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AMOR+DE+VERANEIO

Uma história de amor envolvendo um adolescente inexperiente e uma adolescente já bastante experiente em relacionamentos no ano de 2001. O cenário é um antigo colégio em um bairro de subúrbio de Belo Horizonte, chamado Padre Matias. Os acontecimentos saem do controle e o que era apenas um caso de amor passa a ter envolvimento com crimes e drogas.

Uma história de amor envolvendo um adolescente inexperiente e uma adolescente já bastante experiente em relacionamentos no ano de 2001. O cenário é um antigo colégio em um bairro de subúrbio de Belo Horizonte, chamado Padre Matias. Os acontecimentos saem do controle e o que era apenas um caso de amor passa a ter envolvimento com crimes e drogas.

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1


AMOR DE VERANEIO<br />

UMA HISTÓRIA DE VERÃO<br />

Belo Horizonte, 2002<br />

Vitor Corleone Moreira da Silva<br />

2


Esse foi o primeiro livro mais extenso que<br />

criei. Certamente que algumas pessoas por<br />

motivos óbvios entenderão melhor e mais<br />

amplamente o romance que nessa obra se<br />

desenvolve.<br />

É uma obra que marca toda a minha vida,<br />

pela importância e pela possibilidade que<br />

encontrei de desenvolver a minha arte de maneira<br />

simples e direta. Houve felicidade na disposição<br />

dos elementos ao meu belprazer, em outras<br />

palavras, eu transei a trama e como fiz? Da<br />

maneira que eu bem entendi!<br />

Ruan descobre por Mary o verdadeiro amor,<br />

que não julga o que as pessoas foram, mas como<br />

elas são na atualidade.<br />

Jovens, descobrindo a vida de maneira tão<br />

diferente, sentindo na pele a influência do mundo<br />

exterior.<br />

A jovem Mary demora porém acaba por<br />

compreender a verdadeira essência do amor e<br />

Ruan aprende o sofrimento, e faz dele um<br />

ensinamento grandioso para a continuação da<br />

vida.<br />

3


Personagens<br />

Ruan<br />

Mary<br />

Giancarlo<br />

Augusto<br />

Vitor<br />

Gú<br />

Binha<br />

Tiago<br />

Márcia<br />

João<br />

Elizete<br />

Thais<br />

Edinalva<br />

Luciene<br />

Fernanda<br />

Gisele<br />

Frederico<br />

Tamires<br />

Ariel<br />

Nelzir<br />

Gomes<br />

Wanderley<br />

E outros...<br />

4


O UNIVERSO HUMANO<br />

5


AMOR DE VERANEIO<br />

Uma história de verão<br />

Primeira parte<br />

Capítulo 1<br />

Noite calma em Belo Horizonte. Três de Dezembro de 2001.<br />

É chegada a estação mais quente do ano. A aproximação da Terra à<br />

estrela que rege a vida dá existência a um novo ser. Subitamente, sem cor<br />

nem forma, ele se aproxima e trás consigo a essência da estação. Possui<br />

braços de fogo e olhos que se assemelham ao fruto do licoreiro.<br />

Bem no pátio da Escola Padre Matias, cenário de um encontro<br />

repleto de nervosismo.<br />

“Uma noite calma vem descendo sobre a cidade mineira, anunciando<br />

uma brisa enamorada que trás às nossas narinas o perfume selvagem das<br />

fêmeas da espécie.”<br />

O grupo de adolescentes que a percebe conversa no corredor do<br />

segundo andar do colégio.<br />

- E então Gú, a gente vai ou não vai lá?<br />

- Não sei. Vou ter que arrumar dinheiro essa semana. Sabe como é, mamãe<br />

e papai não dão mais não.<br />

- Fiquei sabendo que esse grupo de pagode não toca é nada. Né Salame?<br />

- Cê qui pensa mane. O pessoal sabe é muito não é Binha?<br />

- Mas é claro! Mas o que eu mais gosto é a cerveja, mulher vai ter demais<br />

e o pagode é só no passinho!<br />

- Ah é Ruan, você pode ir com a gente.<br />

- Ruan sair de casa? Rá, rá, rá...que piada heim Salame. Ruan ainda é<br />

criancinha da mamãe.<br />

- Rá, rá, rá...é mesmo aí Fred.<br />

- Qual é? Estão me tirando é? Pois eu vou sim, e já aviso que ninguém vai<br />

tomar mais golo que eu.<br />

- Duvido rapaz, tu nem sabe beber. E como vai fazer pra sair?<br />

- Ta tudo dominado, o pessoal lá em casa vai em um casamento, vou usar a<br />

desculpa de ficar jogando vídeo game e quando todo mundo sair de casa eu<br />

saio e deixo a porta do quarto trancada. Mas já aviso que ce não fica de pé<br />

Binha.<br />

- Vamos apostar então...<br />

- Ta apostado.<br />

- Olha só o professor chegando aí. Como é que é, vai rolar um truco já no<br />

primeiro horário lá no pátio?<br />

- Pra mim não vai dar não, ta quase no dia da prova e eu não sei nada<br />

ainda.<br />

6


- Ah que se dane Ruan, na hora a gente arruma uma cola.<br />

- Pode ser então, mas já que eu vou matar aula com vocês vou querer uma<br />

dica com aquele filé que tava olhando pra mim enquanto a gente<br />

conversava.<br />

- Filé? Bom, se você está querendo uma coisinha fácil beleza, mas filé já é<br />

demais aí...<br />

- Rá, rá, rá...olha só o Ruan...vamo logo gente, vamo que eu quero é jogar.<br />

- Olha lá ela saindo da sala, vai indo gente. Vai indo que eu vou falar com<br />

ela.<br />

- Pirou, aposto que vai levar uma cortada ou então o valor do aluguel.<br />

Então Ruan seguiu o corredor até a penúltima sala onde a<br />

adolescente havia acabado de entrar. Chegando perto da porta ela o viu, e<br />

ele fez um sinal de que queria conversar com ela.<br />

A moça revirava seus materiais em sua carteira e fez um sinal<br />

positivo com a cabeça.<br />

Retornou o jovem Ruan para o grupo que jogava baralho, sendo que<br />

um dos jovens escondido no canto fumava um cigarro.<br />

Os jovens esperavam ansiosos para tirar um sarro com ele. Mas<br />

poucos segundos depois ela chegou e interrompeu com sua presença o<br />

início da gozação.<br />

- Você disse que queria falar comigo?<br />

- A sós...vamos lá embaixo.<br />

- Vamos.<br />

Os dois desceram as escadas e foram para a parte mais escura do<br />

pátio do colégio.<br />

- Qual o seu nome?<br />

- Mary.<br />

- O meu é Ruan. Muito prazer!<br />

- Prazer...(risos)<br />

- Já faz um tempo que eu queria falar com você, e...<br />

- Você está nervoso?<br />

- Não...é que...você tem namorado? Alguém que você está ficando ou...<br />

- Eu não.<br />

- Ah, vamos namorar então?<br />

- Namorar? Mas não agora não é?<br />

- Bem...a gente dá um tempo pra se conhecer melhor...primeiro a gente<br />

conversa, fica e...<br />

- Tudo bem. Mas você é bem apressadinho heim menino?<br />

- Deixa eu tocar seu corpo?<br />

- Depende de onde...<br />

Adolescentes...nisso os dois já estavam praticamente abraçados e<br />

certamente que Ruan jamais havia tocado no corpo de uma mulher. A<br />

7


descoberta fascinante logo interrompida por um toque falso de requinte,<br />

classe e educação, mas que na verdade esconde o desejo humano.<br />

A evolução da vida! A descoberta de que é possível modificar o<br />

universo! O fascínio pelo desconhecido e pelos prazeres que a idade revela!<br />

Vícios, proveitos que se aproximam...<br />

- Eu queria te dar um beijo mas vai estragar o seu batom vermelho.<br />

- Depois a gente conversa. Nós estamos apenas nos conhecendo por<br />

enquanto, nem sei quem é você direito.<br />

- Na hora do recreio?<br />

- Tudo bem. Nós podemos conversar depois.<br />

- Vamos subir então.<br />

De mãos dadas os dois retornam pelo mesmo caminho por onde<br />

vieram até o pátio e, no segundo andar ainda aguardavam os colegas de<br />

classe de Ruan, gozadores como sempre, inevitáveis.<br />

- Então depois a gente se fala.<br />

- Ta.<br />

Seguiu-se de um amistoso beijo no rosto, o qual se tornou, dentro da<br />

sala de aula, único motivo de piadas do Binha, do Gú, do Salame, Fred e do<br />

Tiago, um aluno que faltava de aula mais que qualquer outro naquela<br />

escola. Um que tinha síndrome de Rambo e em tudo colocava um pouco de<br />

suspense e ação, até mesmo nas turbulentas aulas de biologia. O espírito da<br />

juventude é como uma massa sem forma, indefinida, e quando entra no<br />

jovem se modifica, se transforma e em cada um, de maneira diferente se<br />

manifesta.<br />

- Que vacilo heim Ruan! Desse jeito ela não vai querer nada com você<br />

não. Todo cheio de carinho. Cadê a sacanagem, a pegação?<br />

- Por que mane?<br />

- Ah é? Ela esperando você beijar na boca e dar o famoso tapinha e você<br />

dá aquele beijinho de amigo boiola...no rosto?<br />

- Rá, rá, rá...ele é muito fraco de idéia.<br />

Nisso se formou um pequeno grupo de conversa no fundo da sala e<br />

que por alguns minutos perturbou muito a concentração dos outros alunos,<br />

principalmente da quadrilha brega que apelidaram de “o quarteto” ou “as<br />

quatro”, que na verdade eram cinco: Thais, Elizete, Fernanda, Luciene e<br />

Ednalva. Podia haver um dilúvio no Padre Matias que elas permaneceriam<br />

nos seus lugares assentadas calmamente copiando a matéria, acho que<br />

nunca mataram uma aula, também acredito que quando perdem um ponto<br />

em alguma prova vão ao padre confessar o pecado. Detalhe é que são as<br />

maiores fofoqueiras do colégio e andam sempre juntas.<br />

- Como é que é? Essa conversa aí atrás vai ou não parar pra eu continuar a<br />

minha aula?<br />

- Pó, dá uma moral aí pro rapaz, professor. – disse o Binha.<br />

8


- Sem cvonversa na minha sala. Na hora do recreio vocês conversam o<br />

tempo que quiserem.<br />

- Cê é louco meu. Sussurrou o Tiago, também apelidado por nós de “o<br />

detetive”.<br />

Claro que o professor ouviu e reclamou da conversa, citando que os<br />

que tivessem interesse em sair da sala ele colocaria presente.<br />

Saíram seis rapazes. Os mesmos de sempre, para mais uma partida<br />

de truco no pátio da escola. Foram em meio a risadas e piadas, já era<br />

comum isso acontecer.<br />

O restante da aula correu normalmente, com as conversas já<br />

programadas entre os alunos mais sadios e que gostam de estudar, até que<br />

tocou o sinal do segundo horário.<br />

É comum nas trocas de professor que a gente deixe a sala de aula e<br />

fique no corredor. Supervisores falam que não é correto, que é necessário<br />

ter ordem. Eu porém tenho a opinião de que é muito desumano ficar cinco<br />

aulas diretas sentado naquela carteira dura e desconfortável. Somente o<br />

quarteto ousa fazer esse sacrifício árduo, sei lá, elas devem ter feito um<br />

pacto ou então são seguidoras de alguma seita estudantil rigorosa e<br />

conservadora. Nem se parecem adolescentes, sempre tão sérias e caladas. É<br />

o que eu havia dito anteriormente sobre o espírito da adolescência. Nelas<br />

parece ter se revelado um espírito ainda sem forma, ou então na forma de<br />

uma estátua.<br />

- E aí Ruan, não vai lá na sua garota vestida de rosa-choque não? Isso<br />

porque a tal Mary estava usando uma roupa rosa. Eu não comentei nada<br />

também pra não chatear o Ruan.<br />

- Isso é problema meu Gú, que coisa, me deixa quieto sô.<br />

O Gú também não havia sido visto com mulher na escola, e isso era<br />

um problema, pois pra ser popular naquele colégio o sujeito tem que ter<br />

lábia, caso contrário será sempre um anônimo no meio da multidão. A não<br />

ser que arrume uma briga na saída e que apareça viatura da polícia, também<br />

isso é um portal pra fama, e fama meus caros, é tudo!<br />

- É isso aí Ruan. Não vai na idéia desses caras não. – disse o Fred,<br />

namorado há algum tempo da Ednalva, o quinto elemento.<br />

- É mesmo, o Gú não arruma nada e ainda vem falar.<br />

- Isso aí Ruan, ele não arruma nada mesmo, mas aí, o que você falou com<br />

ela?<br />

- Ah, só conversei e, falei pra gente ficar hoje.<br />

- E ela.<br />

- Ela disse que sim. No fim da aula vamos subir juntos e aí se rolar.<br />

- É isso aí, vai fundo.<br />

- Vai fundo não, vai alto. Viu só o tamanho dela? O Ruan deve ter mais ou<br />

menos um e sessenta, agora ela tem uns setenta e quatro sem dúvida.<br />

- Isso é problema?<br />

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- Não seria se ela não estivesse de salto. Eu na verdade estava segurando<br />

pra não falar, mas na boa Ruan. A mulher é muito mais alta que você.<br />

Era a brecha que a sala precisava. Aula mesmo depois disso não<br />

houve, apenas piadinhas de baixo calão até que num dado momento a<br />

turma se calou, por inteiro, pois o professor começou a falar quanto faltava<br />

pra cada aluno passar em sua matéria. Choro, ranger de dentes, e por vezes<br />

alguma piadinha de algum aluno que estava liquidado e ouvia a nota de<br />

algum que estava pior.<br />

Por um instante compreendemos o que significava a frase de que no<br />

final haveria choro e ranger de dentes, agora isso faz sentido.<br />

Depois do choque, seguiram-se as outras duas aulas antes do recreio<br />

e o céu começou a se inflamar de nuvens carregadas. Tocou o sinal forte do<br />

recreio e todos saíram.<br />

- Aí Ruan, traz o baralho e fecha a porta que a gente vai fumar um cigarro<br />

escondido aqui na janela.<br />

- Toma aí, vai jogando que a segunda rodada é minha.<br />

O jovem seguiu de novo o corredor e chamou Mary para a prometida<br />

conversa que iriam ter.<br />

- É melhor a gente conversar no final da aula. É que estou um pouco<br />

ocupada com os exercícios e se eu não tirar uma nota boa minha mãe vai<br />

ficar brava comigo.<br />

- Tudo bem então, depois a gente se fala. Já que não tem remédio, eu vou<br />

ficar lá na minha sala com meus colegas até passar o horário do recreio.<br />

Outro beijo no rosto, dessa vez a pouco não seria nos lábios da tal<br />

Mary, o que provocou um certo alvoroço de pensamentos e suspiros nas<br />

três colegas de classe que estavam na sala dela.<br />

Ruan era genial nas coisas que fazia como estudante. Era bom nas<br />

chatas aulas de português e de inglês. Também gostava muito dos jogos de<br />

truco e por ter tamanha afinidade com o jogo, era essa a desculpa dos<br />

colegas para o desencaminhar e matarem aula.<br />

Era uma turma fadada a perder média: Ruan, Éder, Daniele, Salame,<br />

Binha e Gú.<br />

Um pouco frustrado por não ter conseguido falar com a Mary e,<br />

tentando esconder isso foi jogar. Para apagar o clima acabou aceitando dar<br />

um trago no cigarro que dois colegas fumavam na janela, pra que não<br />

ficasse cheiro na sala, apesar de ser inegável o efeito dele.<br />

Ruan já tinha fumado cigarro em na festa de final de ano mas aquele<br />

cigarro estava com um cheiro diferente, e parecia estranhamente agradável<br />

por não provocar tosse.<br />

Começou a chover e a chuva era brilhante, os raios pareciam cegar<br />

os olhos porém não provocavam dor, nem de relance um piscar de olhos.<br />

Um frio típico de verão, que convida a um abraço e uma noite a dois, claro,<br />

aqui a maioria jamais vivenciou isso, mas sentir é diferente de saber ao<br />

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certo como é a sensação. Adolescente todos sabem como é. Se justifica<br />

tudo com uma boa imaginação.<br />

Ruan percebeu mesmo que lentamente sua paquera ir por água<br />

abaixo levada pela chuva, jorrando pela rua da escola, levemente inclinada.<br />

O bueiro, um gargalo de expectativas que jorram e morrem, tal qual um<br />

buraco negro que consome estrelas no meio do universo.<br />

***<br />

No mesmo dia três de Dezembro, na mesma escola Padre Matias,<br />

final da aula. Vinte e duas horas e seis minutos.<br />

Muitos minutos atrás a chuva encerrou seu lamento sobre o bairro<br />

Glória, o que deixou Ruan ainda confiante, mas ao sair, a sala de Mary<br />

estava vazia.<br />

Quê restou ao jovem fazer senão ir embora aos seus passos<br />

silenciosos pelas ruas de nomes históricos que projetam sua casa à sua<br />

escola?<br />

No primeiro dia – o primeiro contato – nada deu certo para o rapaz,<br />

que há mais de uma semana sentia-se atraído por uma vontade que não<br />

podia definir, e que de certa forma parecia aprisionado ao sorriso daquela<br />

adolescente.<br />

Chegando em sua casa assistiu um pouco de televisão e depois<br />

dormiu, ainda se sentindo leve em virtude do ilícito e perigo das amizades,<br />

mas de fato pensativo sobre a razão de não ter dado certo o seu encontro ao<br />

final da aula, que pretendia.<br />

Capítulo 2<br />

O dia nasceu bonito, com a alegria emocionante dos bem-te-vis que<br />

voavam de galho em galho no pé de ameixa da casa da Janaina, vizinha de<br />

Ruan. O sol radiante recostava os punhadinhos de sombra que as telhas<br />

teciam e o pio dos canarinhos nas gaiolas lá na cozinha despertou de vez os<br />

remanescentes do sono.<br />

Depois de tomar café da manhã, Ruan foi arrumar seus materiais e a<br />

roupa do colégio, uma roupa fresca por causa do calor daqueles últimos<br />

dias.<br />

Quando abriu o bolso menor de sua mochila havia lá dentro um<br />

cigarro do mesmo que anteriormente havia experimentado na sala de aula,<br />

o que o perturbou. Ele sabia que um dos amigos havia deixado aquele<br />

cigarro pra que ele fizesse uso, mas logo de manhã? Em dúvidas, acabou<br />

vencido pela vontade do novo experimento e subiu pra cima da laje pois<br />

ninguém sabia que estava fumando.<br />

11


Como trem desgovernado as próximas horas passaram, agravando no<br />

tempo as ações praticadas pelos homens naquele dia. Quem foi trabalhar<br />

trabalhou, quem havia de matar ou roubar também o fez. Pecado ou<br />

santidade, amor ou ódio. Mais um dia de existência na extensa sociedade<br />

humana.<br />

Uma brisa sem forma e fresca anuncia a chegada das dezoito horas, e<br />

o aluno Ruan chega na escola pra mais uma noite de estudos, e outros<br />

afazeres importantes para um adolescente. Rua Célia Costa, recanto do<br />

velho “Padreco”.<br />

- Aí Ruan: sua mulher veio aqui te procurando. – Disse o Alex, que<br />

nós empre chamamos de Gú.<br />

- Ela veio aqui?<br />

- Saiu daqui agora. – Disse o Tiago, que nós apelidamos de Salame.<br />

- Vou lá ver o que ela quer.<br />

- Aí, gostou do pára casa?<br />

- Vocês não valem nada...<br />

Alguns passos o anunciaram, os quais a vida contou dezenove, à sala<br />

da Mary, a tal garota que ele conversou no outro dia.<br />

- Posso falar com você um minutinho?<br />

- Pode sim.<br />

- Vamos conversar no corredor.<br />

- Ta...<br />

- Meus colegas de classe disseram que você foi lá me procurar...<br />

- Eu não.<br />

- E então?<br />

- Bom...é que ontem eu fui embora por causa da chuva, até pedi pra<br />

uma amiga te avisar. Ela deu o recado?<br />

- Não.<br />

- Ficou com raiva?<br />

- Claro que sim. Podemos conversar hoje?<br />

- Ta. Mas no final da aula.<br />

- Tudo bem.<br />

Uma voz vinda do pátio do colégio assassina o discurso dos dois<br />

jovens:<br />

- Peguei no flagra hein Ruan?<br />

- Me deixa em paz peste.<br />

- Ô menina, cuidado com ele porque é tarado viu...<br />

- Ta bem.<br />

- To sabendo heim Ruan...<br />

- Quem é ela?<br />

- Aquilo ali é minha irmã Ariel.<br />

- Nossa! Olha como fala da irmã!<br />

12


- Bom! Depois então a gente se fala. Vou arrancar sua maquiagem<br />

toda.<br />

- Vai é?<br />

- Se é que pretende fugir de mim a hora é agora, porque depois você<br />

vai ser uma frágil coelhinha nas mãos de um lobo mal.<br />

- Nossa! Só quero saber de uma coisa: será que eu vou sobreviver?<br />

- Claro que não.<br />

- Ái...ái...me deixou com medinho.<br />

- Depois então nos vemos...quando esse medinho tiver virado um<br />

medão.<br />

Outros passos morosos reintegram uma labareda que se acendera.<br />

- E então Mary? Você vai ficar com aquele garoto?<br />

- Não sei Jaque, ele parece ser legal, não acha?<br />

- Parece um pouco novo pra você não? Você sempre preferiu ficar<br />

com homens bem mais velhos.<br />

- Vamos ver no que dá. Deixa eu ver a conversa dele, mesmo porque<br />

ele tem a minha idade e minhas últimas experiências com os mais velhos<br />

não estão me agradando não.<br />

E em outro canto da escola outros jovens conversam.<br />

- Eh Ruan...não ta dando mole mesmo heim? – Disse a Gisele, uma<br />

das colegas de classe.<br />

- Que nada. Aquela ali é só uma amiga.<br />

- Amiga né...sei. – Disse a Carol.<br />

A natureza adolescente é ridícula! Antes o Ruan não conversava com<br />

nenhuma mulher e a Gisele nem a Carol notavam que ele tinha um órgão<br />

reprodutor masculino. Ao contrário parecia um ente assexuado. Agora, ele<br />

conversa com uma garota e as duas ao mesmo tempo iniciam um<br />

interrogatório como se houvesse algum interesse.<br />

Verdade é que as duas garotas são bonitas de corpo. A Gisele meses<br />

depois engravidou de um rapaz que conheceu e a Carol foi morar junto com<br />

um outro rapaz que tinha um filho em outro caso.<br />

Depois desse fato começaram a conversar mais com Ruan, ao que ele<br />

pensou inclusive que ia rolar alguma coisa com a Gisele, mas ela era<br />

convicta de que ele ou qualquer garoto da sala não conseguiria<br />

proporcionar a ela nada do que gostava. Isso é fato constante nas<br />

adolescentes mais vividas ou que entraram cedo demais na vida lá de fora<br />

da casa ou da escola.<br />

- Ô Ruan, cadê o baralho pó, revirei sua mochila toda e não achei? –<br />

Disse o Binha.<br />

- Aí, demorou eu dar mais uma surra em vocês todos.<br />

- Então cai pra mão e manda as cartas. Vai Gú e eu contra você e a<br />

Daniele.<br />

- Vamos lá.<br />

13


Daniele era uma garota bonita de corpo que inclusive já despertou<br />

anteriormente interesse meu, sei que do Ruan também, e já devia ter ficado<br />

com algum colega. Era uma garota um pouco metida mas que gostava de<br />

matar aulas também e conversava com todo mundo. Ela era divertida. Às<br />

vezes parecia homem de tanto ficar no meio da gente jogando baralho.<br />

Fiquei sabendo que anos depois se casou e teve um filho com um rapaz<br />

mais velho que morava no bairro.<br />

Começaram a jogar lá na mesa do professor, lugar preferido por nós<br />

para as disputas mas o professor do primeiro horário interrompeu o jogo.<br />

- Depois a gente continua valeu Binha?<br />

- Ta seis a quatro pra gente viu?<br />

- Por enquanto.<br />

- Abram os cadernos que eu vou dar visto naquela atividade de<br />

ontem. – Disse o professor Américo.<br />

As horas foram passando nas estressantes aulas que precederam o<br />

encontro dos jovens. Antes de ir embora Ruan vasculhou a mochila pra ver<br />

se algum colega teria colocado algum outro cigarro na mochila, pois caso<br />

fosse abordado pela polícia como iria justificar aquilo?<br />

Não chegou a perguntar a nenhum colega quem tinha sido, afinal<br />

uma simples pergunta iria gerar algo maior, e outra que ele havia fumado o<br />

cigarro mesmo, então achou resolvido o assunto.<br />

***<br />

Belo Horizonte, mesmo dia quatro de Dezembro de 2001.<br />

- Vamos?<br />

Vinte e uma horas e trinta e sete minutos. Último horário de aula,<br />

todas as turmas saem cedo.<br />

Já na rua, caminhando abraçados pela Célia Costa, os dois jovens<br />

procuram se conhecer melhor...<br />

- O que você gosta de fazer?<br />

- Ah...eu não sou uma garota que gosta de sair não.<br />

- Eu gosto de lugares mais calmos.<br />

- Como o quê por exemplo?<br />

- Sei lá, parque municipal, Pampulha...meu quarto amanhã à noite, o<br />

quê você acha?<br />

- Deixa de ser tarado menino.<br />

- Você costuma ir à igreja?<br />

- Sim...duas vezes: no meu batizado e na formatura da quarta série.<br />

- Por isso que está travesso desse jeito.<br />

Por um momento param atrás de uma banca de revistas e inicia um<br />

clima mais íntimo, uma outra conversa, outras emoções.<br />

- Você me deixa louco!<br />

- Ta, mas controla onde vai essa sua mão viu?<br />

14


- Quero você toda pra mim, de corpo e alma.<br />

- Não Ruan, aqui não...vai passar alguém e te ver se esfregando em<br />

mim, não faz isso...<br />

- Adoro você demais. – Diz em sussurro ao ouvido de Mary.<br />

- Pára Ruan...vamos embora.<br />

Lá no céu a lua cheia despejava sobre a terra o seu brilho libidinoso,<br />

e as estrelas azuis purpurinavam o encanto límpido da brisa noturna.<br />

As pessoas dormiam ou estavam acordadas, os casais brigavam ou se<br />

amavam, etc, etc...e toda aquela ladainha de livro ou filmes que são<br />

necessários citar pra enrolar até passar o tempo. Quero ir logo ao assunto<br />

afinal não me contive de ansiedade.<br />

- Você é louco Ruan. Eu te conheci hoje.<br />

As árvores verdes do bairro dançavam canções de verão. Era verão<br />

escaldante! Os grilos faziam um show de orquestra e os vagalumes<br />

transformaram a grama em árvore de natal.<br />

Um espírito vagava aos quatro ventos e trazia a sensação de calor.<br />

Anjo não era por não ter santidade. Também não era um demônio por não<br />

odiar. Era só o espírito da estação, aquecendo os corações ao amor. Vagava<br />

e servia de calor, ressecando as bocas a se beijar.<br />

- Sempre quis alguém como você Mary.<br />

Aliciando os seres viventes ao mais íntimo toque e despertando<br />

sensações que afloram pelos poros da pele.<br />

- É melhor eu me arrumar e irmos embora.<br />

- Não, justo agora?<br />

- Já é tarde. Nós nem deveríamos ter vindo aqui hoje. Estamos<br />

apenas nos conhecendo.<br />

- Bom...se a gente pretende ficar junto pra sempre, não precisamos<br />

seguir as regras, não importa o tempo...<br />

- Menino travesso.<br />

- Vai aceitar meu pedido de namoro?<br />

- Sábado eu te dou a resposta.<br />

- Onde a gente vai se encontrar?<br />

- Pode ser aqui mesmo.<br />

- Vou dormir hoje só pensando em você, no que vai dizer.<br />

- Só que eu vou pensar muito viu? E até lá nesses três dias a gente<br />

vai se conhecendo...<br />

- Eu queria te falar uma coisa...você me deixa louco!<br />

- Olha, é melhor irmos embora porque já é tarde.<br />

Lá no céu a lua cheia despejava sobre a terra o seu brilho libidinoso,<br />

e as estrelas azuis purpurinavam o encanto límpido da brisa noturna.<br />

- Nós mal nos conhecemos Ruan, precisamos conversar mais.<br />

- Tudo bem! Vamos conversar então. Qual o seu prato preferido?<br />

- Ah sei lá.acho que lasanha. E o seu?<br />

15


- Toda mulher fala que o prato preferido é lasanha, mas eu duvido<br />

que seja lasanha mesmo. Mas o meu é tira-gosto de buteco com muita<br />

cerveja.<br />

- Ruan, pára. Vamos embora agora. Você está me enrolando. Já é<br />

tarde.<br />

Quando a noite desaba na cidade, as horas mortas da madrugada são<br />

a conferência da vida. É como se a brisa percorresse tudo, cada canto do<br />

mundo, só procurando saber se alguém ficou sem amar e levantar-lhe o<br />

santo desejo da solidão, vontade de amar sem ter amor.<br />

Capítulo 3<br />

Belo Horizonte, cinco de Dezembro de 2001 na pracinha onde os<br />

dois jovens namoravam depois das aulas.<br />

Mais uma noite quente de verão às vinte e duas e cinqüenta e seis<br />

minutos.<br />

- Mas por quê a gente não pode se ver amanhã Mary?<br />

- O meu querido! Amanhã eu quero ir na igreja. Tenho que confessar<br />

meus pecados...as burrices que eu já fiz.<br />

- Conta uma?<br />

- Ta bem...é que antes de eu te conhecer, eu namorei com um cara,<br />

chamado Wanderley. E...eu gostava muito dele, só que ele, o cretino, ficou<br />

com a minha melhor amiga...quer dizer, minha ex-melhor amiga. Eu fiquei<br />

com tanto ódio dos dois que eu quis fazer uma burrada.<br />

- O quê?<br />

- Tomar um montão de remédio pra...<br />

- Deixa...eu já entedi.<br />

- Então, foi isso.<br />

- Deixa eu te perguntar uma coisa?<br />

- Deixo sim.<br />

- Ainda gosta desse cara?<br />

- Por que está me perguntando isso?<br />

- Curiosidade e ciúme.<br />

- Você é ciumento?<br />

- Muito.<br />

O encontro prossegue com um demorado beijo que tira o fôlego e<br />

torna ofegante a respiração da moça.<br />

- Nossa! Quê isso? Até parece que é a última vez que eu vou te<br />

beijar. Está com medo de alguma coisa?<br />

- Não, não é nada.<br />

- Está bem Ruan...pode dizer o que foi...<br />

- É...bom, mudando de assunto...fale um pouco sobre sua família.<br />

Você tem irmão?<br />

16


Pois é Ruan. Nesse caso eu discordo de você. Quando você veio me contar<br />

isso eu sou de opinião que você deveria ter falado. Senão depois você fica<br />

cismado. Eu já te conheço a um tempão. Mas deixa pra lá...<br />

-Tenho sim. Um irmão já casado e se chama Edílson e uma irmã<br />

mais nova que se chama Tamires.<br />

- E seus pais?<br />

-Meu pai se chama Gomes e minha mãe Nelzir.<br />

- Eu tenho duas irmãs. A Ariel, aquela do colégio e a Bianca, a mais<br />

nova. Meus pais são João e Márcia.<br />

- Você se dá bem com eles?<br />

- Nunca. Se houver um dia de tranqüilidade lá em casa, pode ter<br />

certeza: no outro dia bem cedo ta todo mundo se consultando no médico.<br />

(Risos)<br />

- E você? Como é sua convivência em sua casa?<br />

- Ah, o que eu posso te dizer? Não muito bem com o meu pai, porque<br />

ele bebe muito sabe? E o Edílson também não muito bem por causa dessa<br />

burrada minha, que já aconteceu um tempo atrás.<br />

- É?<br />

- É que no lugar que eu e o outro cara nos encontrávamos o Edílson<br />

passava todo dia quando voltava pra casa. Ele detestava o Wanderley e,<br />

uma vez até brigaram.<br />

- Sabe o que eu fiz na noite passada, antes de dormir?<br />

- Não. O quê?<br />

- Estava pensando em você.<br />

- Bobinho!<br />

- Escrevi umas bobeirinhas pra você hoje à tarde, antes de ir pro<br />

colégio. Quer que eu leia?<br />

- Não...é melhor eu ler quando eu for dormir, assim eu vou ter<br />

sonhos maravilhosos! Vamos aproveitar essa escuridão pra fazer outras<br />

coisas...ficarmos juntinhos...<br />

Lá no céu a lua cheia (virando minguante) despejava sobre a terra o<br />

seu brilho libidinoso, e as estrelas azuis purpurinavam o encanto límpido da<br />

brisa noturna. A paisagem era escura mas havia calor como dia de sol<br />

radiante!<br />

Perguntas que ficam sem resposta são armadilhas da vida e<br />

permanecem lá, no caminho, se tornando motivo de queda para quem<br />

procura caminhar. São perguntas que possuem respostas obrigatórias, mas<br />

as peripécias do tempo tratam de brincar com os corações humanos, pois a<br />

queda nas armadilhas faz parte do aprendizado.<br />

É como se todo humano precisasse primeiro cair, desaprender o amor<br />

para depois prosseguir na vida.<br />

É a inoculação da dor! A vacina contra o sonho! Essa é a armadilha<br />

que fica lá no caminho, calada, só esperando o momento certo de fazer cair<br />

17


quem caminhava. Palavras que ficam esperando o que uma hora se<br />

responde, num gemido de dor, ou no silêncio do aprendizado.<br />

A juventude desabrocha a cada instante! O sangue que corre nas<br />

veias possui a liberdade, e se não possui liberdade se liberta pelo cansaço.<br />

