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RENASCENDO DAS CINZAS(1)

Baseado na imortalidade da Fênix, conta a história da morte espiritual do ser. As perseguições morais no serviço público em um ambiente semelhante a uma instituição de policia militar. Traça um paralelo entre a participação popular e a corrupção do sistema democrático.

Baseado na imortalidade da Fênix, conta a história da morte espiritual do ser. As perseguições morais no serviço público em um ambiente semelhante a uma instituição de policia militar.
Traça um paralelo entre a participação popular e a corrupção do sistema democrático.

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ENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 1


VITOR MOREIRA<br />

Belo Horizonte - 2014<br />

2 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 3


Copyright@2014 by Vitor Moreira<br />

Email para contato: vitormoreira@vitormoreira.com.br<br />

Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, sejam quais forem<br />

os meios, sem a permissão, por escrito, do autor.<br />

Ophicina de Arte & Prosa<br />

Editora: Rachel Kopit Cunha<br />

www.ophicinadearteprosa-kopitpoetta.blogspot.com<br />

arte.prosa@gmail.com<br />

31-9128-7441<br />

Capa: Miriam Carla Alves - Vitor Moreira<br />

Diagramação: Miriam Carla Alves<br />

Revisão: Rachel Kopit Cunha<br />

Ilustração: Petrede<br />

Fotos da capa: Fotos das manifestações populares pelo Brasil, em 2013.<br />

M835<br />

Moreira, Vitor.<br />

Renascendo da cinza / Vitor Moreira. – Belo Horizonte:<br />

Ophicina de Arte & Prosa, 2014.<br />

160 p. : il. ; 15 x 21 cm.<br />

Bibliografia: 140-144<br />

ISBN: 978-85-88750-77-7<br />

1. Processos Mentais/ética 2. Vida 3. Confiança I.<br />

Título. II. Petrede.<br />

CDD – 22. ed. – 153<br />

Catalogação-na-fonte - Segemar Oliveira Magalhães CRB/6 1975<br />

4 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Universo Humano<br />

Pintura do próprio artista Vitor Moreira, do ano de 2004, onde,<br />

conforme relata, há a expressão de toda a sua criação artística,<br />

baseada na unidade do universo interior de cada indivíduo.<br />

Entende-se que cada indivíduo é bom ou ruim, tem seus mitos,<br />

suas crenças e seu caráter, entretanto, no interior de cada um, há o<br />

consenso, onde se nota que todos, independente de qualquer coisa,<br />

até mesmo da disposição das suas prioridades de vida (posição<br />

dos astros, planetas, cometas) dentro do seu universo pessoal,<br />

idealizam um céu de estrelas, luz e mistérios e uma Terra de prazer<br />

e realização. O Universo Humano é a base de toda criação artística<br />

de Vitor Moreira.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 5


TENTE OUTRA VEZ<br />

(Paulo Coelho/ Raul Seixas)<br />

Veja!<br />

Não diga que a canção está perdida<br />

Tenha fé em Deus... tenha fé na vida<br />

Tente outra vez!...<br />

Beba! (Beba!)<br />

Pois a água viva ainda tá na fonte<br />

(Tente outra vez!)<br />

Você tem dois pés para cruzar a ponte<br />

Nada acabou! Não! Não! Não!...<br />

Oh! Oh! Oh! Oh! Tente!<br />

Levante sua mão sedenta<br />

E recomece a andar<br />

Não pense que a cabeça aguenta se você parar<br />

Não! Não! Não! Não! Não! Não!...<br />

Há uma voz que canta<br />

Uma voz que dança<br />

Uma voz que gira<br />

(Gira!) Bailando no ar<br />

Uh! Uh! Uh!...<br />

Queira! (Queira!)<br />

Basta ser sincero e desejar profundo<br />

Você será capaz de sacudir o mundo<br />

Vai! Tente outra vez! Huuum!...<br />

6<br />

Tente! (Tente!)<br />

E não diga que a vitória está perdida<br />

Se é de batalhas que se vive a vida<br />

Han! Tente outra vez!...”<br />

<strong>RENASCENDO</strong> DA CINZA - VITOR MOREIRA


SUMÁRIO<br />

INTERNAÇÃO ..................................................................... 09<br />

PERSEGUIÇÃO .................................................................... 20<br />

CAMPO MINADO ............................................................... 42<br />

SUICÍDIO .............................................................................. 47<br />

CAMPO DE CONCENTRAÇÃO ....................................... 54<br />

A HORTA ............................................................................. 60<br />

A VENDINHA ..................................................................... 61<br />

O LIXADOR DE CHAVES ................................................. 63<br />

O REJEITADO ..................................................................... 65<br />

O FAZENDEIRO ................................................................. 67<br />

OS BOIS ............................................................................... 69<br />

A VELHA............................................................................. 73<br />

O CORREDOR .................................................................... 74<br />

MÃOS TRÊMULAS ............................................................ 76<br />

A RODINHA DE BRASAS ................................................. 79<br />

OS REMÉDIOS DO DESEJO ............................................. 80<br />

A IMAGEM DA ESTRADA ................................................ 82<br />

O FRIO E AS NEBLINAS................................................... 86<br />

OS EMBATES ...................................................................... 88<br />

<strong>RENASCENDO</strong> DA CINZA - VITOR MOREIRA 7


DESENHOS NA PAREDE. ................................................ 90<br />

AS TROCAS DE OBJETOS ............................................... 94<br />

VISITAS ................................................................................ 96<br />

A ANSIEDADE ................................................................... 99<br />

OS AMORES PROIBIDOS................................................ 103<br />

O TROTE ............................................................................ 106<br />

