strong> planejamento estratégico e operacional, a rigi<strong>de</strong>z administrativa nas áreas<strong>de</strong> pessoal, compras e financeira e a própria cultura <strong>de</strong> controle burocrático <strong>do</strong> setor12. Em algumas vacinas como contra a Febre Amarela esta comparação das metas <strong>de</strong> 1986 com a produção<strong>de</strong> 1990 po<strong>de</strong> se mostrar enganosa, na medida em que as necessida<strong>de</strong>s anuais po<strong>de</strong>m variar, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong>da conjuntura epi<strong>de</strong>miológica e da programação anual <strong>de</strong> vacinação. Todavia, os da<strong>do</strong>s li<strong>do</strong>s em termosmais genéricos, e sen<strong>do</strong> qualifica<strong>do</strong>s, permitem visualizar apropriadamente os resulta<strong>do</strong>s atingi<strong>do</strong>sfrente à programação inicial.SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>319


QUADRO VI - Evolução <strong>do</strong> Programa <strong>de</strong> Auto – Suficiência Nacional em Imunobiológicosem mil <strong>do</strong>sesIMUNOBIOLÓGICOS 1986 1990 1995SITUAÇÃO INICIAL METAS X RESULTADOS SITUAÇÃO ATUALNecessida<strong>de</strong> Produção Produção/ Meta Produção Produção/ Necessida<strong>de</strong> Produção Produção/Anual Nacional Necessida<strong>de</strong> Nacional Meta Anual Nacional Necessida<strong>de</strong>Antipólio Oral 50.000 10.000 20% 50.000 0 0% 73.000 8.945 12%Anti-Sarampo 13.500 16.899 125% 15.000 17.583 117% 22.000 6.697 30%BCG 14.000 13.247 95% 16.000 19.294 121% 25.000 19.714 79%DPT 39.000 2.100 5% 40.000 1.878 5% 30.000 320 1%Dupla Infantil (DT) 2.000 0 0% 2.000 50 3% 200 225 112,5%Dupla Adulto (dt) - 1.506 - - 4.187 - 32.000 13.822 43%Toxói<strong>de</strong> Tetânico 25.000 3.292 13% 25.000 5.947 24% 16.000 9.123 57%Antimeningocócica A + C 3.000 0 0% 3.000 0 0% - 0 -Antimeningocócica C - 3.000 - - 4.000 - 5.600 4.215 75%Hepatite B - - - - - - 12.500 0 0%Anticolérica 200 200 100% 200 50 25% - 0 -Contra Febre Amarela 15.000 20.000 133% 15.000 6.000 40% 22.000 7.979 36%Contra Febre Tifói<strong>de</strong> 300 300 100% 500 120 24% 50 0 0%Anti-Rábica Humana 3.500 1.125 32% 3.000 2.273 76% 2.600 2.417 93%Anti-Rábica Canina 18.000 14.000 78% 18.000 15.500 86% 23.100 21.034 91%TOTAL 183.500 85.669 47% 187.700 76.882 41% 264.050 94.494 36%Fonte: – Necessida<strong>de</strong> 1986-1990 – da<strong>do</strong>s extraí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> quadro “Definição <strong>de</strong> Cotas <strong>de</strong> Participação <strong>do</strong>s Laboratórios Produtores na Demanda Nacional <strong>de</strong>Imunobiológicos” – PASNI/ Ministério da Saú<strong>de</strong>, apud Ga<strong>de</strong>lha (1990).– Necessida<strong>de</strong> 1995 – da<strong>do</strong>s extraí<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Quadro “Estimativa <strong>de</strong> Cotas <strong>de</strong> Participação <strong>do</strong>s Laboratórios Produtores na Demanda Nacional <strong>de</strong>Imunobiológicos para 1995” – Ministério da Saú<strong>de</strong> – Reunião – 31.05.95.– Produção 1986, 1990., 1995 – da<strong>do</strong>s extraí<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s Quadros <strong>de</strong>monstrativos da produção nacional por Laboratório (PASNI/ Ministério da Saú<strong>de</strong> – 1996),exceto o da<strong>do</strong> relativo à vacina contra febre amarela <strong>de</strong> 1990, on<strong>de</strong> foi consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> o da<strong>do</strong> forneci<strong>do</strong> por Biomanguinhos.320 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