O adolescente quer a todo custo fazer o que é proibido e viver<br />

libertinamente, vagar por aí só pelo prazer interior de fazer o que quiser da<br />

vida.<br />

Não muito longe dali, na casa de Ruan.<br />

- Vê lá se isso é hora desse menino estar na rua, com tanto assalto<br />

acontecendo. Você conhece essa menina Ariel?<br />

- Eu não. Só sei que é lá da escola e parece favelada.<br />

- Ah eu já vou deitar, o pior é que ele não leva chave e eu tenho que<br />

deixar a porta escorada.<br />

- Se fosse eu trancava e deixava ele chamando do lado de fora pra<br />

aprender.<br />

- Mãe! E a minha calça de escola?<br />

- Eu já deixei dobrada junto com a blusa Bianca, agora vai dormir<br />

senão você vai perder a hora amanhã.<br />

- Deixa ele, na hora que ele chegar vou ter uma conversinha séria<br />

com ele.<br />

Márcia, mãe de Ruan, é uma pessoa extremamente preocupada com<br />

tudo, tanto que se tornou possessiva ao fato de Ruan evitar o seu convívio.<br />

Talvez pela inexperiência em tratar com jovens, e Ruan estava na fase da<br />

adolescência, e quanto mais imposições e proibições ela fizesse, mais ele<br />

tentaria fazer as coisas. Proibir é a maneira mais dolorosa de autorizar, pois<br />

quem proíbe tudo vive sofrendo a dor da aprovação obrigatória.<br />

Márcia vivia numa prisão, um cárcere aberto. Uma forte mania de<br />

perseguição e super-proteção. Pensamentos antiquados para a atual<br />

realidade do mundo. Raciocínios tendenciosos à sua formação no interior<br />

do Estado, fruto da educação que teve dos pais Mariana e Gilberto. Uma<br />

pessoa que vive, mas acredita que tudo pode acontecer e que acredita que a<br />

sanção, que a proibição de tudo é a melhor maneira de proteger. Acredita<br />

poder proteger a todos, mas na verdade é um ser frágil e temerário.<br />

João já é uma pessoa desleixada que assiste qualquer filmezinho<br />

banal que esteja passando na televisão, por mais ruim que seja. Deixa – ou<br />

faz certa força para – transparecer certos sentimentos e emoções próprios<br />

de pessoa humilde e insatisfeita, principalmente no natal. Trabalha como<br />

vendedor e gosta de piadas – algumas ruins – e tenta sempre fazer as cobras<br />

que convivem com ele no bairro darem um sorriso a cada dia.<br />

Ariel já é uma pessoa fria e calculista, que mantém sempre o<br />

semblante tedioso e estressado. Se é que sente, ou já sentiu, amor, esconde<br />

muito bem. Se recebesse um elogio ou uma cantada na rua não duvido que<br />

revidaria com um insulto ao gavião. Freqüenta a igreja católica, mas como<br />

18


a maioria dos católicos desse bairro que eu conheço, não sabe nada sobre a<br />

essência da verdadeira religião, os mandamentos, a história bíblica. Tudo o<br />

que sabem são as canções dominicais e o que passa nos programas de natal.<br />

Bianca é uma pessoa interesseira e levemente gananciosa que<br />

idolatra o próprio corpo, bem mais do que a consciência. Gosta que os<br />

homens se encantem por ela para que ela pise neles e os humilhe.<br />

Eu lembro que conheci essas pessoas nas vezes em que tínhamos<br />

trabalho de escola e o Ruan convidava pra gente fazer na casa dele, então a<br />

gente fazia tudo bem rapidinho pra depois ir jogar bola na rua da casa dele.<br />

***<br />

Lá no céu a lua continuava a se transformar. As horas passam, e ela<br />

despeja sobre os dois corpos que estão fervendo mais e mais a cada<br />

instante, o seu brilho libidinoso. As estrelas azuis purpurinando o encanto<br />

límpido da brisa noturna...os dois jovens a se amar, no escurinho atrás da<br />

banca de revistas da praça, entre uma e outra carícia, beijos e abraços. O<br />

vapor que voeja daquele pedaço do mundo, encontra as luzes da cidade<br />

acesas e viram neblina no asfalto da rua.<br />

É alimento para o espírito da estação que por vezes passa por ali e vê<br />

que há o calor, há a excitação da alma e do corpo, e sendo assim, sua vinda<br />

está justificada.<br />

- Vai dar a resposta hoje?<br />

- É melhor sábado.<br />

- Hoje vai...<br />

- Calma! Me deixa pensar. Está na ponta da língua.<br />

- Então deixa eu arrancar essa palavra dessa língua quente.<br />

As sensações disparam numa situação corporal de impressionante<br />

acrobacia atrás daquela construção de metal. Como pode haver tamanha<br />

tensão corporal e hormonal entre os dois. Loucura esplêndida e arrogante<br />

da natureza pródiga e intrépida que cultiva o encanto tresloucado que é<br />

tesouro da vida de cada ser vivente?<br />

- Mary, vamos pra casa.<br />

- Tudo bem.<br />

- Posso te acompanhar até sua casa?<br />

Mary fica apreensiva e rapidamente nega, falando que seus pais não<br />

podem nem sonhar, dá uma porção de detalhes e fica nisso mesmo.<br />

E então finalmente repousa o brilho lunar que se esconde atrás da<br />

construção da escola. Já é tarde. Os dois arrumam suas roupas que se<br />

amassaram por causa dos abraços apertados.<br />

Já na rua que dá acesso à casa da jovem, os dois conversam, pois<br />

Ruan oferecera sua companhia insistentemente.<br />

19


- É melhor eu seguir daqui sozinha. Se o meu pai ver você ele vai<br />

criar a maior confusão.<br />

- Mas...e quando é que eu vou na sua casa? Vamos ter que namorar<br />

escondido?<br />

- Por enquanto sim.<br />

- Isso quer dizer que sua resposta ao meu pedido é sim?<br />

- Sábado eu te falo, já disse.<br />

- Bem, é que amanhã você não vai se encontrar comigo...poderia<br />

adiantar não é?<br />

- Ficou bravinho é? Mas não é que eu não queira, é que preciso<br />

mesmo ir à igreja tchu-tchuco.<br />

- Vou morrer de saudade!<br />

- Mas é bom...assim não vira rotina...e, o sentimento aumenta!<br />

- Amo você!<br />

- Te adoro!<br />

- Amo você!<br />

- Te adoro!<br />

- Te adoro!<br />

- Te adoro!<br />

- Quer parar com essa brincadeirinha boba?<br />

- Ô meu tchu-tchuco...fica bravo não, eu ainda vou te responder<br />

como você quer, algum dia.<br />

- Quando?<br />

- Bom, isso só quem pode dizer é o tempo.<br />

- Tempo, tempo pra quê?<br />

- Ora, essas coisas não são de uma hora pra outra não.<br />

- Quero você agora.<br />

- Até sábado tchu-tchuco.<br />

E então a jovem caminhou um quarteirão até chegar à rua de sua<br />

casa. Todos dormiam mas sua irmã acordou com ela trancando a porta.<br />

Após uma refeição um pouco apressada e escovar seus dentes, foi<br />

pro quarto ler o que Ruan havia escrito.<br />

- Conheceu outra pessoa Mary?<br />

- É...um cara do colégio que pediu pra namorar comigo.<br />

- E como ele é? Mais velho, mais alto...<br />

- Da minha idade e um pouquinho mais baixo do que eu.<br />

- O quê? Você está brincando não é?<br />

- Claro que não.<br />

- E você aceitou o namoro?<br />

- Mas como não?<br />

- Sério?<br />

- Ah Tamires...esse rapaz parece ser diferente daqueles outros que eu<br />

já namorei, esse é atencioso, romântico e parece ser legal.<br />

20


- Olha, é melhor você ter cuidado viu? Senão vai sofrer tudo de<br />

novo, você sempre apronta uma diferente. Quero só ver o que a mãe vai<br />

falar disso tudo.<br />

- Não precisa me lembrar disso Tami. Já é passado.<br />

- Mas eu só estou te alertando e...que papel é esse?<br />

- Nada, é só um rascunho de uma prova, eu estava jogando fora.<br />

- E você gosta dele?<br />

- Assim...gostar pra valer ainda não...mas com o tempo passando, a<br />

gente se conhecendo melhor...talvez...<br />

E na calmaria das ruas do bairro, Ruan caminha mas em determinado<br />

local é parado por dois amigos.<br />

Os dois bastante embriagados trazem cigarros e bebidas para<br />

tomarem na casa de um deles. Como era caminho da casa de Ruan ele os<br />

acompanha. Permanece por ali por um tempo onde tragam cigarros.<br />

A fumaça e o odor percorrem toda a extensão da rua, assim como as<br />

conversas altas no portão da casa.<br />

Depois de um tempo Ruan vai embora.<br />

É impressionante o silêncio do bairro repousando. O jovem cruza as<br />

ruas sentindo voar na mente pensamentos descompassados que nada<br />

significam.<br />

Os sonhos dos moradores do bairro parecem percorrer as ruas como<br />

um trânsito de cidade grande, tudo é muito confuso e sem importância.<br />

Sonhos cheios de simplicidade ou ganância. São tantos sonhos que os<br />

morcegos da noite voando a toda hora esbarram em algum deles e tentam<br />

se desviar dos demais.<br />

Chega a casa em silêncio. Todos dormem e não o percebem. Com<br />

calma ele tranca o portão da rua e a porta. Então como os que sonhavam<br />

nas casas do bairro quando ele caminhava pela calçada, Ruan dorme.<br />

***<br />

A aurora logo ilumina, nas folhas verdes o orvalho cristalino que<br />

caiu na madrugada passada. Ruan acorda e, à sua espera, como sentinela<br />

que protege o tesouro, Márcia:<br />

- Que bonito hein? Isso é exemplo pra dar às suas irmãs?<br />

- Me deixa em paz.<br />

- Na certa essa menina não tem mãe. Por que pra ela ficar na rua até<br />

de madrugada.<br />

- Você não tem nada a ver com essa história. A vida é minha.<br />

- Pois da próxima vez você vai dormir no quintal. Vê lá se isso é<br />

coisa que se faça. Com tanto assalto, tanta morte.<br />

- Cuida da sua própria vida entendeu?<br />

- Eu quero saber quem é ela.<br />

21


- Isso é problema meu. Acabou o assunto.<br />

Então Ruan bate a porta do banheiro e lá fora sua mãe continua a<br />

resmungar até se cansar. Depois de um tempo ela sai pra trabalhar e o<br />

jovem fica tomando o café.<br />

As discussões nessa casa não são novidade. Maneiras diferentes de<br />

pensar e agir, reunidas sob o mesmo teto, geram sempre controvérsias,<br />

além do quê a existência humana em sociedade nunca vem com um manual<br />

de instruções. Cada indivíduo possui o seu Universo Humano pessoal, e<br />

embora existam semelhanças entre todos os universos humanos, em todos<br />

eles há o elemento de conflito, que é o modo de pensar. Mesmo que os<br />

sonhos humanos de prazer e felicidade sejam parecidos, o modo de pensar<br />

é um bem único, não havendo dois modos de pensar absolutamente iguais<br />

em toda a humanidade.<br />

Ruan é um rapaz inteligente e que às vezes desconfia das pessoas.<br />

Sua alma é cativa e desperta um certo soluço híbrido de desejo e<br />

curiosidade no coração de qualquer mulher que tenha o mínimo de vontade<br />

de ser amada. Sua beleza não é aquela beleza estrangeira, de olhos e pele<br />

clara e cabelos mestiços, coloridos. Ao contrário, Ruan tem as feições do<br />

habitante local, filho da terra, raça brasileira. É um rapaz moreno, de pele<br />

corada, olhos tais quais o fruto do licoreiro, que dizem logo todas as coisas,<br />

pois não são olhos de falsidade. Um rapaz moreno que carrega no sangue<br />

as informações genéticas da origem do povo brasileiro.<br />

Ruan se vê atraído pela jovem Mary mas, será que entre eles pode<br />

realmente existir o amor?<br />

Mary é uma jovem namoradeira que sempre preferiu desde os<br />

primórdios de sua adolescência homens mais velhos. Uma certa desilusão<br />

trouxe então à sua alma uma tristeza profunda, a ponto de ter tomado<br />

remédios e quase entrar em coma.<br />

Muitas vezes uma experiência pela qual passamos em vida é o<br />

bastante para desencadear uma série de reações em nosso corpo,<br />

modificando nossa percepção de mundo e das coisas. Ora, se o Universo<br />

Humano é modificável pelo ser, a percepção e o modo de enxergar as<br />

coisas são tais quais o olhar sobre um horizonte numa manhã de sol, onde<br />

as montanhas calmamente se deixam seduzir pelos raios que cada vez mais<br />

as cortejam. Porém basta o fator das nuvens cobrirem o céu do mundo, e as<br />

trevas varrerem a alegria, deixando apenas a tempestade brava, as<br />

enchentes, os raios e trovões, e dependendo das nuvens jamais será visto o<br />

sol nesse lugar.<br />

Será a chuva o bastante para mudar uma mentalidade assim tão<br />

desvairada e inconseqüente? Lavar as manchas e deixar limpa a alma?<br />

Essa jovem se vê aprisionada a todas as pessoas que convivem com<br />

ela, por causa dos seus casos em vida, do seu passado desatinado. É uma<br />

pessoa sem a vontade própria que Ruan está tentando resgatar para a vida,<br />

22


por estar atraído por ela. Tenta passar ao mundo a imagem de uma pessoa<br />

calma e conformada, Mary não xinga nem faz guerra...ao contrário de<br />

Ruan.<br />

Na casa de Mary todos torcem pra que a jovem encontre um rumo<br />

certo pra sua vida e não um deslize após o outro.<br />

Gomes é um pai preocupado que ama seus filhos mais que a si<br />

mesmo, e que viu suas duas filhas jogando fora toda a ilusão do amor, e em<br />

parte a educação que lhes dera, devido às influências externas, à vivência<br />

em um lugar mais carente de recursos. Esbravejava com razão a cada erro,<br />

pois sempre Mary se envolvia com um cara pior que o outro, que apenas<br />

queria se aproveitar da jovem. Gomes desacreditou então que elas<br />

pudessem encontrar alguém de bem, uma pessoa cortês, bem afeiçoada,<br />

para namorar. Hoje é com ódio que enxerga qualquer um que se aproxime<br />

de suas filhas.<br />

Nelzir é uma mãe que apóia suas filhas, mesmo que estejam erradas.<br />

Foi assim em cada caso de Mary. A maneira rebelde e aventureira de Mary<br />

desperta em Nelzir admiração excessiva. Uma mãe que não impõe limites,<br />

apenas deixa viver.<br />

Tamires é uma garota jovem, porém é amante de um homem já<br />

casado. Por opção, já que existe um outro rapaz em sua rua que faria<br />

qualquer coisa por ela. É confidente fiel de Mary e tem um gênio difícil,<br />

onde costuma ficar constantemente aborrecida, mas são comportamentos<br />

típicos de adolescente.<br />

As pessoas que olham de fora tem uma visão diferente de uma<br />

favela. Quando passa um ônibus na rua principal do morro parece que<br />

aquelas pessoas que moram ali são parte de um cenário sem vida que os<br />

olhos só vêem na televisão. Tudo que a televisão fala vai desenhando no<br />

consciente das pessoas uma imagem, a rotulação daquele ambiente.<br />

É como se as pessoas pertencessem a outro universo, a outro mundo.<br />

***<br />

- Onde vai mana? Vai encontrar com o seu ficante?<br />

- Não, preciso ir na casa de uma amiga. Vamos colocar a conversa<br />

em dia.<br />

- Não vai sair hoje não, sei lá, ir em algum lugar?<br />

- Não, mas devo demorar um pouco. Faz um favor pra mim, se a mãe<br />

perguntar fala que eu fui na casa de uma amiga e que nós vamos à igreja.<br />

- Tudo bem. E o seu ficante? Ele já tem o número daqui?<br />

- Ainda não, mas eu avisei que eu ia sair hoje.<br />

- Então ta. Tchau!<br />

23


Capítulo 4<br />

Noite de verão na pracinha do bairro, onde os jovens marcaram de se<br />

encontrar para namorar.<br />

É cedo e hoje não teve aula, devido ao ritmo de final de ano onde<br />

todos aguardam impacientemente pelas desejadas férias de dezembro.<br />

O Ruan chega perfumado e com uma roupa fresca por causa do calor<br />

do verão e se senta no banquinho para esperar seu caso.<br />

O tempo vai passando e nada dela aparecer...nenhum sinal de Mary.<br />

Em seu relógio já marcam vinte horas e trinta e quatro minutos. Uma<br />

pequena nuvem de raiva toma conta de sua face, e esconde os olhos que são<br />

frutos do licoreiro.<br />

Ruan caminha.<br />

Como um frio assassino mata a alegria das ruas quando passa.<br />

Chega em casa e pega uma garrafa de cerveja que estava na geladeira<br />

e, enquanto toma, procura na lista telefônica o telefone de Mary.<br />

- Alô!<br />

- Quem fala?<br />

- É Mary.<br />

- O que foi que aconteceu?<br />

- Desculpa Ruan. É que eu tive que sair pra comprar umas coisas<br />

com a minha mãe, achei que ia dar tempo. Só que quando cheguei já era<br />

quase oito horas.<br />

- E não podia ter ligado?<br />

- É que eu achei que daria tempo, e como conseguiu meu telefone?<br />

- Deixa pra lá. Qual a sua resposta? Talvez melhore o meu humor,<br />

que está péssimo por sua causa.<br />

- Fica calmo sô. Esse seu jeito nervoso não resolve nada. Eu não te<br />

disse que ia dar a resposta amanhã?<br />

- Quero agora.<br />

- Não sô. Olha, ta na pontinha da língua, só falta coregem pra dizer.<br />

- Amanhã.<br />

- Pode ser às oito?<br />

- Pode.<br />

- Mas se eu ficar esperando de novo você vai ver só o que eu vou<br />

aprontar.<br />

- Prometo que não...e me desculpa viu?<br />

- É difícil...te amo!<br />

- Te adoro!<br />

- Te amo!<br />

- Te adoro!<br />

- Te adoro!<br />

24


- Te adoro, meu tchu-tchuco!<br />

- Poxa! Mas que dificuldade hein?<br />

- Espera tchu-tchuco, deixa o tempo dizer.<br />

- É que eu amo você!<br />

- É?<br />

- Então amanhã às oito viu?<br />

- Ta bem!<br />

- Tchau!<br />

- Tchauzinho tchu-tchuco.<br />

Aflorou-se nesse momento de raciocínio uma sentimentalidade<br />

mesquinha proveniente de ciúme.<br />

Ruan terminou de virar o último gole de sua bebida e logo após fez<br />

uma contração labial exprimindo tédio e insatisfação.<br />

Uma desconfiança sutil tempera os olhos castanhos amendoados,<br />

como paraíso do licor.<br />

Por qual razão escorre a linfa?<br />

Ruan chora no sentimento e recorda um antigo caso seu que não deu<br />

certo.<br />

O telefone toca.<br />

- Alô!<br />

- Alô, aqui é o Gú. A gente ta fazendo churrasco aqui em casa, corre<br />

pra cá que tem coisa boa.<br />

O que é pior: o crime ou o pecado?<br />

Qual seria a melhor definição de pecado? Talvez aquilo que uma<br />

pessoa faz e que prejudica uma ou mais pessoas.<br />

Qual seria a melhor definição de crime? Talvez aquilo que uma<br />

pessoa escreveu que é errado.<br />

E o quê fazer quando existe a crença de que há uma maneira lícita de<br />

pecar? Uma forma que se entende perfeita e aceitável.<br />

O amor não é um simples contrato, onde as cláusulas começam a<br />

vigorar a partir da aceitação. O sentimento é algo maior que um contrato.<br />

Ou será que Mary está certa? E se assim for o amor é um simples<br />

contrato que possui data para início e fim, e cláusulas que regem o<br />

funcionamento entre as partes?<br />

***<br />

E como forte tempestade o dia desaba sobre o bairro Glória,<br />

cicatrizando as coisas tristes que o tempo não apaga e nem faz chuviscar<br />

nuvem que não está carregada.<br />

Passada a tormenta Ruan sai pra pedalar com sua bicicleta cor de<br />

sangue pela orla da lagoa da Pampulha, um exercício que adora fazer nas<br />

manhãs de sábado.<br />

25


Mary acorda tarde e apressadamente vai cuidar de afazeres<br />

domésticos.<br />

Um suspiro de brisa encanta ao meio dia a ladeira Lima, onde chega<br />

uma mulher carregando uma sacola branca de supermercado e recebe a<br />

abordagem de uma pessoa conhecida.<br />

- Me conhece mais não Mary?<br />

- Oi! Tudo bem?<br />

- Deixa eu te ajudar a levar essa sacola até lá em cima...<br />

- Pode deixar. Não ta pesado não.<br />

- E então...como você tem passado?<br />

- Estou bem! Não poderia estar melhor!<br />

- Que bom!<br />

- E você? Como está passando? O que tem feito?<br />

- Só enrolando...<br />

- Que mal!<br />

- Ta afim de sair hoje comigo?<br />

- Olha Cleiton, não dá...é que...<br />

- Eu insisto! Vamos dar umas voltas?<br />

- É que eu...<br />

É uma pena que eu não saiba o que aconteceu depois dessas falas.<br />

Eles se distanciaram na subida da ladeira e até mesmo narrador de casos<br />

fictícios se cansa. Às vezes dá preguiça de imaginar subir uma ladeira tão<br />

íngreme, e por essa razão minha criação achou melhor ir descansar e evitar<br />

o cansaço da subida.<br />

***<br />

Noite em Belo Horizonte, no dia oito de dezembro de 2001.<br />

A mesma pracinha do bairro onde os dois jovens marcaram de se<br />

encontrar.<br />

Vinte horas e três minutos.<br />

Um sábado de lua minguante e céu misturado de estrelas e nuvens<br />

que projetam frio.<br />

Ruan sentado na escadaria da escola já aguardava por Mary a uns<br />

sete minutos.<br />

- Demorei tchu-tchuco?<br />

- Uma eternidade pra ser sincero.<br />

- Desculpa! Prometo que não faço mais.<br />

- Promete o que não vai cumprir não...<br />

- Ri, ri...seu bobo!<br />

- Posso te fazer uma pergunta?<br />

- Pode.<br />

- Qual é a sua resposta?<br />

- Se eu dissesse que não?<br />

26


- Eu ia ficar sobriamente entristecido.<br />

- Se eu dissesse que sim?<br />

- Explodiria de felicidade, de uma forma radiante que desde o<br />

primeiro dia maquiou meu coração.<br />

- Promete que não vai me magoar?<br />

- Tenho tanto medo de te perder que vou fazer o possível pra você<br />

me magoar primeiro.<br />

- Então a minha resposta é...<br />

- Espera: se sua resposta for sim, eu vou ser o namorado mais<br />

ciumento do mundo, isso quer dizer agir com grosseria em qualquer parada.<br />

- O que quer dizer?<br />

- Quem sabe...algum ex-namorado folgado ou um amigo mais<br />

íntimo.<br />

- Aceito.<br />

- Demorou...<br />

Prossegue então a cena de um beijo alegre e enamorado na noite<br />

triste de Belo Horizonte. O luar enrubescido já não mostra sua magia<br />

libidinosa e nem influi nas calmas poças d’água do jardim da praça.<br />

Os olhos castanhos de Ruan, que se assemelham ao néctar do<br />

licoreiro, e que observam tudo com frieza de felino caçador passam a<br />

observar o semblante de Mary, tentando desvendar seus pensamentos<br />

enquanto seus lábios se misturam na doçura de um afeto.<br />

Será que o tempo pode modificar uma alma rebelde como a de<br />

Mary?<br />

Onde impera as tempestades, pode um dia voltar a ver o sol abraçar o<br />

pico das montanhas?<br />

E então o encontro prossegue e os dois garotos vão tentando se<br />

conhecer melhor, mas infelizmente nenhum dos dois tem coragem de se<br />

abrir. Ruan por não querer falar que é um viciado que não resiste à bebida e<br />

diversos tipos de cigarro, e Mary por não querer trazer à tona o seu passado<br />

cheio de aventuras amorosas.<br />

Toca então um sino distante de igreja que apedreja dez badaladas no<br />

vento da noite, que vem da direção mar...<br />

- Tchu-tchuco, acho que é melhor a gente ir agora.<br />

- Mas tão cedo?<br />

- É tchu-tchuco...é que eu já estou com soninho.<br />

- Quando te vejo?<br />

- Segunda...é que eu não gosto de sair de casa aos domingos.<br />

- Por que?<br />

- É que domingo é um dia pra descansar.<br />

- De mim...<br />

- De tudo.<br />

- Vamos então.<br />

27


Na rua Cais Antigo Ruan se despede de Mary, como sempre e<br />

enquanto caminha pra casa encontra um conhecido que mora ali por perto.<br />

- Ora Ruan! Não sabia que você estava pegando a Mary.<br />

- O quê? Que conversa é essa?<br />

- É aquela lá na frente não é?<br />

- É sim, mas ela é minha namorada.<br />

- Você está de brincadeira. Isso é roubada rapaz!<br />

- Por que?<br />

- Pôxa cara! Aquela ali é a maior saideira lá de cima! Um monte de<br />

caras já ficou com ela, até cara casado.<br />

- Ah é?<br />

- É sim.<br />

- Vamos parar ali no bar do Adauto pra tomar uma cervejinha...quero<br />

saber dessa história.<br />

- Pô, demorou...minha garganta está sequinha!<br />

E depois de alguns minutos:<br />

- Pois é isso que eu estou te falando cara...toma cuidado com essa<br />

garota que ela gosta de cara mais velho, sempre foi assim. E ela é muito<br />

rodada.<br />

- Mas isso já aconteceu faz tempo não? Pelo que eu sei ela está mais<br />

na dela agora.<br />

- Sei não cara. Esse papo de que mulher conserta com o tempo pra<br />

mim não cola. Depois que a mulher cai no mundo não tem volta, aí vira<br />

lanchinho de todo mundo. Não conheço quem gostou da vida e depois se<br />

regenerou. É igual a gente com a cerveja, você ficaria sem tomar? Então,<br />

tire suas próprias conclusões.<br />

É incrível como às vezes uma conversa modifica tudo. O que era<br />

bom se torna ruim e o que era início se torna fim.<br />

Na manhã de domingo Ruan, por telefone terminou o namoro com<br />

Mary sem falar qual o motivo...verdadeiro.<br />

É de tarde e o vento vespertino se mostra. Ruan indeciso entre sair<br />

com os amigos pra ir no Descontrassamba e ligar pra Mary e contar tudo.<br />

Acabou decidindo ir no Descontrassamba e deixar a história pra lá.<br />

Porém tarde da noite quando chega liga pra ela e pede pra reatar o namoro.<br />

Arrependido e decidido a perdoar todo o passado dela. Mary entretanto<br />

aceita e o adverte sobre sua precipitação. Claro, ele havia inventado outro<br />

motivo para terminar. Mary nunca soube desse conhecido de Ruan que,<br />

assim como outras pessoas, falaram tão mal dela por causa do seu passado<br />

tão frenético.<br />

Agora, no alívio e na consolação do pouco de confiança que tem por<br />

ela, Ruan se tranca em seu quarto e deita na cama enquanto tudo gira, onde<br />

a sensação denuncia o quanto esteve bebendo nas horas passadas.<br />

28


A madrugada cai sobre a cidade repleta de prédios e nas veredas de<br />

tranqüilidade os viventes repousam.<br />

Mary que na verdade já estava dormindo quando Ruan ligou,<br />

pensava que o jovem sabia de alguma coisa que havia feito recentemente e<br />

que desaprovaria, porém não tocou no assunto. Iria esperar que ele<br />

manifestasse o motivo real de ter terminado com ela. Apreensiva, e<br />

sabendo que havia enganado o rapaz, onde no fundo sua consciência<br />

acusava com veemência, entretanto quem já havia mentido tantas vezes,<br />

seria apenas mais uma mentira.<br />

Além do mais ele também havia saído, e quem garante que não havia<br />

estado com outra mulher. Mary percebeu que ele estava bêbado, pelo seu<br />

modo de falar, e isso se tornou um motivo para que tirasse o foco de sua<br />

culpa, do seu erro, pois não havia aceitado o convite de Ruan para<br />

namorarem por estar ainda saindo com outro homem até a última sextafeira.<br />

Um que era casado e morava lá pelos lados da Lagoinha. Eu sei que<br />

um tempo atrás eu já o tinha visto de carro aqui perto do colégio na hora da<br />