A PEGADINHA DO BONECO ........................................ 109<br />

O PRESENTE .................................................................... 115<br />

LEMBRANÇAS DA ROÇA.............................................. 122<br />

A IGREJINHA .................................................................... 126<br />

VISITA À ALA DOS LOUCOS ........................................ 130<br />

SEGUE A SUA ESTRADA ............................................... 134<br />

O DESPERTAR .................................................................. 141<br />

DESVIANDO O OLHAR .................................................. 147<br />

A DEMOCRACIA É DO POVO ....................................... 152<br />

8<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


INTERNAÇÃO<br />

A partir desse momento, não admito mais falar com o senhor.<br />

Não sou um cachorro para ser tratado dessa maneira e exijo respeito<br />

da sua parte. Querem que eu vá à força, como se eu fosse um produto<br />

do sistema, um androide programado para apenas cumprir ordens,<br />

sem ter vontade própria. O que está acontecendo não é por minha<br />

vontade. Tenho o direito de escolher o que é melhor pra mim.<br />

– Acalme-se, senhor! – disse uma mulher que acompanhava um<br />

enfermo no ambulatório do hospital.<br />

– Que acalmar o quê? Manda que ele chame lá os vinte que falou<br />

que vai chamar pra me segurar, já que ele sozinho não tem coragem.<br />

Não sou homem de receber uma ameaça dessas e ficar calado. Que<br />

ele volte e cumpra a ameaça que fez, estou esperando. Não aprendi<br />

a ser medroso e vim parar aqui justamente por causa disso. Eu sei<br />

que tenho direitos, sei disso, e mesmo que tenha de ir até as últimas<br />

consequências para tê-los respeitados, tenham a certeza de que<br />

farei isso sim, às custas de muito sofrimento, mas nada muda o meu<br />

caráter.<br />

– Eu entendo, senhor, mas é necessário – replicou a enfermeira.<br />

– Eu vou aguardar em minha sala – disse o médico. Esse<br />

aí é insubordinado realmente, como andam comentando lá na<br />

repartição onde trabalha. Já veio com a fama e agora demonstra<br />

valentia perante um profissional com curso superior.<br />

– Está vendo, senhor? Tudo isso poderia ter sido evitado se<br />

tivesse cooperado.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

9


– Não tenho medo dele. Que enfie o seu diploma e sua arrogância<br />

onde melhor se encaixar. Aliás, hoje acordei sem medo de ninguém<br />

porque oquehavia para me prejudicar já se esgotou. Já estou cansado<br />

de tantas perseguições, de tantas arbitrariedades cometidas contra<br />

a mim. Um sistema que não mede as consequências do que fazem<br />

os seus representantes, que rasgam a cada manhã a Constituição<br />

Federal e limpam a boca com ela ao terminar de tomar o café sujo<br />

e apodrecido que lhes mata a fome. Hoje mesmo quero dar cabo da<br />

minha vida.<br />

– Então, pelo menos tome o remédio e não será necessário<br />

tomar a injeção que o médico receitou.<br />

– Você me garante que isso não me fará dormir? Não posso<br />

ser internado. Em casa há os meus animais para eu cuidar. Tenho<br />

também que acionar a justiça contra o gerente da repartição onde<br />

trabalho. Se eu não for até a minha casa cuidar dos animais e não for<br />

até o juiz denunciar tudo que está acontecendo comigo e com outros<br />

funcionários, não haverá outra pessoa que possa fazê-lo por mim.<br />

– Pode ficar tranquilo, senhor. Isso é apenas um calmante que<br />

irá ajudá-lo a relaxar um pouco. O senhor passou por momentos de<br />

grande abalo físico e mental e precisa de ajuda!<br />

Tomei então o medicamento receitado, acho que era um<br />

clonazepan, caindo no sono logo em seguida.<br />

Deitado numa cama de hospital, tinha ao pé a mochila e<br />

os sapatos que foram tirados pela enfermeira. A roupa estava<br />

amassada e nos braços havia fina camada de suor, ainda brilhante.<br />

O desodorante nos sovacos já nem era notado devido à quantidade<br />

de suor já impregnado na camisa.<br />

Um bom tempo depois fui acordado pelo Genaro, ex-assessor<br />

do deputado Juarez. Ele ficou sabendo da notícia por meio de uma<br />

ligação que fizeram do hospital para os números mais frequentes<br />

de contato do celular. Queriam alguém próximo que pudesse<br />

acompanhar o meu caso. Tentavam localizar algum parente para<br />

decidir sobre a internação.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

10


– Ora, o que faz aqui?<br />

– Calma! Procure se acalmar. Não precisa se levantar. .<br />

– Que dia é hoje? Há quanto tempo estou aqui?<br />

– Esfria! Só se passaram algumas horas desde que chegou.<br />

– O que aconteceu?<br />

– Procure não pensar nisso agora. Tudo está sendo resolvido da<br />

melhor forma.<br />

– Preciso ir embora para minha casa. Tenho que cuidar dos<br />

meus animais. Não confio em ninguém aqui. São todos iguais!<br />

Todos exercendo suas funções e incapazes de decidir alguma<br />

coisa.<br />

– Olha, é melhor você se acalmar porque já está decidida sua<br />

internação. Não há nada que possa ser feito no momento.<br />

– Mas eu vim aqui apenas para me consultar. Vim de livre e<br />

espontânea vontade e pedi pra falar com o psicólogo ou psiquiatra.<br />

Como esse povo ousa querer determinar o rumo da vida das pessoas<br />

assim como se fossem meros objetos? Acham que não temos o<br />

direito de escolher o que é melhor para nós? Só querem saber dos<br />

interesses das funções e cargos que exercem.<br />

– Olha, procure se acalmar. Sobre os seus animais, tente<br />

encontrar alguém que possa tomar conta deles até seu retorno. É por<br />

pouco tempo. Tente cooperar porque nós sabemos o que o sistema<br />

faz. Testam-nos a todo instante e procuram sempre nos deixar em<br />

situação desfavorável! Quem está no topo procura se proteger de<br />

tudo, até mesmo da própria lei. Você terá que ficar internado, isso é<br />

fato! Mas eu irei fazer o possível para te ajudar, tenha certeza disso.<br />

– Onde está meu celular?<br />

– Está com o médico. Aliás, ele relatou em súmula tudo o que<br />

aconteceu. Como você foi capaz de ameaçá-lo?<br />

– Foi ele quem me ameaçou. Disse que chamaria vinte<br />

seguranças para me segurar enquanto me aplicaria uma injeção<br />

para que eu ficasse sedado. Ele quer me internar à força e eu não<br />

quero ficar numa clínica de loucos.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 11


