LIVRO EMOÇÃO
Escrito em 2013, o livro do artista traz casos que acontecem no cotidiano da vida das pessoas.
Escrito em 2013, o livro do artista traz casos que acontecem no cotidiano da vida das pessoas.
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
1<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
<strong>EMOÇÃO</strong><br />
“CAUSOS” DO COTIDIANO<br />
2<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
3<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
<strong>EMOÇÃO</strong><br />
“CAUSOS” DO COTIDIANO<br />
Vitor Moreira<br />
4<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Emoção<br />
“Causos” do Cotidiano<br />
Direitos reservados para língua portuguesa:<br />
Vitor Moreira<br />
Revisão:<br />
Capa: Vitor Moreira<br />
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem<br />
os meios empregados, sem a permissão, por escrito, do Autor<br />
5<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Eis o novo trabalho do artista<br />
Vitor Moreira! O livro Emoção –<br />
“Causos” do cotidiano. Uma reunião de<br />
pequenas histórias selecionadas pelo<br />
autor para de uma forma bem-humorada<br />
falar de assuntos que são cada vez mais<br />
constantes no dia-a-dia do povo<br />
brasileiro como política, segurança<br />
pública, relacionamento interpessoal,<br />
religião, avanço tecnológico, ética,<br />
cidadania e amor nos tempos atuais.<br />
Mais uma vez o autor não deixa<br />
passar em branco a pessoalidade do que<br />
escreve e sua personalidade ousada ao<br />
criticar as falhas do sistema social<br />
arraigado na Constituição, onde muitas<br />
das vezes somente se preserva no<br />
sentido de privilegiar alguns em<br />
detrimento da maioria.<br />
É certamente uma grande<br />
emoção a forma com que mais uma vez<br />
o cantor, compositor e escritor Vitor<br />
Moreira presenteia o público com uma<br />
jóia rara da literatura brasileira!<br />
Outras obras do autor são Rei<br />
Sitae – Onde A Coisa Se Encontra;<br />
Frenesi – A Poesia da Vida; O Coração<br />
Não Nega; Soneto, Convite Para Sonhar;<br />
Quarenta Passos Até o Campo; É Que O<br />
Amor Morreu No Belvedere; Petrúcio;<br />
Desfragmentação – O Formigueiro de<br />
Ilê-Ifé; O Lavrador das Lavras Vazias;<br />
Carnaval em Raul Soares e Amor de<br />
Veraneio – Uma História de Verão.<br />
Completa o acervo do artista o trabalho<br />
musical Marcas da Paixão de samba.<br />
6<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Universo Humano<br />
Pintura do próprio artista Vitor Moreira, do ano de 2004,<br />
onde conforme relata há a expressão de toda a sua criação<br />
artística, baseada na unidade do universo interior de cada<br />
indivíduo. Entende-se que cada indivíduo é bom ou ruim, tem<br />
seus mitos, suas crenças e seu caráter, entretanto no interior de<br />
cada um há o consenso, onde se nota que todos independente de<br />
qualquer coisa, até mesmo da disposição das suas prioridades<br />
de vida (posição dos astros, planetas, cometas) dentro do seu<br />
universo pessoal idealizam um céu de estrelas, luz e mistérios e<br />
uma Terra de prazer e realização. O Universo Humano é a base<br />
de toda criação artística de Vitor Moreira.<br />
7<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
8<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
SUMÁRIO<br />
O “diabo louro”......................................................10<br />
O problema não é a bebida, é o problema...........16<br />
Ele era de fé............................................................22<br />
Era meu grande amigo e nem lhe conhecia.........27<br />
O cachorro fugiu, não o marido, Jurema............34<br />
Não te amo mais, ficarei com a televisão.............41<br />
Bolinho de bacalhau..............................................46<br />
Amigos também sussurram no ouvido.................48<br />
Violão, roça e cachaça de alambique...................53<br />
Mudar de vida.........................................................57<br />
Perseguição.............................................................65<br />
Quem trabalha não precisa pedir.........................74<br />
Ou ele ou eu, aos sábados......................................79<br />
O plano do plano de saúde....................................83<br />
Fiquei careta, e agora?..........................................86<br />
A pegadinha do falso cigarro................................91<br />
Ái meu fusca!..........................................................98<br />
“Moreno” só tem um.............................................102<br />
O galã......................................................................106<br />
9<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
O “diabo louro”<br />
Havia uma favela muito perigosa naquele<br />
bairro onde nenhum morador gostava da policia!<br />
As viaturas constantemente se deslocavam para<br />
lá com a intenção de averiguar a situação do<br />
crime ou prender um traficante. As pessoas,<br />
moradores daquele local perigoso jogavam<br />
pedras, ovos, tomates podres e objetos...depois<br />
saiam correndo gritando e se escondiam nos<br />
becos e vielas, como se fossem eles os<br />
responsáveis pela violência.<br />
Todo domingo havia um samba no barzinho<br />
do Tinoco, um velho bicheiro que promovia jogo<br />
de baralho e purrinha. Porém agora não há mais<br />
10<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
porque ele está pagando serviços comunitários<br />
depois que seus jogos foram descobertos.<br />
Aquele novato, acabara de ser transferido<br />
pra sua cidade natal após um longo período<br />
trabalhando no interior e tentativas frustradas de<br />
voltar pra essa cidade...até que a insistência com<br />
o tempo foi atendida muito a contragosto pelo seu<br />
chefe de policia lá no interior do Estado.<br />
Conhecia aquele lugar, e bem, pois há muito<br />
tempo, muitos anos atrás nos dias de criança<br />
aquilo ali era pacífico, tudo era movimentado!<br />
Havia barracas de produtos contrabandeados<br />
sendo vendidos livremente, uma quitanda de<br />
frutas bem simples, plantadas no fundo do quintal,<br />
um velho que sempre ficava pitando cigarro de<br />
palha na varanda de seu barraco, algumas<br />
meninas brincando de ciranda na pracinha e até o<br />
campinho de terra onde as crianças jogavam bola<br />
perto do lixão municipal enquanto que longe dali<br />
um ou outro adulto fumava um cigarro de<br />
maconha ao velho estilo do Bob...<br />
Os tempos mudaram. E agora ele olha pela<br />
janela do banco do passageiro da viatura de<br />
policia, usando seu uniforme vermelho. O mesmo<br />
lugar onde antes jogava bola no campinho do<br />
lixão, tudo tão mudado, repleto de pichações e o<br />
campinho já não existe porque a prefeitura<br />
expandiu o lixão, a pracinha virou matagal porque<br />
a grama não foi podada, as barracas sumiram,<br />
assim como o barraco do velho homem que<br />
gostava de ver o movimento da rua principal<br />
daquele lugar enquanto pitava cigarro de palha.<br />
Um dos policiais da viatura, velho de casa,<br />
com um cargo alto de chefia na policia,<br />
11<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
trabalhando nesta região há vários anos, inclusive<br />
antes das mudanças, nos tempos da Ditadura<br />
ainda, extremo conhecedor do serviço naquela<br />
área tão perigosa diz sempre que tudo começou a<br />
mudar quando o “diabo louro” trouxe a droga pra<br />
cá após seu pai ser morto por uma bala perdida<br />
enquanto dormia. O pai dele era uma espécie de<br />
líder comunitário muito influente, que acreditava<br />
em alguns ideais e sempre batia de frente com os<br />
poderosos para garantir saúde e bem-estar aos<br />
moradores daquela favela. Possuía uma rádio<br />
pirata que transmitia notícias de interesse dos<br />
moradores e tocava umas músicas que ele<br />
comprava na mão dos camelôs no centro daquela<br />
cidade, tudo pirateado porque não tinha dinheiro<br />
pra comprar os CDs originais. Além disso fazia<br />
pequenos furtos fora da favela. Dizia sempre na<br />
rádio que aquelas pessoas mereciam um centro<br />
de saúde, um cuidado maior da prefeitura,<br />
empregos, respeito, dignidade, cidadania...<br />
Então passado um tempo o “diabo louro”<br />
estabeleceu a sua boca de fumo. Dizem que tem<br />
escolta armada e hoje há uma rede de tráfico<br />
muito grande, conforme relata o chefe da policia<br />
naquela viatura. Não há quem nunca tenha ouvido<br />
falar do “diabo louro” na policia daquela cidade.<br />
Era um homem terrível! Desprezível! Perigoso! –<br />
diziam.<br />
Dizia o chefe que ninguém ali prestava, que<br />
nada de bom jamais sairia daquele lugar, pois os<br />
moradores acobertavam a criminalidade do “diabo<br />
louro” em troca de remédios, mantimentos, carne,<br />
carvão, panelas, bebida, botijões de gás, entre<br />
outros favores. Na verdade essa é a tendência em<br />
12<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
áreas de risco porque ninguém quer se expor,<br />
denunciar, revelar o que há de errado e ser morto<br />
em seguida. O Estado e o município não estarão<br />
ali todo o tempo e ao virar as costas...uma<br />
saravada de tiros, um golpe de faca. E quem é o<br />
estado com toda a sua competência pra dar<br />
dignidade a um favelado? Isso é o que<br />
acreditavam os moradores dali, e se inclinavam<br />
para quem mais lhes proporciona vantagens.<br />
Sentado num banco estava o “diabo louro”<br />
sem a sua escolta armada, tomando um copo de<br />
cerveja calmamente. Era domingo. Os policiais ao<br />
avistarem-no, se assustaram, tomaram um<br />
choque e já pegaram as armas pra se defender do<br />
perigoso bandido, que estava desprotegido no bar.<br />
Só o novato não o conhecia. Havia acabado de<br />
retornar para a cidade, estava em período de<br />
adaptação e por isso ficou fazendo a segurança<br />
dos outros. Rapidamente o abordaram e<br />
começaram a revirá-lo procurando armas e<br />
drogas. Com ele havia alguns trocados apenas,<br />
um celular barato e dois cigarros. O novato ficou<br />
atrás fazendo a segurança enquanto que os<br />
experientes procuravam em seus bolsos, nas<br />
imediações, apertavam as articulações daquele<br />
homem tão cruel para que revelasse qualquer<br />
indício de algo errado para prendê-lo e acabar<br />
com toda aquela violência que existia na favela.<br />
Queriam fazer aquele lugar voltar a ser o que era<br />
antes, queriam proporcionar bem-estar para a<br />
população do lugar e livrar todas as pessoas do<br />
indivíduo maléfico.<br />
Não havia nada com o “diabo louro”, porém<br />
aquele policial mais velho e de alta patente<br />
13<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
chamou o outro que dava buscas em um canto<br />
para conversarem sobre o que fazer com o<br />
perigoso bandido e devolver a paz para o lugar.<br />
Queria de todas as formas usar sua influência para<br />
resolver os problemas daquela gente.<br />
O novato então se aproximou para ver a<br />
fisionomia do “diabo louro”, pois conhecia bem<br />
aquele lugar, que era o lugar onde sempre<br />
passava para ir para o campinho jogar bola com<br />
os amigos de infância e onde ficava a escola pobre<br />
onde sempre estudou desde criança. Ali perto era<br />
também a lojinha de muamba do seu pai e ele<br />
sempre levava o almoço por volta das treze horas<br />
pontualmente.<br />
- Nossa é você? – disse o “diabo louro”.<br />
Surpreso e um tanto nervoso por estar perto<br />
de um homem tão perigoso, dono do morro, o<br />
novato respondeu:<br />
- Sinto muito, não o conheço.<br />
- Sou eu Joaquim, o Lorim. Jogava no seu<br />
time lá no campo, lembra? Eu era o atacante,<br />
baixinho! Cansei de receber bola sua pra fazer gol<br />
pro nosso time. Nossa, você jogava muito bem! Eu<br />
era seu fã! Até hoje guardo de lembrança aquela<br />
chuteira velha que não te servia mais e você me<br />
deu de presente porque eu não tinha.<br />
- Não está me confundindo com alguém?<br />
- Não. Tenho certeza que te conheço, eu já<br />
almocei na sua casa uma vez, lembro até hoje,<br />
havia bife com batata frita, jogávamos no mesmo<br />
time ali onde era o campinho. Lembro até onde<br />
morava. Era lá perto da rua da escola. Direto eu<br />
via você no intervalo do recreio indo até a<br />
biblioteca pegar livro. Eu estou muito feliz em te<br />
14<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
ver de novo depois de tantos anos! Eu sabia que<br />
você iria estudar! Eu sabia que iria ser alguém na<br />
vida! Parabéns meu amigo! Vou contar pra minha<br />
mãe que eu te vi, ela nem vai acreditar que você<br />
virou “gambé” e já está num cargo de chefe, ela<br />
nem vai acreditar.<br />
Então o chefe de policia olhou surpreso para<br />
os dois, mais espantado ainda por saber que o<br />
novato crescera naquele lugar que tanto difamou<br />
e era quem mais conhecia o homem perigoso que<br />
mandava e desmandava naquela favela.<br />
- Você definitivamente está me confundindo<br />
com alguém. Não conheço você e nem conheço<br />
esse lugar, pois sou um homem da lei e você é um<br />
criminoso perigoso! Afaste-se. Aliás, perigoso e<br />
jogava muito mal! Aquele dia contra o time da vila<br />
Formosa quase ganhamos o jogo e você foi errar o<br />
pênalti aos quarenta e três minutos do segundo<br />
tempo. E mande um abraço pra sua mãe, tenho<br />
saudades dela. Diga que estou bem.<br />
- Atenção todos: embarcar. Vamos embora.<br />
15<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
O problema não é a bebida, é o problema<br />
Com Fábio Nogueira<br />
Hoje não vou beber nenhuma dose de<br />
bebida alcoólica para esquecer desse problema<br />
tão grave! Problema que tem me perseguido no<br />
âmbito pessoal e se tornou motivo dos meus<br />
dissabores sociais e humanos! Problema este pelo<br />
qual estou passando nos últimos tempos e que<br />
tem perturbado tanto os meus pensamentos, dia<br />
após dia, a ponto de deixar a vida repleta de<br />
16<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
desilusões e provocar depressão em alguns<br />
momentos, me fazendo até chorar, segurar os<br />
cabelos derrotado ao sentar na cadeira e<br />
desabafar em silêncio uma sensação de desgosto<br />
por tudo que há neste mundo.<br />
Persegue-me ao acordar e em tudo que vou<br />
fazer. Sinto-me triste! Queria uma solução para<br />
isso tudo, para esse problema tão devastador em<br />
minha vida. Problema que não tem coragem de<br />
olhar em meus olhos ou se materializar em minha<br />
frente para eu derrotá-lo.<br />
Desde que isso tudo começou, todos os dias<br />
eu tenho enchido a cara nos bares da vida pra<br />
tentar esquecer do problema. Isso está me<br />
prejudicando financeiramente, porque a minha<br />
conta de pendura no bar está cada vez maior,<br />
extrapolando o planejamento financeiro que eu<br />
sempre mantive e o pagamento vem aí. Talvez o<br />
dinheiro nem dê para pagar tudo que estou<br />
devendo.<br />
No mês passado a pindura do bar foi três<br />
vezes maior que nos meses anteriores. Tudo por<br />
causa desse problema pelo qual estou passando e<br />
que até agora não tem solução. O único alívio tem<br />
sido a bebida.<br />
Na hora que chego do trabalho, os<br />
pensamentos sobre o problema estão pesados!<br />
Eles ficam sufocando minhas artérias, apertam o<br />
pescoço, deixando a fala difícil e o olhar sem<br />
brilho. Tira minhas armas de defesa, mas eu não<br />
vou vangloriar o problema, pois isso o faz feliz! Ou<br />
faça a todos eles, porque já nem sei se é somente<br />
um problema ou um círculo de problemas. De<br />
problema oficial só sei de um.<br />
17<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Traiçoeiros que são me fazem querer beber<br />
muitas doses de qualquer coisa que contenha<br />
bastante álcool, para esquecer do problema que<br />
estou enfrentando e poder ao menos sorrir um<br />
pouco ou ter a curiosidade de ler uma notícia no<br />
jornal ou pensar em mulheres.<br />
No outro dia pela manhã vem a ressaca.<br />
Uma sensação terrível de arrependimento! Aquela<br />
dor de cabeça forte, principalmente na fronte.<br />
Bebo água constantemente e o problema começa<br />
a surgir de novo quando a sonolência se passa e<br />
me dou conta da burrada que fiz. Queria uma<br />
espada de prata para cortar esse mal pela raiz!<br />
Descer da cama se torna difícil, pois o corpo<br />
sem forças, após uma noite mal dormida e várias<br />
idas ao banheiro no meio da madrugada para<br />
urinar, ou com ânsia de vômito, prefere continuar<br />
na cama a enfrentar os desafios de mais um dia<br />
pensando no mesmo problema. O que agrava é<br />
que o problema vem e parece dividir comigo a<br />
cama, roubando inclusive os lençóis e me<br />
empurrando para fora do meu próprio leito, me<br />
deixando encolhido no frio da madrugada.<br />
Sim! Se me levanto é pra ver se ele fica lá<br />
na cama e termine essa perseguição implacável à<br />
minha pessoa.<br />
Ao almoçar a comida passa com dificuldade<br />
pela garganta e tem gosto amargo por causa do<br />
meu estado. O suco parece que nunca ficará doce<br />
mesmo após várias colheres de açúcar. A diabetes<br />
que ainda nem nasceu sorri no seu germe!<br />
Quando a tarde chega já estou mais<br />
recuperado apesar da fadiga, e nessa hora quando<br />
vai escurecendo, os pensamentos sobre o<br />
18<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
