RENASCENDO DAS CINZAS(1)
Baseado na imortalidade da Fênix, conta a história da morte espiritual do ser. As perseguições morais no serviço público em um ambiente semelhante a uma instituição de policia militar. Traça um paralelo entre a participação popular e a corrupção do sistema democrático.
Baseado na imortalidade da Fênix, conta a história da morte espiritual do ser. As perseguições morais no serviço público em um ambiente semelhante a uma instituição de policia militar.
Traça um paralelo entre a participação popular e a corrupção do sistema democrático.
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ENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 1
VITOR MOREIRA<br />
Belo Horizonte - 2014<br />
2 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 3
Copyright@2014 by Vitor Moreira<br />
Email para contato: vitormoreira@vitormoreira.com.br<br />
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem<br />
os meios, sem a permissão, por escrito, do autor.<br />
Ophicina de Arte & Prosa<br />
Editora: Rachel Kopit Cunha<br />
www.ophicinadearteprosa-kopitpoetta.blogspot.com<br />
arte.prosa@gmail.com<br />
31-9128-7441<br />
Capa: Miriam Carla Alves - Vitor Moreira<br />
Diagramação: Miriam Carla Alves<br />
Revisão: Rachel Kopit Cunha<br />
Ilustração: Petrede<br />
Fotos da capa: Fotos das manifestações populares pelo Brasil, em 2013.<br />
M835<br />
Moreira, Vitor.<br />
Renascendo da cinza / Vitor Moreira. – Belo Horizonte:<br />
Ophicina de Arte & Prosa, 2014.<br />
160 p. : il. ; 15 x 21 cm.<br />
Bibliografia: 140-144<br />
ISBN: 978-85-88750-77-7<br />
1. Processos Mentais/ética 2. Vida 3. Confiança I.<br />
Título. II. Petrede.<br />
CDD – 22. ed. – 153<br />
Catalogação-na-fonte - Segemar Oliveira Magalhães CRB/6 1975<br />
4 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Universo Humano<br />
Pintura do próprio artista Vitor Moreira, do ano de 2004, onde,<br />
conforme relata, há a expressão de toda a sua criação artística,<br />
baseada na unidade do universo interior de cada indivíduo.<br />
Entende-se que cada indivíduo é bom ou ruim, tem seus mitos,<br />
suas crenças e seu caráter, entretanto, no interior de cada um, há o<br />
consenso, onde se nota que todos, independente de qualquer coisa,<br />
até mesmo da disposição das suas prioridades de vida (posição<br />
dos astros, planetas, cometas) dentro do seu universo pessoal,<br />
idealizam um céu de estrelas, luz e mistérios e uma Terra de prazer<br />
e realização. O Universo Humano é a base de toda criação artística<br />
de Vitor Moreira.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 5
TENTE OUTRA VEZ<br />
(Paulo Coelho/ Raul Seixas)<br />
Veja!<br />
Não diga que a canção está perdida<br />
Tenha fé em Deus... tenha fé na vida<br />
Tente outra vez!...<br />
Beba! (Beba!)<br />
Pois a água viva ainda tá na fonte<br />
(Tente outra vez!)<br />
Você tem dois pés para cruzar a ponte<br />
Nada acabou! Não! Não! Não!...<br />
Oh! Oh! Oh! Oh! Tente!<br />
Levante sua mão sedenta<br />
E recomece a andar<br />
Não pense que a cabeça aguenta se você parar<br />
Não! Não! Não! Não! Não! Não!...<br />
Há uma voz que canta<br />
Uma voz que dança<br />
Uma voz que gira<br />
(Gira!) Bailando no ar<br />
Uh! Uh! Uh!...<br />
Queira! (Queira!)<br />
Basta ser sincero e desejar profundo<br />
Você será capaz de sacudir o mundo<br />
Vai! Tente outra vez! Huuum!...<br />
6<br />
Tente! (Tente!)<br />
E não diga que a vitória está perdida<br />
Se é de batalhas que se vive a vida<br />
Han! Tente outra vez!...”<br />
<strong>RENASCENDO</strong> DA CINZA - VITOR MOREIRA
SUMÁRIO<br />
INTERNAÇÃO ..................................................................... 09<br />
PERSEGUIÇÃO .................................................................... 20<br />
CAMPO MINADO ............................................................... 42<br />
SUICÍDIO .............................................................................. 47<br />
CAMPO DE CONCENTRAÇÃO ....................................... 54<br />
A HORTA ............................................................................. 60<br />
A VENDINHA ..................................................................... 61<br />
O LIXADOR DE CHAVES ................................................. 63<br />
O REJEITADO ..................................................................... 65<br />
O FAZENDEIRO ................................................................. 67<br />
OS BOIS ............................................................................... 69<br />
A VELHA............................................................................. 73<br />
O CORREDOR .................................................................... 74<br />
MÃOS TRÊMULAS ............................................................ 76<br />
A RODINHA DE BRASAS ................................................. 79<br />
OS REMÉDIOS DO DESEJO ............................................. 80<br />
A IMAGEM DA ESTRADA ................................................ 82<br />
O FRIO E AS NEBLINAS................................................... 86<br />
OS EMBATES ...................................................................... 88<br />
<strong>RENASCENDO</strong> DA CINZA - VITOR MOREIRA 7
DESENHOS NA PAREDE. ................................................ 90<br />
AS TROCAS DE OBJETOS ............................................... 94<br />
VISITAS ................................................................................ 96<br />
A ANSIEDADE ................................................................... 99<br />
OS AMORES PROIBIDOS................................................ 103<br />
O TROTE ............................................................................ 106<br />
A PEGADINHA DO BONECO ........................................ 109<br />
O PRESENTE .................................................................... 115<br />
LEMBRANÇAS DA ROÇA.............................................. 122<br />
A IGREJINHA .................................................................... 126<br />
VISITA À ALA DOS LOUCOS ........................................ 130<br />
SEGUE A SUA ESTRADA ............................................... 134<br />
O DESPERTAR .................................................................. 141<br />
DESVIANDO O OLHAR .................................................. 147<br />
A DEMOCRACIA É DO POVO ....................................... 152<br />
8<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
INTERNAÇÃO<br />
A partir desse momento, não admito mais falar com o senhor.<br />
Não sou um cachorro para ser tratado dessa maneira e exijo respeito<br />
da sua parte. Querem que eu vá à força, como se eu fosse um produto<br />
do sistema, um androide programado para apenas cumprir ordens,<br />
sem ter vontade própria. O que está acontecendo não é por minha<br />
vontade. Tenho o direito de escolher o que é melhor pra mim.<br />
– Acalme-se, senhor! – disse uma mulher que acompanhava um<br />
enfermo no ambulatório do hospital.<br />
– Que acalmar o quê? Manda que ele chame lá os vinte que falou<br />
que vai chamar pra me segurar, já que ele sozinho não tem coragem.<br />
Não sou homem de receber uma ameaça dessas e ficar calado. Que<br />
ele volte e cumpra a ameaça que fez, estou esperando. Não aprendi<br />
a ser medroso e vim parar aqui justamente por causa disso. Eu sei<br />
que tenho direitos, sei disso, e mesmo que tenha de ir até as últimas<br />
consequências para tê-los respeitados, tenham a certeza de que<br />
farei isso sim, às custas de muito sofrimento, mas nada muda o meu<br />
caráter.<br />
– Eu entendo, senhor, mas é necessário – replicou a enfermeira.<br />
– Eu vou aguardar em minha sala – disse o médico. Esse<br />
aí é insubordinado realmente, como andam comentando lá na<br />
repartição onde trabalha. Já veio com a fama e agora demonstra<br />
valentia perante um profissional com curso superior.<br />
– Está vendo, senhor? Tudo isso poderia ter sido evitado se<br />
tivesse cooperado.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
9
– Não tenho medo dele. Que enfie o seu diploma e sua arrogância<br />
onde melhor se encaixar. Aliás, hoje acordei sem medo de ninguém<br />
porque oquehavia para me prejudicar já se esgotou. Já estou cansado<br />
de tantas perseguições, de tantas arbitrariedades cometidas contra<br />
a mim. Um sistema que não mede as consequências do que fazem<br />
os seus representantes, que rasgam a cada manhã a Constituição<br />
Federal e limpam a boca com ela ao terminar de tomar o café sujo<br />
e apodrecido que lhes mata a fome. Hoje mesmo quero dar cabo da<br />
minha vida.<br />
– Então, pelo menos tome o remédio e não será necessário<br />
tomar a injeção que o médico receitou.<br />
– Você me garante que isso não me fará dormir? Não posso<br />
ser internado. Em casa há os meus animais para eu cuidar. Tenho<br />
também que acionar a justiça contra o gerente da repartição onde<br />
trabalho. Se eu não for até a minha casa cuidar dos animais e não for<br />
até o juiz denunciar tudo que está acontecendo comigo e com outros<br />
funcionários, não haverá outra pessoa que possa fazê-lo por mim.<br />
– Pode ficar tranquilo, senhor. Isso é apenas um calmante que<br />
irá ajudá-lo a relaxar um pouco. O senhor passou por momentos de<br />
grande abalo físico e mental e precisa de ajuda!<br />
Tomei então o medicamento receitado, acho que era um<br />
clonazepan, caindo no sono logo em seguida.<br />
Deitado numa cama de hospital, tinha ao pé a mochila e<br />
os sapatos que foram tirados pela enfermeira. A roupa estava<br />
amassada e nos braços havia fina camada de suor, ainda brilhante.<br />
O desodorante nos sovacos já nem era notado devido à quantidade<br />
de suor já impregnado na camisa.<br />
Um bom tempo depois fui acordado pelo Genaro, ex-assessor<br />
do deputado Juarez. Ele ficou sabendo da notícia por meio de uma<br />
ligação que fizeram do hospital para os números mais frequentes<br />
de contato do celular. Queriam alguém próximo que pudesse<br />
acompanhar o meu caso. Tentavam localizar algum parente para<br />
decidir sobre a internação.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
10
– Ora, o que faz aqui?<br />
– Calma! Procure se acalmar. Não precisa se levantar. .<br />
– Que dia é hoje? Há quanto tempo estou aqui?<br />
– Esfria! Só se passaram algumas horas desde que chegou.<br />
– O que aconteceu?<br />
– Procure não pensar nisso agora. Tudo está sendo resolvido da<br />
melhor forma.<br />
– Preciso ir embora para minha casa. Tenho que cuidar dos<br />
meus animais. Não confio em ninguém aqui. São todos iguais!<br />
Todos exercendo suas funções e incapazes de decidir alguma<br />
coisa.<br />
– Olha, é melhor você se acalmar porque já está decidida sua<br />
internação. Não há nada que possa ser feito no momento.<br />
– Mas eu vim aqui apenas para me consultar. Vim de livre e<br />
espontânea vontade e pedi pra falar com o psicólogo ou psiquiatra.<br />
Como esse povo ousa querer determinar o rumo da vida das pessoas<br />
assim como se fossem meros objetos? Acham que não temos o<br />
direito de escolher o que é melhor para nós? Só querem saber dos<br />
interesses das funções e cargos que exercem.<br />
– Olha, procure se acalmar. Sobre os seus animais, tente<br />
encontrar alguém que possa tomar conta deles até seu retorno. É por<br />
pouco tempo. Tente cooperar porque nós sabemos o que o sistema<br />
faz. Testam-nos a todo instante e procuram sempre nos deixar em<br />
situação desfavorável! Quem está no topo procura se proteger de<br />
tudo, até mesmo da própria lei. Você terá que ficar internado, isso é<br />
fato! Mas eu irei fazer o possível para te ajudar, tenha certeza disso.<br />
– Onde está meu celular?<br />
– Está com o médico. Aliás, ele relatou em súmula tudo o que<br />
aconteceu. Como você foi capaz de ameaçá-lo?<br />
– Foi ele quem me ameaçou. Disse que chamaria vinte<br />
seguranças para me segurar enquanto me aplicaria uma injeção<br />
para que eu ficasse sedado. Ele quer me internar à força e eu não<br />
quero ficar numa clínica de loucos.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 11
– Não há nada disso relatado na súmula de sua internação.<br />
Consta que você estava nervoso e foi necessário que ele se retirasse<br />
daqui com medo de uma possível agressão. Isso pode trazer<br />
problemas para você.<br />
– É mentira. Havia várias pessoas perto e todas o viram dizer<br />
que iria chamar os seguranças para me segurar.<br />
– Escute: ele é o chefe desse pessoal. Acha mesmo que seriam<br />
testemunhas contra o próprio chefe e depois serem perseguidas<br />
até se verem obrigadas a sair do hospital? Vai por mim. Não se<br />
precipite. Você está num ninho de cobras! Cuidado onde pisa! Isso<br />
é o sistema.<br />
Ao perceber o que Genaro falava, senti um nojo pela sociedade<br />
brasileira por ser tão omissa, tão passiva e permitir que o que deveria<br />
ser democracia se tornasse imperialismo colono, onde os poucos<br />
que gerenciam os vários impérios determinam tudo conforme seu<br />
bel-prazer, como se fossem os donos, e não executores da regra.<br />
O médico mandou uma enfermeira trazer e aplicar o<br />
medicamento. Estava esperando algum familiar comparecer, mas no<br />
seu celular não havia telefone de parentes próximos. Estava repleto<br />
de números de defensores do meio ambiente, estudantes, empresas<br />
e órgãos, mas não havia muitos números de amigos ou familiares.<br />
Então, após me ligarem e já imaginando a gravidade dos fatos, tive<br />
de colaborar e vir aqui falar contigo. Sabemos que tudo está sendo<br />
muito arbitrário, mas não perca a razão pela emoção do momento.<br />
– Eu saio daqui preso, demitido, ou até mesmo amarrado; por<br />
minha vontade, não haverá internação. Não podem me obrigar.<br />
Afinal, vim aqui me tratar de livre e espontânea vontade e agora,<br />
por causa de uma mentira desse fulano, querem me sedar e me levar<br />
para um lugar desconhecido.<br />
– Tente entender...<br />
Que entender o quê? – disse aos gritos. Logo você vem falar<br />
isso comigo, Genaro? Você acaba de ser vítima de uma mulher que<br />
o perseguia lá no gabinete até ser exonerado. Como uma vítima<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
12
em potencial do sistema, você me pede para entender esse abuso<br />
que está sendo feito contra mim? Eu não sou louco, só estou com<br />
depressão.<br />
– A situação não é tão simples. Você se lembra de alguma coisa?<br />
De como chegou ao hospital e o que fez antes disso?<br />
Lembro-me de estar conversando com uma médica. Ela me<br />
receitou um calmante lá no pronto-atendimento e depois eu<br />
estava aqui nesse ambulatório. Esse outro médico apareceu na<br />
sala querendo me sedar sem ao menos perguntar o que eu estava<br />
sentindo ou de onde vim. Nada disso. Chegou falando em sedativo<br />
como se eu fosse objeto de uma experiência de laboratório, um<br />
animal arredio!<br />
– Mas, e antes disso? Tente se lembrar de alguma coisa.<br />
– Não sei. Estou com a cabeça doendo muito! Não sei o que<br />
aconteceu. Alguém falou alguma coisa?<br />
– Você chegou carregado por uma pessoa aqui no hospital com<br />
uma expressão de choque no rosto. Muito abatido, se queixando de<br />
uma forte batida com a cabeça e, como seu plano de saúde é desse<br />
hospital. você conseguiu um atendimento mais efetivo!<br />
– O que está dizendo, Genaro? Não está vendo a arbitrariedade<br />
que estão cometendo contra mim? Atendimento mais efetivo?<br />
Ora, o que é isso? Como se já não bastasse ser tão perseguido lá<br />
naquele lugar, ainda sou perseguido onde vim procurar ajuda?<br />
– Conte-me o que houve por último. Talvez eu possa ajudar.<br />
– A gota d’água foi minha avaliação de produção desse ano:<br />
uma nota baixa que irá interferir em meu salário. A justificativa<br />
foi que eu não fui trabalhar no dia 25 de fevereiro, sendo que<br />
nessa data eu estava de férias e, ainda por cima, operado por causa<br />
daquele assalto no início do ano. Não sei se você se lembra do<br />
assalto.<br />
– Claro que me lembro!<br />
– Eu estava com o braço imobilizado. Ele inventou que faltei ao<br />
serviço para me prejudicar.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 13
– Que filho da mãe! Como teve coragem de fazer isso?<br />
– Ah, Genaro, você sabe como é isso, como tudo funciona: se<br />
não é do time da arbitrariedade acaba virando alvo dela. Não vê<br />
o seu caso? Você sempre foi tão eficiente em seu serviço! Sempre<br />
tão prestativo e, pelo que eu sei, livre de qualquer mancha em<br />
seu caráter. De repente, é exonerado durante as férias, e nem foi<br />
pelo e sim pela chefe do gabinete. Você está mais desamparado do<br />
que eu!<br />
– São coisas da vida...<br />
– A situação do assalto também me deixou muito abalado!<br />
Esse segundo assalto de anteontem. A polícia não conseguiu<br />
prender os dois ladrões e estou sem documento algum. No serviço,<br />
não consegui alguns dias de licença, embora estivesse abatido<br />
demais para trabalhar. É que o gerente do bloco intermediário<br />
ordenou a todos os gerentes de repartição que não liberassem<br />
os funcionários, nem, por qualquer motivo os dispensassem do<br />
serviço. Querem retomar a produção que foi abalada pela onda<br />
crescente de insatisfação não declarada dos funcionários.<br />
– Tem coisas que realmente nos deixam com ódio do sistema!<br />
Mas eu sei me controlar. Tente se lembrar do que aconteceu hoje<br />
pela manhã, pois ninguém sabe como veio parar aqui e o que<br />
aconteceu antes. Só você pode dizer por que havia sangue em sua<br />
roupa.<br />
– Eu não matei ninguém, eu...<br />
– Calma. Não se desespere! O sangue era seu mesmo. Havia um<br />
corte e estancaram o sangue. Você deve ter caído e batido com a<br />
cabeça.<br />
– Não consigo me lembrar de nada. Deve ser o efeito do remédio.<br />
– O que aconteceu? Desse jeito, você nos mata do coração!<br />
Acabou de sair na televisão! Uma pessoa filmou tudo. – disse um<br />
colega de serviço ao chegar ao ambulatório, sendo rapidamente<br />
puxado pelo braço pela enfermeira que dava recomendações.<br />
– O que vocês dois estão fazendo aqui, Seixas?<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
14
– Ordens do gerente Lino. Viemos ver como você estava e<br />
acompanhar sua viagem até a clínica onde ficará internado, em<br />
outra cidade.<br />
– Não vou ficar internado em nenhuma clínica. Estou um pouco<br />
nervoso é com toda essa situação que estão criando.<br />
– Olha: vou ter que ir embora, mas conte comigo para o que<br />
precisar. Deixarei você com os seus conhecidos, mas lembrese<br />
do que eu disse. Algo será feito enquanto estiver lá, não se<br />
preocupe.<br />
– Tudo bem, Genaro! Obrigado por ter vindo!<br />
Um olhar que parecia revelar muitos segredos ficou obscuro no<br />
ambiente. E assim o Genaro foi até o médico e conversaram sobre<br />
coisas que eu não conseguia ouvir.<br />
Talvez Genaro o estivesse pressionando para que medisse as<br />
consequências do que ocorrera naquele ambulatório antes da sua<br />
chegada. Ele sabia que havia exageros no relatório. Pude ver que o<br />
médico ficou pensativo e, depois de um tempo, o Genaro foi embora<br />
carregando a sua pasta de documentos. Levava uma expressão de<br />
descontentamento em seu olhar e, antes de sair, olhou para trás,<br />
fitando o médico.<br />
O gerente Lino era o responsável pela repartição onde eu estava<br />
trabalhando e se encontrava num congresso onde se discutiam<br />
temas alusivos ao segmento da empresa. Era uma pessoa jovem, que<br />
eu não conhecia muito bem, pois estava na nova repartição há menos<br />
de dois meses, após ser viabilizada a minha troca de repartição pelo<br />
Genaro e pela assessoria do deputado Juarez, que pressionou o<br />
gerente do bloco intermediário a realizar a troca, ou de outro modo<br />
seria adotada a melhor condição legal para representação dos meus<br />
direitos trabalhistas, o que causaria um desconforto muito grande<br />
à imagem da empresa.<br />
Enquanto o Seixas e o Jarbas conversavam com a enfermeira,<br />
fui sentindo um sono pesado e, enquanto digitava mensagens de<br />
socorro no celular para que alguém chamasse a imprensa e viesse<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 15
me ajudar a me livrar das garras dessas pessoas, cada vez mais<br />
sentia os olhos se fechando.<br />
Houve tempo suficiente para enviar algumas mensagens<br />
avisando sobre os animais, para que alguém viesse até aqui<br />
pegar a chave de minha casa e ir até lá colocar ração. Uma delas<br />
endereçada a Marluce, com quem eu estava saindo há algumas<br />
semanas, apenas nos conhecendo até então, sem maior intimidade.<br />
Falei que eles precisariam de alimento. Em outra, eu comentava<br />
o que o médico havia feito e pedia para avisarem à mídia ou à<br />
polícia.<br />
Fui sentindo sensações estranhas! Uma palpitação no coração<br />
e dificuldade de coordenar palavras. Uma dor forte na cabeça e<br />
no peito, como se tivesse sido atingido por uma barra de ferro.<br />
A lucidez foi diminuindo e então resolvi permanecer de pé para<br />
não dormir novamente, pois ali tudo girava contra mim e o passar<br />
das horas era tendencioso aos interesses daquelas pessoas que se<br />
encontravam no ambulatório do hospital.<br />
Caí no chão e o Jarbas ajudou-me a levantar. Eu estava decidido<br />
a não aceitar o sedativo nem a ficar internado ali. . Aguardava a<br />
chegada da imprensa, caso alguma das mensagens que enviei tivesse<br />
surtido efeito. .<br />
Os funcionários da clínica ficavam parados, assim como os dois<br />
do meu serviço, todos esperando que eu apagasse, que caísse no<br />
sono, para decidirem o meu destino. E eu resolvido a permanecer<br />
de pé a qualquer custo.<br />
Caminhei até o banheiro e, ao urinar, expeli um pouco de<br />
sangue. Então, já preocupado com aquela situação, olhei pela<br />
janela e vi que estava no segundo andar. Meu coração batia forte<br />
e desamparado! Havia uma grade e tentei forçá-la para escapar do<br />
hospital, mas foi em vão.<br />
Alguma coisa estava acontecendo, mas eu não sabia o que<br />
era. Senti que minha vida corria perigo e lutei contra o efeito do<br />
medicamento.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
16
Ao olhar meu braço, vi que havia uma marca recente de agulha,<br />
mas eu não me lembrava de ter tomado injeção. Devia ter sido<br />
aplicada enquanto eu estava dormindo sob o efeito do comprimido<br />
que me deram.<br />
Percebi, então, que já tinham me dado uma dose de sedativo,<br />
mas meu corpo lutava bravamente contra seu efeito.<br />
Algo me dizia que eu não poderia cair no sono novamente.<br />
Que eu precisava lutar e ser valente. Não me deixar abater pela<br />
presunção do sistema, pela arrogância das pessoas que o controlam<br />
ou pela maldade e inveja que seus corações carregam.<br />
Do lado de fora, estavam aquelas pessoas paradas no ambulatório<br />
sem a coragem de chamar os tais seguranças cuja ameaça foi o<br />
que me fez odiar estar aqui. E embora por fora estejam todos ali<br />
cumprindo a função que lhes foi atribuída, sei que, por dentro, ou<br />
estão admirando minha resistência feroz, ou odiando minha pessoa<br />
devido aos últimos fatos ocorridos ali no hospital.<br />
Quando saí do banheiro, todos os olhares eram apreensivos,<br />
aguardando que eu dormisse. Então caí pela segunda vez e, já<br />
sentindo dificuldade de me levantar, eis que aplicam em meu braço<br />
direito outra dose de medicamento que havia sido receitado pelo<br />
médico. Foi a enfermeira que esteve conversando comigo durante<br />
todo aquele tempo..<br />
Ao olhar no íntimo dos seus olhos, pude ler até mesmo o que<br />
sua alma frágil sentia. Ela torcia por mim e vi que, pelo seu modo<br />
de me olhar, se culpava por não ter tido coragem de descumprir a<br />
ordem que lhe foi dada, exercendo a sua função com o coração em<br />
pedaços ante todo o sofrimento que me via passar.<br />
Um frágil grito de dor...<br />
Nesse momento, senti o coração disparando e as mãos<br />
trêmulas, como se eu fosse o objeto de uma experiência.<br />
Desespero! Despreparo emocional! Fatos passando pela minha<br />
cabeça e algumas lágrimas rolando do rosto quente queimando<br />
como brasas ardentes!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
17
18<br />
Cenas de monstruosidade passavam diante de meu rosto e<br />
eu pensava em várias coisas ao mesmo tempo. Ainda disposto a<br />
ficar de pé, fui percebendo que as pessoas ao meu redor foram se<br />
transformando em figuras espectrais e se dissolvendo... Esmaeciam<br />
como a bruma do horizonte em dia de forte neblina!<br />
Ainda consegui perceber que o celular caiu de minha mão.<br />
Um dos espectros foi ficando maior em minha direção e, como<br />
uma sombra, pegou o celular e o carregou consigo como despojo.<br />
Eu tentava pegar o espectro, mas minhas mãos eram pequenas! Eu<br />
trazia as mãos para perto do rosto e elas continuavam pequenas. Não<br />
conseguia tocar o rosto com elas, pois pareciam estar queimando<br />
constantemente como uma brasa eterna.<br />
Sons! Muitos sons sem nexo chegavam aos meus ouvidos,<br />
turbinados por muitos ecos! Não conseguia entendê-los, pois<br />
estavam todos muito carregados!<br />
Que cenas horrendas! O que estava acontecendo? Tentava falar<br />
e nada saía de minha boca. Somente grunhidos misturados com<br />
muita baba, que chegava a escorrer pelo rosto.<br />
Podia ver os espectros, mas não conseguia ir até eles, pois o<br />
chão era muito macio e, quando eu tentava caminhar, meus pés<br />
afundavam. Eu voltava a colocar os pés onde estavam antes, numa<br />
parte mais firme.<br />
Novamente, tentava me comunicar com aquelas figuras<br />
espectrais e não conseguia. Não saíam palavras de minha boca.<br />
O que essas figuras queriam comigo? Tudo foi ficando tão<br />
estranho! De repente, as figuras começaram a girar e se misturaram,<br />
virando uma só coisa e girando ao meu redor com velocidade<br />
impressionante! Eu parecia estar olhando para o céu, pois havia um<br />
fundo azul na figura do espectro.<br />
Depois o céu ficou todo branco e eu não pude ver a rua.<br />
Não conseguia ver minhas mãos nem mexer os pés. Continuava<br />
ouvindo sons com ecos. Eram dois sons apenas.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Parecia que eu estava num lugar fechado porque o eco batia nas<br />
paredes e reverberava como se fosse metal.<br />
Havia alguma coisa me impedindo de movimentar os braços e<br />
as pernas. Eu podia sentir amarras, mas era difícil sentir os pés e as<br />
mãos.<br />
Falar também não podia, pois cada vez que tentava a língua não<br />
se movia e meus lábios não conseguiam se firmar.<br />
Seria uma ambulância? Pensei comigo. Mas não dava para saber.<br />
Eu não conseguia mover o rosto. Tentava falar, mas não conseguia<br />
produzir nenhum som, nenhum pedido de socorro, nenhum grito<br />
de apelo ou de raiva! Nada!<br />
Não fazia ideia do tempo em que estava ali, nem conseguia<br />
pensar com sobriedade. Estava sedado, lutando contra o efeito<br />
devastador de um medicamento que neutralizou todo o meu corpo.<br />
Meu rosto não se mexia, e os olhos se abriam com dificuldade,<br />
repletos de lágrimas, até que eu não pude mais abri-los, e tudo se<br />
apagou.<br />
Não mais senti o rosto queimar nem as mãos em brasas. Tudo<br />
estava apagado e já não havia lucidez, somente o escuro de uma vida<br />
acabada, sem luzes ou brilho capaz de produzir qualquer estímulo<br />
que evidenciasse a existência de um ser.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 19
PERSEGUIÇÃO<br />
Anos atrás, um novo funcionário chegou à repartição. Ele vinha<br />
de outra, do bloco intermediário, e trazia ideais de crescimento e<br />
maturidade intelectual que provocavam inveja!<br />
Era baixo, de pele clara, usava sempre um par de óculos de<br />
armação fina e tinha o semblante ora sério e compenetrado, quando<br />
estava pensando, ora alegre e descontraído, quando conversava<br />
com todos. Sempre carregava algum livro debaixo do braço, alguns<br />
que, de tão grossos, desanimavam a leitura de quem observava.<br />
Tinha sido transferido após se envolver em problemas com um<br />
dos gerentes da antiga repartição, o Clóvis, devido ao fato de esse<br />
o estar perseguindo moralmente por ter se negado a providenciar<br />
documentos tendenciosos que objetivavam desconto no salário de<br />
funcionário que se envolveu numa discussão na rua, quando estava<br />
de folga do serviço.<br />
Eram os apensos, documentos produzidos no âmbito do bloco<br />
intermediário, que provocavam sanções em desfavor de quem era seu<br />
alvo, após ser rigorosamente verificado o seu teor, numa espécie de<br />
processo interno da repartição, com provas reais que autorizassem<br />
a chefia direta e a intermediária a apenar o funcionário.<br />
Esse documento era sempre elaborado por um funcionário<br />
com status de chefia e mais tempo de serviço que aquele que seria<br />
apenado conforme os fatos denunciados, tal como ocorre nas<br />
repartições públicas e em empresas privadas dotadas de algum tipo<br />
20 de regimento interno ou hierarquia. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Contouquenãolhe parecialícitojulgar os atosdeumfuncionário<br />
em seu horário de folga, pois qualquer coisa que fizesse fora do<br />
bloco dizia respeito a sua vida particular e não cabia interferência<br />
ou investigação. Dizia que todos têm direito a intimidade e vida<br />
pessoal, independente do que fizessem.<br />
Então o Clóvis, após esse desgosto e sentimento de que seu<br />
poder doutrinador fora subjugado, passou a cobrar excessivamente<br />
o funcionário quanto a detalhes do serviço, realizando constantes<br />
averiguações, procurando sempre um motivo para provocá-lo<br />
moralmente e obter sucesso em afastá-lo da empresa ou rebaixá-lo<br />
de setor, pois de maneira alguma aceitava ser contrariado em seus<br />
interesses no âmbito da antiga repartição.<br />
Isso tudo ocorreu lá no bairro Pratos, onde fica a repartição de<br />
onde veio.<br />
Contou que o Silveira era um bom funcionário, e se em seu<br />
horário de trabalho produzia o que a empresa desejava, se era<br />
irrepreensível na função que exercia, em hipótese alguma, a empresa<br />
poderia interferir em sua vida particular. O que acontecia fora do<br />
ambiente de trabalho somente dizia respeito ao homem e não ao<br />
funcionário. Ao se expressar com sabedoria, falou que as pessoas<br />
têm o direito de serem cretinas em sua vida particular, e que<br />
ninguém poderia interferir no sentimento alheio do ser humano,<br />
exceto se isso trouxesse prejuízos ao ambiente de trabalho.<br />
Rapidamente, o excêntrico novato conseguiu conquistar<br />
espaço perante o público interno da repartição e suas ideias, seu<br />
modo de se expressar e sua generosidade se destacavam por agradar<br />
pela eficiência, confiança e simplicidade de execução.<br />
Um pensador! Amante das artes, da cultura e das ciências! Lia<br />
muitos livros, dentre eles os mais aclamados da literatura nacional.<br />
Lembro-me da vez em que fez uma citação à obra Senhora, de José<br />
Alencar, tendo se referido ao livro como uma busca da dignidade<br />
vendida, e que o amor, apesar de ser um sentimento bom, possui<br />
tanto ou até mais vingança que o próprio ódio.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 21
Ele procurava se inteirar de todos os assuntos sociais do<br />
momento, sempre lendo jornais e revistas. Era figura presente nos<br />
teatros, museus e em eventos culturais na cidade.<br />
Admirava a natureza e, por isso, participava de vários<br />
encontros com ambientalistas, a fim de discutir os meios de incutir<br />
no poder público maior responsabilidade na proteção do meio<br />
ambiente, com a diminuição dos casos de maus tratos a animais,<br />
maior controle sobre os carroceiros da cidade que exploravam<br />
demasiadamente os seus cavalos, maior agilidade para apurar<br />
denúncias de desmatamento e outros muitos assuntos nos quais<br />
fazia questão de se envolver ativamente, pelo interesse na causa.<br />
Reunia-se com estudantes e intelectuais e participava de eventos<br />
grevistas, apoiando quem estivesse realizando o evento, se<br />
esse fosse justo.<br />
O fato é que não aceitava injustiça nem aceitaria vender o seu<br />
caráter ou a sua honra para satisfazer o desejo pessoal de outra<br />
pessoa, fosse ela quem fosse. Aquele lugar, repleto de falsos elogios<br />
às ações que apenas satisfaziam interesse da gerência, era uma<br />
casa de marimbondos! Era necessário saber onde pisar para não<br />
encontrar problemas com as ferroadas, e o pensador sabia disso.<br />
Na verdade, todos sabiam, e o medo do sistema fazia com que se<br />
escondessem em alguma sala, quando passava algum gerente pelos<br />
corredores.<br />
Dessa forma, o gerente da repartição não poderia aceitar um<br />
pensador influente entre os funcionários de baixo escalão, pois<br />
seu conhecimento e sua capacidade de liderar poderiam reduzir<br />
o sentimento de imperialismo, quase santidade, que rondava o<br />
círculo superior, cada vez mais em ascensão, enquanto a gama dos<br />
mais subordinados do núcleo dos trabalhadores era, mais e mais,<br />
submetida à afirmação de poder e escravização moral impostas.<br />