– Não há nada disso relatado na súmula de sua internação.<br />

Consta que você estava nervoso e foi necessário que ele se retirasse<br />

daqui com medo de uma possível agressão. Isso pode trazer<br />

problemas para você.<br />

– É mentira. Havia várias pessoas perto e todas o viram dizer<br />

que iria chamar os seguranças para me segurar.<br />

– Escute: ele é o chefe desse pessoal. Acha mesmo que seriam<br />

testemunhas contra o próprio chefe e depois serem perseguidas<br />

até se verem obrigadas a sair do hospital? Vai por mim. Não se<br />

precipite. Você está num ninho de cobras! Cuidado onde pisa! Isso<br />

é o sistema.<br />

Ao perceber o que Genaro falava, senti um nojo pela sociedade<br />

brasileira por ser tão omissa, tão passiva e permitir que o que deveria<br />

ser democracia se tornasse imperialismo colono, onde os poucos<br />

que gerenciam os vários impérios determinam tudo conforme seu<br />

bel-prazer, como se fossem os donos, e não executores da regra.<br />

O médico mandou uma enfermeira trazer e aplicar o<br />

medicamento. Estava esperando algum familiar comparecer, mas no<br />

seu celular não havia telefone de parentes próximos. Estava repleto<br />

de números de defensores do meio ambiente, estudantes, empresas<br />

e órgãos, mas não havia muitos números de amigos ou familiares.<br />

Então, após me ligarem e já imaginando a gravidade dos fatos, tive<br />

de colaborar e vir aqui falar contigo. Sabemos que tudo está sendo<br />

muito arbitrário, mas não perca a razão pela emoção do momento.<br />

– Eu saio daqui preso, demitido, ou até mesmo amarrado; por<br />

minha vontade, não haverá internação. Não podem me obrigar.<br />

Afinal, vim aqui me tratar de livre e espontânea vontade e agora,<br />

por causa de uma mentira desse fulano, querem me sedar e me levar<br />

para um lugar desconhecido.<br />

– Tente entender...<br />

Que entender o quê? – disse aos gritos. Logo você vem falar<br />

isso comigo, Genaro? Você acaba de ser vítima de uma mulher que<br />

o perseguia lá no gabinete até ser exonerado. Como uma vítima<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

12


em potencial do sistema, você me pede para entender esse abuso<br />

que está sendo feito contra mim? Eu não sou louco, só estou com<br />

depressão.<br />

– A situação não é tão simples. Você se lembra de alguma coisa?<br />

De como chegou ao hospital e o que fez antes disso?<br />

Lembro-me de estar conversando com uma médica. Ela me<br />

receitou um calmante lá no pronto-atendimento e depois eu<br />

estava aqui nesse ambulatório. Esse outro médico apareceu na<br />

sala querendo me sedar sem ao menos perguntar o que eu estava<br />

sentindo ou de onde vim. Nada disso. Chegou falando em sedativo<br />

como se eu fosse objeto de uma experiência de laboratório, um<br />

animal arredio!<br />

– Mas, e antes disso? Tente se lembrar de alguma coisa.<br />

– Não sei. Estou com a cabeça doendo muito! Não sei o que<br />

aconteceu. Alguém falou alguma coisa?<br />

– Você chegou carregado por uma pessoa aqui no hospital com<br />

uma expressão de choque no rosto. Muito abatido, se queixando de<br />

uma forte batida com a cabeça e, como seu plano de saúde é desse<br />

hospital. você conseguiu um atendimento mais efetivo!<br />

– O que está dizendo, Genaro? Não está vendo a arbitrariedade<br />

que estão cometendo contra mim? Atendimento mais efetivo?<br />

Ora, o que é isso? Como se já não bastasse ser tão perseguido lá<br />

naquele lugar, ainda sou perseguido onde vim procurar ajuda?<br />

– Conte-me o que houve por último. Talvez eu possa ajudar.<br />

– A gota d’água foi minha avaliação de produção desse ano:<br />

uma nota baixa que irá interferir em meu salário. A justificativa<br />

foi que eu não fui trabalhar no dia 25 de fevereiro, sendo que<br />

nessa data eu estava de férias e, ainda por cima, operado por causa<br />

daquele assalto no início do ano. Não sei se você se lembra do<br />

assalto.<br />

– Claro que me lembro!<br />

– Eu estava com o braço imobilizado. Ele inventou que faltei ao<br />

serviço para me prejudicar.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 13


– Que filho da mãe! Como teve coragem de fazer isso?<br />

– Ah, Genaro, você sabe como é isso, como tudo funciona: se<br />

não é do time da arbitrariedade acaba virando alvo dela. Não vê<br />

o seu caso? Você sempre foi tão eficiente em seu serviço! Sempre<br />

tão prestativo e, pelo que eu sei, livre de qualquer mancha em<br />

seu caráter. De repente, é exonerado durante as férias, e nem foi<br />

pelo e sim pela chefe do gabinete. Você está mais desamparado do<br />

que eu!<br />

– São coisas da vida...<br />

– A situação do assalto também me deixou muito abalado!<br />

Esse segundo assalto de anteontem. A polícia não conseguiu<br />

prender os dois ladrões e estou sem documento algum. No serviço,<br />

não consegui alguns dias de licença, embora estivesse abatido<br />

demais para trabalhar. É que o gerente do bloco intermediário<br />

ordenou a todos os gerentes de repartição que não liberassem<br />

os funcionários, nem, por qualquer motivo os dispensassem do<br />

serviço. Querem retomar a produção que foi abalada pela onda<br />

crescente de insatisfação não declarada dos funcionários.<br />

– Tem coisas que realmente nos deixam com ódio do sistema!<br />

Mas eu sei me controlar. Tente se lembrar do que aconteceu hoje<br />

pela manhã, pois ninguém sabe como veio parar aqui e o que<br />

aconteceu antes. Só você pode dizer por que havia sangue em sua<br />

roupa.<br />

– Eu não matei ninguém, eu...<br />

– Calma. Não se desespere! O sangue era seu mesmo. Havia um<br />

corte e estancaram o sangue. Você deve ter caído e batido com a<br />

cabeça.<br />

– Não consigo me lembrar de nada. Deve ser o efeito do remédio.<br />

– O que aconteceu? Desse jeito, você nos mata do coração!<br />

Acabou de sair na televisão! Uma pessoa filmou tudo. – disse um<br />

colega de serviço ao chegar ao ambulatório, sendo rapidamente<br />

puxado pelo braço pela enfermeira que dava recomendações.<br />

– O que vocês dois estão fazendo aqui, Seixas?<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