saída. Lembro que uma garota loira do Primeiro ano sempre ia no carro<br />

dele depois da aula.<br />

Capítulo 5<br />

Mais uma tarde de verão em Belo Horizonte, dez de dezembro de<br />

2001.<br />

Hoje é a feira de cultura!<br />

Escola Padre Matias. Um alívio esplêndido que desaba sobre seus<br />

estudantes! Hoje é o último dia de aula. Todas as turmas do terceiro turno<br />

estão promovendo a anual feira de cultura com temas do oriente médio.<br />

O Vitor fez uma fantasia de Bin Laden muito legal, com barba de<br />

milho pintado e um lençol bordado. Detalhes perfeitos de maquiagem e<br />

barba pustiços...ficou igualzinho! Perfeito!<br />

Ele é um aluno mais na dele. Às vezes joga baralho com a gente mas<br />

gosta mesmo é de desenhar. Também escreve muito bem e já ganhou<br />

prêmios aqui na escola. Lembro que uma vez participou até de um<br />

concurso de grafite que uma vereadora fez nas escolas.<br />

- E aí Bin Laden! Ta pensando em explodir a escola?<br />

- Que nada Ruan! Talvez só a sala dos professores.<br />

- Aí, bem que você podia dar uma força pra gente. Nosso trabalho<br />

está muito ruim e você conhece muito de desenho.<br />

- Pode ser! Nosso grupo já está pronto mesmo, arruma pra mim<br />

algumas tintas e gliter que eu resolvo pra vocês rapidinho.<br />

O Vitor gostava de mexer com arte! Pra ele era diversão, e nos<br />

trabalhos de português e educação artística era sempre a referência da<br />

29


professora. Eles discutindo arte pareciam falar em outra língua, pois<br />

ninguém entendia nada do que estavam falando.<br />

Nossa sala foi arrumada no segundo andar. A sala da Mary ficou no<br />

primeiro andar.<br />

Ruan percebeu que sua namorada o estava evitando...mas não sabia a<br />

razão.<br />

- Escute: por que está se escondendo de mim desse jeito Mary?<br />

- Não meu tchu-tchuco. É que eu ainda não fui ver as outras salas.<br />

- Mentira. Você e a sua amiga Fernanda já andaram pelo colégio<br />

inteiro.<br />

- Quer que eu vá na sua sala?<br />

- Precisa não, você vai me encontrar de cara fechada mesmo, então<br />

não faz diferença se você for ou não.<br />

Ruan retorna pelo pátio da escola. Ao entrar na sala tem uma grata<br />

surpresa!<br />

- Nossa Vitor! Que desenho legal!<br />

- Quê isso Ruan, foi só um desenho que fiz rapidinho.<br />

- Nossa! Muito legal mesmo, vou ter que te pagar uma cerveja depois<br />

da feira.<br />

- Bom, só se for outra hora. Vou dar uma volta com a Aninha, aquela<br />

garota da oitava.<br />

- Beleza então, maior gata ela.<br />

Vitor era o tipo de pessoa descolada. Certamente que nessa feira<br />

cultural foi a pessoa mais focalizada, também era artista. A fantasia de<br />

Osama Bin Laden realmente estava chamando a atenção!<br />

Uma porção de garotas ficavam assediando ele.<br />

***<br />

Cada vez com mais vontade de deixar a escola e ir embora pra casa<br />

arrumar as malas pra viajar, ou então ir pra cima da laje soltar pipa, ou pra<br />

frente da televisão ou do vídeo game, os estudantes se apressam.<br />

Rapidamente a sujeira provocada pela ornamentação de cada sala é<br />

recolhida.<br />

Muitos alunos já foram embora, inclusive Ruan. Retornarão dia<br />

dezessete pra pegar os resultados.<br />

Ruan, enraivecido, nesse período de uma semana não ligou pra casa<br />

de Mary, e nem ela. Cada vez mais desacreditado nesse namoro tão<br />

conturbado.<br />

E as horas se desatinam e passam no tempo. Vindouros<br />

acontecimentos, efêmeros...oh, mansuetude propensa que reina radiante no<br />

reino das ventanias noturnas! Quando vem a saudade as artérias<br />

industriarias trabalham dobrado dentro de cada corpo lânguido. Quem é<br />

mais romanesco que esse vento gelado de um dia simples, um quatorze de<br />

30


dezembro qualquer, sem importância senão pelo que se vai almoçar ou<br />

jantar, talvez pelo programa que irá passar na televisão, ou onde o corpo<br />

vai se embriagar na noite belo horizontina?<br />

O sucedâneo para essa nostalgia de meu amigo Ruan, nostalgia feroz<br />

é simplesmente uma coisa: esquecer o que não será e procurar o que pode<br />

ser.<br />

Eu que antes era mais confiante nesse tipo de história já começo a<br />

desacreditar. Quando uma pessoa se acostuma com a noite, com baladas e<br />

com relacionamentos sem sentido e certamente sem futuro, é quase<br />

impossível de bom grado receber uma relação nova, em que prevalece o<br />

afeto. Essa Mary deve ser o tipo de mulher tão acostumada a ser usada<br />

pelos outros que não deve nem saber o que é ganhar um presente ou algum<br />

tipo de agrado. Mas também, outro dia ela recebeu uma carta e nem chegou<br />

a ler, amassando e jogando fora quando sua irmã apareceu pra conversar<br />

com ela.<br />

Capítulo 6<br />

Hoje é o dia da verdade para cada um de nós estudantes. É o dia da<br />

entrega do resultado final no colégio.<br />

Estava descendo a rua Cais Antigo quando encontrei Ruan de<br />

bicicleta.<br />

- E então...será que você vai me fazer companhia na repet~encia do<br />

ano que vem?<br />

- Que desânimo é esse? Você ainda nem pegou o resultado.<br />

- Intuição de atleticano.<br />

- Ah, sei. Igual aos campeonatos que vocês disputam...já entra<br />

sabendo que vão ficar no caminho...<br />

- Ih, não vem com essa não. Seu Cruzeiro também não está<br />

arrumando nada.<br />

- Também, só contratou aqueles pipoqueiros. Time bom era aquele<br />

de antigamente, e...<br />

- E sua namorada Ruan? Como vai?<br />

- Aquela cretina! Tem uma semana que eu não vejo ela.<br />

- Por que? O que aconteceu?<br />

- Você lembra no dia da feira, quando a gente estava arrumando a<br />

sala e tal?<br />

- Lembro sim, você até foi conversar com o Vitor e ele fez o desenho<br />

pro seu grupo, mas e aí?<br />

- Pois é, ela ficou me evitando o tempo todo. Até que eu cheguei nela<br />

e achei ruim. Xinguei ela e fui embora.<br />

- Pode ter sido apenas impressão sua não? Conversa com ela, vocês<br />

vão acabar se entendendo.<br />

31


- Mas ela nem me procurou.<br />

- Deve ter tido suas razões...<br />

Então chegamos ao colégio, me transformo de novo em apenas um<br />

coadjuvante do Ruan, que aparece no pátio com sua bicicleta.<br />

Numa escola de pessoas pobres um que tem uma bicicleta certamente<br />

é bem observado pelos demais alunos.<br />

Nos misturamos aos outros alunos para conversar e pegamos os<br />

resultados. Bom foi que eu consegui passar direto.<br />

Ruan foi falar com Mary para tentar se entender com ela. Será que<br />

meu conselho pode ajudar os dois? Ou será que cometi um grande erro?<br />

No outro dia na rua encontrei Ruan, e perguntei como foi sua<br />

conversa com aquela garota, que no fundo eu sabia que não era o melhor<br />

pro meu amigo.<br />

- Poucas pessoas estavam na sala dela. Parei então na porta e, quando<br />

ela me viu, veio falar comigo.<br />

- E aí?<br />

- Suas colegas vieram seguindo, de vela. Começamos a andar<br />

devagar pra que elas desconfiassem, o que aconteceu depressa.<br />

- Sei, mas conta aí...<br />

Eu demonstrava interesse no que meu amigo me contava, às vezes<br />

sentia que aquela história toda pudesse estar acontecendo comigo, e às<br />

vezes me colocava em sua pele.<br />

A adolescência é uma etapa da vida repleta de descobertas, e muitas<br />

vezes acabamos descobrindo da maneira mais difícil as coisas.<br />

- Por que você não me procurou depois daquele dia?<br />

- É que eu estava um pouco sem tempo tchu-tchuco...mas eu ia te<br />

ligar.<br />

- Não ia nada. Aposto que se eu não fosse te chamar na sua sala,<br />

acabava.<br />

- Mas eu também quis te procurar, ir na sua sala, mas faltou coragem.<br />

- Você é sempre assim tão passiva?<br />

- O que quer dizer?<br />

- Deixa pra lá.<br />

Descemos as escadas e, até esse momento eu não havia tocado nela<br />

sabe? Nem nas mãos para cumprimenta-la.<br />

- Aquela ali não é sua bicicleta?<br />

- É sim. Não posso deixar ela um segundo em um canto que algum<br />

engraçadinho pega pra dar uma volta.<br />

- Estou vendo.<br />

- Ô Paulo...já se divertiu bastante né?<br />

- Espera aí Ruan, só mais uma volta.<br />

32


Quando chegamos ao portão da escola, não sei se você lembra dessa<br />

parte, a Mary estava carregando uma sacola com verduras pra preparar para<br />

a janta. Nem sei se você percebeu.<br />

- Claro que percebi, mas e aí?<br />

Bom, peguei a bicicleta com o Paulo e subi conversando com a Mary<br />

e empurrando a bicicleta. Perguntei diversas vezes e por diversas maneiras<br />

por que ela não me procurou na semana passada, se não gostava mais de<br />

mim.<br />

Chegamos lá na Cais Antigo no lugar onde eu sempre me despeço<br />

dela e então conversamos mais.<br />

- Eu quis que nós déssemos certo, mas você não correspondeu.<br />

- Ruan, me desculpa eu ter feito você pensar aquilo. Eu não estava te<br />

evitando no dia da feira de cultura. Eu também não te procurei mas não foi<br />

porque não gosto de você. Eu gosto sim e muito!<br />

- Não parece. Você se esconde o tempo todo, não conta pra mim o<br />

que está sentindo ou pensando, suas vontades...mas que espécie de<br />

relacionamento é esse que não parece ter vida?<br />

- Desculpa Ruan, mas é o meu jeito de ser. Não é fácil pra mim as<br />

coisas sabia?<br />

- Tem certeza que gosta de mim?<br />

- Tenho! Gosto muito!<br />

- Então prova.<br />

- Provar? Como?<br />

- Diz que me ama.<br />

- Dizer? Aqui? No meio da rua? Agora? Mas...<br />

- Então você não gosta de mim e está só me enrolando. Na verdade<br />

eu devo ser só um passatempo que você usa na madrugada lá na pracinha<br />

pra te dar algum prazer.<br />

- Não tchu-tchuco. É que pra mim é muito difícil dizer essas coisas,<br />

você sabe.<br />

- Bom, então é melhor eu ir embora não é verdade? Tchau para você<br />

e não me ligue.<br />

- Espera Ruan.<br />

- Não temos mais nada pra conversar e você pode ir subindo a rua da<br />

sua casa.<br />

- Temos muita coisa pra conversar ainda.<br />

- Nenhuma coisa mais. Me desculpa só eu ter tentado ser o seu<br />

namorado viu? Tchau!<br />

- Ruan!<br />

- O quê?<br />

- Me dá uma chance? Vamos conversar?<br />

- Tudo bem, fala.<br />

- É que...eu quero ficar com você...porque eu gosto de você e...<br />

33


- Pela última vez, tchau.<br />

- Espera Ruan!<br />

- O que é?<br />

- Te amo!<br />

- O quê?<br />

- Você ouviu. Não me faça repetir tudo de novo.<br />

- Não ouvi. Fala o que é senão eu vou embora. Você fala pra dentro<br />

como se não estivesse conversando com ninguém.<br />

- Está bem, chega mais perto então.<br />

Finalmente toquei o corpo dela e a abracei.<br />

- Entendo, mas continua contando aí Ruan...o que aconteceu depois?<br />

Toquei o corpo dela, assim, meio que segurando a bicicleta com uma<br />

das mãos...<br />

- Te amo...<br />

E antes que ela concluísse a frase estávamos nos beijando e nos<br />

esfregando naquela esquina.<br />

Beijamos tanto que nossas bocas ficaram até marcadas e senti até o<br />

coração acelerado e as sensações de desejo aflorando. Um momento muito<br />

especial! Sabe, eu estou mesmo gostando dessa garota, mesmo sabendo dos<br />

casos que ela já teve, estou tentando ter um relacionamento legal com ela.<br />

Nossa respiração estava ofegante e confirmava nossa devoção<br />

hormonal às carícias do amor puro e verdadeiro.<br />

- Sei, mas conta aí...o que aconteceu depois?<br />

Hoje me encontro com ela pra entregar um poema que o Vitor<br />

escreveu pra mim, só que eu vou falar que fui eu que escrevi, sabe, eu tinha<br />

ido na casa dele pra pedir pra ele fazer. Eu sabia que ele não ia negar então<br />

aproveitei.<br />

- Deixa rolar então e vê no que vai dar não é?<br />

- Bom, mudando de assunto...e suas férias como estão indo?<br />

- Ótimas! Por eu ter passado de ano direto meus pais vão me mandar<br />

pro Rio de Janeiro.<br />

- Que beleza hein rapaz!<br />

- Pois é, e você, pra onde vai?<br />

- Não...eu vou ficar por aqui mesmo.<br />

- Nossa, você é caseiro demais Ruan. Tanto lugar legal pra passear e<br />

você não sai.<br />

- Não curto muito viajar não.<br />

- Bom, eu sim. Viajo hoje à noite. Quando eu voltar a gente troca<br />

umas idéias...vou querer saber das novidades.<br />

- Beleza! E quando você volta? Pra gente tomar aquele chopp lá na<br />

Abílio Machado?<br />

- Só em fevereiro.<br />

34


- Rapaz, mas é um tempão! Não quer levar suas mudanças de uma<br />

vez não?<br />

- Rá, rá, rá...só você mesmo Ruan.<br />

- Bom, então até a volta!<br />

- Vai aprontar nada de grava não hein?<br />

- Sei lá, mas se acontecer de você explodir, nem pensa em levar o<br />

ferro hein...deixa guardado na sua casa.<br />

- É claro que não né? Você acha que eu sou bobo de cometer o<br />

mesmo erro duas vezes?<br />

- Aquilo lá foi coisa pesada!<br />

- Deixa pra lá, já passou mesmo. Melhor deixar essa história toda de<br />

lado, afinal, foi merecido!<br />

- Então ta...vai nessa então meu camarada! Até a volta!<br />

- Até!<br />

Então eu vou pra casa, louco de vontade de chegar a hora de me<br />

encontrar com Mary, meu filezinho!<br />

Capítulo 7<br />

Saí pela cidade com uma enorme expectativa amorosa. Meu<br />

sentimento era pacífico e encharcava de orvalho o doce e sutil despetalar de<br />

flores que nos matinhos de beirada de calçada haviam.<br />

Carros passavam nas ruas mais movimentadas, algumas pessoas<br />

conhecidas me cumprimentavam.<br />

Meu coração saltitava como torcida de um time que está ganhando<br />

um jogo espetacular.<br />

Meu sorriso era espontâneo e a viveza retornava ao meu olhar<br />

enfraquecido por algumas tristezas recentes.<br />

Cheguei na pracinha do bairro e me sentei em um dos degraus da<br />

escadaria, fiquei esperando meu bem enquanto observava os carros<br />

passando de um lado a outro.<br />

Meu olhar volta e meia olhava para a esquina de onde ela surgiria, lá<br />

na rua Cais Antigo.<br />

Depois de um tempo ela apareceu. Seu rebolado seduzia as ondas de<br />

vento e seu batom era como tinta fresca de um quadro de Portinari!<br />

- Oi meu querido! Tudo bem?<br />

- Agora está bom! Muito bom!<br />

- Calma, vai com calma tchu-tchuco.<br />

- Por que filé?<br />

- É que eu estou um pouco cansada.<br />

- Eu...<br />

35


Sem aguardo de resposta alguma beijei seus lábios coloridos de<br />

batom por um longo período, sentindo somente sua respiração ofegar<br />

devido ao cansaço que apresentava.<br />

- Diz pra mim, o que te fez cansar tanto?<br />

- E...<br />

Novamente sem deixar que respondesse beijei, dessa vez com mais<br />

intensidade e demora.<br />

A lua nova estava escondida, porém soprava sobre nós, do oriente o<br />

seu suspiro libidinoso, e as estrelas azuis...<br />

- Não Ruan, sem muita intimidade.<br />

- Mas por que? O que houve?<br />

- É que nós estamos voltando agora e precisamos nos entender mais,<br />

e...<br />

A explicação de Mary não me convenceu e me deixou levemente<br />

cismado. Continuamos a namorar lá na escadaria da escola, na praça atrás<br />

de um arvoredo.<br />

- Você costuma ouvir conselhos?<br />

- Sim.<br />

- Não ouve não...conselho é ruim, faz mal.<br />

- Por que você está dizendo isso?<br />

- Uma coisa que uma pessoa disse pra mim.<br />

- O quê?<br />

- Não vou te dizer.<br />

- Por que?<br />

- Você não me diz nada sobre você.<br />

- Vai amarrar mixaria?<br />

- Vou sim.<br />

- Mas o quê você quer saber?<br />

- Conte mais sobre você, sobre sua casa, sobre seu passado...sei lá.<br />

- Olha, eu já te falei do meu passado. Antes de você eu tive um<br />

namorado, ele era um pouco mais velho que eu mas não deu certo.<br />

- Você só namorou ele?<br />

- É, por que está me perguntando isso? Eu já te falei uma vez.<br />

- Por nada.<br />

- E outra coisa, você está muito estranho! Está acontecendo alguma<br />

coisa?<br />

- Não, não é nada.<br />

Nosso encontro prossegue com momentos de afeto e carinho. Uma<br />

coisa porém eu tinha certeza: Mary não estava sendo sincera comigo sobre<br />

o seu passado. No fundo eu até tentava entender, pois acredito que seria<br />

difícil para ela falar que teve vários casos com pessoas mais velhas, alguns<br />

até casados. Levando por esse lado eu compreendi, mas esperava que uma<br />

hora ela se abrisse comigo.<br />

36


Eu tentava enxergar nela as qualidades, procurava coisas boas<br />

naquela garota, em detrimento das coisas ruins que me falaram. Afinal o<br />

passado é coisa que já aconteceu. Certamente que eu não aceitaria um erro<br />

no presente, afinal estávamos juntos, mas como eu falaria pra ela que eu<br />

não me importava com o passado e que ela não precisava esconder nada de<br />

mim?<br />

O grande problema é que a sociedade rotula demais as pessoas por<br />

causa das coisas que fazem ou deixam de fazer. Se a garota não sai de casa<br />

e não namora, ou é doente ou sapatão, mas se sai pra baladas e fica com<br />

homens é safada!<br />

O grande engano de todo homem porém é acreditar que a mulher que<br />

vai relacionar nunca foi beijada, ou nunca foi de alguém. É um grave erro,<br />

pois o amor não é propriedade ou contrato. Ao contrário, é sentimento que<br />

vem da alma. O corpo é apenas matéria. De certo modo, o que seria mais<br />

importante: uma ex-prostituta que se apaixona por um homem e decide<br />

largar a vida para se dedicar ao seu amor e somente a ele com todas as suas<br />

forças ou uma mulher virgem que não o ama e na primeira oportunidade irá<br />

trai-lo?<br />

O fato é que o que vem do passado é página já virada, mas o que é<br />

iminente isso sim é perigoso para o corpo e a alma.<br />

Eu penso assim, e por isso estou acreditando no relacionamento.<br />

Tudo isso eu tenho vontade de falar pra Mary mas ainda não tive a<br />

oportunidade, e não seria legal eu simplesmente abrir o jogo. Seria melhor<br />

se ela tomasse a iniciativa e falasse.<br />

***<br />

Deliciei-me com um momento extremamente erótico quando ela<br />

deslizou suas mãos, arranhando o abdômen com a direita em movimento<br />

descendente e ininterrupto. A carícia foi demorada e nesse instante seu<br />

coração saltou pela boca quando eu coloquei a língua em sua orelha e<br />

levemente acariciei entre mordidas.<br />

A alma gelou trepidamente e meus olhos tremelicaram pelos<br />

esfregões das unhas e o aperto dos dedos, deixando-se deslizar<br />

continuamente.<br />

Os beijos, ardentes...um tanto ardentes e apaixonados e que por horas<br />

se repetiram até que se encerraram as carícias mútuas que nesse espaço de<br />

tempo permitiram aos dedos saborear o sabor de estradas jamais<br />

percorridas.<br />

Era tarde, e uma brisa gelada percorria a pracinha, chegando ata atrás<br />

do arvoredo onde nós namorávamos, onde havia um banquinho de<br />

concreto.<br />

Nossos lábios estavam cansados e trêmulos de cansaço.<br />

- Meu melhor!<br />

37


- Melhor? Por que? Existe outro por acaso?<br />

- Ri, ri...sabia que você iria dizer isso.<br />

- Está querendo acordar meu ciúme?<br />

- Bobinho!<br />

- Escrevi umas coisa pra você.<br />

- Escreveu?<br />

- É sim, ta aqui.<br />

- Que bom! Vou ler quando eu for dormir.<br />

- E por falar em dormir...<br />

- Já é tarde né?<br />

- Se eu demorar muito, vou dormir fora de casa.<br />

- Então vamos.<br />

- É.<br />

Algum tempo depois, ao me despedir de Mary, dessa vez eu fui<br />

acompanhando ela até perto de sua casa, na entrada de uma favela.<br />

Alguns rapazes estavam na entrada de um beco observando. A Mary<br />

me disse pra não ficar encarando, que eles não iriam fazer nada.<br />

- Amanhã a gente pode se ver?<br />

- Podemos sim tchu-tchuco.<br />

- Às oito?<br />

- Tudo bem!<br />

- Então tchau.<br />

- Tchauzinho tchu-tchuco!<br />

- Sonha comigo.<br />

- Isso não.<br />

- Por que?<br />

- Senão acordo toda suada e ofegante.<br />

- Te amo!<br />

- Também!<br />

- Por que você não diz?<br />

- Te amo! Te quero! Te adoro!<br />

Então eu volto pelo caminho, e ao passar pela entrada do beco onde<br />

os rapazes estavam um deles me cumprimentou e perguntou as horas,<br />

sendo que ao responder ele agradeceu rapidamente e então continuei meu<br />

caminho.<br />

Fui embora pra casa. O caminho estava perfumado por dama-danoite,<br />

muito comum no bairro e alguns jasmineiros. Eu guardava no peito<br />

uma emoção sentimental, mesmo que incomodado com algumas coisas. Eu<br />

deixava esquecer e pensava apenas nas coisas interessantes para o<br />

momento.<br />

Meus passos pareciam seguidos por suspiros distantes de Mary e<br />

pairava em meus pensamentos esfogueados pela magia afável de suas<br />

carícias. Rocio amoroso que meu corpo lânguido poreja.<br />

38


Chego em casa e resolvo ligar pro Vitor pra agradecer mais uma vez<br />

pela poesia que escreveu pra mim.<br />

- Vitor, boa noite é o Ruan!<br />

- Olá camarada, o que conta de novo?<br />

- Queria te agradecer pela poesia. Eu estava com a Mary e entreguei<br />

pra ela.<br />

- Bacana! Aqui, eu estou saindo. Vou tomar umas aí no Carlão, não é<br />

muito longe da sua casa. Ta afim de ir não? A gente pode bater um papo á<br />

toa.<br />

- Vou sim, demorou.<br />

Depois de um tempo lá estava eu tomando uma cerveja com o Vitor,<br />

logo chegaram umas amigas dele mas eu não quis envolver. Eles iam lá pro<br />

centro pra uma boate. O Vitor curtia muito! Saia pra um monte de lugares,<br />

fazia umas poesias legais, desenhava. O mais importante é que não se<br />

prendia a mulher nenhuma, era o cara mais descolado que eu conhecia.<br />

Capítulo 8<br />

A vida acorda no embalo da maestria veraneia e sem vênia! O sol<br />

espalha seus braços de fogo pelo céu, esmaecendo a escuridão cheia de<br />

luxúria da noite passada.<br />

O crisol que requenta a química vital molda um olhar de licor, néctar<br />

do licoreiro.<br />

Os pássaros voam e cantam, as árvores festejam!<br />

A vida renasce com a aurora bonita!<br />

Inconseqüentes corações apaixonados que se ensoberbecem pela<br />

excitação de frenesi que encerra numa prisão de cárcere viril altamente<br />

interessante!<br />

A saudade mata...e a paixão ressuscita!<br />

Ontem à noite quando estava com Ruan senti que ele estava<br />

diferente. Eu evitei dar conselhos porque não adianta, quando um coração<br />

pestaneja ao erro as palavras de conselho são ineficazes.<br />

Paixão é algo perigoso! Nós deixamos muitas vezes de agir com a<br />

razão e absurdamente agimos com a emoção.<br />

Mas infelizmente é isso, e isso tudo vai de encontro a uma teoria<br />

pessoal de que as pessoas em muitas coisas se parecem, principalmente na<br />

busca pelo prazer, pois cada ser humano, embora diferente na cor, na<br />

estatura, no modo de pensar, idealiza um universo onde existe prazer e<br />

realização pessoal.<br />

É exatamente essa realização que o Ruan está buscando, porém em<br />

um relacionamento perigoso e imprevisível!<br />

***<br />

39


Belo Horizonte, dezenove de dezembro de 2001.<br />

Pracinha do bairro.<br />

Vinte horas e seis minutos.<br />

- Demorei tchu-tchuco?<br />

- Demais!<br />

- Desculpa? Perdoe? Não faço mais!<br />

- Dessa vez não aceito.<br />

- Dá uma chance pra eu hein tchu-tchuquinho, maravilhoso?!<br />

- Acho que não...<br />

- Mostra a língua pra mim então e diz que ta de mal.<br />

- Ah, é? Então eu to de mal e...<br />

É no beijo que despejamos as nossas emoções apaixonadas que vem<br />

do coração!<br />

Atos de afeto são sempre interessantes e importantes para o<br />

fortalecimento de uma união.<br />

Ruan se deixava levar pelo seu relacionamento com a Mary, e<br />

quando vinha aqui em casa pedir pra que eu escrevesse alguma coisa,<br />

colocávamos a conversa em dia e ele me contava. Ele realmente estava<br />

gostando daquela garota!<br />

- Nossa tchu-tchuco! Que beijo gostoso!<br />

- Estou com saudade do nosso sarro gostoso...<br />

- A gente não pode.<br />

- Por que?<br />

- Eu estou com um probleminha de saúde. Sexta-feira vou ao<br />

médico.<br />

- Sexta-feira? Que horas?<br />

- Na parte da tarde. Por isso acho que não vai dar pra gente se ver.<br />

- Nossa! De novo? Parece que você faz isso de sacanagem. Não tem<br />

uma sexta-feira que a gente se encontra. No domingo você já não sai de<br />

casa...daqui a pouco vai arrumar uma desculpa pro sábado também.<br />

- Calma tchu-tchuco, é que estou com um pequeno probleminha.<br />

Preciso ir no médico pra ver o que é.<br />

A noite prosseguiu com extrema calmaria aparente. Ruan e Mary<br />

conversaram bastante naquele banco de praça onde sempre se encontravam.<br />

Embora já tenham estabelecido um diálogo forte, um não sabe muito<br />

sobre o outro, onde pelo que Ruan me contou a Mary nunca perguntava<br />

muito sobre ele, sobre a família dele. Mary também evitava falar de si<br />

mesma.<br />

Era isso uma grande ameaça ao relacionamento dos dois.<br />

- Me responde uma coisa Mary?<br />

- Sim, o quê?<br />

- Sempre que passa alguém pela rua, ou você tenta se esconder me<br />

abraçando ou fica observando a pessoa que passa, por que?<br />

40


- Não é nada tchu-tchuco.<br />

- São conhecidos seus?<br />

- Alguns sim...são sim.<br />

- Estamos namorando escondidos de todo mundo?<br />

- Não tchu-tchuco, só do meu pai.<br />

- Então pára de se preocupar mais com o resto do mundo do que<br />

comigo, viu?<br />

- Mas...<br />

- Senão a gente pára por aqui mesmo. Já faz um tempo que estou<br />

observando esse seu comportamento bobo.<br />

- Não tchu-tchuco...<br />

- É sim. Se não quer que algum conhecido seu me veja, não namore<br />

mais comigo...se tem vergonha de alguma coisa.<br />

- Não tenho tchu-tchuco.<br />

- É melhor irmos embora, depois nos falamos. Vou te levar até perto<br />

da sua casa.<br />

- Não tchu-tchuco, vamos conversar. Não vou deixar voc~e ir<br />

embora com raiva senão é pior. Você vai querer terminar comigo de novo e<br />

eu não quero isso.<br />

- Por que?<br />

- Porque eu gosto de você.<br />

- Gostar não é amar.<br />

- Assim tchu-tchuco...eu sinto algo muito especial por você, mas não<br />

do jeito que você quer.<br />

- Por que?<br />

- É que eu já errei uma vez...e não quero errar de novo.<br />

- É que, se eu estou feliz, quero que outra pessoa se sinta feliz<br />

também, nesse caso você. E se eu te amo quero que me ame também, pra<br />

que eu não viva apenas a paixão.<br />

- Gostei da sua frase!<br />

- Obrigado!<br />

- Posso te pedir uma coisa Ruan?<br />

- Pode.<br />

- Me beija daquele jeito que você me beijou...<br />

É no beijo que despejamos as nossas emoções apaixonadas que vem<br />

do coração! A alma se agita e entoa as canções da sentimentalidade cada<br />

vez mais intensamente. Como é gostoso amar! Como é bom viver<br />

sonhando! Como é bom dar e receber uma carícia!<br />

Ruan deixou a Mary próxima de sua casa e ao voltar encontrou os<br />

mesmos rapazes na entrada do beco, dessa vez um deles o chamou e<br />

ofereceu um cigarro. Ruan acabou aceitando ao que o rapaz perguntou se<br />

estava ficando com Mary.<br />

41


- Ela é gente boa. Sempre morou aqui na comunidade, e você faz o<br />

quê?<br />

- Só estudo. Ainda não trabalho não.<br />

- isso é bom! Tem que correr atrás de estudo, senão não dá nada que<br />

presta.<br />

- Pois é.<br />

- Aí, precisa ficar preocupado não. Pode entrar aí na comunidade<br />

tranqüilo que ninguém vai mexer contigo não. Nós estamos aqui só na<br />

contenção sabe? Ce sabe como é né? Malandro na rua tem pra todo lado.<br />

- Aí cada um guarda o que é seu e a correria continua. Mas ninguém<br />

vai mexer contigo não.<br />

- Beleza!<br />

- Aí, leva mais um. Qualquer hora cola com a gente, a gente faz um<br />

churrasco lá em cima no morro.<br />

- Beleza.<br />

Duas horas da madrugada. Vários minutos atrás os dois jovens foram<br />

para suas casas. No meio da noite Ruan desperta com um pesadelo sobre a<br />

Mary.<br />

Um incômodo, sensação de horror. O jovem suado e com a<br />

respiração ofegante.<br />

Percebendo que era apenas um sonho ele acorda e vai até a cozinha<br />

tomar um copo d’água, depois volta a dormir.<br />

As horas passam e o dia amanhece.<br />

***<br />

Mesma cidade, vinte horas e dezenove minutos de um sábado.<br />

Depois de muito esperar, tomado pela desistência, Ruan vai embora.<br />

Outra vez ficou esperando por Mary em vão...decidido a não perdoar de<br />

novo mais essa falha.<br />

- Alô?<br />

- Quem fala?<br />

- Tamires.<br />

- Chama a Mary pra mim.<br />

- Só um minutinho Ruan.<br />

Então é ouvido um discurso longe do telefone:<br />

- Vai lá atender. Ri, ri, ri...<br />

- Eita...hoje ta danado!<br />

E ainda sorrindo atende o telefone.<br />

- Alô?<br />

- Quem fala?<br />

- Mary.<br />

- Por que me deixou esperando de novo?<br />

- É que eu estava muito ocupada tchu-tchuco...<br />

42


- Não me chama assim nunca mais.<br />

- Por que? O que aconteceu?<br />

- Quem foi que ligou pra você, que a sua irmã estava falando?<br />

- Ninguém.<br />

- Então qual é a graça?<br />

- É que a Tamires é boba assim mesmo, uma hora está com raiva,<br />

outra hora está alegre demais...quem agüenta?<br />

- Ou então estava debochando de mim...<br />

- Não...<br />

- Não adianta tentar explicar nada não, eu já entendi...e tem uma<br />

coisa, cansei de insistir com você, cansei de ficar esperando. Você só pode<br />