Um sistema de blindagem protegia o escalão superior. Ali se<br />
fazia de tudo, de assédio moral e sexual a funcionárias até a restrição<br />
de direitos conferidos em lei aos funcionários. Tudo era arbitrário,<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
22
e nenhuma falha, crime ou abuso de poder era averiguada, pois<br />
havia uma poderosa rede de proteção aos integrantes do círculo de<br />
gerentes.<br />
A repartição funcionava numa construção muito antiga, um<br />
prédio de somente um andar contendo três corredores dispostos<br />
de forma triangular. A sala da gerência ficava ao centro e na área<br />
externa havia um vasto estacionamento para cerca de cem veículos.<br />
Contornava o complexo uma pequena mata, com algumas árvores<br />
de médio e muitas de grande porte.<br />
Todas as manhãs, ele era visto colocando sementes para os<br />
pardais numa vasilha grande de cor esverdeada, que ficava perto<br />
do muro e que antes ficava sem ração e não recebia visitas dos<br />
passarinhos.<br />
Trazia frutas para as maritacas, as quais, após um tempo<br />
recebendo tais guloseimas, já não faziam cerimônia e, ao vê-lo<br />
chegando com a vasilha repleta de morangos, laranjas, bananas e<br />
amendoins, vinham até sua mão para pegar as frutas. Por várias<br />
vezes repousavam em seu ombro com afinidade e confiança, dez,<br />
vinte, talvez trinta maritacas... o que enchia os olhos dos demais<br />
funcionários ao admirarem a beleza daquela cena tão incomum!<br />
Ele as pegava entre os dedos e coçava suas cabeças, como se, desde<br />
filhotes, tivessem sido amansadas por seu dono.<br />
Regava as plantas e as árvores em dias mais secos, antes de<br />
começar o seu trabalho, e, depois de um tempo, a natureza pareceu<br />
agradecer tal carinho fazendo brotar folhas que, de tão verdes,<br />
ofuscavam a vista, e cuja sombra era fresca e acolhedora!<br />
O prédio parecia ser um hospital desativado! A pintura era velha<br />
na parte externa, evidenciando que não havia muita preocupação<br />
com a imagem do lugar...<br />
Na primeira vez em que se cruzaram, ele havia acabado de dar<br />
comida aos pássaros e suas mãos estavam ainda sujas de frutas que<br />
as maritacas descascavam, prendendo-as entre as patas e seu braço.<br />
Sua camisa estava amassada por causa das unhas das maritacas e<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 23
24<br />
seus cabelos despenteados, pois pousavam em sua cabeça para ter<br />
um lugar privilegiado na atenção daquele homem.<br />
Foi no corredor daquele lugar, e o gerente local fitou o seu<br />
obstáculo com ódio e surpresa! Seu modo garboso e inquisitivo de<br />
andar foi surpreendido por uma visão ameaçadora! Algo que não<br />
era usual, pois não via nele o olhar assustado com que os outros<br />
funcionários o olhavam.<br />
Um ente maligno que não se sujeitaria a qualquer imposição<br />
que não fosse justa e baseada na lei.<br />
Uma figura ameaçadora, à visão do gerente, oriunda do próprio<br />
inferno e esculpida no fogo do capeta, que sabia dos seis direitos<br />
e olhava nos olhos sem abaixar a cabeça e demonstrar submissão<br />
humana, tal qual um cão ao seu dono!<br />
Uma aura que pairava sobre um corpo sinistro, capaz de se<br />
opor ao sistema se a sua honra e seus princípios assim desejassem!<br />
Envergonhando o rosto de quem é iníquo e se deliciando com o<br />
resplandecer da constitucionalidade!<br />
Ele viu imediatamente a necessidade de reduzir o brilho daquele<br />
ente diferenciado que se tornaria uma ameaça à sua autoafirmação<br />
de poder e de imposição de uma imagem de adoração santa naquele<br />
ambiente.<br />
Então foram cassados quinze dias de férias que ele iria tirar no<br />
meio daquele ano para providenciar ocasamentocomsua noiva. Para<br />
executar a tarefa, selecionou um funcionário de sua total lealdade,<br />
o gerente de setor Alisson, que mandou suspender suas férias,<br />
alegando diversos fatores não consolidados, como a necessidade de<br />
aprender um serviço que o novato já dominava melhor que muitos<br />
outros funcionários que passaram pelo setor.<br />
Na verdade, não haviamotivo para cassar essas férias. Era apenas<br />
a necessidade de mostrar quem tinha poder naquele ambiente, que<br />
suas ações eram pautadas em seu interesse e que sua visão pessoal<br />
deveria sempre prevalecer..<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
O gerente respirou aliviado, acreditando que sua arbitrariedade<br />
iria lapidar o olhar constitucionalista daquele rapaz, e os<br />
problemas de uma liderança popular estariam encerrados de uma<br />
vez por todas.<br />
O fato provocou um desagrado muito grande em sua noiva que<br />
já vinha demonstrando descontentamento por morar muito longe<br />
e iniciou-se um ciúme que em poucos meses iria colocar fim ao<br />
relacionamento.<br />
Embora triste num primeiro momento, continuou realizando<br />
o seu trabalho, contudo sem se prestar à fidelidade cega, antes<br />
disso, possuindo uma isenção intelectual e moral que às vezes<br />
conflitava com o que era imposto pela gerência com arbitrariedade<br />
e truculência.<br />
Não aceitava irregularidades. Era uma mancha em seu caráter<br />
encobrir a ilegalidade impositiva.<br />
Não se sujeitava a se prostrar em terra e adorar o falso deus<br />
que o incitava a tal ato de submissão como única forma de obter<br />
privilégios ou até mesmo condições de trabalho dignas.<br />
Então, meses mais tarde, o chefe de setor Alisson determinou<br />
que ele fizesse os apensos de chegada ao serviço com atraso de<br />
quinze minutos de um funcionário muito amigo de todos, o Paulo<br />
Pirre, para que isso fosse imediatamente descontado em seu salário.<br />
Mas todos sabiam que houve o atraso devido a um acidente de<br />
trânsito, e que a polícia local tentava, a todo custo, providenciar<br />
um guincho para retirar um caminhão tombado. Pirre ligou para<br />
o trabalho avisando, e isso para o novato era uma justificativa<br />
plausível e provada, afinal a notícia havia saído até no jornal da<br />
manhã naquele dia, não sei se você se lembra desse fato.<br />
– Claro que me lembro! No horário do almoço também passou<br />
no jornal naquela televisão antiga que ficava no canto da cantina,<br />
pendurada numa armação.<br />
– Exatamente!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
25
26<br />
Então, foram confeccionados os apensos, mas com a justificação<br />
do atraso por escrito e assinada pelo novato, e que não haveria<br />
motivos para a redução do salário.<br />
A notícia se espalhou na empresa e muitos funcionários<br />
admiraram a nobreza de espírito do colega em não prejudicar<br />
injustamente o que se atrasou.<br />
Paulo Pirre, que tinha família e dependia do seu salário mais<br />
do que qualquer outro funcionário da empresa, veio agradecer<br />
pessoalmente, dizendo que nunca havia recebido um gesto de tanto<br />
profissionalismo naquela repartição, e soube reconhecer um grande<br />
espírito de liderança naquele profissional.<br />
Parece que todos estavam tão acostumados ao sistema imperial,<br />
impositivo e arbitrário da gerência, que algo diferente que tivesse<br />
respaldo legal era uma novidade a se comentar.<br />
O ódio iminente do chefe Alisson se fez demonstrar mais<br />
abertamente quando, após esse incidente, mudou o novato de setor,<br />
colocando-o para trabalhar diretamente com o público externo da<br />
repartição.<br />
Masoquehaviasidoprojetadoparatrazertranstornosaonovato,<br />
tornou-se sua maior fonte de influência! O gerente imaginou que ele<br />
teria problemas de relacionamento com o público, por ser autista.<br />
Idealizou que da sua dificuldade de falar resultaria um desastre<br />
ao trabalho e haveria como retroceder à condição funcional de<br />
novato. Ele não falava muito no interior da empresa. Chegava,<br />
assumia a função e se preocupava muito em terminar o serviço, não<br />
sendo visto em conversas pelo corredor.<br />
Contudo, não sabiam de sua condição social, já inserido em<br />
ambiente de contato frequente com artistas, escritores, filósofos,<br />
ambientalistas e políticos, aos quais se ligava em busca da<br />
consolidação de seus ideais e para conciliar com outros pensadores<br />
o exercício cada vez mais frequente da cidadania, cobrando do<br />
Poder Público a execução de obras destinadas à proteção do meio<br />
ambiente e à melhoria da qualidade de vida da população.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Trazia propostas inovadoras com soluções inteligentes e de<br />
fácil aplicação, as quais agradavam justamente por isso! Ele não<br />
falava muito no serviço, aos olhos da gerência, mas era uma pessoa<br />
de eloquência admirável!<br />
O público passou a gostar da sua presença, cada vez mais<br />
constante nas rodas da sociedade, onde recebia convites para festas<br />
e eventos de grande importância, deixando cada vez mais apagado<br />
o brilho do gerente. E este, inutilmente, tentava reduzir no novato o<br />
desejo de trabalhar, ordenando ao Alisson que, de tempo em tempo,<br />
fossem feitos apensos contra qualquer ato que fizesse, mesmo que<br />
não fosse verdade, só para dar-lhe o desprazer de ter que se explicar.<br />
Havia algo subentendido no ar sobre quem fizesse um bom<br />
apenso em desfavor dele, e se este chegasse à punição, seria bem<br />
visto aos olhos da chefia. Esse clima pairou entre alguns dos que<br />
eram leais à chefia da repartição, principalmente o Alisson, mas<br />
havia também aqueles que não tinham ânimo para prejudicar o<br />
novato, pois viam nele uma grande liderança e alguém que estava<br />
na repartição para executar um trabalho de qualidade cada vez<br />
melhor! O Cris era assim. Um funcionário com muitos anos de<br />
serviço e experiente sobre os assuntos da repartição.<br />
Cris tinha sempre bons conselhos sobre prudência e juízo,<br />
era quase um advogado! Mas sempre esbarrava no fato de não ser<br />
o gerente da repartição, antes de tudo subordinado às ordens do<br />
Wladmir.<br />
Embora não concordasse com muitas ordens, seguia a todas,<br />
procurando exercer sempre uma influência sobre as decisões finais<br />
da gerência, pois havia sido funcionário na empresa durante toda<br />
a sua vida e sabia das consequências nocivas em se desagradar o<br />
público interno.<br />
E foi assim que um dia um funcionário efetivo na repartição,<br />
o James, apresentou um apenso contra o novato, alegando que<br />
este deixou de realizar seu serviço com retidão, ao contrário, se<br />
esquivando de produzir algumas planilhas de sua conferência,<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 27
28<br />
referentes a balanço do período de trabalho da Semana Santa, que<br />
resultava em alteração da produção de todo o bloco intermediário.<br />
Mais que isso, fez outro apenso contra o Paulo Pirre, alegando<br />
que ele havia saído do seu local de trabalho sem permissão.<br />
Na verdade, o James sabia que Paulo estava sob supervisão<br />
do novato, e que ele havia autorizado que fosse até uma vendinha<br />
próxima ao prédio para comprar lanche para todos os funcionários<br />
do setor, frutas, pão, leite, amendoins que o novato adorava, e<br />
queijo. Ao pedir auxílio ao novato, este o defendeu abertamente,<br />
citando que estava na empresa para cumprir a rotina de trabalho,<br />
para executar o exercício da função e que Paulo estava sob suas<br />
ordens.<br />
O que seria uma mera formalidade da repartição se tornou<br />
um problema, haja vista que no dia relativo às planilhas o novato<br />
não estava de serviço, e tendo comparecido para trabalhar no dia<br />
seguinte já não estavam lá na saleta de reuniões os documentos<br />
para confecção das planilhas. Dessa forma, não ficou sabendo que<br />
deveria realizar tal labor.<br />
Contudo, durante a apuração, o Alisson desconsiderou<br />
qualquer prova que o novato apresentara, como a sua jornada<br />
impressa de trabalho e o amparo constitucional de que estava sendo<br />
desrespeitado, onde sugeria que nada fosse adotado de providência,<br />
devido a não estar ciente do trabalho a ser realizado.<br />
Essa foi depois de várias tentativas frustradas, a primeira<br />
vez que em público, foram executados os apensos contra um<br />
funcionário que conseguiu provar que o apenso era irregular,<br />
mas a gerência queria impor sua condição de soberania de<br />
qualquer forma, nem que para isso o Wladmir precisasse rasgar<br />
a Constituição Federal ao meio e fazer a sua própria lei punitiva,<br />
e foi o que fez.<br />
Em outro embate, o novato produziu um documento ao antigo<br />
gerente intermediário, que era uma pessoa muito aprazível e do<br />
agrado de todos os funcionários, o senhor Alvarez, que chegou a<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
ficar na gerência da repartição na época em questão, antes de ser<br />
promovido.<br />
No documento, relatava inúmeras falhas na administração e<br />
destinação de materiais que eram guardados sem nenhum cuidado<br />
numa sala de reuniões, o que estavam provocando mofo, sujeira e o<br />
risco do aparecimento de ratos, baratas e escorpiões no interior do<br />
prédio.<br />
A sala ficava no centro do prédio, entre o corredor da sala<br />
da gerência, a saleta de reuniões e o almoxarifado. Realmente ali<br />
havia muito material orgânico provocando sujeira, mofo, produtos<br />
químicos e o risco a todos os funcionários do lugar.<br />
Havia restos de comida e até materiais de fácil combustão<br />
espalhados pelo chão. O cheiro do lugar era ruim e o chão estava<br />
imundo! Havia teias de aranha, baratas, pão mofado, produtos de<br />
limpeza, papéis e livros jogados sobre mesas e cadeiras.<br />
E embora a ideia apresentada para a solução do problema tenha<br />
sido acatada imediatamente pela simplicidade e eficácia pelo senhor<br />
Alvarez que estava como gerente interino, o gerente da repartição,<br />
Wladmir, não ficou contente, pois a manutenção daqueles materiais<br />
naquela pequena sala era algo que interessava a um dos seus homens<br />
de confiança, justamente o Alisson, pois se esquivaria assim de ter<br />
que providenciar local adequado para a guarda e destinação dos<br />
materiais orgânicos que eram ali depositados.<br />
Com isso, determinou que fosse proibida a entrada do novato<br />
naquela sala, ou que se inteirasse dos assuntos relacionados a<br />
materiais, impedindo assim que fiscalizasse se não havia nenhuma<br />
outra irregularidade que comprometesse a saúde e o bem estar de<br />
todos.<br />
Havia a iminência de uma promoção de cargos naquele ano<br />
pelo gerente geral da empresa, devido à abertura de novas vagas.<br />
O gerente local da repartição, Wladmir, se empenhou para que<br />
o novato não viesse a ser promovido, chegando a externar isso a<br />
um de seus homens de maior confiança, citando ser do interesse<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 29
30<br />
da gerência que o funcionário não fosse promovido senão exerceria<br />
uma influência negativa à visão da gerência entre os demais<br />
funcionários.<br />
E de fato o excesso de confiança naquele funcionário foi um<br />
duro golpe, pois foi justamente quem o traiu, contando a notícia<br />
a outros funcionários e logo chegando ao conhecimento de todos.<br />
Carlos era namorado de outra funcionária da repartição,<br />
Valéria. Tinha um bom conhecimento de leis, e sabia que ali naquela<br />
repartição estavam ocorrendo muitas arbitrariedades. Quando o<br />
desejo do gerente foi externado, abandonou de si qualquer lealdade<br />
que possuía ao chefe e se desviou do caminho de auxiliá-lo a<br />
continuar com a execução de seus atos de excessiva nocividade em<br />
relação aos funcionários do lugar.<br />
E Carlos criou coragem para deixar perceber que já não era leal<br />
ao regime autoritário que se instalou na repartição.<br />
Wladmir determinou então que o gerente direto Alisson<br />
fizesse contra o novato uma avaliação de eficiência ruim, mesmo<br />
que para isso fosse necessário mentir nas informações. Isso o<br />
colocaria num patamar mais baixo do que os demais que se<br />
candidataram àquela promoção. O que ocorre é que o gerente geral<br />
não conhecia pessoalmente todos os funcionários da empresa, pois<br />
eram milhares. O que era relatado pelos gerentes, era acatado pelo<br />
gerente geral, entendendo esse que os seus homens de confiança<br />
seriam leais e justos em relação aos seus subordinados, assim com<br />
era com eles em todos os aspectos.<br />
O desejo do gerente Wladmir de prejudicar o novato já era<br />
do conhecimento de toda a repartição, pelo que foi exposto pelo<br />
Carlos no vestiário.<br />
Aliás, a avaliação foi tão ruim e com teor tão tendencioso<br />
em relação à produção profissional do novato, que provocou<br />
comentários nos demais funcionários até das outras repartições<br />
que compunham o bloco.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Foi se queixar ao gerente intermediário, o senhor Tarcísio, que<br />
o aconselhou a procurar trabalhar de acordo com o que o gerente<br />
Wladmir queria ou então teria problemas naquele lugar.<br />
Tarcísio era um homem de idade bem avançada, conivente com<br />
todos os atos de abusoe restrição de direitos cometidos pelos demais<br />
gerentes de repartição na composição do bloco intermediário.<br />
Só o que lhe interessava era produção constante, embora quem<br />
produzisse estivesse descontente. Estava para se aposentar e já<br />
não tinha interesse em tomar partido de nenhuma causa trazida<br />
pelos funcionários de alguma repartição. Mas por educação sempre<br />
recebia os funcionários que o procuravam.<br />
No vestiário alguns colegas de trabalho o aconselhavam a<br />
tentar mudar de repartição, conversando novamente com o senhor<br />
Tarcísio, pois era claro que estava sendo perseguido pela gerência e<br />
seus homens de confiança.<br />
E foi o que fez, procurando melhorar as condições de trabalho<br />
procurou um interessado em trocar de lugar em outra repartição,<br />
levando os nomes pessoalmente ao gerente Tarcísio, que o atendeu<br />
com cordialidade e disse que iria providenciar que fosse feita a<br />
troca, porém o gerente Wladmir negou, alegando que não poderia<br />
dispor de seu funcionário mais experiente no serviço e ceder vaga<br />
ao que o que viria em seu lugar.<br />
Até mesmo os homens que compunham o círculo superior<br />
estranharam a negativa do Wladmir, contudo eram submissos<br />
demais para perguntar. Não queriam questionar uma visão de<br />
gerência daquele que por conveniência ou passividade admiravam<br />
como a um deus.<br />
Meses depois, um dos homens de confiança do gerente acusou<br />
o novato de ter dito algumas coisas a respeito da gerência, com<br />
caráter depreciativo à imagem do gerente Wladmir, e a acusação foi<br />
amplamente acatada pela gerência que mandou descontar no salário<br />
do funcionário alguns dias de pagamento, a título de punição.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 31
A incredulidade da acusação perante os demais funcionários<br />
gerou uma sensação de insegurança dentro da repartição, que se<br />
tornava pouco a pouco um regime ditatorial. Não havia nenhuma<br />
prova contra o funcionário e mesmo assim os apensos foram<br />
acatados como de ordem punitiva direta. Foi a segunda vez em<br />
que o Wladmir rasgava a Constituição Federal a seu bel-prazer<br />
e gozava o fato de ser uma pessoa cretina pela própria natureza,<br />
rejeitada pela decência e moral!<br />
Com isso, vários funcionários pediram para trocar de repartição.<br />
Messias, Valéria, Carlos, Solto, Cheres, Kaio, Praxedes, Paulo Pirre,<br />
Jorge Soares e muitos outros bons funcionários, mas que não eram<br />
a imagem e semelhança da gerência, os quais presenciando de perto<br />
o que vinha acontecendo com o novato, sentiram a necessidade de<br />
sair daquele lugar com urgência. Sentiam que suas vidas corriam<br />
perigo naquele lugar. Não havia respeito aos direitos humanos, e a<br />
arbitrariedade era sempre acobertada por quem tinha o poder.<br />
O Júnior estava para se aposentar, por isso começou a<br />
desagradar o gerente Wladmir abertamente, expondo todas as<br />
suas insatisfações guardadas há muito tempo naquele ambiente<br />
autoritário, regime de servidão, porque sabia que o gerente já não<br />
poderia mais ousar nas suas perseguições e arrogância.<br />
O Rayner saiu da repartição após discutir com o gerente<br />
Wladmir, chegando até a colocar o dedo no rosto dele e exigir<br />
respeito por parte do chefe. Nesse dia houve uma grande discussão<br />
e outros funcionários precisaram conter os ânimos dos dois.<br />
No evento mais gritante de abuso, o funcionário Messias quase<br />
foi demitido depois que um dos carros da frota da empresa fundiu o<br />
motor, e houve um consenso da gerência em alegar que a causa teria<br />
sido o descuido do funcionário com os bens materiais da repartição.<br />
Isso ocorreu logo após o funcionário ter sido visto conversando<br />
com o novato em caráter confidencial no vestiário pelo James que<br />
passando pelo corredor ouviu parte da conversa.<br />
De fato a frota de veículos era muito mal acondicionada, em<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
32
garagens a céu aberto e sem mecânicos próprios da empresa, sendo<br />
contratados serviços terceirizados que melhor compensassem no<br />
preço e nas formas de pagamento.<br />
O gerente consentiu que todos os que pediam fossem trocados,<br />
pois não lhe eram submissos. O câncer representado pelo novato<br />
já havia lhes tirado o medo dos olhos e do coração e se tornaram<br />
pessoas de opinião formada, ou seja, já não serviam para a gerência.<br />
E nessa troca de peças deixou o pensador em situação difícil, pois<br />
era o único que não conseguia sair dali, mesmo com inúmeras<br />
tentativas frustradas.<br />
A repartição agora tinha um déficit de funcionários muito<br />
grande, o que provocaria maior carga de trabalho nos demais para<br />
compensar as perdas de recursos humanos.<br />
Enfraquecido de apoio, tendo em vista que todos os que não<br />
eram leais ao sistema ditatorial imposto pelo gerente Wladmir<br />
tinham ido embora, já não havia mais defesa contra os ataques<br />
idealizados por ele.<br />
O gerente estava cego pelo poder! Já não se preocupava com<br />
mais nada, apenas vencer a guerra de imagem e liderança.<br />
O gerente queria demonstrar poder usando como exemplo o<br />
novato. Era necessário à sua autoafirmação de força e soberania que<br />
o motivo de seus desgostos hedonistas fosse massacrado na frente<br />
dos demais funcionários com ilegalidades cada vez mais ultrajantes<br />
e um assédio moral que escapava a tudo que fosse previsto nas leis<br />
trabalhistas em vigor.<br />
Isso garantiria de vez a afirmação de poder e representatividade,<br />
pois submeteria toda a repartição à submissão plena e cega aos<br />
caprichos do gerente Wladmir.<br />
Mas um incidente minou o intelecto maligno daquele homem<br />
tão nocivo e uma organização importante mandou através de<br />
carta registrada à repartição um convite para uma reunião seleta<br />
com a cúpula de uma organização influente na cidade, e o convite<br />
era justamente direcionado ao novato. Seria tratado de assuntos<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 33
envolvendo propostas ao Poder Público para a melhoria das<br />
condições de trabalho de cavalos no município, cuja pretensão seria<br />
o veto à tal exploração, além do plantio de uma grande quantidade<br />
de árvores. A reunião seria presidida por um vereador do município,<br />
muito influente em causas relacionadas ao meio ambiente e recursos<br />
naturais.<br />
Um desgosto como esse! Como é possível? Justo agora que<br />
estava tudo indo tão bem para os planos pessoais cravados dentro<br />
da repartição.<br />
Sentindo-se impossibilitado em negar o pedido, e procurando<br />
esconder das entidades externas tudo que estava operando na<br />
repartição, à margem da lei e do caráter, liberou o funcionário no<br />
dia e hora marcados para o encontro, a fim de agradar à cúpula, e já<br />
planejando uma forma de tentar minar qualquer eventual convite<br />
posterior.<br />
Contudo o encontro havia sido um sucesso! O pensador<br />
compareceu bem vestido, num terno de cor escura, gel nos<br />
cabelos e barba bem feita! Foi muito elogiado pelas ideias que<br />
demonstrou para a modernização do quadro produtivo de vários<br />
seguimentos! Praticamente discursou todas as viabilidades do<br />
novo projeto de lei acerca dos semoventes. Apresentou como<br />
viabilidade que o plantio das árvores fosse feito junto às escolas,<br />
como forma de conscientizar os alunos para a preservação<br />
ambiental e garantir maior participação popular nos atos de<br />
cidadania. E tendo apresentado inovações tão notáveis, recebeu<br />
outros convites para representar o seu seguimento de trabalho,<br />
deixando o gerente possesso de ódio, pois em pouco tempo<br />
notava-se claramente que sua imagem era venerada somente<br />
no interior da repartição, pois havia implantado seu regime<br />
ditatorial, através da inquisição e do medo, mas que fora dali<br />
havia todo um mundo que não lhe era submisso, e que não se<br />
conquistava pela opressão e sim pela eficiência e liderança, pelo<br />
34 carisma e prestatividade! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
E o câncer que representava os ideais do pensador começou<br />
a influenciar no modo de pensar de alguns funcionários.<br />
Estes foram percebendo pouco a pouco que possuem direitos<br />
profissionais, e que o gerente Wladmir não era um deus e sim<br />
uma pessoa de carne e osso. Que a ditadura moral somente<br />
conduziria suas vidas ao infortúnio. Que ele era um funcionário<br />
da repartição e não o dono dela. Nada ali era dele e sim dos<br />
acionistas que todo mês injetavam dinheiro na empresa. Que o<br />
assédio profissional para forçá-los a execução de atitudes que<br />
visam agradar seu bel-prazer, e o cunho pessoal de seu desejo<br />
de autoafirmação de poder, jamais seriam concretizados se não<br />
houvesse a participação de suas pessoas, na passividade das suas<br />
emoções, pois de outro modo o brilho dele cada vez mais iria se<br />
reduzir, até se apagar por completo, como estrelas que morrem<br />
nos confins do universo, e aquele regime ultrajante de assédio<br />
moral se extinguir.<br />
E num acesso de fúria, o gerente acionou o gerente<br />
intermediário, alegando que o pensador o havia caluniado, sendo<br />
então encaminhada à decisão do bloco intermediário a demissão do<br />
funcionário.<br />
Como era de praxe, havia a necessidade de decisão judicial<br />
sobre o caso, porém como não havia prova alguma o processo de<br />
demissão nem sequer foi instaurado, sendo arquivado logo que deu<br />
entrada na esfera judicial.<br />
Foi aí que a greve branca começou diante do último desaforo<br />
cometido pelo gerente Wladmir.<br />
Em pouco tempo os resultados da produção da repartição<br />
caíram drasticamente, não pela vontade do pensador, e sim pela<br />
própria revolta social e moral que as ações do ditador começaram<br />
a despertar em todos. Os números caíam consideravelmente<br />
em comparação com os balanços apresentados pelas outras<br />
repartições espalhadas por outros locais e que compunham o<br />
bloco intermediário.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
35
Em poucas semanas havia mais de trezentas ordens de<br />
serviço aguardando cumprimento sem, contudo haver qualquer<br />
manifestação profissional mais efetiva dos funcionários ligados à<br />
execução do serviço para cumpri-las.<br />
Então houve a queda do Alisson, como uma resposta do<br />
gerente Wladmir aos acionistas, que começavam a pressionar<br />
por melhorias na qualidade do serviço, e para tentar acalmar os<br />
ânimos dos funcionários. Foi notadamente uma prova de que o<br />
império que se consolidou naquele lugar não era permanente,<br />
e que a imposição do assédio moral somente aconteceria se os<br />
próprios trabalhadores permitissem, deixando de correr atrás dos<br />
seus direitos.<br />
O Alisson havia caído devido à presença do novato. Isso é certo.<br />
E todas as suas tentativas frustradas de eliminar a concorrência<br />
do novato na liderança, acabaram por conduzi-lo ao fracasso e à<br />
humilhação de sair da repartição pela porta dos fundos, tendo os<br />
funcionários subalternos comemorado a saída de um funcionário<br />
tão prejudicial à paz e à harmonia!<br />
Ele era um homem de idade avançada, com muitos anos<br />
de serviço na repartição, porém de índole muito prejudicial a<br />
todos! Não procurava ser gentil ou cortês em nenhuma ocasião.<br />
Descumpria promessas de folga ajustadas, mandava caçar férias e<br />
não se preocupava em ser querido na empresa, antes, sentia-se feliz<br />
por ser odiado e temido. Não possuía a mínima carga cultural que o<br />
ajudasse a promover justiça no ambiente de trabalho, onde exercia<br />
a chefia direta de cerca de quarenta funcionários.<br />
Contudo, era um dinossauro que chefiava os seus funcionários!<br />
Uma pessoa cheia de falhas moraisequese encarregara pessoalmente<br />
de procurar prejudicar o novato de todas as formas possíveis, até<br />
que suas tentativas frustradas foram se esgotando, pois sempre<br />
deparava com um funcionário moderno, cheio de conhecimentos<br />
técnicos e de disposição para lutar por seus direitos quando<br />
36 houvesse alguma ilegalidade. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Com a queda de seu homem de confiança, seu império<br />
desmoronou, e o gerente já não exercia poder sobre todos os<br />
funcionários, restando apenas alguns leais, como o Fábio, que<br />
assumiu a vaga deixada pelo Alisson. Era um serviçal capaz de<br />
sacrificar a vida para agradar a gerência, almejando, com isso, várias<br />
subidas de cargo, abrindo mão inclusive de seus escrúpulos para<br />
ser leal a qualquer preço; o James, que era um misto de boa pessoa e<br />
capacho bajulador, estando sempre em desarmonia com sua própria<br />
predominância de caráter; o Cris, que, embora leal, conservava um<br />
caráter que não se subjugou, antes disso, tentando sempre debater<br />
com o gerente por uma solução menos prejudicial a todos, sendo<br />
sempre vencido pela imposição, o Nicolau, que era justamente<br />
quem controlava todos os apensos. A queda do Alisson foi uma<br />
resposta aos acionistas que começavam a pressionar melhorias na<br />
repartição.<br />
Os outros funcionários ficaram no anonimato, por medo da<br />
gerência ou da ameaça em potencial ao regime de imposição que se<br />
instalara na repartição devido à greve branca.<br />
No fim daquele ano, houve uma festa de confraternização<br />
entre os funcionários, sendo convidado o novo gerente do<br />
bloco intermediário, senhor Barcelos, que assumiu a vaga após a<br />
aposentadoria de Tarcísio. A divisão social existente na repartição<br />
ficouevidente,aopassoquesomentecompareceramosqueaindaeram<br />
submissos ou leais ao gerente Wladmir, ou que temiam represálias<br />
e procuravam se socializar, sem, contudo, tomar partido pela<br />
direita ou pela esquerda na causa que dividiu o lugar em dois polos.<br />
As famílias dos funcionários em questão compareceram à festa<br />
e apenas alguns dos presentes ousou comentar sobre as ausências<br />
generalizadas, embora o clima entre os funcionários tenha sido<br />
notável!<br />
Eram esperados uns duzentos funcionários, os quais levariam<br />
ainda os familiares. No entanto, pelo que foi comentado sobre o<br />
evento, havia na festa os seguintes funcionários:<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 37
Da base aliada à gerência: Fábio, James, Nicolau, Cris, Pontes<br />
e Juliana.<br />
Dos funcionários de classe mais inferior: Sérgio, Vicente, Paulo<br />
Mateus, Roberto, Sanches, Oscar, Demétrius, Solange, que era uma<br />
fofoqueira repudiada por quase todos os funcionários, Castilho,<br />
Queiroz e Samuel.<br />
Contando todos os funcionários presentes e suas famílias, não<br />
chegava a cinquenta pessoas. Com isso, uma grande quantidade de<br />
mesas ficou vazia e o clima, pesado.<br />
Sobrou comida e bebida. Até mesmo o que era mastigado<br />
descia pela garganta com dificuldade, embora pudesse estar<br />
saboroso.<br />
O novo gerente do bloco intermediário desaprovou as ausências<br />
e cobrou do gerente Wladmir uma mudança de postura na empresa.<br />
Na verdade, o novo gerente era nos moldes do gerente local, uma<br />
pessoa que ambicionava cada vez mais poder e admiração. Tinha<br />
interesse naquela confraternização para ser o centro das atenções,<br />
e se viu reduzido em importância, pois as cadeiras vazias chamaram<br />
mais atenção que sua presença. O que o diferenciava do Wladmir<br />
era a apreciação da legalidade quando esta lhe era conveniente. Isso<br />
porque em alguns momentos, para a garantia de sua supremacia,<br />
ousou também restringir direitos de alguns. Os funcionários que<br />
havia chefiado costumavam chamá-lo de “o semideus”, devido<br />
ao fato de não aceitar intervenção, chegando, muitas vezes, a<br />
desconsiderar os acionistas e a vontade do gerente geral; trabalhava<br />
apenas conforme sua própria vontade.<br />
Todos saíram da confraternização com a certeza de que<br />
era necessário tirar o pensador daquele lugar. Ele deu àquelas<br />