14


– Ordens do gerente Lino. Viemos ver como você estava e<br />

acompanhar sua viagem até a clínica onde ficará internado, em<br />

outra cidade.<br />

– Não vou ficar internado em nenhuma clínica. Estou um pouco<br />

nervoso é com toda essa situação que estão criando.<br />

– Olha: vou ter que ir embora, mas conte comigo para o que<br />

precisar. Deixarei você com os seus conhecidos, mas lembrese<br />

do que eu disse. Algo será feito enquanto estiver lá, não se<br />

preocupe.<br />

– Tudo bem, Genaro! Obrigado por ter vindo!<br />

Um olhar que parecia revelar muitos segredos ficou obscuro no<br />

ambiente. E assim o Genaro foi até o médico e conversaram sobre<br />

coisas que eu não conseguia ouvir.<br />

Talvez Genaro o estivesse pressionando para que medisse as<br />

consequências do que ocorrera naquele ambulatório antes da sua<br />

chegada. Ele sabia que havia exageros no relatório. Pude ver que o<br />

médico ficou pensativo e, depois de um tempo, o Genaro foi embora<br />

carregando a sua pasta de documentos. Levava uma expressão de<br />

descontentamento em seu olhar e, antes de sair, olhou para trás,<br />

fitando o médico.<br />

O gerente Lino era o responsável pela repartição onde eu estava<br />

trabalhando e se encontrava num congresso onde se discutiam<br />

temas alusivos ao segmento da empresa. Era uma pessoa jovem, que<br />

eu não conhecia muito bem, pois estava na nova repartição há menos<br />

de dois meses, após ser viabilizada a minha troca de repartição pelo<br />

Genaro e pela assessoria do deputado Juarez, que pressionou o<br />

gerente do bloco intermediário a realizar a troca, ou de outro modo<br />

seria adotada a melhor condição legal para representação dos meus<br />

direitos trabalhistas, o que causaria um desconforto muito grande<br />

à imagem da empresa.<br />

Enquanto o Seixas e o Jarbas conversavam com a enfermeira,<br />

fui sentindo um sono pesado e, enquanto digitava mensagens de<br />

socorro no celular para que alguém chamasse a imprensa e viesse<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 15