ter outro.<br />

- Mas que cara criatura?<br />

Então o telefone é desligado, e Ruan sobre pra cima da laje pra<br />

acender o cigarro que foi dado pelos rapazes do beco.<br />

E por que o coração aceita amar?<br />

Tendo na angústia o olhar de Mary, a sua alma chora e as<br />

lamentações de uma batalha perdida.<br />

O coração entristecido se despedaça em mil partículas e a alma<br />

murcha como se fosse um balão perfurado.<br />

Os olhos de Ruan envelhecem e se tornam saborosos para a solidão,<br />

que se deita com ele, que namora sua face, já sem muita lucidez<br />

observando as estrelas que parecem brilhar mais que o normal.<br />

Cansado da vida! Tantos machucados reservados pelo destino tão<br />

ingrato. Quê fazer agora para reconstruir o coração com as mil partes que<br />

se desprenderam e caíram ao chão.<br />

Alma chorando por causa do amor.<br />

Capítulo 9<br />

As cortinas se esmaeceram na janela, deixando o horizonte<br />

completamente desnudo e os braços de fogo do sol de verão amando<br />

intensamente cada metro quadrado da dimensão do mundo. Brisa<br />

vespertina tranqüila acariciando o suor no rosto de quem está na labuta,<br />

festejando a possibilidade social de produzir para ter o acesso ao pão.<br />

Ao abrir os olhos, o juízo da vida se revela, e da forçosa preguiça<br />

surge o sol do estio.<br />

Coração adoecido de Ruan levanta do seu repouso de dor.<br />

Tristezas, saudade e a aflição de quem inicia um projeto, de quem se<br />

lança em direção a um obstáculo procurando supera-lo. O obstáculo era a<br />

busca da felicidade, mas sinceramente, a adolescência é uma fase muito<br />

conturbada! Amar nesses tempos é suicídio da alma e do coração.<br />

43


Por ser poeta eu finjo, e até mesmo nas duas cartas que escrevi para o<br />

Ruan não havia sentimento, apenas a transcrição do fingimento da alma. E<br />

é provado que o coração se ludibria quando ama. A miragem envolvente do<br />

engano seduz e machuca, explora e danifica.<br />

Ruan passa agora pelo casarão das dúvidas. Será que foi rude demais<br />

com Mary? Poderia ela estar falando a verdade, afinal com tanta<br />

naturalidade estava encarando os fatos?<br />

Ela era sempre tão passiva e conformada! Poderia alguém ser tão<br />

fingida, mais que um poeta?<br />

Será que o dom da mentira se espalhou a tal ponto que essa jovem<br />

aprendeu a lição, como quem entende a arte?<br />

- Alô?<br />

- Quem fala?<br />

- Tamires.<br />

- Oi, como é que você está?<br />

- Olá Ruan! Tudo bem! E você?<br />

- Bem...mal! sua irmã está em casa?<br />

- Não...ela deu uma saidinha.<br />

- Melhor, assim nós podemos conversar sem interferências.<br />

- Conversar? Nós dois?<br />

- É. Sobre umas coisas, pode ser?<br />

- Tudo bem, mas não estou entendendo...aconteceu alguma coisa?<br />

- Sabe se a Mary gosta de outro rapaz?<br />

- Que eu saiba não...só de você.<br />

- Estou falando sério Tamires, ela é muito passiva, muito conformada<br />

com tudo.<br />

- Eu também.<br />

- É porque naquele dia a gente brigou e...<br />

- Ah sim...e você achou que eu estava zombando de você, não é<br />

senhor Ruan?<br />

- Sim.<br />

- Mas não era isso não viu? E desculpa se eu deixei você pensar<br />

aquilo, mas é que aquele dia eu estava um pouco feliz. Acabei fazendo uma<br />

brincadeira com a Mary. É que meu namorado tinha acabado de me ligar...<br />

- Namorado?<br />

- Bom...é quase namorado, é um caso sabe?<br />

- E por que ela não me procurou?<br />

- É que esse é o jeito da Mary. Ela ficou com vergonha de te<br />

procurar. Olha que eu até falei pra ela te ligar mas ela é boba demais, não<br />

toma iniciativa nas coisas!<br />

- Você falou? Que gentil!<br />

- É, pra você ver. Eu acho que hoje ela ia te ligar.<br />

- Por que você acha?<br />

44


- É que ela anotou o número do seu telefone na mão antes de ir pra<br />

casa da minha tia.<br />

- Ah, sim...ela foi na casa da tia dela? Está bem, vamos ver o que<br />

aquela cretina vai fazer. Outra coisa, é melhor ela não ficar sabendo que eu<br />

liguei pra você não, está bem?<br />

- Pode ficar tranqüilo que eu não comento.<br />

- Tomara. Estou contando com você viu?<br />

- Pode ficar sossegado que não vou falar nada.<br />

- Bom...então até mais!<br />

- Até mais Ruan!<br />

Almas confusas bombardeadas pela explosão do tempo!<br />

É verão! É adolescência! É amor!<br />

Um amor de verão que se assemelha a um amor de carnaval, e nem<br />

mesmo estamos nos tempos de carnaval. Nem é tempo da Mangueira<br />

desfilar, mas os amores de carnaval nascem, vivem e morrem a cada<br />

instante. É o universo adolescente, sem rumo nem lei, mas cheio de<br />

vaidade!<br />

Pode do caos inicial se cultivar uma boa semente? Semente que não<br />

se sabe se é boa ou ruim, que não se sabe se poderá gerar bons frutos. Mary<br />

não é exatamente o ideal de amor que um adolescente pode querer. Na<br />

verdade não existe amor adolescente, apenas sonhos e castelos construídos<br />

sobre a areia movediça ou sobre a praia. Vem o vento e desaba tudo, vem a<br />

chuva e varre os destroços.<br />

Deita-se no regozijo das horas uma ansiedade indulgente que aclama<br />

os delíquios da razão humana. Ruan aguarda a ligação de Mary e isso se<br />

concretiza às quatorze horas e doze minutos.<br />

- Alô!<br />

- Quem fala?<br />

- Aqui é o Ércio...você quer falar com quem?<br />

- Esse telefone não é do Ruan?<br />

- Espera aí que eu vou chamar ele.<br />

***<br />

“E por alguns segundos esperei que ele viesse atender o telefone.<br />

Não posso de maneira alguma dizer que o amo, mas até hoje foi a única<br />

pessoa sincera que eu conheci! Gosta de mim de verdade, não quero<br />

desaponta-lo. Sei o que é ficar magoada e sei que também posso magoar.<br />

- Alô!<br />

- Tudo bem?<br />

- Tudo péssimo!<br />

- Por que?<br />

- É que estou pesadamente desiludido com uma certa pessoa que só<br />

fica brincando comigo.<br />

45


- Escuta Ruan: eu gosto é de você, quero ficar com você, e com<br />

nenhuma outra pessoa mais.<br />

- Como posso ter certeza disso?<br />

- Ora...se eu estou ligando pra te pedir pra voltar comigo...<br />

- Mentira, foi a sua irmã que falou que eu liguei.<br />

- É, isso também.<br />

- Então quer dizer que ela falou mesmo? E olha que eu insisti pra ela<br />

não falar.<br />

- Ah, Ruan...fala sério. Até parece que você não sabia que ela ia me<br />

contar.<br />

- É verdade!<br />

- Sim. Mas hoje eu iria te ligar. Acredite ou não.<br />

- Tudo bem...não acredito.<br />

- Mas é verdade criatura!<br />

- Diz alguma coisa bonita pra mim que eu acredito.<br />

- Mas aqui?<br />

- E por que não?<br />

- É que minhas tias podem ouvir.<br />

- Ou vai ou racha.<br />

- Ta bem! Te amo, te adoro, te quero!<br />

- Não convenceu.<br />

- Ruan, I love you! Assim está melhor?<br />

- É...de dez você tirou um seis.<br />

- Ah, Ruan! Você não é brincadeira não!<br />

- Eu amo você!<br />

- Também!<br />

- Olha...não vamos ficar mais brigando, vamos nos entender de uma<br />

vez?<br />

- É só você parar com essas bobagens que você fica pensando e<br />

cismando o tempo todo, seu ciúme...<br />

- É que você é muito quieta, isso me incomoda. Eu tenho medo de<br />

perder você. Pra mim não importa o passado, nem o meu nem o seu. O que<br />

vale é o presente, o que importa é o agora. Mas fico inseguro demais.<br />

- Eu sei. Mas o que você acha que eu devo fazer pra te dar essa<br />

segurança que você quer?<br />

- Não sei Mary. Não posso ficar também te dizendo tudo que eu<br />

quero senão você nunca vai despertar e ter um pouquinho mais de iniciativa<br />

pra fazer as coisas pra mim.<br />

Claro que, seria mais fácil gostar do Ruan se ele fosse mais velho,<br />

mais experiente, mais alto. É esse o tipo de pessoa que desde pequena<br />

idealizei como amor e depois de um tempo é realmente difícil!<br />

Me sinto como uma cadela poodle envolvida com um cachorro de<br />

outra raça depois de sempre ter me relacionado com poodles.<br />

46


Não o vejo como o ideal de parceiro que minha cabeça já se<br />

acostumou.<br />

Essa minha sensação de fragilidade...<br />

Eu me sentiria mais segura com uma pessoa mais velha, a proporção<br />

do elemento que excita...<br />

A realização dos sentidos...<br />

O sentimento da dominação e da passividade...<br />

Nasci para ser uma mulher frágil e delicada, mas mesmo que eu lute<br />

contra isso, o meu corpo e minha alma se realizam do proibido e do que<br />

provoca sofrimento. Eu realmente me acostumei a sofrer.<br />

- Eu queria me encontrar com você pra gente conversar mais à<br />

vontade.<br />

- Amanhã...pode ser?<br />

- Pode. É que dia vinte e cinco todo mundo daqui de casa vai sair.<br />

- Onde vão passar o Natal?<br />

- Na casa de um tio meu, lá no bairro Veredas.<br />

- E quando voltam?<br />

- No mesmo dia. O meu pai não gosta muito de ficar na casa dos<br />

outros não. Ele é muito caseiro e não gosta de visitar nem de ser visitado.<br />

Não me arrependo da minha vida. Da minha adolescência.<br />

Tudo o que já aconteceu comigo nesses anos não dá pra negar que<br />

me deu prazer e realização, mesmo que o final seja sempre trágico.<br />

Meu primeiro caso foi com doze anos de idade e ele era bem mais<br />

vivido do que eu. Isso se tornava interessante pra mim! Me fazia sentir uma<br />

pessoa mais madura, mais adulta!<br />

Algumas pessoas costumam falar mal de mim por causa das minhas<br />

aventuras. Eu ingressei na adolescência de maneira brusca e não tive tempo<br />

direito de assimilar as coisas, apenas fui vivendo, deixando levar pelas<br />

experiências que a vida me proporcionava.<br />

Estou procurando recuperar parte do que eu perdi com a minha vida<br />

corrida, os erros cometidos no passado, pois alguns dos próprios homens<br />

com os quais um dia me relacionei são os que me difamam.<br />

Hoje eu me sinto como uma mulher adulta, uma velha, no corpo<br />

hostilizado de uma criança.<br />

Às vezes até freqüento a igreja tentando justificar parte dos meus<br />

pecados, mas meu coração não é puro, nem a minha alma possui a mesma<br />

pureza de quando eu era criança e tinha sonhos sobre a vida.<br />

- Você tem certeza de querer voltar por que me ama de verdade<br />

Mary?<br />

Estou procurando uma forma de consertar a minha vida.<br />

- Eu tenho Ruan. Claro que sim.<br />

- Por que demorou a dizer?<br />

- Nada não tchu-tchuco.<br />

47


Aprisionada ao meu mundo inferior, eu sou assim. Todas as pessoas<br />

tem milhões de motivos para me humilhar e zombar de mim. Ainda não me<br />

curei do espírito malicioso que me faz assim. Só o que me faz recuar é o<br />

receio.<br />

Me sinto uma viciada em drogas, bebida ou cigarro, tentando se<br />

livrar do vício acorrentada em uma cama quando os olhos tem a<br />

oportunidade de ver em cima de uma mesa vários produtos e a sentada em<br />

um dos bancos a face do desejo.<br />

Isso me tira o merecimento à felicidade. Não sou como qualquer<br />

mulher que sonha, a minha realidade é passiva demais para permitir o<br />

sonho.<br />

- Puxa! Eu tenho andado tão triste nos últimos dias!<br />

- Eu também tchu-tchuco. Pensei que você poderia estar com outra<br />

mulher.<br />

- Foi isso que você pensou?<br />

- É tchu-tchuco. É que você estava com raiva de mim, e pra se<br />

vingar, poderia...<br />

- Não. Eu gosto é de você!<br />

- Ri, ri! Eu sei.<br />

- Então por que não me procurou?<br />

- Faltou coragem. É que eu sou uma menina muito tímida!<br />

- Ou então não gosta de mim de verdade.<br />

- Claro que gosto tchu-tchuco, intensamente!<br />

- Vai ter que provar então viu?<br />

- Como você quer que eu prove, meu bem?!<br />

- Isso é com você.<br />

A felicidade existe! Nós só precisamos saber encontra-la e preservar<br />

sua grandeza e seu esplendor.<br />

Nada se compara a um bem querer verdadeiro!<br />

Acredito que eu vou aprender a amar como deveria. Uma hora eu sei<br />

que vou conseguir.”<br />

- Outra coisa também tchu-tchuco: você precisa confiar mais em<br />

mim, assim como eu confio em você.<br />

- Difícil...depende muito de você.<br />

- Como assim?<br />

- Tenho medo que você se apaixone por outra pessoa, que tenha<br />

alguma coisa com outra pessoa, ou...<br />

- Isso é bobeira sua! Eu quero é você!<br />

Só o Ruan não percebe que Mary jamais mudará o seu modo de ser e<br />

de pensar, para se transformar naquilo que ele considera o ideal de amor.<br />

Eu até mesmo desconfio que ela está do mesmo jeito. Eu não<br />

comento nada com ele, deixo as coisas acontecerem, mas estou até<br />

arrependido de ter ajudado ele escrevendo aquelas duas cartas. Eu deveria é<br />

48


ter sido mais um a falar mal dela, mas agora já é tarde. Não resta nada a<br />

fazer senão esperar pra ver no que esse amor de verão vai dar.<br />

O saboroso defeito do pecado é algo que seduz o corpo e a alma.<br />

- Estou me sentindo tão carente! Queria te ver agora.<br />

- Eu também meu tchu-tchuco. Mas amanhã a gente se vê.<br />

- Só que até lá já terei morrido de saudade.<br />

- Mas você pode me ligar quando quiser.<br />

- Então eu ligo.<br />

- Aí se dermos sorte, não vai ter ninguém por perto e, nós poderemos<br />

falar mais à vontade, de coisas mais empolgantes!<br />

- Olha que isso dá até vontade.<br />

- Pois é.<br />

- Mas e aí, como foi lá no médico?<br />

- Ah, ainda bem que você tocou nesse assunto. Estou com uma<br />

pequena infecção.<br />

- O que aconteceu?<br />

- Olha, depois eu te explico pessoalmente. Falar essas coisas por<br />

telefone é meio chato. Só que estou tomando remédios, e dia sete eu volto<br />

no médico.<br />

- Dia sete? Mas isso é uma eternidade!<br />

- Pois é, mas o que eu posso fazer?<br />

- Nossa, mas é muito tempo.<br />

- A gente dá um jeito de continuar se vendo, só que tem que ser<br />

diferente. Olha tchu-tchuco, vou ter que desligar. Depois a gente conversa.<br />

- Tudo bem!<br />

- Não vai se esquecer não hein!?<br />

- Acha que eu sou louca? Sabendo que meu tchu-tchuco ia ficar com<br />

raiva de mim?<br />

- Tomara.<br />

- Então tchauzinho tchu-tchuco.<br />

- Amo você!<br />

- Também!<br />

- Tchau.<br />

“Desligo o telefone e vou pra casa. Meu pai estava sentado no portão<br />

e fez uma piadinha obscena sobre o tempo que eu tinha ficado conversando<br />

no telefone com minha namorada.<br />

***<br />

É segunda-feira, véspera de Natal. Cidade enfeitada onde se nota nas<br />

varandas das casas várias luzes piscando, músicas, preparativos para a ceia.<br />

Eu estava com pouco dinheiro, apenas quinze reais. Procurava um<br />

presente pra Mary na lojinha perto de casa. Gostei de um perfume que vi,<br />

49


tido como afrodisíaco. Era mesmo! Comprei o tal perfume, nem lembro o<br />

nome, e fui pra casa embrulhar. Então liguei pro Vitor e pedi pra ele<br />

escrever pra mim uma poesia, eu disse que pagaria mas ele falou que não<br />

precisava.<br />

Umas três horas depois ele passou lá em casa pra me entregar. Tinha<br />

ficado muito legal. Ele colocou umas letras douradas igual daqueles<br />

convites de casamento, na verdade parecia um próprio convite de<br />

casamento.<br />

***<br />

As horas passaram...<br />

Belo Horizonte, vinte e quatro de Dezembro de 2001.<br />

Véspera de Natal. A cidade está iluminada!<br />

Praça do bairro, vinte horas e dois minutos.<br />

Pela primeira vez Mary chegou primeiro que eu. Vai chover!<br />

- Oi meu tchu-tchuquinho!<br />

Prosseguiu a cena de um beijo ardente que derreteu em nossas bocas<br />

a bala de menta que eu vim chupando pelo caminho.<br />

- Nossa que beijo!<br />

- Te aviso uma coisa filé: se você vacilar te mando bala.<br />

- ‘que coce vai faze co resto Genaro meu bem?’<br />

- Aproveito não é ‘Maria Chiquinha’?<br />

- Tira essa mão daí Ruan.<br />

- Só quero te sentir.<br />

- Esqueceu que estamos de castigo?<br />

- Eu não, você.<br />

- Você também.<br />

- Chata!<br />

- Hum...chata...olha o beicinho dele.<br />

- Comprei uma lembrancinha pra você.<br />

- Ô gente, não precisava. Muito obrigada!<br />

- E escrevi umas coisinhas.<br />

- Olha, eu já estava com saudades dessas suas poesias. Tomara que<br />

essa seja mais alegre que as outras, não é?<br />

- Você me ama?<br />

- Sim.<br />

- Se você estiver mentindo, vai achar triste.<br />

- Ah então eu vou morrer de rir...porque te amo demais!<br />

- Não acredito. Como vai me provar?<br />

- Assim ó...<br />

Finalmente a Mary me deu um beijo de língua verdadeiro. Meu<br />

corpo se excitou de ponta a ponta e um libido fervente começou a tomar<br />

conta de alguns locais. Nossas salivas se misturaram e, eu sentia a língua<br />

50


dela tentando puxar a minha língua pra dentro de sua boca e repeti o<br />

mesmo gesto. Uma carícia maravilhosa! Minhas mãos começaram a roçar<br />

pelo corpo dela, e as mãos dela pelo meu. Mary começou a sussurrar<br />

baixinho e num movimento me chamou pro escurinho da banca de revistas<br />

pra ninguém nos ver esfregando um no outro.<br />

Pediu para acariciar sua nuca com minha língua, então a abracei por<br />

trás para realizar seu pedido.<br />

Mary usava uma blusinha e uma saia. Apenas isso!<br />

Prosseguiram momentos de carinho e amor. O corpo dela começou a<br />

ficar muito quente, eu acariciava sua nuca com a língua enquanto que<br />

minhas mãos viajavam por sua cintura durante o namoro. Ela se deliciava<br />

com o momento, intensamente.<br />

Mary pela primeira vez estava gostando ao máximo que uma mulher<br />

deve gostar de um homem em certas ocasiões.<br />

Um momento de liberação de corpo e alma, as múltiplas sensações<br />

do amor sem a temporalidade, onde tudo ocorre num só instante. O tempo<br />

já não existe, só o prazer e a realização do amor.<br />

Duas senhoras passaram pela praça cochichavam em voz baixa em<br />

relação ao vulto de nós dois que sentiram na parte escura e pelos sons das<br />

nossas conversas.<br />

Nesse instante as cortinas se fecharam , anunciando o fim do<br />

espetáculo do nosso namoro. Agora o palco está coberto e as luzes<br />

apagadas.<br />

Os cabelos rebelaram porém as mãos ajustam o penteado.<br />

Levei Mary até sua casa e dessa vez me despedi no portão.<br />

Mary me prometeu passar o reveilon comigo lá em casa. Todo<br />

mundo vai sair e eu sou um pouco desanimado com esse tipo de coisa.<br />

Festa boa pra mim não é aquela cheia de conversa e falsidade, pessoas<br />

reparando nos outros, no modo de falar e de se vestir.<br />

Festa boa mesmo é a que tem muita bebida e comida e que ninguém<br />

está ligando pra nada senão em encher a cara.<br />

Como esse ano não estou animado em sair o melhor seria a Mary ir<br />

lá pra casa mesmo.<br />

Abriu-se então um sorriso no meu rosto e me despedi.<br />

Eu amo a Mary!<br />

Quando eu desci as escadas do beco, vinha andando pela rua e um<br />

dos rapazes que ficava no outro beco me cumprimentou. Ele disse que seu<br />

colega foi baleado na semana passada. Disse que passou uma moto na rua e<br />

que ao parar eles pensaram que era algum conhecido, então o carona deu<br />

três tiros na direção deles mas só acertaram o outro.<br />

Perguntei se ele havia morrido e me respondeu que não, mas estava<br />

internado em coma.<br />

51


Depois, enquanto eu vinha caminhando pensava: como pode a Mary<br />

morar num lugar como aquele? Cheio de violência e drogas. Muita pobreza<br />

e coisas típicas de favela. Todo aquele cotidiano de privações e exclusão<br />

social.<br />

Capítulo 11<br />

Nos outros dias nós vivenciamos a calmaria de um relacionamento<br />

restrito, com muito diálogo. Eu me iludia com a promessa da Mary de<br />

passar o reveilon comigo.<br />

Passei no mercado que tem perto da escola, comprei várias comidas<br />

gostosas pra que pudéssemos fazer uma festa legal!<br />

Não nos arriscávamos em carícias pois Mary reclamava de dores,<br />

tomava remédios receitados pelo médico.<br />

Era 31 de dezembro de 2001.<br />

Acordei bem disposto e com um belo vigor para a vida!<br />

Fiz a barba e as unhas, arrumei o quarto, para passar o reveilon sem<br />

sujeira no meu quarto. O resto da casa já estava limpo, só meu quarto que<br />

era um dilema.<br />

No toca-fitas do meu aparelho de som repousava uma fita contendo<br />

algumas das canções mais bonitas de todos os tempos, só esperando a<br />

virada de ano e a Mary.<br />

Deixei uma garrafa de champanhe no congelador porque a geladeira<br />

não está gelando bem. Essa garrafa deve assistir a tudo de camarote, em<br />

cima do criado-mudo onde duas taças se esfregam de ansiedade.<br />

Todos saem. Vão passar a virada de ano na casa do Luciano, um<br />

amigo de minha irmã.<br />

Depois de tomar um banho demorado, passo um óleo de amêndoas<br />

que sempre gostei de passar.<br />

Então eu saio pra encontrar com Mary.<br />

A Mary disse que iria na igreja hoje, mas prometeu chegar à pracinha<br />

até as vinte e uma e trinta.<br />

O tempo vai passando e nada da Mary aparecer.<br />

Então depois de esperar muito eu fui embora, vendo meu reveilon ir<br />

por água abaixo.<br />

Cheguei em casa e abri o champanhe, tento esfriar a cabeça. Resolvo<br />

ligar pra casa dela.<br />

- Alô!<br />

- Quem fala?<br />

- É Nelzir.<br />

- Ela já foi.<br />

- Foi onde?<br />

52


- Se encontrar com você.<br />

- Essa não. Se ela aparecer por aí fala que é pra ela ligar pra mim ta?<br />

- Tudo bem!<br />

Então eu saí de novo em direção à pracinha. Ficava a uns cinco<br />

minutos da minha casa. Com uma lata de cerveja na mão.<br />

Cheguei na praça e fiquei esperando a Mary.<br />

Passaram-se vários minutos, então desisti de vez.<br />

Quando estava indo embora, passei no bar do Adalto e tomei duas<br />

caipirinhas fortes. Fui pra casa e abri outra lata de cerveja. Quando comecei<br />

a tomar liguei pra Mary.<br />

- Alô.<br />

- Quem fala?<br />

- Mary.<br />

- Por que fez isso comigo?<br />

- Ô meu querido, me desculpa, foi sem querer...é que a igreja acabou<br />

um pouco tarde então eu me atrasei.<br />

- O que está fazendo agora?<br />

- Ah eu to aqui em casa, desenhando um coração numa garrafa de<br />

refrigerante.<br />

- Que belo programa de final de ano heim?<br />

- Pois é, não é?<br />

- Então faz o seguinte: continua fazendo o que você está fazendo,<br />

parece que é mais importante do que se encontrar comigo não é?<br />

- Olha Ruan: eu já te pedi desculpas, não foi culpa minha...fica calmo<br />

que você está muito nervoso!<br />

- Como você quer que eu fique calmo? Não é a primeira vez que<br />

você faz isso.<br />

- Me perdoa.<br />

- Não. E tem mais: vê se não liga mais pra mim, porque eu vou fazer<br />

o mesmo.<br />

- Ruan, espera Ruan...<br />

Então desliguei o telefone público e fui tomar minha cerveja. Deu<br />

uma vontade de fumar então peguei um dinheiro que estava na gaveta do<br />

armário, nem sei de quem era mas amanhã eu arrumo um dinheiro e coloco<br />

lá de novo.<br />

Quando voltei fui lá pra cima do telhado e quando passava a virada<br />

do ano eu estava apreciando as luzes brilhantes que chegavam a ofuscar os<br />

olhos. Eram os foguetes da virada de ano. Dava pra ver daqui a queima de<br />

fogos na Pampulha. Eu estava sentado fumando, e tinha muita bebida.<br />

Nessa hora passava pelo céu e eu podia ver. Era um céu bordado de<br />

estrelas e a nuvem passava silenciosa, desejando levar para longe as muitas<br />

promessas do ano novo. O emprego melhor, a promoção, o amor ou a<br />

vergonha na cara...tudo isso desejado pelo povo.<br />

53


Tentei fazer um desejo mas era muito difícil. Eu estava sorrindo e me<br />

divertindo daquela barulheira, aquela gritaria toda e aquelas luzes.<br />

Por fim desci da laje e fui pra cama. Isso foi logo depois da nuvem<br />

desintegrar no céu.<br />

Desabei na cama decidido a não ligar mais pra Mary.<br />

É o adeus do ano velho e feliz ano novo...”<br />

Capítulo 12<br />

Pra felicidade geral, Ruan ligou pra casa da Mary. E isso foi hoje<br />

depois que ele esteve aqui em casa.<br />

Se encontraram de noite e conversaram bastante. Prometeram não<br />

brigar mais.<br />

Já não estavam mais tão ligados um ao outro, relação machucada e<br />

ambos tentavam disfarçar isso.<br />

O Ruan não acompanhou Mary até sua casa. Arrumou uma desculpa<br />

e a jovem foi caminhando sozinha.<br />

No caminho ela encontrou um antigo caso seu chamado Márcio...<br />

- Oi Mary, como vai você?<br />

- Estou bem! Levando a vida, e você?<br />

- Estou bem! Ta indo pra casa?<br />

- Estou sim, é que eu estava com o meu namorado.<br />

- Você está namorando?<br />

- Estou, já faz um mês que estou com ele.<br />

- E os rolos, você...<br />

- É melhor a gente mudar de assunto...não, na verdade eu já vou<br />

subindo.<br />

- Mas e se eu...<br />

E por questões de ética – desculpem – não posso reproduzir o<br />

restante dessa conversa, infelizmente minha amiga Paula não ouviu tudo lá<br />

da sua varanda que fica na rua Cais Antigo.<br />

Mas fique claro que eu não estou mentindo, e se alguma semelhança<br />

for achada com pessoas ou acontecimentos reais, não terá sido mera<br />

coincidência.<br />

Afinal sou escritor, e minha arte é escrever. Mesmo quando o fato é<br />

real.<br />

Mas ta, voltando ao assunto. O Ruan seguia pela rua a caminho de<br />

casa, foi quando encontrou duas amigas que voltavam da locadora da rua<br />

Guararapes.<br />

- Oi Ruan! Como você está?<br />

- Estou bem! E vocês?<br />

- Estamos ótimas!<br />

- Nossa! Que alegria é essa?<br />

54


- É que nós alugamos esses filmes, e vamos assistir lá em casa.<br />

- É que meus pais saíram e aí nós vamos poder ficar lá sem problema<br />

deles ficarem controlando o que a gente assiste.<br />

- Bom...então bom filme pra vocês. Depois vocês me contam como<br />

foi ta?<br />

- Você nunca viu desses?<br />

- Não, mas vocês me falam se é bom...depois de repente eu alugo.<br />

- Tenho uma idéia melhor!<br />

- Vem ver com a gente...não tem ninguém lá em casa mesmo.<br />

- E tem uma garrafa de wisky que o meu pai ia jogar fora, aí a gente<br />

guardou pra experimentar. Ele falou que ia parar de beber. Ela ta lá no<br />

nosso quarto guardada.<br />

- E aí Ruan, vai ou não?<br />

Bom, mudando de assunto...a cidade vivencia um momento de<br />

modificação cotidiana. A festa do reveilon já se desfez e as pessoas<br />

retornam a viver normalmente.<br />

Tenho grandes expectativas pra esse ano de 2002! Que seja muito<br />

melhor que o ano passado em todos os sentidos, que nossa economia<br />

prospere, que a mortalidade diminua e que a seleção seja campeã do<br />

mundo, afinal em 98 foi uma vergonha, perder a final daquele jeito!<br />

***<br />

“Oh céus! Como fui deixar que a minha relação com a Mary se<br />

transformasse nesse caos sentimental? Eu cometi um grande erro hoje, e sei<br />

que nesse instante ela pode estar fazendo o mesmo que eu, errando.<br />

Por que o amor é tão difícil? O que restou da boa promessa?<br />

É verão! Sinto dor pelo orvalho que caiu nas plantinhas da casa das<br />

garotas. Encharcou a relva e os insetos festejavam. Eu vi pela janela essa<br />

cena enquanto penteava o meu cabelo pra ir embora pra casa.<br />

Depois que cheguei em casa me senti arrependido de muitas coisas.<br />

Comecei a pensar na vida, no meu passado. Não se pode mudar as coisas,<br />

apenas nos basearmos nelas para planejar melhor as nossas ações no<br />

presente.<br />

Nós dois nos distanciamos por duas semanas. Não nos vimos, apenas<br />

trocamos ligações vez ou outra.<br />

Decidimos nos encontrar hoje, dia dezessete, para conversarmos.<br />

É verão mas sinto o inverno dentro de mim. Tudo é tão frio e sem<br />

sabor.<br />

- E então Mary? O que você queria falar comigo?<br />

- É que...eu acho melhor a gente dar um tempo. Estou me sentindo<br />

um pouco confusa e, preciso organizar a minha vida.<br />

- Está gostando de outra pessoa?<br />

55


- Não...de ninguém...mas eu preciso ficar um pouco sozinha.<br />

- A gente está terminando de vez não é?<br />

- Não, mas se você quer terminar.<br />

- Eu não queria, mas é o que você está tentando me dizer.<br />

- Não...eu...<br />

- Escrevi isso pra você.<br />

- Que bom! Obrigado! Depois vou ler, ta?<br />

- Sempre te amei, nesse tempo em que a gente ficou junto...só que eu<br />

queria que você sentisse o mesmo por mim, por isso eu sempre fui tão<br />

inseguro com relação a você.<br />

Passaram alguns segundos em que nos observamos, a Mary começou<br />

a chorar e depois voltou a me olhar atentamente.<br />

- Deixa eu te dar um abraço?<br />

- Pode.<br />

- Que restou de nós?<br />

- Fazer o quê né?<br />

Ela foi embora...e eu fiquei só, com a minha solidão.<br />

Passei alguns dias em uma tristeza dramática e angústia.<br />

Eu me lembrava muito do nosso relacionamento, das nossas<br />

conversas.<br />

Não dava pra suportar, eu saía pela cidade a procurar um riso e,<br />

quando achava que já tinha me esquecido...a lembrança voltava.<br />

O tempo passa, e o rosto de Mary vai se desmanchando em minha<br />

memória.<br />

56


AMOR DE VERANEIO<br />

Uma história de verão<br />

Segunda parte<br />

Capítulo 1<br />

Uma brisa suave sopra a cidade mineira! O calor do verão parece<br />

mais intenso nesses dias. A bateria que rege a vida urbana retorna seu curso<br />