pessoas o poder de pensar e questionar o sistema, e esse espírito<br />
de cidadania, embasado na lei, na honra e no caráter, eram males a<br />
serem combatidos a qualquer custo.<br />
Alteração de horários de trabalho, grande quantidade de<br />
apensos cujo teor cada vez mais ilegal já não demonstrava a<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
38
veracidade dos fatos e sim o desejo ardente de sangue e sofrimento,<br />
carga de trabalho mais pesada em relação aos demais funcionários,<br />
reduções de salário, assédio moral, abusos de poder, impedimento<br />
de acesso ao público externo, acusações tendenciosas, calúnias,<br />
negação de férias regulamentares, horário extra sem fundamento<br />
para correção de trabalhos não realizados ou terminados com<br />
imperfeições, acusações de baixa produção e até mesmo a desculpa<br />
da gola da camisa estar amassada...<br />
Ah! Com o passar dos anos a carga de stress foi proliferando<br />
na cabeça do pensador, a ponto de ele começar a beber<br />
descontroladamente! A bebida era um refúgio a todas as agruras<br />
que aquele lugar proporcionava!<br />
O cigarro, também companheiro inseparável dos momentos de<br />
depressão, teve seu consumo aumentado dia após dia.<br />
Não entendo até hoje, e juro que não, como esse funcionário<br />
ainda encontrava forças para chegar de manhã e ainda ir lá<br />
colocar frutas para as maritacas que vinham até ele com alegria<br />
e barulho.<br />
Ele estava pálido! Magro! O rosto descontente...<br />
Finalmente as férias de período lhe foram concedidas, o que<br />
se deu na época de reforma da repartição, e a gerência gostaria de<br />
contar com a participação efetiva, quase escrava de todos. Como o<br />
pensador questionaria demais, acabaram desistindo de convocá-lo<br />
naqueles dias.<br />
Nesse meio tempo, o novato foi vítima de uma tentativa de<br />
latrocínio, justamente no dia em que vendeu o carro para comprar<br />
outro mais novo. O ladrão havia entrado em sua casa para roubar<br />
o dinheiro e acabou ferindo o braço do pensador com uma arma.<br />
E, fugindo logo em seguida sem levar o dinheiro que estava bem<br />
escondido, acabou sendo preso pela polícia que passava pelo local<br />
e foi acionada por moradores da rua onde tudo aconteceu. Mesmo<br />
estando de férias naquela época, fez questão de comunicar o fato à<br />
empresa.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
39
40<br />
O fato foi veiculado em jornais, e o gerente Wladmir acusou o<br />
pensador de ter prejudicado a imagem da repartição, cujo nome foi<br />
noticiado, e, com isso, tentou mais uma vez que o funcionário fosse<br />
demitido.<br />
Diante desse fato, o pensador procurou o Genaro, que era<br />
assessor de um deputado, para que usasse de sua influência junto<br />
ao bloco intermediário para tratar do assunto dos assédios morais<br />
que estavam ocorrendo e de todas as ilegalidades que vinham<br />
acontecendo na empresa.<br />
A repartição ficou na mira direta do poder público, e a<br />
possibilidade de vir à tona a grande quantidade de abusos profissionais<br />
ali cometidos fez acender o sinal de alerta dos gerentes.<br />
Com isso, o gerente do bloco intermediário viu-se obrigado a<br />
transferir o pensador para outra repartição, e esse, em sua saída,<br />
levou consigo todo o brilho que ainda restava na seção. Mais que<br />
isso, outros quinze funcionários pediram para mudar de lugar.<br />
A motivação para o trabalho nos funcionários foi reduzida a<br />
nada: pilhas de ordens de serviço, algumas urgentes, ficavam dias<br />
sobre a mesa da saleta de reuniões, apesar de a gerência ter-se<br />
esforçado ao máximo para incutir-lhes o desejo de trabalhar, ora<br />
com concessões, ora com autoritarismo, não tendo obtido sucesso<br />
em nenhum dos casos. Boa parte dos funcionários que ainda<br />
restaram pediu a troca de repartição, alegando não ter condições de<br />
trabalhar com a atual chefia.<br />
Isso foi novidade! Antes, todos os que pediram transferência<br />
alegaram inúmeros outros motivos, mas dessa vez a revolta social<br />
era evidente! O espírito de democracia havia sido despertado nos<br />
funcionários!<br />
Até os passarinhos deixaram de visitar aquele local, tendo<br />
voado para tão longe que nem nas ruas próximas, nem na copa das<br />
árvores eram vistos. As maritacas já não agitavam as manhãs com<br />
seus gritos alegres.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
As árvores ressecadas foram podadas por ordem da gerência e o<br />
clima ficou mais quente e seco em todas as salas.<br />
Na verdade, só Deus soube os motivos pelos quais o gerente<br />
do bloco intermediário, senhor Barcelos, manteve no cargo o<br />
gerente Wladmir, mesmo com tanta rejeição de todos, a ponto de<br />
os funcionários se manterem em greve branca.<br />
O tempo foi passando e, após três anos, o estado emocional do<br />
pensador já estava bastante debilitado devido ao assédio moral e ao<br />
abuso de poder perpetrados contra ele na antiga repartição.<br />
Foi bem recebido no novo local de trabalho, porém as marcas<br />
recentes ainda demorariam muito para se apagarem.<br />
Será que em todo lugar seria assim? Será que em todas as funções<br />
haveria perseguição, especialmente quando houvesse conflito de<br />
pensamentos e técnicas de trabalho, ou quando alguém conseguisse<br />
se destacar, embora não fosse mais que um mero empregado?<br />
Solidão... vem e arranca as esperanças do coração do homem.<br />
Depressão aguda que vira inferno ou vira céu, leva embora o<br />
sorriso dos lábios e provoca a falta de sono e de apetite durante<br />
quatro dias.<br />
As decepções com a vida e com o trabalho foram só<br />
aumentando... Não poderia sair do emprego sem conseguir outro<br />
lugar para trabalhar. Via-se de alguma forma preso ao sistema e sem<br />
condições de sair dele, e agora, após o cansaço dos combates por<br />
justiça, temeroso de represálias.<br />
Mas, em momento algum vendeu seu caráter nem sua honra,<br />
e não se submeteu à imoralidade ou à ilegalidade que tantas vezes<br />
lhe foram determinadas como doutrina. Essa sempre foi sua fonte<br />
maior de energia para resistir, e sempre será, independente de onde<br />
estiver!<br />
A vida há de proliferar os dias dos pensadores para que<br />
possam, com coragem e determinação, mudar os rumos do mundo e<br />
reduzir as forças do mal sobre os mais necessitados.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 41
CAMPO MINADO<br />
42<br />
E, no início, o homem criou o ciúme! Havia uma testa frisada<br />
pelo juntar das sobrancelhas, e os lábios ressecados se mordiam a<br />
cada nova conquista.<br />
Antes tudo era pacífico, mas o surgimento de uma Supernova<br />
abalou a paz de todo o universo. Um brilho reluzente como<br />
sorriso alvo, cativante pairou no centro da galáxia e seu discurso<br />
semelhante à poeira dos astros chegava aos ouvidos como cantilena<br />
suave e agradável!<br />
E então, houve um choque tão brusco que todo o universo ficou<br />
em brasas...<br />
– Senhor! Acorde!<br />
Onde estou?...(voz descompassada) Que lugar é esse? Eu estava<br />
sonhando com um universo... vários astros...uma explosão muito<br />
grande onde as faíscas se espalharam e algumas estrelas ficaram<br />
perdidas...que lugar é esse?<br />
– A sua família está na recepção. Querem vê-lo.<br />
– Que estou fazendo aqui...?<br />
– O senhor está internado numa clínica psiquiátrica. Está<br />
dormindo há dois dias em virtude de remédios e de um forte impacto<br />
que recebeu em seu corpo.<br />
Caminhando com dificuldade e sem conseguir um raciocínio<br />
lógico sobre os fatos, cheguei até uma sala. Lá estavam alguns<br />
parentes que haviam trazido objetos de uso pessoal, tais como<br />
roupas, desodorante, pasta de dente e alguns biscoitos e doces.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
E disseram que eu estava internado naquele lugar por estar<br />
com problemas sérios de depressão causada por perseguição no<br />
ambiente de trabalho e por outro motivo que não quiseram revelar.<br />
– E quem está cuidando dos meus animais?<br />
– A prima Sara está cuidando deles. Não se preocupe que tudo<br />
está bem. Fomos até sua casa, pegamos os animais e os levamos<br />
para a casa dela, onde ficarão em segurança até você se recuperar<br />
do trauma.<br />
Sentindo dificuldade de falar devido aos fortes sedativos que<br />
nem sei quantas vezes foram aplicados em meu corpo, preferi<br />
permanecer em silêncio, apenas ouvindo.<br />
Logo veio um funcionário com uma ficha de internação para<br />
que eu assinasse. Eu procurava ler o que estava escrito, mas meus<br />
olhos embaçavam após algumas palavras. O funcionário disse que<br />
era apenas o consentimento de internação. Que o enfermeiro da<br />
ambulância conveniada com o meu emprego relatou que o pedido<br />
de internação havia sido feito por mim e por isso eu teria que assinar<br />
o documento, consentindo com o tratamento.<br />
Que campo minado repleto de bombas é a minha vida! Não<br />
posso confiar em ninguém. Jamais consenti em ser internado.<br />
Estavam me colocando naquele lugar contra a minha vontade, mas<br />
naquele momento eu estava muito fraco para tentar alguma coisa.<br />
Percebi que não tinha condições de me opor a nada. Era como se<br />
somente meu corpo tivesse vida, e minha alma estivesse morta e<br />
sem brilho.<br />
Assinei o documento e a letra saiu forçada! Os dedos não se<br />
mexiam com naturalidade. Sabe-se lá o que havia na injeção que foi<br />
aplicada em meu braço direito! O que dá a essas pessoas o direito de<br />
fazer semelhante atrocidade com alguém e não haver qualquer tipo<br />
de punição? Produzem loucos a partir de pessoas normais abaladas<br />
por algum problema que muitas vezes não tem nada a ver com a<br />
loucura.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
43
44<br />
Dois dias direto dormindo! O que é isso? Que tipo de veneno é<br />
esse que foi injetado em minha veia? Para depois o médico escrever<br />
o que quiser em minha ficha, com base apenas em seu interesse<br />
pessoal ou profissional. Talvez seja por este mesmo motivo que<br />
todas aquelas pessoas que estavam no ambulatório foram se<br />
transformando em espectros, após a aplicação do veneno.<br />
O cumprimento das ordens, mesmo que ilegais, unicamente<br />
para que o sistema continue operando com todas as regalias da<br />
classe que comanda, num fechamento que passa por cima até<br />
mesmo das leis vigentes. Isso tudo é disciplina. Não a disciplina que<br />
vem de ser íntegro, lastreada na boa educação, e sim a disciplina<br />
de ser discípulo, de seguir fiel e prontamente o que é determinado,<br />
conivente com a mentalidade de quem está no nível do governo.<br />
Por isso é um campo minado. Um esquema de pirâmide, onde<br />
poucos têm privilégios e a maioria carrega fardos mais pesados que<br />
o próprio corpo.<br />
Jamais segui de maneira cega qualquer ordenamento ou<br />
sistema, pois acredito que isso se denomina fidelidade cega, e retira<br />
do homem a sua personalidade, transformando-o num reles objeto<br />
de uso pessoal.<br />
Fidelidade é, antes de tudo, saber se opor ao sistema quando<br />
há ilegalidade. Há, contudo, a forma leal e a forma desleal. Lealdade<br />
é pautar-se na lei para agir em sociedade dentro de um conjunto.<br />
Qualquer coisa que fuja disso, que não dê o direito de uma das<br />
partes manifestar o pensamento ou expor opiniões, técnicas que<br />
vão melhorar a execução do sistema, não pode ser considerado<br />
fidelidade e sim escravidão moral. Qual é a legalidade de um<br />
sistema baseado na inquisição e na imposição? Um assédio moral<br />
que coíbe qualquer conduta que não vá agradar à cúpula?<br />
Por outro lado, seoindivíduoinserido no todo sabeser discípulo,<br />
embora perca toda uma vida de liberdade de trabalho para ser<br />
unicamente um instrumento, não pisará nos artifícios deixados no<br />
campo, pois são armadilhas contra os inimigos. Inimigos que não<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
impunham armas, e sim livros, não usam coletes à prova de balas,<br />
ao contrário, levam flores nas mãos para oferecer, mas pensam, e<br />
o mundo dos pensadores é ambiente de perseguição repleto de<br />
mágoas e desejos. Um local de sonhos e aspirações à aceitação dos<br />
ideais.<br />
Os idealistas conseguem mudar o mundo, mas somente depois<br />
de muito sofrer com prisões e perseguições. O abuso caminha lado a<br />
lado com os idealistas. E quando os idealistas caminham um pouco<br />
mais para a direita, a corrente de abusos que tenta prendê-los no<br />
trajeto em linha reta se arma, repleta de instrumentos cortantes<br />
que rasgam a carne e procuram sugar a determinação dos ideais.<br />
Quando os idealistas então decidem ir para o lado esquerdo a<br />
outra corrente já está armada como um cão feroz que tenta intimidar<br />
e empunha seus instrumentos de guerra.<br />
Desde o princípio da existência social, é dessa forma que as<br />
mudanças são feitas. Sempre à custa de muito sangue derramado, de<br />
muitas lágrimas, e, embora os ideais dos pensadores não se abalem<br />
pelos chicotes do arcaísmo social em sua esfera mais representativa,<br />
as chagas deixadas permanecerão por toda a vida.<br />
Após conversar com os parentes, levaram-me de volta à cama e<br />
dormi novamente. O efeito dos medicamentos era muito forte e até<br />
os passos eram difíceis!<br />
Mais algumas horas de sono e então despertei. Era um quarto<br />
com seis camas de solteiro e em cada cama havia um paciente. Em<br />
silêncio, caminhei até a porta do quarto, e havia um corredor com<br />
vários outros quartos iguais, e pacientes em todos eles.<br />
Estava numa clínica psiquiátrica. Aos poucos, fui recobrando a<br />
lucidez dos pensamentos e procurando entender tudo o que estava<br />
acontecendo.<br />
Caminhei pelo corredor procurando pela cozinha e uma<br />
enfermeira rapidamente trouxe algo para que eu comesse e me<br />
ofereceu soro, devido à desidratação provocada pelo período em<br />
que fiquei sem alimento. Lanchei um pão com manteiga, um copo<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 45
de café com leite, biscoitos trazidos pelos parentes e, em seguida,<br />
bebi o soro.<br />
Após um tempo, que não sei precisar quanto, sentado em um<br />
banco, peguei uma roupa numa mochila que os parentes haviam<br />
trazido e fui até o banheiro tomar banho. O banheiro masculino<br />
possuía quatro boxes com privada e cinco boxes com chuveiro,<br />
todos um ao lado do outro. Havia um grande espelho sobre a pia e<br />
duas torneiras.<br />
A água era muito quente, devido ao fato de ser um lugar muito<br />
frio nessa época do ano.<br />
A clínica ficava numa fazenda cercada de montanhas, nas<br />
proximidades de uma rodovia.<br />
Debaixo do chuveiro, procurava me lembrar de tudo o que havia<br />
acontecido, porém não me recordava senão de entrar no hospital e<br />
tudo o que me trouxe até esse lugar.<br />
Meu corpo doía em toda a parte frontal, principalmente no<br />
peito. A água do chuveiro ajudava a reduzir os efeitos da dor.<br />
Meu rosto no espelho demonstrava a carência de vida. Parecia<br />
um defunto de olhos abertos, e não havia brilho nos olhos. Tão feia<br />
era a visão que não consegui ficar durante muito tempo olhando a<br />
minha própria imagem e saí da frente do espelho de cabeça baixa.<br />
46<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
SUICÍDIO<br />
Após alguns dias, com as dores no corpo passando, algumas<br />
recordações vagas começavam a brotar na memória. Um misto de<br />
loucura e sensatez! Fatos esparsos, como um quebra-cabeça sendo<br />
montado.<br />
Diálogos, expressões de rostos, lugares, visões... tudo ainda<br />
muito desconexo! Num instante, estava no trabalho, em outro, no<br />
hospital, até que foram clareando os elos entre os fatos...<br />
Lembrei-me do dia em que fui assaltado pela segunda vez,<br />
quando saí de casa para ir ao centro da cidade. Ainda não havia<br />
comprado o novo carro e, ao chegar ao ponto de ônibus, dois<br />
homens armados numa motocicleta exigiram a carteira e a bolsa<br />
que estavam em minhas mãos.<br />
Nesse dia, foram levados todos os documentos e uma<br />
considerável quantia em dinheiro, que seria usada para pagar o<br />
aluguel da casa. Lembro-me de que, devido à comoção, nesse dia<br />
não trabalhei, e de que foi no dia seguinte que tudo começou...<br />
– Preciso de um carro pra me levar até o hospital. Não estou bem.<br />
– Mas o que foi? Está com algum problema de saúde?<br />
Nesse momento, arremessando objetos ao chão, o controle foi<br />
escapando. As mãos começaram a tremular, e a cabeça se movia<br />
com muita agilidade e nervosismo.<br />
– Já disse que não estou bem, oras. Preciso ficar repetindo? Não<br />
deveria nem estar trabalhando nessas condições de trabalho, no<br />
meu atual estado mental.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
47
– Vou ligar para o gerente e verificar se ele pode te liberar do<br />
trabalho hoje. Então você vai para o hospital em seu carro.<br />
– Como quer que eu dirija nessas condições? Nem se tivesse<br />
carro. Não está vendo o que está acontecendo? Preciso de que<br />
alguém me leve até o hospital.<br />
Lágrimas rolando pelo rosto delicadamente, ostentando raiva e<br />
indignação por acontecimentos recentes que fizeram explodir uma<br />
revolta interior e um rancor pela própria existência. Num segundo,<br />
um soco no ar na direção do vazio.<br />
– Olha, procure se acalmar. Vá lá em cima. Tome um banho.<br />
– Não preciso que fiquem o tempo todo me ordenando as coisas!<br />
Já disse que não estou bem e querem que eu vá tomar banho? Ora, vão...<br />
Nesse momento, com um pouco de lucidez, saí da saleta de<br />
reuniões aos prantos, subi as escadas e abri a porta do banheiro<br />
com um chute.<br />
Ao lavar o rosto e olhar no espelho, a morte falava comigo:<br />
– Filho, prepare-se! Chegou o momento de me acompanhar.<br />
Desça ao casarão sem demora...<br />
Por um momento, observei aquela figura espectral com o rosto<br />
semelhante ao de um homem desfigurado. Havia sangue ressecado<br />
numa das narinas e um colar de espinhos aparecendo por baixo da<br />
capa preta e suja de carne. A carne parecia podre e exalava almas<br />
como fumaça saindo do corpo após um banho quente.<br />
Passei as mãos nos olhos e, ao olhar no espelho, era minha<br />
imagem que estava lá. Pálido! Sem vida! Sem motivos para sorrir ou<br />
acreditar num mundo mais justo e digno.<br />
Voltei para o lado da porta e uma voz dizia:<br />
– Não se vá. Eu não estou lá fora. Estou dentro de você.<br />
Loucura! Demência! Corri até meu armário e tirei rapidamente<br />
o uniforme do serviço.<br />
Quando desci as escadas, todos na repartição já estavam nos<br />
seus afazeres do dia. Passei em silêncio, com o rosto e os cabelos<br />
ainda molhados e uma grande sensação de ódio e de escuridão!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
48
Ao sair na rua, o motorista do primeiro carro que veio em minha<br />
direção me acenou. Era uma figura também espectral e sem carnes<br />
no rosto, apenas pedaços de pele podre. Passou por mim e meu<br />
corpo bambo, agitado pelo vento, ainda titubeou até ir de encontro<br />
ao veículo e se chocar contra o capô.<br />
Tudo estava ficando muito estranho! O céu da manhã foi se<br />
tingindo de um cinza cadavérico! As nuvens pareciam feitas de<br />
muitos ossos humanos e, no alto, embora na realidade não estivessem<br />
lá, minha loucura percebia abutres com bicos ensanguentados, cujo<br />
sangue pingava e atingia meu corpo.<br />
Das paredes do instituto de ofídios e estudo de animais<br />
peçonhentos, saíam milhares de mãos tentando me puxar para<br />
dentro e eu tentava escapar delas e dos abutres.<br />
Escondi-me debaixo de uma árvore para que o sangue não me<br />
atingisse, mas a árvore tinha muitos vermes em seu tronco. Eles<br />
pareciam homens com lanças nas mãos, saindo de frestas no tronco<br />
e tentando espetar meus dedos.<br />
Muitos homens pequenos, usando armadura preta e tendo duas<br />
lanças nas mãos, agitando-as contra o vento, vinham em minha<br />
direção.<br />
Corri sem rumo, tentando escapar das gotas de sangue e dos<br />
vermes armados e, de repente, estava em outro lugar. Era uma<br />
escadaria e várias pessoas passavam por mim apressadas, até<br />
trombavam em mim, pois eu estava sentado no meio de um degrau.<br />
As mãos estavam colocadas no rosto tentando escapar desse<br />
momento tão difícil, de loucura.<br />
– Levante-se! Veja que seu transporte já está vindo! Apresse-se<br />
para tomar a condução.<br />
Era uma voz diabólica, com ecos de sofrimento, chamando<br />
no alto-falante que estava no teto, acima de minha cabeça. Ficava<br />
repetindo as mesmas coisas o tempo todo.<br />
Eu estava numa estação de metrô. Não sei em qual das<br />
estações da cidade, mas de alguma forma fui parar lá, embora não<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 49
50<br />
me lembrasse de ter caminhado até o metrô. A última cena de que<br />
consegui me lembrar foi de ter parado embaixo da árvore, tentando<br />
escapar dos abutres.<br />
Num instante depois, estava num céu negro, repleto de<br />
estrelas negras que não brilhavam, ao contrário, tornavam<br />
mais negros os horizontes do espaço sideral. Havia um pouco<br />
de claridade somente onde não havia estrelas, porque elas<br />
eram injustas! Aglomeravam-se e criavam uma constelação<br />
impenetrável! Irredutível!<br />
Lá no centro da constelação, vi a morte segurando um globo<br />
com milhares de vozes. Era uma cena horrível, como se as vozes<br />
fossem as almas aflitas cujas vidas se resumiram em desgostos e<br />
decepções!<br />
Ela usava um traje de gala, ostentando muitos títulos e brasões,<br />
e, nas pontas do traje, havia mãos com unhas enormes, arranhando<br />
o ar de forma ameaçadora!<br />
Novamente meus olhos clarearam por um tempo...<br />
Vinha um metrô, bem longe, encoberto por uma bruma. Só<br />
era possível enxergar a luz branca. Cheguei até a beira da faixa<br />
de segurança, enquanto a morte ficou do outro lado da linha me<br />
chamando e tendo nas mãos algo semelhante a um globo, porém<br />
de cor cinza e negro ao invés do azul do mar. Dessa vez, milhões de<br />
vozes falavam e gritavam de dentro do globo. Era o mesmo globo<br />
que havia visto antes, porém agora estava mais próximo. E era mais<br />
nítido o casarão.<br />
Ela dizia para não me demorar que logo estaria em casa.<br />
Então, fui entrando num estado de transe eventual, que nada<br />
mais parecia ter importância na vida. Lembrei-me da infância, dos<br />
desejos que jamais foram realizados, das brincadeiras de roda, de<br />
polícia e ladrão, de roubar bandeira, de pique-esconde e futebol.<br />
Ao recordar a adolescência, vieram à mente o primeiro amor, as<br />
aspirações sobre o futuro e o primeiro emprego que consegui numa<br />
lojinha de sapatos lá naquele bairro onde passei a infância. Os<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
amigos que as estradas da vida levaram em busca do ouro em lavras<br />
que talvez nenhuma riqueza vá proporcionar.<br />
Porém, o sonho impulsiona o desejo aventureiro no coração de<br />
cada um. E aquele que segue o seu caminho, a sua estrada, talvez<br />
jamais volte ao lugar de onde partiu. Torna-se um errante pelo<br />
mundo, sempre à procura de novas aventuras.<br />
As antigas festas, as ruas do bairro, a simplicidade da vida<br />
quando ainda não havia os problemas de relacionamento social, que<br />
podem reduzir o próprio direito de viver e tornar a vida, de forma<br />
sarcástica, no mero acatamento de imposições sem fundamento.<br />
Um robô do sistema...<br />
O mundo não é dos pensadores e sim dos escravos e de seus<br />
respectivos senhores que os açoitam o tempo todo e não há revolta.<br />
Quem pensa num mundo como esse e possui autonomia, torna-se<br />
um problema a ser exterminado a qualquer custo. Um câncer no<br />
meio do sistema regrado de autoafirmação de poder e de submissão<br />
plena e cega.<br />
Um jardim de flores se descortinou diante de mim na extensão<br />
dos trilhos do metrô. Eles davam acesso a um lugar calmo, onde<br />
borboletas voavam e pássaros cantavam. Uma brisa levava o<br />
perfume de muitas flores que eram agradáveis e a morte havia se<br />
transformado numa linda moça que segurava um raminho de flores.<br />
Ela sorria vários sorrisos como que em sonho. Usava um vestido<br />
longo tal qual donzela de romance!<br />
Lá não havia sofrimento nem dor! Não havia motivos para<br />
o choro nem para o desespero! Havia apenas um jardim imenso,<br />
repleto de flores!<br />
Embriagado de êxtase e excitação por um mundo melhor, uma<br />
saída para os problemas que estava enfrentando, desci pelo trilho e<br />
comecei a caminhar naquela direção agradável. Eu já não detinha o<br />
controle sobre a minha vida.<br />
Atrás de mim, vi um mundo negro, repleto de fantasmas<br />
horrendos que não queriam se desgarrar do meu corpo. Parecia que<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 51
52<br />
a minha lágrima é que dava poder ao ódio estampado na face de<br />
cada um deles.<br />
Eles pareciam querer me puxar de volta, pois o poder estava se<br />
esgotando em seus peitos sem coração, onde somente os pulmões<br />
inspiravam a fumaça negra da poluição social. Era necessário que<br />
eu fosse a fonte que alimentava o ódio, mas, sem minha presença, já<br />
não haveria mais motivo para que esse existisse.<br />
Olhei então para frente e novamente vi a figura daquela mulher.<br />
Ela foi se desfigurando, caindo-lhe as peles do rosto. As flores<br />
murcharam e seus espinhos entravam na carne dos braços, fazendo<br />
porejar sangue negro e de cheiro ruim.<br />
Um grito distante foi chegando aos meus ouvidos e de repente<br />
não vi mais nada além do céu azulado, com um tom diferente, quase<br />
roxo!<br />
Havia um calor insuportável no chão e um gosto estranho,<br />
como o cheiro do ácido, na boca. Uma sensação de coração batendo<br />
forte, e as artérias e veias do corpo desesperadas, querendo jorrar<br />
o sangue pelo corpo todo, como se a quantidade de sangue fosse<br />
maior do que poderia passar por elas.<br />
Até que tudo se apagou por algum tempo.<br />
Estava na lembrança. Eu havia tentado suicídio entrando na<br />
pista do metrô. Por isso, vim parar nesse lugar. A clareza dos fatos<br />
era inevitável! Eu não me lembrava de nada, por causa do impacto,<br />
mas certamente tinha sido arremessado pelo metrô. Então, tudo<br />
fazia sentido: a dor no corpo, as pessoas, os lugares.<br />
Finalmente minha lucidez começava a voltar e eu podia traçar<br />
um raciocínio lógico de como tudo tinha começado.<br />
De fato, eu não estava morto, mas meu coração e minha vontade<br />
de viver estavam em cinzas! A vida é difícil e repleta de mágoas!<br />
Muitas vezes, o desespero nos conduz a loucuras que podem atingir<br />
muito mais do que a nós mesmos.<br />
Mas eu não havia morrido. Pelo menos parecia que não.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Como o ser humano é tendencioso, seu desejo de ser importante<br />
é mais valioso do que comer e beber!<br />
A imposição de se destacar no seio da comunidade surge em<br />
quem mira o poder como o líquido precioso da vida e do prazer!<br />
Nada pode abalar o império consolidado de força e soberania,<br />
mesmo que seja algo justo, tira-lhe o brilho de estar acima da lei e<br />
perturba o olhar dos poderosos.<br />
A vida é difícil E repleta de sonhos! O sistema social imposto,<br />
entretanto, rouba até os sonhos que ainda não foram sonhados e os<br />
sorrisos de prazer ainda não provocados! Transforma a liberdade<br />
e até mesmo o próprio sentimento de que somos uma pessoa, com<br />
direitos e obrigações, em um ambiente de privações e humilhação<br />
moral. Até que o próprio desejo de viver acaba como o último gole<br />
de uma bebida que antes era gelada, doce e gasosa, mas cujo resto<br />
se torna amargo, morno e sem espuma.<br />
Ao lembrar de tudo isso, fui até um canto e fiquei de cabeça<br />
baixa, sem dizer nada, olhando para o chão até as lágrimas rolarem<br />
e caírem na terra.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 53
CAMPO DE CONCENTRAÇÃO<br />
54<br />
– Olha o café, moçada! Olha o café!<br />
Uma voz gritando pelo corredor, às sete horas da manhã de um<br />
dia bastante frio e com neblina cobrindo a serra que fica atrás da<br />
clínica, onde há uma horta.<br />
Vi que os pacientes iam se deslocando para a área da cozinha<br />
e uma fila se formou. Fiquei atrás na fila, e os pacientes foram<br />
entrando. Logo também entrei.<br />
Havia uma pessoa atrás de um balcão que, com um garfo,<br />
pegava o pão para cada paciente e logo em seguida outra servia café<br />
e leite. Os copos eram de plástico, iguais aos que há duas décadas<br />
eram usados para servir leite na escola onde estudei.<br />
A cozinha tinha três mesas grandes de madeira, uma ao lado<br />
da outra, e os bancos eram contínuos. Os pacientes se sentaram<br />
e tomaram o café. Do outro lado da cozinha, o mesmo aparato<br />
separava os pacientes crônicos, e, em outra ala, ficavam as<br />
mulheres internas. Fiquei em pé, próximo à porta, observando<br />
tudo que acontecia.<br />
Em seguida, logo após tomar o café, fui caminhar pelo corredor,<br />
olhando bem a fisionomia de cada um, tentando formular uma<br />
opinião sobre aquele local.<br />
Num primeiro momento, imaginei-me num campo de<br />
concentração. Estava preso àquela realidade, internado contra a<br />
minha vontade, com base no laudo de um médico, por eu ter tentado<br />
suicídio e sobrevivido ao choque contra um metrô.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Havia uma sala de enfermagem próxima à cozinha e, ao passar<br />
por lá, uma enfermeira perguntou se eu havia tomado o remédio.<br />
Não estava sabendo de nada e, por isso, perguntei. Ela esclareceu<br />
que todos os pacientes ali internados tomavam algum tipo de<br />
medicamento receitado pelo médico que acompanha o tratamento.<br />
No meu caso, estavam receitados dois calmantes pela manhã e, à<br />
noite, um calmante mais forte para ajudar no sono.<br />
Era tudo muito regrado! O café da manhã era servido às sete<br />
horas, os portões da área externa eram abertos às oito e meia. Então,<br />
os pacientes tinham de ir para fora para participar da caminhada<br />
ou de terapia ocupacional, numa área onde eram feitos desenhos,<br />
objetos de decoração, artesanato ou exercícios físicos.<br />
A caminhada era acompanhada por algum funcionário da<br />
clínica em uma estrada de terra que, segundo eles, se estendia por<br />
dois quilômetros, até uma igreja, num povoado próximo.<br />
Nos primeiros dias, não participei de nada. Estava muito<br />
abalado por estar ali. Quando a vendinha abria, eu comprava<br />
cigarros e ficava olhando o movimento lá na rodovia através da<br />
grade da clínica, tomando o sol da manhã.<br />
O almoço era servido às onze horas. Meia hora antes, de<br />
segunda a sexta-feira, os pacientes assistiam a palestras sobre<br />
temas variados.<br />
Novamente a fila para o almoço: cada um pegava o prato e<br />
as cozinheiras colocavam a comida. Após o almoço, não havia<br />
muito que fazer. Podia-se assistir o jornal pela televisão na sala de<br />
palestras, fumar um cigarro ou deitar na cama. O espaço de terapia<br />
ocupacional ficava fechado para que as terapeutas Lígia e Claudete<br />
também fossem almoçar e pudessem ter um horário de descanso.<br />
Na parte da tarde, o recinto funcionava somente a partir das treze e<br />
trinta, ficando até as dezesseis e trinta.<br />
Era proibido o uso de celular dentro da clínica e todos os<br />
aparelhos dos pacientes ficavam guardados com a assistente<br />
social, desligados e identificados, e somente eram devolvidos<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 55
aos familiares em dia de visita ou quando o paciente recebia<br />
alta. Isso era justificado pela assistente social, senhora Iara, pelo<br />
fato de que ali estavam internados alguns pacientes que tinham<br />
vício em álcool e drogas e que usavam o celular para pedir o<br />
que sentiam desejo de consumir. De madrugada, o ilícito era<br />
jogado por cima do muro na direção do pátio interno, quando<br />
todos estivessem dormindo, sendo rapidamente recolhido pelo<br />
paciente interessado.<br />
Às quinze horas, havia o café da tarde e às dezessete, era<br />
servido o jantar. Após esse horário, às dezenove horas, era servido<br />
um mingau, leite queimado ou achocolatado quente.<br />
As roupas de cada paciente eram identificadas com o seu nome<br />
e guardadas na rouparia, em armários individualizados, para que<br />
nada fosse misturado.<br />
Todas as manhãs cada paciente levava um par de roupas sujas<br />
para a rouparia e à tarde, antes das dezessete, ia buscar um par de<br />
roupas limpas. Isso para evitar trocas de roupas entre pacientes ou<br />
até mesmo o sumiço de alguma peça.<br />
O portão da área externa era fechado às dezessete e após esse<br />
horário os pacientes não tinham mais acesso à área externa da<br />
clínica.<br />
As noites eram monótonas! Não havia muito que fazer também.<br />
Os pacientes mais velhos dormiam sempre muito cedo.<br />
Havia um paciente, o Sebastião, que costumava tocar gaita em<br />