me ajudar a me livrar das garras dessas pessoas, cada vez mais<br />

sentia os olhos se fechando.<br />

Houve tempo suficiente para enviar algumas mensagens<br />

avisando sobre os animais, para que alguém viesse até aqui<br />

pegar a chave de minha casa e ir até lá colocar ração. Uma delas<br />

endereçada a Marluce, com quem eu estava saindo há algumas<br />

semanas, apenas nos conhecendo até então, sem maior intimidade.<br />

Falei que eles precisariam de alimento. Em outra, eu comentava<br />

o que o médico havia feito e pedia para avisarem à mídia ou à<br />

polícia.<br />

Fui sentindo sensações estranhas! Uma palpitação no coração<br />

e dificuldade de coordenar palavras. Uma dor forte na cabeça e<br />

no peito, como se tivesse sido atingido por uma barra de ferro.<br />

A lucidez foi diminuindo e então resolvi permanecer de pé para<br />

não dormir novamente, pois ali tudo girava contra mim e o passar<br />

das horas era tendencioso aos interesses daquelas pessoas que se<br />

encontravam no ambulatório do hospital.<br />

Caí no chão e o Jarbas ajudou-me a levantar. Eu estava decidido<br />

a não aceitar o sedativo nem a ficar internado ali. . Aguardava a<br />

chegada da imprensa, caso alguma das mensagens que enviei tivesse<br />

surtido efeito. .<br />

Os funcionários da clínica ficavam parados, assim como os dois<br />

do meu serviço, todos esperando que eu apagasse, que caísse no<br />

sono, para decidirem o meu destino. E eu resolvido a permanecer<br />

de pé a qualquer custo.<br />

Caminhei até o banheiro e, ao urinar, expeli um pouco de<br />

sangue. Então, já preocupado com aquela situação, olhei pela<br />

janela e vi que estava no segundo andar. Meu coração batia forte<br />

e desamparado! Havia uma grade e tentei forçá-la para escapar do<br />

hospital, mas foi em vão.<br />

Alguma coisa estava acontecendo, mas eu não sabia o que<br />

era. Senti que minha vida corria perigo e lutei contra o efeito do<br />

medicamento.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

16


Ao olhar meu braço, vi que havia uma marca recente de agulha,<br />

mas eu não me lembrava de ter tomado injeção. Devia ter sido<br />

aplicada enquanto eu estava dormindo sob o efeito do comprimido<br />

que me deram.<br />

Percebi, então, que já tinham me dado uma dose de sedativo,<br />

mas meu corpo lutava bravamente contra seu efeito.<br />

Algo me dizia que eu não poderia cair no sono novamente.<br />

Que eu precisava lutar e ser valente. Não me deixar abater pela<br />

presunção do sistema, pela arrogância das pessoas que o controlam<br />

ou pela maldade e inveja que seus corações carregam.<br />

Do lado de fora, estavam aquelas pessoas paradas no ambulatório<br />

sem a coragem de chamar os tais seguranças cuja ameaça foi o<br />

que me fez odiar estar aqui. E embora por fora estejam todos ali<br />

cumprindo a função que lhes foi atribuída, sei que, por dentro, ou<br />

estão admirando minha resistência feroz, ou odiando minha pessoa<br />

devido aos últimos fatos ocorridos ali no hospital.<br />

Quando saí do banheiro, todos os olhares eram apreensivos,<br />

aguardando que eu dormisse. Então caí pela segunda vez e, já<br />

sentindo dificuldade de me levantar, eis que aplicam em meu braço<br />

direito outra dose de medicamento que havia sido receitado pelo<br />

médico. Foi a enfermeira que esteve conversando comigo durante<br />

todo aquele tempo..<br />

Ao olhar no íntimo dos seus olhos, pude ler até mesmo o que<br />

sua alma frágil sentia. Ela torcia por mim e vi que, pelo seu modo<br />

de me olhar, se culpava por não ter tido coragem de descumprir a<br />

ordem que lhe foi dada, exercendo a sua função com o coração em<br />

pedaços ante todo o sofrimento que me via passar.<br />

Um frágil grito de dor...<br />

Nesse momento, senti o coração disparando e as mãos<br />

trêmulas, como se eu fosse o objeto de uma experiência.<br />

Desespero! Despreparo emocional! Fatos passando pela minha<br />

cabeça e algumas lágrimas rolando do rosto quente queimando<br />

como brasas ardentes!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

17


18<br />

Cenas de monstruosidade passavam diante de meu rosto e<br />

eu pensava em várias coisas ao mesmo tempo. Ainda disposto a<br />

ficar de pé, fui percebendo que as pessoas ao meu redor foram se<br />

transformando em figuras espectrais e se dissolvendo... Esmaeciam<br />

como a bruma do horizonte em dia de forte neblina!<br />

Ainda consegui perceber que o celular caiu de minha mão.<br />

Um dos espectros foi ficando maior em minha direção e, como<br />

uma sombra, pegou o celular e o carregou consigo como despojo.<br />

Eu tentava pegar o espectro, mas minhas mãos eram pequenas! Eu<br />

trazia as mãos para perto do rosto e elas continuavam pequenas. Não<br />

conseguia tocar o rosto com elas, pois pareciam estar queimando<br />

constantemente como uma brasa eterna.<br />

Sons! Muitos sons sem nexo chegavam aos meus ouvidos,<br />

turbinados por muitos ecos! Não conseguia entendê-los, pois<br />

estavam todos muito carregados!<br />

Que cenas horrendas! O que estava acontecendo? Tentava falar<br />

e nada saía de minha boca. Somente grunhidos misturados com<br />

muita baba, que chegava a escorrer pelo rosto.<br />

Podia ver os espectros, mas não conseguia ir até eles, pois o<br />

chão era muito macio e, quando eu tentava caminhar, meus pés<br />

afundavam. Eu voltava a colocar os pés onde estavam antes, numa<br />

parte mais firme.<br />

Novamente, tentava me comunicar com aquelas figuras<br />

espectrais e não conseguia. Não saíam palavras de minha boca.<br />

O que essas figuras queriam comigo? Tudo foi ficando tão<br />

estranho! De repente, as figuras começaram a girar e se misturaram,<br />

virando uma só coisa e girando ao meu redor com velocidade<br />

impressionante! Eu parecia estar olhando para o céu, pois havia um<br />

fundo azul na figura do espectro.<br />

Depois o céu ficou todo branco e eu não pude ver a rua.<br />

Não conseguia ver minhas mãos nem mexer os pés. Continuava<br />

ouvindo sons com ecos. Eram dois sons apenas.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Parecia que eu estava num lugar fechado porque o eco batia nas<br />

paredes e reverberava como se fosse metal.<br />

Havia alguma coisa me impedindo de movimentar os braços e<br />

as pernas. Eu podia sentir amarras, mas era difícil sentir os pés e as<br />

mãos.<br />

Falar também não podia, pois cada vez que tentava a língua não<br />

se movia e meus lábios não conseguiam se firmar.<br />

Seria uma ambulância? Pensei comigo. Mas não dava para saber.<br />

Eu não conseguia mover o rosto. Tentava falar, mas não conseguia<br />

produzir nenhum som, nenhum pedido de socorro, nenhum grito<br />

de apelo ou de raiva! Nada!<br />

Não fazia ideia do tempo em que estava ali, nem conseguia<br />

pensar com sobriedade. Estava sedado, lutando contra o efeito<br />

devastador de um medicamento que neutralizou todo o meu corpo.<br />

Meu rosto não se mexia, e os olhos se abriam com dificuldade,<br />

repletos de lágrimas, até que eu não pude mais abri-los, e tudo se<br />

apagou.<br />

Não mais senti o rosto queimar nem as mãos em brasas. Tudo<br />

estava apagado e já não havia lucidez, somente o escuro de uma vida<br />

acabada, sem luzes ou brilho capaz de produzir qualquer estímulo<br />

que evidenciasse a existência de um ser.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 19


PERSEGUIÇÃO<br />

Anos atrás, um novo funcionário chegou à repartição. Ele vinha<br />

de outra, do bloco intermediário, e trazia ideais de crescimento e<br />

maturidade intelectual que provocavam inveja!<br />

Era baixo, de pele clara, usava sempre um par de óculos de<br />

armação fina e tinha o semblante ora sério e compenetrado, quando<br />

estava pensando, ora alegre e descontraído, quando conversava<br />

com todos. Sempre carregava algum livro debaixo do braço, alguns<br />

que, de tão grossos, desanimavam a leitura de quem observava.<br />

Tinha sido transferido após se envolver em problemas com um<br />

dos gerentes da antiga repartição, o Clóvis, devido ao fato de esse<br />

o estar perseguindo moralmente por ter se negado a providenciar<br />

documentos tendenciosos que objetivavam desconto no salário de<br />

funcionário que se envolveu numa discussão na rua, quando estava<br />

de folga do serviço.<br />

Eram os apensos, documentos produzidos no âmbito do bloco<br />

intermediário, que provocavam sanções em desfavor de quem era seu<br />

alvo, após ser rigorosamente verificado o seu teor, numa espécie de<br />

processo interno da repartição, com provas reais que autorizassem<br />

a chefia direta e a intermediária a apenar o funcionário.<br />

Esse documento era sempre elaborado por um funcionário<br />

com status de chefia e mais tempo de serviço que aquele que seria<br />

apenado conforme os fatos denunciados, tal como ocorre nas<br />

repartições públicas e em empresas privadas dotadas de algum tipo<br />

20 de regimento interno ou hierarquia. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Contouquenãolhe parecialícitojulgar os atosdeumfuncionário<br />