problema se tornam muito intensos! Difícil<br />
encontrar uma saída para resolver isso tudo.<br />
Vai crescendo uma sensação de vazio por<br />
dentro, e nessa hora, vendo a noite cair, o<br />
problema ocupa totalmente os quartos da casa, a<br />
sala, até mesmo a visão da rua. Pessoas<br />
conversando, até parece que falam do meu<br />
problema.<br />
E então eu saio para esfriar a cabeça e parar<br />
de pensar nesse problema tão grave que me tira o<br />
gosto pela vida em alguns momentos, quando a<br />
depressão é mais evidente, e de tanto pensar no<br />
problema até tropeço nas pessoas na rua quando<br />
estou à pé, ou então quase bato o carro ao passar<br />
por um sinal vermelho, num cruzamento nas ruas<br />
do bairro.<br />
E já embebido de stress eu paro no bar e<br />
encho a cara. Ali eu vejo a solução noturna para<br />
acabar com o meu problema que não me dá<br />
vontade de viver.<br />
O álcool leva embora em questão de<br />
minutos tudo de ruim, aquilo que persegue minha<br />
liberdade, e nesse momento até a voz fica mais<br />
forte, mais firme, e já não há aquela fraqueza e<br />
tristeza que a afina como voz de criança ao<br />
receber uma bronca dos pais.<br />
Uma imagem suave, de iluminação calma no<br />
interior do recinto! As pessoas lá dentro, bem<br />
vestidas ou não são todas importantes! Artistas de<br />
um cenário que agrada os olhos do público que<br />
sou eu! O ar se apresenta macio e o cheiro do<br />
cigarro tantas vezes repudiado se torna gostoso,<br />
porque lembra calma e relaxamento. Barulho de<br />
copos, barulho de bebida caindo dentro do<br />
19<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
copo...a espuma...o gelo...o limão...o torresmo...a<br />
solução para o problema...<br />
Quando o problema vem de forma mais<br />
tenebrosa, ali no bar mesmo peço uma garrafa de<br />
refrigerante. Às vezes até bebo o líquido em seu<br />
interior, porque na verdade o que interessa<br />
mesmo é levar a cachaça pra casa dentro daquela<br />
garrafinha para a eventualidade de no meio da<br />
noite, ao sonhar com o problema, acabar<br />
perdendo o sono e não conseguir mais dormir, e<br />
acordar com horríveis olheiras!<br />
Hoje estou decidido a não beber. Vou sair<br />
pela cidade como tenho feito todas as noites<br />
desde que esse problema começou, mas vou<br />
evitar passar em frente ao bar. Sei que ali dentro<br />
está o remédio para o dia de hoje, mas não irei<br />
até lá.<br />
Quando eu olho em seu interior, vejo uma<br />
sensação de cura e libertação que me agradam,<br />
me deixam aliviado! Então, já sobrecarregado pelo<br />
problema vou até lá para abrandar as tensões do<br />
corpo e do espírito, sorrir um pouco, contar casos<br />
do cotidiano que não tem relação alguma com o<br />
problema e relaxar um pouco, tirando a tensão<br />
dos ombros e respirando fundo, sentindo voltar o<br />
prazer pela vida! A emoção renasce!<br />
Quero me erguer, encher o peito, olhar para<br />
o horizonte e não enxergar o problema, sacudir a<br />
poeira dos pés, olhar meu rosto no espelho e<br />
ajeitar os cabelos, ajeitar a gola da blusa e a<br />
manga, um olhar altivo, uma expressão jovial nos<br />
lábios e no rosto, uma postura mais realizada!<br />
Sentir-me um verdadeiro galã e ter prazer em<br />
caminhar pela rua!<br />
20<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
E embora todas as noites eu tenha feito a<br />
mesma coisa, em relação aos meus desejos de<br />
superação, sempre frustrados após o passeio, sei<br />
que hoje será diferente! Hoje eu estou mais<br />
decidido que ontem, e mesmo que hoje os<br />
pensamentos sobre o problema estejam mais<br />
fortes que nos outros dias eu sei que vou<br />
conseguir.<br />
Nos dias anteriores tentei também manter<br />
firme o meu propósito, mas o pensamento sobre o<br />
problema foi mais forte! Acabei indo parar no bar<br />
e bebi muito, a ponto de ter dificuldade para ir<br />
embora.<br />
Sei que hoje a perturbação está mais<br />
evidente que nos outros dias, mas hoje eu vou<br />
conseguir.<br />
Eu preciso conseguir!<br />
De repente hoje ao caminhar o problema<br />
resolva ser solucionado. Quem sabe se ao pensar<br />
nesse problema durante o passeio eu encontre<br />
uma resposta que me fará dormir melhor hoje. Só<br />
não quero beber hoje, e resolver esse problema o<br />
mais rápido possível...<br />
Fecho o portão da casa e guardo as chaves<br />
no bolso. Então vou seguindo a rua em direção à<br />
avenida...<br />
21<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Ele era de fé<br />
Ele era de fé! Toda quarta-feira vestia sua<br />
roupa branca, colocava os adereços no pescoço,<br />
sua guia. Acendia um incenso de Anakanan.<br />
Passava uma alfazema no pescoço e ia pro<br />
terreiro, lá do outro lado do bairro.<br />
22<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Deitava pro santo, batucava o tambor,<br />
rodava, cantava.<br />
Uns reprovavam e diziam: está aí o<br />
macumbeiro! Lá vai prejudicar a vida dos outros.<br />
Colocar contenda e trazer mau-olhado para as<br />
nossas inocentes crianças. Lá vai ele.<br />
Resmungavam: lá vai fazer barulho e o que<br />
não é lícito. Alguém devia é chamar a polícia pra<br />
esses arruaceiros que ficam até tarde<br />
cantarolando e chamando espíritos.<br />
O que é lícito? O que é o certo e o errado?<br />
Alguém poderia dizer com elementos de<br />
convicção?<br />
Acreditar em algo é lícito. E aquele homem<br />
era de fé!<br />
Não falava mal dos outros, filho de Oxossi,<br />
entidade representada por um nativo caçador, rei<br />
da mata, oriunda das religiões africanas da<br />
antiguidade. Dizia que era de fé e acreditava na<br />
purificação do corpo e da alma através da fé.<br />
Um outro disse que não ficaria rico com a<br />
sua religião.<br />
Ele então agradecia e dizia que se fosse<br />
assim seria feliz porque a vontade do criador<br />
estaria sendo cumprida. Que a vida é<br />
peregrinação e sofrimento dia após dia para a<br />
purificação e remissão dos pecados. Que a<br />
prosperidade vinha do talento e não era dada pelo<br />
céu de mão beijada, era o homem que deveria<br />
buscar o progresso com o trabalho.<br />
Ele era de fé sim! Dizia que religião é o que<br />
escolhemos acreditar e não aquilo que é imposto<br />
pela colonização ou pela própria sociedade em<br />
que vivemos. Não aceitava que o proibissem a<br />
23<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
crença, porém não criticava quem o criticava,<br />
apenas sorria, como se subjugasse a ignorância<br />
alheia com classe e cortesia!<br />
Contava que na época da escravidão os seus<br />
antepassados cultuavam as divindades africanas<br />
escondido, sob o aspecto de imagens de santos da<br />
igreja que mais se pareciam com elas. Falava dos<br />
caboclos que protegiam as matas e mares.<br />
Tinha um aspecto sereno e estudava muitos<br />
livros. Queria conhecimento de muitas coisas.<br />
Nunca pendurava conta no bar nem na<br />
farmácia e nem na padaria. Dizia que não queria<br />
ser motivo de discórdia porque isso desagradava o<br />
seu orixá. Dizia que algumas pessoas não lhe<br />
tinham bons olhos pela sua religião, e que embora<br />
fosse um homem de fé as outras pessoas estavam<br />
cheias de maldade.<br />
Mas o que é certo: acreditar ou criticar? A fé<br />
conforme ele falou é aquilo que escolhemos<br />
acreditar. Uns poucos aí tentando minimizar o<br />
homem, mas quem tem a fé verdadeira senão<br />
aquele que busca a sua crença com o coração<br />
limpo e sem menosprezo pelos outros?<br />
Eu só sei que ele era de fé! Nunca deixava<br />
de ir ao terreiro nas quartas-feiras. Quando<br />
voltava e passava pela rua até mesmo o ar ficava<br />
com cheiro de ervas e incenso, acho que guiné,<br />
jurema e benjoim.<br />
Vários cordões no pescoço, verde, marrom,<br />
vermelho e branco. A roupa sem manchas e uma<br />
expressão alegre.<br />
Ao passar pelo bar ainda cumprimenta a<br />
todos e toma uma dose antes de ir embora,<br />
24<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
jogando é claro a parte do santo no cantinho da<br />
parede.<br />
Ele era de fé! Acendia o incenso dentro de<br />
sua casa sempre no mesmo horário, não passava<br />
um minuto sequer. Cantava suas músicas, fazia<br />
sua reza, untava a bandeja com dendê e<br />
preparava oferendas para seus santos.<br />
Como pessoa ninguém tinha do que<br />
reclamar, exceto um que morava na casa em<br />
frente e sempre o criticava, dizendo que sua vida<br />
não prosperava porque certamente havia uma<br />
macumba da parte do homem. E ele pagava suas<br />
contas em dia e até emprestava dinheiro quando<br />
alguém estava necessitado. Dia 27 entregava<br />
muitos doces para as crianças, sorvete, balas,<br />
bombons. Contratava um carrinho de algodão<br />
doce pra ficar o dia inteiro por conta das crianças.<br />
Vinham crianças até de outros bairros e formavase<br />
uma multidão de meninos pobres em frente ao<br />
portão de sua casa.<br />
Alguns diziam: vai envenenar as pobres<br />
crianças famintas com esses doces cheios de<br />
maldade.<br />
Outros resmungavam: infelizes os pais que<br />
permitem que essas crianças aceitem doce na rua<br />
de uma pessoa tão ruim e que faz maldades<br />
atrasando a vida dos outros.<br />
Ele gostava de ser um homem de fé. Embora<br />
algumas pessoas lhe fechavam os rostos, ele<br />
sempre sorria para todos na rua e cumprimentava<br />
a todos, sempre educado e cortês.<br />
Então morreu ano passado de velhice aos<br />
noventa e seis anos. Seu último desejo foi ser<br />
cremado e suas cinzas jogadas no mar em dia de<br />
25<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Iemanjá junto com muitas flores. Veio gente de<br />
longe para o seu velório e cremação. As pessoas<br />
então na rua não tinham mais de quem falar mal e<br />
tudo ficou sem graça, as crianças sumiram da rua<br />
no mês de setembro, o cheiro de incenso que até<br />
era gostoso sumiu da rua e todo mundo sentiu<br />
falta dele.<br />
Aquele lá que morava em frente à casa dele<br />
se sentiu sozinho. Quando viu que tudo estava<br />
perfeito no que reclamou por anos em relação a<br />
ter sido vítima de uma suposta macumba, viu que<br />
sua vida não mudou em nada financeiramente<br />
com a ausência daquele macumbeiro. No fundo<br />
gostava do vizinho, admirava o seu sorriso, sua<br />
simplicidade e principalmente a sua fé e devoção<br />
à sua escolha religiosa. E viu que faltava a<br />
presença dele lá do outro lado da rua, pitando seu<br />
cachimbo todos os dias à tarde lá pelas cinco<br />
horas, cumprimentando a todos que passavam<br />
com um sorriso sempre tão espontâneo no rosto e<br />
olhar sereno.<br />
A religião não era o problema, era o motivo<br />
para descarregar as angústias da vida, uma forma<br />
de externar parte da raiva que existe dentro de<br />
cada um.<br />
E no fundo gostava dele, e hoje todo mundo<br />
da rua sente falta daquele velhinho simpático e<br />
bem humorado, que hoje é espírito de luz da<br />
falange dos pretos velhos.<br />
26<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Com Tiago Prado, Lulu e Rose Assunção na roda de samba do Restaurante Xavier<br />
Era meu grande amigo e nem lhe conhecia<br />
Nos dias modernos em que estamos<br />
vivendo, a tecnologia entra cada vez mais fácil e<br />
rápido em nossas vidas! Tanto que quando<br />
compramos um aparelho, achando que estamos<br />
adquirindo algo de última geração, em poucos<br />
dias surge um outro mais moderno e eficiente<br />
ainda!<br />
Lembro que no meu tempo de adolescência<br />
possuir um celular estilo tijolo de construção<br />
balançando na cintura, preso ao cinto era um<br />
sinônimo indiscutível de um status econômico<br />
diferenciado! Em outras palavras: pesava uma<br />
tonelada e estava deixando quem usava até<br />
corcunda, mas, “tô pagando”.<br />
E aí veio o avanço tecnológico e com ele as<br />
mudanças se tornam cada vez mais notáveis. Para<br />
27<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
se ter um exemplo, outro dia eu passava de carro<br />
e havia um pedinte no sinal, e aí o celular do<br />
pedinte tocou e ele parou seus afazeres para<br />
atender a ligação, que por sinal parecia muito<br />
interessante porque ele foi para a calçada e<br />
conversava aos sorrisos altos com quem quer que<br />
seja que estava do outro lado da linha.<br />
Eletrodomésticos, computadores, laptops,<br />
notebooks, celulares, sons...e até amizades. Tudo<br />
se tornou tão virtual que até a vida social deixou<br />
as baladas animadas de sábado à noite para dar<br />
espaço ao confinamento de um quarto vazio, luzes<br />
apagadas, em frente ao computador, tendo ao<br />
lado um pacotinho de salgadinhos e uma lata de<br />
refrigerante.<br />
Um abraço amigo é algo cada vez mais<br />
extinto na sociedade moderna, e depoimento, já<br />
não significa estar numa sala de interrogatório e<br />
sim numa rede social virtual.<br />
Eu também não fugi disso. E foi muito<br />
inusitado! Acabei entrando em uma rede de<br />
relacionamento onde conheci muitas pessoas! A<br />
Cristiane de São Paulo, uma palmeirense fanática<br />
com um corpo escultural de modelo! A Bruna, uma<br />
carioca que eu pegava no pé sempre e o André,<br />
um dedicado ou delicado professor de geografia<br />
do Rio de Janeiro! Uma garota linda de<br />
Pernambuco, o Pedro do sul do país, que era um<br />
atleta do vôlei e também ensinava a crianças<br />
carentes, a Ellen, uma cantora maravilhosa<br />
também do sul do país! Páklis, que era nordestino<br />
eu acho, Uriel, Mário (sem ser aquele do armário).<br />
O Júlio, um colega de profissão que mora lá para<br />
os lados de Conceição do Mato Dentro, a Rejane<br />
28<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
que cheguei a conhecer pessoalmente, um<br />
montão de gente que desfila na Estação Primeira<br />
de Mangueira, minha escola do coração no Rio e<br />
até dois americanos e alguns italianos, fora os<br />
brasileiros espalhados pelo mundo afora que<br />
sempre se comunicam com os integrantes da tribo<br />
natal através do computador.<br />
Então, fazendo amizades e descobrindo<br />
novas culturas, acabei ficando muito amigo do<br />
Rodrigo, um camarada muito gente fina, até da<br />
mesma cidade que eu, a minha querida Belo<br />
Horizonte, apesar da grande quantidade de sinais<br />
que não me deixam dirigir dois quarteirões sem<br />
ter que fazer uma parada e da pouca quantidade<br />
de vagas de estacionamento que acabam com o<br />
meu humor nos melhores dias da minha vida. Me<br />
fazem xingar constantemente e explodir numa ira<br />
incontrolável!<br />
O cara era dos bons! Torcia para o mesmo<br />
time que eu, tinha o mesmo estilo de música, os<br />
mesmos gostos em relação às mulheres, também<br />
gostava de uma cerveja geladinha acompanhada<br />
de porção de camarão ao alho.<br />
Mais um pouco eu iria pensar até que era<br />
um clone meu, pela semelhança de<br />
personalidades. Até o jeito de falar era parecido!<br />
Um sujeito fenomenal! Acabamos<br />
combinando de na última sexta-feira parar num<br />
barzinho “copo sujo” no centrão da cidade para<br />
jogar conversa fora e comer a famosa porção de<br />
camarão ao alho que tanto gostávamos.<br />
Eu nunca havia visto antes o meu grande<br />
amigo Rodrigo pessoalmente, e na rede de<br />
29<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
relacionamentos só havia uma foto dele de rosto,<br />
assim como a minha também era de rosto.<br />
Combinamos assim: trocamos o celular para<br />
que ambos pudessem saber quem era quem na<br />
hora de parar no buteco, sem essa frescura de “eu<br />
vou com tal roupa”, porque isso é coisa de<br />
camarada quando vai encontrar com a mulher e<br />
tem medo que ela seja feia. Isso também é uma<br />
cicatriz do mundo moderno.<br />
E nós marcamos de lá pelas vinte horas<br />
parar no Dourado, que é um barzinho lá no meio<br />
do centro mesmo, aí ficaria fácil para os dois<br />
estacionarem os carros.<br />
Já no caminho, toda hora tinha que parar<br />
num sinal de trânsito e parecia que o sinal ficava<br />
mais de uma hora no vermelho. Isso tira o prazer<br />
de qualquer um.<br />
Quando o sinal abria, eu tentava acelerar<br />
para passar o sinal seguinte ainda no amarelo,<br />
mas era em vão. Parecia que havia alguém<br />
fazendo hora comigo, brincando com os controles<br />
do tráfego só para me deixar estressado. E estava<br />
conseguindo. Mas nada iria me abalar, iria tomar<br />
uns tragos com este grande camarada que<br />
conheci na internet, muito gente fina,<br />
parecidíssimo comigo em tudo que gosto!<br />
Então o celular tocou, era o Rodrigo, meu<br />
amigão. Mesmo com o carro em movimento cismei<br />
de atender, olhando sempre pra ver se não havia<br />
nenhum guarda me vigiando para me multar.<br />
Outro elemento da cultura daqui.<br />
- E aí Rodrigo, como vai parceiro?<br />
- Estou bem! Já estou chegando ao bar.<br />
30<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
- Eu também. Espera aí que o sinal abriu e<br />
tem uma vaga lá na frente. Tem um retardado do<br />
meu lado que está de olho nela também, mas<br />
como ele está falando ao celular acho que vou<br />
conseguir a vaga.<br />
- Comigo também está acontecendo o<br />
mesmo, tem um cara estúpido me encarando o<br />
tempo todo. Acho que é um guarda, parece estar<br />