alguns dias da semana no pátio próximo à cozinha. Vez ou outra,<br />
alguns se animavam a jogar baralho ou uma sinuca, que ficava na<br />
sala de palestras.<br />
Sebastião era um policial aposentado. Dizia que quando chegou<br />
à clínica ainda era do serviço ativo, que tinha problemas com as<br />
bebidas e foi internado pela família.<br />
Então comecei a fazer amizade com os pacientes do meu quarto.<br />
Havia o Fausto, que estava com problemas de excesso de<br />
bebida, e, para minha surpresa, trabalhava na mesma empresa que<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
56
eu, porém numa repartição em outra cidade. Ele contou que passava<br />
por problemas em seu casamento e também no serviço, sendo<br />
constantemente perseguido, embora passasse por tratamento<br />
médico há algum tempo. Contou de outros funcionários que<br />
também sofriam perseguição e contou sobre sua vida lá na cidade<br />
onde morava, das pessoas que tinha saudade e das festas.<br />
Sobre o assédio moral, falou que nos anos em que trabalhou na<br />
repartição presenciou diversas formas de abuso, cometidas sempre<br />
com o conhecimento da gerência, mas que nada era feito para<br />
melhorar as condições de trabalho dos mais baixos na hierarquia.<br />
Havia o João, um paciente que estava internado há dezoito<br />
anos na clínica, e tinha autorização para sair nos finais de semana<br />
para ir até a cidade próxima. Dizia que estava internado por causa<br />
de bebida e que a família, no caso seus irmãos, não o aceitavam em<br />
casa por causa do vício.<br />
O Deivisson, um paciente que tinha uma televisão, um aparelho<br />
de DVD e alguns outros pertences, era uma pessoa muito alegre e<br />
descontraída, comunicativo que só! Após alguns dias, foi mudado<br />
de quarto, pois concordou em cuidar de um paciente mais idoso que<br />
dormia num quarto particular de apenas duas camas. O Deivisson<br />
o ajudava a se vestir e tomar banho e lhe buscava o café. À noite,<br />
sempre fazia café numa cafeteira elétrica e levava para os outros<br />
pacientes, passando sempre em nosso quarto para conversar um<br />
pouco.<br />
O Osvaldo não era muito comunicativo. Sempre calado, nunca<br />
se soube nada sobre ele. Dormia cedo e ao acordar saía do quarto e<br />
se isolava do resto das pessoas.<br />
O Borges reclamava o tempo inteiro de estar internado.<br />
Não conversava conosco. Falava somente para si mesmo sobre<br />
a infelicidade da vida, que aquele lugar não resolveria nada, que<br />
queria ir embora e que sua família o odiava. Outras vezes, reclamava<br />
do governo por haver tanta corrupção num país com excesso de<br />
riquezas, mas que, devido à corrupção, não consegue crescer.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 57
Falava sobre fraudes nas loterias e jogos autorizados pelo governo,<br />
dizendo que sempre jogava em vários jogos antes da internação e<br />
que os resultados eram manipulados.<br />
Citava casos famosos de corrupção e desvio de dinheiro<br />
envolvendo a política e as obras públicas, e que, embora veiculados<br />
pela mídia, não resultavam em nada, e, quando muito, o responsável<br />
cumpria prisão domiciliar em mansão que havia adquirido com o<br />
dinheiro do povo. Falava de abusos de autoridade das polícias<br />
em seu estado. Que já apanhou de um policial que comandava o<br />
policiamento em um evento de manifestação pública e que recebeu<br />
um golpe de bastão porque gritava bastante e segurava uma faixa<br />
de protesto.<br />
Na verdade, uma onda de revoltas populares tomara conta do<br />
país nos últimos meses. A sociedade já não aceitava a corrupção, o<br />
abuso de poder e o assédio moral dos mais fortes impingindo aos<br />
mais fracos todo tipo de exclusão de direitos.<br />
Havia, em todo o país, uma onda crescente de descontentamento<br />
com o desvio de dinheiro público e com a precariedade da segurança<br />
pública e dos serviços públicos de saúde, devido à falta alarmante<br />
de profissionais e de prédios para atender a população. O povo<br />
descobriu que democracia é o governo do povo por meio de seus<br />
representantes eleitos, e não a monarquia que vinha sendo exercida,<br />
onde o representante não cumpria nada do que era prometido em<br />
campanha política.<br />
E a noite caiu com a neblina cobrindo todo o horizonte.<br />
Olhava pela janela do quarto enquanto fumava um cigarro.<br />
Ainda estava muito abatido por estar internado e não aceitava o<br />
fato de estar ali contra a minha vontade.<br />
Conversava muito com o Fausto. Ele dizia que estava internado<br />
há dois meses e que logo receberia alta. Que o tempo de internação<br />
fez muito bem e que agora está mais controlado emocionalmente!<br />
Depois, fui até o posto de enfermagem tomar o remédio da<br />
noite e veio um sono muito forte! Então dormi pela primeira vez<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
58
na clínica, após passar um dia inteiro acordado, apenas observando<br />
tudo que ali havia e como funcionava.<br />
Conheci pessoas que fariam parte do meu convívio diário e não<br />
deixava de pensar na tristeza da vida e em tudo que aconteceu de<br />
ruim para que chegasse ao ponto de ser necessária minha internação<br />
numa clínica psiquiátrica.<br />
A noite estava calma! Havia muitos cobertores disponíveis para<br />
cada paciente devido ao frio intenso da época do ano. Ao adormecer,<br />
meu corpo mergulhou profundamente no sono, derramando num<br />
arfar toda a carga de pensamentos que permaneceram em minha<br />
mente por todo o dia.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 59
A HORTA<br />
60<br />
Havia uma plantação agrícola nos fundos do lugar. Tudo muito<br />
bem feito e cultivado na terra, semelhante à típica horta do campo!<br />
De um lado, eram cultivadas couves, no outro, umas alfaces,<br />
cebolinha, cenouras e outros legumes. Havia uma amoreira muito<br />
grande, e deu vontade de provar dos seus frutos, porém, nessa época<br />
do ano, estavam muito verdes e ainda sem o doce sabor das amoras.<br />
Lá no final da horta, havia um espantalho voltado para a<br />
montanha que, de tão parecido com espantalho, no fim das tardes<br />
e cair da noite, parecia que ganhava vida e ficava dançando um balé<br />
da noite. Um fantasma acordado pelos pensamentos e aspirações<br />
de quem apenas via a tudo do lado de dentro da clínica.<br />
Era uma troca de papéis, pois, a cada manhã, o espantalho<br />
cumpria sua missão, afugentando os pássaros que costumavam<br />
atacar as plantações ou animais de terra que fariam buracos e<br />
estragariam tudo o que era cultivado.<br />
Nas noites, entretanto, ao ganhar vida, impulsionado pelos<br />
nossos sonhos, que às vezes fogem da realidade, para alimentar de<br />
fantasia um ambiente interno que foi esvaziado pelas tristezas, por<br />
sentimentos tolos de justiça que muitas vezes não serão vistos, por<br />
privações da saúde, de afeto, de carinho, vem o simpático fantasma<br />
protetor da horta a dançar lá no final daquela plantação, o que, na<br />
verdade, não é mais que o vento forte da noite trazendo a geada e<br />
sacudindo o boneco de pano de um lado para o outro, enquanto sua<br />
plateia imóvel apenas observava das janelas de grades finas.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
A VENDINHA<br />
Havia uma vendinha na saída da clínica, onde os pacientes<br />
compravam lanches e cigarros para fumar à noite. Tudo<br />
metodicamente controlado!<br />
Cada paciente dispunha de uma conta para poder gastar a cada<br />
dia, um valor módico, somente a quantidade de dinheiro disponível<br />
para o dia, num limite que era depositado antes pelos parentes.<br />
Isso ensinava a regrar o dinheiro. Era uma vendinha simples,<br />
porém tinha uma diversidade de materiais muito grande! Desde<br />
barbeador até sabonete, doces da roça, cigarros, bolos, sanduíches,<br />
sucos e refrigerantes...<br />
Todas as manhãs, os pacientes crônicos eram liberados mais<br />
cedo para se deslocarem até a vendinha e comprar o que precisassem<br />
para o dia, e, no horário das oito e meia, nós éramos liberados para<br />
a mesma ala externa para também comprar alguma coisa antes das<br />
atividades da manhã.<br />
Formava-se uma fila de pacientes os quais logo escolhiam o que<br />
queriam e depois iam para alguma atividade.<br />
Um balcão pequeno, com vitrine de vidro, contendo doces<br />
e biscoitos, algumas prateleiras com salgadinhos, cigarros,<br />
doces caseiros, bolos e sabões. Duas geladeiras, uma cafeteira e,<br />
pendurados no canto da parede, utensílios de higiene pessoal.<br />
A vendinha continuava aberta até o horário próximo ao almoço,<br />
e fechava por algumas horas, voltando a abrir depois das treze e<br />
fechando antes das dezesseis.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 61
Um casal se revezava nos dias de trabalho. Uma mulher loira e<br />
um rapaz moreno.<br />
A vendinha abria todos os dias da semana para atender os<br />
pacientes, e os preços eram módicos, nada aquém nem além do<br />
justo preço para cada mercadoria.<br />
Às vezes, na fila eu ficava ansioso por causa de algum cliente<br />
indeciso que demorava a fazer o pedido, mas também isso era<br />
ensinamento! Ensinava a ser paciente!<br />
Em algumas ocasiões, à noite, depois que a vendinha fechava,<br />
fumando um cigarro diante da janela de grades finas do quarto onde<br />
dormia, eu me pegava olhando para a porta da vendinha e lembrava<br />
os momentos de confusão na fila das manhãs, percebia a calmaria<br />
que deixava no ar até mesmo ecos e risos.<br />
Ficava pensando na diferença desse lugar, tão calmo e correto,<br />
daquele de onde eu vim, agitado e truculento.<br />
E a vendinha tão simples e com uma fundamentação de<br />
existência mais definida que muitas pessoas ou empresas! Ela<br />
cumpria sua missão de servir aos pacientes sem nenhum cunho<br />
pessoal, ao contrário de muitas empresas e até órgãos públicos,<br />
que se subordinam ao chefe, governo ou comando, e são obrigadas<br />
a agir conforme desejos e aspirações pessoais de quem no papel é<br />
um instrumento a serviço das pessoas, mas acaba por menosprezar<br />
a própria essência do cargo que ocupa para atender a interesses<br />
subjetivos.<br />
Bom é ver que um universo pode ser pequeno, mas sendo bem<br />
definidos os seus fundamentos, e na prática tudo que se executa é a<br />
missão de atender, tudo ocorre conforme o que foi planejado lá no<br />
início.<br />
A vendinha é o centro de compras dos pacientes da clínica.<br />
62<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
O LIXADOR DE CHAVES<br />
João não era muito comunicativo até um mês atrás, segundo o<br />
Fausto.<br />
Estava internado há dezoito anos e gostava muito de ficar<br />
lixando chaves que não eram próprias dos cadeados nos quais<br />
tentava encaixá-las. Era o seu passatempo preferido!<br />
Dizia que quando chegava paciente novo evitava puxar<br />
conversa, pois cada um ali tinha um problema diferente lá fora, e que<br />
justamente por não conhecer o sofrimento dos outros, esperava que<br />
os próprios novatos se adaptassem ao lugar para depois procurar<br />
diálogo. Entendia bem do sofrimento alheio!<br />
Dizia que nos anos em que estava internado pôde aprender<br />
muito sobre o mundo fora da clínica, o que o fez acreditar estar<br />
seguro no lugar contra toda uma sociedade autoritária, interesseira<br />
e impositiva, em que a necessidade de ser importante é motivo para<br />
humilhar, desacatar, privar de direitos os mais fracos e humildes e<br />
que tudo gira em torno do interesse pessoal e do dinheiro.<br />
As pessoas não sentem fome, frio ou calor; querem é ser<br />
importantes dentro da sociedade. Um mar de cobras onde cada<br />
uma tenta picar as outras com mais força para tirá-las do caminho<br />
da autoafirmação.<br />
Os seres humanos não estão nem aí para o amor, se casam por<br />
mera conveniência. Ou porque querem melhorar de vida, ou para<br />
ter alguém para lavar as louças, ou porque os pais querem ostentar<br />
um genro ou nora dignos da fidalguia, de porte, loiros, olhos claros<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 63
e, claro, endinheirados. Dizia isso baseado na experiência de ter<br />
conhecido tantas e tantas pessoas diferentes ao longo de muitos<br />
anos internado.<br />
A única vez que falou em família somente se referiu aos<br />
familiares como “aqueles que não me querem”.<br />
Seu fumo de rolo, já picado e guardado metodicamente em<br />
trouxinhas de plástico, até semelhantes às trouxas de maconha<br />
que são vendidas nas grandes cidades, digo, nas grandes, pequenas,<br />
médias, na roça, nas escolas, nos bares, no teatro, no cinema, nas<br />
ruas e vielas, em todo lugar.<br />
Depois de um tempo, apelidamos o João de “bumbum de<br />
veludo”, devido ao fato de ele ficar lixando as chaves. Lustrava<br />
cada uma como se não estivesse ainda com o brilho aveludado que<br />
esperava.<br />
Fizemos piadas, criamos uma musiquinha, enfim, conseguimos<br />
adquirir mais confiança do João para conversar.<br />
Ele era uma pessoa boa, embora guardasse em silêncio uma<br />
mágoa muito grande, que jamais conseguimos que revelasse nos<br />
diálogos, e isso é coisa que está guardada sob sete chaves, dentro<br />
de seu coração.<br />
64<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
O REJEITADO<br />
Nenhum interno da clínica gostava de um paciente, o Lucas<br />
Stephanini, que veio da cidade grande.<br />
Diziam que ele era muito fofoqueiro! Que contava ao enfermeiro<br />
chefe todas as conversas que havia entre os pacientes e que<br />
reclamava de qualquer coisa que o incomodasse.<br />
Diziam que se achava melhor do que os outros e que era<br />
arrogante a ponto de dar respostas grosseiras a funcionários da<br />
clínica, sob o pretexto da conversa ou da pergunta feita ser estúpida.<br />
Sentia-se protegido contra todos pelo fato de seu pai ser uma<br />
pessoa muito influente e chefe de polícia na cidade de onde viera.<br />
Foi internado pelo próprio pai, como medida de segurança, pelo<br />
fato de ter problemas com uso de drogas.<br />
Era comum haver alguma confusão envolvendo o Lucas.<br />
Ameaças do Franklin, um paciente do mesmo quarto, que sempre<br />
discutia com ele no corredor, chegando a apontar o dedo em riste<br />
ou dar empurrões.<br />
Também em outra oportunidade, o Deivisson saiu de licença<br />
para passar o dia na cidade e o Lucas comentou com o enfermeiro<br />
chefe que ele havia comprado uma faca para cortar laranjas e entrou<br />
com ela escondida na clínica. Quando foi dada busca no quarto, a<br />
faca de serra estava entre as coisas do Deivisson, e ele teve de passar<br />
a noite no R3, que é um quarto de pacientes mais problemáticos,<br />
na ala dos pacientes crônicos. Uma espécie de castigo para quem<br />
provocasse algum problema dentro da clínica.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 65
Depois desse dia, o Deivisson o cercou no corredor, só não<br />
vindo a machucá-lo porque nós o seguramos.<br />
Lucas também tinha problemas com a Adalgisa, uma garota<br />
menor de idade que estava internada por ordem judicial por ter<br />
se envolvido com drogas. Ele criticava demais a jovem, a ponto de<br />
provocar bate-boca no corredor, dos quais sempre escapava calado<br />
para o quarto após ter armado a confusão.<br />
O rejeitado sabia da sua condição de pessoa não aceita na<br />
clínica, mas parecia não se incomodar com isso, bloqueando os<br />
ouvidos para toda a carga de rejeição social que o cercava.<br />
Ouvia conversas no corredor, fazia intrigas, era sempre<br />
criticado por suas condutas, mas não procurava se acertar para ter<br />
uma aceitação.<br />
Seu egocentrismo parecia falar mais alto sempre que algum<br />
problema acontecia.<br />
Lucas também denunciou uma tentativa desesperada de fuga de<br />
uma paciente, a Vera. Foi num dia de visitas, quando ela aproveitou<br />
o portão aberto e fugiu. Porém, como o Lucas denunciou-a<br />
rapidamente, até apontando a direção em que ela havia corrido, em<br />
pouco tempo ela estava de volta, trazida por funcionários.<br />
Escapou de ficar de castigo no R3 porque tomava conta de um<br />
paciente bem idoso e com problemas mentais, um fazendeiro que<br />
foi internado pela família, pois não queriam cuidar dele em casa.<br />
66<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
O FAZENDEIRO<br />
Havia um senhor de idade bem avançada internado na clínica.<br />
A família decidiu pela sua internação, pois ele já não batia bem da<br />
cabeça.<br />
Lá na fazenda, de que ainda era o dono, fazia artes igual criança<br />
e, já cansado de tanto que trabalhou para erguer o império das mais<br />
de mil cabeças de gado, dez mil galinhas, uma vasta plantação de<br />
cana-de-açúcar, os alambiques de produção de cachaça e se envolver<br />
nos negócios agrícolas, acabou enlouquecendo.<br />
Aos 89 anos, era milionário e sofredor. Todos os dias, acordava<br />
às quatro e meia da madrugada, embora não tivesse despertador<br />
perto do leito, e os galos que cantavam na fazenda ficassem muito<br />
longe, sendo impossível que o velho pudesse ouvi-los de seu quarto.<br />
Mas sua pontualidade era invejável!<br />
A Vera tinha um carinho todo especial pelo fazendeiro, a quem<br />
tratava como um familiar!<br />
Caminhava pelos corredores da clínica chamando os bois e<br />
costumava arrastar os tapetes que encontrava pelo caminho falando<br />
com eles para não se desgarrarem da boiada. Então depois de juntar<br />
todos os tapetes em um mesmo lugar falava com eles para não se<br />
afastarem para a direção do precipício, e depois voltava a percorrer<br />
os corredores.<br />
Se alguém o reprimisse, então lhe voltava um pouco de lucidez<br />
e se lembrava de que, na verdade, aquilo era um tapete e não um boi.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 67
Costumava fazer as necessidades em algum canto do corredor,<br />
quando não havia ninguém olhando. Se fosse surpreendido, falava<br />
que estava no mato, que não era proibido fazer ali, e, procurando<br />
nas paredes por folhas de bananeira ou qualquer outra coisa para<br />
se limpar, acabava por sujá-las com marcas de fezes, ao que ele agia<br />
com naturalidade.<br />
Quando passava por alguma crise, tentava de todas as maneiras<br />
fugir da clínica a fim de voltar para sua fazenda que com tanto<br />
esforço ergueu. Subia em cadeiras e tentava escalar as paredes como<br />
se fossem árvores.<br />
Seus filhos e netos até costumavam aparecer, quando não<br />
estavam ocupados usufruindo dos tantos bens..<br />
Em seu olhar cansado, o peso de uma vida que se notava na<br />
quantidade de rugas e nos calos que se amontoaram uns sobre os<br />
outros nas mãos e nos pés para criar os filhos e também os primeiros<br />
netos que já eram casados e já lhe haviam dado seis bisnetos.<br />
Dos filhos, apenas um dos nove morava na fazenda. Todos os<br />
outros queriam distância do lugar, refugiando-se no conforto da<br />
cidade grande, longe da sujeira e do cheiro do gado.<br />
E os dias se passavam com o velhinho fazendo todas as manhãs<br />
o seu trabalho nos corredores, juntando seus bois e nunca deixando<br />
nenhum deles espalhado.<br />
E se guardava mágoas de sua família pelo abandono daquele<br />
que nem viveria mais tanto tempo e lhes deixaria tudo, ninguém<br />
sabe dizer. Seu olhar parecia implorar por um leve resquício de<br />
dignidade em acolher na velhice quem tanto serviu.<br />
Ninguém podia saber se possuía lucidez para se sentir<br />
magoado, pois não se sabia diferenciar os momentos de loucura que<br />
são muitos, dos poucos instantes de lucidez quando falava sobre a<br />
vida na fazenda.<br />
68<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
OS BOIS<br />
A natureza foi transformada! Onde antes havia floresta, que de<br />
tão densa era necessário abrir caminho entre os cipós, hoje existe<br />
pasto.<br />
Um imenso tapete verde que ia até a encosta da montanha,<br />
onde, antes, cantavam pássaros, agora somente galos antes do<br />
amanhecer, chamando os senhores para tocar o gado para o<br />
campo.<br />
Os bois ficam pastando no campo de futebol existente em<br />
frente da clínica. São ao todo dezessete animais, todos de grande<br />
porte. Já adultos e prontos para o abate. São tão submissos!<br />
Aceitam o fato de a vida se resumir apenas em comer o capim e<br />
seguir de um canto a outro, obedecendo a horários que nada dizem.<br />
Seus donos aguardam que cresçam mais um pouco ainda para o<br />
dia de servirem de alimento e serem vendidos aos frigoríficos lá<br />
da cidade.<br />
Cada um dos bois sabe a sua função de cada dia, de apenas comer<br />
grama na parte da manhã e depois de determinado horário, assim<br />
que o boi mais graduado na hierarquia sair do pasto, os demais em<br />
fila e pisadas retas devem seguir a mesma direção.<br />
Obedecer a horários para o pastoreio na fazenda é a única<br />
função a ser executada a cada dia. Não há outra filosofia de vida.<br />
Esses animais de grande porte, em eras remotas, teriam uma<br />
sociedade selvagem semelhante aos mamutes ou aos búfalos e<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 69
seriam caçados por homens nômades que morariam em cavernas.<br />
Mas teriam uma vida livre e sem as regras impostas pelo seu senhor.<br />
Hoje são simples cumpridores de ordem, sem vontade própria e<br />
sem condições de modificar o sistema regrado e sem fundamento<br />
ao qual pertencem.<br />
O que difere esses animais de alguns setores da sociedade é<br />
que, durante o trajeto que fazem pela trilha da estrada de terra ao<br />
deixar o campo todas as manhãs, um boi não pisa na merda deixada<br />
pelos bois que conduzem a boiada, antes disso, sabem desviar do<br />
excremento deixado pelos que vão à frente.<br />
Nosso sistema é diferente! Muitas vezes os erros dos que<br />
conduzem são seguidos cegamente por quem não detém tanto<br />
poder de decisão, e apenas seguem por medida única e exclusiva<br />
do interesse em agradar quem pode prejudicar os mais baixos,<br />
mesmo que para isso seja necessário pisar na merda que é deixada<br />
no caminho.<br />
Por isso é pregado que não se deve desagradar quem está no<br />
topo, pois poderá haver retaliação, e a vida, que já é difícil, passa a<br />
ser mais difícil ainda, ao ponto de já não se imaginar escolha a não<br />
ser dar cabo da própria existência!<br />
Os bois, entretanto, não sabem se matar, mas todos sabem que<br />
irão morrer. E dias antes do abate, um dos dezessete bois saiu pelo<br />
campo em linha reta a caminho da rodovia.<br />
Passos lentos, devido ao seu grande peso, porém decididos.<br />
Não se desviou pelo caminho, nem para a direita nem para a<br />
esquerda. Saiu pelo portão de entrada, onde os outros bois ficavam<br />
pastando como de costume.<br />
Em pouco tempo somente o que se podia enxergar nesse dia<br />
tão nublado era um ponto negro chegando até a rodovia, seguindo<br />
talvez para a sua última jornada e levando consigo um viajante<br />
desatento.<br />
Seria uma vingança daquele boi contra o seu dono ou contra a<br />
70 má sorte da própria existência? rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Sua carne ofertada de graça aos urubus, aos abutres que lá<br />
do céu acompanhavam a caminhada, voando em círculos, seria<br />
oferenda pacífica ou, na podridão da vida sem sentido, uma forma<br />
de afrontar o seu senhor?<br />
E depois de um tempo coberto pela neblina não vi mais o boi.<br />
Foi se formando uma grande fila de carros e caminhões em meio a<br />
uma neblina muito espessa.<br />
Nos dias que antecederam o abate, só contei os dezesseis bois<br />
que ficaram no pasto.<br />
Aquele que se extraviou sumiu para sempre e, embora o seu<br />
destino tenha sido o mesmo dos demais, houve uma revolta moral, e<br />
o boi que foi embora escolheu morrer por uma causa, a sua vontade<br />
própria, e não apenas pela vontade do seu senhor, a dolorosos<br />
golpes de machado na cabeça.<br />
Ele foi embora para a rodovia e, quando o caminhão bateu, o<br />
motorista quase não se feriu. É o que disseram os funcionários.<br />
Outro chegou atrasado por causa do acidente e falou que o<br />
caminhão ficou com a frente destruída, e não havia seguro. Que<br />
houve um congestionamento muito grande por causa do acidente<br />
e que muitos motoristas esperaram horas até que o caminhão fosse<br />
rebocado do local.<br />
Na verdade, as estradas são construções arquitetadas pela<br />
própria morte para desafiar os viajantes! Suas curvas são maliciosas<br />
e guardam o choro de muitas almas em suas histórias precocemente<br />
finalizadas.<br />
Os últimos segundos da vida que vai se apagar são negros!<br />
É possível enxergar ao longe quem usa a capa preta, vindo<br />
silenciosamente recolher o seu despojo.<br />
O que difere essa entidade sombria do senhor no dia do abate<br />
desses inocentes animais?<br />
Após a perda do boi, o vaqueiro passou a vigiar os demais e<br />
colocou dois cães para evitar que os outros escapassem para a<br />
rodovia como fez o primeiro.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
71
Chegou o dia do abate.<br />
Ao tomar sol pela manhã, o campo estava vazio e os bois não<br />
vieram como de costume. Nenhum deles.<br />
E depois disso não vi mais nenhum boi no campo de futebol ou<br />
na estrada de terra que vai para a fazenda.<br />
72<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
A VELHA<br />
Uma das pacientes era uma senhora muito idosa.<br />
Ela já não conversava, porém seu rosto demonstrava muita<br />
raiva e tristeza.<br />
Era difícil para ela se alimentar, e os funcionários precisavam<br />
convencê-la da necessidade do alimento! Por vezes, era preciso que<br />
alguém a carregasse até o refeitório, pois se negava a sair do quarto.<br />
Estava internada havia alguns meses, segundo o João, e não aceitava<br />
contato com ninguém.<br />
A psicóloga Vanusa tinha dificuldades para tratá-la, mas<br />
sempre se empenhava bastante para que a idosa tivesse um pouco<br />
de recuperação, sem nunca ter desistido de devolver a ela um pouco<br />
da lucidez que uma vida já cansada havia levado. A velha estava<br />
com noventa e sete anos.<br />
Sua mentalidade não era a de uma pessoa normal, já que estava<br />
muito debilitada. Nas vezes em que estava mais nervosa, não<br />
deixava ninguém chegar perto. O Franklin tentava puxar conversa,<br />
e ela dava socos no ar na direção dele.<br />
Eu via em suas ações o sentimento de revolta, pois era uma<br />
pessoa já cansada de viver e não guardava senão vagas lembranças<br />
desconexas da vida. Já não falava e somente podia se expressar por<br />
meio de gestos e gemidos que sempre balbuciava quando alguém<br />
a carregava para o refeitório para se alimentar de sopa, já que nem<br />
dentes possuía mais.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 73
O CORREDOR<br />
74<br />
Era noite! A bruma cobriu todo o horizonte e lá do lado de<br />
fora da clínica uma fina camada branca escondia o verde da grama,<br />
tornando a vegetação escrava do frio intenso da estação.<br />
Eu havia acabado de ler um livro da autora Lucília Junqueira<br />
de Almeida Prado, chamado Antes Que o Sol Apareça, da biblioteca<br />
da clínica.<br />
Nele é retratada a difícil vida de uma família rural que vive<br />
das estações do ano, trabalhando como boias-frias e utilizando<br />
condições precárias de transporte nos antigos caminhões pau-dearara,<br />
que levavam os trabalhadores sem as mínimas condições<br />
de segurança, dependurados na caçamba, os quais provocavam<br />
muitos acidentes e geravam riscos à vida de todos.<br />
O livro é muito interessante, e a prisão à sua leitura me ajudou<br />
a formular inúmeras reflexões sobre minha morte espiritual.<br />
Lembro que, numa das passagens do livro, a personagem<br />
Rosa, filha do casal principal do livro, vai morar em São Paulo e<br />
há um acidente grave: o prédio onde ela trabalhava pegou fogo.<br />
Depois desse acidente, e com a morte da garota, se desenvolve<br />
um rito simples de amor à vida, na sentimentalidade do povo<br />
humilde em sua essência mais rica! A surpresa ficou por conta<br />
do final, quando o amor demonstra ainda mais querência em<br />
perdoar quem comete falhas tão graves de negação ao passado<br />
apenas pelo fato de a pessoa renascer da cinza e, embora por<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
uma tela de televisão, o coração humilde saber que ainda há<br />
esperança!<br />
Havia um corredor, de exatos quarenta metros, que dava<br />
acesso aos quartos. Foi ali, naquele local, que me concentrei e<br />
que ocorreu minha primeira reflexão sobre a vida. Lá no final do<br />
corredor, onde havia um sofá de dois lugares. Após ler o livro,<br />
fui pra lá meditar sobre a vida ruim de um pensador, enquanto a<br />
cerração corria pelo lugar com ferocidade e ousadia!<br />
Nos primeiros dias, desacostumado ao fato de estar internado<br />
e me sentindo desamparado frente a problemas tão cruéis quanto<br />
o assédio moral e o abuso de poder, ficava fumando cigarros, no<br />
final das tardes, para relaxar.<br />
E observava os pacientes da clínica, cada um com o seu modo<br />
de viver e conviver com o problema que os trouxe a esse lugar de<br />
tratamento. Ao mesmo tempo, sentia profunda indignação com<br />
a impotência dos mais fracos perante o poder maquiavélico dos<br />
sistemas social e profissional humanos.<br />
Não há socialismo nas ações dos homens de negócios. Não há<br />
apoio mútuo nem compaixão com os problemas alheios. O que há<br />
é somente o desejo de ser onipotente a qualquer custo.<br />
E ali no corredor, filosofando sobre a vida, aceitando cada vez<br />
mais o fato de estar doente, tendo meus ideais inoculados pelo<br />
peso maléfico dos verdadeiros doentes morais, olhava o corredor<br />
em sua extensão e me lembrava do dia do acidente, das loucuras<br />
que pairaram sobre minha mente naqueles momentos de terror,<br />
lembrava os gritos das pessoas, a freada brusca do metrô e o<br />
momento em que fui sedado no hospital.<br />
O corredor parecia uma passagem ou uma travessia! Cada<br />
vez que eu cruzava a sua extensão era como se houvesse algo<br />
de muito importante a fazer do outro lado, mas nunca havia.<br />
Eu era um morto em cinzas, porém com as funções vitais ainda<br />
íntegras.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
75
MÃOS TRÊMULAS<br />
76<br />
A abstinência das drogas provoca sensações diferentes em cada<br />
pessoa.<br />
Percebi que vinha lá do final do corredor um senhor de idade,<br />
recém-internado. Ele tinha vendido todos os móveis da casa para<br />
comprar entorpecentes.<br />
Após o período inicial de desinfecção, suas mãos ficavam<br />
tremendo, sem coordenação.<br />
Ao me ver fumando, veio depressa. Sentou-se do outro lado da<br />
poltrona e, como não tinha cigarros, de maneira bem tímida, pediume<br />
um.<br />
Contou-me sobre a vida os motivos que o levaram a aceitar a<br />
internação:<br />
– Em minha cidade eu era muito conhecido! Tinha o meu<br />
comércio na praça, fui casado por mais de dez anos. Era feliz!<br />
– E como isso tudo começou, senhor Elias? Perguntei fitando<br />
seu semblante resignado, de olhos rígidos e atentos!<br />
– Foi logo após ela ter ido embora. Eu a amava muito!<br />
– Como foi isso?<br />
Ela descobriu que eu usava drogas, mas nunca fui de brigar<br />
com ela. Eu fumava meu cigarrinho escondido, na casa de um<br />
amigo, e depois ia embora, tomava meu banho, levava frutas e<br />
verduras.<br />
– Mas isso não é motivo...<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
– Espera, tem mais. Ela estava querendo se separar já havia<br />
um tempo. Dizia que estava infeliz longe dos pais e queria ficar<br />
mais tempo com eles. Começou a fazer viagens constantes que<br />
demoravam quase o mês todo.<br />
– Sentia que ela já não o amava? Perguntei, demonstrando<br />
curiosidade em ouvir o que ele tinha a dizer. Reparei suas mãos<br />
cada vez mais trêmulas segurando o cigarro, deixando até mesmo<br />
algumas cinzas caírem sobre a roupa.<br />
– Foi tudo muito de repente! Ela foi embora. Separou-se de mim<br />
e levou metade de tudo. Vendi a casa e a loja, depositei o dinheiro na<br />
conta do banco e, depois de um tempo, veio um oficial de justiça me<br />
procurar para assinar os papéis.<br />
– E depois disso, não se falaram mais?<br />
– Ela sumiu no mundo. Tentei ligar algumas vezes, mas nunca<br />
atendia minhas ligações.<br />
– Compreendo...<br />
– Fui morar numa estalagem em outra cidade e comecei a beber<br />
muito, cada vez mais afundando nas drogas até que comecei a<br />
roubar por não ter mais dinheiro. Havia perdido tudo.<br />
– Então está internado por ordem judicial.<br />
– Vou cumprir pena aqui. Fui julgado, e foi determinada a<br />
internação para me tratar.<br />
– Mas o que fez?<br />
– Depois de um tempo a encontrei. Estava casada com outro<br />
homem. Eu era um mendigo que ficava pedindo esmolas no centro e<br />
a vi passando com aquele rapaz bem mais novo do que eu, sem ruga<br />
no rosto e porte de atleta.<br />
De repente, as mãos de Elias começaram a tremer mais ainda, e<br />
ele começou a ficar mais agitado.<br />
– Entendo. Essas coisas nos tiram do sério mesmo. Escute, tome<br />
mais um cigarro e me conte o que houve, vai ajudar a descarregar<br />
esse peso.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 77