em seu horário de folga, pois qualquer coisa que fizesse fora do<br />

bloco dizia respeito a sua vida particular e não cabia interferência<br />

ou investigação. Dizia que todos têm direito a intimidade e vida<br />

pessoal, independente do que fizessem.<br />

Então o Clóvis, após esse desgosto e sentimento de que seu<br />

poder doutrinador fora subjugado, passou a cobrar excessivamente<br />

o funcionário quanto a detalhes do serviço, realizando constantes<br />

averiguações, procurando sempre um motivo para provocá-lo<br />

moralmente e obter sucesso em afastá-lo da empresa ou rebaixá-lo<br />

de setor, pois de maneira alguma aceitava ser contrariado em seus<br />

interesses no âmbito da antiga repartição.<br />

Isso tudo ocorreu lá no bairro Pratos, onde fica a repartição de<br />

onde veio.<br />

Contou que o Silveira era um bom funcionário, e se em seu<br />

horário de trabalho produzia o que a empresa desejava, se era<br />

irrepreensível na função que exercia, em hipótese alguma, a empresa<br />

poderia interferir em sua vida particular. O que acontecia fora do<br />

ambiente de trabalho somente dizia respeito ao homem e não ao<br />

funcionário. Ao se expressar com sabedoria, falou que as pessoas<br />

têm o direito de serem cretinas em sua vida particular, e que<br />

ninguém poderia interferir no sentimento alheio do ser humano,<br />

exceto se isso trouxesse prejuízos ao ambiente de trabalho.<br />

Rapidamente, o excêntrico novato conseguiu conquistar<br />

espaço perante o público interno da repartição e suas ideias, seu<br />

modo de se expressar e sua generosidade se destacavam por agradar<br />

pela eficiência, confiança e simplicidade de execução.<br />

Um pensador! Amante das artes, da cultura e das ciências! Lia<br />

muitos livros, dentre eles os mais aclamados da literatura nacional.<br />

Lembro-me da vez em que fez uma citação à obra Senhora, de José<br />

Alencar, tendo se referido ao livro como uma busca da dignidade<br />

vendida, e que o amor, apesar de ser um sentimento bom, possui<br />

tanto ou até mais vingança que o próprio ódio.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 21


Ele procurava se inteirar de todos os assuntos sociais do<br />

momento, sempre lendo jornais e revistas. Era figura presente nos<br />

teatros, museus e em eventos culturais na cidade.<br />

Admirava a natureza e, por isso, participava de vários<br />

encontros com ambientalistas, a fim de discutir os meios de incutir<br />

no poder público maior responsabilidade na proteção do meio<br />

ambiente, com a diminuição dos casos de maus tratos a animais,<br />

maior controle sobre os carroceiros da cidade que exploravam<br />

demasiadamente os seus cavalos, maior agilidade para apurar<br />

denúncias de desmatamento e outros muitos assuntos nos quais<br />

fazia questão de se envolver ativamente, pelo interesse na causa.<br />

Reunia-se com estudantes e intelectuais e participava de eventos<br />

grevistas, apoiando quem estivesse realizando o evento, se<br />

esse fosse justo.<br />

O fato é que não aceitava injustiça nem aceitaria vender o seu<br />

caráter ou a sua honra para satisfazer o desejo pessoal de outra<br />

pessoa, fosse ela quem fosse. Aquele lugar, repleto de falsos elogios<br />

às ações que apenas satisfaziam interesse da gerência, era uma<br />

casa de marimbondos! Era necessário saber onde pisar para não<br />

encontrar problemas com as ferroadas, e o pensador sabia disso.<br />

Na verdade, todos sabiam, e o medo do sistema fazia com que se<br />

escondessem em alguma sala, quando passava algum gerente pelos<br />

corredores.<br />

Dessa forma, o gerente da repartição não poderia aceitar um<br />

pensador influente entre os funcionários de baixo escalão, pois<br />

seu conhecimento e sua capacidade de liderar poderiam reduzir<br />

o sentimento de imperialismo, quase santidade, que rondava o<br />

círculo superior, cada vez mais em ascensão, enquanto a gama dos<br />

mais subordinados do núcleo dos trabalhadores era, mais e mais,<br />

submetida à afirmação de poder e escravização moral impostas.<br />

Um sistema de blindagem protegia o escalão superior. Ali se<br />

fazia de tudo, de assédio moral e sexual a funcionárias até a restrição<br />

de direitos conferidos em lei aos funcionários. Tudo era arbitrário,<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