me medindo com os olhos pra ver se desconfio e<br />
desligo...vou desligar aqui, assim que parar o<br />
carro te ligo e falo onde estou.<br />
Então o cara retardado que estava do meu<br />
lado acelerou o carro e eu estava ainda desligando<br />
o celular, mas acelerei também porque eu queria<br />
aquela vaga. Joguei o celular no bolso da camisa e<br />
parti. Está muito difícil encontrar lugar pra<br />
estacionar aqui no centro e meu carro sem seguro,<br />
não queria arriscar ser roubado e nem pagar<br />
flanelinhas.<br />
E não é que o cara queria a vaga. Só que ele<br />
foi muito pra frente na hora de fazer a baliza,<br />
chegando até a derrapar e eu não me fiz de<br />
rogado, já cheguei bicando o carro de frente pra<br />
pegar a vaga, depois era só falar que havia<br />
pensado que ele iria passar direto e sair andando.<br />
Só que o estúpido não me viu e deu ré,<br />
batendo na dianteira do meu carro. Já desci do<br />
carro xingando. Onde já se viu isso, na porta do<br />
bar? E ele também já saiu invocado de dentro do<br />
carro dele gritando.<br />
Mal conversamos e já saímos no tapa. Quis<br />
nem saber quem era e já dei uma gingada de<br />
corpo e um coice. O pessoal que estava no bar<br />
tentou separar, mas a confusão já estava armada.<br />
31<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Sopapo de um lado, sopapo de outro e logo<br />
vieram duas viaturas para separar a confusão.<br />
Fiquei com um olho roxo e ele trincou um<br />
dente.<br />
Então a polícia começou a ameaçar de<br />
deixar os dois presos pela confusão então quase<br />
que instantaneamente e até mesmo em palavras<br />
parecidas convencemos os policiais a não tomar<br />
nenhuma providência, afinal os prejuízos foram<br />
somente materiais, que um amassadinho no carro<br />
era fácil de resolver.<br />
E terminada a confusão, cada um entrou em<br />
seu carro e saímos de lá rapidinho. Eu não queria<br />
que meu amigão Rodrigo chegasse e me visse<br />
com o olho roxo. O celular havia caído no chão na<br />
confusão, foi pisoteado e não queria ligar. Já em<br />
casa eu resolvi acessar a internet pra dar uma<br />
desculpa pro meu grande amigão Rodrigo sobre o<br />
motivo de eu não ter ido pro bar e para minha<br />
surpresa ele já estava on-line e já havia um<br />
recado.<br />
“Boa noite meu amigão, desculpa não ter<br />
chegado ao bar. Espero que não fique zangado<br />
comigo. Parei pra comprar um cigarro, tropecei<br />
numa casca de banana e caí no chão. Até trinquei<br />
um dente. Aí tive que voltar pra trás. Foi mal.”<br />
E eu respondi:<br />
Não se preocupa. Também não fui pro bar.<br />
Estava no meio do caminho, quase chegando, e ao<br />
parar numa farmácia pra comprar um “Engov” a<br />
atendente falou que eu estava com conjuntivite.<br />
Voltei pra casa correndo pra não passar isso pra<br />
ninguém.<br />
32<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
“Realmente hoje deu tudo errado não é<br />
verdade? Mas podemos marcar pra semana que<br />
vem pra gente tomar aquela cerveja geladinha.”<br />
Claro, podemos sim, mas acho melhor ir de<br />
ônibus, afinal beber e dirigir não dá muito certo...<br />
33<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Com o cachorrinho de minha amiga Josiane<br />
O cachorro fugiu, não o marido, Jurema<br />
Formou-se o escarcéu no morro do Bananal!<br />
Muita gente discutindo na rua, em frente à casa<br />
de Maria.<br />
Havia uma desmaiada recebendo cuidados<br />
de uma vizinha que lhe dava água com açúcar,<br />
um enorme copo de água com açúcar, dois<br />
discutindo alto, uma mulher dando entrevista,<br />
crianças correndo de um lado a outro envolvidas<br />
com todo aquele furdunço.<br />
Como não havia nada melhor pra fazer e eu<br />
aguardava o boteco abrir, fui aproximando<br />
daquela algazarra toda só pra me inteirar do que<br />
estava acontecendo, não que eu goste de fofoca é<br />
claro. Lá ao longe se via um cachorrinho magrelo<br />
latindo preso à corrente e o marido de Maria com<br />
a cabeça enfaixada, só de bermuda e todo<br />
34<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
molhado, sentado no canto do muro, numa<br />
calçada repleta de tomates e cascas de banana.<br />
Então um tiozinho veio me contar que tudo<br />
foi mais ou menos assim...<br />
Pela manhã, bem cedinho mesmo, umas<br />
cinco horas, Antenor, o marido de Maria, após<br />
ajudar sua esposa a preparar o café, foi até a rua<br />
colocar o lixo pra fora e nesse momento o<br />
cachorro de estimação do casal fugiu pelo portão<br />
que estava aberto.<br />
- Volta aqui cachorro! Volta aqui seu<br />
cachorro sem vergonha! Gritou Maria de dentro da<br />
casa e como os gritos de Maria eram bem<br />
estridentes por causa do timbre da sua voz o som<br />
foi intenso, ecoando no morro!<br />
Nisso Antenor saiu correndo pela rua atrás<br />
do cachorrinho. Estava só de bermuda, dessas de<br />
ficar em casa mesmo e até perdeu os chinelos na<br />
empreitada.<br />
Acontece que os vizinhos ouviram os gritos<br />
altos da Maria e logo em seguida ao olharem pelas<br />
janelas viram o Antenor correndo pela rua só de<br />
bermuda e sem chinelos. Viram Maria com a<br />
correia do cachorro na mão gritando<br />
continuamente para o cachorro voltar.<br />
Como a fama de Antenor na vizinhança não<br />
era das boas, talvez por ele ser bem forte e<br />
delineado, moreno escuro, alto, de dentes bem<br />
brancos, cabelo bem cortado, voz grossa e o peito<br />
bem peludo, entregava e até trocava gás na<br />
vizinhança enquanto os maridos estavam no<br />
serviço, esperaram só a Maria fechar o portão<br />
para formar um grupinho de fofoca nas<br />
35<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
imediações. Os homens dali tinham inveja porque<br />
as mulheres se derretiam por ele.<br />
Uns diziam que ela havia descoberto os<br />
galhos que Antenor colocava nela escondido e<br />
outros que ele chegou em casa aquela hora após<br />
gastar todo o dinheiro do casal num jogo de<br />
purrinha na véspera e estar com várias mulheres.<br />
E o Antenor não estava traindo a Maria, é um<br />
homem fiel e sério, apesar das insistentes<br />
cantadas das mulheres do morro, principalmente<br />
as casadas. Era tudo intriga da vizinhança mesmo,<br />
que adorava uma fofoca, principalmente dos<br />
homens que tinham ciúme das suas esposas até<br />
cumprimentarem o Antenor, que trabalhava de sol<br />
a sol num depósito de gás e quando o fogo das<br />
vizinhas apagava ele tratava de ir lá rapidinho pra<br />
colocar mais lenha na fogueira, ou melhor, mais<br />
gás no fogão.<br />
E nada do Antenor voltar. Uma das vizinhas<br />
foi até a casa de Maria para consolar a amiga. Já<br />
chegou dizendo que o Antenor uma hora seria<br />
descoberto, que ele era mesmo um cachorro e<br />
que Maria estava certa de chamá-lo assim.<br />
A Maria foi dizer que era um engano, mas<br />
logo chegaram mais duas tagarelas. Uma delas<br />
trazia um copinho de água com açúcar para<br />
acalmar Maria, nem bem ofereceu e já foi<br />
empurrando o copo d’água goela adentro da<br />
Maria.<br />
Nisso entrou o João que era chefe do<br />
Antenor no depósito para dar o seu apoio à pobre<br />
da Maria, a qual pensou estar desolada.<br />
Não deixavam Maria falar que o cachorro<br />
havia fugido de casa.<br />
36<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Então a mãe da Maria chegou lá pelas sete<br />
da manhã, após saber do estado da filha, e com<br />
dificuldade entrou na casa que já estava cheia,<br />
todos falando ao mesmo tempo. Com muito custo<br />
perguntou à Maria o que estava havendo e ela<br />
baixinho falou que não sabia, que o cachorro fugiu<br />
e de repente todo mundo apareceu.<br />
Então um gritou assim:<br />
- Exatamente! Um cachorro, um exemplo de<br />
canalha!<br />
Em menos de cinco minutos a mãe de Maria,<br />
sogra de Antenor já estava gritando mais que todo<br />
mundo ali naquela sala, rodando a bahiana, dando<br />
golpes no ar e então de tanta falta de ar Maria<br />
desmaiou.<br />
Um abanava um pano, pois na casa não<br />
possuíam ventilador, um outro dava mais um copo<br />
de água com açúcar, e foi aí que chegou a Jurema,<br />
a fofoqueira da rua.<br />
Já chegou contando que Antenor estava de<br />
caso com a filha do meio do Tadeu, um catador de<br />
latas de alumínio e papelão e que já chegou a ver<br />
os dois no maior amasso atrás da sacristia, citou a<br />
vez em que saiu correndo do Antenor quando este<br />
num dia “30 de fevereiro” teria feito gestos para<br />
ela na rua indicando que queria “coisas”, falou até<br />
mesmo da cabritinha do Chico, um criador de<br />
cabras e bodes que adoeceu de repente...só pode<br />
ter sido o Antenor, disse a Jurema fofoqueira.<br />
E Jurema foi à luta, ligou para um conhecido<br />
da rádio que logo mandou um repórter pra casa<br />
da Maria. Ela estava acamada então Jurema tratou<br />
de falar com a reportagem.<br />
37<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Logo a história estava espalhada pela cidade<br />
inteira ao vivo e Antenor sem saber de nada<br />
perseguindo o cachorro pelas ruas, a esta altura<br />
Antenor já exausto de tanto correr atrás do<br />
animado cachorro que seguia pela cidade<br />
cheirando postes e deixando marcas de urina nos<br />
lugares escolhidos.<br />
Mas o cachorro também se cansou, e<br />
Antenor conseguiu pegar o arisco com ajuda de<br />
alguns pedreiros que vendo o desespero e o<br />
cansaço do Antenor, cercaram o cão e ajudaram a<br />
colocar a coleira. No mesmo instante ligou pro<br />
Manoel que tinha um boteco perto de sua casa, já<br />
que não possuía telefone ainda, e este ainda não<br />
havia saído na rua então não sabia do que estava<br />
ocorrendo na casa do Antenor.<br />
Então Antenor pediu que dissesse à sua<br />
querida esposa que já pegou o cachorro com a<br />
ajuda de uns pedreiros e estava voltando pra<br />
casa. Como Manoel estava ocupado fazendo<br />
deliciosos quibes para vender em poucos minutos<br />
no seu boteco, pediu que seu garoto fosse dar o<br />
recado à Maria.<br />
Acredito que o que a Maria queria era ter<br />
notícias do seu esposo Antenor já que toda aquela<br />
gente ali estava julgando seu esposo de coisas<br />
que ele não fez.<br />
O guri chegou ao portão e como não<br />
conseguia entrar gritou que um grupo de<br />
pedreiros já pegaram o cachorro do Antenor e que<br />
estava voltando com ele pra casa amarrado com<br />
uma corda.<br />
Então Maria, desmaiou novamente e vieram<br />
mais dois copos d’água com açúcar, um maior que<br />
38<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
o outro. A essa hora Maria não sabia se entrava<br />
em desespero por não poder falar que o cão da<br />
família é que havia fugido ou pela quantidade de<br />
água com açúcar que já havia forçosamente<br />
ingerido.<br />
E ao apontar na esquina, Jurema avistou<br />
Antenor de longe, com sua bermuda de dormir e<br />
trazendo na coleira o cachorro da família. Ela<br />
ainda falava com o repórter quando interrompeu<br />
repentinamente sua fala...<br />
“Pega!” Gritou Jurema a fofoqueira. Então<br />
vários correram em direção ao Antenor com as<br />
panelas, os tomates, bananas, um alface e um<br />
côco verde que estavam na fruteira do casal.<br />
Limparam a fruteira e Antenor sem saber de nada<br />
tomou a chuva de panelas, tomates, bananas,<br />
alface e não é que a Jurema acertou o côco verde<br />
bem na cachola.<br />
Antenor foi ao chão na hora e antes de Maria<br />
desmaiar de novo a vizinha já lhe empurrou mais<br />
um copo de água doce.<br />
Preocupados em terem exagerado,<br />
carregaram o Antenor até perto do portão e deram<br />
nele um banho de mangueira para ver se<br />
acordava e também para limpar a sujeira que<br />
provocaram.<br />
Um outro correu e guardou o cachorro<br />
dentro da casa, pois o cão não parava de latir ao<br />
ver o que ocorrera com seu dono.<br />
E aí eu cheguei aqui, mas como não gosto<br />
muito de confusão, vou sair de fininho porque os<br />
famosos quibes do Manoel já estão cheirando e o<br />
bar está aberto lá na esquina da rua.<br />
39<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Quero nem ver o resultado disso tudo<br />
quando a viatura chegar em frente à casa do<br />
Antenor.<br />
40<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Aos 8 anos ao lado de uma televisão antiga<br />
Não te amo mais, ficarei com a televisão<br />
Amor!? Eu amo cerveja com bolinho de<br />
bacalhau ou com camarão ao alho, numa quartafeira<br />
à noite quando joga o meu Cruzeiro e o jogo<br />
passa no telão do bar! Também amo gemada com<br />
canela, caldo de mocotó, frango recheado e<br />
acarajé bem apimentado da Bahia!<br />
João ama jogar futebol com seus amigos que<br />
conhece desde a infância, e depois de uma boa<br />
partida na quadra, todos confraternizam com<br />
churrasco. Adoram falar de futebol! Vivem futebol<br />
o tempo todo e se consideram verdadeiros<br />
craques desse esporte tão admirado em todo o<br />
mundo!<br />
41<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
A Jane está amando o seu novo celular! Ela<br />
fica mais tempo falando do que trabalhando,<br />
estudando ou dormindo.<br />
O Juarez, contador, adora os números! Conta<br />
tudo que pode. Sabe o valor exato de todas as<br />
taxas de juros e até adivinha antes do aumento<br />
dos preços quais serão os reajustes. Uma<br />
verdadeira calculadora humana! Faz cálculos<br />
complexos de cabeça, sem nem mesmo contar<br />
com a ajuda dos dedos.<br />
Ricardo adora mulheres...casadas!<br />
E Tina adora mulheres!<br />
Mas aquele cara se apaixonou pela<br />
televisão. Tela plana, sessenta polegadas, com<br />
sinal digital, alta definição, internet direta e<br />
controle remoto interativo...agora ele pode jogar<br />
seu videogame em alta resolução on-line com<br />
jogadores do mundo inteiro, e isso passou a<br />
incomodar sua mulher, que por sinal é muito<br />
ciumenta!<br />
Antes ela tinha ciúme porque o marido<br />
chegava altas horas com cheiro diferente na<br />
camisa ou até batom, outras vezes o celular<br />
tocava misteriosamente e ele se trancava no<br />
banheiro pra conversar, numa outra ocasião ele<br />
não dormiu em casa, o dia da vizinha sem roupa<br />
então...<br />
Fatos como esses sempre a levaram a<br />
desconfiar que seu marido traísse.<br />
E mesmo com essa cisma, nunca chegou a<br />
falar nada porque não possuía provas suficientes<br />
que levassem a desconfiar do marido.<br />
Só que de uns tempos pra cá ele anda<br />
apresentando um comportamento muito suspeito<br />
42<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
para ela! Não sai mais de casa à noite com a<br />
desculpa de ir comprar um remédio na farmácia e<br />
demora mais de duas horas, já não recebe<br />
ligações no celular e sái correndo para atender.<br />
Pelo contrário, atende ali na frente da televisão<br />
mesmo e ainda pede pra pessoa ser breve que o<br />
jogo está pausado. As roupas agora só chegam<br />
com odor de suor, sem perfume de mulher.<br />
Essas situações começaram a provocar<br />
muita desconfiança em sua esposa e as brigas<br />
começaram. Antes não brigavam, embora ela até<br />
pensasse que ele poderia supostamente estar<br />
traindo, mas depois que ele começou com essas<br />
atitudes suspeitas as brigas começaram.<br />
E com tantas discussões ela começou a<br />
fazer pirraça, querendo que seu esposo voltasse a<br />
ser o que sempre foi.<br />
Ela parou de lavar as roupas dele e ele<br />
contratou uma lavadeira. Ela parou de fazer a<br />
janta dele e ele contratou uma cozinheira. Ela<br />
parou de arrumar a casa e ele contratou uma<br />
doméstica. Tudo foi só para provocar o marido. Ela<br />
queria seu amado esposo de volta e não esse<br />
novo.<br />
Mas aí veio o pior: ela ofendeu a televisão e<br />
ele olhou feio para ela. Colocou a culpa nesse<br />
objeto tão útil à humanidade nos dias atuais e ele<br />
não agüentou tal provocação.<br />
Virou para ela e disse que queria se separar,<br />
que não a ama mais. A discussão durou a noite<br />
toda e ele estava irredutível, queria a separação.<br />
Decidiu sair de casa.<br />
Disse que iria pra casa de um amigo, que ela<br />
podia ficar com a casa e ela falou que ele é que<br />
43<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
deveria ficar com a casa que ela queria ir pra casa<br />
da mãe.<br />
Depois de muita discussão sem chegar a um<br />
acordo resolveram dar um tempo, ficar uns dias<br />
separados para ver se pensavam melhor a<br />
relação. Ela ficou na casa e ele foi pra casa de um<br />
amigo que também gostava de videogame.<br />
Foram dias difíceis! A televisão do amigo era<br />
preto-e-branco, pequena e isso prejudicava o jogo.<br />
Difícil imaginar uma tela de duas cores<br />
funcionando até hoje.<br />
Ele não entendia como isso era ainda<br />
possível.<br />
Passados alguns dias a casa do amigo<br />
estava um fuzuê! Latas de cerveja espalhadas por<br />
todo lado, embalagens de salgadinho e de<br />
macarrão instantâneo, roupa suja na mesa, um<br />
cheiro de mofo e cigarro impregnando o ar.<br />
Mas a saudade foi falando mais forte! Ele<br />
não poderia ficar sem ela então resolveu procurála.<br />
Foi uma conversa bem rápida, ele realmente<br />
já não amava sua esposa e queria mesmo se<br />
separar. Não quis nada, só levou a televisão, disso<br />