normal no dia de hoje. O recomeço das aulas marca uma nova fase em<br />

nossas vidas. O engarrafamento do trânsito, a correria...<br />

Hoje é dia de rever os amigos, colegas e professores.<br />

É também dia de retaliações entre dois seres que se desvencilharam<br />

um mês atrás.<br />

Na magia esplêndida de um mimo, uma borboleta me agracia os<br />

olhos castanhos com seu vôo.<br />

Desde que voltei do Rio ainda não conversei com os colegas. Tenho<br />

andado ocupado em meus negócios e não sobra tempo pra nada.<br />

Não dá pra ficar atirando no escuro, é preciso ser ligeiro.<br />

Esse é o meu novo mundo. As amizades são um segundo plano,<br />

talvez um momento ou outro, mas o principal é fazer a atividade render.<br />

Sei que o Ruan terminou com aquela safada lá de cima. E isso é bom,<br />

assim ele pode até me ajudar numas coisas. Enquanto ele estivesse com ela<br />

não daria muito pra confiar nele, porque quando o coração está apaixonado<br />

não sabe pensar direito.<br />

Hoje lá na escola eu vou conversar com ele. Vou ver se ele interessa<br />

no negócio.<br />

***<br />

“Não me inquieto ao saber que irei reencontrar meu desafeto Mary<br />

no colégio Padre Matias. Como já havia planejado, passarei por ela como<br />

se não conhecesse. Estou preparado pra qualquer malefício que o destino<br />

possa despejar sobre minha pessoa.<br />

Eu estava na janela tomando um pouco de Martini quando vi uma<br />

borboleta amarela voando pela varanda. Está cada vez mais comum<br />

aparecerem borboletas no bairro, deve estar acontecendo alguma mudança.<br />

O dia ensolarado indubitavelmente rasga os filetes de orvalho da<br />

relva verde e meu coração provoca soluços em minha alma apedrejada pelo<br />

caos que foi o mês que se passou.<br />

57


Quero voltar no tempo, ou seguir desenfreado até o próximo ano, só<br />

pra não ter que ficar me encontrando com essa pessoa. Cada vez mais as<br />

horas passam.<br />

Vou colocar uma roupa preta pra ir no primeiro dia, porque estou de<br />

luto, pela minha idiotice.”<br />

***<br />

“Hoje começa o nosso último ano na escola. Ainda bem, pois o<br />

tempo na escola é improdutivo!<br />

Estou querendo me formar logo pra poder me dedicar mais<br />

intensamente aos meus trabalhos artísticos, minhas poesias.<br />

O que a escola tem a proporcionar é só a grade curricular, e isso não<br />

me interessa tanto quanto o diploma.<br />

O caminho que eu quero seguir exige muito estudo, e lá na frente vou<br />

ter que fazer um cursinho e aprender essas matérias de hoje tudo de novo,<br />

então seria mais lucrativo pra todo mundo se acabasse o ano hoje mesmo,<br />

me dessem o meu diploma e me deixassem ir atrás do meu sonho.<br />

Como será que está o Ruan depois que terminou com aquela<br />

putinha?<br />

Tempão que a gente não se fala. Mas dessa vez ele deve ter<br />

aprendido a lição, e quem sabe esse ano vai ser um bom companheiro de<br />

farra.<br />

Ano passado ficava naquela de pedir pra escrever poesia mas<br />

sinceramente, eu só escrevia porque ele é meu amigo, porque aquela garota<br />

que ele namorava não valia a pena nem a tinta que eu usava no bico de<br />

pena. Meu pensamento é que pra uma mulher merecer uma poesia tem que<br />

pelo menos ser distinta, digna, bonita...aquela nem era bonita nem digna.<br />

Ah, mas que cada um cuide do seu coração. Eu gosto de poesia e<br />

nem por isso sou obrigado a ser romântico, pelo contrário, gosto é de<br />

balada, gosto de farra e muitas mulheres.<br />

Esse é o universo que eu idealizei pra mim. Se lá na frente eu vou me<br />

apaixonar já é uma outra história, por enquanto vivo e vou vivendo.”<br />

***<br />

Belo Horizonte, dezoito de fevereiro de 2002. Escola Padre Matias<br />

no Glória.<br />

Esse é o nosso último ano aqui nesse lugar.<br />

Tiago, a Mary – a que namorava o Ruan – Gú, Fred, Binha que<br />

namora a Ana Paola desde a sétima série, o Salame, o quarteto<br />

fantástico,Ruan e outros.<br />

58


Certo, e aparece o Giancarlo, um dos poucos amigos e confidente do<br />

Ruan. Estava junto com o Augusto, um outro aluno do primeiro ano.<br />

- E aí camarada? Como foram as férias? E a mulherada de Cabo<br />

Frio?<br />

- O mar estava agitado com muita sereia, mas tinha raio caindo em<br />

cima da mesa o tempo todo. Muita bebida, muita farra.<br />

- Rá, rá, rá...você é uma piada Augusto.<br />

- Você também foi Augusto?<br />

- Foi uma coincidência incrível. Eu tinha que ir no Rio visitar uns<br />

amigos e acabei encontrando o Giancarlo.<br />

Ruan, Augusto e Giancarlo eram conhecidos já de muito tempo.<br />

Encaravam a vida como o grande desafio de um dia após o outro.<br />

Uns anos atrás um crime que foi cometido por um dos três os afastou<br />

um pouco e então cada um seguiu seu rumo.<br />

Esse porém é o último que irão estudar juntos nesse lugar até que a<br />

vida os espalhe como um monte de poeira por esse mundão de Deus.<br />

- E as notícias? O que conta de novo Vitor?<br />

- Estou numa boa agora, eu estou querendo que esse ano passe<br />

rápido, detesto essa escola! Todo dia aqui é um tédio!<br />

- Ah, lembrei que você está me devendo uma rodada de chopp desde<br />

quando eu voltei da viagem ao Rio.<br />

- Pois é, temos que combinar isso direitinho. Vocês tem notícia do<br />

Ruan?<br />

- Eu não o vejo a mais de um mês.<br />

- Estou preocupado com esse sumiço dele. Ele sempre ia na minha<br />

casa mas sumiu.<br />

- Eu não o vi também desde que cheguei de viagem.<br />

- Hoje depois da aula podemos fazer uma rodada de chopp lá naquele<br />

barzinho da Abílio Machado.<br />

- Boa! Aí a gente leva umas garotas do primeiro ano.<br />

- De repente se o Ruan aparecer a gente leva ele.<br />

- Aquele tarado! Vai é querer roubar nossas garotas também.<br />

- Ih, Augusto. Ce ta desatualizado demais. Não sabe o que aconteceu<br />

com o Ruan.<br />

- E você Vitor, ta afim de ir não?<br />

- Melhor deixar pra outra hora. Amanhã vou ter que acordar cedo pra<br />

ir no centro. Tenho que ir pegar minha dispensa do Exército.<br />

- Só.<br />

- Mas e aí Giancarlo, conta essa história do Ruan.<br />

- Bom gente, vou indo nessa. To meio atrasado.<br />

- Beleza Vitor, vai na fé.<br />

- Bom Augusto, tudo começou no ano passado quando o Ruan...<br />

59


Uma noite calma vem descendo sobre a cidade mineira, anunciando<br />

uma brisa enamorada que traz às nossas narinas o perfume selvagem das<br />

fêmeas da espécie.<br />

O mato verde das ruas faz lembrar das viagens ao campo, entre a<br />

cantoria dos pardais, sem o uivo devastador do progresso em nossos trajes<br />

de pano.<br />

O Ruan apareceu na esquina do colégio exatamente às dezenove<br />

horas, no início do segundo horário. Quando tocou o sinal deu pra ver ele<br />

entrando, afinal meu lugar era na janela, de olho pra rua.<br />

O colégio está parecendo um formigueiro, muitos alunos, pouco<br />

espaço pra se locomover. Não é mesmo o lugar ideal pra mim que deseja<br />

descanso e mansuetude. Olha, falei bonito agora!<br />

É como eu já disse: quero que esse ano passe voando pra eu poder<br />

me dedicar a mim mesmo.<br />

Mas ta, voltando ao assunto...<br />

O Ruan passou pelas pessoas sem dizer nada, com o olhar fixo no<br />

horizonte – a escada – e o semblante obscuro como névoa de tempestade.<br />

Devia estar se sentindo um manequim de shopping, pois algumas<br />

pessoas observavam sua roupa, toda preta e com os sapatos tão brilhantes<br />

que até ofuscavam a vista.<br />

***<br />

“Eu cheguei atrasado hoje porque nem vontade de ir na escola eu<br />

estava, tanto que o que me animou de verdade foi tomar um copo de pinga<br />

do garrafão que meu pai deixa escondido debaixo da cama.<br />

Minha sala de aula esse ano será a última do corredor direito no<br />

segundo andar. Meu surgimento não poderia ser melhor:<br />

- Pôxa! A mesma sala do ano passado. Não mudou ninguém...já vi<br />

que eu to de novo de récu-récu.<br />

- Aêêê Ruan! Resolveu aparecer heim! – disse o Zé Maria, o aluno<br />

mais velho da sala, 32 anos mas o retrato fiel da adolescência, chamado por<br />

nós de cafetão.<br />

- Ô Ruan, e esse sapato seu? Passou óleo de trator é? – disse o Gú,<br />

chamando para si a graça da primeira piadinha de mal-gosto do ano.<br />

- Tem três coisas que eu faço bem: tomar cerveja, namorar e<br />

engraxar meu sapato.<br />

- Isso aí não é graxa não. Ta parecendo mais é resina de bomba<br />

nuclear. – disse o Fred.<br />

- Rá, rá, rá!<br />

- Ta, mas agora vamos parar com as brincadeiras que esse ano serei<br />

um aluno sério e compenetrado.<br />

Nesse momento não ficou um só aluno da sala sem fazer uma<br />

gozação. O ano recomeçou.<br />

60


Mas ta, continua contando aí Vitor, eu te atrapalhei mas é que eu<br />

queria contar essa parte da piadinha, da hora que eu cheguei, você sabe<br />

como é não.”<br />

***<br />

Certo, Ruan...<br />

Ninguém mudou de sala, e o pior: ninguém mudou de lugar nas<br />

carteiras. Fiquei uma boa parte do tempo fazendo brincadeiras com o<br />

quarteto. Esse ano vai ser realmente um tédio!<br />

Pior do que ficar na mesma sala, só mesmo o novo horário: só tem<br />

horários duplos, todos os dias, de segunda a sexta, aulas seguidas de uma<br />

mesma matéria. O caos maior serão as duas aulas seguidas de biologia com<br />

a Rosália na quarta-feira, o dia da minha cerveja.<br />

As horas vão passando. Chega o horário do recreio e, ninguém<br />

trouxe baralho. Nos resta conversar lá no murinho do corredor, olhando o<br />

movimento no pátio durante os vinte minutos.<br />

Colocamos todas as notícias em dia. Quando perguntamos o Ruan<br />

sobre a Mary ele deu uma resposta rápida e mudou de assunto.<br />

***<br />

“É, mas é que eu não estava querendo falar nesse assunto e vocês<br />

ficam insistindo...<br />

A sala dela fica embaixo da nossa, o que facilitou a primeira troca de<br />

olhares. Mesmo eu relutando bastante, no final do recreio, uns minutos<br />

antes de tocar o sinal.<br />

Mas ta, aí passaram-se os dois últimos horários de aula e o sinal<br />

tocou.<br />

Quando saí pelo portão dei de cara com ela, esperando sua irmã<br />

Tamires, que esse ano vai cursar o segundo ano aqui na escola.<br />

Eu continuei andando fingindo não ter visto ela. Meu coração<br />

disparou e comecei a suar. Subi a rua rapidinho, tentando não olhar pra trás<br />

e rever seu rosto.<br />

Me aliviei quando dobrei a esquina da rua e fui subindo pra encontrar<br />

os caras no barzinho pra gente tomar umas. Antes de quebrar na rua<br />

Guararapes, fui olhar para os lados por causa de carro e lá atrás vinha a<br />

Mary, longe, me observando, com uma cara muito triste.<br />

Eu apertei meu passo, com raiva e sumi no horizonte escuro.<br />

A Noite sem lua desperta as palpitações da alma, e o coração é<br />

dilatado pela incerteza que arde. Amanhã será o mesmo tormento.<br />

Ta vendo só Vitor. Não é tão fácil pra mim.”<br />

***<br />

61


Capítulo 2<br />

“Mas continuando...<br />

No outro dia, era o dia dezenove de fevereiro de 2002. A mesma<br />

escola Padre Matias, amor de veraneio.<br />

Era dezoito horas e uns sete minutos, faltava pouco pra tocar o sinal.<br />

Cheguei na rua Deputado Cláudio e vi alguns alunos aguardando a<br />

escola se abrir, na rua Célia Costa. Entre eles a Mary e sua irmã Tamires.<br />

- Olha lá na frente ‘Tami’, aquele é o Ruan.<br />

- É ele?<br />

- É sim.<br />

- Hum! Até que ele é fofinho, mas pela voz dele no telefone, eu<br />

imaginava que ele aparentasse ter mais idade, mais corpo.<br />

- Claro, com aquele vozeirão!<br />

- Mas como você deu bobeira heim maninha?<br />

- Ah, eu às vezes faço as coisas sem pensar e aí já viu né?<br />

Eu estava com uma calça preta com cadarço branco enorme, aliás<br />

essa é a nova moda aqui no colégio: ou o cadarço ou um cinto, ou uma<br />

corrente de lado...o importante é ter alguma coisa balançando na calça. É<br />

por causa do funk também. Todo mundo quer aparentar ser funkeiro.<br />

Minha blusa cinza do colégio era adornada com duas correntes.<br />

Eu trazia minha mochila na mão esquerda e na direita uma latinha de<br />

cerveja.<br />

Antes de entrar na escola, esmaguei a latinha e joguei na latinha de<br />

materiais recicláveis do outro lado da rua, aos olhares dos curiosos, e a<br />

latinha passou exatamente pelo pequeno orifício da abertura. Claro que eu<br />

nunca mais iria conseguir fazer aquilo de novo, mas foi um lance oportuno,<br />

pois todo mundo ficou admirado com aquilo e eu cheguei abafando.”<br />

- Nunca mais faz isso heim Ruam...<br />

- Corre lá no mercado e trás mais uma pra mim que eu te mostro,<br />

mas você paga.<br />

- Tentei falar com você ontem mas o pessoal estava perto, e você<br />

saiu meio que depressa de lá.<br />

- Pois é Giancarlo, o que você queria?<br />

- To num negócio novo aí. Ce lembra que eu tinha comentado com<br />

você ano passado, lá no meio do ano que eu estava querendo uma coisa<br />

mais lucrativa.<br />

- Ô sim. Mas e aí...é que eu tive um mês meio conturbado e, me<br />

esqueci completamente. Foi mal! E por falar nisso, como foram as suas<br />

férias?<br />

- Foram muito boas! Hoje depois da aula a gente pode falar sobre<br />

isso enquanto tomamos uma cerveja perto da sua casa.<br />

62


- Demorou.<br />

- Ah, vou chamar o Augusto também viu?<br />

- O Augusto? É que...<br />

- Deixa de besteira Ruan. Você acha que o Augusto iria nos trair<br />

nessa história toda? Já faz quanto tempo.<br />

- Não sei não. Mas ta...chama ele também. Estou rpecisando jogar<br />

um pouco de sinuca pra me distrair e, como você é uma negação no bilhar,<br />

fico sem adversário.<br />

- Mas algum dia eu aprendo, aí vocês dois vão ver.<br />

Tentando fingir que não percebi a Mary e sua irmã logo atrás de mim<br />

eu caminhei em direção à escada e vim pra sala de aula.<br />

Meu olhar se incendiou enquanto eu caminhava, eu quase chorei, e<br />

meu raciocínio ficou confuso. Não sei se vou conseguir suportar por muito<br />

tempo essa pressão sentimental que está alojada em meu corpo entupindo<br />

minhas artérias. Vou ter um infarto qualquer hora dessas. Vou morrer de<br />

amor!<br />

Meu proceder durante todo o período me surpreendeu com grande<br />

intensidade, mas minha respiração ofegante me condena...ainda gosto dela!<br />

- Sei, isso é complicado não? Mas e aí...o que será que o Giancarlo<br />

está pretendendo Ruan?<br />

Não sei Vitor. Eu já tinha parado depois que aconteceu aquele<br />

negócio. Atualmente fico só na minha mesmo e às vezes dou uma viajada,<br />

mas sem prejudicar ninguém. Vou ver direitinho o que está rolando, se for<br />

coisa mais pesada eu venho e te peço um conselho. Você sempre foi uma<br />

pessoa com a cabeça no lugar, com certeza não vai me deixar entrar em<br />

roubada.<br />

Ele é meu amigo, mas eu não quero voltar praquela vida a não ser<br />

que seja uma coisa segura e que vale a pena.<br />

***<br />

“Estou me sentindo tão arrependida por ter acabado o namoro com<br />

Ruan. Às vezes leio aqueles versinhos que ele costumava escrever pra mim<br />

e fico bastante triste. De noite as horas não passam e o sono é difícil.<br />

Eu pensei que outra pessoa poderia me fazer mais feliz do que ele<br />

estava fazendo. Mas na verdade eu estava errada. Aliás eu já deveria saber<br />

pois antes dele os homens só se aproveitaram de mim. Ele foi o único que<br />

me viu como uma mulher.<br />

Só me resta fazer uma coisa...<br />

***<br />

Eram umas dezenove horas. Ele estava no pátio resolvendo alguns<br />

problemas – matando aula – quando um conhecido o chamou e começaram<br />

63


a conversar sobre assuntos de extremo interesse social – futebol – quando<br />

pedi pra Tatiana falar com ele...<br />

- Oi! Você é o Ruan?<br />

- Sou sim. Por que?<br />

- Prazer, eu sou a Tatiana!<br />

- Muito prazer! O que está pegando?<br />

- Sou amiga da Mary e ela me pediu pra vir falar com você.<br />

- Sobre o quê?<br />

- Assim...é que ficou uma coisa muito mal-resolvida entre vocês dois<br />

e...ela ta querendo conversar com você, pode?<br />

- Um momento...e se isso for um pretexto seu pra que eu vá falar<br />

com ela?<br />

- Nossa! Que filmes você andou vendo heim?<br />

- Infelizmente eu sou assim. Ou as pessoas me deixam assim.<br />

- Mas você está enganado! Foi ela que me pediu pra te dar esse<br />

recado.<br />

- Fala então pra ela vir falar comigo depois.<br />

- Tudo bem.<br />

- Aceita uma bala?<br />

- Sim, obrigado!<br />

- Por nada. Só não me peça pra confiar em você...eu desconfio até da<br />

minha própria sombra.<br />

- Tudo bem então. Sim senhor!<br />

***<br />

Eram umas vinte horas e quarenta e três minutos.<br />

Recreio.<br />

Fui – receosa – falar com ele, acompanhada de minha amiga<br />

Fernanda que, ao me ver, saiu correndo pelo corredor me deixando sem<br />

proteção diante do meu ex-namorado.<br />

- E então...o que você quer?<br />

- Assim, era pra gente conversar um pouco.<br />

- Sobre o quê?<br />

- É que você passa perto de mim como se nem me conhecesse e...<br />

- O que você quer que eu faça?<br />

- Me cumprimente pelo menos.<br />

- Por quê?<br />

- Você age como se não tivesse acontecido nada entre nós.<br />

- E aconteceu?<br />

- Não do jeito que você queria, mas aconteceu.<br />

- É isso que você tem pra me falar?<br />

- Não...é que eu, eu quero te pedir uma chance.<br />

- Para quê?<br />

64


- Pra gente voltar...e ver se dá certo dessa vez.<br />

- Por que? Você não sente e nunca sentiu por mim o que eu queria<br />

que sentisse.<br />

- Mas com o tempo...nós vamos nos conhecendo melhor e...<br />

- Nada disse. Aposto que se eu fosse mais velho e mais alto você...<br />

- Pára com essa bobeira Ruan. Eu gosto de você do jeito que você é!<br />

- Mas você nunca demonstrou.<br />

- Mas gosto.<br />

- Eu to indo pra minha sala, tchau!<br />

- A gente vai conversar depois, você não vai fugir assim. Pensa com<br />

carinho no que eu te falei viu?<br />

Nessa hora ele continuou andando sem me responder.<br />

- Viu Ruan.<br />

Eu disse aos gritos.<br />

Dessa vez ele concordou com uma relutante contração dos lábios.<br />

As horas passaram e eu saí correndo quando o sinal tocou pra poder<br />

espera-lo, mas ele já havia saído. Acho que ele matou o último horário com<br />

os colegas e foi pra algum bar. Hoje na entrada parece que eles estavam<br />

combinando.<br />

Bom, mas amanhã eu falo com ele. É bom que dá tempo pra ele<br />

pensar melhor no que eu falei.<br />

Por enquanto é melhor eu ir pra casa e descansar. Eu também estou<br />

um pouco confusa e essa foi a primeira vez que eu tomei a iniciativa de<br />

falar com um garoto. Antes eu nunca passei por uma situação assim.”<br />

***<br />

“Era dia vinte de fevereiro de 2002. Eu estava na escola.<br />

O sinal disparou umas vinte e duas horas e vinte e quatro minutos,<br />

como um veadinho afoito e os alunos soltam um ‘ufa’, cada um guardando<br />

rapidamente as coisas, loucos de vontade de chegar em casa e dormir um<br />

sono relaxante pra acabar com o stress.<br />

- Giancarlo!<br />

- Fala Ruan...<br />

- Aqui, vai rolar aquele chopp hoje não...<br />

- Eu já sei porque. Faz mal não, vai fundo.<br />

- Fica pra outra hora então?<br />

- Tranqüilo.<br />

Mary me esperava no portão da escola, junto de sua irmã Tamires.<br />

Subimos conversando e no meio do caminho a Tamires arranjou uma<br />

desculpa pra andar mais rápido, deixando-nos a sós, minha ex-namorada e<br />

eu.<br />

65


Chegamos na pracinha do bairro e deixamos nossas mochilas na<br />

escadaria.<br />

- Bom Mary, você disse uma coisa hoje lá na escola e, me pediu pra<br />

pensar. Eu realmente pensei bastante.<br />

- E qual é a sua decisão?<br />

- Bom, primeiramente, o que você sente por mim de verdade?<br />

- Muitas coisas!<br />

- Por que terminou então?<br />

- É que eu estava me sentindo confusa. Você sempre desconfia de<br />

mim, e eu nunca fazia nada de errado. Esse sempre foi o seu único<br />

problema, aliás é um dos problemas de todo garoto da minha idade.<br />

- Tem certeza que não fez?<br />

- Sim.<br />

- Mas às vezes é difícil de acreditar. Você sempre furava comigo<br />

- Mas é verdade. E você? Acha que eu não tenho ciúmes de você<br />

não?<br />

- Não porque nunca demonstrou isso.<br />

- Não sei demonstrar muitas coisas, mas eu sinto sim. Você sabe que<br />

eu tenho um pouco de dificuldade nas coisas.<br />

- Só vou confiar em você no dia em que você provar seu amor.<br />

- Vou fazer o possível pra que isso aconteça o mais breve possível.<br />

- E só por isso eu vou voltar. Eu aceito.<br />

Então nos beijamos mas não foi como a primeira vez. Mesmo que o<br />

corpo dela estivesse gelado e logo se esquentou devido a uma carícia,<br />

mesmo seus seios confessando o inevitável das mulheres. Eu ainda a amava<br />

mas depois de tanto sofrer era mais difícil pra mim.<br />

Depois de um tempo acabei me esquecendo totalmente da<br />

dificuldade e me entreguei àquele momento, seus carinhos, seu corpo<br />

encostado no meu. Senti um acréscimo pela virilidade. Me senti excitado<br />

pela Mary mas eu não conseguia ficar com ela da maneira que esperava.<br />

Nós estávamos no escurinho atrás da banca mas embora nos<br />

beijássemos e nos tocássemos eu não consegui realizar tudo o que<br />

esperava.<br />

Procurei esconder o descontentamento e amaciar nosso encontro,<br />

conversamos sobre nós mas creio que ela percebeu o motivo. Depois fomos<br />

embora.<br />

Ela jogou umas indiretas e eu entendia. Mas eu não queria falar com<br />

ela que eu falhei.<br />

Dessa vez ela não se importou que eu a levasse até o portão de sua<br />

casa.<br />

Eu caminhava pelas ruas pensando no que poderia ter dado errado<br />

comigo pra que eu não conseguisse uma excitação maior e...<br />

66


De repente ouvi tiros na rua de baixo. Ferrou, a casa caiu...se for<br />

briga de gangues to morto! Eu saindo da favela, os caras vão pensar que eu<br />

sou do movimento.<br />

E agora?<br />

Droga, o jeito é esconder e esperar.<br />

Merda, barulho de sirene de viatura. Nossa, foram mais de trinta<br />

tiros, isso aqui tão perto. Já é tarde. Como que eu vou explicar eu estar aqui<br />

perto da troca de tiro, saindo da favela. Agora ferrou tudo. O jeito é esperar<br />

um tempo aqui no beco até a rua encher de gente pra ver o que é.<br />

Não demorou muito, muitas viaturas, ambulância. Parece que tem<br />

gente morta. Não resisti e desci pra ver o que era.<br />

Nossa, minha vida passou inteira diante dos meus olhos quando vi<br />

aquela cena. O Augusto tomou tiro demais. Os guardas comentando que ele<br />

tentou fugir na moto roubada e trocou tiros com uma viatura, que acertou<br />

um policial.<br />

Caralho! Era hoje que a gente ia encontrar depois da aula pra tomar<br />

chopp, e o Giancarlo falou que tinha um negócio novo. Nossa, será que é<br />

isso? Ele sempre mexia só com baseado e às vezes uma receptação, mas<br />

meter assalto já é muito arriscado.<br />

Nossa, e pensar que podia ser eu ali naquela cena, aquele sangue<br />

escorrendo. Onde será que está o Giancarlo? Será que pegaram ele?<br />

Fui correndo pra casa pra ligar pra ele.<br />

- Gian, você já soube?<br />

- Aqui Ruan, você vai ter que fazer um favor pra mim. Vou ter que<br />

sumir um tempo, guarda umas coisas pra mim.<br />

- Ta, guardo sim, mas o que aconteceu?<br />

- Eles vão me pegar, eu vou ir pro interior, já to arrumando minhas<br />

coisas. Vou ficar um tempo na casa de uma tia avó numa cidade do interior.<br />

Tenho que sair de cena.<br />

- Ta bom mas...<br />

- Vou desligar, amanhã você vai passar lá na praça e vai ter uma<br />

caixa atrás da banca. Ta tudo lá dentro, guarda pra mim e pode ficar com<br />

uma parte. Mas vai cedinho, põe o relógio pra despertar porque vai estar<br />

moçado, parecendo lixo, mas se alguém ver já era.<br />

- Ta certo, pode deixar que eu vou sim.<br />

Cai de vez a madrugada sobre minha cidade natal. Eu não consigo<br />

dormir pensando em tudo que aconteceu.<br />

Voltei com a Mary no mesmo dia que o Augusto morreu. Se ela não<br />

tivesse falado comigo hoje, se tivesse deixado pra amanhã eu não estaria<br />

deitado aqui na minha cama agora.<br />

A vida nos coloca à prova a todo momento. Nosso sistema é injusto e<br />

pesado! Só os ricos tem a vida, os pobres só tem a privação.<br />

67


Ao mesmo tempo que eu pensava na morte do Augusto pensava na<br />

Mary. Será que ela realmente me ama? Eu sinto um grande sentimento por<br />

ela, mas não sei se vamos ser um casal feliz? Aconteceu muita coisa ruim e<br />

isso marca muito a vida da gente.<br />

Capítulo 3<br />

Acordei um pouco cabisbaixo e fui comprar pão na padaria que fica<br />

abaixo da pracinha. Fiquei pensando no que aconteceu ou melhor, no que<br />

não aconteceu entre a Mary e eu. Também estava triste pelo Augusto. Ele<br />

já não era mais tão próximo, tão amigo, mas é uma pessoa que eu conhecia<br />

a muito tempo, nós até jogávamos bola juntos quando éramos pequenos.<br />

Quando voltei parei atrás da banca como quem vai urinar, olhei de<br />

um lado e de outro pra ver se não havia ninguém olhando e então peguei a<br />

bolsa que o Giancarlo deixou.<br />

Eu nem vi o que era. Estava tão preocupado que fui direto pra casa.<br />

Quando cheguei deixei o pão em cima da mesa da cozinha e me<br />

tranquei no quarto. Não cheguei nem a tomar café.<br />

Dentro da bolsa do Giancarlo havia muito dinheiro, jóias, duas armas<br />

e um pouco de baseado. Eles realmente acertaram no assalto e o Augusto<br />

foi corajoso demais em tirar a atenção da polícia. Tinha uma carta e nela o<br />