– Eu tentei matar o homem, mas, quando dei a facada, pegou de<br />
raspão no braço e só veio a sangrar. Várias pessoas estavam na rua<br />
e me seguraram. Um deles até me conhecia de tanto ficar naquele<br />
lugar, pedindo dinheiro e comida. Não deixou que me batessem.<br />
– E depois?<br />
– Fui preso, e algumas pessoas, que me conheciam dos tempos<br />
da venda que eu possuía na praça da antiga cidade, procuraram me<br />
ajudar. Eles nem sabiam de tudo o que estava acontecendo comigo.<br />
– E vai ficar aqui por muito tempo?<br />
– Eu quero ficar. Se eu sair daqui, não terei nem onde passar as<br />
noites. Não me sobrou nada na vida.<br />
Fiquei imaginando o que poderia estar passando pela cabeça<br />
dele, mas tentar entender um problema tão sem solução acaba<br />
fazendo com que pensemos nos nossos próprios e ficamos também<br />
tristes e deprimidos.<br />
Então, ao se levantar e caminhar pelo corredor, novamente as<br />
mãos tremiam, denunciando a falta do entorpecente para o corpo e<br />
o vazio da própria existência, difícil de preencher novamente com<br />
qualquer tipo de plano ou sonho.<br />
Havia uma paciente na ala feminina cujas mãos também<br />
ficavam tremendo bastante, em determinados dias, e esse estado se<br />
espalhava pelo corpo, provocando também movimentos na cabeça.<br />
Todos os dias, cumprimentava a todos, lá do balcão da área feminina<br />
da cozinha. Às vezes, pedia que jogássemos um cigarro e, em dias<br />
em que estava mais aflita pela carência de entorpecente, ficava<br />
agressiva e nem os remédios controlados, que todos os pacientes<br />
tinham de tomar, ajudavam-na a se acalmar.<br />
78<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
A RODINHA DE BRASAS<br />
Por motivos de segurança, devido ao fato de haver internos<br />
com sérios distúrbios mentais, era proibido que qualquer paciente<br />
tivesse isqueiros ou fósforos em seu poder, mesmo que bem<br />
guardados. Era a regra, sem exceção.<br />
Qualquer funcionário que visse algum paciente com isqueiros<br />
tinha ordem para tomar e guardar no posto de enfermagem.<br />
Então, quando algum paciente conseguia acender um cigarro,<br />
os demais que fumavam sempre pediam a brasa emprestada para<br />
acender seus cigarros. A brasa era passada de cigarro em cigarro<br />
e durante o dia era raro que não houvesse ao menos uma pessoa<br />
fumando.<br />
O paciente que passava pelo pátio procurava para ver se havia ali<br />
alguém fumando, o que era comum, para pedir a brasa emprestada e<br />
acender seu cigarro.<br />
Alguns pacientes conseguiam esconder isqueiros e, à noite,<br />
acendiam cigarros quando a rodinha de brasas já estava desfeita.<br />
Então sempre aparecia um, como que guiado pela fumaça, pedindo<br />
a brasa emprestada.<br />
Era algo que fazia até mesmo o paciente que já estava deitado<br />
sair do quarto, ao perceber que havia alguém fumando, pois a grande<br />
maioria ali não tinha isqueiros e quem os tinha escondia bem para<br />
evitar que fossem recolhidos pelos funcionários.<br />
Para acender o cigarro, ia até o esconderijo, acendia rapidamente<br />
e voltava a guardar o objeto valioso tão cobiçado!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 79
OS REMÉDIOS DO DESEJO<br />
Desde o dia em que cheguei aqui na clínica, algumas sensações<br />
como o desejo foram praticamente abolidas do meu corpo.<br />
A quantidade de remédios necessários para que os pacientes<br />
fiquem relaxados e calmos durante o tratamento também serve<br />
para evitar determinadas condutas.<br />
São poderosos inibidores de emoções e desejos!<br />
Não é interessante que haja relacionamento afetivo entre<br />
os pacientes. Na verdade, são proibidos os beijos e certos<br />
assanhamentos entre pacientes. Tudo é muito controlado! Há no<br />
posto de enfermagem as fichas de cada paciente onde são anotados<br />
os medicamentos receitados pelo médico responsável.<br />
Tudo o que o paciente faz de errado é anotado em sua ficha, e se<br />
esquecer do remédio, os enfermeiros vão atrás dele para lembra-lo.<br />
Antes de cada horário de tomada de medicamento, a equipe<br />
de enfermagem faz a separação, com o nome de cada paciente<br />
anexado ao medicamento, sendo impossível que, por algum<br />
descuido ou falta de vontade, o paciente deixe de tomar o que lhe<br />
foi prescrito.<br />
Havia dias em que, na parte da manhã, eu ficava com certa<br />
sonolência devido ao uso dos medicamentos, e o Fausto havia<br />
falado que, nesses dias, é bom ingerir muita água para que o efeito<br />
seja mais breve e logo o corpo possa restabelecer o funcionamento<br />
normal.<br />
80 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Percebi também que as unhas não estavam crescendo como<br />
antes. Nessa época, cheguei a ficar duas semanas sem precisar<br />
cortar as unhas das mãos e dos pés.<br />
Os medicamentos neutralizavam a maioria das emoções, como<br />
amor, ódio, tensão, saudade, desgosto e vingança, deixando o corpo<br />
num estado de tranquilidade plena e numa carência de ânimo para<br />
qualquer ato nocivo à paz e à ordem.<br />
Eu parecia um vegetal! Sem ações de anarquia ou pensamentos<br />
revolucionários. Imune às emoções que sempre foram uma das<br />
minhas grandes qualidades.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 81
A IMAGEM DA ESTRADA<br />
82<br />
No primeiro dia de visitas coletivas, o pensador ainda não podia<br />
receber ninguém, pois cada paciente internado ficava quinze dias<br />
sem receber visitas ou ter contato com os parentes e conhecidos.<br />
Era uma norma da clínica para promover a reabilitação do paciente<br />
e a equipe médica traçar um plano de ação para minimizar os<br />
problemas psicológicos de cada um. Os pacientes chamavam de<br />
quarentena do inferno.<br />
Era sábado de manhã e não havia nada para fazer. Após tomar<br />
café, ele foi para a área externa ler um livro, dessa vez a obra que<br />
escolheu na biblioteca foi O Cortiço, de Aluísio de Azevedo.<br />
Um livro interessante, que dá vida ao povo humilde dos cortiços,<br />
em que o personagem João Romão cria, com certas picaretagens,<br />
uma estalagem, talvez uma pequena favela ou algo parecido, e, ao<br />
longo do livro, a vida do povo humilde ganha status de interesse, ao<br />
passo que é conhecido o modo de ser e viver da classe mais baixa da<br />
sociedade, demonstrando que há muita cultura nos ambientes mais<br />
humildes e menos favorecidos.<br />
As intrigas, os ciúmes, a velha bruxa que sonhava incendiar o<br />
cortiço e até mesmo a briga entre o português casado e o mulato<br />
capoeira pela posse do corpo e da essência da baiana cheirosa e<br />
sedutora tornam o livro atraente.<br />
Nessa guerra de ciúmes, após uma briga iniciada numa roda de<br />
samba no cortiço, o capoeira, magrelo, astuto, melindroso e com<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
uma vasta história criminal, apunhala o português, levando-o a ficar<br />
internado e passar por um doloroso tratamento pós-operatório.<br />
Certo é que, ao se recuperar, o luso se vinga do mulato<br />
cercando-o com outros comparsas na encosta da praia.<br />
É difícil imaginar tal situação hoje em dia, na qual uma pessoa<br />
esfaqueia a outra e não vai presa, se localizada pela polícia. O<br />
livro conta que o capoeirista ganhou até fama no cortiço vizinho,<br />
sendo apoiado pela malandragem, frequentando normalmente um<br />
botequim que havia no bairro, como se nada houvesse acontecido.<br />
Numa situação dessas, hoje em dia, o indivíduo seria preso, e,<br />
na sua prisão, já imaginaria de mil formas o dia de sua morte, pois<br />
é difícil imaginar, num mundo que vive de vingança e acerto de<br />
contas, que um crime contra a vida ficasse sem punição. Isso mexe<br />
com a honra das pessoas. Brigar por motivos banais e tentar tirar a<br />
vida dos outros é ato de covardia que, na moderna visão vingativa<br />
do povo, não fica sem retaliação à altura.<br />
No livro, o capoeirista é morto com várias pauladas, o que<br />
também é incomum hoje em dia. A modernidade usa armas e<br />
instrumentos de tortura, capazes de fazer a pessoa implorar pela<br />
morte rápida e sem dor, mas ao contrário sentiria desfalecer cada<br />
partícula de vida, e nem mesmo gritar seria possível.<br />
Após o homicídio, o corpo do capoeirista é jogado num<br />
desfiladeiro, na encosta da praia, e foi encontrado dias depois.<br />
E o pensador reflete sobre o livro e sobre a vida, contrastando<br />
com um sol arredio no céu, ora desafiando o cobertor de nuvens, ora<br />
reinando absoluto num céu limpo e claro!<br />
O que falta ao homem é conhecer melhor a sociedade em que<br />
vive. Talvez se os que governam ou comandam tivessem participado<br />
da vida no seio pobre da sociedade, teriam maiores condições de<br />
governar justamente essa massa social que, em todos os sistemas<br />
sociais e profissionais, é a maioria.<br />
O imperialismo surge justamente devido ao afastamento de<br />
quem possui poder da classe que é governada ou comandada.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 83
Após terminar a leitura, e já com o sol da tarde clareando as<br />
matas e a rodovia, o pensador foi para um quiosque localizado na<br />
entrada da clínica e ficou admirando a estrada.<br />
Uma grande quantidade de carros seguia seu destino! Alguns<br />
apressados, outros na calmaria da viagem para relaxar e esquecer os<br />
problemas. Caminhões carregados de mercadorias iam em direção<br />
à cidade grande para abastecer o comércio. Ônibus passavam, com<br />
várias pessoas olhando pela janela, viajando a trabalho, a passeio,<br />
para procurar emprego e se consultar nos hospitais da cidade.<br />
A imagem da estrada provocou muita tristeza! O pensador se<br />
lembrava dos desgostos provocados por pessoas de espírito tão<br />
vazio. O silêncio dos carros ao passar pela estrada, às vezes quebrado<br />
por buzinas, despertava de súbito o desejo de chorar. Chorar pelas<br />
lembranças da perseguição moral que nada mais significa que um<br />
ciúme, exteriorizado em ações, de gente que nasceu com alguns<br />
dons, porém com o intelecto maligno. E essa gente não aceita que<br />
outra pessoa também os possua, fazendo o impossível para lhe<br />
apagar o brilho e a vontade de viver.<br />
Foi lá naquela estrada que passou a ambulância que o trouxe<br />
a este lugar, e, embora estivesse desacordado, parecia se lembrar<br />
dos momentos, como se sua alma, para protegê-lo, saísse do corpo<br />
e ficasse sentada na ambulância, como uma sentinela fiel, olhando<br />
pela janela para reconhecer o caminho por onde deveria voltar para<br />
sua casa e se reerguer dos momentos de infelicidade.<br />
As estradas provocam sensação de liberdade e paz nos homens!<br />
Embora seja arriscado trafegar por elas pelo grande número de<br />
acidentes e devido ao descaso do poder público em aumentar a<br />
quantidade de placas, investir em duplicações, em sinalização e<br />
acostamentos, em segurança, enfim.<br />
A estrada sempre leva a um destino, mesmo que este seja a<br />
morte em alguma de suas curvas.<br />
Paisagens belíssimas de montanhas e rios se descortinam<br />
às margens das estradas! Tudo isso provoca um esvaziamento<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
84
considerável da carga de stress que a vida em sociedade provoca em<br />
cada indivíduo.<br />
A sociedade é egoísta por natureza! Julga, sem fundamento,<br />
os indivíduos inseridos no meio social pelo simples fato de serem<br />
diferentes em algum aspecto. Imaginem como seria ruim se todos<br />
fossem iguais em todos os sentidos, desde o modo de se vestir,<br />
ao modo de pensar e viver, unicamente seguindo a filosofia de<br />
pensamento dos mais antigos no seio social!<br />
Não haveria a própria sociedade, com a supremacia da<br />
democracia e sim um regime simplificado à carência de vontade<br />
própria em cada indivíduo.<br />
Todos usariam a mesma roupa, o mesmo corte de cabelo,<br />
o mesmo jargão decorado, gostaria das mesmas coisas, e dessa<br />
monotonia social resultaria a própria extinção da sociedade e<br />
a transformação da vida numa mecanização da individualidade<br />
humana.<br />
Sim, seríamos todos robôs! Sem ações próprias, sem amor<br />
próprio, sem individualidade e sem interesse.<br />
Logo a tarde foi cedendo lugar ao frio da noite, e o pensador<br />
foi até a lavanderia pegar uma calça de moletom, uma blusa de cor<br />
verde, um par de meias, uma cueca e um gorro. Ao voltar, em direção<br />
à área interna da clínica, deu a última olhada em direção à estrada,<br />
tendo o sol já se escondido atrás da serra e a luz no lado oposto já<br />
vinha mostrando uma cor vermelha, escondida parcialmente atrás<br />
de uma nuvem.<br />
A estrada já não apresentava o mesmo movimento intenso de<br />
horas atrás. Quem tinha que ir já se foi antes que a noite caísse, e os<br />
que voltavam já estão no aconchego de casa há muito tempo.<br />
Só ficaram as marcas no asfalto, das frenagens de pneus, dos<br />
animais que ali morreram, das pedras arrancadas do chão e a poeira<br />
que deixaram, já quase extinta, somente ganhando o ar novamente<br />
quando passa um carro, no escuro da noite, clareando as curvas da<br />
estrada e o mato verde na extensão da sua encosta.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 85
O FRIO E AS NEBLINAS<br />
86<br />
– Que frio é esse Fausto? Não sei como se acostumou com o<br />
clima daqui.<br />
– A gente se acostuma. Lá onde eu moro, no município de São<br />
João do Reino também é bastante frio nessa época!<br />
– Esse ano está mais quente que os anos anteriores! Tinham<br />
que ter visto o frio que fez quatro anos atrás, aquilo sim que foi frio<br />
mesmo! Disse o João com propriedade.<br />
– Lá onde eu moro não faz tanto frio assim. A coisa mais difícil<br />
de acontecer por lá são neblinas.<br />
– Hoje à noite não vai haver neblina porque vai chover. A<br />
neblina vai aparecer só de manhã, quando a chuva parar.<br />
– Como sabe, João? Também anda prevendo o tempo?<br />
Estou há muitos anos nesse lugar e aprendi, com o passar dos<br />
anos, a entender a natureza das coisas. O tempo sempre avisa o que<br />
vai acontecer. Como hoje não está tão frio como deveria, a chuva não<br />
demora a cair. Se não fosse chover, já teríamos neblina. Aconselho<br />
que fechem as janelas antes de dormirem.<br />
– Que interessante! São coisas que não nos acostumamos a<br />
reparar, não.<br />
– Quando se fica muito tempo preso a um lugar, como eu<br />
estou, aprende-se a observar coisas que passam despercebidas no<br />
dia-a-dia. Se aplicássemos esse aprendizado em nosso cotidiano,<br />
evitaríamos muitos transtornos! Saberíamos mais facilmente<br />
identificar as pessoas ruins e nos afastar delas, poderíamos prever<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
com boa antecedência o resultado dos nossos planos de vida. Coisas<br />
ruins, como a perseguição e o assédio moral que sofremos, não<br />
teriam acontecido se se pensasse melhor antes de trabalhar num<br />
bom emprego que paga muito bem, mas que rouba sua felicidade e<br />
a joga fora como lixo, num sistema que oprime a todo instante, não<br />
dando credibilidade alguma a quem não é mais que um mero objeto<br />
de uso numa doutrina arcaica que não procura progredir.<br />
– Não é tão simples assim, João. Acredito ser mais fácil prever o<br />
frio que as más intenções das pessoas.<br />
– Mas tudo serve de aprendizado. Você escolheu um bom<br />
emprego. Mas veja que há pedreiros felizes e empresários infelizes.<br />
Em determinado lugar, há um padeiro muito feliz e um cliente<br />
da padaria que vai todos os dias de terno para o serviço, com a<br />
expressão do desgosto pela vida.<br />
Isso está em toda parte! Parece que quem mais se diverte ou é<br />
feliz é justamente quem menos pode e menos tem. Isso prova que a<br />
felicidade não está em possuir um cargo elevado numa repartição,<br />
empresa ou instituição, e sim em fazer um bom trabalho, sendo,<br />
antes de tudo, um bom amigo, um bom profissional, um bom pai e<br />
um bom esposo!<br />
As horas passaram e, no meio da madrugada, acordei com<br />
um barulho na janela. Os pingos de chuva entravam pela fresta e<br />
chegavam ao chão do quarto. Então me levantei e vi que os outros<br />
pacientes do quarto dormiam um sono profundo. Um vento gelado<br />
com cheiro de terra molhada percorria o quarto. Fechei a janela<br />
por completo, voltando a dormir em seguida, enrolado em três<br />
cobertores.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 87
OS EMBATES<br />
Todas as pessoas passam por problemas na vida. Na verdade,<br />
poucas encontram a solução plena de seus problemas.<br />
Unsaprendemmais facilmente aconvivercom tantas decepções,<br />
que na maioria dos casos se parecem: a perseguição moral no local<br />
de trabalho, a falta de dinheiro, a depressão, as drogas, o excesso<br />
de bebida e até mesmo a perda repentina da lucidez e o desejo de<br />
acabar com a vida.<br />
Mas as pessoas são dotadas de personalidade, e na vida<br />
em sociedade, seja ela qual for, há sempre os conflitos entre as<br />
personalidades. É por isso que, muitas vezes, uma pessoa que<br />
possui um status elevado no ambiente social se sente ameaçada<br />
quando, do nada, surge um obstáculo que é justamente uma pessoa<br />
que se destaca no ambiente. E o indivíduo dotado da condição de<br />
soberania, na maioria das vezes, procura eliminar seu concorrente<br />
a qualquer custo, pois vê sua importância se reduzir devido a um<br />
dom encontrado nele, e que não possui.<br />
Nesse contexto, por vezes os pensadores ponderam sobre onde<br />
se encaixa o patamar revolucionário, voltado ao socialismo.<br />
Na sociedade humana capitalista, é importante demais ser<br />
alguém que ocupa uma posição social de destaque! Para o ser<br />
humano, estar no topo é mais importante do que comer, beber ou<br />
ter saúde física e mental.<br />
Em qualquer lugar é assim. No trabalho, na família, numa festa,<br />
confraternização, no barzinho e até mesmo na intimidade.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
88
Na clínica não é diferente. Há alguns pacientes que querem<br />
ocupar um lugar de destaque entre os internos. É comum no<br />
corredor se ouvir algum embate. Ou porque alguém fica fumando<br />
perto dos quartos, ou por causa de alguma fofoca com o nome da<br />
outra pessoa, ou o barulho do som, a mudança de canal da televisão,<br />
um esbarrão na fila do almoço ou do lanche e até mesmo pela altura<br />
das conversas à noite.<br />
Há aqueles que querem ser os donos da situação e os moralistas,<br />
que, por qualquer motivo, querem gritar e se fazer notar, e aqueles<br />
que são eternos provocadores.<br />
O interessante é que, embora as pessoas estejam em um<br />
determinado momento da vida inseguras sobre a racionalidade<br />
dos pensamentos e ações, conseguem conviver no ambiente social<br />
mesmo tendo personalidades tão distintas e problemas de vício ou<br />
algum transtorno mental, em alguns até permanente.<br />
Isso nos leva a crer que o tamanho das sociedades e as<br />
características dos indivíduos que as compõem é que darão origem<br />
à natureza e à amplitude dos embates que formam o seu cotidiano.<br />
Eu não entrava em tais conflitos. Na verdade, ainda estava me<br />
sentindo ideologicamente morto. Ainda não havia encontrado uma<br />
razão para vencer toda a situação em que estava.<br />
Um morto que respira e come, dorme e acorda, vê o sol da<br />
manhã e o luar reinarem no céu, que sente frio e sede, mas não tem<br />
uma razão para ressuscitar e voltar a ser um pensador, um ideólogo,<br />
capaz de confrontar a ilegalidade onde quer que ela esteja, não<br />
importando o peso do fardo e as consequências da coragem e do<br />
amor pela justiça e pela honra.<br />
Esse ser morto dentro de mim, queimado no âmago do coração<br />
e derrotado pelas desilusões da vida compara-se a um montinho de<br />
cinzas após a brasa queimar tudo que encontra pelo caminho.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 89
DESENHOS NA PAREDE<br />
90<br />
– Bom dia! – Disse a terapeuta ocupacional Claudete.<br />
– Olá, tudo bem?<br />
– Fiquei sabendo que você desenha muito bem! Gostaria de<br />
convidá-lo para fazer os novos desenhos na parede do espaço de<br />
terapia ocupacional. Ontem, vi um desenho seu lá, numa folha<br />
de papel, e amei! Mas, se achar melhor, pode fazer alguma outra<br />
atividade lá na terapia, o que acha?<br />
– Não há tintas suficientes para fazer os desenhos. Não é tanto<br />
pelo trabalho, é o material mesmo. Não estou muito animado a fazer<br />
nada. Eu fiz aquele desenho porque a Adalgisa me pediu para que<br />
pudesse fazer uma estampa.<br />
– Vamos fazer o seguinte: faça um desenho só, e eu convenço<br />
a dona Hélida, proprietária da clínica, a comprar mais material<br />
amanhã mesmo.<br />
– Tudo bem! Posso fazer qualquer coisa que quiser?<br />
– Sim. O artista aqui é você. E não percebe como essas paredes<br />
estão feias, sem vida?!<br />
– Está bem, então. Vamos aproveitar a manhã, não é verdade?<br />
– Isso mesmo, garoto!<br />
Na verdade, as artes já nascem com o artista! Estão no<br />
gene, no sangue, no modo de andar, de olhar, de viver! Não há<br />
como aprender a ser artista, o máximo que se pode obter com o<br />
aprendizado é fazer arte.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Expressão artística fundamentada na essência da carne e do<br />
espírito somente pode entender quem foi gerado no crisol divino<br />
da criação e mergulhado no licor sagrado do dom artístico!<br />
É o dom da arte! Algo que para o artista vale mais que cem<br />
moedas de ouro! A sua tradução intelectual nas variadas formas de<br />
expressão, tanto em palavras, quanto gestos e movimentos, figuras,<br />
sons e fala. A arte surge do artista tal qual a planta no agreste<br />
ressecado, carente de chuva: não se entende como é possível, mas se<br />
vislumbra que é!<br />
Corre água no interior das palmas mesmo que elas sejam o<br />
cenário do sertão seco e carente das chuvas e rios.<br />
Para o artista de verdade, as palavras não são apenas o talho e<br />
o filete, ornadas conforme a caligrafia escolhida, ou a Gótica, ou a<br />
Ronde Francesa, a Manuscrita Italiana ou Manuscrita Comercial<br />
Inglesa.<br />
Para o artista, a música não é apenas a execução lógica de<br />
campos harmônicos e tons que somente se explicam num contexto<br />
lógico. É inovar conforme a sua ousadia e se aventurar, até mesmo<br />
numa troca de tom no meio da canção.<br />
O artista de verdade se expressa com o corpo ao dançar, não<br />
apenas para mostrar o que o contexto musical representa, ele<br />
transcreve em ações aquilo que o espírito transborda.<br />
Morto espiritualmente, eu já havia me esquecido disso. Meu<br />
corpo apenas vivia, já não possuía nenhum ideal nem a sedução<br />
comunista dos ideais contrários ao maquiavelismo do atual governo.<br />
O primeiro desenho estava terminado. Um painel vistoso com<br />
dois pássaros alimentando um filhote, muma árvore.<br />
A gravura gerou comentários na clínica, e todos que viram<br />
gostaram muito da figura, que se destacou no meio de tantos<br />
rabiscos antigos que estavam no lugar, já envelhecidos pela ação<br />
do tempo.<br />
No dia seguinte, todas as tintas pedidas estavam no espaço<br />
de terapia ocupacional, separadas com o meu nome. A terapeuta<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 91
havia realmente convencido a proprietária da clínica a adquirir os<br />
materiais necessários.<br />
Seria um modo interessante de passar o tempo, além de dar<br />
uma nova imagem ao espaço de terapia ocupacional, que era uma<br />
pequena casa onde eram guardados os trabalhos feitos pelos<br />
pacientes e todos os materiais usados para a terapia, tais como<br />
tintas, lantejoulas, barbantes, palhas, cabaça, cola, fitas adesivas,<br />
brilhos, entre outros.<br />
E a área externa da terapia ocupacional consistia de um quintal<br />
com paredes delimitando o espaço das atividades. Foi justamente<br />
nessas paredes que um lindo trabalho artístico foi elaborado!<br />
Muitas cores, nas quais se destacavam o verde e o rosa, cores<br />
representativas do amor e da esperança.<br />
Na verdade, a combinação das cores verde e rosa tem um<br />
significado espiritual muito grande! Transmitem paz e alegria<br />
muito intensas! São as cores da Estação Primeira de Mangueira, a<br />
tradicional escola de samba do carnaval carioca, muito querida em<br />
todo o país!<br />
Também foram usados vários tons de vermelho, uma cor<br />
marcante para o ideal revolucionário. Em vários países, é a cor do<br />
comunismo e do socialismo.<br />
Numa das paredes, desenhou-se um painel único com a<br />
alimentação das aves, um beija-flor tirando o néctar de uma planta<br />
rara, um cavalo e duas aves silvestres, tudo com muita cor e magia!<br />
No outro painel, de um canto a outro da parede, surgiu o fundo<br />
do oceano, concentrando, em magia e sutileza, a imagem das sereias<br />
e dos corais.<br />
Em outro canto, revelou-se o esplendor do samba, com uma<br />
autêntica roda de samba, alegre, festiva! As matas e um índio<br />
caçador, um rei da mata, empunhando sua flecha, tendo ao fundo<br />
uma cachoeira imensa, de águas azuis! Borboletas e flores! Um<br />
contraste harmônico e alegre de cores e paisagens que se projetaram<br />
92 até a porta do espaço. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Foi como se a própria porta tivesse se transformado num livro<br />
da vida, e a passagem fosse folha em branco para ser preenchida<br />
com ações para o bem-estar de cada um.<br />
Os trabalhos artísticos auxiliaram o processo de adaptação<br />
àquele lugar, visando ocupar o tempo e tirar da memória tantos<br />
momentos de depressão e cenas de retaliação aos dons que a vida<br />
proporcionou.<br />
As pinceladas na parede foram rasgando o coração, para<br />
arrancar de seu interior um ranço de decepção e impotência moral<br />
que haviam envenenado a vontade de viver.<br />
E daí em diante, passava os horários de terapia fazendo os<br />
desenhos na parede, retocando as cores, criando efeitos de luz e<br />
sombra para que ficasse o mais perfeito possível! A importância do<br />
detalhe é algo tão valioso quanto a perfeição na lapidação de um<br />
diamante!<br />
Ao fim de duas semanas, todas as paredes estavam cobertas de<br />
gravuras muito coloridas! Havia uma sensação gostosa de ambiente<br />
novo, com o cheiro de tinta ainda pairando no ambiente!<br />
Sabendo da notícia, um jornal local procurou a clínica para<br />
exibição de umareportagemsobreo trabalho de terapia ocupacional.<br />
Na verdade, o que queriam era mostrar os painéis criados, pois não<br />
foi possível gravar mais que imagens dos trabalhos artísticos, sem<br />
a exibição de nenhum paciente da clínica, a fim de se evitarem<br />
transtornos com familiares.<br />
Os pacientes e funcionários gostaram muito do novo espaço e<br />
várias vezes paravam para admirar os trabalhos. A porta virou um<br />
livro aberto com uma mensagem agradável, e as paredes, uma tela<br />
de um mundo mais alegre, mais festivo.<br />
De fato, foi traduzido em imagens um desejo que há muito<br />
tempo estava anestesiado em minha alma, que só carregava as<br />
chagas da perseguição e as marcas da chibata que há muitos anos já<br />
não açoitavam nem mesmo os escravos!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 93
AS TROCAS DE OBJETOS<br />
Foi quando faltou cigarro na cantina.<br />
Um desespero silencioso pairou durante a manhã, pois alguns<br />
pacientes ainda tinham cigarros. Quando acabaram os da grande<br />
maioria, houve uma revolução! As pessoas ficavam nervosas ao<br />
saber que não iriam fumar.<br />
Muitos pacientes procuravam quem ainda tinha cigarros para<br />
propor a troca por um par de meias, uma blusa, bermuda e até<br />
dinheiro.<br />
Na verdade, eu não sabia que alguns pacientes conseguiram<br />
esconder dinheiro na clínica entre os seus pertences. Essa notícia<br />
me deixou surpreso!<br />
Se o fazendeiro visse, iria dar problema, pois outro dia uma<br />
enfermeira lhe mostrou uma moeda de dez centavos, e ele entrou<br />
em crise falando que ela lhe havia prometido dois mil. Na verdade,<br />
o boiadeiro tinha diversas crises. Ainda bem que não fumava.<br />
Ele tentava pular a divisória do posto de enfermagem e entrar<br />
lá de qualquer maneira, xingando e delirando que a enfermeira<br />
disse que lhe daria dois mil e que estava voltando atrás em sua<br />
palavra.<br />
Os pacientes crônicos estavam desesperados querendocigarros!<br />
Pegavam restos de cigarro no chão, catando as guimbas para tirar<br />
o fumo. Reviravam a grama, tateando cada centímetro à procura de<br />
restos dos restos jogados.<br />
Eu ainda tinha a metade de um maço de cigarros. Como não<br />
queria trocar nada, se algum paciente chegasse pedindo, eu tirava<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
94
um do bolso, pois o restante estava guardado para evitar que eu<br />
também entrasse no desespero de ficar sem o doce vício, que aquieta<br />
as emoções e tensões aqui nesse lugar.<br />
Entretanto, as trocas de objetos logo foram descobertas, e a<br />
direção determinou as devoluções de todos os objetos que tinham<br />
sido trocados por cigarros.<br />
Foi uma tarde inteira de devoluções de objetos, sendo<br />
monitoradas pelos enfermeiros. E tudo aconteceu porque faltou<br />
cigarro na vendinha. A situação foi tão alarmante que a direção da<br />
clínica chamou a atenção do rapaz que estava lá no dia, cobrando<br />
mais eficácia no serviço para não prejudicar os pacientes que<br />
dependem do vício.<br />
Depois desse dia, contudo, as trocas continuaram acontecendo.<br />
Os pacientes descobriram que o interior da clínica poderia ser uma<br />
sociedade, tal qual a que estavam acostumados no mundo lá fora,<br />
até mesmo com uma rede de comércio, bastando para isso apenas<br />
uma oferta e uma procura.<br />
Houve troca de um sabonete chinês, muito cheiroso, por um<br />
maço de cigarros. Outro paciente queria fumar um cigarro de<br />
melhor marca e comprou com dinheiro. Um outro, conseguiu, sabese<br />
lá como, um aparelho celular em ótimo estado de funcionamento<br />
com bateria e carregador.<br />
As pessoas sentiam saudade da vida social, e isso alimentou,<br />
desde aquele dia, as constantes trocas de objetos no interior da<br />
clínica.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 95
VISITAS<br />
96<br />
Depois de quinze dias internado, o pensador finalmente poderia<br />
receber visitas e ligações, as quais eram direcionadas ao telefone da<br />
sala da assistente social Iara e atendidas na presença dela.<br />
Era domingo de manhã e várias pessoas ligaram. Queriam falar<br />
com ele, ouvir sua voz e saber como estava.<br />
Passou boa parte da manhã atendendo ligações de amigos,<br />
familiares, pessoas importantes e comuns, e a todos dirigia palavras<br />
de respeito e gratidão por terem se preocupado com ele. Até mesmo<br />
um representante do partido comunista ligou, para falar que sentia<br />
falta da sua presença nas reuniões da cidade, que sempre o viam<br />
como um político em potencial, embora sempre acabasse desviando<br />
do assunto.<br />
Vieram da cidade onde morava, já na parte da tarde, sua irmã<br />
Karolina, a amiga Riana, a prima Sirlene e seu esposo Ademar.<br />
Trouxeram no carro um cobertor de veludo, vários salgados, duas<br />
cartas de familiares, doces e balas de que muito gostava.<br />
Era dia de visitas coletivas e alguns pacientes receberam seus<br />
parentes, entre eles os parentes do fazendeiro, os quais chegaram<br />
num carro novo. Ao caminhar pelo interior da clínica<br />
mostrando aos que vieram as dependências, o pensador falava sobre<br />
as experiências que estava tendo, apresentava-os aos pacientes e<br />
contava um caso ou outro sobre algum paciente.<br />
Com um pedido feito antes à dona da clínica, obteve autorização<br />
para que o enfermeiro-chefe acompanhasse os parentes até o<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
espaço de terapia ocupacional, e quando a porta foi aberta todos<br />
ficaram admirados com os mosaicos que cobriam todas as paredes<br />
de um canto a outro, com graça, alegria e perfeição nos traços de<br />
cada desenho. O enfermeiro chefe ainda não havia visto os murais<br />
e chegou a tocar nas paredes, admirando-as. Os visitantes tiraram<br />
várias fotografias do lugar, que disseram estar belíssimo!<br />
Um ambiente tão puro e cheio de vida, repleto de cor e<br />
esperança! Parecia que ali era um novo mundo, sem as cinzas que<br />
infeccionam os pulmões na vida em sociedade.<br />
Realmente foi exteriorizado em imagens outro universo,<br />
existente na subjetividade do pensador, que não foi poluído ou<br />
ferido pela aspereza da vida em sociedade.<br />
Depois, foram todos para um local onde havia cadeiras e mesas.<br />
A assistente social então chamou as mulheres para conversar à<br />
parte, numa sala, e o pensador ficou conversando com o Ademar.<br />
Falou dos momentos que passou e que foram decisivos para o<br />
quadro de depressão a que estava submetido, recebendo conselhos<br />
importantes para não deixar que as tristezas da vida abalassem uma<br />
pessoa de futuro tão promissor, devido à grande intelectualidade<br />
que possuía.<br />
Ao abrir um salgadinho, do que mais apreciava, feito de farinha<br />