ele não abria mão.<br />
Amor!<br />
Tem gente que perdoa uma traição.<br />
Tem gente que gosta de ser traído e aceita<br />
tudo numa tranquilidade muito serena! E até<br />
troque casais, tudo muito moderno e sem<br />
preconceito algum...o que vale é o prazer!<br />
Tem gente que está só porque não<br />
encontrou ainda o verdadeiro amor ou porque se<br />
chama Ricardo.<br />
44<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
A mulher pode até ter ciúme de um perfume<br />
diferente na blusa do seu macho, de uma ligação,<br />
de uma amante que o procura. Mas jamais tenha<br />
ciúme de uma televisão de sessenta polegadas,<br />
toda automática, com acesso à internet, em alta<br />
resolução do sinal digital e tela plana. Não tenha,<br />
porque é uma guerra que já se entra com a<br />
derrota certa.<br />
É como querer tirar da mulher o prazer da<br />
fofoca nos dias de fazer a unha no salão. O<br />
homem assina ali o divórcio.<br />
Proteja seu casamento, aprenda a jogar os<br />
jogos de videogame preferidos do marido e ainda<br />
o desafie numa quinta-feira à noite para um duelo<br />
no futebol, e de quebra deixe ele ficar com o<br />
Barcelona senão há um sério risco de haver<br />
confusão. Também é bom não fazer o primeiro gol,<br />
mesmo se sua intenção for mesmo ganhar do<br />
esposo, espere ele comemorar o primeiro gol.<br />
A noite vai acabar em muito amor! Beijos,<br />
carícias picantes, um vinho gelado, janela semiaberta<br />
deixando entrar a brisa da noite...<br />
Mas tente tirar a televisão dele e ficará<br />
chupando o dedo.<br />
A dica é de graça, mas vale ouro!<br />
45<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Bolinho de bacalhau<br />
Selma e seu fantástico bolinho de bacalhau<br />
Gostoso! Maravilhoso! De casquinha<br />
crocante! Desfiadinho por dentro! Douradinho por<br />
fora! Quentinho! Provocante! Um gostinho<br />
peculiar de maravilha! Uma iguaria sem dúvidas!<br />
Um aperitivo superior!<br />
Bolinho de bacalhau! Oh, quem criou essa<br />
delícia? Passado com azeite de oliva e molhado de<br />
limão. Portugueses, seus bonzinhos! Vieram aqui<br />
no passado e levaram o pau-brasil, a liberdade e a<br />
terra dos índios, o ouro das Minas Gerais, o café, a<br />
cana-de-açúcar, a borracha das seringueiras da<br />
Amazônia, obrigaram os índios a rezar e ignorar<br />
Tupã, obrigaram os escravos a se batizar e<br />
46<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
abandonar o batuque às entidades...mas em<br />
compensação trouxeram o bolinho de bacalhau!<br />
Acho que até compensa termos passado um<br />
período de guerras internas e participado da<br />
grande guerra da humanidade, se hoje temos<br />
bolinho de bacalhau à vontade para experimentar<br />
e degustar nos estados brasileiros.<br />
Até compensa sermos enganados a cada<br />
quatro anos em apenas alguns meses e depois<br />
usar nariz de palhaço por mais quatro anos.<br />
Só o preço anda um tanto salgado! Isso me<br />
incomoda. E sem contar que antes vinham vinte e<br />
um bolinhos na porção e agora só estou contando<br />
quinze em todo lugar que vou.<br />
Quero meus bolinhos de bacalhau! Não<br />
toquem nos meus bolinhos de bacalhau!<br />
O tamanho também andou diminuindo, será<br />
que a presidência está aplicando mais impostos<br />
na tarifa de importação do bacalhau? Ou será que<br />
descobriram que eu sou um viciado e pensam que<br />
aumentando o preço irão me curar?<br />
Pode aumentar a gasolina, a luz, aumentem<br />
aí também o imposto de produtos industrializados,<br />
o IPTU, IPVA, IOF, IPI, aumentem a conta de água,<br />
e nem ligo se aumentarem os impostos sobre os<br />
remédios, mas querer aumentar o imposto sobre o<br />
bacalhau é desumano! Bacalhau é uma conquista<br />
do povo brasileiro! Aumentar o preço dos meus<br />
bolinhos é maldade! Isso prejudica minhas<br />
condições de comer bolinho de bacalhau com<br />
frequência, oras. E todos sabem que o país vai<br />
bem se eu puder ter sempre à mesa bolinhos de<br />
bacalhau, pois adoro bolinhos de bacalhau!<br />
47<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Com a amiga Rejane Alves no Restaurante Dourado<br />
Amigos também sussurram no ouvido<br />
Encontro de amigos na praia. Um veio do sul<br />
do país, uma de São Paulo, quatro de Belo<br />
Horizonte, dois do interior de Minas Gerais, e o<br />
restante do estado do Rio de Janeiro.<br />
O que houve no encontro? Eram todos<br />
conhecidos virtuais e a bebida foi no exagero...<br />
Tanta conversa afora, a exploração das<br />
novidades, a lua baixando sobre a Guanabara.<br />
Negar o clima para uns beijos é como negar<br />
a própria essência humana. Tantas conversas! E<br />
logo a areia da praia se torna um piquenique ao<br />
luar! Um com o violão, uma fogueira acesa,<br />
espetinhos de queijo tipo Minas, pedaços de pãode-alho,<br />
picanha passada no sal grosso, um<br />
48<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
gostinho de bebida e sal na saliva, sorrisos,<br />
sussurros, mais bebidas...<br />
Amigos também sussurram no ouvido! Os<br />
tempos amadureceram, e já é coisa de outro<br />
mundo que amigos não possam trocar umas<br />
carícias de vez em quando. Que mal há nisso? Se<br />
nos aventuramos com pessoas desconhecidas ao<br />
encontrar um novo parceiro de intimidade, porque<br />
não sermos íntimos dos nossos amigos?<br />
Antigamente um amigo sussurrar no ouvido<br />
da amiga era motivo de escândalo social, notícia<br />
de primeira página, agora, veja bem, pode parecer<br />
estranho e uma muralha de negações veementes<br />
pode se erguer...mas que atire a primeira pedra<br />
quem já não deu um selinho naquela sua amiga<br />
especial. Aquela pessoa legal e atenciosa que nem<br />
é para ser sua namorada e jamais será sua<br />
esposa, apenas amiga, mas numa festinha, num<br />
churrasco, naquele dia em que você está<br />
magoado com a vida e a pessoa vem te confortar?<br />
Quem de vocês mulheres já não se<br />
arrependeu e encheu a cabeça de tabus ao ter<br />
beijado o seu amigo na noite anterior? Mas<br />
acordem arrependidas, sem se arrepender de não<br />
ter concretizado, não é verdade?<br />
Sexta-feira às dezoito horas. Naquela<br />
repartição, o chefe havia preparado uma<br />
confraternização para os funcionários devido às<br />
excelentes marcas alcançadas pela empresa de<br />
produtos e serviços.<br />
Champanhe, bolinho de bacalhau (oh céus<br />
quem inventou essa maravilha?), camarão ao<br />
alho, muitas frutas, pão de queijo, e ela, a<br />
cachaça!<br />
49<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Entre conversas, piadas, sorrisos, eis que<br />
veio um sussurro no ouvido. Foi baixinho, mas<br />
parece que toda a cidade ouviu e parou pra ver.<br />
Nada demais os dois amigos de trabalho pararem<br />
um pouco na sacada do décimo quinto andar da<br />
cidade, olhando a esplendida vista da Avenida<br />
Afonso Pena quando os carros e ônibus buzinam<br />
querendo os seus condutores chegar logo em<br />
casa.<br />
Amigos também sussurram no ouvido! E<br />
mesmo que essa noite termine num lugar com<br />
hidromassagem, bebida, música e luzes<br />
ambientes, na segunda-feira haverá um bom dia,<br />
os trabalhos,e talvez no máximo um sorrisinho de<br />
canto do rosto ou até mesmo só um pensamento<br />
sobre a performance do amigo.<br />
O que há de mais em amigos sussurrarem<br />
no ouvido? O carinho está arcaico? Ora, se até<br />
mesmo o sexo já foi banalizado a ponto de virar<br />
estilo musical, se já nem é crime o adultério, se há<br />
um consenso cada vez mais crescente em<br />
descobrir novos prazeres, coisas que tempos atrás<br />
seria motivo para escândalos na sociedade, hoje<br />
se tornam elementos até necessários à saúde de<br />
um relacionamento ou da pessoa, considerando a<br />
característica de seus personagens.<br />
Que mal há num sussurro? Eu sussurro!<br />
Minha amiga sussurra! A prima do irmão do<br />
cunhado do meu chefe sussurra. A amizade não é<br />
uma sociedade como o casamento. Espera aí! O<br />
que eu disse? Existe casamento ainda? Nossa,<br />
acho que me perdi no tempo, mas está bem,<br />
voltando ao assunto, a amizade não possui regras,<br />
vai mudando conforme o contexto das eras. Quem<br />
50<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
permite ou proíbe as coisas são os amigos, e o<br />
consenso prevalece até mesmo nas mais<br />
libertinas emoções como compartilhar um cigarro<br />
de maconha, noite, praça do centro, luzes,<br />
veículos, mais luzes ainda, brilhantes, ela com o<br />
cabelo grená...<br />
Amigos sussurram no ouvido na faculdade,<br />
no hospital, na padaria, no escritório, na escola,<br />
no supermercado e até mesmo no velório. Pior é o<br />
amigo que tenta consolar a viúva bonita e<br />
herdeira da fortuna.<br />
Ora, por que negar? Amigos sussurram no<br />
ouvido, e sussurram nos lugares mais<br />
inesperados...<br />
Mineirão, domingo à tarde. O casal de<br />
amigos decidiu ir ver o jogo após terminarem o<br />
trabalho de escola que estavam fazendo em<br />
grupo, enquanto os outros amigos foram pra casa.<br />
Jogo quente, torcida agitando as suas<br />
bandeiras...o estádio dividido em duas cores<br />
rivais, gritos, palavrões, a polícia tentando<br />
identificar de onde vem o cheiro de maconha que<br />
exala no ar...e de repente um gol! Ah que<br />
felicidade! Muito bom! Aos quarenta do segundo<br />
tempo quando a partida estava tensa. A torcida do<br />
Cruzeiro agitando as bandeiras e o estádio<br />
tremendo!<br />
Esse beijo veio sem sussurro mesmo, afinal<br />
no meio da torcida, não dava nem pra ouvir o<br />
sussurro. E logo após como se nada tivesse<br />
acontecido, já nem se lembram do beijo e voltam<br />
as atenções novamente para o gramado que a<br />
torcida do Atlético começou a cantar porque a<br />
bola foi parar no pé daquele jogador perigoso,<br />
51<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
ocorreu a falta na entrada da área e pode ser a<br />
última chance de empatar.<br />
Na alegria ou no consolo, um beijo é sempre<br />
uma forma de carinho que nossos amigos e<br />
amigas merecem, ainda mais quando vem<br />
precedido de um intenso sussurro.<br />
Às vezes para incentivar, em segredo, um<br />
sussurro que só quem fala ou só quem ouve sabe<br />
o seu conteúdo...<br />
Olhares tensos. Então chega a hora de fazer<br />
a cobrança de falta, o colega chega e sussurra<br />
algo no ouvido do jogador, que dá uma risada<br />
sacana, balança a cabeça e se prepara para fazer<br />
a cobrança da falta perigosa...<br />
52<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Tio avô Mário em Raul Soares/ MG<br />
Violão, roça e cachaça de alambique<br />
Cheguei ao interior! Após horas viajando de<br />
trem pelas ferrovias do estado. Período de férias<br />
anuais! Tempo de renovação, de esquecer os<br />
problemas do cotidiano, o trânsito caótico do<br />
centro da cidade e a rotina daquela repartição, os<br />
desafios do marketing, etc...<br />
Alto lá! Que maravilha uai!<br />
Agora sim: cheguei na roça sô! Tirei as<br />
botina do pé e botei logo o chinelão. Corri pra<br />
abraçar os tio que há um tempão não via! O tio<br />
táva lá na varanda pitando seu cigarro de palha e<br />
a sua viola táva ali do ladinho, só esperando ele<br />
terminar de pitar.<br />
53<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Veio logo me levando lá pra dentro da casa<br />
pra me mostrar as novas pinga que comprou. Eu<br />
via aquele mundão de cachaça espalhada pela<br />
estante da sala e até me deu uma água na boca.<br />
Tava era bão com pão de queijo e lingüiça<br />
defumada de tira-gosto, tudo preparado ali pela<br />
tia no forno e no fogão de lenha! Hum, que<br />
tempero!<br />
Os boi, as vaca, as cabrita...tudo lá no pasto<br />
entretito com a grama verde aqui da roça.<br />
O trator táva quebrado então não deu pra<br />
ver ele funcionando outra vez e o tio falou que só<br />
mês que vem agora pra arrumar a lata véia.<br />
Ao sentar na rede, na varanda o tio começou<br />
a cantar suas moda de viola lá na sua caderinha<br />
predileta e eu aqui tomando uma cachaça muito<br />
gostosa e amarelinha que só! Comendo pãozinho<br />
de queijo e linguiça picadinha.<br />
Aí os cumpadre vem chegando pra saber<br />
das modas da cidade grande, do que anda<br />
acontecendo por lá e a varanda fica cheia de um<br />
tantão de gente. Logo alguém acende a brasa e o<br />
churrasco começa.<br />
A viola dedilhada cantando os sons e as<br />
coisa da roça, de todas as roça, do interior da<br />
terra e do interior de cada gente. Uma pratada de<br />
comida que a tia fez, uma calmaria muito da boa e<br />
isso qui é bão dimais da conta uai!<br />
Até as risada quando alguém conta um<br />
causo mais interessante e engraçado, aí vem logo<br />
o jogo de baralho na varanda e todo mundo senta<br />
ali no chão mesmo. Só vai ter que limpar os pé pra<br />
entrar em casa depois.<br />
54<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
As mocinha da roça, tudo meio tímida.<br />
Passam com um sorriso no rosto e muito vermeia<br />
de vergonha com seus vestidinhos de flor. Depois<br />
lá na frente olham pra trás de novo pra ver o galã<br />
da cidade que acabou de chegar na roça.<br />
Das cachaça do tio eu preferia as mais<br />
amarelinhas, de alambique, não gostava muito<br />
das brancas não. E as modas de viola são muito<br />
boas! Um trenzão muito apaixonante ouvir violão<br />
de noite vendo as brisas da roça e a noite cheia de<br />
estrela lá no céu afora, tomando cachaça de<br />
alambique!<br />
A lua do sertão alumiando a relva lá na serra<br />
e as coruja suindaras avoando na noite com as<br />
suas penas brancas.<br />
De manhã eu ia até o galinheiro pegar ovo<br />
pra tia fazer no café, umas gemadas maravilhosas<br />
com canela por cima, tinha até ovo de codorna lá<br />
também, ajudava o tio a pegar leite na vaca e<br />
depois do café ia andar pela roça pra verificar as<br />
prantação e os gado pra ver se não tinha onça<br />
atacando nas redondeza. Outro dia o cumpadre<br />
Manuel falou que viu onça de noite quando<br />
voltava do alambique pra buscar cachaça pra<br />
vender na cidade.<br />
Então ao final do mês, após um proveitoso<br />
período de férias que proporcionou relaxamento e<br />
descanso do corpo e da alma, rejuvenescido em<br />
energias, novamente embarco no trem em direção<br />
à cidade. Ao me despedir dos meus tios saúdo<br />
também aos amigos e conhecidos desse lugar tão<br />
pacífico e de tão belas paisagens! Levo comigo as<br />
lembranças e um litro de aguardente com o qual<br />
55<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
me presenteou o senhor Manoel, que é<br />
comerciante do produto na cidade.<br />
Espero ano que vem poder voltar a esse<br />
lugar esplendoroso onde moram os meus parentes<br />
e muitos amigos, os quais cultivo nas viagens de<br />
férias a essa cidade de interior.<br />
56<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Mudar de vida<br />
Ontem foi domingo. Meu dia de descanso e<br />
eventual ressaca após a última bebedeira no meu<br />
barzinho preferido. Havia uma hóspede em minha<br />
casa, vinda do interior. Wanda.<br />
Veio a Belo Horizonte para fazer a prova do<br />
concurso público oferecido pelo estado para<br />
preenchimento de cargos na área de segurança. O<br />
cargo era o inicial da carreira.<br />
Acordamos cedo, o que me chateou por<br />
dentro por causa do barulho do despertador,<br />
alvoroçando o íntimo dos meus tímpanos, mas<br />
disfarçando bem me levantei da cama, tomei um<br />
banho quente para despertar e preparei o café<br />
para a visita. Domingo de manhã.<br />
Tomamos café e rapidamente fomos para o<br />
lugar onde seria a prova que apesar de próximo,<br />
teria um grande engarrafamento devido ao grande<br />
57<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
número de candidatos que iriam de carro fazer a<br />
prova.<br />
Muita correria, candidatos perdidos dentro<br />
daquele campus enorme e cheio de matas, sem<br />
muita informação sobre o lugar onde fariam a<br />
prova do concurso, perdidos no tempo e no<br />
espaço correndo de um lado a outro.<br />
Estavam todos atrasados, inclusive esta<br />
minha amiga muito simples do interior que<br />
tentava a prova para mudar de vida, ganhar<br />
estabilidade e prosperidade financeira, se sentir<br />
mais realizada e poder projetar planos para o<br />
futuro.<br />
Ela entrou no prédio onde estava<br />
relacionada e então resolvi esperar a prova<br />
terminar lendo um jornal num banco dentro do<br />
campus. Acendi um cigarro e passei a folhear as<br />
notícias. Embora meu interesse era a parte de<br />
esportes pra ver as últimas do meu time e do meu<br />
jogador preferido.<br />
Na segunda página uma matéria de um<br />
pedreiro que havia encontrado uma maleta com<br />
dez mil dólares e devolveu ao dono, vindo este a<br />
se alegrar grandemente e recompensar o humilde<br />
pedreiro com um carro novo.<br />
Eu lia a reportagem quando passei a prestar<br />
atenção aos candidatos à prova. Corriam<br />
desesperados em direção ao lugar de realização<br />
da prova, uma cena, entretanto, me chamou a<br />
atenção: uma mulher grávida, isso mesmo,<br />
grávida e com a barriga enorme, correndo com<br />
notável dificuldade e uma expressão de dor no<br />
rosto já suado e vermelho pelo esforço. Precisava<br />