Giancarlo contava tudo como foi. Eles assaltaram uma fábrica de jóias no<br />

meio da noite e levaram tudo. Saíram numa moto que o Augusto roubou e<br />

no caminho o Giancarlo trocou de roupa e foi embora de táxi. Na carta ele<br />

falou que a moto ia ser abordada em alguma blitz e que o Augusto achou<br />

que não, e embora tivesse insistido com ele pra deixar a arma o Augusto<br />

insistiu em ir armado.<br />

O Giancarlo saiu pra todo mundo achar que ele levou tudo, e eu vou<br />

ter que guardar isso aqui.<br />

***<br />

“Me sinto aliviada em ter voltado a namorar com o Ruan. Vou passar<br />

por cima de todos os erros que já cometi...só espero que eu não erre de<br />

novo. Ele é um cara direito, não posso perde-lo. Sei que daqui a alguns<br />

anos ele pode ser um perfeito companheiro, e eu poderei ir ensinando a ele<br />

o jeito que eu gosto das coisas.<br />

Ontem eu percebi que ele estava um pouco nervoso no nosso<br />

encontro, mas isso acontece com todo mundo. É um pouco incomum em<br />

rapazes, afinal são sempre tão impulsivos...<br />

Bom, mas só quero pensar em coisas boas, muito boas com o...”<br />

***<br />

68


“Ruan voltou a namorar com a Mary. Será que dessa vez dá certo<br />

esse caso? Meu amigo não deve se submeter desse jeito à essas<br />

experiências porque ele está caminhando para a perdição amorosa...do jeito<br />

que as coisas estão hoje em dia.<br />

Essa Mary não serve pra ele, não é possível que só ele não enxerga<br />

isso. Resta esperar pra ver o que acontece.<br />

De repente o telefone tocou...<br />

- Vitor, bom dia, aqui é o Ruan.<br />

- E aí Ruan, como vai? E ontem com sua ex? Conta aí...<br />

- Aqui, mataram o Augusto ontem.<br />

- O quê? O que aconteceu com ele?<br />

- Você não vai acreditar, ele roubou uma moto e uma viatura<br />

perseguiu ele.<br />

- Nossa! Que coisa, e o Giancarlo estava com ele?<br />

- Não, só o Augusto. O Giancarlo não está envolvido em nada só<br />

que falou que ia sair da cidade um tempo porque está com medo da polícia<br />

ir atrás dele.<br />

- É foda, e ele bem que estava te assediando pra fazer alguma coisa.<br />

Aquele dia na escola eu percebi.<br />

- Pois é, ainda bem que eu não fui. E nem o Giancarlo.<br />

- Aqui, então demorou a gente ligar pro resto da turma pra ninguém<br />

ir na aula hoje. Vai ser uma fofocaiada na escola, e eu estou querendo sair<br />

um pouco. É até uma boa desculpa.<br />

- Vamos, aqui...liga pro Binha, pro Gú, pro Thiago, pra Fernanda e<br />

pro Fred que eu ligo pro resto. Aí você manda eles avisarem os outros.<br />

O que é a má influência na vida de uma pessoa. Eu por exemplo<br />

sempre tive influências boas e ruins mas sempre me mantive neutro.<br />

O Ruan já é mais vulnerável a tudo. Depois vou até parar pra<br />

conversar com ele porque quero saber melhor essa história do Augusto ter<br />

morrido, mas deixa isso pra uma outra hora...<br />

- Alô? Oi princesa, aqui é o Vitor! To te ligando pra saber se vai dar<br />

pra gente ver aquele filme que você prometeu. Claro, é que morreu um cara<br />

lá na minha escola e o pessoal cancelou a aula...então, vamos fazer o<br />

seguinte, a gente se encontra lá no centro lá pelas oito da noite e...”<br />

***<br />

Meus dedos discam no telefone o número de Mary:<br />

- Alô?<br />

- Quem fala?<br />

- Sou eu, Mary!<br />

- Estou com saudade de você!<br />

- Eu também tchu-tchuco.<br />

- Mentira.<br />

69


- Verdade. Estou morrendo de saudade!<br />

- Então vem pra cá, ficar perto de mim?<br />

- Agora?<br />

- É.<br />

- Agora não dá tchu-tchuco. Estou arrumando a casa e, nem sei onde<br />

você mora.<br />

- Vou encontrar com você.<br />

- Não tchu-tchuco. Uma outra hora a gente faz isso, com calma.<br />

Com desespero a gente não consegue nada, e outra, apressado come cru.<br />

- Mas come.<br />

- Rá, rá, rá! Você é demais Ruan!<br />

- Te acho gostosa!<br />

- Pára. Você está me deixando sem jeito!<br />

- Vem me fazer uma visita.<br />

- Pode deixar. Qualquer hora dessas eu vou.<br />

- Mentira.<br />

- Vou sim, eu prometo.<br />

- Só vou acreditar quando você vier.<br />

- Sexta-feira.<br />

- Amanhã?<br />

- Não, na outra sexta.<br />

- Amanhã.<br />

- Seus pais vão estar em casa.<br />

- Na parte da manhã eu fico em casa sozinho.<br />

- Não sei...e se aparecer alguém?<br />

- Tenho certeza que não aparece.<br />

- Hoje à noite a gente conversa sobre isso, mas vamos ter que ficar<br />

menos tempo porque mataram um cara aqui na rua de baixo. Ele é lá da<br />

escola...<br />

- Eu sei. Era conhecido meu, o Augusto.<br />

- Mas você tinha contato com ele?<br />

- Muito pouco. Na verdade eu só conhecia porque a gente estudou<br />

junto na quinta série, só isso.<br />

- Mas você sabe o que aconteceu? Estão dizendo que ele atirou em<br />

um policial e roubou uma arma.<br />

- Não estou sabendo de nada, só o que o povo comenta. Além do<br />

que ontem quando fui embora da sua casa eu desci rapidinho, estava com<br />

muito sono. Acho que mataram ele logo após eu descer a rua.<br />

- Nossa, que coisa!<br />

- Mas aqui, a sua resposta é sim então?<br />

- Não, eu vou pensar primeiro.<br />

- Chata!<br />

- Bobinho!<br />

70


- Pensa em mim.<br />

- Pode deixar.<br />

- Tchau!<br />

- Tchauzinho tchu-tchuco!<br />

- Amo você!<br />

- Também.<br />

Depois que ela desligou eu fui separar o dinheiro do Giancarlo e as<br />

jóias. Eu não queria mexer com o baseado, então decidi que eu ia passar<br />

pra alguém vender. O foda é que eu ia pagar a comissão e o Giancarlo não<br />

ia gostar nada disso, mas eu não queria me expor do jeito que aconteceu<br />

com o Augusto. Imagina eu todo furado de bala.<br />

O foda é que meu namoro com a Mary parece que vai dar certo dessa<br />

vez. Se ela pelo menos pensar que eu estou guardando essas coisas aqui eu<br />

sei que ela vai terminar.<br />

Nisso o telefone tocou, era o Giancarlo...<br />

- Fala Ruan, como estão as coisas aí?<br />

- Olha, daquele jeito. Muito comentário sobre o Augusto, cada um<br />

conta uma versão...aqui, eu liguei pra turma pra ninguém ir na aula hoje pra<br />

não ter conversa fiada...e outra que com certeza vai ter algum idiota<br />

querendo investigar se tem mais envolvido, além do que é dinheiro rpa<br />

caramba! Vocês acertaram a boa.<br />

- Nós acertamos. Não esqueci de você não. Eu sei que você não<br />

falha na missão! Sei que posso confiar em você.<br />

- Pois é...aqui, como vão ficar as coisas?<br />

- Sei lá velho...tô cheio de dinheiro aqui no interior. Aqui é<br />

tranqüilidade total! Tem umas gatas e eu já cheguei azarando.<br />

- Nossa! Legal...<br />

- E seu namoro lá com aquela garota?<br />

- Ta bem, a gente resolveu voltar e...<br />

- Pega uma daquelas jóias lá e dá pra ela.<br />

- Mas qual?<br />

- Sei lá, pega a mais cara, fala que você comprou e faz a graça.<br />

- Beleza!<br />

- Olha, se precisar ligar pra mim liga nesse número, mas te<br />

aconselho a comprar um celular. Sei lá, naquela escola sempre tem um<br />

dedo duro. Se a polícia souber que você andava comigo podem querer<br />

colocar uma escuta no seu telefone.<br />

- Pode deixar, mas aqui, se cuida viu?<br />

- Tranqüilo, fica na paz...”<br />

***<br />

71


Sobre o galho de um ipê que ainda não foi podado, o que está cada<br />

vez mais raro no bairro, um bem-te-vi descansa enquanto da varanda<br />

escrevo um verso pra um livro de poesia que estou escrevendo.<br />

Depois de terminar resolvo ligar pro Ruan pra ver como ele está.<br />

- Alô!<br />

- Oi, aqui é da companhia telefônica, com quem falo?<br />

- Deixa de brincadeira Vitor. Você é a pessoa menos indicada pra<br />

passar um trote.<br />

- Por que?<br />

- Tem que transmitir seriedade ô rapaz.<br />

- Foi mal, ré, ré, ré...<br />

- E aí, aconteceu alguma coisa?<br />

- Não, só liguei pra saber como está. Como foi ontem com a Mary?<br />

- Foi péssimo cara, nem te conto...<br />

- Ih, não me diga que você falhou, rá, rá, rá...<br />

- Como adivinhou?<br />

- O quê? Então é isso?<br />

- Que azar heim cara!<br />

- É sim, o que será que rolou?<br />

- Sei não, e ela como reagiu?<br />

- Tentei esconder e, acho que ela nem percebeu.<br />

- Então não havia começado nada?<br />

- É, a gente estava na pracinha conversando.<br />

- Deixa eu adivinhar...atrás da banca.<br />

- Nem chegamos a ir.<br />

- Credo! Mas que maré de azar cara!<br />

- Pra você ver.<br />

- Se eu conheço você bem, você pensou em alguma coisa absurda e<br />

idiota pra essa situação.<br />

- Comprei umas coisas no supermercado, aliás queria saber se tem<br />

alguma coisa boa pra isso.<br />

- Como eu disse. E deve estar querendo algum site pra pesquisar a<br />

respeito...<br />

- Ah, qual é Vitor. Você não sabe nem um pouco disso e fica aí<br />

metido a romancista.<br />

- E por que meu fã?<br />

- Porque eu já achei o site.<br />

- É Run, você não toma jeito mesmo! Mas não se preocupe, isso<br />

acontece uma vez ou outra, é normal.<br />

- Não quero arriscar.<br />

- É...faz bem.<br />

- Fica só entre nós heim?<br />

- Beleza! Pode deixar, pode ficar tranqüilo!<br />

72


- Lá no colégio a gente troca uma idéia, conversa melhor e você<br />

conta as novidades.<br />

- É, mas só que hoje ninguém aparece naquele lugar heim? Por<br />

causa do que aconteceu com o Augusto.<br />

- Então ta...tchau!<br />

Não há como negar um fato como esse, mesmo a gente sabendo que<br />

é uma coisa íntima e pessoal, não é verdade?<br />

- Alô!<br />

- E aí Vitor, fala camarada...<br />

- Aí Fred, ce não vai acreditar...tenho uma bomba pra te contar<br />

rapaz. Senta senão você vai cair pra traz...<br />

- Já to sentado, conta aí.<br />

- Sabe o Ruan, vixi, nem te conto...mas olha, depois liga pro resto da<br />

turma e conta viu?<br />

- Sei, mas o que foi?<br />

- Pois é, acontece que ontem ele foi namorar e...<br />

No outro dia na escola eu vi a hora que o Ruan chegou e foi<br />

cumprimentar o Binha...<br />

- E aí Ruan? Como vai?<br />

- Tudo bem! E você Binha?<br />

- To bem, ré, ré, ré...<br />

- Qual é a graça?<br />

- O Vitor me contou tudo.<br />

- Aquele imprestável!<br />

- Ó, trouxe um remédio pra você. Esse é ótimo!<br />

- Não preciso de remédio, sou sarado!<br />

- Vamos apostar então?<br />

- Beleza! Melhor de três no truco.<br />

- Ótimo! Vamos lá pras mesas.<br />

Uns dez minutos depois...<br />

- Você ganhou, mas eu te aconselho a tomar esse remédio. Vai te<br />

fazer bem.<br />

- Esquece. O que vai me fazer bem é triturar o Vitor.<br />

Então ele veio pra sala com o Binha e a aula já havia começado.<br />

Depois das brincadeiras que não poderiam faltar e das piadas dos<br />

alunos o Ruan finalmente pegou os cadernos. Ele na hora fica um pouco<br />

vermelho, de raiva ou de vergonha mas sempre entra no clima da<br />

brincadeira.<br />

- E aí Binha, ele tomou o purgante?<br />

- Ainda não, mas eu deixei com ele. Vamos ver se a gente dá sorte e<br />

consegue pregar essa peça nele.<br />

- Rá, rá, rá...só espero que ele não apele conosco.<br />

73


- Não Gú. Vamos fazer essa brincadeira pra ele não ficar tão<br />

cabisbaixo, aí talvez com raiva ele melhora.<br />

- Por falar nisso aí vem a namorada dele.<br />

- Então essa é a tal Mary?<br />

- É sim.<br />

- Tem jeito de ser safada!<br />

- Não sei o que o Ruan viu nela.<br />

- Sei não...<br />

- Sabe não? E a Lidiane?<br />

- Isso foi passado!<br />

- Não é não.<br />

- Melhor a gente mudar de assunto.<br />

- Tudo bem! Se quer assim!<br />

“Um sentimento sonhador nos desperta emoções novas. Eu vejo a<br />

vida assim como um colegial. Ela se modifica, com o vento que arrasta pra<br />

longe os brinquedos e trás pra perto as planilhas de um escritório de<br />

advocacia.<br />

Esse ano eu vou fazer o provão. Dependendo da nota vou direto pra<br />

faculdade.<br />

Giancarlo estava querendo estudar arquitetura mas agora não sei nem<br />

se volta a estudar. O Augusto queria fazer geografia. Na verdade o que ele<br />

queria mesmo era ser arqueólogo.<br />

Nós sempre seremos uma tríade, não importa de que modo a vida nos<br />

espalhe pelo mundo ou pela existência.<br />

Se eu conseguir estudar até o fim serei um ótimo advogado! Sou<br />

muito observador e detalhista! O ruim é que hoje em dia existem poucas<br />

oportunidades pra se conseguir um bom emprego. Estar formado não é o<br />

bastante.<br />

‘Pois é Ruan. Nós todos temos sonhos, e enquanto acreditarmos que<br />

poderemos realiza-los, viveremos felizes! Não deixarei de escrever porque<br />

é uma coisa que me satisfaz. Quem sabe um dia eu escreva um livro que<br />

fale da minha vida, meus amigos...dessa escola onde estudo a tantos anos,<br />

ou um livro que fale até mesmo de você e da sua namorada, de nós...a vida<br />

passa, as lembranças ficam.’<br />

Nossa Vitor, já pensou que legal que seria se você escrevesse mesmo<br />

um livro sobre a gente? Sobre essas conversas, sobre as brincadeiras...seria<br />

muito emocionante já pensou eu velho daqui a uns quarenta anos lendo<br />

esse livro?”<br />

***<br />

O tempo passou depressa e a aula acabou. Ruan desceu as escadas<br />

pra se encontrar com a Mary.<br />

- Oi meu querido!<br />

74


- Oi Mary! Como você está?<br />

- Bem, e você?<br />

- É...<br />

- Vamos subir?<br />

- Ei Ruan, espera...<br />

- O que foi Alberto?<br />

- Aqui, eu pensei bem e vou ficar com aquele vídeo game que você<br />

falou. Oi moça...<br />

- Olá.<br />

- Que vídeo game?<br />

- Aquele que está na sua casa...do seu primo, lembra? Eu vou vender<br />

ele pro seu primo?<br />

- Ah ta...entendei, o vídeo game...pode deixar que eu te entrego<br />

amanhã. Passa lá em casa.<br />

‘Nossa! Gelei agora com o Alberto falando sobre o baseado. Sorte<br />

que ele não falou nada perto da Mary.’<br />

- Você está meio nervoso Ruan?<br />

- Não, é o cansaço mesmo princesa.<br />

Cinco minutos depois. A caminho da pracinha...<br />

- Você tem sentido alguma coisa Ruan?<br />

- Não, é que eu ando um pouco cansado mesmo.<br />

- Por que?<br />

- Nada, é uma coisa que aconteceu.<br />

- Conta pra mim...<br />

- Esquece. Coisa à toa!<br />

- Então ta.<br />

- E seu dia como foi?<br />

- Bastante cansativo, como de costume. Tive que dar faxina naquele<br />

salão enorme.<br />

- Em dia de semana, quero dizer: no meio da semana?<br />

- É. Eu tinha combinado com o meu patrãozinho de limpar hoje.<br />

- O que a Tamires gosta?<br />

- É, o Leandro.<br />

- Ta com pressa de ir pra casa?<br />

- Assim, um pouco. Mas a gente pode conversar por alguns<br />

minutinhos.<br />

- Ótimo! O que você decidiu?<br />

- É melhor eu ir na sua casa sábado. Você não acha não?<br />

- Todo mundo vai estar lá em casa.<br />

- Assim você me apresenta pros seus pais, a gente não está<br />

namorando sério?<br />

- É, mas...<br />

75


- Na outra semana, eu prometo que vou um dia lá, pra gente<br />

conversar mais à vontade. O quê você acha?<br />

- Se você diz...mas eu queria amanhã.<br />

- Assim...sábado, lá pelas oito da noite. Pode ser?<br />

- Ta! A gente se encontra aqui mesmo?<br />

- Pode.<br />

- Então vamos aproveitar esses minutinhos.<br />

O beijo é como a rosa, que perfuma o vergel e a mata. Um símbolo<br />

de amor e dos instintos corporais que vivenciamos.<br />

- Você sempre me deixa esperando.<br />

- Por que você tem que ser tão apressado heim?<br />

O beijo é como a lua que ilumina a noite escura. Um talismã dos<br />

desejos carnais que provocamos uns nos outros, no decorrer de nossos dias.<br />

‘O beijo é como a água da chuva que molha a terra pra nascer o trigo.<br />

O beijo é a semente que se torna uma árvore bela.<br />

Eu quero que meu relacionamento dê certo, tanto quanto esse beijo.<br />

Pretendo me dedicar ao Ruan, não quero perde-lo de novo. Eu estou<br />

sentindo ele mais maduro, mais adulto. Ele mudou o seu jeito de ser nesse<br />

tempo que ficamos separados. Eu tenho medo dessa mudança mas ao<br />

mesmo tempo me satisfaço com esse jeito misterioso que ele está agora.’<br />

‘O beijo é como sol e a natureza, que são bonitos a cada manhã que<br />

desperta! Poucas coisas são tão sinceras quanto um beijo apaixonado. Mas<br />

os tempos são de mudanças, eu estou dividido. Não confio nela mas gosto<br />

dela. No outro dia se não fosse o fato dela vir falar comigo, talvez quem<br />

tivesse morrido seria eu.’<br />

Após deixar Mary em casa, Ruan vai embora. No caminho entretanto<br />

uma pessoa o pára.<br />

- Ruan, eu sei que a parada está com você. O Giancarlo está fora,<br />

quero saber se você vai ficar no lugar dele porque senão nós vamos<br />

começar um negócio nosso.<br />

- Aqui, nem sei se o Giancarlo volta. Eu vou passar pro Alberto e ele<br />

que vai mexer. O Giancarlo só quer a parte dele, uma outra parte vai ser<br />

minha e vou pagar o Alberto. Depois que acabar é só com ele.<br />

- Vamos lá em casa amanhã pra gente ver isso.<br />

- Liga pra ele. Não quero me envolver não, eu to namorando e se<br />

minha namorada perceber ela não vai aceitar.<br />

- Você tem que ir. O Giancarlo é considerado nosso. Se ele deixou<br />

com você é porque te colocou à frente. Não precisa envolver não, só marcar<br />

presença.<br />

- Ta certo então. Lá pelas duas da tarde.<br />

‘Cheguei em casa, meio a contragosto fui conferir a bolsa. Eu queria<br />

me livrar de tudo aquilo depressa. Tinha muita coisa ali dentro.<br />

Droga, o telefone. Tomara que ninguém acorde...<br />

76


- Alô...<br />

- Sou eu Ruan...aqui, eles já me ligaram, por mim tudo bem...vamos<br />

marcar lá amanhã.<br />

- Aqui, não vou sair daqui à pé com isso não. Vê se você arruma um<br />

carro.<br />

- Quanto tem?<br />

- Quatro do tamanho de um tijolo e setecentos e vinte papéis.<br />

- Caramba! Pode deixar que eu arrumo o carro. Não tem nem jeito<br />

de você chegar lá com isso na mão.<br />

- Outra coisa, eu dirijo quando chegar aqui. Não quero arriscar não.<br />

Ta tudo muito calado. O Augusto morreu e até agora não vi nem rastro de<br />

polícia. Está tudo muito calmo.<br />

Terminei a conversa com o Alberto e acabei tomando o remédio.<br />

Droga, era laxante. Safado! Sem vergonha!<br />

Vai ter vingança, ah se vai...<br />

Só eu mesmo pra cair nessa pegadinha sem graça.<br />

Mas é até bom, enquanto eu estava no banheiro comecei a pensar<br />

umas coisas. É verdade mesmo, até agora não vi nem sinal de polícia. Eles<br />

roubaram uma quantidade muito grande de jóia e dinheiro. Os caras<br />

deveriam estar fuçando o bairro todo.<br />

Eu vou ter que tirar isso daqui antes de ir lá repassar o bagulho,<br />

imagina se aparece uma viatura pra cumpri mandado. Eu dançava com tudo<br />

na mão.’<br />

Capítulo 4<br />

- Ruan, acho que tem um carro seguindo a gente.<br />

- To vendo Alberto, vou pegar a avenida pra ver se ele vai vir atrás.<br />

- Ta esquisito Ruan, acelera!<br />

- Não, só tem dois dentro do carro e nós também estamos armados.<br />

Qualquer coisa a gente passa eles. Vou furar o sinal assim que a gente<br />

passar perto da igreja.<br />

De repente o carro acelera e Ruan atravessa o sinal vermelho, quase<br />

bate em outro carro e vai embora. O carro que os estava seguindo fica pra<br />

trás.<br />

O fato serve de resposta ao que Ruan ficou matutando na noite<br />

anterior. Estava tudo muito calmo até agora. Ruan sabe que as coisas vão<br />

mudar daqui pra frente.<br />

‘Cheguei suando na casa. A gente guardou o carro rapidinho na<br />

garagem e entrou pra dentro da casa.<br />

O Ruan tem sangue frio demais! Se fosse eu teria desesperado e<br />

acelerado antes da hora. Os polícia vão ficar na cola dele mas a mercadoria<br />

ta toda aqui. Não vai dar em nada.<br />

77


Os caras estavam esperando. Tinha umas garotas na casa, uma<br />

melhor que a outra. O Ruan não quis ficar com nenhuma...ficou falando o<br />

tempo todo de negócios, desconversando. Acho que é por causa do namoro<br />

dele.’<br />

- Bom...a divisão fica assim então. Até acabar essa carga a parcela<br />

maior será do Giancarlo. Vocês podem passar pra mim, a minha parte eu<br />

divido com vocês e fica separada a parte do Alberto. Mas eu não vou<br />

envolver em nada não. Hoje aquele carro foi a deixa, esses caras vão ficar<br />

na minha cola.<br />

- Tudo bem. Aqui a gente administra, você só tem que tomar<br />

cuidado com a grana e as correntes que estão contigo.<br />

- Já dei um jeito de tirar lá de casa também.<br />

- Aí Ruan, não interessou em nenhuma amiga?<br />

- Eu estou namorando. Não estou afim de vacilar não. E só estou<br />

nesse negócio porque o Giancarlo deixou isso pra mim, senão eu nem<br />

entrava não. Ele saiu fora e nem perguntou se eu queria, foi logo deixando<br />

a carga.<br />

- Tudo bem então. Não precisa ficar nervoso. A gente entende.<br />

- Pois é...<br />

O tempo passou e a tarde caiu.<br />

Ruan estava a caminho do colégio e encontrou com o Gú.<br />

- E então Ruan, tomou o remédio que o pessoal te receitou?<br />

- Vocês são uns safados...isso não é brincadeira.<br />

- Nós somos amigos, isso foi só uma pegadinha...<br />

- Ta.<br />

- E então...você tomou?<br />

- É claro que não. Só peguei ontem pra ver o que vocês iriam falar<br />

hoje. Eu sabia que tinha coisa aí...<br />

- E o que você fez?<br />

- Esqueci o frasco lá na pracinha.<br />

- Que cabeça heim...e que sorte!<br />

- Por que?<br />

- Bom, já que você não caiu, eu vou te contar...foi idéia do Thiago<br />

fazer essa pegadinha com você. Aquilo era um purgante fortíssimo!<br />

- Vocês não prestam mesmo! E se eu tivesse tomado?<br />

- É...<br />

‘Resolvi deixar que ele pensasse que eu não tomei o remédio, até que<br />

eu termine de maquinar a minha vingança. Essa será uma pegadinha de<br />

verdade!<br />

Chegamos no colégio na hora do sinal e entramos pra sala...’<br />

‘Fico sempre vigiando o Ruan quando ele desce, da minha sala de<br />

aula. Eu sinto algo por ele, mas não é amor. Não sei procura-lo e ele se<br />

queixava tanto disso comigo. Se eu me dedicar a ele, assim como já fiz<br />

78


antes quando namorava o Adilsom e quando namorava o Vanderlei, talvez<br />

eu sofra do mesmo jeito e cometa uma loucura.<br />

Não mereço uma pessoa como o Ruan, por tudo de errado que eu já<br />

fiz em minha vida, nesses anos que se passaram.<br />

Às vezes quando estou no meu trabalho me dá um fogo, uma vontade<br />

de ficar com ele na mesma hora, fazermos amor ou simplesmente ficarmos<br />

nos beijando por horas e horas. Não consigo sentir o mesmo quando estou<br />

perto dele, e isso o magoa.<br />

O que sinto é uma carência de um sentimento que jamais me foi<br />

oferecido.<br />

Estou tentando mudar, me tornar uma mulher direita, mas não estou<br />

conseguindo. Cada dia que passa se torna mais poluído pra mim.<br />

Tudo que eu quero é ser feliz daqui pra frente, mas meu corpo é<br />

como uma bomba relógio prestes a explodir a qualquer momento e cometer<br />

algum deslize.<br />

- Já foi lá falar um oi pro Ruan Mary?<br />

- Ainda não, mas eu vou Jaque...<br />

- Vê se não dá bobeira dessa vez heim.<br />

- Pode deixar. E por falar nisso...olha só a poesia que ele escreveu<br />

pra mim.<br />

- Deixa eu ver.<br />

- Assim...o Ruan sempre escreve alguma coisa pra mim, pra ler<br />

antes de dormir, e me entrega quando eu vou embora.<br />

- Nossa! Que paixão!<br />

- Pois é. Ele é muito romântico pra essas coisas.<br />

- É, mas e na hora do...<br />

- Pára Jaque. Que fogo é esse?<br />

- Vai falar que não rola...<br />

- Nós estamos voltando...não deu tempo ainda. Amanhã à noite eu<br />

vou na casa dele conhecer os pais dele e, a gente pode depois, ir a algum<br />

lugar.<br />

- Sei...<br />

- Ái Jaque...a família dele vai estar lá.<br />

- Tenho certeza de que ele vai tentar.<br />

- Não permito...<br />

- Rá, rá, rá...você Mary, conta outra.<br />

- Rá, rá, rá...pára de falar besteira não é dona Jaque?<br />

- Rá, rá...você vai ver.<br />

O tempo passa, e o sentimento dos dois jovens dá sinais de que irá se<br />

fortalecer, contrariando opiniões que desacreditavam esse namoro entre<br />

uma garota que já ‘aprontou um ó’ na sua vida e um rapaz que embora<br />

sofra influências erradas, possui apenas a rebeldia de achar que a vida é<br />

sempre um jogo.<br />

79


No sábado aconteceu que foram pra casa do Ruan, pra que ela fosse<br />

apresentada aos pais dele. Jaqueline, irmã mais nova dele ficou pescando<br />

vários beijos roubados pelo seu irmão enquanto sua mãe distraía-se.<br />

Depois de jantarem, foram lá pra fora namorar no beco onde as<br />

roupas secavam no varal.<br />

- Você não tem juízo mesmo Ruan, e se a sua mãe vier aqui.<br />

- Não vem, relaxa.<br />

- Mas não é certo a gente ficar aqui.<br />

- Só estamos namorando...o que tem demais?<br />

- Pára...vai aparecer alguém e pensar coisa errada de nós...<br />

‘Nossos corpos molhados, se envolvem em prazer. Não há nada igual<br />

a querer, não há nada! Lá no céu...lua crescente, despeja o seu brilho – ái<br />

de nós! Somos nós, nos amando, nos gostando, e nos admirando.’<br />

Sei, mas conta aí Ruan, me conta o que aconteceu depois que fiquei<br />

curioso.<br />

‘Nossas línguas se enroscaram e nossos braços se enlaçam, no vão do<br />

corredor estreito. Ela levantou minha blusa meio sem jeito e pude sentir a<br />

mão dela deslizar em minhas costas. Ficamos assim muito tempo...<br />

Fui levar a Mary em casa, um pouco pensativo sobre umas coisas.<br />

Descrente pelo fato dela não ter se sentido à vontade pra me namorar, eu<br />

percebi isso. Comecei a me perguntar em pensamentos sobre minha idade,<br />

pelo meu corpo. Pensei que talvez se eu fosse uma pessoa mais madura, ela<br />

se sentisse melhor. Isso eu perguntei à ela e me garantiu que não, que não<br />

se arrepende do que fez, me escolhendo pra namorar. Eu não me senti<br />

confiante.<br />

Depois fui embora pra casa, ainda sentindo o efeito do corpo<br />

dela...adormeço.’<br />

É Ruan, mas toma cuidado. Não vai se entregando assim tão fácil<br />

não. Da outra vez deu no que deu.<br />

- Eu sei Vitor, mas pra ser sincero, eu vou dar só uma chance à ela.<br />

Se ela vacilar uma única vez comigo eu termino com ela.<br />

Certo, mas aqui, você tem que tomar cuidado mesmo. Olha só, vou<br />

pedir a saideira pra gente ir dormir...<br />

- Pode deixar que eu acerto a conta.<br />

Não quê isso, vamos rachar.<br />

- Não, é sério, deixa que eu pago.<br />

Tudo bem então.<br />

Eu evitava perguntar pro Ruan sobre o que ele estava fazendo. Era só<br />

o que ele contava mesmo e só. Eu não queria de forma alguma tomar<br />

partido nisso tudo.<br />

Depois nós fomos embora e no caminho eu tive a sensação de estar<br />

sendo seguido por um carro preto. O carro passou por mim umas três vezes.<br />

80


Não sei, pode nem ser o mesmo carro também. Pode ser só<br />

impressão minha, afinal eu tomei umas hoje...<br />

Capítulo 5<br />

O amor não pode ser explicado. O que une esse jovem à Mary é um<br />

sentimento forte e protetor, não é amor, isso dá pra perceber. É mais um<br />

sentimento fraterno, porém forte! O Ruan tem ciúmes dela e não esconde<br />

esse sentimento. A Mary por outro lado não o ama, mas está tentando<br />

reeducar o seu coração e o seu espírito.<br />

O namoro deles, que parecia estável, foi abalado certo tempo depois.<br />

Isso foi no dia cinco de Março. Um conhecido de Ruan viu a Mary<br />

conversando com Vavá, na porta da casa dela. Esse já foi namorado dela e<br />

mora na mesma rua.<br />

Permaneceram brigados por um tempo e depois acabaram voltando,<br />

após uma conversa.<br />

Tudo que se passa conosco quando estamos carentes de uma carícia,<br />

não precisa ser explicado e compreendido, mas superado.<br />

Não posso dizer que o namoro desses dois já passou da conta em<br />

enganação porque não tenho certeza disso. Mary é vista pela maioria dos<br />

homens como uma mulher fácil, ideal para as horas de solidão. São muitos<br />

os pretendentes que a provocam com propostas de uma noite. Quem pode<br />

garantir que ela recusa?<br />

Tantas vezes já me perdi em pensamentos procurando uma solução<br />

fácil para os muitos dilemas da vida. O amor é a maior prova de resistência<br />

a que os homens se submetem ao longo da vida, sofrimento existe à<br />

vontade. Ninguém paga pra sofrer, sofrimento é de graça!<br />

Nesse instante, eu escrevia uma poesia e acabei me perdendo. Olhos<br />

humanos desvendaram uma tempestade forte que se aproximou da cidade<br />

mineira. As roupas se agitando nos varais das casas enquanto o vento sopra<br />

fortemente, levantando a poeira das ruas.<br />

Relâmpagos que varrem risos racham no cerrado o solo seco,<br />

apedrejado pelos raios de sol, as nuvens cinzentas se fecham e a tempestade<br />

desaba sobre a cidade ao som de um pagode que toca no bar do Ércio.<br />

Ruan ligou pra casa da Mary pra desmarcar seu encontro com ela,<br />

por causa da chuva. Nunca haviam saído pra namorar em um local<br />

diferente, que não fosse aquela praça e, o jovem essa noite a levaria ao<br />

Descontrassamba.<br />

Ruan insistia com a idéia de que não era amado, e Mary...como se<br />

nem pensasse pra dizer, tentava mudar essa cisma.<br />

Deixo claro que não posso dizer nada sobre essa moça, ou melhor,<br />

sobre essa mulher, em relação à fidelidade, mas acredito que a sua postura<br />

denuncia que seu coração ainda bate, mesmo que de leve, por algum ex<br />

81


namorado ou ficante, talvez até mesmo o tal Vanderlei, que foi o seu<br />

primeiro namorado.<br />

As águas rolam como a saudade que desfia a alma. Enquanto as<br />

horas do fim de tarde vão adormecendo, e eu tomando um Martini, Ruan<br />

escreve alguns versos para o seu amor, uma namorada que não demonstra<br />

de todo amá-lo, de maneira sincera...alma aventureira que já tentou suicídio<br />