de trigo cozida, uma paciente entrou na sala e pediu um pouco, ao<br />
que ofereceu com gesto de desprendimento e alegria. A paciente<br />
estava internada há um ano e seus parentes nunca foram visitá-la,<br />
por morarem muito longe e não terem muitos recursos.<br />
Após um tempo e depois de muito conversarem, as mulheres<br />
retornaram.<br />
O sol já estava se escondendo, deixando que os primeiros<br />
sinais da noite aflorassem, trazendo o frio e o brilho da lua cheia no<br />
horizonte oposto, quando os parentes se despediram.<br />
E, ao entrarem no carro, desejaram melhoras, dizendo que iriam<br />
ligar constantemente para ter notícias, já que agora não estaria mais<br />
tão isolado, podendo receber notícias.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 97
Nesse intervalo, outras pessoas ligaram para a clínica a fim<br />
de saberem notícias suas. E ao saber disso pela assistente Iara,<br />
ficou contente de haver tantos conhecidos preocupados com sua<br />
melhora.<br />
Uma das pacientes, a Salomé, passou o dia inteiro dizendo<br />
que seus dois filhos iriam visitá-la, mas a tarde passava e nada de<br />
aparecerem.<br />
Foi decaindo, ficando com um semblante descontente e<br />
apreensivo, até que, pouco tempo antes do horário de visitas se<br />
encerrar, o casal de filhos chegou de carro. Uma jovem de dezenove<br />
anos, loira e muito bem apessoada, e um jovem de treze anos,<br />
rechonchudo e de cabelos arrepiados!<br />
A vida é difícil! Lutamos para vencer !<br />
Viver é procurar diamantes onde só existe areia...<br />
Ela, maravilhada com a presença dos dois, andou com eles pelo<br />
interior da clínica, apresentando-os aos funcionários e pacientes,<br />
e, embora a visita tenha sido muito curta devido ao horário, sua<br />
fisionomia estava muito melhor!<br />
Era possível perceber um olhar entristecido nos pacientes<br />
que não receberam visitas, pelo menos em alguns deles, outros já<br />
estavam acostumados ao abandono dos amigos e da família e já não<br />
prestavam culto a certos sentimentos como a saudade.<br />
98<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
A ANSIEDADE<br />
Era manhã! Ao chegar à janela do posto de enfermagem, havia<br />
vários pacientes esperando os seus respectivos remédios.<br />
A enfermeira colocou rapidamente em minha mão dois<br />
comprimidos e recusei o copinho descartável dessa vez, dizendo<br />
que iria tomar o medicamento no bebedouro para dar lugar aos<br />
outros pacientes que aguardavam na fila torta que se formou.<br />
Entretanto, ao chegar ao bebedouro, acabei guardando os<br />
comprimidos no bolso. Estava cansado de tudo aquilo! Do estado<br />
de dormência que ficava no corpo todas as manhãs, uma sensação<br />
de impotência moral e espiritual que me impedia, por exemplo, de<br />
sentir ódio ou revolta.<br />
Os comprimidos não estavam me impedindo de viver, de sentir<br />
os sentimentos que eu sempre senti, amar o que sempre amei e<br />
odiar também. Mas, por outro lado, me impediam de me revoltar e<br />
porejar do corpo como suor o idealismo intelectual que sempre foi<br />
uma chaga perene em meu semblante, tal qual uma imagem de fênix<br />
brotando da testa.<br />
Isso mesmo! A fênix. O pássaro de fogo no qual sempre me<br />
inspirei, que sempre renascia das próprias cinzas.<br />
As horas foram passando e com a abstinência do medicamento,<br />
a primeira sensação sentida foi uma grande ansiedade! Meu sangue<br />
corria mais acelerado e o coração batia mais intensamente!<br />
Acendia um cigarro atrás do outro. Consegui um isqueiro com<br />
um paciente a troco de um maço de cigarros e, sem me<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 99
100<br />
preocupar se alguém estava vendo, acendia os cigarros ali mesmo<br />
no corredor, contrariando todas as regras e proibições. Com o<br />
passar das horas, ansiedade foi só aumentando! E na hora do<br />
almoço, pela primeira vez desde que aqui cheguei, estava com<br />
fome.<br />
Antes, parecia que me alimentar, em vez de necessidade, era<br />
uma tarefa sem sentido a ser cumprida. Eu não sentia fome, medo,<br />
coragem, sono, saudade, amor ou ódio.<br />
Mas hoje, com a carência da droga, meu corpo foi tomado por<br />
grande euforia! Depois de muito tempo, eu sentia os olhos ardendo,<br />
e a imagem do ser debilitado e anestesiado, incapaz de reagir diante<br />
das dificuldades, começou a esmaecer diante do espelho.<br />
A ansiedade, entretanto, não tinha um motivo determinado.<br />
O corpo se ludibriava com um desejo puro e suave, repleto de<br />
ideais que turbinavam milhões de pensamentos a cada momento.<br />
A vivacidade do corpo! O ato de respirar e, depois de muito tempo,<br />
perceber a presença do ar com todos os seus cheiros.<br />
À tarde, senti vontade de comer um doce e fui ver se havia<br />
algum na cantina. Havia um doce cristalizado que desde a infância<br />
não provava. Coberto de açúcar, de cor vermelha e amarela, parecia<br />
uma bala de goma! Muito saboroso! Comprei vários doces e guardei<br />
no bolso para comer mais tarde.<br />
Na hora de dormir, o sono demorou a chegar. Fui até o pátio<br />
da área interna e fiquei admirando as estrelas. Levei alguns doces<br />
e me sentei em um dos bancos, justamente o preferido da velha<br />
resmungona.<br />
O suor, nesse dia, foi bem mais intenso devido à agitação do<br />
dia, cheio de ansiedade!<br />
O céu...<br />
Um céu repleto de estrelas que nada dizem, não têm ações<br />
próprias, somente cumprem sua missão de ficar ostentando brilho,<br />
sem nada fazer pelos habitantes da terra, aqui embaixo.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Ao comer doce, lembrei-me de momentos da infância em que<br />
olhava para o céu com tanta naturalidade, como se estar sob ele<br />
fosse algo comum.<br />
Pensamos de forma muito terrestre! Somos limitados a viver<br />
as agruras sociais e o desejo hedonista com o qual apenas poucos<br />
estudiosos estão preocupados, com a conquista do universo, com<br />
a descoberta de novas formas de vida ou puramente o motivo de<br />
existirmos.<br />
Claro, por ser improvável, preferimos acreditar nas soluções e<br />
explicações mais simples, porém, desprezar que há muito oculto a<br />
ser descoberto é ignorância.<br />
Acreditar numa explicação simples é arbítrio do ser humano,<br />
mas fechar os olhos para a realidade é como olhar para o céu e<br />
apenas enxergar pontos luminosos.<br />
Para os esclarecidos, cada ponto é um sol igual ao que nos dá o<br />
calor das manhãs e o direito de viver. Se o que há lá fora ainda não<br />
foi descoberto, uma hora ainda será.<br />
Após comer o último doce, acendi um cigarro para acalmar um<br />
pouco a ansiedade desse dia. Deixar de tomar os remédios foi uma<br />
atitude perigosa, visto que eu ainda estava com depressão, mas<br />
correr risco é arbítrio do homem.<br />
Então decidi que não iria mais tomar os comprimidos. Talvez<br />
outro paciente sem esses medicamentos ficasse agressivo. Eu,<br />
porém, voltei a pensar, a ter sentimentos que já havia esquecido.<br />
Era como uma águia, após se recolher aos picos altos, com as<br />
penas já gastas, unhas que não mais seguravam as presas e o bico,<br />
curvo, dificultava os ataques.<br />
Recolhida ao local escolhido ou determinado pela natureza,<br />
a águia, num processo doloroso de renovação, arranca o bico<br />
batendo-o constantemente contra as rochas, e, ao nascer o novo<br />
bico, arranca todas as unhas para que novas possam surgir, e arranca<br />
também todas as penas do corpo.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 101
Quando a águia termina esse processo, é como se um novo ser<br />
deixasse as montanhas! Como se voltasse a viver depois de haver<br />
morrido. Eu queria sentir essa sensação de euforia com o primeiro<br />
voo depois de haver perdido a vontade de viver.<br />
Deixar as sensações do corpo explodir novamente e tornar-me<br />
um ser de atitude, mais que isso, um novo ser! Inquestionável em<br />
coragem, determinação, ousadia e consolidação de ideais que não<br />
se abalam por motivo algum!<br />
Após terminar o último trago e cientificar-me, olhando<br />
novamente para as estrelas, sobre o motivo real da ansiedade<br />
que durante o dia causou tanta euforia em meu ser, passei pelo<br />
corredor, parando ainda um momento no bebedouro e tomando<br />
uma boa quantidade de água gelada! Pensei que se resfriasse minha<br />
temperatura interna, sentiria frio e, ao encobrir todo o corpo, o<br />
sono chegaria mais facilmente.<br />
Há muito tempo estava dormindo, mais do que o corpo<br />
necessitou, e houve o desejo de acordar.<br />
102<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
OS AMORES PROIBIDOS<br />
Deivisson está encantado pela paciente Adalgisa, uma<br />
adolescente do município de Viscoso, que por lá se envolveu com<br />
drogas ilícitas e, por determinação do juiz, foi internada para<br />
tratamento.<br />
A adolescente é morena, de estatura mediana, curvas muito<br />
bem distribuídas, seios volumosos e firmes, rígidos como uma fruta<br />
rosada! Longos cabelos que vão até a cintura!<br />
Seu modo um pouco arrogante é típico de adolescentes<br />
desaforados, porém, em certos momentos, é uma garota muito<br />
comunicativa. Mas, por alguma contrariedade já fica com raiva e<br />
grita aos berros!<br />
Franklin também já gostou da paciente Sabrina, uma morena<br />
alta, também nova, com dezenove ou vinte anos. Esbelta e de pele<br />
morena e fisionomia brilhosa! Também de gênio forte como a<br />
Adalgisa!<br />
Chegaram a trocar uns beijos escondidos pelo corredor ou na<br />
sala de palestras, quando não havia nenhum enfermeiro por perto.<br />
Uma pegação que vem e acontece no calor do momento, assim<br />
de repente, quando há tensão ou saudade mesmo do desejo de amar<br />
e viver a aventura.<br />
Qualquer tipo de envolvimento afetivo entre pacientes ou entre<br />
funcionários, porém, é proibido na clínica, sendo conduta que gera<br />
passagem corretiva pelo R3, o setor mais temido da clínica, ou até<br />
demissão do funcionário que se envolver com qualquer paciente.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 103
104<br />
Segundo o João, há uma história de um funcionário da clínica<br />
que foi demitido por ter sido flagrado aos beijos com a Adalgisa,<br />
tempos atrás, logo que ela chegou e foi internada na clínica, e teria<br />
provocado no enfermeiro um desejo incontrolável!<br />
Na verdade isso existe em todo lugar – disse o Fausto. Em<br />
empresas ou repartições, há sempre um querendo uma vantagem<br />
amorosa, seja ela lícita ou não.<br />
– O que o povo quer mesmo é diversão! – disse o João.<br />
Principalmente quem tem algum poder de chefia ou gerência. Basta<br />
ver uma mulher bonita novata na empresa que logo quer mostrar as<br />
asinhas, cheio de gentilezas e agrados.<br />
– Lá onde trabalho, houve um problema assim. Uma mulher<br />
casada foi trabalhar na empresa. Era muito bonita e atraente!<br />
Caminhando pelos corredores, provocava sussurros e logo um dos<br />
gerentes de setor se interessou por ela. Levava presentes e fazia<br />
diversos elogios. Depois de um tempo, deixou mais claras as suas<br />
intenções de tê-la a qualquer custo, oferecendo-lhe um cargo de<br />
confiança no setor, embora houvesse funcionários que estavam no<br />
setor há mais de dez anos sem jamais terem sido promovidos.<br />
– Isso existe em quase todo lugar, Fausto! Sempre haverá<br />
alguém interessado na outra pessoa. Depende de a pessoa ceder ou<br />
não às investidas.<br />
– Pois é, só que nesse caso, lá na repartição, deu um problemão<br />
porque a mulher contou ao marido que estava sendo assediada, e ele<br />
apareceu lá no dia seguinte. Era chefe de polícia e levou cinco carros<br />
para provocar um impacto na gerência da empresa. Queria levar o<br />
gerente de setor preso de qualquer forma ou aplicar, ali mesmo, um<br />
corretivo nos moldes do auge da Ditadura.<br />
– Na minha antiga repartição, houve um problema assim. Uma<br />
funcionária muito bonita, chamada Alice foi trabalhar na empresa.<br />
Ela não era casada, tinha uma filha com um rapaz do município de<br />
Ouros, no sul do estado, e namorava outro rapaz. Um gerente de<br />
setor, que era casado, ofereceu inúmeras coisas a ela, dizendo que<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
iria se separar da mulher para ficar com ela, que tinha casa, que<br />
poderia colocá-la para coordenar o setor junto com ele.<br />
– Mas o que houve? – perguntou o João.<br />
– Eu não sei muito bem, só o que sei é que pouco tempo depois<br />
ela havia sido transferida de setor. Nem ficou na empresa e decidiu<br />
sair, talvez devido ao assédio que vinha sofrendo por parte do<br />
gerente.<br />
– Deve ser. Nesse caso que eu estava contando, como virou<br />
caso de polícia, o gerente de lá se viu obrigado a dar uma solução,<br />
conversou com todos os gerentes de setor e disse que se ficasse<br />
sabendo de algum assédio às mulheres na repartição iria demitir<br />
ou transferir o acusado para um lugar longe de casa como medida<br />
punitiva.<br />
O amor proibido é fogo que arde no corpo! Um desejo de ter<br />
aquilo que os olhos primeiro observam e o cérebro acha agradável.<br />
Muitas vezes, o indivíduo tem mulher e filhos, e a esposa<br />
é até bonita e agradável, mas surge algo novo! Algo que não é da<br />
posse e usufruto e, somente por ser inacessível, provoca o desejo<br />
consumista no homem.<br />
E o Deivisson começou a dar pequenos agrados à Adalgisa, tais<br />
como chocolates, doces e até um ursinho de pelúcia, que mandou<br />
trazer da cidade.<br />
Nós sabíamos que até trocavam alguns beijos, às escondidas.<br />
Em algumas vezes, até tiritando os dentes, ou de frio ou de medo<br />
de serem descobertos, atrás de uma árvore ou na sala de palestras,<br />
localizada no interior da clínica, junto ao pátio, próxima do<br />
refeitório.<br />
Contava as peripécias à noite, sempre que ia levar café. Falava<br />
dos encontros às escondidas e da sensação de estar fazendo algo<br />
proibido, o que provocava mais ainda o desejo.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 105
O TROTE<br />
– Socorro, tia! Acabei de sofrer um acidente de carro, estou<br />
muito machucado.<br />
– Onde está? O que aconteceu?<br />
– Não estou conseguindo falar direito. Estou muito machucado.<br />
Vou passar para o mecânico que está aqui me ajudando.<br />
– Alô? Quem fala?<br />
– O que houve com meu sobrinho? Diga?<br />
– Olha, dona, ele estava indo pra casa num carro emprestado<br />
pela clínica devido ele ter apresentado bom comportamento, porém<br />
houve um acidente aqui na fazenda Rosário. O carro está muito<br />
estragado e precisarei que deposite um valor em dinheiro numa<br />
conta que vou passar, mas é urgente, afinal tenho de atender outros<br />
clientes.<br />
– Espere. Vou ligar para a família dele. Precisam saber que<br />
sofreu acidente.<br />
– Não posso esperar mais. Há uma viatura aqui prestando apoio<br />
e sinalizando o acidente, mas eu não posso começar o conserto do<br />
carro sem o valor depositado.<br />
– Tudo bem! Passe-me o número da conta que deposito já o<br />
dinheiro.<br />
106<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
– Naiara, aqui é sua tia. Como está seu irmão?<br />
– Boa tarde tia! Ele continua internado na clínica.<br />
– Não, Naiara, falei com ele há pouco. Ele estava vindo para<br />
casa num carro emprestado pela clínica, mas o carro bateu perto de<br />
uma fazenda. O mecânico que está arrumando o carro me pediu pra<br />
fazer um depósito.<br />
– Olha, isso foi um trote! Ele não teve alta médica ainda, liguei<br />
pra lá agora e falei com ele no telefone da assistente social. Não<br />
podia ter feito o depósito, não. Alguém conseguiu o telefone da<br />
mercearia e se passou por ele.<br />
Na verdade, as falsas ligações de estelionatários se fazendo<br />
passar por parentes, amigos, filhos ou sequestradores têm evoluído<br />
muito nos últimos anos!<br />
Esses golpistas se aproveitam da fragilidade alheia e estudam<br />
suas vítimas antes do golpe ser aplicado. Imitam a voz da pessoa,<br />
falam com propriedade sobre fatos que são do conhecimento da<br />
vítima, induzem ações ou omissões, tudo metodicamente elaborado<br />
para garantir o sucesso do empreendimento delituoso.<br />
Após o trote, foi feito o registro de ocorrência na polícia daquela<br />
cidade, sendo passado o número da conta que o golpista informara,<br />
os valores depositados e as demais informações necessárias para a<br />
investigação do caso.<br />
Há tantas pessoas que vivem da ilusão aos outros! Por isso, o<br />
comércio está quebrado. Ninguém mais confia.<br />
Quando o cliente chega para comprar um carro ou uma casa,<br />
por exemplo, o vendedor, disfarçado em pele de cordeiro, já vai logo<br />
pedindo sinal adiantado, sem nem mesmo saber se haverá condições<br />
de o negócio ser concretizado.<br />
Quando há algum problema que impossibilita o negócio, o<br />
golpista já até usou o dinheiro pago no sinal para outros fins, e o<br />
comprador ou recorre à justiça ou a faz por suas próprias mãos.<br />
O certo é que dificilmente verá o dinheiro novamente, pois quem<br />
aplica esse tipo de golpe já está cheio de processos semelhantes e<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 107
já não faz questão de andar conforme a lei, antes disso aprendendo<br />
com o tempo várias artimanhas para ludibriar a justiça, que já é cega.<br />
Há muitos casos em que os golpistas tiram todos os bens do nome,<br />
passando para o de parentes ou conhecidos de confiança, para não<br />
terem o que ser confiscado pela justiça em eventuais processos.<br />
Enganadores estão em toda parte, sempre sobrevivendo às<br />
custas de enganar o povo, se aproveitando da inocência e fragilidade<br />
alheia, ou talvez do desejo consumista na realização de um sonho<br />
material.<br />
É um produto defeituoso que o vendedor já sabe que trará<br />
problemas, um plano de telefonia ou de internet que é aquém do<br />
estabelecido em contrato, o plano de saúde que se paga a vida inteira<br />
e quando se precisa dele, não cobre o procedimento, seguros, enfim,<br />
o comércio está aí para enganar, e foram os próprios comerciantes<br />
que criaram esse estado deplorável de confiança da população.<br />
108<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
A PEGADINHA DO BONECO<br />
Sabino era cachaceiro! Chegou de repente no quarto, sedado e<br />
ficou dormindo por três dias, sob o efeito dos remédios.<br />
Quando acordou já foi logo pedindo cachaça, não se preocupando<br />
em estar internado se tivesse cachaça para beber.<br />
– Moço, o que eu vou fazer sem cachaça?<br />
– Bom, Sabino, aqui na clínica você não vai conseguir cachaça,<br />
não.<br />
– E o que eu vou arrumar da vida? Acho que vou comer alguma<br />
coisa e depois dormir de novo, então.<br />
Ele dormia, acordava na hora do café da manhã, depois voltava<br />
para o quarto para a soneca de antes do almoço, a qual era pesada e<br />
nada o acordava.<br />
Como se tivesse um relógio biológico, levantava-se pontualmente<br />
na hora do almoço e chegava antes de todos à fila<br />
do refeitório.<br />
Sempre que era servido, pedia para que colocassem mais ainda,<br />
e pegava um prato separado só para a salada.<br />
Após o almoço, fumava um cigarro e dizia sempre que queria<br />
uma cachaça para as enfermeiras do posto. Com as respostas<br />
que recebia sobre a impossibilidade, exibia uma expressão de<br />
descontente e tome outra soneca antes do lanche das quinze horas!<br />
Sempre recebia a negativa com a mesma frase:<br />
– Ô, lasqueira!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
109
110<br />
Uma acordada rápida, o deslocamento ligeiro até a cantina e<br />
uma voltinha curta pela área externa, só pra esticar os músculos e<br />
lá vai mais uma soneca.<br />
Na hora do jantar, costumeiramente era um dos primeiros da<br />
fila, e um dos últimos a sair do refeitório, sempre pedindo para<br />
repedir o prato.<br />
E de onde o infeliz tirava sono para dormir à noite inteira acho<br />
que nem a ciência conseguiria explicar.<br />
– Ele está dormindo de novo, João?<br />
– Esse aí não tem jeito. Só come e dorme, come e dorme.<br />
– Amanhã vou fazer uma brincadeira com ele pra ver se ele faz<br />
alguma coisa.<br />
– Rá! Rá! Rá! Conhecendo bem o seu jeito brincalhão, até<br />
imagino o tipo de coisa que vai aprontar.<br />
– Eu acho que deveríamos colocá-lo pra dormir com o bumbum<br />
de veludo.<br />
– E já vem com essa palhaçada de bumbum de veludo de novo.<br />
Não tem outra coisa pra fazer, não?<br />
– Ei, essa ideia é ótima!<br />
– O quê? Já vai começar com as piadinhas também?<br />
Exatamente! Amanhã vou pôr um boneco de pano para dormir<br />
com ele!<br />
– Rá! Rá! Rá! Rá! Você não vale nada! O que vai fazer?<br />
Espere ele sair pra tomar café, amanhã, e verão.<br />
– E a noite passou bem rapidinho, afinal todos queriam ver<br />
mesmo a brincadeira do boneco.<br />
Sabino acordou pontualmente, pedindo cachaça:<br />
– Será que hoje vão me deixar beber uma cachaça? Já tem cinco<br />
dias que estou aqui.<br />
– De novo essa história, Sabino? Olha só, João, ele ainda insiste<br />
na cachaça. Rá! Rá! Rá!<br />
– Pede lá na cantina, de repente eles te dão.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
– Nossa! Por falar em cantina está na hora do café. Preciso<br />
correr pra não pegar fila, acabei de acordar e já estou com sono<br />
outra vez.<br />
Então, todos olharam para mim e deram uma boa risada, assim,<br />
bem estridente que ecoou pelo corredor.<br />
Assim que Sabino foi para o refeitório aguardar o café, peguei<br />
alguns cobertores, esparadrapo, uma faixa e um par de óculos que<br />
Fausto emprestou.<br />
Enrolei os cobertores e, com o esparadrapo, fui delineando<br />
braços, pernas e dorso. O rosto foi feito com algumas roupas e com<br />
a faixa, por fim adornado com os óculos.<br />
Corri até o refeitório e disse:<br />
– Sabino, chegou um paciente novo. Está operado na cabeça e<br />
também é cego. O enfermeiro chefe falou que ele terá que ficar em<br />
sua cama até conseguirem um leito.<br />
– O quê? Mas como foi acontecer uma coisa dessas? Vou lá ver<br />
isso agora. Eu tiro esse infeliz da minha cama agora mesmo.<br />
– Não, homem! Você não pode mexer nele, afinal está sedado e<br />
operado. O jeito vai ser você ir pra terapia ocupacional na parte da<br />
manhã ou ficar aguardando na área externa, fazer uma caminhada,<br />
sei lá! Dormir será impossível!<br />
– Eu vou lá ver esse gaiato agora mesmo.<br />
Nesse momento, não consegui segurar o riso e achei melhor<br />
ficar no refeitório enquanto passava a crise de gargalhadas.<br />
No corredor, vários pacientes ficaram vendo o Sabino passar<br />
com um copo de café com leite na mão direita e metade de um pão<br />
na esquerda. Todos já sabiam da brincadeira e não conseguiam<br />
segurar o riso.<br />
João falou que o Sabino entrou no quarto, xingou o boneco de<br />
folgado e ainda deu um cutucão no boneco esperando que acordasse.<br />
Ao voltar estava desolado, pois perderia o sono da manhã antes<br />
do horário do almoço.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 111
– Moço e agora? Chamei o folgado lá na cama e ele nem se<br />
mexeu. Se ele cismar de dormir muito eu não sei o que vai ser de<br />
mim.<br />
– Bom, por que não faz uma caminhada, então? Respira um ar<br />
puro!<br />
Está louco? O que eu mais queria agora é uma cachaça e depois<br />
tirar um cochilo. Só de pensar em fazer alguma coisa me dá sono.<br />
– E por que veio pra cá?<br />
– Moço, nem te conto. Eu estava em casa tomando uma cachaça<br />
muito boa! De repente, veio um pessoal do outro lado da rua<br />
querendo que eu abaixasse o som, aí peguei meu vinte e dois e dei<br />
três tiros para o alto. Saiu foi gente correndo!<br />
– Mas não deu nenhum problema não?<br />
– Que nada! Meu padrasto é fazendeiro. Ele que empresta a<br />
casa que serve pra polícia lá na cidade. Se alguém mexer comigo,<br />
ele cria caso. E lá é assim mesmo. Outro dia, não transferiram<br />
um novato porque ele multou o filho da prefeita da cidade? O<br />
moleque é um diabo! Não tinha carteira para andar de moto e<br />
estava empinando a moto que comprou. Isso foi na praça, bem no<br />
centro da cidade.<br />
– Sério? E o que houve?<br />
O policinha foi lá e apreendeu a moto, esvaziou um bloco de<br />
multa em cima do filho da prefeita e o levou pra delegacia. Ela<br />
foi reclamar com o chefe de polícia, e uma semana depois haviam<br />
transferido o novato pra uma cidade que fica uns duzentos<br />
quilômetros de lá.<br />
– Que coisa! Hoje em dia ainda existem situações assim?<br />
– É o que mais tem. Mas aí o meu padrasto me internou aqui<br />
pra que eu desse um jeito nessa cachaçada em que estou.<br />
– E o que está achando daqui?<br />
– Nem sei, só como e durmo. Aliás, eu não vou fazer caminhada<br />
coisa nenhuma. Vou lá dormir...<br />
112 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
– Rá, rá, rá, rá, rá, rá... – Não foi possível me conter, cheguei a<br />
babar do tanto que ri quando ele falou.<br />
– O que foi?<br />
– Nada, desculpe interromper, mas eu não aguentei. Diga-me:<br />
vai dormir onde?<br />
Na minha cama, ora. Ele chegou depois. Os incomodados que<br />
se retirem.<br />
E o Sabino foi andando pelo corredor. Olhei para o João e para<br />
o Fausto e nenhum dos três conseguiu conter o riso. Logo a clínica<br />
inteira estava sabendo, e fomos todos para a porta do quarto ver se<br />
ele perceberia que era um boneco.<br />
Empurrou o boneco para o canto da parede e deitou na beirada.<br />
Puxou o cobertor e ainda falou que o boneco era muito folgado e<br />
espaçoso.<br />
Fomos todos para a área externa e uma hora depois chega o<br />
Sabino.<br />
– Então, Sabino, não quis dormir?<br />
– Moço, não dá pra dormir perto daquele homem não.<br />
– Por quê? O que houve?<br />
– Bom, ele solta gases e ronca. Até aí tudo bem, mas fica<br />
batendo na gente e isso não dá pra aceitar não. Cheguei a falar com<br />
ele que estava me incomodando, pra ele sair do quarto e procurar a<br />
enfermagem pra conseguirem outra cama.<br />
– E o que ele fez?<br />
– Fingiu que não estava me ouvindo e continuou dormindo<br />
feito uma pedra.<br />
Sabino não havia percebido que era um boneco, e não sei se por<br />
delírio ou exagero imaginou coisas. Passara tanto tempo sem sua<br />
cachaça que já estava tendo problemas de abstinência.<br />
Se fosse um maconheiro eu diria que a que ele usou era da boa,<br />
mas o desejo dele era somente sono, comida farta e cachaça.<br />
Então eu me pergunto: precisa dizer mais alguma coisa?<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 113
Ele deu uma volta na área externa da clínica, fumou alguns<br />
cigarros, visitou a terapia ocupacional e depois foi até a horta para<br />
pegar algumas couves, comendo tudo ali mesmo como um furão<br />
invasor de plantação.<br />
Depois acabamos contando que era um boneco, e ele sorriu com<br />
a brincadeira. Acabou percebendo que estava dormindo demais e<br />
começou a dar uma voltinha pela área externa após cada refeição,<br />
antes do seu cochilo.<br />
114<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
O PRESENTE<br />
– Monsenhor! Desculpe desviar, nessa reunião tão importante,<br />
o foco do nosso propósito para esse encontro, mas tenho que levar<br />
ao conhecimento dos senhores irmãos alguns fatos que entre nós<br />
será mantido no mais absoluto segredo, mas será necessária uma<br />
intervenção no sentido de solucionar algumas particularidades que<br />
fogem à luz da legalidade e da igualdade.<br />
– Tem a palavra aberta. Traga o que o aflige para que possamos,<br />
com sabedoria, compreender e auxiliar da melhor forma, se os<br />
demais presentes estiverem de acordo.<br />
– O que vou relatar, porém, é algo que precisará ser<br />
metodicamente avaliado pelos senhores irmãos devido ao fato de<br />
que a influência que temos será um fator de decisão para a melhor<br />
solução de tudo o que está acontecendo.<br />
– Continue! Tem a palavra...<br />
– Senhor Lino! Obrigada por me atender!<br />
– Boa tarde, senhora!<br />
– Sei que vim em momento inoportuno, mas o assunto de que<br />
vim tratar é urgente! Não poderia esperar mais essa entrevista para<br />
debatermos sobre o caso.<br />
– Não há de quê, senhora Flávia! A que devo a honra de sua<br />
visita? Pode falar abertamente! Estou à sua inteira disposição!<br />
Vim tratar de assunto relacionado a um de seus funcionários.<br />
Na verdade, um funcionário diferenciado, cujo trabalho temos<br />
acompanhando com o passar dos anos. Vários fatos chegaram ao<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 115
116<br />
nosso conhecimento e queremos saber, da parte de sua repartição,<br />
o que tem sido feito para ajudá-lo.<br />
– Já sei até do que se trata. Ele ainda está internado em outra<br />
cidade, mas estamos oferecendo todo o suporte necessário. O<br />
problema é que ele passou por muitas situações inadequadas<br />
na repartição onde trabalhava, e isso vinha abalando seu estado<br />
emocional há vários meses. Quando chegou aqui, há mais ou<br />
menos um mês, já não estava bem. No dia em que tudo aconteceu,<br />
eu estava fora, participando de um congresso. Fui saber do<br />
incidente no metrô por meio dos jornais. Ao ligar para o setor<br />
onde trabalhava, disseram que ele até chegou a vir para o serviço<br />
no dia, mas que seu estado emocional não era outro senão o de<br />
mais profunda depressão!<br />
– Ele é uma pessoa muito querida entre nós! No meu caso,<br />
como sabe, estou representando mais do que uma grande equipe<br />
de militantes, grandes amigos que ele angariou ao longo dos anos.<br />
Todos estão muito apreensivos e até descrentes quanto à empresa<br />
pelos fatos que o levaram a tentar suicídio e pela ineficácia de<br />
algumas das repartições em atender à demanda de ordens de serviço.<br />
Há muita coisa fora dos padrões de aceitação e a responsabilidade<br />
sobre isso não pode cair senão nas costas dos gerentes.<br />
– Entendo que há muito para ser melhorado sim! Pelo pouco<br />
que o vi trabalhando percebi que é uma pessoa de valorosos<br />
princípios! Um profissional extremamente eficaz na elaboração de<br />
seus projetos! Pode ter certeza que, da minha parte, estou sempre<br />
apoiando suas pesquisas profissionais e seus trabalhos, que são de<br />
fato muito interessantes!<br />
– Trouxe aqui alguns panfletos sobre um novo trabalho que<br />
estamos elaborando, que espero ser do seu agrado. Irei também<br />
comunicar aos outros membros o que foi aqui discutido, mas é bom<br />
saber que, da parte dessa gerência, há um novo posicionamento em<br />
relação a ele. Chegamos a nos manifestar diretamente ao gerente<br />
Barcelos sobre a nossa insatisfação com determinadas condutas<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
que, além de desaprovadas pelos acionistas, são rejeitadas por todos<br />
aqueles que estão ligados aos serviços aqui prestados.<br />
– Não tenha dúvidas de que estamos nos empenhando para<br />
promover muitas melhorias internas. Algumas questões fogem<br />
à minha alçada, mas o que posso fazer para melhorar as coisas<br />
para os meus funcionários e para o público, isso tenho feito<br />
constantemente. Não podemos oferecer um produto de qualidade<br />
se não nos preocuparmos com quem está na linha de produção.<br />
– Obrigada pela atenção, senhor Lino! Muito bom saber que<br />
podemos contar com pessoas como o senhor!<br />
– Tenha um ótimo dia, senhora Flávia! E muito obrigado pela<br />
sua visita!<br />
– Senhor Bretas! Que bom vê-lo novamente em meu gabinete!<br />
Sua presença é sempre muito agradável!<br />
– Deputado Freitas, boa tarde! O assunto que me traz até aqui<br />
é algo que requer a sua atenção para uma intervenção decisiva e<br />
imediata. Trata-se de um incidente que vem se arrastando há vários<br />
anos, e não há momento mais oportuno para cobrar seu apoio e<br />
deliberação junto à Casa Legislativa do que agora.<br />
– Conte-me o que está acontecendo, se estiver ao meu alcance<br />
solucionar.<br />
– Um instante. Deixe-me mostrar os documentos que trouxe<br />
comigo na pasta, pois comprovam todo o teor do assunto que vim<br />
relatar, para o qual solicito sua intervenção.<br />
– Sim, isso é interessante! Vou chamar minha assessora, Rosina,<br />
para acompanhar o que tem a relatar e providenciar um despacho,<br />
se for o caso.<br />
– Isso é o desejo de todos aqueles que me indicaram para trazerlhe<br />
essa demanda, que necessita de intervenção urgente e decisiva<br />
por parte de Vossa Excelência, tendo em vista a gravidade dos fatos<br />
e todas as consequências que podem surgir de um caso como esse.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 117
– Já ouvi algo a respeito, mas até o momento procurei não<br />
interferir porque achei que o caso já estava sendo solucionado pelo<br />
Deputado Juarez. Além do mais, eu não queria entrar em conflito<br />
com os comunistas, pois poderiam interpretar mal as minhas<br />
intenções.<br />
– Ele não fez muito para solucionar essa situação. Antes disso,<br />
se esquivou. E agora, antes que o rapaz termine a internação, quero<br />
viabilizar uma forma de trazê-lo para esta cidade, ou então, em<br />
último recurso, providenciar sua alta imediata, tendo em vista que a<br />