chegar até o prédio onde faria a prova. O<br />
58<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
problema é que o prédio era longe, talvez um<br />
quilômetro de onde ela estava naquele momento.<br />
Sentindo um pouco de tristeza eu sabia que não<br />
daria tempo, mas torcia pela coitada, como se<br />
talvez a conhecesse e soubesse de toda a sua<br />
história.<br />
Mudar de vida! Será isso? Empenhar-se por<br />
um sonho que muitas vezes pode ser apenas uma<br />
lavra vazia, sem ouro nem riquezas? Uma<br />
decepção da qual não há retorno...<br />
O que é a riqueza? A prosperidade? Talvez<br />
se encantar com uma proposta de salário alto no<br />
anúncio de um concurso? Muitas vezes não se<br />
sabe o que encontrará do outro lado. Talvez a<br />
privação de todos os seus direitos, um amontoado<br />
de desgostos e humilhações, perseguições e a<br />
carência de reconhecimento. Uma lavra vazia sem<br />
riquezas!<br />
Neste mundo a prosperidade quem constrói<br />
somos nós mesmos. Existem pedreiros que são<br />
felizes, e pela qualidade do trabalho são<br />
requisitados por grandes empresas e até<br />
dispensam contratos de trabalho, se dão a esse<br />
luxo. E por outro lado existem advogados,<br />
médicos, engenheiros e empresários que vivem<br />
dias de tristeza, de desgosto pela vida.<br />
Muitas vezes o valor do dinheiro não paga a<br />
felicidade e a realização. O que é prosperidade<br />
senão estarmos felizes? Contas a pagar sempre<br />
existirão, e não é poder comprar um carro que irá<br />
injetar amor e alegria em nossos corações.<br />
Mudar de vida é muito mais que correr para<br />
uma sala de realização de prova. É despertar no<br />
59<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
interior da alma o desejo de aperfeiçoar o seu<br />
método de trabalho, de inovar, de se destacar.<br />
Há na sociedade marceneiros que pela<br />
perfeição do trabalho são procurados todo o<br />
tempo por pessoas importantes e ganham muito<br />
bem para isso, a ponto de comprar um carro.<br />
Um vidraceiro que criou uma nova forma de<br />
corte perfeito como fio de navalha! E aquele<br />
padeiro então? Que trabalha há vinte anos<br />
naquele mesmo lugar, seus doces e broas fazem<br />
pessoas de outros bairros irem até lá para<br />
comprar esses quitutes fantásticos que ele<br />
produz!<br />
Outro dia ele estava contando que um<br />
empresário sisudo veio até a padaria para<br />
conhecer seu trabalho e lhe ofereceu o dobro do<br />
salário que ganhava para ele produzir suas obrasprimas<br />
na rede de padarias da qual é dono.<br />
O padeiro, porém recusou, pois já tinha carro<br />
e não tinha nenhuma conta pra pagar, estava se<br />
sentindo próspero em ter sua casa, seu carro e<br />
mulher, os amigos de vinte anos trabalhando no<br />
mesmo bairro, o seu lugar naquele grupo social.<br />
Tirar isso dele seria tirar a própria identidade.<br />
Então me pergunto se aquele homem de<br />
negócios que o procurou era uma pessoa feliz.<br />
Talvez sim, talvez não, mas o certo é quem sabe.<br />
Então os candidatos que não chegaram a<br />
tempo nos prédios onde seus nomes estavam<br />
relacionados foram voltando pra trás após muitos<br />
minutos. Fiquei imaginando o tanto que correram,<br />
em vão...buscavam mudar de vida.<br />
Até aquela mulher grávida com sua imensa<br />
barriga, saliente embaixo da blusa de linho branca<br />
60<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
com flores nas laterais, voltou andando com<br />
dificuldade e na saída do campus um carro cinza a<br />
esperava. Uma expressão de desgosto e cansaço<br />
no rosto, segurando a barriga enorme, indo em<br />
direção à saída do campus, se lamentando pela<br />
oportunidade perdida de se mudar de vida e<br />
passar naquela prova de concurso público que lhe<br />
daria condições de ter um salário melhor para<br />
cuidar do seu filho. Entrou no carro e foram<br />
embora pela avenida.<br />
Após isso fui ler o jornal e depois de tantas<br />
notícias de destaque sobre violência, guerras,<br />
homicídios, latrocínio, estupro, tráfico de drogas,<br />
assalto, explosão de caixas eletrônicos, fuga de<br />
presos, condenações de políticos, condenação de<br />
um preso famoso, incêndios em ônibus coletivos,<br />
furto de veículos, violência doméstica e familiar,<br />
morte por bala perdida, morte por acerto de<br />
contas entre traficantes, mortes na estrada mais<br />
perigosa do estado, suicídio do décimo sexto<br />
andar de um prédio, um pai que matou a mulher e<br />
o filho desconfiando de traição da esposa,<br />
espancamento de um cachorro, afogamento na<br />
lagoa durante o fim de semana, infestação de<br />
escorpiões num bairro da capital, surto de dengue<br />
matando pessoas, violência contra homossexuais,<br />
envenenamento de mendigos no viaduto,<br />
atropelamentos, enforcamento e até mesmo uma<br />
pessoa que quebrou o dente numa briga, enfim<br />
veio a parte do esporte...<br />
Eis o campo de atuação dessas pessoas que<br />
estão fazendo a prova: tentar mudar um mundo,<br />
ou enxugar gelo.<br />
61<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
E no esporte as notícias do meu time. Será<br />
que esse jogador famoso é feliz? Nunca o vi no<br />
barzinho lá do centro que vende camarão ao alho<br />
toda sexta-feira, também nunca o vi naquela casa<br />
de show fantástica que todos gostam de ir. Sei<br />
que ele tem um carro importado que custou<br />
trezentos mil, mas nunca o vi andando pela<br />
cidade. Mas sim, ele deve ser feliz sim! Isso<br />
porque está fazendo o que gosta e não o que<br />
achou que iria fazê-lo feliz por causa do salário.<br />
Ele está ganhando muito porque é bom naquilo<br />
que faz! Todos os dias nos treinos procura fazer o<br />
melhor e admira o sorriso das pessoas nas<br />
arquibancadas quando consegue fazer o que<br />
esperam dele! Procura agradá-las fazendo seus<br />
gols, suas jogadas mirabolantes, e entende que<br />
somente se procurar ser o melhor naquilo que faz<br />
será feliz.<br />
Um bom pai! Um bom amigo! Um bom<br />
profissional! Um bom vizinho! Um bom ouvinte!<br />
Um bom conselheiro!<br />
Mudar de vida! Por que não agora? Ler um<br />
livro, fazer um curso naquela área que sempre<br />
tivemos interesse em trabalhar. Pizzaiolo, barman,<br />
músico, cabeleireira...<br />
Só quem procura fazer o melhor encontra o<br />
caminho do sucesso e da prosperidade. Isso<br />
porque há dois tipos de pessoas: as medíocres que<br />
se consideram as melhores entre os piores e os<br />
piores entre os melhores, medianos, acomodados,<br />
esperam tudo cair do céu. E há os vencedores,<br />
altivos, líderes, que procuram sempre o melhor, e<br />
dessa forma, algum tipo de prosperidade irão<br />
encontrar na vida, isso é inevitável!<br />
62<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
O bom salário é um convite às enganações<br />
da vida. Muitos desses candidatos não pensam<br />
nas dificuldades das profissões. Pra começar você<br />
é o mais baixo no escalão, e até que chegue um<br />
mais baixo, tudo de ruim é você quem terá que<br />
fazer: a pior jornada de trabalho, os piores labores,<br />
o pior local de trabalho, as culpas serão suas e<br />
embora concorra para o sucesso não será nem<br />
lembrado na hora do champanhe. Você não tem<br />
vontade própria e muitas vezes nem respeito. Ao<br />
mínimo erro será crucificado, mas em um grande<br />
acerto lhe roubarão a autoria disto.<br />
E os candidatos vão saindo das salas. Alguns<br />
com uma expressão de derrota no rosto, outros<br />
empolgados com a prova que realizaram. Passam<br />
comentando com outros candidatos sobre a<br />
questão treze que possuía duas respostas certas,<br />
ou sobre a dificuldade da questão vinte e sete.<br />
Outros vangloriando a redação maravilhosa que<br />
acabaram de fazer e que irá impressionar os<br />
avaliadores. Alguns dizendo que a prova estava<br />
muito fácil e já se considerando dentro do<br />
sistema, planejam fazer o curso e comprar um<br />
carro logo.<br />
Então minha amiga após várias horas<br />
aparece na entrada do prédio de filosofia e<br />
ciências humanas. Seu rosto cansado, sua<br />
expressão apreensiva, indecisa sobre o futuro.<br />
Falava nas dificuldades de se mudar de vida.<br />
Não disse nada. Não sei se ajudaria ou iria<br />
atrapalhar. Apenas desejei sorte. Melhor deixar<br />
que a mudança de vida ocorra com o tempo.<br />
Não é o quanto se ganha, é o quanto se é<br />
feliz. E até mesmo eu que já fui carregador de<br />
63<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
botijão de gás, lá em Contagem, no bairro Laguna,<br />
chegava o fim do mês e havia uns trocados no<br />
bolso que me permitiam o luxo de tomar uma<br />
cerveja no barzinho da rua, hoje que sou um<br />
executivo, chega dia vinte e já estou sem dinheiro.<br />
O trabalho era pesado? Bom, entregar e instalar<br />
gás na casa da divorciada não, nem a cantoria<br />
quando as crianças da favela pulavam em cima da<br />
caminhonete pra ir de carona até perto de casa,<br />
sempre me chamando de tio. Hoje nem sorrir no<br />
trabalho eu posso, preciso manter a pose. Ou<br />
talvez a falta de sorrisos se deve ao amontoado de<br />
contas que estão vencidas pois o pagamento não<br />
deu pra cobrir todos os gastos. Além disso a<br />
facada do imposto de renda foi terrível!<br />
Mudar de vida! Não aconselho a parar de<br />
tentar concurso público não. Só acho válido que se<br />
procure saber se isso é realmente um sonho ou só<br />
um ludíbrio por um salário melhor e a esperança<br />
de comprar um carro, uma casa e pagar umas<br />
dívidas, achando que o salário não está revestido<br />
de tensões, stress, exaustão, fadiga, desgosto,<br />
tristeza e dor. Se for isso, há uma loteria muito pé<br />
quente lá na avenida principal que solucionará<br />
todos os seus problemas.<br />
64<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Perseguição<br />
Nobre deputado em quem muito confio! A<br />
quem já conheço há muitos anos, desde antes da<br />
candidatura, lá naquele nosso outro emprego, não<br />
sei se ainda se lembra.<br />
Gostaria de relatar coisas que vêm<br />
ocorrendo em meu lugar de trabalho atual. Nesta<br />
empresa de gelo seco e cubos de gelo. Sei que<br />
mais conhece das leis trabalhistas do que eu e por<br />
isso venho pedir ao menos uma orientação sobre<br />
esse caso que está acontecendo com um grande<br />
amigo meu e de todos aqui nesse lugar.<br />
O coitado não tem casa própria, não tem<br />
curso superior, está atolado em dívidas,<br />
principalmente a do cartão de crédito, o que<br />
65<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
ganha mal dá para pagar as contas e seu<br />
pagamento fica quase todo empenhado pra pagar<br />
o aluguel, conta de água, luz, os atrasados da<br />
padaria...e não é que o chefe da empresa está<br />
perseguindo o pobre coitado. Aqui dentro desse<br />
lugar. Sim! Sem se dar ao luxo de esconder sua ira<br />
e a grande quantidade de inveja que tem dessa<br />
pessoa.<br />
Ora, o indivíduo tem casa própria num dos<br />
melhores bairros da cidade aqui onde moramos,<br />
tem um carro importado muito caro e elegante,<br />
ganha exageradamente bem, não tem contas<br />
atrasadas em lugar algum, além disso tem mais<br />
de um curso superior e viaja para o exterior todo<br />
ano com a desculpa de desenferrujar o inglês que<br />
fala com fluência.<br />
O problema senhor deputado e colega do<br />
ramo de gelo seco desde os tempos da antiga, é<br />
que o ser humano não pode comprar a admiração<br />
e o carinho das pessoas, muito menos a simpatia,<br />
e isso está incomodando o coisa ruim do chefe,<br />
aquele carrancudo! Esse meu amigo, muito fiel<br />
companheiro, tem a admiração até mesmo dos<br />
executivos da empresa onde trabalhamos! Direto<br />
eles levam presentes para ele, roupas, bebidas,<br />
carnes caras e até charutos. Adoram se assentar<br />
ao lado dele no refeitório e ouvir suas piadas<br />
durante o almoço. A secretária mais bonita da<br />
empresa já saiu com ele algumas vezes e o cobre<br />
de elogios sempre que pode, sobre detalhes que<br />
nem quero comentar, e ao que tudo indica, o<br />
chefe tentou cortejá-la, mas nada conseguiu. Veja<br />
bem, o indivíduo é baixinho, fora de forma, o<br />
cabelo pixaim é herança dos caboclos e fala mal o<br />
66<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
português, mas conseguiu conquistar toda a<br />
empresa e até mesmo os melhores clientes que<br />
esta empresa tão antiga e conceituada de<br />
fabricação de gelo seco possui em todo o estado.<br />
Muitos clientes engravatados que chegam à<br />
empresa, representantes de redes de bebidas,<br />
bares, restaurantes e hotéis, que precisam muito<br />
do gelo seco que produzimos, querem sempre ser<br />
atendidos por este meu amigo, o que causa furor<br />
no chefe. Ele só não proibiu ainda que meu amigo<br />
atenda clientes, pois isso faria a empresa perder<br />
uma grande quantidade de clientes importantes.<br />
Então o chefe passou a perseguí-lo<br />
abertamente dentro da empresa, de uma forma<br />
que todos os funcionários estão sensibilizados,<br />
mas temos medo de represálias desse chefe tão<br />
ruim, tão perverso e sem nenhum caráter! Por isso<br />
deputado, vim pedir esse conselho sobre o que<br />
fazer nessa situação, se é caso de chamar a<br />
imprensa e denunciar tudo isso aos jornais.<br />
Nós aqui trabalhamos com gelo, já falei, mas<br />
a situação está quente, fervendo, borbulhando na<br />
empresa! Não há gelo que esfrie o clima ruim! Se<br />
isso continuar o gelo vai derreter e teremos que<br />
enxugar o chão, mas por enquanto é só gelo o que<br />
andamos enxugando, na tentativa de melhorar as<br />
coisas.<br />
Veja bem, onde já se viu tudo que esse<br />
excelente funcionário faz, sempre se vira contra<br />
ele aqui neste lugar.<br />
Ele está recebendo muitas advertências da<br />
chefia por coisas que nem estão ocorrendo, e isso<br />
vira descontos no pagamento. Onde já se viu um<br />
fulano que é só sorriso e simpatia foi acusado pelo<br />
67<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
chefe de ter ofendido os maiorais da empresa<br />
dizendo que não tinha medo deles. Não havia<br />
prova alguma, testemunha alguma disso e o<br />
comentário partiu lá de cima, e não de onde há<br />
trabalho braçal. Pior foi quando o chefe o acusou<br />
de deixar de montar uma planilha, reduzindo um<br />
dia do seu salário, sendo que isso era função dos<br />
auxiliares administrativos e não de um mero pião<br />
que mal sabe escrever. Entretanto como é<br />
esforçado, se tivesse mesmo recebido esta ordem,<br />
teria feito muito esforço para fazer o serviço.<br />
Tantas outras coisas deputado, este chefe<br />
tão maldoso e sem vergonha tem feito na frente<br />
de todos! Sem vergonha sim! Pois onde já se viu<br />
condenar alguém por ser tão querido por todos?<br />
Se não fosse chefe já teria sido escorraçado da<br />
empresa pela porta dos fundos, pois nem<br />
competência tem para se relacionar. O grande<br />
problema é que o maior acionista da empresa, é<br />
amigo pessoal do chefe e não o tira da gerência<br />
pois confia no seu modo de gerenciar. Além disso<br />
tantas reclamações contra ele não chegam aos<br />
ouvidos do acionista.<br />
Até o horário de trabalho desse sujeito tão<br />
bom que nós conhecemos foi mudado para<br />
prejudicá-lo. O horário de almoço dele é menor<br />
que os demais e há mais de um ano ele espera<br />
umas férias que tem direito, mas o chefe tem<br />
negado.<br />
Veja bem deputado, o homem tem sido<br />
apedrejado somente por ser melhor que o chefe<br />
em ser líder sendo que isso o chefe jamais<br />
conseguirá na vida. Liderança é algo que vem com<br />
o nascimento, é como uma estrela natural que<br />
68<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
brilha na fronte de um verdadeiro líder e não<br />
naqueles que usam um terno brilhante, tendo na<br />
lapela um broche de ouro e no bolso uma caneta<br />
cara, melindrosamente ostensiva para mostrar<br />
poder, mas por dentro há uma pessoa vazia de<br />
eficácia em conquistar as pessoas e fazê-las<br />
motivar, sorrir e seguir ao líder como as ovelhas<br />
seguem fiéis ao seu pastor.<br />
Sim deputado, venho para contar ao senhor<br />
sobre um líder nato! Um que se veste mal, ao<br />
contrário de todos na empresa compra roupa em<br />
bazar, e às vezes quando fica um aroma de<br />
sovaco no ar, é porque o seu desodorante, que é<br />
do mais barato, já passou o efeito. Mas todo<br />
mundo aqui o admira e o respeita, e sente mais<br />
prazer no odor de suor que fica, quando ele passa<br />
carregando um amontoado de caixas e cubos de<br />
gelo, cantando suas músicas, do que no perfume<br />
caro que fica no ar quando passa o chefe para<br />
inspecionar o serviço dos outros ou simplesmente<br />
ser notado, dar o ar da sua graça em cada sala da<br />
empresa. Parece até um gavião vigiando as presas<br />
para ver qual delas irá perseguir!<br />
Antipático! Antiético! Vulgar! Menospreza o<br />
ser humano como se fosse um deus, um ser<br />
superior aos outros que o rodeiam. Não se<br />
preocupa com a vida alheia, com a segurança,<br />
com as metas da empresa, só se preocupa em ser<br />
o centro das atenções e mostrar poder a todo<br />
tempo.<br />
Acredito que persegue tanto esse meu<br />