22


e nenhuma falha, crime ou abuso de poder era averiguada, pois<br />

havia uma poderosa rede de proteção aos integrantes do círculo de<br />

gerentes.<br />

A repartição funcionava numa construção muito antiga, um<br />

prédio de somente um andar contendo três corredores dispostos<br />

de forma triangular. A sala da gerência ficava ao centro e na área<br />

externa havia um vasto estacionamento para cerca de cem veículos.<br />

Contornava o complexo uma pequena mata, com algumas árvores<br />

de médio e muitas de grande porte.<br />

Todas as manhãs, ele era visto colocando sementes para os<br />

pardais numa vasilha grande de cor esverdeada, que ficava perto<br />

do muro e que antes ficava sem ração e não recebia visitas dos<br />

passarinhos.<br />

Trazia frutas para as maritacas, as quais, após um tempo<br />

recebendo tais guloseimas, já não faziam cerimônia e, ao vê-lo<br />

chegando com a vasilha repleta de morangos, laranjas, bananas e<br />

amendoins, vinham até sua mão para pegar as frutas. Por várias<br />

vezes repousavam em seu ombro com afinidade e confiança, dez,<br />

vinte, talvez trinta maritacas... o que enchia os olhos dos demais<br />

funcionários ao admirarem a beleza daquela cena tão incomum!<br />

Ele as pegava entre os dedos e coçava suas cabeças, como se, desde<br />

filhotes, tivessem sido amansadas por seu dono.<br />

Regava as plantas e as árvores em dias mais secos, antes de<br />

começar o seu trabalho, e, depois de um tempo, a natureza pareceu<br />

agradecer tal carinho fazendo brotar folhas que, de tão verdes,<br />

ofuscavam a vista, e cuja sombra era fresca e acolhedora!<br />

O prédio parecia ser um hospital desativado! A pintura era velha<br />

na parte externa, evidenciando que não havia muita preocupação<br />

com a imagem do lugar...<br />

Na primeira vez em que se cruzaram, ele havia acabado de dar<br />

comida aos pássaros e suas mãos estavam ainda sujas de frutas que<br />

as maritacas descascavam, prendendo-as entre as patas e seu braço.<br />

Sua camisa estava amassada por causa das unhas das maritacas e<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 23


24<br />

seus cabelos despenteados, pois pousavam em sua cabeça para ter<br />

um lugar privilegiado na atenção daquele homem.<br />

Foi no corredor daquele lugar, e o gerente local fitou o seu<br />

obstáculo com ódio e surpresa! Seu modo garboso e inquisitivo de<br />

andar foi surpreendido por uma visão ameaçadora! Algo que não<br />

era usual, pois não via nele o olhar assustado com que os outros<br />

funcionários o olhavam.<br />

Um ente maligno que não se sujeitaria a qualquer imposição<br />

que não fosse justa e baseada na lei.<br />

Uma figura ameaçadora, à visão do gerente, oriunda do próprio<br />

inferno e esculpida no fogo do capeta, que sabia dos seis direitos<br />

e olhava nos olhos sem abaixar a cabeça e demonstrar submissão<br />

humana, tal qual um cão ao seu dono!<br />

Uma aura que pairava sobre um corpo sinistro, capaz de se<br />

opor ao sistema se a sua honra e seus princípios assim desejassem!<br />

Envergonhando o rosto de quem é iníquo e se deliciando com o<br />

resplandecer da constitucionalidade!<br />

Ele viu imediatamente a necessidade de reduzir o brilho daquele<br />

ente diferenciado que se tornaria uma ameaça à sua autoafirmação<br />

de poder e de imposição de uma imagem de adoração santa naquele<br />

ambiente.<br />

Então foram cassados quinze dias de férias que ele iria tirar no<br />

meio daquele ano para providenciar ocasamentocomsua noiva. Para<br />

executar a tarefa, selecionou um funcionário de sua total lealdade,<br />

o gerente de setor Alisson, que mandou suspender suas férias,<br />

alegando diversos fatores não consolidados, como a necessidade de<br />

aprender um serviço que o novato já dominava melhor que muitos<br />

outros funcionários que passaram pelo setor.<br />

Na verdade, não haviamotivo para cassar essas férias. Era apenas<br />

a necessidade de mostrar quem tinha poder naquele ambiente, que<br />

suas ações eram pautadas em seu interesse e que sua visão pessoal<br />

deveria sempre prevalecer..<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O gerente respirou aliviado, acreditando que sua arbitrariedade<br />

