que se haviam já revelado penosamente erradas. A saber, «umaaposta na densificação e na homogeneidade», essa ideia queIsabel Guerra tão bem combateu na frase «as pessoas não sãocoisas que se metam em gavetas» quando descreve o acto deagarrar na população de um bairro de barracas e transferi-la paraum bairro de prédios. Resultado: a «promoção social» almejadanão se verifica, o estigma que pesava sobre o primeiro bairrotransfere-se para o segundo. Um estigma que, como o antropólogoJosé Cavaleiro Rodrigues escreve em As lógicas sociais dos processosde realojamento (revista Comunidades e Territórios, 2003), passamuito pela avaliação dos próprios. Sentindo-se «roubados» danova identidade social sonhada, desenvolvem um «processo acusatório»em relação aos vizinhos. A «sociabilidade e a solidariedadeiniciais do bairro de barracas» são substituídas pela «generalizaçãode formas de interacção negativas». É o «gosto pela casa e o desgostopelo bairro» (mais uma síntese feliz de Guerra), que se dá aver na destruição, pelos mais jovens, de tudo o que possa ser destruídonesse lugar maldito, das caixas de correio aos candeeiros eaos parques infantis. Uma auto-mutilação que reforça o estigma,num paradoxo que Maria João Freitas lê como uma forma decomunicar «abandono e desagrado». Como quem diz, olhem parao nojo de bairro em que vivemos. Olhem para o nojo que nos deram.Como é que podemos querer viver aqui? Como poderemos ser aquifelizes? «Diz-se que ‘destroem aquilo que é seu’», conclui Freitas.«Mas se calhar não sentem aquilo como seu». A casa nova, de quese reclamou incessantemente o direito adquirido, não é afinal a«sua» casa, mas aquela que uma sociedade sem rosto entregacomo penhor de uma qualquer «culpa». Uma esmola que ao invésde colmatar a exclusão a confirma e se transforma numa desculpa,em mais um factor adverso, mais um motivo para desistir.O problema da descontrução de umestereótipo é que o resultado finaltende a ser, justamente, o reforçodesse mesmo estereótipo. Ou seja,como questionar e interrogar aideia de bairros críticos sem areificar? Impossível: qualquerdiscurso sobre o tema caminhaneste paradoxo. Até porque, parater esta conversa, é preciso admitirque há um problema. Que nesteslugares, de resto tão diversos entresi em tantos aspectos, há algo decomum. E que esse algo necessitade reflexão, de esforço, de soluções.Trata-se, afinal, de um processo muito simples e compreensível:chama-se desilusão. Uma desilusão que reforça os sentimentospelo bairro abandonado, o sítio de onde se foi expulso. Tem dehaver sempre um paraíso – e se enquanto estavam no bairroantigo os habitantes dos bairros sociais sonhavam com a casanova, na casa nova (agora menos nova) sonham com o bairro queconstruíram com as suas mãos, onde não tinham luz nem águacorrente nem banheira nem esgotos mas onde se lembram de tersido felizes. É significativo que nos 10 documentários que, comAbílio Leitão, fiz para a RTP2 (A vida normalmente, exibidos emSetembro/ Outubro de 2008) e que, precisamente, tinham comoobjectivo programático um olhar interior e desejavelmente desconstrutorde estereótipos dos bairros ditos críticos; o único bairroem que os habitantes afirmaram um apego visceral é o da Covada Moura, um bairro auto-construído que tem objectivamente,tanto do ponto de vista da tipologia das casas como dos arruamentos,muitos menos condições que a generalidade dos bairrossociais.Estranho, isto. Amargo, até. O bem que se quis fazer – porque foipor bem que se destruíram os ditos bairros de barracas e se investiuem novos alojamentos, a estrear – resultou assim. Talvez, afinal,as pessoas tenham necessidade de sentir que o que têm se devea mérito seu, a trabalho seu, a escolha sua. Talvez não se possa decidir-lhesa vida imperialmente, por melhores que sejam as intenções.Talvez tenhamos de pensar isto tudo melhor. Mais e melhor.Todos, incluindo os que se comprazem nas desculpas e os queapostam no abandono. Porque não há problemas que se resolvamcolocando-os fora da vista – não há sequer isso, fora da vista.Estamos todos na mesma <strong>cidade</strong>. ■12 |
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