público limitaram a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> resposta das instituições. O Quadro VIII, permitevisualizar este <strong>de</strong>spreparo no âmbito <strong>do</strong>s laboratórios que fazem parte <strong>do</strong> Programa, sebem que, a nosso ver, ainda não retrate apropriadamente a profundida<strong>de</strong> dastransformações requeridas.A reestruturação das formas <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>do</strong>s Laboratórios Oficiaistorna-se assim uma questão central para se enfrentar o discurso neoliberal privatizante,numa área em que a lógica <strong>do</strong> merca<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser extremamente danosa para viabilizarações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública. Neste setor, cujas necessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compras governamentaisatingem mais <strong>de</strong> 250 milhões <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s por ano, o Esta<strong>do</strong> não po<strong>de</strong> ficar na mão <strong>do</strong>oligopólio priva<strong>do</strong>, hoje li<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> por um grupo <strong>de</strong> não mais <strong>do</strong> que 5 empresas (Merck,Smithkline, Rhone Poulenc-Merrieux na li<strong>de</strong>rança). Por exemplo, um programa <strong>de</strong>vacinação contra Hepatite B que requeira 40 milhões <strong>de</strong> <strong>do</strong>ses em um ano ao custo <strong>de</strong>US$ 2 (que é o preço mínimo que tem si<strong>do</strong> apresenta<strong>do</strong> nas licitações internacionais)implicaria o gasto <strong>de</strong> recursos públicos <strong>de</strong> US$ 80 milhões com um só produto em umúnico ano. Este valor é muito superior ao que seria gasto internamente na absorção <strong>de</strong>tecnologia e no <strong>de</strong>senvolvimento da vacina no país, o que traria ganhos econômicos etecnológicos inquestionáveis. Enquanto a compra externa nesta área tecnológica <strong>de</strong>fronteira representa somente uma transferência <strong>de</strong> recursos, sua viabilização tecnológicateria um efeito multiplica<strong>do</strong>r no <strong>de</strong>senvolvimento nacional em biotecnologia, queconstitui uma das áreas vitais para a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento a longo prazo <strong>do</strong>país.Não se trata <strong>de</strong> voltar à orientação política <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> substituição <strong>de</strong> importaçõese <strong>de</strong> auto-suficiência produtiva como um objetivo em si. Reconhece-se que aprodução é crescentemente globalizada, sen<strong>do</strong> impensável projetos autárquicos. Nãoobstante, to<strong>do</strong>s os países que li<strong>de</strong>ram o crescimento mundial (incluin<strong>do</strong> os países em<strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> Leste Asiático) estabelecem setores e áreas tecnológicas estratégicas,para as quais o apoio público <strong>de</strong>ve ser canaliza<strong>do</strong>. A biotecnologia, invariavelmente,está neste grupo, sen<strong>do</strong> que o Brasil, pela dimensão <strong>de</strong> sua população e das ações emsaú<strong>de</strong> possui uma vantagem natural para o seu <strong>de</strong>senvolvimento.QUADRO VII - Programa Nacional <strong>de</strong> ImunizaçõesValor da Produção Nacional e das Importações - 1992-1995em US$1992 1993 1994 1995Valor % Valor % Valor % Valor %PRODUÇÃO 12.653.287 50,35 13.203.616 35,37 21.323.866 28,71 22.478.814 47,13NACIONALVACINAS 11.943.933 47,52 11.607.374 31,09 16.197.043 21,81 16.590.491 34,78SOROS 709.354 2,82 1.596.242 4,28 5.126.823 6,90 5.888.323 12,34IMPORTAÇÃO 12.479.626 49,65 24.129.235 64,63 52.948.968 71,29 25.220.400 52,87VACINAS 11.343.976 45,14 23.612.985 63,25 52.475.490 70,65 24.836.700 52,07SOROS 1.135.650 4,52 516.250 1,38 473.478 0,64 383.700 0,80TOTAL 25.132.913 100 37.332.851 100 74.272.83 4 100 47.699.214 100GERALFonte: Programa <strong>de</strong> Auto Suficiência Nacional em Imunobiológicos/Ministério da Saú<strong>de</strong>SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>321