outrora.<br />

Não posso dizer que essa Mary é fiel ao Ruan, mas vi outro dia a<br />

caminho de sua casa ela conversando com um outro rapaz, aparentando ter<br />

uns vinte e cinco anos.<br />

Sete horas após a tempestade, as árvores soluçam e as gotas de água<br />

mergulham das copas. Num galho canta o bem-te-vi.<br />

Nove horas da manhã e o dia está nublado...<br />

- Se não chover hoje, a gente pode se ver?<br />

- Claro tchu-tchuco! Ah, e adorei o passeio ontem, e adorei o anel<br />

que você me deu. Muito lindo mesmo!<br />

- Quê isso, foi só um presente...<br />

- Mas deve ter sido muito caro...<br />

- Não esquenta, eu já estava juntando mesmo o dinheiro rpa te<br />

comprar um presente.<br />

O ar da cidade umedecido chama pra orgia o vírus da gripe, e o<br />

bacanal acontece...<br />

- Sua voz está diferente.<br />

- É que eu estou um pouco gripada.<br />

E cái a noite na cidade bela, com uma nova tempestade forasteira que<br />

demora a passar.<br />

- Gú, é o Thiago. Cê não vai acreditar. Três caras estavam em um<br />

carro preto e me pararam na rua. Eles queriam saber do Giancarlo. Me<br />

fizeram um montão de perguntas...<br />

- Você também? O Fred me ligou e falou a mesma coisa.<br />

- Eu estou preocupado. Esses caras estavam armados.<br />

- Será que o Ruan sabe de alguma coisa?<br />

- Não sei. Eles estão procurando o Giancarlo. Deve ter alguma coisa<br />

a ver com a morte do Augusto...<br />

Capítulo 6<br />

Belo Horizonte, vinte e oito de Março de 2002.<br />

Rua Galba, bairro Álvaro Camargos.<br />

É noite, Mary e Ruan namoram.<br />

82


O rapaz, repleto de preocupações não consegue se concentrar no<br />

namoro. A rua é deserta e escura, o que mesmo favorecendo os instintos<br />

não o comove.<br />

A lua cheia lá no céu colore de luz o horizonte e despeja sobre Ruan<br />

a vontade do amor, mas o nervosismo e a preocupação roubam-lhe a<br />

condição.<br />

Ruan não pára de pensar no tal carro preto, e teme que aconteça<br />

alguma coisa.<br />

Confuso, tenta esconder o fato mas cada vez mais se sente<br />

comprimido...<br />

- O que foi Ruan? Não consegue se concentrar?<br />

- Como pode isso acontecer comigo?<br />

- Calma Ruan, a gente namora outro dia, com calma...não precisa ter<br />

pressa.<br />

- Não era pra isso acontecer.<br />

- Não se preocupa com isso não tchu-tchuco...a gente marca outro<br />

dia.<br />

- Não sei se estou num clima bom depois de hoje.<br />

- Por que?<br />

- Se acontecer de novo eu...<br />

- Você está preocupado com alguma coisa que eu não saiba?<br />

- Não, só estou um pouco cansado.<br />

- Isso acontece.<br />

- Não deveria ser assim, eu só tenho dezessete anos. Não estou na<br />

idade de ter preocupações e de estar cansado...<br />

- Mas é que...<br />

Subitamente um veículo passa pelos dois em velocidade baixa. Ruan<br />

gela por dentro e sente a morte dentro do carro. Seu coração dispara e suas<br />

mãos suando frio seguram as mãos de Mary.<br />

É um carro preto com os vidros escuros. Em seu interior há mistério<br />

e maldade. Há a procura e ambição, misturada a um instinto de vingança.<br />

- Mary, vamos embora que eu acho que esse carro vai voltar.<br />

- Calma Ruan, devagar.<br />

- Anda logo, vem!<br />

Os dois correm pela rua em direção à rua de baixo que é mais<br />

movimentada. Ruan está aflito, pensa que ambos irão morrer naquele lugar.<br />

Chegando na rua param no primeiro bar que encontram. Ruan vê o<br />

carro preto passar na rua e encara o carro sem piscar os olhos. Sua<br />

respiração ofegante e os batimentos cardíacos acelerados.<br />

Mary está atemorizada! Não entende a razão daquele carro estar<br />

seguindo os dois. Seriam assaltantes, talvez não – ela pensa – afinal não<br />

tem nada de valor.<br />

83


Ruan vê o carro dobrar a esquina e aguarda um tempo no interior do<br />

bar, depois eles saem e param um táxi. Ruan leva Mary até sua casa e<br />

depois vai embora no mesmo táxi.<br />

Um milhão de pensamentos o atormentam...chegando em casa, ao<br />

abrir uma lata de cerveja o telefone toca...<br />

- Alô!<br />

- Você sabe o que procuramos. Diga onde ele está...<br />

- Quem está falando? Eu não sei de nada...<br />

- Não dificulte as coisas, ou nós também iremos mostrar do que<br />

somos capazes. Você sabe onde está o ladrão.<br />

- Eu não sei...ele foi embora, ninguém da escola tem contato com<br />

ele, por favor me deixa em paz...<br />

Nisso a pessoa misteriosa desliga o telefone, deixando Ruan<br />

aterrorizado. O desespero toma conta do jovem e ele se sente indefeso.<br />

Vai até o quarto e começa a chorar incessantemente. Tem medo do<br />

que aqueles homens possam fazer. Eles estão atrás do Giancarlo, e parecem<br />

dispostos a fazer qualquer coisa para encontra-lo.<br />

Novamente o telefone toca e Ruan corre pra atender.<br />

- Oi tchutchuco! Fiquei preocupada, com medo que tivesse<br />

acontecido alguma coisa com você.<br />

- Eu estou bem, mas estou com medo dessa situação toda. Esse carro<br />

deve ter seguido a gente por causa do Giancarlo e do Augusto.<br />

- Mas você está bem?<br />

- Estou sim! O táxi me trouxe rápido! Eu vim olhando pelo caminho<br />

e não vi nem rastro do carro preto.<br />

- Que bom amor, eu estava muito preocupada com você. Você não<br />

imagina o quanto eu te amo, o quanto eu te quero...<br />

***<br />

Logo pela manhã Ruan foi até a casa de Mary, estava com um<br />

revolver escondido debaixo da blusa. Tinha medo da situação mas era<br />

valente demais pra ficar acovardado feito uma presa. Estava disposto a<br />

revidar.<br />

- Bom dia amor! Que surpresa!<br />

- Mary eu vim aqui pra te ver e te trazer o seu presente de páscoa.<br />

- Obrigado amor, eu...<br />

- Olha Mary, eu estou muito preocupado com você e por isso tomei<br />

uma decisão.<br />

- O que foi amor?<br />

- Como amanhã você vai à igreja e nós não vamos nos encontrar, e<br />

sábado é véspera de páscoa...quero que você nesses dias procure não pensar<br />

84


em mim. Tente se esquecer de mim e começar uma vida nova, sei lá,<br />

conhecer outra pessoa que não seja tão ruim quanto eu.<br />

- Não. Não é isso que eu quero.<br />

- Mas como a gente pode ficar junto? Eu estou com medo e<br />

preocupado com você. Lembra de ontem, eu achei que nós dois iríamos<br />

morrer.<br />

- Você fez alguma coisa de errado Ruan?<br />

- Não, mas não quero te trazer problemas.<br />

- Calma Ruan. Quando você chegar em casa relaxa, dorme um<br />

pouco...você está dizendo isso da boca pra fora.<br />

- É minha decisão, e nada me faz voltar atrás. Auto- estima,<br />

preocupação, tristeza...é como grão de areia que cai das mãos.<br />

Já na rua do cais antigo, ele vai embora pelo caminho de sua casa.<br />

Totalmente cabisbaixo o jovem se sente atormentado por tudo de<br />

ruim que está acontecendo. Em alguns momentos sonha encontrar com o<br />

carro preto na esquina e atirar contra ele até descarregar o revolver, em<br />

outros fica com medo de estar sendo seguido pelo carro e olha pra traz.<br />

Algum tempo depois de chegar em casa, Mary liga pra agradecer o<br />

presente e os dois conversam.<br />

- Queria te agradecer pelo colar amor. É muito bonito, mas deve ter<br />

sido caro...<br />

- Não esquenta. Eu tinha juntado dinheiro pra te comprar, e não foi<br />

tão caro assim não.<br />

- Oh, tchutchuco, brigadinha...mas é que eu não pude comprar nada<br />

pra você.<br />

- Preocupa não.<br />

- Você como está?<br />

- Normal e você?<br />

- Agora estou um pouquinho melhor!<br />

- Por estar falando comigo?<br />

- É sim!<br />

- Ta bom...<br />

- Tem certeza disso que está fazendo?<br />

- O quê?<br />

- Terminar assim, por um motivo tão bobo.<br />

- O quê eu posso fazer?<br />

- Te dou um tempo pra pensar.<br />

- Minha auto-estima está baixa, e isso é como pássaro que voa da<br />

gaiola: não volta mais.<br />

- O que eu vou fazer da vida Ruan? Você é a única razão da minha<br />

felicidade!<br />

- Não sou a pessoa certa pra você.<br />

- É claro que é. Por favor, não faz isso não. Pensa direitinho.<br />

85


- Tchau.<br />

- Promete que você vai pensar?<br />

- Não.<br />

- Lembre-se que eu quero ficar com você. Se não for você não serve<br />

outro.<br />

Os dois desligam. Seus pensamentos o despedaçam e gemem de dor<br />

pela sala, deixando rastro.<br />

A lua no céu, no meio-dia esmaga com sua brancura o coração que<br />

faz então todo o corpo turvar-se arrepiado.<br />

A alma do Ruan lamenta inconsolada e, rente á brisa uma lágrima<br />

gelada rola dos olhos castanhos, paraíso do licoreiro.<br />

A brisa consome num segundo à lágrima e reflete a tristeza do jovem<br />

na copa das árvores que se agitam.<br />

Tanta tristeza aflora no íntimo dos pensamentos que desabam a<br />

chorar pelo terreiro.<br />

Cai a noite e as estrelas no céu são como olhos que enxergam a<br />

tristeza que se espalha pelo ar da noite nesse bairro belorizontino.<br />

Uma alabarda rasga os sonhos do Ruan deixando uma jaça na íris dos<br />

seus olhos. É como se cantasse o jaó enquanto cada um de seus<br />

pensamentos ajoelha-se e chora em cada canto da casa.<br />

Sua majestade, a esperança, faz varrer o mel da flor...em nosso suor<br />

espelha-se!<br />

Vai Ruan...reencontre o prazer pela vida. Quando alguma coisa dá<br />

errado, nossa vitória é bem maior após a falha superada!<br />

- Não posso Vitor. Bem que eu queria fazer as coisas ficarem mais<br />

fáceis mas não posso.<br />

Medo, cada um de nós em algum dado momento da vida sentimos.<br />

Porém quando fraquejamos perante ele tudo fica mais difícil. O verdadeiro<br />

ganhador, não é aquele que sempre se encoraja diante de tudo, e sim aquele<br />

que sentiu medo, e na sua fraqueza superou o medo.<br />

- É tudo tão difícil. Você fala como se fosse tão fácil, queria ver se<br />

isso tudo estivesse acontecendo com você. Se você teria a mesma<br />

facilidade pra se encorajar. Às vezes sinto que você não se preocupa nem<br />

consigo mesmo, que não tem coração, que é apenas um observador, uma<br />

figura num cenário. Eu estou falando do medo no meu coração, pelas<br />

pessoas que eu amo e pela garota que eu estou gostando...<br />

Gostando? Não ama?<br />

- Não adianta, você nunca vai entender...<br />

Capítulo 7<br />

86


Em sua casa Ruan aprecia a noite e tenta inutilmente se desfazer das<br />

tristezas amargas de sua vida. Qual seria o remédio pra acabar com a<br />

solidão que o aflige?<br />

Uma falta de esperança imensa se aloja nos seus olhos castanhos.<br />

Ruan tenta se esquecer dos problemas bebendo cerveja e vinho num total<br />

descontrole.<br />

É tarde...sua mãe e suas irmãs voltam da casa da Marcília, parente<br />

próxima, tão próxima que mora no mesmo bairro.<br />

Foram visita-la e ao voltar, desculpa citar que foram fofocar sobre a<br />

vida alheia...não perceberam a embriagues de Ruan que já estava no quarto<br />

após chegarem.<br />

Às vezes um problema causa uma emoção contrária àquela esperada.<br />

Foi o que aconteceu com Ruan.<br />

Enquanto que outro jovem pudesse talvez não temer tanto essa<br />

situação toda, esse rapaz se viu invadido por um sentimento de culpa, que<br />

não era seu, muito menos de sua namorada. Nesses momentos é que nós<br />

conseguimos enxergar verdadeiramente o que se passa no íntimo das<br />

pessoas. Ruan acredita que pra sua namorada é como se fosse um troféu a<br />

segurança que ele poderia oferecer, seria sua virilidade infalível. E como<br />

Ruan não pode proporcionar tudo, ele pensa que não tem mais tanta<br />

importância pra ela como namorado.<br />

E o Ruan se culpa a todo instante até seu prazer pela vida acabar,<br />

consumido pela tortura.<br />

***<br />

“Entendo bem dessas coisas! Acho que: se a minha irmã fosse mais<br />

apaixonada pelo Ruan, e demonstrasse isso...ele ficaria mais próximo dela,<br />

tanto que nem uma tempestade o faria recuar no relacionamento.<br />

O problema é a minha irmã. Entendo o Ruan, não é fácil se sentir<br />

seguro com uma pessoa como ela. Se eu fosse homem acho que aconteceria<br />

comigo também. Talvez se ela demonstrasse gostar dele, do jeito que todo<br />

homem espera, esse amor dos dois iria além, muito além.<br />

O problema é que ela aprendeu a amar de uma forma muito errada.<br />

Na verdade acho que o Ruan é o primeiro garoto da idade dela que teve<br />

alguma intimidade com ela.<br />

Ela me conta tudo, ela já falou até que intimamente sempre preferiu<br />

o Wanderley do que qualquer namorado que já teve. Ela me conta tudo e<br />

isso é um problema, porque ela gosta do Ruan com uma afeição<br />

especial...mas só afeição não basta, isso a gente sente por um amigo ou<br />

parente. Um rapaz tão legal como o Ruan merecia mais dedicação. Ela não<br />

vai encontrar uma pessoa como ele se o perder de vez...mas ainda há uma<br />

chance para os dois, a saudade ainda vai falar mais alto.”<br />

87


“Às vezes me dá vontade de trancar a porta do meu quarto e não<br />

abrir nunca mais. A gente só se arrepende de uma coisa depois que<br />

acontece. Me sinto culpada por tudo que acontece de ruim ao meu redor.<br />

Toda a minha vida está pesando em minhas costas, meus olhos estão<br />

carregados de nuvens cinzentas, prestes a chuviscarem lágrimas de tirsteza.<br />

Olho no espelho e vejo minha faze desfigurada. Tento esconder meu<br />

desconsolo debaixo da maquiagem colorida pra enganar a quem convive<br />

comigo.<br />

Sinto como se uma agulha fincasse meu coração a cada batida, e que<br />

cada minuto forasteiro rouba um pedaço de vida dos meus lábios.”<br />

***<br />

É, a vida é difícil! Se o Ruan tivesse mais prudência pra conviver<br />

com os instintos, não sofreria. Como pode haver uma pessoa tão insensível<br />

como essa? Não há como um homem se motivar com quem não demonstra<br />

vontade, interesse...paixão! Ruan acha que o problema é ele por causa dos<br />

últimos acontecimentos, e isso eu sei que dificilmente será contornado.<br />

Acho que vou visita-lo e tentar dar um ânimo, uma palavra amiga.<br />

O Ruan não pode ir se apaixonando pela primeira pessoa que aparece<br />

em sua frente, mas acontece que meu amigo é uma pessoa muito solitária.<br />

Entre o Giancarlo, Augusto e Ruan, era o mais amante, o mais sentimental,<br />

e talvez o único que tivesse solução. Augusto morreu, o Giancarlo sumiu e<br />

o Ruan está indeciso. Ruan valoriza demais o amor, talvez seja essa a única<br />

salvação!<br />

Ele já foi rei da noite...nós brincávamos com as madrugadas, outrora.<br />

Depois de um tempo ele parou de sair, ficou mais caseiro. Isso foi depois<br />

de se envolver com Giancarlo e Augusto. Eu não sei o que aconteceu<br />

porque isso ele nunca me contou, só sei que foi alguma coisa muito grave!<br />

Ele – apaixonado – está passando por uma fase muito maldosa da<br />

vida! Não tem auto-estima e está preocupado, mas isso você já sabe...o que<br />

não sabe, e que deve ficar somente entre nós, por tudo que há de mais<br />

sagrado, é que no outro dia quando ele me contou que havia ficado nervoso<br />

na hora de namorarem...bem, isso já aconteceu comigo também...<br />

Eu me lembro bem, foi na primeira vez que eu fiquei com uma<br />

garota. Eu era muito inexperiente, e ela bem mais velha que eu. O<br />

nervosismo tomou conta de mim e o meu corpo inteiro ficou gelado. Eu<br />

não conseguia me concentrar em toca-la, em aproveitar momentos bons<br />

com ela. Porém ela era uma pessoa mais vivida, e soube me deixar mais à<br />

vontade...percebendo meu nervosismo, soube usar da sua experiência.<br />

A vida é o palco das atitudes! Somos sempre tão preocupados com<br />

tudo e nos esquecemos das coisas mais simples, a ponto de não<br />

percebermos o ar que a todo instante entra em nossas narinas.<br />

88


A brisa passa, nos refrescando o suor no rosto e nós não damos o<br />

devido valor a um bem tão valioso que é a brisa, a simples brisa, porém<br />

valiosa pois nos faz bem. O ar nos dá a vida. E nós nunca damos valor a<br />

nada.<br />

Não é fácil viver. A juventude é tímida e nervosa, impulsiva!<br />

No caso do Ruan falta mesmo é experiência.<br />

A Mary não demonstra tanto desejo e solidez no relacionamento, e<br />

isso ele guarda consigo, e se culpa por não ser humanamente atraente para<br />

ela. Se não sentisse nada por ela seria fácil deixar o relacionamento correr,<br />

mesmo que para o suicídio e término. Mas o que ele está sentindo agora é<br />

amor, pelo menos é o que fala e demonstra. E olha que quando voltaram ele<br />

estava mais frio com ela, mas com o tempo foi amolecendo de novo. É<br />

puro, ardente, verdadeiro, prazeroso a quem se destina, é amor que até<br />

acaba, sob o céu da lua cheia, mas ambos sentirão se acabar. Igual não se<br />

vê nessa escola.<br />

Até invejo meu amigo por ele pensar dessa maneira tão romântica e<br />

apaixonada. Não sou melhor poeta do que ele é amante. Escrevo versos que<br />

vêm da inspiração e ele, rabisca ações singelas no livro da vida, e usa<br />

sangue do seu próprio coração para manchar essas páginas.<br />

Uma luz desaba sobre as brechas da cidade escurecida no dia da<br />

páscoa. São os primeiros raios de sol que anunciam a aurora. Uma mecha<br />

de esperança do tamanho de um átomo mancha a íris límpida de uma<br />

pessoa que andou sofrendo.<br />

Ruan acordou e após tomar café escreveu uma poesia pra Mary. Um<br />

bem-te-vi anotou cada verso em sua memória e depois veio me contar,<br />

porém Ruan acabou me ligando e pedindo pra eu ver se ficou bom. Ele<br />

escreveu assim:<br />

“ Meu coração que num dilúvio andou morrendo<br />

Ao ver dos olhos muitas lágrimas rolando<br />

Ao ver da carne minha vida se afastando<br />

Decidiu lutar pra não me ver morrer<br />

Felicidade, o bem que estava me faltando<br />

Onde tristeza, só tristeza fui vivendo<br />

Me fez querer, voltar...pros seus braços correndo<br />

Pois só você me dá vontade de viver<br />

Então meus olhos chuviscaram de saudade<br />

Recordando o seu amor que descobri<br />

No íntimo da sentimentalidade<br />

E só você que faz meu coração sorrir<br />

Só você me dá vontade de existir<br />

Eu vou amar você por toda a eternidade”<br />

89


Na verdade eu acabei dando a ele a idéia de trocar o verso anterior<br />

que era “No íntimo da sinceridade” pelo verso atual. Ele até gostou da idéia<br />

e ficou por isso mesmo.<br />

Ele me contou sobre muitas coisas que estavam acontecendo e eu<br />

procurei dar os melhores conselhos. Até chamei ele pra tomar uma cerveja<br />

mas ele disse que não ia sair de casa por causa do carro preto. Ele está<br />

realmente preocupado!<br />

Capítulo 8<br />

Belo Horizonte, num Primeiro de Abril de dois mil e dois.<br />

Lá na Escola Padre Matias, o amor é eterno?<br />

Eram dezoito horas e treze minutos.<br />

Como se fosse planejado, Ruan encontra Mary logo após sair do<br />

banheiro masculino...<br />

- Posso falar com você um minutinho?<br />

- Pode sim.<br />

- Lá do outro lado, no banco perto das árvores.<br />

- Tudo bem!<br />

- E então...como é que você está?<br />

- Assim...levando a vida. O que a gente pode fazer né?<br />

- Não sei.<br />

- E você como está?<br />

- Péssimo! E um pouquinho mais!<br />

- Você pensou direitinho?<br />

- De que adianta pensar? E se tentássemos de novo e...<br />

Ela não deixou ele terminar e o beijou. Eu até fiquei surpreso quando<br />

ele contou. Talvez tenha sido a primeira e única iniciativa dela nesse<br />

relacionamento...<br />

- Pára de pensar em coisas ruins. Não vai acontecer nada.<br />

- Mas o que vai ser da gente se acontecer alguma coisa? Um alguém<br />

que uma vez...<br />

- Nem precisa continuar. Olha, eu compreendo você, e acho que<br />

tudo foi apenas um mal-entendido. Olha, eu prometo me dedicar mais a<br />

você e tentar demonstrar o que eu sinto por você.<br />

- O que você sente por mim.<br />

- Muitas coisas.<br />

- Raiva, rancor, pena e ódio são muitas coisas.<br />

- Mas não são essas coisas ruins que eu sinto não.<br />

- Cuidado! Hoje é dia da mentira.<br />

- Eu sei...mas o que eu estou falando é verdade.<br />

- Você está namorando outra pessoa?<br />

90


- Não. Se eu estivesse não teria te beijado, e se eu gosto de você,<br />

como eu ia namorar outro cara?<br />

- Talvez você gostasse mais se fosse um outro, mais velho e...<br />

- De novo essa história? Eu já disse que eu não quero ficar com uma<br />

pessoa mais velha, só com você.<br />

- Não recuperei minha auto-estima.<br />

- Vamos tentar juntos.<br />

- Melhor sermos apenas amigos não? Não quero te decepcionar nem<br />

me decepcionar de novo.<br />

- Mesmo sabendo que eu gosto de você?!<br />

- Sim...porque eu também gosto de você!<br />

- Mas então...<br />

- Sendo seu amigo não vou sofrer tanto quando você se apaixonar<br />

por outro.<br />

- Não vou.<br />

- Um alguém de quem você goste e desperte seus desejos, o que eu<br />

tento inutilmente...<br />

- Você que pensa.<br />

- Você nunca demonstra nada.<br />

- É o meu jeito de ser. Eu sou um pouco tonta mesmo.<br />

- Não precisa se culpar por nada. Se você não me ama do jeito que<br />

eu espero, talvez a culpa seja mesmo minha.<br />

- Mas eu sinto!<br />

- Tudo bem, pode dizer. Afinal hoje é o dia da mentira.<br />

- Amanhã eu vou repetir a mesma coisa, até você acreditar.<br />

Então uma voz patética vinda lá do corredor do segundo andar<br />

assassina o diálogo:<br />

- Eh, Mary...mal terminou comigo e já está com outro né?<br />

- Deixa de ser chato sô!<br />

- Quem é ele?<br />

- Só um amigo meu, lá do meu bairro.<br />

- Vou descobrir.<br />

- Calma Ruan, volta aqui!<br />

Como animal enfurecido Ruan subiu a escada e deparou com o<br />

rapaz...<br />

- Ei você aí...você tem alguma coisa com a Mary?<br />

- Não. Nós somos apenas amigos e...<br />

Era tarde, agora já tinha sido. Ruan acertou um soco no rapaz, nem<br />

deu pra eu ver daqui da sala...acho que a Mary também não viu, mas<br />

espere, o quê...só um instante, o Ruan está armado e mostrou a arma pro<br />

rapaz.<br />

Ruan, pára com isso, guarda esse revolver!<br />

- Vitor, me deixa. Esse cara falou merda e eu to resolvendo.<br />

91


Pode parar com isso, anda logo ou eu mesmo tomo isso de você.<br />

Imagina se a Mary ver isso, ela termina com você na hora. É isso que você<br />

quer?<br />

- Não anda fazendo muita diferença mesmo.<br />

A supervisora ta subindo a escada, guarda logo. Aqui ô moleque, é o<br />

seguinte. Você não viu nada entendeu?<br />

- Tudo bem, pode deixar que eu não falo nada.<br />

Some daqui.<br />

- É o seguinte, eu acabo de terminar com a Mary, e isso é ruim<br />

porque eu gosto dela.<br />

- Não cara. Não faz isso não. Eu conheço a Mary, ela é uma pessoa<br />

boa. Se acalma e conversa com ela depois...e eu só estava brincando,<br />

desculpa mesmo...<br />

-Não enche.<br />

Aqui, vai embora logo senão eu mesmo tiro esse revolver de novo.<br />

O rapaz foi correndo pelo corredor e eu peguei a mochila do Ruan.<br />

Eu não imaginava que essa história iria tão longe! Ele está transtornado<br />

com essa história do carro preto misterioso. Agora deu pra andar armado.<br />

Pior é que agora não dá pra arriscar sair da escola com isso senão<br />

aquele moleque vai abrir o bico. E eu não vou deixar isso na mão do Ruan<br />

de jeito nenhum, melhor eu guardar e convencer ele a se livrar dessa coisa.<br />

Mas então o animal enfurecido caminha pelo corredor em direção ao<br />

banheiro para lavar as mãos. Tornando cinzento o clima da escola, que<br />

parece sofrer com cada briga desse casal.<br />

- Licença!<br />

- E aí Ruan...já deu um amasso já no primeiro horário heim? – disse<br />

o Gú.<br />

Ruan ficou calado, frio, mantendo no rosto um semblante de ódio e<br />

confusão, contagiando o nosso colega de classe e o fazendo perder a graça<br />

da brincadeira.<br />

No mesmo instante, quase no mesmo lugar do planeta, na sala da<br />

Mary:<br />

- Que cara é essa Mary? – disse a Jaque.<br />

- É que o Ruan ficou com raiva de mim por ciúmes.<br />

- Mas vocês não haviam terminado?<br />

- Sim, mas ele estava prestes a pedir pra voltar.<br />

- Ah, parte pra outra sô. – disse a Fernanda.<br />

- Não dá.<br />

- Ei, que telefone é esse?<br />

- Ah, é de um ex caso meu.<br />

- Ta saindo com ele? – disse a Tati.<br />

92


- Não. Esse telefone já está aí a muito tempo, é que essa folha é do<br />

meu fichário do ano passado. Coloquei aqui por causa do desenho desse<br />

coração.<br />

- Rá, fala sério Mary...se eu não te conhecesse.<br />

- Estou falando sério Tati.<br />

- Se eu fosse você desmanchava então, se não quer que o Ruan veja.<br />

- Não, ele nunca mexe no meu fichário.<br />

- Nossa, eu achei lindo o colar que ele te deu!<br />

- Bonito né? Ele não quis me falar o valor mas eu sei que foi caro!<br />

- Olha essa conversa aí no canto...está atrapalhando a minha aula.<br />

- Tudo bem prof...já paramos ó...Ri, ri, ri...<br />

- Ri, ri, ri...<br />

Então Mary se esquece de rabiscar o telefone escrito a lápis na folha<br />

do fichário. E isso infelizmente revela que ela não é mesmo o que se<br />

esperava em relação a mudanças.<br />

Quando a aula termina, Mary espera por Ruan. Então – com ele mais<br />

calmo – sobem conversando como se fossem amigos e ao chegarem na rua<br />

do cais antigo, ela vai embora.<br />

Eu subi com o revolver do Ruan. Não queria deixar a arma nas mãos<br />

dele. Mas também não quero me envolver nas coisas erradas que ele faz.<br />

Depois vou ligar pra ele e resolver isso. Imagina se eu tomo uma geral aqui<br />

na rua...<br />

Se bem que com uma arma a gente fica mais homem, sei lá...também<br />

não estou gostando dessa história do carro preto, mas se ele aparece na<br />

minha frente numa hora dessas – vixi – eu simplesmente abria fogo.<br />

Droga! É melhor eu esquecer essa história. Daqui a pouco vou<br />

acabar me envolvendo.<br />

***<br />

“A caminho de casa, na rua do Cais Antigo, me encontrei com o<br />

Wanderley. Subimos conversando até certo ponto e ele me contando sobre<br />

sua vida...que estava desempregado, tinha engravidado a mulher com quem<br />

estava se relacionando...<br />

Wanderley é um canalha! Seria o homem ideal para qualquer mulher<br />

se tivesse o coração, os ideais do Ruan. Ainda gosto, mesmo que só um<br />

pouquinho, lá no fundinho dele...e não consigo mudar isso. E só por essa<br />

razão que dei atenção a tudo que ele me falava.<br />

Já era tarde, então por medo de estar na rua, acabei subindo com ele<br />

até o portão da minha casa mas não abri, com medo dos meus pais o virem.<br />

Eu sentia desejo de estar nos braços dele, mas eu não cedi ao pedido<br />

que me fez. Pela primeira vez desde que eu conheci o Ruan eu não cedi ao<br />

desejo do meu corpo e dei mais valor a minha existência como mulher.<br />

93


Meu Deus! O Ruan me transformou numa mulher de verdade. Estou<br />

frente a frente com o Wanderley e meu corpo pedindo o pecado, mas meu<br />

coração e os resquícios de integridade que restaram em mim selaram o meu<br />

corpo.<br />

Que sentimento tão bom que eu estou sentindo! Uma coisa como que<br />

uma vitória. Pela primeira vez em minha vida eu me sinto uma mulher<br />

honrada, embora pelos erros que eu já cometi anteriormente digam de mim<br />

a qualquer lugar onde eu vá. Que paz! Que sentimento de vitória!<br />

Despedi do Wanderley deixando em seu olhar um ar de derrota, de<br />

incapacidade de usar meu corpo para aliviar os seus próprios problemas.<br />

Ao fechar o portão olhei para o céu, fiquei observando as estrelas,<br />

olhei para o meu corpo, por alguns momentos passei as mãos em meu busto<br />

e senti a brisa da noite refrescando o ar.<br />

Logo termina o calor dos primeiros meses, logo virá a estação do<br />

frio. Meu coração somente deseja que eu esteja bem, que minha vida siga o<br />

rumo certo...que eu seja feliz!<br />

***<br />

“A vida está sempre nos colocando à prova de resistência. O quê é<br />

que eu vou fazer? Ou fico cismado com a Maria, ou fico triste longe dela.<br />

Essa conversa que tivemos depois que a aula terminou, me deixou<br />

confiante! Senti um acréscimo pela auto-estima e uma valorização do meu<br />

interior. Minha esperança explodiu de repente e tomou a íris dos meus<br />

olhos.<br />

Vou esperar o momento certo pra pedir outra chance. Até sexta-feira<br />

vou dificultar as coisas, depois vou ver como fica.<br />

Fico feliz por saber que ela não deixou de gostar de mim por aquilo<br />

que aconteceu semana passada! Agora tudo vai dar certo, tem que dar!<br />

Nada vai me tirar de novo essa alegria pela vida, nada.”<br />

Capítulo 9<br />

No dia três de dezembro do ano passado, Ruan começou a namorar a<br />

Mary, sem fazerem muita cerimônia...disse logo o que queria, mesmo que<br />

desajeitado.<br />

A princípio o modo recatado com que a jovem se apresenta cativou<br />

intensamente os olhos dele, um jovem amigo que nasceu para amar.<br />

Ele desde então vem acreditando que encontrou sua alma gêmea ou<br />

melhor, sua cara-metade. Mas não...Mary é uma mulher passiva demais,<br />

refém demais da vida e das pessoas. Não sabe se impor, dizer o que pensa<br />

ou o que deseja, por medo e receio também, por timidez. Mesmo que as<br />

coisas não sejam do seu agrado, permanece calada. É como se meu amigo<br />

94


namorasse uma boneca, uma estátua...até bonita por fora, mas vazia por<br />

dentro.<br />

Ruan desperta seu temperamento explosivo com relação à paixão.<br />

Tenta ser para ela o homem mais sedutor e dedicado do mundo, por várias<br />

vezes escreve poesias, até parou de me pedir pra fazer isso e agora escreve<br />

as suas próprias. Abusa de carícias e palavras ardentes enquanto namoram<br />

e o mais importante: deixa claro à ela que a ama mais que muitas coisas.<br />

Muitas intrigas surgiram no decorrer dessa relação. Quando se<br />

separaram, lá no dia dezessete de Janeiro, aposto que a Mary estava saindo<br />

com um outro cara, quem sabe até alguém mais velho, que tinha até carro<br />

ou moto. Não desacredito nisso não, não coloco também a mão no fogo por<br />

ela, aliás por ninguém.<br />

Passaram um mês sem se ver. Nesse espaço de tempo , poucos<br />

sabem o quanto ele sofreu e eu sou um desses poucos.<br />

Quando voltaram a namorar, a Mary insistiu com a história que<br />

gostava dele. Só que ele acreditava nisso, mas é questionável, afinal ela<br />

nem o procurou quando se separaram, e só voltaram a se ver por estudarem<br />

aqui no Padre Matias.<br />

Poucas coisas marcam tanto quanto um encontro amoroso,<br />

principalmente se for criminoso e culpado quanto o que ele me contou,<br />

quando foram namorar atrás da banca de jornais lá na pracinha do<br />

Kooyman, o mesmo colégio em que nós estudamos quando éramos<br />

crianças.<br />

Disso o Ruan sentiu falta por várias vezes quando saiamos pra beber<br />

e ele ficava contando. Aventura tem sabor de sorvete com vinho, ele dizia...<br />