internação foi arbitrária e compulsória, não dando a ele o direito de<br />
escolher o melhor tratamento. Segundo o Genaro, o rapaz chegou a<br />
reclamar várias vezes de que a internação traria prejuízos, inclusive<br />
não tendo dado a ele a oportunidade de ao menos buscar roupas em<br />
sua casa.<br />
– Sem dúvida, uma situação lamentável de falta de respeito ao<br />
ser humano!<br />
– Com licença, senhores! Posso entrar?<br />
– Pois bem, vamos então começar a reunião.<br />
– Sim! Pedi para que a Ester trouxesse bolachas e um cafezinho.<br />
118<br />
– Grande companheiro Genaro! É sempre um prazer recebê-lo<br />
em minha sala! Ainda mais para um assunto de tamanho interesse<br />
como esse! Fiquei muito satisfeito ao receber sua ligação, e certo de<br />
que poderei ser muito útil!<br />
– O prazer é todo meu, Excelência!<br />
– Ontem, quando me adiantou tudo por telefone, vou confessar<br />
quefiqueichocadocom tudo isso! Algome despertou umsentimento<br />
íntimo de revolta e insatisfação que me fez perder o apetite.<br />
– Pois é! Eu acompanhei todos os passos e quero uma avaliação<br />
de todo o material que tenho em mãos para que possamos viabilizar<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
este assunto o mais rápido possível, e digo isso independente da<br />
vontade do homem! Estou disposto a passar por cima da arrogância<br />
dele e levar o fato até o Congresso, se for o caso.<br />
– Claro! Isso também é do meu extremo interesse! Mas, e o<br />
rapaz? Já está melhor?<br />
– Eu o conheço bem! É um militante! Um pensador! Teve o<br />
seu brio ferido, é apenas uma questão de tempo para renascer das<br />
próprias cinzas, da sua desilusão, e se tornar uma arma poderosa<br />
contra o assédio moral!<br />
– Já ouvi falar muito dele! É realmente um idealista!<br />
– Como sabe, agora estou aliado a antigos representantes<br />
políticos. Abandonei de vez a assessoria jurídica do Deputado<br />
e estou com novos projetos em mente, voltados para a ética e<br />
cidadania, e para confrontar situações como essa. Na verdade,<br />
estou com uma atuação mais ampla do que antes, e isso tem me<br />
proporcionado mais condições de aplicar medidas mais enérgicas<br />
contra os abusos cometidos contra o ser humano em seu local de<br />
trabalho.<br />
– Essas fotografias são recentes?<br />
Sim! Todas são. Condizem com a verdade dos fatos e, nos<br />
documentos, também há todo um conjunto de provas.<br />
– Isso, entretanto, é uma faca de dois gumes. E quero deixar<br />
claro que o posicionamento que eu adotar não será reversível.<br />
– É o que também espero e, antes de tudo, quero deixar claro<br />
que a Frente do movimento também atuará no mesmo sentido e<br />
com toda a influência que temos para erradicar de vez esse tipo<br />
de situação. O país está estremecendo de cima a baixo com a<br />
revolta popular e as manifestações públicas. Se nós, que somos<br />
organizados, não pactuarmos da mesma filosofia de mudanças na<br />
forma de conduzir este país, ficaremos para trás.<br />
Exatamente! O povo já não aceita a corrupção que se instalou<br />
em todo lugar, o abuso de poder ou de autoridade, a imposição e a<br />
restrição dos seus direitos. As pessoas querem pão e cachaça, leite<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 119
e saúde, dinheiro e dignidade! É como se um gigante acordasse<br />
para pisotear os salteadores. E nós, mesmo que sejamos pessoas<br />
importantes e influentes, não podemos ficar alheios a tudo isso.<br />
Precisamos participar do processo de mudanças desde já.<br />
– Que coisa mais triste aconteceu, não é Edmara?<br />
– Todos gostam muito dele! Deveríamos fazer alguma coisa<br />
para que ele pudesse voltar.<br />
– Talvez se mandássemos uma carta a alguma autoridade,<br />
essa situação pudesse ser amenizada. Os membros da sociedade<br />
têm poder para cobrar das autoridades! Precisamos usar isso para<br />
ajudar quem é parceiro dos nossos trabalhos e sempre nos ajudou.<br />
– Ele sempre nos ajudou muito! É verdade! Sempre alegre e<br />
prestativo! Perdi a conta das vezes que nos atendia até mesmo nos<br />
dias em que estava de folga. Vamos, sim, fazer alguma coisa. Vamos<br />
reunir todo mundo hoje após o expediente e debater a respeito, o<br />
que acha?<br />
– Gostei da sua sugestão! Podemos marcar para as dezoito<br />
horas.<br />
– Tenho certeza de que todos irão se sensibilizar com o caso,<br />
afinal não podemos permitir que coisas assim aconteçam, nem com<br />
ele nem com qualquer outra pessoa.<br />
– As pessoas não respeitama lei. Sóquandocaem em um processo<br />
é que passam a dar valor. Temos que combater essas atitudes com<br />
pesos e medidas iguais, se não esses absurdos envolvendo chefes e<br />
empregados continuarão indefinidamente.<br />
120<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
– E isso é tudo, Monsenhor. Após muito pensar, essa foi a<br />
solução que encontrei para o assunto e quero propô-la para votação<br />
dos demais.<br />
– Que os fatos verdadeiros que são trazidos a essa Irmandade,<br />
na data de hoje, não escapem de uma solução, a menos que algum<br />
dos senhores tenha opinião em contrário.<br />
– Seja feito conforme proposto, Monsenhor!<br />
– Não há aqui nenhum dos irmãos que deseja o contrário!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 121
LEMBRANÇAS DA ROÇA<br />
Sentado num banco, tendo no ambiente o cheiro maravilhoso<br />
da dama-da-noite, estava apreciando a leitura de O Tronco do Ipê, de<br />
José de Alencar.<br />
Um romance bem simples e de fácil compreensão! Confesso<br />
que não gostei muito quando o personagem Mário tira de uma<br />
árvore um ninho de anus, encantado com a beleza dos ovos azuis,<br />
para mostrar à sua amiga de infância, e mais que isso, uma pessoa<br />
que estaria ligada a ele por toda a vida em momentos fantásticos de<br />
predileção do destino!<br />
O personagem Benedito, um preto velho, tido por muitos como<br />
um ente cuja ligação com o outro mundo se torna notória até hoje<br />
em alguns cultos da umbanda, aparece na obra com simplicidade e<br />
sabedoria, demonstrando a decência do povo escravo.<br />
As matas, a natureza, os detalhes da paisagem como um elo<br />
com a essência humana mais uma vez se mostram presentes na obra<br />
tão bem escrita por José de Alencar!<br />
Então se aproximou o fazendeiro. Foi chegando tímido e se<br />
sentou no outro banco. Dei uma respirada mais forte para perceber<br />
se não estava cagado. Continuei lendo o livro e, por algum tempo,<br />
não dei importância à sua presença até que ele puxou assunto.<br />
– Hoje, lembrei-me do primeiro dia em que fizemos o parto de<br />
uma vaquinha lá na fazenda do Tião Ozório, há muitos anos.<br />
Estranhei que ele falou com muita sobriedade! E, ao interromper<br />
122 a leitura do livro, olhei para ele e apenas disse: rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
– Sério? E quem é Tião Ozório?<br />
Na verdade, eu não esperava resposta; afinal ele tinha tantas<br />
alucinações.<br />
– Tião Ozório foi um dos grandes amigos que tive na vida!<br />
Passamos a infância juntos na fazenda. Ele era pobre e morava<br />
numa casinha com os pais.<br />
– É mesmo?<br />
– Sim! Isso foi há muitos anos! Um tempão atrás! Tu nem era<br />
nascido e ainda nem podia foliá as folhas de um livreto. Quando era<br />
hora de ir pra escola, meu pai passava pela estradinha, e ele tava lá<br />
indo a pé. Magrinho que só! A mochila veia nas costas fui eu que<br />
dei de presente quando tinha seis anos só, na festa de aniversário.<br />
Então, o pai velho parava e dava carona pro meu amigo de infância.<br />
Nós gritava, pulava no carro, e o pai sempre fazia festa! Derrapava o<br />
carro nas poças de água, brincávamos e a cantoria se estendia pelo<br />
caminho.<br />
– Que interessante, senhor Bento!<br />
Depois de um tempo a famía dele comprou umas terrinha lá<br />
pros lados do riachão.<br />
Fiquei ouvindo o que dizia o velho Bento, enquanto seus olhos<br />
pareciam querer penetrar no tempo e voltar aos anos que já viveu.<br />
Talvez essa seja a sua vontade de fugir, de voltar a ter uma vida que<br />
a idade e a loucura lhe tiraram.<br />
– Depois que a gente cresceu e formou famía me chamou mais<br />
minha muié pra padrinho. Ele que já era meu cumpadre, quase um<br />
irmão sempre foi muito boa pessoa que com muito custo conseguiu<br />
as coisas! Era um tempo tão bonito! Eu, todas as manhãs, acordava<br />
cedo, dava um beijo na minha veia antes mesmo dela se levantar<br />
pra me preparar o café. Eu ia pra minha roça cuidar dos bois que<br />
não paravam de parir. E o Tião, meu grande amigo, admirava de<br />
todo as suas prantação de milho e café. Não tinha experiência com<br />
gado.<br />
– E como foi o parto?<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
123
Ah, foi uma doidura! Tião chegou correndo em casa, gritando<br />
pra eu ir ajudar a sua vaca a parir. Corremos pra lá num galope! A<br />
vaca dele tava deitada no estábulo prestes a parir. O bicho sentia as<br />
dor do parto, e eu já tava muito bem acostumado. O Tião que num<br />
tava muito tranquilo com tudo aquilo, mas deu tudo muito certo.<br />
– E depois? O que houve?<br />
Ah, um bezerrinho muito formoso! Gordo que só! Que tempo<br />
aquele, eu fui muito feliz!<br />
Eu prestando atenção no velho, quando, de repente, ele se<br />
levantou e saiu pelo corredor para juntar seus bois, arrastando os<br />
tapetes que encontrava pelo caminho.<br />
A vida até parece um abismo! Cada pessoa, independente do<br />
que viveu, é um livro repleto de histórias! O que torna o destino de<br />
alguns mais cruel do que o de outros?<br />
Há tantas pessoas que aplicam golpes nos outros, que enganam<br />
justamente quem está em busca da realização de um sonho e<br />
acreditam que a justiça jamais virá bater em sua porta e levar mais<br />
do que se possa pagar naquele momento.<br />
E ela vem furtiva, num dia em que não se espera receber visitas.<br />
Um dia em que se acha que o expediente será tranquilo, e de repente<br />
a imposição do momento não dá o direito de escolha, e nem mesmo<br />
os gritos ou as palpitações do coração podem salvar do destino já<br />
ajuizado.<br />
Fiquei impressionado com as lembranças do velho fazendeiro<br />
num dos seus raros momentos de lucidez que pude perceber nesse<br />
tempo de internação.<br />
Depois, voltei a ler o livro, folheando páginas repletas de<br />
cultura!<br />
O boqueirão realmente era onde Iara seduzia com o olhar e o<br />
sorriso, convidando os desavisados para morrer nos encantos de<br />
uma enganação de sereia.<br />
Na verdade a vida é assim mesmo! As seduções convidam os<br />
124 desavisados a errar. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
As pessoas enganam com muitas falsas propostas, tiram o<br />
dinheiro dos outros e, já experientes na arte de enganar, não temem<br />
a ira que se esconde lá adiante.<br />
E há pessoas que sempre foram fiéis e acabam num abismo de<br />
loucura e desgosto, como o velho fazendeiro, milionário e infeliz,<br />
lembrando da vida com lucidez e saudade, e vivendo dias de<br />
loucura, sendo talvez esse o remédio encontrado por seu coração<br />
para minimizar a dor dos últimos dias que antecedem o descanso<br />
já tardio.<br />
A vida é difícil! Lutamos até vencer.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 125
A IGREJINHA<br />
126<br />
Já estava decidido que eu sairia da clínica no sábado. Houve<br />
pressão muito grande das pessoas que sempre confiaram em meu<br />
trabalho, e um acordo impositivo foi feito para que eu pudesse fazer<br />
o tratamento fora do ambiente de internação.<br />
Na realidade, ainda não sabia que a Irmandade se envolveria no<br />
assunto, uma vez que não sou membro, mas já esperava que o bloco<br />
comunista entrasse no mérito. São muitos amigos que conquistei<br />
ao longo dos anos! Pensadores, ambientalistas, políticos e, embora<br />
eu não tenha muita coisa, senão um salário ridículo para o tanto que<br />
trabalho e umas contas a pagar, possuo um reconhecimento pessoal<br />
muito satisfatório.<br />
É muito gratificante ser querido pelas pessoas! Ser uma imagem<br />
positiva de liderança e confiabilidade! Saber que há sempre quem<br />
nos apoiará nos momentos das dificuldades!<br />
Mais umavez deixei de tomar o medicamento. Queria participar<br />
da caminhada, pois, desde que havia chegado, a única atividade que<br />
fazia era terapia ocupacional.<br />
Contudo, já não havia mais espaço para novos desenhos<br />
nas paredes e não havia vontade de produzir nenhuma peça de<br />
artesanato. Simplesmente cansado de trabalhar a mente e o espírito,<br />
ansiava para que o corpo pudesse de novo saborear a sensação de<br />
produzir suor e odor.<br />
Quando a área externa foi aberta, comprei um refrigerante para<br />
refrescar o calor que fazia naquela manhã.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
A terapeuta ocupacional passou chamando os pacientes para<br />
que fossem para aárea de terapia e eu fiqueiaindaum tempo próximo<br />
à cantina, aguardando o coordenador da caminhada chegar.<br />
Lembro que éramos nove pessoas participando da caminhada:<br />
a Zuleide, uma paciente que tinha problemas com uso de drogas e<br />
fazia tratamento na clínica há mais de um ano. Ela sentia tremores<br />
nas mãos o tempo todo, como é comum nos pacientes com o seu<br />
quadro. Era ela a garota que eu vi logo nos primeiros dias com<br />
as mãos bem trêmulas devido à abstinência; o Fabrício, que na<br />
verdade nunca falou soube o motivo de estar na clínica; o Chico,<br />
que também não falava muito sobre os motivos que levaram à sua<br />
internação. Ele não se desgrudava do seu aparelho de som, sempre<br />
ouvindo músicas de periferia. Os outros participantes eram a<br />
Silviane, uma mulher mais velha; o senhor Pascoal; Baltazar; Rosa e<br />
o coordenador Sérgio.<br />
O caminho era de terra! Uma estradinha curta de chão batido<br />
que dava acesso a um pequeno povoado.<br />
Passamos por um local onde havia muito gado pastando numa<br />
grande área verde.<br />
Mais a frente havia uma vistosa plantação de milho. Um lençol<br />
verde e amarelo, cores do Brasil! Gralhas lá no meio da plantação,<br />
saboreando algumas espigas, lembraram-me do tempo em que eu<br />
levava frutas para as maritacas, e estas vinham buscar em minhas<br />
mãos a oferenda saborosa.<br />
As casas dos moradores contrastavam com a paisagem das<br />
montanhas repletas de eucaliptos.<br />
Chegamos a uma igreja pequena, onde havia uma mina d’água<br />
nos fundos.<br />
Devido ao calor intenso, fomos todos até lá saciar a sede. A água<br />
era fria e pura, muito boa! Até o barulho dela, tocando nas rochas,<br />
significava pureza e frescor!<br />
O dia estava quente, e por isso molhei os cabelos e os braços<br />
naquela água tão refrescante e límpida!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 127
Enchi as mãos de água, e, num gesto de libertação, jogava a<br />
água para o ar na direção da grama do descampado, com a intenção<br />
de molhar o ambiente ao meu redor, inclusive a mim.<br />
Depois, enquanto todos descansavam, fui até a porta da<br />
igrejinha para ver o seu interior, mas as portas estavam trancadas.<br />
Sérgio falou que naquela igreja não havia padre. Que, de<br />
tempo em tempo, vinha um padre do município vizinho para<br />
rezar a missa.<br />
Na porta lateral, havia uma fresta e, ao olhar o interior da igreja,<br />
vi enfileirados vinte bancos de madeira, todos muito empoeirados.<br />
O ar que exalava de dentro era de casa fechada há muito tempo!<br />
Senti como se os cantos dominicais ecoassem no interior daquela<br />
construção, evidenciando o passado.<br />
O altar da igrejinha era simples, muito simples! Havia uma<br />
mesinha com um lenço branco por cima. Duas cortinas de cor bege<br />
estampavam as paredes do altar e em tudo havia bastante poeira!<br />
Depois ao olhar em volta, notei que havia, do outro lado da<br />
igreja, outro descampado repleto de grama.<br />
Chico falou que quando era pequeno, no bairro onde morava,<br />
costumava descer um descampado como esse com pranchas feitas<br />
de papelão. Que ele e seus amigos não possuíam brinquedos e, por<br />
isso, as diversões preferidas eram a descida do descampado, as<br />
pipas e o jogo de futebol.<br />
Foi só isso. Não falou mais nada. Ele, por algum motivo, se<br />
sentia mal ao falar de seu passado.<br />
E chegou o momento de voltarmos à clínica pelo mesmo<br />
caminho.<br />
O sol estava muito forte, provocando até marcas da blusa nos<br />
braços, o que me fez tirar a blusa para queimar igualmente todo o<br />
dorso e não apenas os braços.<br />
Passando pelo coqueiral, Fabrício começou a gritar, admirando<br />
o eco de sua voz voltar das matas que cobriam a montanha bem<br />
128 distante, após os imensos coqueiros. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Chegamos a fazer piadas sobre uma resposta diferente daquela<br />
que esperava, provocada por alguém que estivesse nas matas.<br />
Gargalhadas! Suor pela caminhada! Contato com a natureza!<br />
Chegamos à clínica no horário da palestra, e eu estava um<br />
pouco cansado pelo exercício! Muito suado, após a palestra achei<br />
melhor tomar um bom banho.<br />
Foi a primeira vez que cheguei atrasado para almoçar,<br />
contrariando o horário; entretanto, não havia filas, e não precisei<br />
ficar esperando que ninguém fosse servido.<br />
Havia gostado do passeio! Foi bom conhecer um lugar diferente!<br />
Exercitar um pouco o corpo. Isso ajuda a mente a aliviar o stress<br />
deixado pelos problemas do cotidiano e proporciona mais saúde.<br />
Ainda mais com o soninho bom que tirei depois do almoço, só<br />
vindo a acordar quando um enfermeiro foi até o quarto dizendo<br />
que havia uma ligação para mim de uma das mulheres que ligavam<br />
para a clínica se identificando como parente, pedindo notícias<br />
minhas.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 129
VISITA À ALA DOS LOUCOS<br />
130<br />
Era o penúltimo dia na clínica.<br />
Haveria um culto evangélico no salão principal, e a terapeuta<br />
Claudete pediu que eu fosse com ela fazer a arrumação do salão.<br />
Fiquei interessado em ir, pois passaria por dentro de outra ala<br />
da clínica onde ficavam os pacientes crônicos, aqueles que possuíam<br />
um grau muito mais elevado de distúrbios mentais.<br />
Uma porta verde separava o ambiente da administração da ala<br />
dos crônicos.<br />
Ao passar pela porta, um cheiro forte de mofo e cigarros<br />
impregnava o corredor que dava acesso às escadas.<br />
Nas paredes havia marcas de mãos, fezes ressecadas, pichações<br />
e tocos de cigarros enfiados em buracos.<br />
O chão, embora estivesse limpo e ainda molhado, devido à<br />
limpeza das faxineiras, já exibia algumas cinzas de cigarro nos<br />
cantos.<br />
Um paciente passou correndo, segurando uma boneca bem<br />
velha e até esbarrou na Claudete, e logo em seguida vieram outros<br />
pacientes dizendo que iam pegar o ladrão e que eram da polícia, que<br />
iriam prender o ladrão e proteger a todos.<br />
Outro paciente olhava fixo para a parede, como se fosse uma<br />
estátua, e, de repente, deu um grito eufórico e começou a chorar<br />
deitado ao chão, contorcendo-se.<br />
Claudete falou que esses comportamentos eram normais<br />
no dia a dia daquela ala, onde os pacientes precisavam ter certa<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
autonomia para se desprender do stress da internação e viver<br />
um mundo onde a realidade não importa tanto quanto ter um<br />
pouquinho de felicidade e prazer.<br />
Nas paredes de um dos quartos, deparei com a pintura mais<br />
surreal que meus olhos já puderam ver! Havia, de uma extremidade<br />
a outra, inúmeros rostos com expressões que iam do ódio ao desejo<br />
de perdão e ao amor mais puro do mundo!<br />
Claudete contou que o artista que pintou a imagem<br />
com<br />
todos aqueles rostos se matou logo após terminá-la, e que nenhum<br />
paciente até então havia tocado naquela parede, pois acreditavam<br />
que quem nela tocasse também morreria. Por isso, ela estava tão<br />
limpa e conservada, diferente das demais.<br />
Subindo as escadas, uma paciente, chamando-me de pai, se<br />
apegou em minhas mãos e foi abraçada comigo até a entrada do<br />
salão, enquanto outra ficava perto, apenas observando.<br />
As cadeiras estavam fora do lugar, alguns bancos virados, as<br />
janelas sujas de batom e papéis rasgados espalhados pelo chão.<br />
Em pouco tempo, enquanto Claudete varria o chão, tirei as<br />
cadeiras e bancos do caminho e, em seguida, fui colocando tudo no<br />
lugar, de forma organizada.<br />
Arrumei as cortinas do altar e forrei de novo o lençol da mesa.<br />
Separei o lugar para os músicos e limpei a janela próxima da porta,<br />
enquanto Claudete ficou por conta da outra janela.<br />
Claudete foi falando sobre sua vida, que era casada e tinha uma<br />
filha. Que sentia solidão pelo fato de seu marido ser doente, e que o<br />
tratamento era muito doloroso para a família.<br />
Ao contar sobre os anos em que trabalha na clínica, falou de<br />
pacientes que chegaram e que cativaram a todos com seu jeito<br />
alegre, outros, com as manias ou loucuras inerentes à doença<br />
e, com muito carinho, falou da filha e dos brinquedos de que<br />
gostava.<br />
Tinha uma expressão alegre e saudosista! Falava com voz<br />
um pouco triste, melancólica, porém cercada do liquor da vida, e<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 131
132<br />
dizia estar vivendo por um motivo muito especial! Dedicava-se às<br />
pessoas.<br />
Após terminarmos, ela ainda me ofereceu um pedaço de doce<br />
que trazia na bolsa. Sentamo-nos num dos bancos e continuamos a<br />
conversar por alguns minutos.<br />
Uma paciente chegou à porta, mas, ao nos ver, foi logo embora.<br />
O tempo foi passando e deixamos tudo arrumado antes de sair.<br />
Fechamos a porta do salão para que nenhum paciente entrasse e<br />
revirasse tudo novamente.<br />
Havia uma paciente jogando roupas pela janela e dessa vez<br />
Claudete a impediu. A paciente, então, começou a gritar, falando<br />
vários palavrões e saindo em seguida, a passos fortes no chão.<br />
Claudete contou que aquela paciente jogava as próprias<br />
roupas fora, queimava ou rasgava, deixando tudo espalhado pelos<br />
corredores. Que não tinha problemas mentais, mas era viciada em<br />
drogas de maneira compulsiva! Que sua família a internou com<br />
medo de que traficantes do lugar onde mora continuassem a abusar<br />
dela devido ao vício, e ela aparecesse grávida em casa, após oferecer<br />
o corpo em troca de entorpecentes.<br />
Ao passar pela parede com a pintura, novamente olhei para<br />
aqueles rostos. Pareciam sair da parede, retratando não só uma<br />
inspiração artística surreal, mas também um infortúnio muito<br />
grande! O paciente, ao se expressar, deixou sair todos aqueles<br />
espíritos de sua alma, e os rostos desses espíritos estavam cheios<br />
de sonhos inacabados, de tristezas com a vida, de lágrimas roladas<br />
devido a um sofrimento de vida que passa pelo profissional, pelo<br />
pessoal e familiar. Crianças estampadas na parede com rostos de<br />
fome e frio, e adultos com a expressão do desgosto. Os que sorriam<br />
eram poucos, com traços mais distantes, mais frágeis! O artista se<br />
empenhou em deixar esse testamento de sua alma! É como se ele<br />
quisesse mostrar que a alegria até existiu em sua vida, mas estava<br />
muito distante dos últimos momentos.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Antes que pudesse sair pela porta, veio um último paciente até<br />
mim e, esbarrando em meu braço, falava algo que não dava para<br />
entender. Ainda insisti em perguntar-lhe o que era, mas ele saiu<br />
correndo pelo corredor aos gritos e batendo com as mãos na cabeça.<br />
Depois de algumas horas, fui tomar o café da tarde.<br />
Da mureta da cozinha, fiquei olhando aqueles pacientes que<br />
todos os dias eu via tomando o café nos bancos da ala dos crônicos.,<br />
Mas não imaginava que a ala onde ficavam era um lugar tão cheio<br />
de problemas! E mais ainda, que em meio a tantos problemas, eles<br />
simplesmente não têm preocupações e vivem uma vida de desapego<br />
e anarquia. Quem poderia imaginar que essas pessoas tão quietas e<br />
anestesiadas moralmente na mesa de café possuíssem a sua própria<br />
anarquia social, sem regras e sem exceções!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 133
SEGUE A SUA ESTRADA<br />
134<br />
Quando saí, os pacientes que estavam na área externa vieram se<br />
despedir. Abraços, beijos e desejos de um bom retorno, de felicidade<br />
e de sorte.<br />
Na verdade, nunca fui de confiar muito na sorte, mas agradeci<br />
pelo carinho de tantas pessoas. Penso que o que conduz alguém às<br />
vitórias é a preparação e não a fé ou a sorte.<br />
O mundo lá fora sempre será uma torrente de desgostos e<br />
desilusões, tanto para mim quanto para todos que resolvem lutar<br />
por um mundo melhor, ou que já nascem com essa chaga em seu<br />
rosto, de ser um ente defensor da cidadania e da legalidade.<br />
Ou eu decidia renascer das próprias cinzas em que minha vida<br />
se transformou e novamente fazer das brasas da minha justiça o<br />
delineador das arbitrariedades e do assédio moral, ou ficaria aqui<br />
para sempre, apagado e em cinzas.<br />
Antes de sair, deixei o seguinte recado fixado na parede em<br />
frente ao posto de enfermagem:<br />
Caros amigos!<br />
Desejo toda a felicidade do mundo a vocês! Todos vocês são uma parte da<br />
minha história e estarão eternizados para sempre no livro da minha vida!<br />
Obrigado a todos os funcionários que souberam me respeitar e ajudar no<br />
que estava ao alcance, nos dias em que aqui fiquei.<br />
Desejo muita luz a todos e espero que todos fiquem em paz!<br />
Obrigado por tudo!<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Caminhei pela estradinha de terra até passar pela ponte que<br />
atravessa o riachinho, e, ao chegar à rodovia, fiquei no acostamento<br />
esperando por um ônibus.<br />
Um ônibus do município não demorou muito a parar, como se<br />
já soubesse que eu o aguardava. Rotina de pessoas do interior, já<br />
acostumadas a se cumprimentarem pelos nomes a cada manhã, a<br />
caminho da cidade.<br />
Enfim, conheci o município de Balancena, lugar onde fiquei<br />
internado de forma compulsória, chegando aqui sedado e morto<br />
de espírito, numa ambulância, somente tendo sido viabilizada<br />
minha liberação depois que várias pressões externas e o bom<br />
relacionamento que adquiri junto à equipe médica se tornassem<br />
fatores decisivos para minha alta. O tratamento condicional externo<br />
foi aceito, tendo em vista que eu precisava voltar, pois ainda havia<br />
muita coisa para ser resolvida.<br />
Balancena manifestou aos meus olhos como uma cidade em<br />
crescimento, com bom acesso à rodovia e ruas ligando os bairros<br />
ao comércio de maneira fácil e rápida, indicando ser uma cidade de<br />
serviços e com grande mobilidade urbana!<br />
Chegando à rodoviária desse município de cerca de noventa mil<br />
pessoas, como foi dito pelo cobrador do coletivo, conferi se a cópia<br />
do boletim de ocorrência do assalto e o sumário de alta estavam na<br />
bolsa, pois eram os únicos documentos que eu levava comigo.<br />
Parei numa lanchonete da rodoviária, comprei refrigerante,<br />
coxinha e pastel de queijo. Estava com fome, pois já era meio-dia e<br />
o café que tomei na clínica foi às sete horas da manhã, como todos<br />
os dias.<br />
Comprei a passagem e fui aguardar na plataforma pelo ônibus,<br />
que só iria sair de Balancena às treze horas.<br />
Quando o ônibus chegou apresentei a passagem e entrei para<br />
aguardar o horário de saída na cadeira reclinável de número vinte e<br />
sete. Estava um pouco cansado do trajeto de vinte quilômetros que<br />
fiz de ônibus, em pé, até a rodoviária.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 135
Na volta pra casa, antes de sair da rodoviária, o motorista do<br />
ônibus avisou que seria necessário mudar o percurso pelo município<br />
de Pedras Negras, devido à manifestação popular em Congados,<br />
em retaliação contra as autoridades pelo pedido de construção de<br />
uma passarela na rodovia, onde muitos eram atropelados, e contra<br />
a corrupção que assolou o país.<br />
A participação popular no processo democrático tem crescido<br />
muito! As pessoas já não aceitam simplesmente ser alvo de todo tipo<br />
de abuso e se lamentar em silêncio, ostentando medo e ignorância<br />
no rosto.<br />
Ao contrário, as classes mais humildes estão buscando cada<br />
vez mais informação e lutando pelos seus direitos. O acesso à<br />
informação aumenta a cada dia. A imposição cultural e a influência<br />
tendenciosa dos homens que usam terno está esmaecendo cada vez<br />
mais, e até mesmo aqueles que trabalham na informalidade já têm<br />
uma conta de acesso às redes sociais.<br />
As cidades e rodovias estão em chamas! Populares ateiam fogo<br />
em pneus e trancam a rua, impedindo o fluxo de veículos em ambos<br />
os sentidos.<br />
A democracia é do povo! Pertence ao povo, mas os integrantes<br />
de poder público tomaram o país por muitos anos como sua posse,<br />
seu despojo. As manifestações se mostram como a revolta dos<br />
verdadeiros donos do poder.<br />
As pessoas querem ser ouvidas! Querem respostas do poder<br />
público às necessidades básicas como segurança pública de<br />
qualidade, construção de novos centros de saúde, melhorias<br />
urgentes na educação, construção de passarelas para evitar os<br />
constantes atropelamentos em rodovias, distribuição de verbas,<br />
punição à corrupção e melhor qualidade de vida.<br />
Nas cidades, organizam-se marchas com centenas de milhares<br />
de pessoas carregando faixas, pintando o rosto, provocando barulho<br />
136 e parando o trânsito. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
As pessoas querem ser vistas pelos políticos! Não são mais<br />
os meros fantoches que a cada quatro anos são lembrados e<br />
depois esquecidos por mais quatro. Querem que seus direitos<br />
constitucionais sejam respeitados!<br />
As pessoas querem cidadania e já não aceitam a truculência<br />
do poder público, pois são os cidadãos que o sustentam, desde a<br />
educação, saneamento básico, segurança pública, saúde e todas<br />
as regalias que por anos foram usufruídas pelos representantes da<br />
população, e que agora enfrentam um gigante irredutível que não<br />
tem liderança formada. É o desejo democrático em sua manifestação<br />
plena!<br />
No caminho de volta, avistei na rodovia um caminhão de lixo<br />
recolhendo pedaços de pneus, partes de carros, e até mesmo um<br />
sofá, que foi jogado à beira do asfalto. Pensamentos enleados, mas<br />
havia algo de humanitário na ação dos catadores! Não sei se estavam<br />
fazendo aquilo por mera obrigação ou pela consciência de terem<br />
uma rodovia mais limpa e sem o risco de acidentes provocados pelo<br />
lixo que é abandonado no trecho da cidade de Balancena.<br />
Mais à frente, havia uma ferrovia à direita da rodovia e um trem<br />
enorme passava por ela!<br />
Olhando da janela aquela locomotiva com mais de sessenta<br />
vagõescarregados, foi bom ter uma lição prática do desenvolvimento<br />
humano, transformando o mundo, escoando a produção pelos<br />
trilhos cujas imagens ilustravam os livros de história nos tempos<br />
de escola.<br />
Conselheiro Leopardo, que cidade agradável com feitios de<br />
cidade grande e o modo característico do povo quietinho da terra<br />
desse estado tão carismático! Povo que adormece e deixa a cidade<br />
sob a suave brisa e cheiro das flores!<br />
Lembro-me que o ônibus passou por uma avenida repleta<br />
de comércios, porém, no modo de vestir das lindas mulheres que<br />
andavam pelas calçadas, uma tradição tão apaixonante quanto o<br />
próprio ar que se respirava pela janela ao colocar a cabeça para o<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 137
lado de fora do ônibus para apreciar, mais de perto, tanta formosura!<br />
Município de Pedras Brancas! Que paz! Quantas flores ao longo<br />
da passagem! A maioria de cor roxa.<br />
O ônibus passava por ruasrepletas de ipêsque, de tão carregados<br />
de flores roxas, formavam nas calçadas um lençol de flores jogadas,<br />
tal qual nas cenas de cinema!<br />
Muitas pessoas tiravam fotografias para levar de lembrança.<br />
Chegaram até a pedir ao motorista para passar mais devagar por<br />
uma rua onde, nos dois lados, os ipês-roxos disputavam olhares<br />
admirados e cheios de uma ternura que há muito tempo não se via.<br />
Coisa de olhar de criança, desses que, depois que chega a idade<br />
adulta e as mazelas sociais e sentimentais roubam os sorrisos<br />
e o prazer, já não se revelam mais, manchados de desgosto pelos<br />
pecados alheios, surrados de lágrimas!<br />
Os ipês perfilados, enquanto o ônibus passava revistando com<br />
muitos olhares uma perfeição que somente a natureza sabe oferecer!<br />
Em compensação, na Praça Sagrada Cruz, no centro da cidade,<br />
o ônibus demorou a passar, pois havia dezenove carros estacionados<br />
em local proibido. Não havia sequer um dos motoristas que pudesse<br />
comparecer ao local para tirar o veículo. Foram necessárias várias<br />
manobras para que a viagem pudesse continuar, formando um<br />