Deste mo<strong>do</strong>, tanto pela dimensão da saú<strong>de</strong> pública quanto <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimentotecnológico a dicotomia neoliberal simplista entre o Esta<strong>do</strong> e o setor priva<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve sersuperada através <strong>de</strong> uma proposta ativa (e não <strong>de</strong>fensiva) <strong>de</strong> reestruturação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>na área <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> imunobiológicos.No contexto <strong>de</strong> uma reestruturação da ação estatal, propomos as seguintes açõespolíticas que <strong>de</strong>vem fazer parte da agenda <strong>de</strong> discussões:Ampliação da cooperação das instituições <strong>de</strong> C&T com aquelas produtoras <strong>de</strong>vacinas e o fortalecimento das áreas <strong>de</strong> pesquisa e <strong>de</strong>senvolvimento das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>produção, em particular da Fiocruz e <strong>do</strong> Butantan que <strong>de</strong>vem ser a base <strong>do</strong><strong>de</strong>senvolvimento e difusão da biotecnologia em saú<strong>de</strong> no Brasil.Ruptura <strong>do</strong> imobilismo da<strong>do</strong> pela falsa polarização entre permanecer <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> ou transformar-se em empresa privada, através da imediata a<strong>do</strong>ção em to<strong>do</strong>s oslaboratórios participantes <strong>do</strong> Programa, <strong>de</strong> um Contrato <strong>de</strong> Gestão como o Ministérioda Saú<strong>de</strong> e a conseqüente introdução <strong>do</strong>s princípios da administração gerencial e <strong>de</strong>planejamento com as flexibilizações envolvidas nas áreas <strong>de</strong> pessoal, compras eorçamentário-financeira.Introdução <strong>de</strong> formas profissionalizadas <strong>de</strong> gestão nessas instituições, buscan<strong>do</strong>seo autofinanciamento e a compatibilização entre a lógica <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> C&T com alógica econômica.Busca <strong>do</strong> estabelecimento <strong>de</strong> parcerias (acor<strong>do</strong>s <strong>de</strong> cooperação, joint ventures, entreoutras modalida<strong>de</strong>s) com empresas, nacionais ou internacionais, públicas ou privadas,que contribuam para alavancar a capacida<strong>de</strong> tecnológica e gerencial da produção local,superan<strong>do</strong>-se projetos autárquicos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento.QUADRO VIII - Laboratórios que Compõem oPrograma <strong>de</strong> Auto-Suficiência Nacional em ImunobiológicosLaboratório autonomia p/ a Regulamento Sistema <strong>de</strong> Retorno Estrutura GMP (*)contratação próprio <strong>de</strong> Apropriação Diretamente <strong>de</strong> P&D em<strong>de</strong> pessoal Compras <strong>de</strong> Custos Arrecada<strong>do</strong> ImunobiológicosBUTANTAN s/n s/n inician<strong>do</strong> sim +++ ++TECPAR n n insuficiente sim/não + +IVB n n insuficiente sim - -BIOMAN- n n inician<strong>do</strong> não ++ +GUINHOSFUNED n n insuficiente sim/não - -FAP s s intermediário sim +- -IQUEGOIBEX n n n/tem sim - -(*)Boas Práticas <strong>de</strong> Produção (Good Manufacture Practices)(+) restrita; (++) mo<strong>de</strong>rada; (+++) ampla; (-) insuficienteFonte: Programa <strong>de</strong> Auto-Suficiência Nacional em Imunobiológicos/Ministério da Saú<strong>de</strong> (Basea<strong>do</strong> em Quadro apresenta<strong>do</strong> pelaComissão <strong>de</strong> Avaliação <strong>do</strong> Parque Produtor Nacional <strong>de</strong> Imunobiológicos em 1995)322 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Introdução da prática <strong>de</strong> avaliações sistemáticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sempenho institucional,consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> não apenas o cumprimento <strong>de</strong> objetivos e metas, mas a a<strong>de</strong>quação <strong>do</strong>scustos <strong>de</strong> produção