amigo justamente por ter visto nele as coisas, as<br />
qualidades que nunca conseguiu ter na vida, nem<br />
terá. Meu amigo é nobre de espírito e não se<br />
69<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
importa em dividir o pão. Outro dia ele ganhou um<br />
litro de cachaça de um empresário parceiro da<br />
empresa, a garrafa era envelhecida dez anos e<br />
tipo exportação. Se ele fosse vender ganharia o<br />
dobro do salário que ganha, ou até mais, mas ao<br />
contrário, depois do expediente nos chamou e<br />
abriu aquela iguaria lá no refeitório. O cheiro<br />
exalou no ar melhor que perfume! Todos<br />
brindaram e isso chegou aos ouvidos do chefe,<br />
mas antes o cheiro chegou até a sala dele, e<br />
mandou chamá-lo, dando mais uma advertência.<br />
Não pelo fato de ter brindado, disse que ele<br />
estava pervertendo os funcionários a não<br />
trabalharem direito. Confesso deputado, que se<br />
esse fulano desse ordem de greve na empresa, a<br />
empresa parava imediatamente, mas ele ao<br />
contrário, muito honesto com o trabalho<br />
aconselha a todos a fazerem o melhor e trabalhar<br />
sempre mais, pois o sucesso na vida vem<br />
justamente de tentarmos o melhor mesmo e abrir<br />
mão das vaidades pessoais em prol da melhoria<br />
do mundo.<br />
Veja bem, o modo de pensar desse simples<br />
pião! De onde vem tanta cultura e conhecimento<br />
se mal sabe usar um computador e até o<br />
português é repleto de erros de ortografia? Isso é<br />
um dom dado pelo criador, não é algo que o<br />
dinheiro do chefe pode comprar aqui na Terra.<br />
Ameaça mandar este meu amigo embora a<br />
todo tempo, mas não tem coragem porque o<br />
espírito maligno que está em seu coração no<br />
fundo tem medo do meu grande amigo por causa<br />
da sua grande virtude. Nem lhe olha nos olhos<br />
com medo que caia por terra e comece a se<br />
70<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
debater derrotado e humilhado. Ele tenta espetálo<br />
a todo tempo tentando tirar-lhe a fé e o amor<br />
pela vida e por seus semelhantes, mas a cada<br />
espinho o sorriso no rosto desse meu amigo<br />
resplandece mais forte, brilha mais até que as três<br />
estrelas que formam o cinturão de Órion e estão lá<br />
no céu pra todo mundo ver! Não há castigo que<br />
seja capaz de tirar o brio desse meu amigo.<br />
Teve uma vez que o chefe foi avaliar os<br />
melhores funcionários da empresa para conceder<br />
aumento. Todos ficaram espantados ao ver que<br />
justamente um dos piores funcionários da<br />
empresa, mas que é bem visto pelo chefe por ser<br />
um bajulador foi o que melhor foi avaliado, em<br />
compensação este meu amigo que é só trabalho e<br />
empenho teve a pior nota de produção em toda a<br />
empresa.<br />
O chato mesmo foi quando o chefe o proibiu<br />
de frequentar a sala de reuniões da empresa,<br />
alegando que somente os funcionários ligados à<br />
gerência que podiam opinar sobre os rumos da<br />
empresa, excluindo assim os funcionários que<br />
trabalham na execução de obras.<br />
O engraçado foi que um dos gerentes ligou<br />
escondido do celular pra esse meu amigo durante<br />
a reunião, pedindo um conselho sobre o que dizer<br />
ao chefe. O assunto era sobre formas de estocar<br />
gelo seco para reduzir os espaços no estoque sem<br />
reduzir a produção. Eu ouvi tudo, ele estava do<br />
meu lado, e ao discursar o chefe elogiou muito as<br />
propostas do gerente, dizendo que sua opinião era<br />
digna de um grande empreendedor! Em seguida o<br />
parabenizou pela colocação apresentada, citando<br />
que seria levada aos altos investidores. Depois da<br />
71<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
reunião não resisti e fui falar com meu amigo,<br />
dizendo o que aconteceu.<br />
Ele sorrindo disse que coração vazio não<br />
sabe plantar, mas um coração que tem fé faz<br />
brotar água no meio da areia do deserto. Que sua<br />
intenção na empresa era trabalhar, apesar dos<br />
pesares, pois só tinha ali para trabalhar, se fosse<br />
mandado embora teria que catar latinhas na rua<br />
para sobreviver.<br />
Fiquei impressionado com as palavras de<br />
meu amigo, e por isso estou pedindo a sua ajuda.<br />
Será que isso tudo que vem acontecendo é caso<br />
de entrar na justiça contra o patrão? Será que ele<br />
deve seguir seu caminho e procurar um outro<br />
lugar para trabalhar? O que fazer?<br />
Esse meu amigo, deputado, muito honesto,<br />
vive apenas do trabalho, não tem muitos recursos.<br />
Aí vem um outro que todos os dias toma<br />
champanhe e começa a dificultar ainda mais as<br />
coisas para essa pessoa tão querida na empresa!<br />
Não vejo justiça alguma nisso e venho para pedir<br />
uma opinião sua sobre tudo isso que vem<br />
acontecendo, pois lembro que antes de ser<br />
deputado também trabalhava numa empresa de<br />
gelo seco e vendia gelo seco para várias pessoas.<br />
Sabe bem das dificuldades de se trabalhar com<br />
gelo devido à exigência da clientela. Ora, se já é<br />
tão difícil agradar quem está do lado de fora,<br />
como sobreviver tendo maiores problemas com<br />
quem está aqui do lado de dentro? Os clientes<br />
querem sempre o melhor produto e o gelo tem<br />
que estar sequinho, e dá muito trabalho para<br />
deixá-lo sempre assim sequinho para agradar os<br />
olhos dos clientes.<br />
72<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
E estou escrevendo essa carta escondido,<br />
aproveitando que meu amigo hoje não veio<br />
trabalhar. Fraturou o braço ao ser designado pra<br />
empilhar umas caixas de gelo no freezer e um dos<br />
corrimãos de sustentação estava solto. Então ele<br />
caiu sobre o braço e teve uma fratura. Acho que<br />
volta a trabalhar amanhã mesmo. Disse que iria<br />
trabalhar com um braço só porque está com o<br />
aluguel pra vencer e se ficar muitos dias afastado<br />
corre o risco de perder o emprego e passar fome.<br />
E isso é tudo deputado.<br />
Estamos todos muito preocupados com isso<br />
tudo e por isso resolvi incomodar o senhor pra me<br />
dar uma luz sobre o que fazer para ajudar essa<br />
pessoa tão querida e tão sofrida que todos<br />
gostamos muito e queremos ver sempre bem!<br />
Até breve! Desejo um ótimo trabalho a<br />
todos!<br />
73<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Quem trabalha não precisa pedir<br />
Avenida Afonso Pena, Belo Horizonte<br />
Não, a vida não é difícil! Somos nós que<br />
sempre buscamos tudo muito fácil e reclamamos<br />
de ter que trabalhar. Sempre reclamamos do<br />
trabalho, do cansaço do dia-a-dia, do chefe, do<br />
salário, mas a grande maioria de nós embora de<br />
humor indeciso pega a sua cruz e carrega, vai<br />
todos os dias para o trabalho, faz os afazeres e ao<br />
fim do dia entra num vagão lotado de pessoas<br />
suadas, cansadas e vai pra casa.<br />
O motivo disso é único: dignidade! Sim,<br />
trabalhamos para termos o dinheiro ao início do<br />
mês para comprar uma roupa bonita, pagar as<br />
contas de luz, de água, de telefone, de internet, a<br />
prestação do carro ou da moto, ou então poder<br />
parar num barzinho para sentar na cadeira e<br />
tranquilamente tomar um bom gole de cerveja e<br />
74<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
pedir aquele aperitivo gostoso de bacalhau ou<br />
camarão ao alho.<br />
Então logo eles aparecem. Sujos, fedidos na<br />
porta do bar. Não falam nem “bom dia” e com<br />
olhar de intimidação misturado com sofrimento já<br />
vão logo pedindo qualquer coisa. Às vezes pedem<br />
dinheiro, outras vezes já vão pedindo um copo de<br />
cachaça, um cigarro, um pouco da cerveja, o<br />
camarão, qualquer coisa...parece que o que<br />
querem é levar algo.<br />
Não posso acender um cigarro na porta do<br />
bar que logo vem um pedir. Falo que é o último<br />
querem dar um trago. E se falo que não ainda<br />
insistem para eu deixar a guimba.<br />
No trânsito ao parar no sinal vermelho<br />
chegam as mãos sujas dentro do carro e até<br />
tocam minha blusa branca de linho, sujando a<br />
gola. Encostam nos bolsos para ver se não há<br />
moedas, como se eu fosse obrigado a dar alguma<br />
coisa.<br />
Ao comprar um salgado na pastelaria já vem<br />
outro com suas mãos sujas, quase roubando das<br />
minhas mãos ou já tirando um pedaço como se eu<br />
tivesse obrigação de ter pena de algum deles. E<br />
não, não tenho pena alguma!<br />
E vou ter pena por quê? Estamos nos<br />
tempos modernos. Está sobrando emprego por aí.<br />
Basta querer trabalhar e procurar dignidade. Sei<br />
que alguém vai me acusar de desumanidade,<br />
então sejam humanos! Vão até lá embaixo do<br />
viaduto e adotem um desses vagabundos noiados<br />
que não querem trabalhar e ficam mendigando<br />
para comprar pedras de crack. Levem pra dentro<br />
de suas casas e sejam humanos.<br />
75<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Não querem trabalhar, e já comprovei isso.<br />
Reclamam da vida e da exclusão social, mas não<br />
querem trabalhar, a verdade é essa. Perceberam<br />
que a maioria da sociedade tem pena dos seus<br />
olhinhos fingidos pedindo esmola e vivem nessa<br />
mordomia sem limite. É fácil pedir, difícil é<br />
carregar tijolos!<br />
Mordomia sim! Eu e meus amigos<br />
trabalhamos o mês todo pra poder parar no<br />
barzinho no dia do nosso encontro mensal pra<br />
jogar conversa fora, e vem um que não carregou<br />
uma caixa lá na empresa onde trabalhamos, só<br />
chega, pede e leva. É fácil demais ser mendigo!<br />
Uma vida sem impostos!<br />
Em todo lugar onde ando vejo uma placa do<br />
tipo: “precisa-se de pedreiro e ajudante de<br />
pedreiro urgente, com ou sem experiência”, ou<br />
então aquelas do tipo “precisa-se de faxineiro”,<br />
“precisa-se de auxiliar de serviços gerais”,<br />
“precisa-se de carregador”, “precisa-se de<br />
ajudante”.<br />
Aí alguém vai virar e dizer que o mercado<br />
exige preparação, mas se observarem bem ao<br />
andar pela cidade, haverá uma placa assim:<br />
“curso grátis de garçom”, “curso de pedreiro”,<br />
“curso de pizzaiolo”, “curso de tricô e crochê”,<br />
“computação”. Não fica longe de onde eles<br />
dormem não, ali no centro mesmo no serviço<br />
social. Até eu já fiz um curso de digitação lá para<br />
melhorar a mim mesmo, era de graça mesmo.<br />
Então outro partidário da causa vai dizer que<br />
eles não encontram apoio. Não? Então não<br />
conhecem os abrigos municipais, onde os pedintes<br />
76<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
podem chegar, tomar banho e dormir? E quem<br />
disse que eles querem? Querem não.<br />
Não querem e sabe o motivo? Lá dentro não<br />
existe a pedra de crack, que na maioria das vezes<br />
é o motivo real de estarem pedindo dinheiro nas<br />
ruas embora tenham casa.<br />
Não é fome porque tem sempre alguém que<br />
leva sopa, frutas, verduras e outros lanches para<br />
eles. A necessidade deles é a droga, e<br />
absolutamente decididos não querem trabalhar. E<br />
falo com propriedade, pois já conversei com<br />
muitos que chegam me pedindo e falam<br />
abertamente sobre o assunto, culpando a<br />
sociedade pelo estado em que se encontram, mas<br />
basta falar em trabalho que mudam o olhar.<br />
Realmente a culpa é da sociedade sim,<br />
porque alimenta o vício dos pedintes. No<br />
momento em que esse recurso financeiro fácil se<br />
esgotar, uns roubarão e serão presos ou mortos,<br />
outros criarão vergonha na cara e catarão latinha<br />
para sustentar o vício, e uma parte menor irá<br />
fazer um curso de pedreiro no serviço social e ser<br />
laçado, fisgado, seqüestrado por alguma das<br />
centenas de empreiteiras que estão construindo a<br />
torto e a direito por toda a região metropolitana.<br />
Duvidam? Passem perto de alguma obra grande<br />
na cidade e comente que você tem um amigo<br />
pedreiro ou ajudante de pedreiro que está<br />
procurando emprego. Depois digam se eu não<br />
tenho razão. A construção civil está contratando, a<br />
rede hoteleira está contratando, restaurantes,<br />
bares. O problema é que as pessoas querem uma<br />
solução do céu, querem “Maná”.<br />
77<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Não é nem Deus nem o Diabo. Nós que<br />
temos que fazer, correr atrás do que queremos, se<br />
bem que a maioria dessas pessoas quer mesmo é<br />
pedir. É mais fácil e prático!<br />
Pra pedir não é necessário acordar cedo com<br />
o despertador, nem tampouco entrar no vagão<br />
lotado do metrô, suportar as teimosias do chefe,<br />
ter horários pra tudo, ter que suportar aquele<br />
colega de serviço que implica conosco, após o<br />
almoço ir trabalhar com aquele sono, ao fim do dia<br />
entrar no mesmo vagão lotado, dessa vez com o<br />
odor de suor tomando conta do lugar, e no fim do<br />
mês as contas chegando.<br />
E não! Eu não vou dar nada. Olhando pro<br />
meu rosto já saibam que não vou dar nada! No<br />
outro dia foi um de vocês que tentou me assaltar<br />
e quase morri. No outro dia no jornal havia a<br />
notícia de uma mulher que foi violentada próximo<br />
à trincheira por um de vocês. Também foi um de<br />
vocês que estava usando crack ontem quando<br />
passei de carro e jogou uma pedra. E acredito<br />
também que um de vocês deixou a calçada suja<br />
de merda e acabei pisando hoje cedo.<br />
Quem trabalha não precisa pedir e meu<br />
dinheiro que demorei um mês pra receber foi<br />
suado! Trabalhei para ter o direito de estar aqui<br />
agora apreciando meu bolinho de bacalhau e meu<br />
camarão. Tive um mês de trabalho para estar aqui<br />
agora tendo um pouco de lazer e satisfação. Não<br />
dou!<br />
Vocês é que deveriam me dar alguma coisa<br />
afinal levam uma vida muito boa, sem precisar<br />
trabalhar. A minha é sofrida, e isso me dá o direito<br />
de não gostar de vocês.<br />
78<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Ou ele ou eu, aos sábados<br />
Minha querida! Eu sei que anda muito<br />
ocupada ultimamente conversando todas as<br />
noites com o Ricardão pelo telefone, logo após nos<br />
encontrarmos e algumas das vezes ele nem<br />
espera eu sair para já começarem a conversa. Não<br />
estou nem preocupado mais com isso não, o<br />
Ricardão virou cultura do povo! O problema é<br />
outro e está me incomodando bastante nos<br />
últimos meses: O horário em que conversam.<br />
Hoje a nossa sociedade já não se<br />
escandaliza com um relacionamento extra, muitos<br />
casais são inclusive adeptos dessa técnica ultra<br />
moderna de amor e descarrego de libido. Embora<br />
eu não aceite, o que posso fazer se não há como<br />
79<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
ficar te vigiando todo o tempo? E além disso tenho<br />
um monte de outras coisas pra me preocupar,<br />
como de costume, naquele escritório repleto de<br />
metas a cumprir.<br />
Mas convenhamos meu querubim, ele<br />
deveria ter um pouco de desconfiômetro! Ficar te<br />
ligando aos sábados à noite, justo na minha hora<br />
de ficar com você? Acho que você deveria falar<br />
com ele sobre, sabe, uma conversa sincera e<br />
esclarecedora, de mulher para Ricardão. Isso pra<br />
não abalar a confiança que tenho em você meu<br />
docinho de côco.<br />
Sei que irá compreender o meu<br />
posicionamento pudinzinho. Veja bem: se estamos<br />
no cinema ele te liga, se estamos num barzinho,<br />
numa boate e até mesmo aquele sábado em que<br />
ele estava escondido debaixo da sua cama<br />
quando fui dormir aí em sua casa ele ficou<br />
trocando mensagens contigo a noite inteira.<br />
Como eu posso ter segurança no nosso<br />
relacionamento assim meu pão de mel? Fico cheio<br />
de desconfianças em relação ao não cumprimento<br />
de horários por parte dele.<br />
Lembra também daquela vez que viajamos<br />
de trem e ele estava no mesmo vagão? Ficou te<br />
encarando entre sorrisos e mensagens de celular<br />
e eu só tinha sossego pra namorarmos um pouco<br />
quando o sinal caía, ao passar por um túnel ou<br />
região mais montanhosa. Peço que me entenda<br />
minha flor!<br />
E aquela vez então no clube? Você se<br />
distraiu e o celular caiu na água quando falava<br />
com ele. Ele ligou no meu celular pedindo pra falar<br />
com você, e ainda por cima a cobrar.<br />
80<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
E aos sábados, sempre aos sábados que ele<br />
fica importunando e atrapalhando nossos<br />
encontros. Ora, sábado é o meu dia de lazer, de<br />
esquecer os compromissos do dia-a-dia e respirar<br />
ar puro num passeio pelo parque ou tomar um<br />
bom drink num lugar aconchegante! Preciso de<br />
privacidade, ao menos um pouco de privacidade<br />
pra poder me divertir um pouco minha princesa.<br />
Acho que você deveria ter uma conversa<br />
séria com ele, pois afinal neste próximo sábado<br />
estou querendo te levar ao teatro e será muito<br />
ruim você perder a peça respondendo às<br />
mensagens dele. Sem contar que as outras<br />
pessoas podem se sentir incomodadas com a<br />
conversa entre vocês dois.<br />
Vamos combinar assim pitelzinho: vou<br />
anotar todos os nossos horários numa planilha,<br />
fazer uma programação semanal dos nossos<br />
encontros. Aí você passa pra ele, assim tudo se<br />
resolve e eu poderei estar com você aos sábados<br />
tranquilamente. Ele saberá exatamente os<br />
horários em que não estará ocupada comigo e<br />