congestionamento com vários veículos.<br />
Nem é necessário comentar a beleza que é o município de<br />
Pedras Negras, pois todos já sabem! É um lugar maravilhoso! Lindas<br />
construções do Barroco e ladeiras de pedras! As montanhas parecem<br />
pepitas de ouro bem escuro, talvez preto! Sim, várias pepitas de<br />
ouro preto jogadas do céu, formando uma cortina de montanhas<br />
que a visão chega a ficar ofuscada de tamanha admiração!<br />
Um cheiro agradável de café invadiu uma das ruas onde<br />
passamos! Um sentimento de doce saudade e de simplicidade!<br />
Na varanda de uma casa, uma senhora de idade já avançada<br />
jogava muitas sementes para os pombos que tomavam conta da<br />
138 calçada. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
O ônibus deixou a cidade e o mato esverdeado foi se revelando<br />
nos dois lados da rodovia.<br />
Depois de uma cortina de palácios naturais onde a mão do<br />
homem não pôde bulir, a visão da metrópole! Com um céu cinzento<br />
de tanta poluição e uma infinidade de prédios de cores escuras!<br />
Nem mesmo o sol da estação penetra em suas frestas onde raio<br />
algum tem espaço.<br />
Não há luz natural, de fogo que queima tal qual o sol e oferece<br />
calor, somente as luminárias que iluminam a escrivaninha do<br />
escritório e os postes da rua onde os carros se enfileiram e as pessoas<br />
passam umas por cima das outras.<br />
Não há ventos e nem mesmo a chuva consegue passar pela<br />
cortina de poluição que o amor não pode abrandar.<br />
As cinzas queimando, deixando no ar a fumaça negra, tornando<br />
o lugar seco e sem vida. Ali nem mesmo os cactos querem crescer,<br />
pois o ar é pesado!<br />
Nesse momento, meus olhos se acenderam como fogo e pude<br />
sentir o calor com que queimaram. Essa era a resposta natural do<br />
renascer das cinzas. Percebi que eu estava vivo e pronto para a<br />
guerra contra qualquer um que ousasse, em qualquer momento, se<br />
armar de maldade contra os ideais puros, fortes, valentes e dignos<br />
que sempre levei em meu coração, e os transformei em ações.<br />
Ao entrar nos domínios da metrópole, o ar, que era puro,<br />
tornou-se ruim e pesado! Senti pena das pessoas nos pontos de<br />
ônibus lotados. Todas tão humildes! Trabalhadores que alimentam<br />
o sistema social.<br />
No rosto, a expressão de cansaço, depois de um dia inteiro<br />
trabalhando.<br />
Devido ao horário de grande fluxo de veículos, o ônibus<br />
demorou a chegar à rodoviária. Ao passar por um bar, tomei um<br />
trago de Salinas e acendi um cigarro, esperando minha prima trazer<br />
as chaves de casa, pois quando fui internado ela as guardou até o dia<br />
de meu retorno.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
139
Ela contou que tomou conta dos animais enquanto fiquei<br />
internado, e que, como era noite e eu estava cansado, seria melhor<br />
ir para casa descansar que no outro dia levaria embora os pequenos.<br />
Foi bom saber que tudo estava bem! Sempre gostei muito dos<br />
animais, das plantas, da natureza e do meio ambiente! Trato os<br />
meus animais de estimação como se fossem filhos e não aceito que<br />
qualquer animal seja maltratado em minha presença.<br />
Ao chegar a minha casa, tudo estava muito organizado! A prima<br />
falou que veio aqui fazer faxina para que, quando eu chegasse, não<br />
tivesse com o que me preocupar.<br />
Dentro do armário havia vários pacotes do meu salgadinho<br />
preferido e na geladeira, sucos e leite.<br />
A Célia, que tem um bar na rua, chamou-me para comer<br />
bolinhos que estava preparando. Tomei um banho, passei gel nos<br />
cabelos, fiz a barba que já estava grande, passei meu perfume, que<br />
ficou para trás naquele dia em que fui trabalhar, e fui lá um pouco.<br />
Muitas pessoas disseram que ficaram preocupadas ao ver as<br />
notícias no jornal.<br />
Todos os que me viam no bar paravam para saber das novidades.<br />
Fiquei um pouco no bar, tomei duas cervejas e depois dormi<br />
um sono muito pesado, provocado pelo cansaço da viagem.<br />
140<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
O DESPERTAR<br />
Havia um comunicado para eu comparecer ao serviço<br />
imediatamente após ser liberado da clínica de tratamento<br />
psiquiátrico no município de Balancena. Recebi a correspondência<br />
em casa, entregue por um agente dos Correios, com aviso de<br />
recebimento que eu havia de assinar.<br />
Estava assinada pelo gerente Lino e não tratava de nenhum<br />
assunto específico, apenas pedia meu comparecimento.<br />
Após o banho, vesti uma roupa social e fui até o ponto de ônibus<br />
aguardar o coletivo.<br />
O trânsito estava intenso naquela manhã, com muitas buzinas<br />
e pessoas apressadas para chegar ao trabalho.<br />
Tudo devido à iminência nunca avisada de manifestações<br />
populares que interrompiam o fluxo de veículos.<br />
Quando cheguei à repartição, fui diretamente até a recepção, a<br />
fim de evitar ser notado pelos demais funcionários. Sei que muitos<br />
deles parariam os afazeres para vir fazer perguntas, e eu queria<br />
apenas saber do que se tratava a convocação e ir embora. Afinal,<br />
estava licenciado de qualquer atividade laboral.<br />
Não é fácil ser um renascido! As pessoas olham como se<br />
estivessem diante de um ente ou do céu ou do inferno, olham com<br />
surpresa, medo ou curiosidade.<br />
Ao ser encaminhado pela recepcionista até a presença dele,<br />
notei um olhar de pessimismo em seu rosto.<br />
– Sente-se! Precisamos conversar.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 141
– Sim, e o que deseja, senhor Lino?<br />
– Antes de mais nada, saber como está.<br />
– Estou em recuperação devido a todos os transtornos que o<br />
serviço me causou.<br />
– E o assalto? Está mais tranquilo agora?<br />
– Se eu falasse que sim, estaria mentindo. Não se esquece<br />
simplesmente das coisas ruins que acontecem conosco assim tão<br />
facilmente.<br />
– E em relação à antiga repartição? Você guarda alguma mágoa?<br />
– Senhor Lino, não estou entendendo aonde o senhor quer<br />
chegar com essa conversa.<br />
– Só estou querendo te dar bons conselhos. Você sabe que o<br />
sistema é assim, em todos os lugares: nos hospitais, numa grande<br />
montadora de automóveis, na polícia, nos governos. Tudo gira em<br />
torno de um interesse comum e, por isso, alguém vez ou outra se<br />
sentirá restringido em seus direitos. Mas é prudente ao homem<br />
avaliar as consequências dos seus atos!<br />
– Senhor Lino, o senhor está querendo defender alguém com<br />
seus conselhos? Ou será que estou entendendo errado?<br />
– Sim! Estou. Pelo bem da empresa, pela imagem e pela sua<br />
própria segurança. Você é o elo mais fraco, e, justamente por<br />
acreditar no seu potencial como profissional, estou querendo<br />
oferecer-lhe uma segunda chance. Uma oportunidade única para<br />
esquecer tudo o que se passou e começar do zero.<br />
– Desculpe-me, mas acho que o senhor ainda não entendeu<br />
muito bem, ou talvez não tenha assimilado as coisas que<br />
aconteceram comigo ao longo dos últimos três anos, por isso vamos<br />
desconsiderar que me disse essas palavras.<br />
– Você tem certeza disso?<br />
– Quando se provoca o brio de uma pessoa como eu, os efeitos<br />
podem ser devastadores! Não que eu não tenha vontade de me<br />
vingar de todo o sistema, eu tenho, mas tenho também a minha<br />
ideologia bem arraigada! Eu não escolhi ser um intelectual a lutar<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
142
pela ética e pela constitucionalidade, isso está em mim como parte<br />
perene do meu ser!<br />
– Eu sei, e admiro sua ideologia! Só estou querendo minimizar...<br />
– Desculpe-me interrompê-lo, senhor Lino, mas creio que<br />
nossa conversa não chegará a lugar nenhum. Meu último esforço<br />
para evitar a adoção de medidas mais drásticas já se esgotou. Se eu<br />
pudesse descrever o que tenho sentido nesses últimos dias, relataria<br />
ao senhor o despertar de um vulcão repleto de ânimo para alcançar,<br />
de qualquer forma, os objetivos a que me propus. Deverei carregar<br />
a minha cruz e o peso dela será lutar pela dignidade e pela honra do<br />
meu caráter, dia após dia. Em todos esses lugares que o senhor citou,<br />
também existem pessoas que, como eu, não aceitam a injustiça e o<br />
assédio moral. Sei que assim como eu despertei, outros haverão de<br />
despertar e, em todo lugar onde houver qualquer ilegalidade contra<br />
o homem, ali haverá revolta e mudança! É isso que toda nação está<br />
descobrindo com todas essas manifestações que estão parando o<br />
país. Ninguém aceita mais a ilegalidade e o abuso.<br />
Percebi que o gerente fitou os olhos em mim e observava tudo<br />
que eu dizia, surpreso ou com ódio, naquela situação difícil em que<br />
era obrigado a atuar, supostamente orientado ou ordenado pelo<br />
gerente do bloco intermediário, senhor Barcelos.<br />
– Na verdade, senhor Lino, a gota d’água foi quando o gerente<br />
Wladmir interferiu em minha segurança pessoal e nas minhas<br />
condições de trabalho. Ele não está acima da lei e em hipótese<br />
alguma irei permitir que se faça de juiz sem ter justiça em seu<br />
espírito. Só lhe peço uma coisa, senhor Lino, e agora falo como<br />
funcionário da sua repartição: que não interfira, que sua repartição<br />
não interfira, pois a minha ira não é contra essa repartição, e o que<br />
quer que ocorra, será resolvido unicamente entre mim e a outra<br />
repartição, a justiça trabalhista, a mídia e o governo. Não pretendo<br />
trazer nenhum transtorno para essa repartição, mas já não me<br />
pertencem os limites das minhas ações, pois tudo já está em nível<br />
global! Não sou eu como pessoa que estou iniciando uma guerra, é<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 143
a própria cidadania se manifestando em mim, e digo que ela não irá<br />
refrear o seu desejo.<br />
– Está bem! Eu tentei ajudar.<br />
– Está cumprindo sua função, senhor Lino. Não o culpo<br />
por isso. É um profissional exemplar! Como o senhor disse,<br />
em todos os lugares existe o sistema, contudo, se olharmos no<br />
que se transformou o bloco intermediário, veremos que há uma<br />
blindagem aos gerentes e chefes de setor, enquanto os demais<br />
funcionários recebem diariamente todo tipo de represálias e<br />
punições. Há um surto de assédio moral que mancha qualquer<br />
relação social ou trabalhista, que deveria ser pautada na ética,<br />
na honra, no caráter, no profissionalismo e na Constituição<br />
Federal, pois foi devido a muita luta e sangue derramado que ela<br />
se consolidou, após a Ditadura Militar. Os gerentes e chefes de<br />
setor não estão acima da lei nem são infalíveis. Ao contrário, têm<br />
cometido erros injustificáveis na presença de todos, expondo a<br />
carência de limites aos seus atos de abuso de poder, ao passo<br />
que não existem punições ou castigos a quem está na linha de<br />
comando. Isso, senhor Lino, denuncia a fragilidade de direitos<br />
a que os funcionários de escalão mais baixo estão submetidos,<br />
e se isso, conforme relatou, existe em todas as organizações de<br />
trabalho, é um câncer a ser combatido constantemente e com<br />
todas as forças necessárias até que a cura se manifeste e seja<br />
aplicada com rigor. Costumo dizer que a gameleira é uma árvore<br />
que não cura nenhuma doença, por isso esperar uma solução<br />
vinda da gameleira é ilusão eterna.<br />
Ao me despedir do senhor Lino e deixar sua sala, por intuição,<br />
sabia que ele iria ligar para o gerente do bloco intermediário para<br />
cientificá-lo do teor da conversa.<br />
Eu estava decidido a fazer frente ao problema. O assédio<br />
moral precisa acabar, e uma pessoa que nasceu com o espírito<br />
revolucionário jamais se calaria perante a opressão moral e o abuso<br />
144 de poder. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Contudo, havia outras coisas para resolver naquele momento.<br />
Durante a internação, a conta de um parcelamento bancário ficou<br />
em atraso, e o banco, além de encaminhar meu nome para o serviço<br />
de proteção ao crédito, bloqueou o pagamento do mês a título de<br />
recuperação de crédito em atraso.<br />
Fui falar com o advogado Wagner, que é conhecido há algum<br />
tempo, a fim de lhe pedir orientações sobre o caso. Queria aproveitar<br />
que estava no centro da cidade para resolver tudo que estivesse<br />
pendente.<br />
Após falar com ele, fui até a unidade da polícia que possui<br />
circunscrição sobre o endereço da agência e solicitei o registro<br />
dos fatos com todo o amparo legal, tendo em vista que o banco, ao<br />
realizar o bloqueio do pagamento, que já é uma miséria, impediu<br />
que alguns medicamentos fossem comprados e que fossem pagas as<br />
contas de água e de energia.<br />
Saindo de lá, fui até o juizado de relações de consumo para<br />
abrir a ação contra o banco. Levei as cópias dos documentos e a<br />
síntese dos fatos, constantes no embasamento legal fornecido pelo<br />
advogado.<br />
Na verdade, o Wagner é um profissional confiável, sempre<br />
muito solícito e profundo conhecedor da lei, notadamente sobre a<br />
proteção dos interesses individuais e difusos.<br />
Após entrar com a ação, parei num restaurante popular para<br />
almoçar, tendo em vista que havia passado a manhã toda em<br />
reunião com o senhor Lino, depois fui visitar o advogado e de lá<br />
fui direto ao juizado dar entrada na ação indenizatória contra o<br />
banco.<br />
Minha ideologia estava renovada! Por muito tempo estive<br />
envenenado por víboras, e não havia esperanças de receber remédio<br />
da gameleira. E deixando de esperar pela cura contra o veneno, de<br />
uma árvore tão passiva como a gameleira, foi necessário morrer<br />
espiritualmente para que, no renascimento, um ser mais forte e<br />
valente surgisse.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
145
Despertado de ânimo, corpo, alma e ideais, naquela manhã fiz<br />
uma importante ligação para o Genaro, para que me acompanhasse<br />
na reunião já marcada com um representante parlamentar, o<br />
Deputado Freitas.<br />
Meu novo estado espiritual era decidido! Forte, valente e digno!<br />
Eu já havia passado por inúmeras privações de direitos, muitas<br />
tentações ao corpo e ao caráter. Já não havia sentimento, senão uma<br />
revolta moral contra o sistema em sua manifestação mais singular<br />
e objetiva.<br />
Heureca! Eu sou um pensador com ideais revolucionários!<br />
Invendível! Irredutível! Endêmico!<br />
146<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
DESVIANDO O OLHAR<br />
Já havia se passado muito tempo desde a última vez que vi a luz<br />
da justiça clarear meus olhos já incrédulos na sociedade humana,<br />
tendenciosa e materialista.<br />
Nesse tempo, vivi um período de arbitrariedades das quais não<br />
tem noção o mais injustiçado dos homens de boa fé e dignidade de<br />
caráter.<br />
Hoje pela manhã, recebi uma ligação do serviço, avisando que<br />
o funcionário Fábio, da antiga repartição, exigia a minha presença<br />
naquele local, a fim de responder a um apenso produzido pelo<br />
gerente Wladmir.<br />
Embora o antigo gerente já não fosse mais meu chefe, e eu<br />
estivesse disposto a levar para a esfera judicial qualquer coisa que<br />
ousasse fazer contra mim, compareci à repartição para saber do que<br />
se tratava. A ilegalidade do apenso era evidente, mas eu não poderia<br />
esperar outro comportamento, pois com o tempo aprendi que ali os<br />
homens, quando desejam poder, ousam passar por cima da lei para<br />
alcançar seus objetivos, sendo necessário o amparo da própria lei<br />
para frear-lhes o impulso hedonista.<br />
A reunião foi inquisitiva por parte do Fábio, havendo duas<br />
testemunhas presentes no local, uma saleta de reuniões e despacho<br />
de documentos da repartição.<br />
– Estou aqui a mando do senhor gerente de repartição Wladmir,<br />
com o objetivo de produzir um apenso em seu desfavor, pelo fato<br />
de, quando foi assaltado, ter usado indevidamente o nome desta<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 147
epartição, causando-lhe prejuízo de imagem. Quero saber o que<br />
tem a relatar.<br />
– Ora, Fábio, não tenho nada a declarar para o senhor, ou<br />
melhor, para você. E, como já deveria saber, digo que nem deveria<br />
ter vindo aqui participar de tudo isso. Um verdadeiro teatro em que<br />
nós somos os fantoches e aquele gerente ordinário, o público.<br />
– Como assim? Está depreciando o gerente?<br />
O espanto foi geral no interior da sala, onde se esperava uma<br />
postura amedrontada, e de repente houve uma resposta seca e fria,<br />
que ecoou como som desagradável.<br />
– Diga ao seu chefe que eu não tenho nada a declarar para ele,<br />
pois ele é o seu chefe, e não meu. Não estou trabalhando para ele<br />
e, sendo assim, somente presto contas sobre o serviço à repartição<br />
onde trabalho e ao público. Ainda mais, sobre sua inquisição, na<br />
condição de cidadão, acho conveniente somente prestar contas à<br />
autoridade competente.<br />
Nesse momento, desviando os olhos e olhando fixo e com<br />
expressão confusa para o computador, fitei os olhos nele esperando<br />
dele o mesmo. Contudo, minha expressão era irredutível! Eu<br />
já estava no limite da aceitação. Já havia se esgotado qualquer<br />
fragilidade do corpo. Olhos de fogo queimam os que olham para ele.<br />
– Tem certeza de que não quer expor os seus motivos? Esses<br />
apensos podem provocar sua demissão.<br />
– Eu insisto que não tenho nada a declarar ao seu chefe de<br />
repartição. E, além disso, caso queira anotar o que estou dizendo,<br />
eu o acuso de estar agindo em retaliação à minha condição de<br />
profissional, criando um documento sem validade jurídica–<br />
unicamente para me trazer o transtorno de sair da minha casa...<br />
Uma tosse forçada de um dos presentes interrompeu o que<br />
eu dizia, mas nem mesmo essa pausa abrandou minha ira naquele<br />
instante...<br />
– E como eu estava dizendo, estou acusando-o de agir em<br />
retaliação à minha condição profissional, criando um documento<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
148
sem validade jurídica unicamente para me trazer o transtorno de<br />
sair da minha casa e vir até aqui, pois ele já estava sob investigação<br />
judicial quando elaborou esses apensos, e, mais que isso, já se<br />
encontrava sob suspeição da casa legislativa por causa dos assédios<br />
profissionais que há muito tempo vem exercendo. Eu não tenho<br />
nada a declarar para vocês dois.<br />
– Bem, mas em relação ao assalto que sofreu? Isso foi veiculado<br />
na mídia. O que tem a dizer?<br />
– Eu não tenho nada a declarar, Fábio, já disse. O processo que<br />
está sendo movido contra ele irá adiante, independente de quantas<br />
pessoas estejam envolvidas. Sempre pactuei que a lealdade de<br />
um profissional para com a chefia não deve, em hipótese alguma,<br />
significar fidelidade cega e plena aos desejos e aspirações do chefe.<br />
Mais uma longa tosse interrompeu o que eu dizia...<br />
E continuando:<br />
– Antes disso, o funcionário deve ser dotado de idoneidade<br />
moral, deve ter o direito de pensar e agir conforme a lei. A imposição<br />
jamais conduzirá esse país a melhores condições de existência e<br />
nossa sociedade, recém-acordada com as manifestações populares,<br />
está se tornando irredutível! Pouco a pouco as formigas estão<br />
percebendo que, se estiverem juntas, nem mesmo o maior dos<br />
animais poderá enfrentá-las. Um gigante que acorda! Assim é o<br />
desejo do povo, e quem não partilhar dele, em algum momento será<br />
esmagado juridicamente, ou agora, ou daqui a um mês, um ano ou<br />
mais. O tempo do abuso de poder já acabou! A sociedade brasileira<br />
já se cansou de ser limitada e um novo tempo de mudanças já<br />
começou.<br />
Com dificuldade, ele digitava tudo e, no interior do seu ser, havia<br />
concordância com o que eu dizia, mas a fidelidade cega o impedia<br />
de demonstrá-la, fosse em palavras ou simplesmente em olhar nos<br />
olhos do seu adversário. Suava frio e denotava nervosismo.<br />
Ele não conseguia acordar e contrariar o sistema. Sentiase<br />
orgulhoso de ser fiel a qualquer preço, pois achava que esse<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 149
comportamento lhe traria uma carreira de sucesso. Eu até o<br />
entendo. Muitas pessoas têm medo da pobreza. Têm medo de ter<br />
que economizar o pão por carência de recursos. Numa sociedade<br />
interesseira. somente quem tem dinheiro fala com coragem e aquele<br />
que depende dela abaixa a cabeça para responder e não olha nos<br />
olhos.<br />
– Sobre o emprego, senhor Fábio, nessa vida somente não<br />
alcança o sucesso quem não se empenha para chegar até ele. Não<br />
devemos temer o futuro, e sim nos prepararmos dia após dia para<br />
tempos em que haja escassez de recursos. Não podemos avaliar<br />
nossa situação profissional pelo medo de perdermos o emprego,<br />
pois isso é justamente o que move toda uma trama de influência e<br />
torna o homem escravo do sistema. Quem está agindo conforme a<br />
lei deve aguardar o amparo dela e isso é justamente o que eu sempre<br />
fiz, pois, de outro modo, o gerente Wladmir já teria concretizado<br />
todos os seus planos contra mim. Não foi em vão eu ter-me rebelado<br />
socialmente contra ele e seus homens de confiança, porque isso<br />
destruiu o espírito de divindade que foi criado naquele lugar. Eles<br />
são homens, você é homem. Devemos respeitá-los como chefes do<br />
serviço e não nos curvarmos como se fossem dotados de poderes<br />
sobre-humanos.<br />
– Está bem! Creio que não há mais nada para eu fazer aqui.<br />
Espero que melhore e que fique bem! Sua insubordinação ainda vai<br />
conduzi-lo ao fracasso.<br />
– Desejo o mesmo ao senhor! Que melhore... e, antes de mais<br />
nada, tenham a bondade de ir para o quinto dos infernos!<br />
Saí da saleta de reuniões, bati a porta com força e, no interior da<br />
sala, como se não houvesse ninguém lá dentro, reinava um silêncio<br />
absoluto!<br />
Antes de ir embora, fui falar sobre o ocorrido com o Donato,<br />
gerente de setor.<br />
Na verdade, eu deixava claro que estava na repartição para<br />
executar o meu trabalho, porém já havia se esgotado a situação de<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
150
harmonia entre a antiga repartição e eu, e no que estivesse ao meu<br />
alcance, não traria problemas para a nova repartição, mas também<br />
não poderia deixar de ir atrás dos meus direitos.<br />
Quando provam o poder, as pessoas costumam ficar cegas a<br />
ponto de mudar o modo de pensar e agir, a colocação das palavras<br />
e os círculos de amizades, se é que as pessoas poderosas possuem<br />
amigos.<br />
Isso é uma coisa que não me importa muito descobrir. Sei que<br />
possuo amigos e o poder não me agrada, afinal, gosto de sorrir e<br />
receber sorrisos verdadeiros em retribuição. Se eu tivesse poder,<br />
perderia esse bem precioso e somente receberia sorrisos falsos e<br />
bajuladores.<br />
E depois, fui embora. Fui para casa descansar, afinal, estando<br />
em tratamento médico, não é bom que uma pessoa fique exposta ao<br />
stress profissional de maneira tão brusca como ocorreu hoje.<br />
Às vezes, mandar alguém ir para o quinto dos infernos produz<br />
automaticamente um inimigo a mais, ou até dois, afinal, até o<br />
tinhoso anda reclamando das mercadorias que lhe são oferecidas,<br />
só que o grande ensinamento que se tira disso tudo é que eu não<br />
estou nem aí !<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 151
A DEMOCRACIA É DO POVO<br />
Era linda a manhã do dia da Independência do Brasil! Um sol<br />
forte, no céu sem nuvens, clareava o dia.<br />
Tomava meu café da manhã com bolos, biscoitos, gemada com<br />
canela, que adoro, uma banana amassada com aveia e pão integral.<br />
Tudo parte da dieta que comecei a fazer para entrar em forma.<br />
No jornal da manhã, o repórter alertava os motoristas sobre o<br />
trânsito, devido à concentração da maior manifestação popular já<br />
vista em todo o mundo!<br />
Pessoas do país inteiro se reuniram com um único ideal<br />
democrático: manifestar a indignação contra a corrupção política,<br />
o abuso de autoridade dos órgãos públicos, a falta de médicos e de<br />
unidades de saúde em todo o país. E exigir melhorias na educação,<br />
melhores condições de saneamento, mais saúde, melhores condições<br />
de vida, efetividade na prestação de serviços públicos, creches,<br />
escolas, dignidade e cidadania.<br />
Em todas as cidades, em cada estado, milhões de pessoas nas<br />
ruas, de rostos pintados, apitando, soltando foguetes, levando<br />
cartazes, faixas e bandeiras. A repressão policial, em seu nível mais<br />
elevado, atuava para conter as depredações, de um lado repudiada<br />
pela massa popular, e de outro, como último escudo dos políticos<br />
do país.<br />
É o despertar de uma nação que já não suporta ver o dinheiro<br />
público sendo gasto pelos políticos e desviado de obras que nunca<br />
terminam, sendo sempre superfaturadas.<br />
152 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Um gigante que saiu do seu leito, e não há quem o faça parar.<br />
Despertou e agora tem fome e sede.<br />
Os governos convocam as forças policiais para reprimir o povo,<br />
masaté por eles está lutando a população, exigindo uma equiparação<br />
de salários em nível nacional, aumento de efetivo e melhores cursos<br />
de preparação dos servidores.<br />
Claro, sempre existem vândalos infiltrados nas manifestações,<br />
porém são uma minoria que se aproveita desses momentos para<br />
saquear lojas, furtar objetos e fazer arrastões.<br />
Pouco a pouco, a rua fica cheia! Todos os meus amigos estão<br />
indo para a manifestação.<br />
Apósalimentar os animais de estimação, quesãoaminhamelhor<br />
companhia, e subir no telhado para jogar sementes e migalhas dos<br />
restos do café para os pássaros, fui até lá conversar com eles, e me<br />
chamaram para subir no caminhão junto com todos.<br />
O rosto pintado, borrado de tinta até os cabelos, a blusa já<br />
rasgada numa das golas, aos gritos até mesmo as gotas de saliva<br />
quaram o ar.<br />
Sob foguetes e gritos de ordem, o caminhão deixa a rua de casa<br />
com cerca de cinquenta pessoas na caçamba, segurando faixas e<br />
gritando sons de revolução.<br />
No trânsito, os motoristas buzinando, participam daquele<br />
movimento novo de revolta social. Pessoas dispostas a eliminar<br />
o câncer do maquiavelismo humano, que se instalou em todos<br />
os setores públicos, objetivando subjugar a justiça, o caráter e<br />
a honra para poder agir visando exclusivamente aos interesses<br />
pessoais.<br />
Pouco tempo depois, já não havia condições de o caminhão<br />
transitar. Havia uma multidão de milhares de pessoas bloqueando<br />
a passagem até a Avenida Antônio Charles, que dá acesso ao centro<br />
da cidade.<br />
Eram muitas pessoas! A avenida, mesmo larga, não comportava<br />
aquela imensidão de gente.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />
153
154<br />
Descemos do caminhão e continuamos andando a pé entre os<br />
carros até chegar à avenida.<br />
Muitas faixas, canções, gritos ensaiados, rostos pintados e<br />
barulho. Pessoas soltavam foguetes, outras, enchendo balões de gás<br />
da varanda de casa, soltavam balões com frases contra a corrupção<br />
do governo, a precariedade do setor de saúde, a defasagem da<br />
segurança pública, os impostos elevados e a falta de transparência<br />
dos órgãos governamentais. Em pouco tempo, o céu estava repleto<br />
de balões com faixas de protesto.<br />
Havia um aparato considerável de policiais garantindo a<br />
segurança nos locais por onde aquela imensa massa de pessoas<br />
passava, mas como atuar contra o povo? A polícia, a guarda, os<br />
agentes de trânsito ou até mesmo os seguranças particulares. A<br />
população sempre se manifestou de forma desorganizada, fazendo<br />
quebradeiras, ateandofogoempneusemateriaisdiversos, entrando<br />
em conflito com os órgãos de defesa social. O poder público, nos<br />
últimos meses, deparou com algo inesperado: a manifestação<br />
pacífica e sem liderança definida. As pessoas simplesmente<br />
lotam as ruas e, sem quebrar um só galho de árvore ao longo do<br />
percurso, exprimem o desejo democrático de tomar para si o que<br />
foi subtraído pelos governantes e representantes políticos. Não há<br />
um arruaceiro, uma liderança definida para ser pressionada pelas<br />
autoridades a cessar a manifestação. Os manifestantes relatam<br />
que é o desejo único de todos pelas reformas cobradas.<br />
Se não há dano algum ao patrimônio, se não há violência ou<br />
ilegalidades cometidas pelos populares, o governo não tem como<br />
proibir que o povo vá para as ruas e demonstre todo o furor do seu<br />
descontentamento.<br />
Fazia um tempo que não me sentia assim tão vivo! Pelo suor<br />
de minha pele, muitas mágoas sem solução eram eliminadas e<br />
queimadas pelo vento. A tristeza porejava e esmaecia, e a felicidade,<br />
como ar puro, penetrava nos pulmões que se inflavam.<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Pessoas ao longo da minha vida tentaram reduzir o brilho que<br />
sempre ardeu em meus olhos. Cheguei a morrer sentimentalmente,<br />
mas hoje posso dizer que renasci das minhas próprias cinzas, tal<br />
qual um pássaro de fogo que, ao se apagar, volta mais forte, valente e<br />
digno do seu calor vital, temível e irredutível ao se fazer proprietário<br />
do céu em que voa.<br />
A manifestação chegava ao centro da cidade e havia muita<br />
correria, de pessoas e de carros. Uns queriam fugir do imenso<br />
tumulto, que, anunciado pelas autoridades, chegava a quatrocentos<br />
e cinquenta mil pessoas.<br />
Um imenso telão, colocado por um comerciante na fachada<br />
de seu comércio, na Rua dos Gabirus, bem na esquina com a Rua<br />
Coritiba, num prédio verde, mostrava os atos de manifestação em<br />
todo o país, transmitidos ao vivo por uma rede de televisão. Aquilo<br />
inspirava as pessoas! Demonstrava que a luta por dignidade e<br />
respeito havia tomado conta de todo o país.<br />
Subi num dos palanques da manifestação e lá de cima<br />
cantávamos e gritávamos, incentivando as pessoas a fazer barulho.<br />
A cada hora, um se revezava ao microfone, quando a voz, já rouca,<br />
impedia de continuar a falar.<br />
Lá de cima não era possível ver o final da manifestação, que<br />
se estendia por todos os quarteirões da Avenida dos Paraíbas até a<br />
Praça Raul Sóbis.<br />
A Avenida Principal estava tomada! A grande quantidade de<br />
manifestantes roubou o brilho do desfile da Independência. As<br />
câmeras de televisão foram posicionadas para o possível ponto de<br />
confronto entre o aparato de segurança e a frente da manifestação<br />
popular.<br />
Nos prédios, pessoas agitando bandeiras, soltando balões e<br />
gritando.<br />
– A vida é bonita! Nós temos de lutar!<br />
– A vida é bonita! A gente luta até vencer!<br />
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156<br />
– Somos todos guerreiros trazendo flores nas mãos e ideais<br />
consolidados.<br />
A população já não aceita ver a Constituição Federal ser<br />
devorada por quem está no poder, nos seus diversos níveis, como se<br />
ela fosse um pão açucarado e macio que satisfaz somente a fome de<br />
quem pode usufruí-la.<br />
Uma voz calada jamais verá justiça. Se não houver luta, mesmo<br />
que a custa de muitas feridas, a ilegalidade sempre existirá. Da<br />
vitória, porém, não gozam os que dormem e se calam.<br />
Eu decidi que, se perdesse minha identidade, jamais poderia<br />
lutar pelos meus sonhos.<br />
Eu renasci das cinzas para fazer história! A minha história!<br />
Ideologia que marca os batimentos do meu coração.<br />
Eu não abri mão dos ideais nem mesmo quando a opressão<br />
roubou lágrimas dos meus olhos e até mesmo quando houve a<br />
desistência da vida.<br />
Eu sou a imagem dessa grande quantidade de vozes que está<br />
nas ruas, e agora eu sei que tudo que fiz foi por amor! Sim, amor!<br />
Amor à justiça e à igualdade! Um sentimento puro que não se<br />
mancha pela pressão, pela opressão ou pelo assédio. .<br />
Estava renovado de forças e sentia uma felicidade imensa<br />
no coração por estar no meio do povo, unindo os ideais para<br />
verdadeiramente promover a Independência do Brasil.<br />
Eis que, enquanto eu gritava, um me passou o microfone do<br />
palanque, já cansado e rouco, e me disse:<br />
– Fala alguma coisa aí que já não aguento mais gritar.<br />
Voz! O povo tem voz, mas para ser ouvido deve falar com<br />
propriedade! Sem medo ou receio. Eu sempre acreditei na justiça!<br />
Segurei o microfone, voltei para a multidão o meu olhar<br />
queimando e o corpo retinto, brilhante de suor, e comecei a falar.<br />
E o que eu disse...<br />
rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA
Bem, isso é segredo do povo, de todos aqueles que estiveram<br />
comigo na manifestação. Uma grande nação que, acima de qualquer<br />
dificuldade da vida, luta até obter a vitória! Também o sabem as<br />
autoridades presentes, mas amanhã já não será segredo. Sairá em<br />
todos os jornais, de todos os Estados do país.<br />
Decidi ser feliz, e isso ninguém poderá me tirar!<br />
Fim!<br />
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