O coração mesmo agindo errado fala mais alto que a razão por<br />

muitas vezes quando existe saudade. Está para nascer quem goste de<br />

solidão.<br />

***<br />

“Morro de sono ao ficar debruçado na janela, vendo a noite, lá no<br />

meu casebre pobre, minha maloca, que não é no campo nem no alto da<br />

montanha ou da serra. Imaginando coisas, procurando no espaço uma<br />

estrela que nunca vi brilhando, mas tenho vontade de avistar e possuir com<br />

os olhos. É esse o vazio que tento preencher, que me falta, o meu<br />

presente...de meu sonho de criança que a vida não deu. Meu sentimento é<br />

como criança vendo o rio roubar para a distância um barco de papel.<br />

Morro de sono mas tenho medo de cochilar, porque quando eu<br />

acordar, posso viver novamente a angústia que mata de desgosto, lá no meu<br />

casebre, e se chama solidão.<br />

Eu tenho vontade de olhar um dia a vida, e enxergar um mundo bom,<br />

sem guerras e sem fome...mas não quiseram os cardeais das horas que eu<br />

95


visse, antes me deram para olhar a maldade, pra que respirasse sofrimento,<br />

meu coração vermelho.<br />

Tudo aquilo que tem um início, provoca desejo pela repetição, mas<br />

quando falta alguma coisa, sobra fácil um sofrer.<br />

Estou andando preocupado. Meus amigos estão correndo perigo por<br />

causa do Giancarlo e do Augusto, e agora por minha causa. Estou<br />

envolvido demais nisso tudo, guardando o dinheiro das drogas que o<br />

pessoal vendeu, as armas e as jóias que eles roubaram.<br />

Nem sei se ele vai aparecer de novo, se está morto.<br />

Eu queria poder me livrar disso tudo. Talvez se ele ligasse, se viesse<br />

buscar isso.<br />

Eu estou muito confuso com tudo! Problemas de um lado, minha<br />

vida amorosa de outro, o carro preto...”<br />

***<br />

Ruan andava iludido e derramando de paixão por Mary. Aguardava o<br />

momento certo de voltar, e como cisne que canta, prestes a morrer, fazer<br />

com que ela enxergasse sua beleza interior, não confiante em todo o resto, a<br />

parte que se pode tocar e ver. Queria antes que ela o amasse por inteiro,<br />

mas começa a se contentar com menos que isso.<br />

Na quarta-feira, me contou que pediu à ela para escrever alguma<br />

coisa na primeira folha de seu caderno, e no primeiro horário lhe entregou.<br />

Quando a turma de Mary saiu, Ruan já aguardava a uns cinqüenta<br />

minutos, porque sua turma foi liberada no quarto horário.<br />

Como se estivesse fugindo, Mary saiu pelo outro portão e Ruan não<br />

a viu. Algumas amigas dela que passaram por ele deram uns olhares de<br />

lado sem que ele percebesse, como se soubessem de alguma coisa.<br />

Cansado de esperar Ruan foi embora, e ao chegar em casa ligou pra<br />

casa dela...<br />

- Alô!<br />

- Quem fala?<br />

- Sou eu Ruan, quer falar com minha irmã?<br />

- Quero sim...<br />

- Olha, ela já está dormindo.<br />

Ele desligou o telefone sem falar mais nada, foi na geladeira e não<br />

tinha nenhuma bebida. Pelo menos cigarros ainda tinha. Foi lá para o<br />

portão e ficou sentado fumando, deixou o revólver atrás do portão, sem<br />

perceber que na esquina da casa o carro preto misterioso com as luzes<br />

apagadas permaneceu.<br />

De repente o carro liga e sai em disparada.<br />

Ruan assustado tenta correr pra dentro mas suas pernas paralizadas<br />

simplesmente esperam.<br />

Pensou em pegar o revólver mas não deu tempo.<br />

96


Quando o carro parou o vidro se abriu. Era como se a morte estivesse<br />

dentro do carro. Não dava pra ver nada além de vultos.<br />

Uma voz, como que sinistra se revela:<br />

- O Giancarlo está morto. Nós conseguimos achar onde ele estava<br />

no interior e fomos até lá cobrar o que não era dele.<br />

Ruan suspira ofegante, surpreso e com raiva, com mais medo que<br />

raiva...<br />

- Você está disposto a colocar a vida de todos em perigo? Nós não<br />

nos preocupamos, pode ser do modo difícil, você é quem escolhe.<br />

Difícil pensar. O momento exige muito de um simples garoto, mas<br />

de repente algo foge ao controle...<br />

- Você está disposto a colocar em risco até a sua namoradinha?<br />

Aquela safadinha...<br />

- Não fala assim da Mary, e eu não tenho nada que é seu.<br />

- Mary, então esse é o nome dela. Deveria cuidar melhor da<br />

namorada então, parece que um tal Wanderley está tentando tomar ela de<br />

você.<br />

- Do que você está falando...<br />

- Que tal fazermos negócio? Você nos dá o que nós queremos e nós<br />

dizemos o que sabemos.<br />

- Não tem nada comigo. Não sei o que vocês estão querendo. Deixa<br />

meus amigos em paz senão...<br />

- Senão o quê rapaz, como é mesmo seu nome, ah, é Ruan...foi esse<br />

o nome que o ladrãozinho disse antes de darmos o último tiro nele. Já<br />

sabemos que você está com as jóias. Vamos fazer o seguinte, você escolhe<br />

alguma pra você e nos dá o resto.<br />

De repente um silêncio toma conta do lugar. Ruan pensa em<br />

aproveitar e pegar o revólver mas não pode arriscar. Eles também estão<br />

armados.<br />

O vidro do carro começa a se fechar de novo...<br />

- Você tem até o final de semana pra pensar rapaz, depois nós vamos<br />

fazer do nosso jeito.<br />

Quem seriam aqueles homens? Policiais? Talvez, mas se não<br />

fossem...quem seriam?<br />

Eles demonstram uma obsessão doentia por aquelas jóias. Se o Ruan<br />

tivesse me contado isso no início eu já teria o convencido a entregar à<br />

polícia, mas agora é tarde. Tudo já está envolvido demais.<br />

Só que quando o carro vira a esquina, Ruan nem deu tanta<br />

importância para o carro. Aqueles homens falaram de coisa, falaram no<br />

Wanderley. Revelaram que o Wanderley esteve com Mary.<br />

O mundo de Ruan desabou! Ficou um tempo parado ali, imóvel,<br />

desligado da realidade...pensando.<br />

97


Depois que entrou dormiu completamente, como se estivesse<br />

embriagado. O seu corpo foi desligado por causa do que os homens no<br />

carro preto falaram.<br />

Ruan tinha muitos problemas porém num acaso do destino todos os<br />

problemas se juntaram em um só e foram ter com ele praticamente no<br />

mesmo dia: primeiro uma tentativa de reconciliar com Mary, até deixou o<br />

caderno com ela, mas no fim da aula ela foi embora pelo portão de trás da<br />

escola; Ruan ligou na casa dela e um ar de mentira ficou no ar quando sua<br />

irmã Tamires disse que a Mary já estava dormindo; então quando chega em<br />

casa o carro preto misterioso aparece e Ruan não teve tempo nem de pegar<br />

o revólver; por fim quando menos se espera, em vez dos homens<br />

misteriosos chegarem aterrorizando, simplesmente dão golpe maior que um<br />

tiro e revelam que a Mary estava com o Wanderley, ou que pelo menos foi<br />

vista com ele.<br />

A noite passa, e logo pela manhã Ruan liga de novo pra casa de<br />

Mary.<br />

- Alô?<br />

- Quem fala?<br />

- Sou eu tchu-tchuco.<br />

- Por que fez isso?<br />

- Isso o quê?<br />

- Me deixou lá no colégio te esperando.<br />

- Você ficou lá? Mas sua sala não saiu cedo?<br />

- Como é que você sabe?<br />

- É que eu saí pelo portão de baixo, rapidinho, com uma amiga e não<br />

vi ninguém lá na sua sala quando a gente estava subindo a rua.<br />

- Mentira! Você passou por lá pra me evitar.<br />

- Não tchu-tchuco.<br />

- Ta com meu caderno?<br />

- Sim. Eu ia escrever nele agora, tinha até desenhado um coração.<br />

- Precisa escrever nada não. To indo aí pegar de volta.<br />

- Ruan, espera.<br />

Então ele desliga o telefone e saiu na rua com sua bicicleta, cortando<br />

a brisa da manhã e despejando sobre as casas.<br />

Pelo asfalto deserto atingiu uma boa velocidade e em poucos<br />

minutos já estava na rua da casa dela, lá na Limeira.<br />

Mary lhe devolveu o caderno e ele não falou nada, apenas pegou o<br />

caderno e foi embora com raiva.<br />

Ruan acredita que Mary possa ter se encontrado com o Wanderley<br />

ontem e que por esse motivo saiu pelo outro portão, talvez para depois<br />

inventar algum tipo de desculpa que saiu mais cedo...bom, são muitas as<br />

suposições que rondam a cabeça de Ruan.<br />

98


“Vitor, dá licença, deixa que eu conto essa parte...afinal eu tenho<br />

acompanhado mais de perto o que aconteceu.<br />

O Ruan tem dezessete anos, é um jovem em fase de crescimento.<br />

Para muitos, a aparência física não conta muito. O desejo de uma mulher, o<br />

fator coração...para ele não é uma simples bobagem...é honra!<br />

Eu despejava o calor sobre a cidade, os meus braços eram como de<br />

fogo! Eu era cheio de luz!<br />

Nossas vidas poéticas são como o passar das estações, onde todo ano<br />

eu morro e há tristeza e renovação da vida!<br />

Todo homem é assim, uma página em branco que a cada fato inicia<br />

uma poesia, porém morrem as rimas e os versos quando acaba o amor<br />

iniciado. Viver e morrer, sempre porém renascendo para novas páginas,<br />

novas poesias, novos amores.<br />

Sabe, no início eu até me divertia...só de propósito fazia a lua<br />

derramar sobre a cidade um brilho libidinoso, só por prazer tornava as<br />

estrelas mais brilhantes e a brisa mais convidativa ao amor. Mas com o<br />

passar do tempo até eu mesmo amadureci. Cresci com os acontecimentos e<br />

agora me sinto mais velho, mais responsável.<br />

Havia uma brisa corrente, o Ruan voltava pra casa. Acabou<br />

encontrando um conhecido e se sentaram na mesa de um bar para<br />

conversarem, lá na rua Gibraltar.<br />

- Olha Ruan, acho melhor você sair dessa porque a Mary não presta.<br />

Eu já vi ela conversando com esse cara que você falou aí também.<br />

- Mas isso foi esses dias?<br />

- Não, já tem mais tempo.<br />

- É?<br />

- É sim. Se eu fosse você deixava isso de lado. Você arruma coisa<br />

melhor, você até é boa pinta, sabe conversar com mulher...e é quase bonito,<br />

só é feio.<br />

- Quê é? Ta me tirando?<br />

- Rá, rá, rá! To falando sério. Vai por mim, esquece essa mulher<br />

porque ela vai trair você.<br />

Juntaram-se a essas palavras amargas, opiniões sobre Mary, de<br />

alguns amigos desse rapaz, que conhecem a garota...mas a indecisão de<br />

Ruan era notável. Tinha por ela um sentimento de carinho embora tudo<br />

levasse a crer que não haveria um final feliz na história. Um tanto cego de<br />

amor e torcendo por melhoras, tinha as artérias entupidas por um<br />

sentimento arriscado que turvava seu sangue...paixão.<br />

Sentia falta do calor do verão assim como eu, porém há o tempo de<br />

nascer e o tempo de envelhecer. Eu estou velho e já não possuo o mesmo<br />

calor.<br />

99


Narrando esses fatos, encerro por entregar os últimos momentos de<br />

minha vida, e tal qual um barco ligeiro que some no horizonte, ao pôr-dosol<br />

não serei mais visto.<br />

Cada segundo de vida é precioso demais! É como líquido que poreja<br />

da terra nas nascentes dos rios, mais que isso, é o sabor do alimento que<br />

mata a fome, ou até mesmo o momento mais elevado do prazer.<br />

A vida está aí, e cada um deve viver. O tempo é agora! Embora não<br />

possamos saber quem somos e de onde viemos, talvez o que havia antes da<br />

explosão que gerou o universo. Mesmo que existam outros universos com<br />

os quais não possamos nos comunicar, devemos viver o que podemos e da<br />

maneira que podemos. É aqui a vida! O momento é propício!<br />

E apaixonado o jovem Ruan acordou naquele dia.<br />

Tinha nos olhos um brilho irresistível que se assemelhava ao mel,<br />

sob a luz do sol. Seu coração dizia para não acreditar naqueles homens<br />

porque eram maus, eram coisa ruim.<br />

Ligou pra casa da mulher que amava e pediu para conversar com ela<br />

depois da aula, Mary chorou ao telefone e concordou. Ruan percebeu o<br />

choro mas evitou falar a respeito, pois queria conversar pessoalmente com<br />

Mary.<br />

Demonstrava uma certa alegria aparente com a ligação. Mary do<br />

outro lado, sentindo seu mundo desmoronar de vez ao perceber o tom de<br />

voz esperançoso de Ruan.<br />

Uma pena, senti meu coração parar de bater na viração do vento.<br />

Nesse momento a Terra se distanciou de tal forma que o calor fugiu de<br />

minha existência.<br />

Sei que esse é o momento da partida e eu estou indo embora.<br />

Meus olhos estão se fechando e já não posso mais lançar sobre a<br />

cidade o meu brilho libidinoso, é o fim.<br />

Ruan se encheu de ansiedade...mas o que reserva para os dois o<br />

destino? É uma pena eu não poder esperar pra ver.<br />

Eu já devia ter ido embora uns dezesseis dias atrás, mas atrasei o<br />

meu repouso para ver o final dessa história.<br />

Adeus amigos que durante esse tempo acompanharam comigo, não<br />

somente um caso de amor, mas viveram comigo o meu ciclo de vida.<br />

Eu vou embora e levo a luz do sol do estio. Vem chegando o vento<br />

frio, para outras emoções reinarem.<br />

Desculpem-me não ter me apresentado antes, pois cheguei<br />

timidamente...era eu o espírito que ficava vagando pela cidade, sem<br />

forma...era eu que recolhia as sensações dos jovens quando namoravam...e<br />

pra quem não sabe quem sou eu, eu sou o verão!<br />

Ano que vem quero que me contem todas as novidades. Vamos<br />

novamente invadir o carnaval com o verde e rosa da Mangueira, colorir as<br />

100


praias de mulatas, negras, loiras. Que esse ano de 2002 seja bem melhor<br />

que o passado!<br />

Elevo os braços para o horizonte e entrego a minha existência. Nesse<br />

momento uma brisa fria corre por toda a cidade.<br />

Capítulo 10<br />

Belo Horizonte, 6 de Abril de 2002.<br />

Lá na Escola Padre Matias, dos fatos que vi ou que fiquei sabendo.<br />

Eram vinte e duas horas e vinte e três minutos.<br />

A madrugada serena vem descendo sobre a cidade mineira,<br />

anunciando uma brisa enamorada que trás às nossas narinas o perfume<br />

selvagem das fêmeas de nossa espécie.<br />

Todos nós guardamos sonhos em nossos corações, a decepção é<br />

inevitável!<br />

O amor verdadeiro é eterno!<br />

Ruan passou por nós com muita pressa pra se encontrar com Mary lá<br />

no portão do colégio. Eles praticamente sumiram na distância das ruas...<br />

Nós subíamos a rua e de repente um carro parou perto de nós.<br />

- Giancarlo? É você?<br />

- Entra aí gente, eu to na área de novo.<br />

- Mas você não estava morto?<br />

- Claro que não, preciso falar com o Ruan, cadê ele?<br />

- Subiu com a Mary, devem estar na Guararapes.<br />

- Vamos lá ver se alcançamos ele.<br />

Eu não ia entrar, mas acabei não resistindo. O Gú e o Tiago foram<br />

também.<br />

Perto da Eugênia Néri encontramos os dois. Giancarlo parou o carro<br />

e chamou Ruan. Ele rapidamente pediu pra Mary esperar, não queria que<br />

ela ouvisse nada do que fosse falar.<br />

- E aí parceiro, que cara é essa? Parece que viu um fantasma.<br />

- Eu pensei que você estivesse morto.<br />

- Eu já sei da história toda. Esse pessoal do carro deixa que eu<br />

resolvo. Não quero te envolver mais nisso, vou passar na sua casa amanhã<br />

pra pegar minhas coisas.<br />

- Ótimo! Eu estou preocupado com essa situação, isso está mexendo<br />

com muita gente...<br />

- Fica tranqüilo. Aqui, nós vamos tomar umas lá no barzinho.<br />

Depois que conversar com sua namorada encontra com a gente lá.<br />

Ruan fez um gesto com a cabeça e voltou pra perto de Mary. O<br />

carro subiu a rua e Ruan sentiu um alívio imenso.<br />

101


Se os homens do carro preto mentiram sobre ele estar morto, pode<br />

ser que tivessem mentido sobre o fato de ter visto a Mary com o<br />

Wanderley.<br />

Notei que Mary estava com uma impressão indisfarçável de tristeza.<br />

O vidro do carro era escuro e eu estava no banco de trás. Isso me<br />

possibilitou olhar nitidamente e constatar sem sombra de dúvidas a tristeza<br />

e o peso que sua alma carregavam.<br />

Fiquei assustado com o que vi! Nenhum dos desenhos que fiz até<br />

hoje tinham tanta falta, tanta carência de vida. Como pode haver expressão<br />

tão sem vida?<br />

Instintivamente percebi o que estava para acontecer. É como se a<br />

vida fosse um livro já escrito e que os deuses estão lendo nesse exato<br />

momento.<br />

Quando o carro subiu eu pensei em como seria essa conversa dos<br />

dois. Ruan é uma pessoa que todos gostamos muito, mas infelizmente tem<br />

que aprender com os seus próprios erros. Errar é um direito de todo ser<br />

humano.<br />

***<br />

- Mary...o que você acha que precisa mudar em mim pra que você<br />

goste de mim do jeito que eu preciso que goste?<br />

Nessa hora ela começou a chorar de uma maneira tímida. Eu só<br />

percebi a lágrima rolando, sem contudo ela modificar sua expressão.<br />

- Eu sempre quis que você fosse mais confiante Ruan. Isso teria<br />

ajudado mais pra que eu pudesse gostar de você.<br />

- Você sente que me ama?<br />

- Por favor Ruan, não me pergunta isso.<br />

- Por que? O que aconteceu.<br />

- Eu não mereço uma pessoa como você Ruan. Sempre demonstrou<br />

que queria ficar comigo e me valorizou, mesmo eu tendo errado tantas<br />

vezes.<br />

- O que está acontecendo com você?<br />

- É que, assim...eu não posso me entregar pra uma pessoa e fazer<br />

essa pessoa sofrer, mas na verdade eu já nem ligo mais para o meu<br />

sofrimento. Não quero te fazer sofrer, essa é a melhor forma de te amar.<br />

- Você acha que eu não me entreguei a você ao revelar meu amor<br />

não?<br />

Dessa vez as lágrimas caem com mais intensidade e Mary não<br />

consegue controlar.<br />

- Eu sei Ruan...eu sei.<br />

- Quando amamos, vira paixão se é algo escondido, que não se vive.<br />

Na vida temos que arriscar pra tentar ser feliz, me dá esse crédito poxa!<br />

102


- Pára Ruan.<br />

- Não Mary. Se é que você me deseja, me ama como dizia...coloca<br />

tudo isso pra fora. Deixa eu perceber que é verdade. É bom demais a gente<br />

se sentir amado.<br />

O fichário de Mary cai no chão e nenhum de nós deu muita<br />

importância. O momento era agora, estávamos finalmente conversando<br />

abertamente, eu não poderia desperdiçar.<br />

- Nada na vida é fácil Ruan. Você não entende.<br />

- Então não me peça para ter confiança viu?<br />

- Você é uma pessoa maravilhosa Ruan. Me desculpe por tudo. Isso<br />

a gente deveria ter mudado com o tempo. Eu aprendi muito com você. E<br />

prometo pra mim mesma que vou mudar o meu modo de agir.<br />

- Quero voltar a ser seu namorado.<br />

Mary chora mais ainda, nesse momento eu enxuguei as lágrimas<br />

dela. Sei que pode ser besteira eu estar comentando isso, mas eu senti o<br />

sofrimento dela e quis ajudar de alguma forma.<br />

- Você sempre se preocupa comigo. Eu nunca tive isso em minha<br />

vida. Nunca ninguém se preocupou comigo.<br />

- E você?<br />

- Também me preocupo. Quero que você seja muito feliz. Você...<br />

- É que eu tenho muito medo que você fique com outra pessoa.<br />

A Mary saiu de perto de mim e sentou no banco da praça, colocou a<br />

mão no rosto e chorou amargamente. Eu fiquei parado por um tempo, por<br />

fim acabei pegando o fichário dela no chão.<br />

Eu ia escrever alguma coisa bonita pra ela então abri o fichário.<br />

Eu estava no degrau da escadaria e abri a capa.<br />

Meus olhos se depararam com uma imagem pavorosa que me fez<br />

entrar em choque. Era o nome e o telefone de um cara, contornado por um<br />

coração, escrito a lápis, no cantinho da folha.<br />

- O quê é isso Mary?<br />

- O quê Ruan?<br />

- Esse nome dentro de um coração com telefone.<br />

- Isso é antigo...eu até ia desmanchar lá na sala mas o professor.<br />

- O que é isso que você está fazendo comigo?<br />

- Calma Ruan.<br />

- Vai embora. Pega seu fichário e vai embora daqui, me deixa ficar<br />

sozinho.<br />

- Ruan!<br />

- Se você sente alguma coisa por mim, mesmo que seja pena...por<br />

favor, vá embora.<br />

- Não faz isso Ruan.<br />

- Some daqui logo Mary, eu estou perdendo a paciência.<br />

103


Desapontada, Mary simplesmente concordou e ficou em silêncio.<br />

Nesse momento eu pude ver sua alma. Era passiva, não tinha ações. Um<br />

espectro sem brilho sobre sua cabeça, como se estivesse enforcado e com<br />

os braços amarrados.<br />

Na verdade parece que ela sentiu um alívio enorme quando eu disse<br />

para ela ir embora. Sim, pelo fato de eu não querer saber o motivo dela<br />

estar chorando. Isso embora eu imagine, jamais vou querer saber.<br />

Então eu vejo o vulto de Mary pela última vez dessa praça,<br />

desapareceu na distância escurecida da rua do Cais Antigo.<br />

Meu coração se despedaça em mil partes e minha alma gela toda<br />

num arrepio solitário.<br />

Os meus pensamentos se deitam no gramado do jardim da praça pra<br />

chorar sob a luz da lua minguante. Deixo uma lágrima rolar do meu olho<br />

esquerdo e a brisa consumi-la.<br />

Um dia essa mulher maldosa sentirá saudade do meu amor. Será<br />

tarde demais pra ela, porque desde agora, meu amor por ela falece e eu o<br />

enterro aqui nessa mesma praça onde tudo começou.<br />

Eu devia ter percebido desde o começo de tudo. É como se a Mary<br />

não tivesse nascido pra ser amada, apenas usada por quem procura uma<br />

aventura fora de um casamento rotineiro.<br />

Uma hora eu acabo encontrando alguém que mereça o sentimento<br />

que trago em meu peito e que descrevi nos versos que fiz pra ela.<br />

A solidão já invadiu os meus olhos nessa hora em que permaneci<br />

refletindo aqui na praça, na escadaria da escola, atrás do jardim. Hoje esse<br />

lugar se transforma no cemitério de minha paixão, da minha primeira<br />

paixão, e que ela seja para sempre esquecida nessa praça.<br />

Lá ao longe nessa hora apareceu o Giancarlo de carro. Foi aí que ele<br />

me perguntou se eu estava fazendo alguma coisa importante e me disse que<br />

você tinha falado pra ele ir lá me buscar. Você sempre foi muito<br />

observador, parece que estava adivinhando o que iria acontecer.<br />

- Bom Ruan, nós somos amigos. Você sempre me contou muito<br />

sobre essa relação de vocês, eu já imaginava que uma hora iria acabar de<br />

vez.<br />

- Sabe Ruan...às vezes uma boa amizade vale mais que mil amores.<br />

– Disse o Giancarlo.<br />

A rodinha de samba estava animada. Quando eu vim jogar sinuca<br />

com o Giancarlo o Vitor foi lá tocar com o pessoal.<br />

Eu to tentando esconder minha tristeza enquanto jogo, mas é<br />

inevitável. A concentração não vem e perco uma partida fácil para o<br />

Giancarlo.<br />

Eu acabei parando de jogar e ouvi uma música que o pessoal cantou.<br />

O Vitor parece ter escrito pensando no que ia acontecer.<br />

104


Nos versos que seguem, cantaram um pagode que por anos soou em<br />

minha lembrança. Ecoava na alma entristecida por causa da desilusão do<br />

amor...<br />

“Você perdeu alguém legal<br />

Você perdeu o meu amor<br />

E agora vive na incerteza<br />

De uma insegurança<br />

Não pode viver o amor<br />

Igual aos tempos de criança<br />

Aquele amor bonito que dava gosto de ver<br />

Você e eu descobrimos sem jeito<br />

Com detalhes, defeitos<br />

O que é o prazer<br />

Você perdeu aquela alegria de<br />

Um sentimento puro que<br />

Plantava o verde pra depois colher maduro<br />

Você cresceu, se aventurou<br />

Você perdeu o meu amor<br />

Desculpe-me por isso que agora vou falar<br />

Você é mulher de malandro que só gosta de apanhar<br />

Esse cara que hoje<br />

Te dá beijos e abraços<br />

A qualquer momento deixa o coração em pedaços<br />

Você perdeu<br />

Alguém que com certeza eternamente a amaria<br />

E vai se arrepender desses meus versos algum dia<br />

Se estarei casado, ou por aí<br />

Vivo em seu passado<br />

Como seu único e verdadeiro amor<br />

Que você perdeu<br />

Que você perdeu<br />

Que você perdeu<br />

***<br />

O bairro está em silêncio e somente o som da minha voz e dos<br />

instrumentos ecoa.<br />

Se a batucada corta o ar distantemente, se é que a Mary ouviu esse<br />

som...talvez esteja chorando.<br />

105


Quando sentir saudade do carinho do meu amigo Ruan será algo<br />

muito difícil. Como ele pôde amar uma pessoa assim? Seu coração merece<br />

perdão.<br />

Na vida passamos por vários momentos porém, e hoje o Ruan<br />

aprendeu o sofrimento, a desilusão. É necessário que cada pessoa passe por<br />

isso. Não é bom nem justo, mas é necessário!<br />

- Ei cara, tem como escrever essa música pra gente? Muito legal!<br />

Abro a mochila e pego o caderno. Giancarlo jogava sinuca com um<br />

coroa. Olhei pro lado e vi o Ruan caminhando, já na esquina.<br />

Eu simplesmente deixei ele ir embora. E embora ele tenha saído sem<br />

se despedir, eu não o culpei. Deve estar sentindo uma dor, um misto de<br />

angústia, algo terrível!<br />

- Ei Vitor, vamos começar uma partida de dupla, vem jogar também.<br />

Então eu olho nosso amigo caminhar pela rua...<br />

Ruan ficou arrasado com o fim do relacionamento com Mary.<br />

Pensamentos rebeldes o atordoavam a todo momento. Não podia<br />

imaginar a Mary, a sua Mary...com outra pessoa.<br />

Ele não a fez mulher nos seus braços mas se dedicou a amá-la com<br />

grandiosa intensidade. Renegou a tudo, até mesmo às opiniões dos amigos.<br />

E os dois seguem a vida. Cada um vai para o seu lado, guardando no<br />

peito a angústia, a incerteza pelos dias que virão pela frente.<br />

Que pena! Foi uma história amorosa tão promissora no início,<br />

naquelas noites enluaradas do mês de Dezembro. Quem poderia imaginar<br />

que terminaria dessa maneira: dois corações, dispersos?<br />

Sabemos que ambos irão se entristecer ao recordar os bons<br />

momentos que viveram, mesmo que estejam se relacionando com outras<br />

pessoas.<br />

Ao meu amigo, ou melhor, aos meus amigos, eis aqui o que eu havia<br />

dito. Eu coloquei no papel, eu registrei o que aconteceu ali como eu disse<br />

que faria.<br />

Fica então uma pergunta vagando no ar, onde agora reina a brisa do<br />

frio: pra onde foi o amor? Isso ninguém jamais saberá.”<br />

Fim!<br />

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