todos ficarão contentes!<br />
Sei que ele irá entender afinal é uma pessoa<br />
compreensiva e não se importará em eu<br />
estabelecer horários para poder sair com você<br />
minha musa, afinal nós já namoramos há bastante<br />
tempo e pelo que sei essas ligações intensas<br />
começaram acerca de um ano atrás, se não me<br />
engano. Ele já entrou nessa história sabendo que<br />
eu adoro sair aos sábados à noite e não posso<br />
abrir mão disso.<br />
Então ficamos combinados assim, querida!<br />
Adoro você! Mande também um abraço pra ele<br />
81<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
quando ele ligar logo após eu virar as costas e ir<br />
embora.<br />
82<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
O plano do plano de saúde<br />
Hospital! Lugar que ninguém gosta de<br />
visitar, ainda mais quando a pessoa não possui<br />
plano de saúde, pois afinal um plano de saúde<br />
sempre foi referência de qualidade de<br />
atendimento! Você chega e logo é atendido pelos<br />
melhores profissionais! Leitos, apartamentos,<br />
comida de qualidade, ar condicionado e todo um<br />
preparo de toda a equipe, uma enfermeira<br />
bonitona, essas coisas.<br />
Errado. Pagar o plano de saúde não quer<br />
dizer que você terá o atendimento que a<br />
propaganda fala.<br />
As filas estão cada vez maiores, até parece o<br />
Sistema Único de Saúde!<br />
83<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Outro dia eu caí doente e precisei utilizar o<br />
meu plano de saúde caro. E para minha surpresa<br />
eu estava no SUS. A única diferença é que eu<br />
paguei anos desse plano para ter o direito de ficar<br />
horas e horas na fila esperando atendimento<br />
médico juntamente com outros enganados, todos<br />
pessoas bem sucedidas, que enfim podem agora<br />
sentir na pele o que é a espera pelo atendimento.<br />
Aquela ilusão de um hospital maravilhoso e<br />
tecnológico é, bom, já ouviu falar de cenário de<br />
novela? Algo assim!<br />
Mas há uma grande lição nessa demora aqui<br />
neste hospital: enquanto houver alguém lucrando,<br />
haverá alguém afundando na lama.<br />
Ora, se eu pago pelo serviço, onde foi parar<br />
o dinheiro para investir nos materiais e na<br />
capacitação dos profissionais? Só o que me deram<br />
foi um soro. Onde estão as camas automáticas?<br />
Onde está a equipe de pelo menos seis médicos e<br />
enfermeiros me bajulando e fazendo sala pra mim<br />
até eu ficar bom? Onde está minha linda<br />
enfermeira? Onde está a adrenalina da equipe e<br />
um monte de equipamentos ligados ao meu corpo<br />
monitorando tudo que se passa comigo?<br />
Só o que vi até agora foi um soro, uma<br />
agulhada no braço e uma recepcionista com cara<br />
de poucos amigos e voz enjoativa fazendo várias<br />
fichas de atendimento e empilhando sobre a mesa<br />
para o caso de algum médico vir até o hospital e<br />
ainda assim, se interessar em pegar as fichas.<br />
Enquanto isso ficamos todos a ver navios.<br />
Pagamos e na hora de usufruir nos dão um nariz<br />
de palhaço. Então o nosso último estado fica pior<br />
84<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
do que o primeiro, pois além de doentes, o humor<br />
vai embora rápido.<br />
O jeito é esperar até o soro acabar agora e<br />
depois acho que vou embora porque aqui está<br />
cheio de pessoas doentes e machucadas. Isso não<br />
é bom para minha saúde. Não vou esperar meu<br />
plano de saúde perceber isso não, melhor me virar<br />
eu mesmo, ir pra casa e fazer um chazinho<br />
caseiro.<br />
85<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Aos 5 anos com a professora Júlia na Escola Padre João Maria Kooyman em 1989<br />
Fiquei careta, e agora?<br />
Fotografia velha, por que tu és tão rigorosa<br />
com nosso coração? Qual o motivo de jogar<br />
antigas poeiras em nossos olhos fazendo cair<br />
lágrimas ao limpar?<br />
Por quê? Diga-me o motivo de estar tão<br />
melindrosa, tão culpada, escondida entre antigos<br />
papéis que eu iria jogar fora nessa tarde ao dar<br />
uma faxina no porão tão cheio de poeira de minha<br />
humilde casa?<br />
Fotografia velha que remete a toda a nossa<br />
história. Aquela infância sofrida ou repleta de<br />
sorrisos de cada um, as brincadeiras, bom...as<br />
brincadeiras...<br />
86<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
No meu tempo ainda havia as brincadeiras<br />
de “roubar bandeira”, o pique-esconde, futebol<br />
jogado no asfalto onde fazíamos o gol com<br />
chinelos, bolinha-de-gude, caí no poço, passa anel,<br />
telefone-sem-fio, carrinho de rolimã e guerra de<br />
balão com água.<br />
Fugia das minhas lembranças o meu<br />
passado, minha origem e uma fotografia<br />
despertou tudo isso novamente. Então, parar de<br />
fazer a limpeza e procurar por outras fotografias.<br />
E encontramos antigas provas da escola, os<br />
antigos boletins com as notas e até mesmo jornais<br />
da época.<br />
A nostalgia, uma emoção tão profunda exala<br />
no ar o cheiro de papéis velhos! Fantasmas do<br />
cotidiano saindo dos túmulos trazendo nas mãos<br />
os calendários de décadas atrás, num tempo que<br />
já cinzento na lembrança instiga os olhos a chorar<br />
enquanto os lábios sorriem e o coração bater de<br />
uma forma diferente do habitual! Eles soltam no<br />
ar a sua risada maliciosa e passam o tempo todo<br />
diante dos nossos olhos feito moscas e mesmo<br />
tentando afastá-los são todos insistentes e não<br />
param de perturbar mostrando as folhinhas já<br />
amareladas pelo tempo, batendo com elas em<br />
nosso rosto.<br />
Ah, a vida! Tão passageira e repleta de<br />
encantos que até mesmo as decepções são bem<br />
lembradas, quando vários anos mais tarde uma<br />
simples faísca acende uma tarde inteira de<br />
reflexões, retrospectiva e análise da existência!<br />
Que belas são as nossas lembranças! Nosso<br />
passado é tão cheio de cultura! Cada pessoa tem<br />
dentro de si um universo tão repleto de conteúdo!<br />
87<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
É como se cada dia fosse uma estrela de um<br />
grande universo! Nesse contexto, jamais haverá<br />
um universo pessoal igual ao outro, pois cada<br />
pessoa possui um coração que bate! A vida de<br />
cada pessoa é única em amor e desilusão, sonhos,<br />
virtudes, defeitos, sorrisos e mágoas! Os desejos e<br />
até mesmo os medos e todo o resto! Mas em cada<br />
um desses universos existe a história que cada<br />
pessoa viveu, repleta de assuntos que enchem as<br />
páginas de um livro! Emoção! Emoção! Emoção!<br />
Eis a nossa história!<br />
As canções da época então se sussurram<br />
nos lábios, baixinho enquanto as lágrimas vão<br />
caindo, até mesmo os programas que passavam<br />
na televisão, que ainda era em preto e branco.<br />
Naquela época era comum que em muitas casas<br />
tivessem uma máquina de costurar, o que era<br />
inclusive artigo de luxo. Havia propagandas de<br />
cigarro sem citar os males provocados. Ainda<br />
lembro dos antigos slogans marcantes,<br />
principalmente do meu achocolatado preferido<br />
que já nem me lembro mais o sabor pois hoje já<br />
não gosto de achocolatado, só de cerveja e das<br />
noites de luzes, boates, barzinhos...<br />
O primeiro vídeo game, com aquele joguinho<br />
de naves. Bem simples! Gráficos que hoje<br />
qualquer criança consegue criar melhores no<br />
computador. Mas era a minha época! Minha<br />
história! Minha cultura de vida e por isso é tão<br />
especial!<br />
Eu presenciei a luta contra a ditadura.<br />
Caminhões cheios de homens de farda passando<br />
pela rua, estudantes correndo, a banca de frutas<br />
88<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
caindo na calçada, o caminhão jogando água nas<br />
pessoas, muitos rostos pintados.<br />
Futebol! As pessoas reunidas em frente à<br />
garagem de quem tinha televisão e a colocava<br />
numa mesa, reunindo os amigos e logo a frente da<br />
garagem repleta de pessoas enquanto o dono da<br />
casa procurava o melhor lugar para colocar a<br />
antena, tendo inclusive que enrolar um pedaço de<br />
Bombril na ponta da antena para melhorar o sinal<br />
da televisão.<br />
Eleições! As pessoas que votavam se<br />
sentindo importantes, colocando uma roupa mais<br />
vistosa que possuíam e indo para o seu colégio<br />
eleitoral. Encontrando antigos amigos, exercitando<br />
uma democracia que na maioria das vezes só se<br />
vislumbra quando é época de campanha, pois é<br />
quando alguém lembra ao cidadão que ele existe.<br />
Pessoas correndo pela rua com as mãos<br />
cheias de “santinhos”, de faixas, de camisetas de<br />
algum candidato, e logo em seguida uma viatura<br />
cinza passava.<br />
Dias antigos! Os planos de vida que naquela<br />
época eu tracei, que na sua maioria foram<br />
substituídos pela realidade da vida e pelas<br />
oportunidades que realmente surgem num mundo<br />
tão competitivo.<br />
Amei! Com as forças que meu corpo tinha<br />
para amar!<br />
Os sonhos que meus olhos tinham pra<br />
sonhar!<br />
As desilusões? Meias verdades coloridas!<br />
Deixo o porão, trazendo algumas fotografias<br />
nas mãos e nova expressão no rosto.<br />
89<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Tiro então as fotografias da minha banda<br />
predileta da sala e coloco no lugar as antigas que<br />
encontrei no porão.<br />
Ao sair, passo pelo supermercado e compro<br />
um achocolatado. Tomando ali mesmo no caixa<br />
enquanto pago, a atendente até estranha, pois<br />
habitualmente eu faço isso somente com cerveja.<br />
Ao entrar no carro, coloco o cinto de<br />
segurança, lembrando das vezes em que brincava<br />
de carrinho de rolimã e fingia que estava usando o<br />
cinto antes de cada disputa com os amigos nas<br />
ruas do bairro Glória. E no meio do caminho eu<br />
lembro que não estou brincando de carrinho de<br />
rolimã e tiro o cinto.<br />
Voltando pra casa coloquei no canal do<br />
desenho animado e fiquei horas assistindo.<br />
Olhando as novas fotos na parede, me<br />
pergunto onde foram parar os amigos do tempo<br />
de escola? Que rumo suas vidas devem ter<br />
tomado?<br />
Saudade marca e nos torna tão<br />
ultrapassados, tão antiquados se formos olhar os<br />
dias de hoje! Mas um dia todo mundo fica assim.<br />
Pra não chegar a esse momento, ou se deixa o<br />
porão sujo e jamais entra lá, ou então é mais fácil<br />
viver uma vida sem sabor, pois onde há um<br />
mínimo de prazer e realização, ali estará um<br />
motivo para que o passado venha bater em nossa<br />
porta.<br />
90<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
A pegadinha do falso cigarro<br />
E lá estava eu no Dourado, tomando uma<br />
branquinha antes do almoço, segunda-feira,<br />
pensando no quê eu iria degustar após uma<br />
branquinha, talvez um frango, hoje não estou<br />
querendo comer camarão. Todo dia camarão às<br />
vezes enjoa! Olhando as pessoas passando na rua<br />
ficava entretido com as culturas de cada um, seus<br />
modos de vestir, de andar. Eu admirava as<br />
pessoas e a sua necessidade de sempre chegar a<br />
algum lugar! Correr atrás das coisas. Cheguei a<br />
91<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
pensar que somente eu estivesse vagabundeando<br />
em toda a cidade.<br />
Foi quando Xuxinha, uma simpática<br />
funcionária de lá me mostrou um maço de cigarros<br />
idêntico ao original, e até me ofereceu um. Eu<br />
estranhei, pois nunca havia visto ela com cigarros,<br />
mas aceitei. Afinal era de graça mesmo!<br />
Foi quando aos risos ela não conseguiu<br />
terminar a pegadinha e começou a rir antes da<br />
hora. Então ao pegar o cigarro percebi que era<br />
realmente um maço de cigarros, porém em seu<br />
interior haviam cigarros feitos somente com o<br />
filtro, para servirem de enfeite das vitrines. Não<br />
havia o fumo, era somente filtro em toda a sua<br />
extensão.<br />
A principio eu achei interessante! Foi quando<br />
ela me mostrou uma caixa com dezenas de maços<br />
iguais, dizendo em seguida que era ordem do<br />
representante que os maços fossem substituídos<br />
por outros mais novos, mais bonitos!<br />
Então a mente vazia funcionou<br />
instantaneamente e eu tive a idéia de fazer uma<br />
pegadinha com as pessoas que passavam pela<br />
rua. Ela não concordou a princípio, mas o “espírito<br />
convencedor de palhaçadas e outros afins” deu<br />
um jeito de convencê-la através de uma risada<br />
maldosa que eu liberei e já pegando o primeiro<br />
maço.<br />
Deixei perto da árvore na calçada e fiquei<br />
observando.<br />
Um casal discutindo. De repente os dois<br />
passam pelo maço e o homem diz para ela que<br />
havia um maço de cigarros novinho jogado no<br />
chão. Andam mais alguns passos e ela pergunta<br />
92<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
se ele quer o cigarro. Então num gesto de<br />
companheirismo a mulher volta e pega<br />
rapidamente do chão e leva para seu amado, o<br />
qual com maestria coloca no bolso dando uma<br />
olhadinha pra trás por segurança e seguem<br />
abraçados pela rua talvez nem lembrando que<br />
brigavam.<br />
Fiquei comovido com o gesto! Apesar de ser<br />
uma pegadinha de gosto duvidoso, pude notar<br />
que as pessoas passam por problemas cotidianos,<br />
mas por dentro são companheiras e ninguém vive<br />
sozinho! Por mais que as brigas num<br />
relacionamento existam há sempre um desejo<br />
mútuo de fazer o outro feliz e sermos também<br />
felizes! Emocionei!<br />
Então tomei mais um golinho da minha<br />
branquinha e rapidamente deixei o segundo maço<br />
no mesmo local. Mal entrei de novo no recinto e<br />
um vendedor de sacolé tratou de pegar o maço do<br />
chão rapidamente, com habilidade de goleiro.<br />
Andou um pouco e parou para saborear um dos<br />
cigarros.<br />
Ao ver que eram somente filtros, jogou o<br />
maço no chão e xingou alguma coisa que não<br />
pude ouvir da porta.<br />
Ele andou um pouco, mas voltou e pegou o<br />
maço de cigarros. Estava com o mesmo sorriso do<br />
“espírito convencedor de palhaçadas e outros<br />
afins”.<br />
Que bom! As pessoas apesar das<br />
dificuldades têm senso de humor! Sei que foi<br />
passar a pegadinha em alguém.<br />
Ali pude ver que não é necessário dinheiro<br />
para que existam sorrisos no rosto das pessoas.<br />
93<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Basta um motivo, mesmo que insignificante que<br />
desperte o desejo de gargalhar.<br />
Novamente outro maço. Dessa vez demorou,<br />
mas valeu a pena!<br />
O sujeito estava bem vestido, vindo pela<br />
direita. Um ar “posudo”! O outro um rapaz bem<br />
parecido com um malandro, desses que se vestem<br />
mal e têm hábitos musicais estranhos! Não é nem<br />
pelo gosto musical, mas pela altura que ouvem,<br />
principalmente em coletivos lotados.<br />
Os dois empataram! Chegaram na mesma<br />
hora para pegar o maço de cigarros do chão.<br />
Então o que estava bem vestido perguntou<br />
se o maço era do rapaz e ele respondeu<br />
automaticamente que sim, citando até que havia<br />
doze cigarros dentro do maço.<br />
O outro então pediu desculpas e seguiu,<br />
admirado pelo rapaz com propriedade demonstrar<br />
mesmo sem abrir o maço a quantidade de cigarros<br />
existente lá dentro.<br />
Nesse momento eu não pude conter o riso e<br />
quase caí da cadeira! Cheguei a liberar lágrimas e<br />
dessa vez nem pude chegar até a porta para ver<br />
se o rapaz chegaria a abrir o maço de cigarros<br />
porque não conseguia parar de rir.<br />
E sim, as pessoas são aguerridas em buscar<br />
sempre vantagens sobre as outras, mesmo que<br />
tenham que fingir!<br />
E não sei se o rapaz era bom moço, mas<br />
tentar vender o maço para algum bêbado no fim<br />
da noite seria uma sacanagem maior que a que eu<br />
havia acabado de fazer!<br />
O problema é que pensando nisso me dava<br />
mais vontade de rir imaginando o bêbado<br />
94<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
acendendo o cigarro de filtro. Mais ainda, ele<br />
dando alguns tragos até perceber que não<br />
acendeu o cigarro do lado errado e que o mundo<br />
não estava conspirando contra seu cigarro, após<br />
ter virado o lado, revirado e retirado o pedaço<br />
queimado de filtro em ambos os lados. E então<br />
depois de um bom tempo perceber que o cigarro é<br />
somente um filtro, sem fumo.<br />
E pior seria se ele pensasse que este cigarro<br />
veio com defeito e tentar acender outro do mesmo<br />
maço.<br />
Percebendo que eu já começava a<br />
incomodar os clientes tentei me conter, e<br />
confesso que foi difícil!<br />
Eu já estava pensando em desistir da<br />
brincadeira quando vi que só havia mais dois<br />
maços comigo, pois a Xuxinha havia guardado os<br />
outros em seu armário porque o Zezé não estava<br />
gostando da brincadeira em seu comércio.<br />
Coloquei outro maço lá perto da árvore e<br />
fiquei olhando. Passou uma garota vendendo balas<br />
e ao ver o maço se abaixou para pegar. Fiquei<br />
preocupado achando que ela iria pegar aquilo e<br />
sair contente achando que era de verdade.<br />
Para minha surpresa ela pegou o maço e<br />
entrou no Dourado, jogando o maço no lixo.<br />
Fui até ela rapidamente e perguntei se ela<br />
estava jogando cigarros fora e ela respondeu que<br />
sim, que seu pai morreu de câncer por fumar<br />
demais e por isso hoje ela ajuda a mãe vendendo<br />