aos padrões internacionais.Incorporação à estrutura <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong>ssas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> algum grau <strong>de</strong> controleexterno, agregan<strong>do</strong>-se a representação <strong>de</strong> instâncias <strong>de</strong> gestão <strong>do</strong> SUS e <strong>de</strong> organismosda área <strong>de</strong> C&T.CONCLUSÃOA <strong>de</strong>speito das fortes diferenças e peculiarida<strong>de</strong>s das áreas <strong>de</strong> medicamentos e<strong>de</strong> imunobiológicos, ambas estão inseridas num contexto mais geral que ésobre<strong>de</strong>termina<strong>do</strong> pela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aprofundamento <strong>do</strong>s objetivos da ReformaSanitária e <strong>de</strong> transformação no papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no <strong>de</strong>senvolvimento econômico e social.Sob esta perspectiva, a área <strong>de</strong> insumos essenciais à saú<strong>de</strong> evi<strong>de</strong>ncia a contradição entrea garantia <strong>do</strong> direito à saú<strong>de</strong> como um aspecto essencial da cidadania e uma Reforma<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> que se pauta apenas por uma visão liberalizante. Os da<strong>do</strong>s apresenta<strong>do</strong>ssobre a evolução <strong>do</strong> valor médio <strong>do</strong>s medicamentos e as informações disponíveis sobreos preços das vacinas <strong>de</strong> última geração não <strong>de</strong>ixam margem à dúvida: sem uma atuaçãoestatal neste merca<strong>do</strong>, tanto direta quanto regula<strong>do</strong>ra, o acesso universal aos produtosprofiláticos e terapêuticos torna-se inviável. A questão da eficiência privada acabatornan<strong>do</strong>-se um <strong>do</strong>gma! Mesmo os a<strong>de</strong>ptos <strong>de</strong> visões liberais <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da Economiareconhecem que em merca<strong>do</strong>s imperfeitos, oligopoliza<strong>do</strong>s e pouco afeitos à concorrênciaem preços, o setor priva<strong>do</strong> atua <strong>de</strong> forma socialmente perversa se não há controlepúblico. A produção estatal <strong>de</strong> insumos, <strong>de</strong>ste mo<strong>do</strong>, é crucial não só para viabilizarminimamente as ações <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública; mas também para servir como um parâmetroda regulação estatal das formas predatórias <strong>de</strong> atuação <strong>do</strong>s oligopólios priva<strong>do</strong>s emáreas essenciais à saú<strong>de</strong>. Não é casual que a produção <strong>de</strong> insumos seja objeto <strong>de</strong> forteregulação estatal mesmo nos países que mais <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m os preceitos liberais como aInglaterra e os Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.Todavia, como evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong> pelo estu<strong>do</strong> das duas áreas produtivas, a questão émuito mais ampla <strong>do</strong> que a simples <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> papel <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> no setor, mas sim datransformação <strong>de</strong> sua forma <strong>de</strong> atuação, <strong>de</strong> sorte a permitir a aproximação entre o padrãopúblico <strong>de</strong> intervenção e os objetivos da Reforma Sanitária. A crítica da atuação <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser assumida não apenas no senti<strong>do</strong> negativo, neoliberal, que aponta parasua minimização; mas, sobretu<strong>do</strong>, a partir <strong>de</strong> uma ótica positiva que apresenta caminhospara sua transformação e para o fortalecimento <strong>do</strong>s compromissos públicos.Neste senti<strong>do</strong>, a tarefa <strong>de</strong> repensar a forma <strong>de</strong> atuação estatal tornou-se