balas enquanto a mãe olha uma senhora lá para<br />
os lados do bairro Serra. Falou que não gosta de<br />
ver as pessoas fumando porque isso lembra do<br />
sofrimento da família.<br />
95<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
A pegadinha dessa vez não foi engraçada,<br />
mas me encheu de orgulho ao ver que aquela<br />
garotinha tão nova, aparentando dez anos, tinha<br />
uma consciência tão bem desenvolvida. Então<br />
sorri emocionado e a parabenizei!<br />
Aí ela virou, com uma rápida mudança de<br />
fisionomia, de criança para comerciante<br />
experiente e perguntou quantas balas eu iria<br />
levar, já até tirando algumas da caixinha.<br />
Mas é justo! Está certo! Comprei algumas,<br />
afinal eu que fui até a garotinha puxar assunto.<br />
Acabou que o último maço eu mesmo abri, e<br />
fiquei vendo aqueles cigarros somente de filtro.<br />
Desmanchei um para ver e deixei o maço em cima<br />
da mesa aberto.<br />
Comecei a filosofar em silêncio sobre a vida,<br />
olhando o filtro de cigarro, sobre o interior de cada<br />
ser humano, as vontades, o desejo de realização<br />
que se parece em cada um, e o quanto cada um<br />
se esforça para pelo menos ter o que comer,<br />
sendo que na maioria das vezes as gotas de<br />
felicidade que sobram se resumem a poder pagar<br />
as contas no final de um mês de trabalho duro e<br />
não passar fome, mesmo que a carne tenha que<br />
ser baratinha e não dê para comemorar um jogo<br />
de futebol com churrasco no quintal.<br />
Foi aí que me levantei para escolher algo<br />
para comer e ao voltar não é que haviam levado o<br />
maço de cigarros falsos!<br />
Então eu não sabia se ficava preocupado<br />
com a safadeza alheia ou se caminhando pela rua<br />
o safado me visse e pensasse que eu sou doido<br />
varrido ou fumo cigarro de filtro sem fumo pra não<br />
ter o perigo de pegar câncer ou poluir o mundo.<br />
96<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Pior é se o larápio fumar o cigarro de filtro<br />
pensando que se eu, que estava bem aparentado<br />
fumo essa marca, deve ser algo chique, da última<br />
moda!<br />
Eu mereço?<br />
97<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Ái meu fusca!<br />
Claro que arrumo seu Fusca minha amiga<br />
Alessandra! Nunca fiz manutenção em carro, nem<br />
tenho curso de mecânico, mas não há um<br />
brasileiro que não entenda de Fusca.<br />
Vamos ver:<br />
A porta está fechando bem! O motor<br />
funciona bem apesar de ser muito barulhento! As<br />
marchas estão um pouco duras, mas esse carro é<br />
bem antigo, deve ser por isso.<br />
Os pneus estão um pouco gastos e a pintura<br />
original está bem conservada, apesar de um<br />
amassado na lataria!<br />
O volante está duro e vira com dificuldade,<br />
mas vira!<br />
98<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Os pedais são duros também, mas estão<br />
funcionando perfeitamente! Também quando<br />
sento no banco as molas vibram bastante, como<br />
todo carro Fusca que se preze, caso contrário nem<br />
adianta querer dizer que é um Fusca.<br />
Um monte de badulaques, fitas, um terço,<br />
dentadura e chaveiros pendurados no retrovisor<br />
interno...<br />
O motor é atrás e o porta-besteira tem de<br />
tudo, desde colcha até um sanduíche velho já<br />
mofado, aranhas viajantes, ferramentas, uma<br />
barata morta, um pente de cabelo, um espelho e<br />
uma toalha toda impregnada de mofo verde.<br />
Depois de vistoriar o carro conclui:<br />
realmente o paciente parece ser um Fusca! Faltam<br />
alguns detalhes para que eu possa comprovar<br />
cientificamente que é um Fusca.<br />
E com o olhar de um perito, após dar meu<br />
parecer, minha amiga vira e fala que o problema é<br />
que o vidro do lado direito não estava fechando<br />
embora ela girasse a maçaneta.<br />
Olhei pra ela e fiz uma cara de desgosto e<br />
desaprovação. Pôxa! Eu estava fazendo a autópsia<br />
da vítima Eu iria constatar em breve que o vidro<br />
não estava fechando.<br />
Mas continuei meu trabalho importante!<br />
Agora eu precisava desvendar as causas do<br />
trauma gravíssimo na porta direita que impedia<br />
que o vidro fosse fechado.<br />
Um olhar sério sobre os fatos. Com calma<br />
pego várias ferramentas numa caixa. Procurei um<br />
bisturi, como não havia, tive que me contentar<br />
com uma chave de fendas e um alicate.<br />
99<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Eu estava prestes a iniciar os trabalhos de<br />
uma operação de risco quando novamente minha<br />
amiga vira, com um olhar de preocupação ao ver<br />
que o veículo seria aberto e fala que o vidro não<br />
fechava porque a maçaneta perdeu os dentes por<br />
estar muito velha.<br />
Olhei para ela de novo, fazendo transparecer<br />
que ela estava interferindo na operação cirúrgica.<br />
O sol estava quente e eu já começava a suar<br />
bastante, pelo calor e pela tensão naquela<br />
operação delicada.<br />
Após um longo período de comprovações<br />
científicas percebi que a maçaneta estava muito<br />
gasta e as secções já não conseguiam erguer o<br />
vidro do veículo, que parece ser um Fusca<br />
realmente, embora eu ainda tivesse algumas<br />
dúvidas.<br />
Então após o término do trabalho virei pra<br />
minha amiga e disse que ela precisaria trocar a<br />
maçaneta, que era baratinho! Eu segurava a<br />
maçaneta removida nas mãos e ainda mostrei que<br />
estava totalmente gasta.<br />
Mas ela disse não poder trocar a peça<br />
porque era muito caro e não poderia gastar mais<br />
com o carro. Quase se desesperando em ter que<br />
gastar algumas moedas para comprar outra<br />
maçaneta.<br />
Eu olhei para ela e ao mesmo tempo para a<br />
caixa de ferramentas, fazendo uma cara de lerdo.<br />
Olhei para o paciente, seus faróis me<br />
olharam com tristeza, conformados diante dos<br />
fatos, parecia me demonstrar no silêncio de seu<br />
labor as dificuldades de ser um Fusca.<br />
100<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Pensei que se ela não estava nem aí para a<br />
troca de uma peça que evitaria que o carro fosse<br />
roubado ou que fosse assaltada no trânsito, a<br />
minha cerveja de prêmio também não iria<br />
acontecer em hipótese alguma.<br />
Estava ali na caixa uma fita de vedar rosca<br />
de cano d’água e um pedacinho de arame. Peguei<br />
o rolo, passei em volta da parte da porta da<br />
maçaneta e voltei a colocar o parafuso na<br />
maçaneta e apertar. Em seguida passei o arame<br />
em volta com a ajuda do alicate.<br />
O vidro então fechou normalmente e ganhei<br />
um abraço e um “muito obrigado” feliz da minha<br />
amiga.<br />
Voltei para o barzinho onde estava antes<br />
dela aparecer com o seu veículo desesperada para<br />
que eu o salvasse da morte trágica, provocada por<br />
um vidro que não se fechava.<br />
Sim! É um Fusca! Não tenho dúvidas agora!<br />
Com certeza é um Fusca! É um Fusca certamente!<br />
Com um remendo na porta, todos os outros itens<br />
de série já citados e uma dona mão-de-vaca! É um<br />
Fusca completo! Legítimo!<br />
101<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
“Moreno” só tem um<br />
A sociedade molda demais as pessoas,<br />
tirando muitas vezes a espontaneidade de ações e<br />
idéias. Pessoas capazes, que têm dentro de si uma<br />
identidade, um juízo de valor sobre cada coisa,<br />
muitas vezes são sufocadas pelas pressões sociais<br />
em busca de um padrão de aceitação até mesmo<br />
contrário à própria individualidade humana.<br />
A sociedade molda os modos de vestir, o<br />
corte de cabelo, os gostos culturais, a escolha<br />
religiosa, os lugares que cada um frequenta e até<br />
mesmo o que está degustando no prato e quer<br />
saber até mesmo quantas doses de bebida já<br />
foram ingeridas.<br />
Nós estamos numa sociedade tendenciosa,<br />
aliás, sempre foi assim! Só o que muda é a época<br />
em que vivemos.<br />
Outro dia eu estava comendo uma porção de<br />
bolinho de bacalhau sossegado no barzinho,<br />
quando percebi que um casal me encarava pelo<br />
102<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
fato de eu estar comendo os bolinhos com as<br />
mãos, sem usar um guardanapo ou um palitinho.<br />
Comentavam baixinho e depois voltavam a me<br />
observar.<br />
Ora, se vou pagar pelos bolinhos, não posso<br />
comer da maneira que mais achar conveniente?<br />
Como com a mão mesmo e adoro fazer isso! Ainda<br />
lambo os dedos em seguida pra aproveitar a<br />
gordurinha do azeite e o gostinho do limão.<br />
Gostar ou não gostar de mim? Aceitar ou<br />
não? Na verdade não fará muito a diferença. O<br />
que importa é que para o meu orgulho, só eu sou<br />
eu, e sempre serei eu. A sociedade não vai me<br />
mudar, me tornando um robô da aceitação<br />
coletiva. A ovelha negra recebeu a cor negra para<br />
ser diferente do rebanho das ovelhas e se<br />
destacar por isso.<br />
Identidade, que ninguém vai tirar! Eis a<br />
identidade de um sambista, que não perde seu<br />
valor! Toca viola, no domingo joga bola, na<br />
segunda vai pro emprego, acende vela pro santo e<br />
não dispensa a boa hora do jantar!<br />
Isso é nossa personalidade! Sejamos<br />
exemplos sociais ou sem vergonhas, mas que<br />
tenhamos a nossa identidade!<br />
É tão bom acordar e olhar no espelho! Nosso<br />
modo de olhar é único, com ou sem remela nos<br />
olhos! Eu sei que em nenhum lugar do mundo<br />
alguém tem um olhar igual ao meu, nem está<br />
pensando o mesmo que eu ao me olhar no<br />
espelho, a menos que seja tão egocêntrico.<br />
Sei que existem muitas pessoas com o meu<br />
nome, ou com o mesmo tom moreno da pele, o<br />
mesmo corte de cabelo, as mesmas pendências<br />
103<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
de contas atrasadas. Mas por dentro da pele não<br />
há outro de mim, isso me deixa muito feliz!<br />
As pessoas costumam criticar as roupas que<br />
vestimos, costumam criticar a combinação das<br />
cores das roupas. Ora, em eras remotas as roupas<br />
eram usadas para proteger do frio e esconder as<br />
“vergonhas”. Agora são usadas para servirem de<br />
objeto de análise das outras pessoas. Ainda mais<br />
que hoje em dia ninguém se preocupa em<br />
esconder nada e sim mostrar.<br />
Isso é muito bom! Em um mundo tão<br />
diversificado é importante termos pensamentos<br />
diferentes. Mas não vou trocar de roupa não.<br />
Gosto de ser espontâneo! Bom, pra falar a<br />
verdade quando vou sair pego a roupa que estiver<br />
menos amassada e dependendo da roupa, se eu<br />
gostar, dou um cheirinho pra ver se está com odor<br />
de suor, mesmo se já estiver no cesto. Aposto que<br />
todo mundo já fez isso um dia.<br />
Meu estilo musical, os lugares que gosto de<br />
ir, meu time de futebol do coração, tudo isso são<br />
escolhas de vida que me realizam e proporcionam<br />
prazer!<br />
Gosto de possuir a minha subjetividade e me<br />
orgulho que ninguém consiga tirá-la! Eu sou único<br />
na sociedade, não há um outro indivíduo<br />
totalmente igual a mim.<br />
Eu gosto de cantar minhas músicas, de<br />
escrever de vez em quando, de paquerar, comer<br />
bolinho de bacalhau e camarão ao alho como<br />
acompanhamento de uma boa cerveja!<br />
Gosto do carnaval do Rio de Janeiro e minha<br />
escola do coração é a Estação Primeira de<br />
Mangueira!<br />
104<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Eu gosto das paisagens mineiras, das<br />
ferrovias, do típico ambiente das cidades do<br />
interior, cada uma tão tradicional e com um astral<br />
diferente, um clima diferente!<br />
Há pessoas que não gostam de viajar, que<br />
não gostam de sair, que não gostam de sorrir e<br />
nem de amar, que não se emocionam com<br />
nada...ao contrário de mim...<br />
E se não gosto de você, ou se não gosta de<br />
mim, ou se não gostamos daquela outra pessoa.<br />
Bom, não dá pra resertar a vida e voltarmos em<br />
épocas diferentes. Tampouco o mundo será<br />
sempre uma maravilha, a ponto de não nos<br />
desgostarmos por alguma coisa.<br />
Vamos viver então! Aproveitar da vida o<br />
melhor e buscarmos sempre a felicidade!<br />
Enquanto procurarmos a nossa felicidade, menos<br />
tempo teremos para nos aborrecer com as<br />
diferenças alheias.<br />
Tenho palitos na mesa, quer pegar um<br />
bolinho?<br />
105<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
O galã<br />
Quem nunca gostou de estar bonito? Andar<br />
pela rua sentindo que as pessoas admiram a sua<br />
elegância? Se sentir um astro do cinema, alguém<br />
importante? Galã em todos os aspectos da<br />
supremacia masculina?<br />
Isso ocorre quando o homem comum veste<br />
um terno! Mas não essas pessoas que estão<br />
acostumadas a usar no dia-a-dia para ir ao<br />
trabalho. Falo das pessoas humildes do cotidiano<br />
que na maioria das vezes usam mesmo é o<br />
bermudão e uma camiseta, chinelo de dedo e um<br />
penteado comum, sem gel, e para o trabalho a<br />
calça jeans e uma blusa de botão.<br />
Numa ocasião especial, uma formatura, um<br />
casamento ou uma festa mais requintada, vai lá o<br />
indivíduo comum, o que passa por nós na rua<br />
invisível todos os dias, como se fosse parte de um<br />
106<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
cenário cinza. Ele veste um terno bem passado e<br />
ocorre uma transformação completa no momento<br />
em que coloca a gravata no pescoço e percebe no<br />
espelho que está usando um terno. Um novo<br />
mundo se abre diante dos seus olhos e ele<br />
percebe que está irresistível! Comestível! Sedutor!<br />
Quando está de terno se torna um galã!<br />
Saindo da frente do espelho após passar o gel nos<br />
cabelos, nem espera o espelho dizer que não há<br />
ninguém mais belo que ele.<br />
Caminha pela rua com graça e beleza! Se<br />
sentindo uma nova pessoa, um artista de<br />
televisão! Bonitão e boa pinta! O bom da boca!<br />
Nessa hora é necessário manter a classe<br />
afinal todos os holofotes estão lhe vendo,<br />
mulheres admiradas e homens invejando a sua<br />
condição de galã.<br />
Ajeita a lapela ao passar pelas mulheres, ou<br />
então finge arrumar os cabelos, passando os<br />
dedos só nas arestas para não atrapalhar o gel.<br />
Ou então franzindo a testa finge se preocupar com<br />
algo importante, talvez o início de uma grande<br />
guerra ou um compromisso com os altos<br />
investidores em ações.<br />
O homem se sentir bonito e perceber que as<br />
pessoas o notam é mais importante que se<br />
alimentar ou ter saúde! A condição privilegiada de<br />
galã no ambiente social em que está inserido é<br />
mais prazerosa que estar com uma mulher na<br />
intimidade no momento do clímax! O<br />
reconhecimento é o máximo da realização do<br />
homem!<br />
Notar um olhar de admiração do público<br />
provoca um êxtase interior que dá até calafrios ou<br />
107<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
uma náusea, um desejo até de não ser tão notado<br />
naquele momento que logo vira uma timidez.<br />
Chegar de carro num lugar e ser notado<br />
imediatamente devido à condição de galã, ao sair<br />
os olhares o seguindo...por dentro uma realização<br />
que não dá para descrever em palavras.<br />
Eu sei que existem homens que não sabem<br />
o que uma mulher diz pra um galã de verdade,<br />
para um conquistador nato, usando um terno<br />
alinhado e caminhando pela rua como se até<br />
mesmo o sol brilhasse só em si, tal qual a luz de<br />
um palco a destacar o ator. Eu sei!<br />
Mas quando se tira o terno, parece que um<br />
peso enorme saiu do corpo! Uma responsabilidade<br />
imensa de ter que se comportar estilisticamente<br />
correto e não poder fazer o que usualmente<br />
fazemos no dia-a-dia como enfiar o dedo no nariz,<br />
coçar o saco ou soltar um pum ou um arroto.<br />
Galã não! Galã deve ser um homem garboso<br />
e sem vício! Uma imagem sincera da jovialidade e<br />
virilidade masculina aliada a uma inteligência<br />
sagaz, um sorriso sem motivo apenas por ser galã<br />
e um olhar que faz declinar as mulheres. O galã<br />
deve ser uma pessoa decisiva, imediata!<br />
Solucionador da solidão ou do tédio do cotidiano<br />
de alguma mulher entretida em seus afazeres, e<br />
que logo se declina à imagem ostensiva do<br />
garanhão.<br />
Isso tudo por causa da necessidade de<br />
realização de cada homem no seio da sociedade.<br />
O ego interior, o desejo de ser importante, de<br />
chegar a algum local e ser notado com olhares de<br />
desejo, mesmo que isso tenha um custo alto de<br />
não poder fazer qualquer movimento brusco ou<br />
108<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
inconveniente que será contestado pelo público<br />
eleitor da condição de galã perfeito.<br />
Mas é sempre bom estar galã!<br />
Ah o galã! Tão bem notado e tão sem noção!<br />
109<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Este livro foi impresso pela Gráfica e Editora o<br />
Lutador<br />
O texto foi composto na fonte Gill Sans MT e os<br />
títulos na fonte Times New Roman, em corpo 12.<br />
A impressão foi realizada em papel pólen rustic<br />
85g.<br />
110<br />
Vitor Moreira, 2013
<strong>EMOÇÃO</strong> – “Causos” do cotidiano<br />
Escrever a obra Emoção – “Causos” do Cotidiano me<br />
surpreendeu porque nela eu deixei de lado muitas formalidades<br />
com as quais sempre convivi ao criar e escrevi livremente,<br />
111<br />
Vitor Moreira, 2013