umanecessida<strong>de</strong>, mesmo para justificar uma ação mais eficiente e eficaz. Os temas <strong>de</strong> flexibilizaçãoadministrativa, <strong>de</strong> compromisso com resulta<strong>do</strong>s, da busca <strong>do</strong> autofinanciamentoe <strong>do</strong> estabelecimento <strong>de</strong> contratos <strong>de</strong> gestão passam a fazer parte das agendas<strong>de</strong> discussão <strong>do</strong>s que não aban<strong>do</strong>naram a visão <strong>de</strong> que a saú<strong>de</strong> é um direito <strong>do</strong> cidadãoe <strong>de</strong>ver <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Como foi visto, o padrão <strong>de</strong> intervenção estatal na área farmacêutica e <strong>de</strong> imunobiológicosestá longe <strong>de</strong> constituir um instrumento po<strong>de</strong>roso <strong>de</strong> apoio à viabilizaçãodas estratégias <strong>de</strong> <strong>de</strong>mocratização da saú<strong>de</strong> em nosso país. Por um la<strong>do</strong>, os obstáculosSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>323


são varia<strong>do</strong>s e complexos, <strong>de</strong>mandan<strong>do</strong>, portanto, estratégias articuladas para suasuperação. De outro, essas áreas permitem compor um amplo cenário <strong>de</strong> interpenetração<strong>de</strong> espaços comuns aos setores <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e <strong>de</strong> C&T. De fato, as questões levantadasnunca foram tratadas pelo Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma articulada, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a permitir a formulaçãoe a implementação <strong>de</strong> estratégias unificadas. No interior <strong>do</strong> próprio Ministério da Saú<strong>de</strong>,medicamentos, imunobiológicos e o <strong>de</strong>senvolvimento científico e tecnológico percorremáreas estanques, distancian<strong>do</strong>-se ao invés <strong>de</strong> se aproximarem.A imperiosa necessida<strong>de</strong> da introdução <strong>de</strong> lógicas gerenciais inova<strong>do</strong>ras nos laboratóriosprodutores, pressupõe enfrentar com serieda<strong>de</strong> a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Brasileiro e <strong>de</strong> uma profunda transformação <strong>do</strong> padrão gerencial atual. Naquestão <strong>do</strong>s medicamentos, o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve cumprir as funções <strong>de</strong> regulação, mas tambémas <strong>de</strong> produção, conforme os argumentos apresenta<strong>do</strong>s. Em relação aos imunobiológicos,<strong>de</strong>staca-se a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> indução, articulação e produção estatal comgraus diferencia<strong>do</strong>s <strong>de</strong> parcerias com instituições públicas e privadas.Em qualquer das hipóteses apresentadas, o obstáculo comum a ser supera<strong>do</strong> nessasorganizações é o conjunto <strong>de</strong> aspectos legais e administrativos que restringem aimplantação <strong>de</strong> práticas <strong>de</strong> planejamento e gestão voltadas para a eficiência <strong>do</strong> processo.e para a eficácia social.O avanço da Reforma Sanitária na área <strong>de</strong> insumos não po<strong>de</strong> ficar na <strong>de</strong>pendêncianem <strong>de</strong> um merca<strong>do</strong> i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> que substitui o interesse social nem <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong>que re<strong>luta</strong> em alterar suas práticas e seu formato organizacional.324 SAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>


Produção farmacêuticaSAÚDE E DEMOCRACIA - A LUTA DO <strong>CEBES</strong>325


Este livro foi produzi<strong>do</strong> e impresso em oficinaspróprias da Lemos Editorial & Gráficos Ltda.Rua Rui Barbosa, 70 - Bela Vista - São Paulo/SPCEP 01326.010 - Fone/Fax: (011) 251-4300

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