iria lapidar o olhar constitucionalista daquele rapaz, e os<br />

problemas de uma liderança popular estariam encerrados de uma<br />

vez por todas.<br />

O fato provocou um desagrado muito grande em sua noiva que<br />

já vinha demonstrando descontentamento por morar muito longe<br />

e iniciou-se um ciúme que em poucos meses iria colocar fim ao<br />

relacionamento.<br />

Embora triste num primeiro momento, continuou realizando<br />

o seu trabalho, contudo sem se prestar à fidelidade cega, antes<br />

disso, possuindo uma isenção intelectual e moral que às vezes<br />

conflitava com o que era imposto pela gerência com arbitrariedade<br />

e truculência.<br />

Não aceitava irregularidades. Era uma mancha em seu caráter<br />

encobrir a ilegalidade impositiva.<br />

Não se sujeitava a se prostrar em terra e adorar o falso deus<br />

que o incitava a tal ato de submissão como única forma de obter<br />

privilégios ou até mesmo condições de trabalho dignas.<br />

Então, meses mais tarde, o chefe de setor Alisson determinou<br />

que ele fizesse os apensos de chegada ao serviço com atraso de<br />

quinze minutos de um funcionário muito amigo de todos, o Paulo<br />

Pirre, para que isso fosse imediatamente descontado em seu salário.<br />

Mas todos sabiam que houve o atraso devido a um acidente de<br />

trânsito, e que a polícia local tentava, a todo custo, providenciar<br />

um guincho para retirar um caminhão tombado. Pirre ligou para<br />

o trabalho avisando, e isso para o novato era uma justificativa<br />

plausível e provada, afinal a notícia havia saído até no jornal da<br />

manhã naquele dia, não sei se você se lembra desse fato.<br />

– Claro que me lembro! No horário do almoço também passou<br />

no jornal naquela televisão antiga que ficava no canto da cantina,<br />

pendurada numa armação.<br />

– Exatamente!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

25


26<br />

Então, foram confeccionados os apensos, mas com a justificação<br />

do atraso por escrito e assinada pelo novato, e que não haveria<br />

motivos para a redução do salário.<br />

A notícia se espalhou na empresa e muitos funcionários<br />

admiraram a nobreza de espírito do colega em não prejudicar<br />

injustamente o que se atrasou.<br />

Paulo Pirre, que tinha família e dependia do seu salário mais<br />

do que qualquer outro funcionário da empresa, veio agradecer<br />

pessoalmente, dizendo que nunca havia recebido um gesto de tanto<br />

profissionalismo naquela repartição, e soube reconhecer um grande<br />

espírito de liderança naquele profissional.<br />

Parece que todos estavam tão acostumados ao sistema imperial,<br />

impositivo e arbitrário da gerência, que algo diferente que tivesse<br />

respaldo legal era uma novidade a se comentar.<br />

O ódio iminente do chefe Alisson se fez demonstrar mais<br />

abertamente quando, após esse incidente, mudou o novato de setor,<br />

colocando-o para trabalhar diretamente com o público externo da<br />

repartição.<br />

Masoquehaviasidoprojetadoparatrazertranstornosaonovato,<br />

tornou-se sua maior fonte de influência! O gerente imaginou que ele<br />

teria problemas de relacionamento com o público, por ser autista.<br />

Idealizou que da sua dificuldade de falar resultaria um desastre<br />

ao trabalho e haveria como retroceder à condição funcional de<br />

novato. Ele não falava muito no interior da empresa. Chegava,<br />

assumia a função e se preocupava muito em terminar o serviço, não<br />

sendo visto em conversas pelo corredor.<br />

Contudo, não sabiam de sua condição social, já inserido em<br />

ambiente de contato frequente com artistas, escritores, filósofos,<br />

ambientalistas e políticos, aos quais se ligava em busca da<br />

consolidação de seus ideais e para conciliar com outros pensadores<br />

o exercício cada vez mais frequente da cidadania, cobrando do<br />

Poder Público a execução de obras destinadas à proteção do meio<br />

ambiente e à melhoria da qualidade de vida da população.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Trazia propostas inovadoras com soluções inteligentes e de<br />

fácil aplicação, as quais agradavam justamente por isso! Ele não<br />

falava muito no serviço, aos olhos da gerência, mas era uma pessoa<br />

de eloquência admirável!<br />

O público passou a gostar da sua presença, cada vez mais<br />

constante nas rodas da sociedade, onde recebia convites para festas<br />

e eventos de grande importância, deixando cada vez mais apagado<br />

o brilho do gerente. E este, inutilmente, tentava reduzir no novato o<br />

desejo de trabalhar, ordenando ao Alisson que, de tempo em tempo,<br />

fossem feitos apensos contra qualquer ato que fizesse, mesmo que<br />

não fosse verdade, só para dar-lhe o desprazer de ter que se explicar.<br />

Havia algo subentendido no ar sobre quem fizesse um bom<br />

apenso em desfavor dele, e se este chegasse à punição, seria bem<br />

visto aos olhos da chefia. Esse clima pairou entre alguns dos que<br />

eram leais à chefia da repartição, principalmente o Alisson, mas<br />

havia também aqueles que não tinham ânimo para prejudicar o<br />

novato, pois viam nele uma grande liderança e alguém que estava<br />

na repartição para executar um trabalho de qualidade cada vez<br />

melhor! O Cris era assim. Um funcionário com muitos anos de<br />

serviço e experiente sobre os assuntos da repartição.<br />

Cris tinha sempre bons conselhos sobre prudência e juízo,<br />

era quase um advogado! Mas sempre esbarrava no fato de não ser<br />

o gerente da repartição, antes de tudo subordinado às ordens do<br />

Wladmir.<br />

Embora não concordasse com muitas ordens, seguia a todas,<br />

procurando exercer sempre uma influência sobre as decisões finais<br />

da gerência, pois havia sido funcionário na empresa durante toda<br />

a sua vida e sabia das consequências nocivas em se desagradar o<br />

público interno.<br />

E foi assim que um dia um funcionário efetivo na repartição,<br />

o James, apresentou um apenso contra o novato, alegando que<br />

este deixou de realizar seu serviço com retidão, ao contrário, se<br />

esquivando de produzir algumas planilhas de sua conferência,<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 27


28<br />

referentes a balanço do período de trabalho da Semana Santa, que<br />

resultava em alteração da produção de todo o bloco intermediário.<br />

Mais que isso, fez outro apenso contra o Paulo Pirre, alegando<br />

que ele havia saído do seu local de trabalho sem permissão.<br />

Na verdade, o James sabia que Paulo estava sob supervisão<br />

do novato, e que ele havia autorizado que fosse até uma vendinha<br />

próxima ao prédio para comprar lanche para todos os funcionários<br />

do setor, frutas, pão, leite, amendoins que o novato adorava, e<br />

queijo. Ao pedir auxílio ao novato, este o defendeu abertamente,<br />

citando que estava na empresa para cumprir a rotina de trabalho,<br />

para executar o exercício da função e que Paulo estava sob suas<br />

ordens.<br />

O que seria uma mera formalidade da repartição se tornou<br />

um problema, haja vista que no dia relativo às planilhas o novato<br />

não estava de serviço, e tendo comparecido para trabalhar no dia<br />

seguinte já não estavam lá na saleta de reuniões os documentos<br />

para confecção das planilhas. Dessa forma, não ficou sabendo que<br />

deveria realizar tal labor.<br />

Contudo, durante a apuração, o Alisson desconsiderou<br />

qualquer prova que o novato apresentara, como a sua jornada<br />

impressa de trabalho e o amparo constitucional de que estava sendo<br />

desrespeitado, onde sugeria que nada fosse adotado de providência,<br />

devido a não estar ciente do trabalho a ser realizado.<br />

Essa foi depois de várias tentativas frustradas, a primeira<br />

vez que em público, foram executados os apensos contra um<br />

funcionário que conseguiu provar que o apenso era irregular,<br />

mas a gerência queria impor sua condição de soberania de<br />

qualquer forma, nem que para isso o Wladmir precisasse rasgar<br />

a Constituição Federal ao meio e fazer a sua própria lei punitiva,<br />

e foi o que fez.<br />

Em outro embate, o novato produziu um documento ao antigo<br />

gerente intermediário, que era uma pessoa muito aprazível e do<br />

agrado de todos os funcionários, o senhor Alvarez, que chegou a<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


ficar na gerência da repartição na época em questão, antes de ser<br />

promovido.<br />

No documento, relatava inúmeras falhas na administração e<br />

destinação de materiais que eram guardados sem nenhum cuidado<br />

numa sala de reuniões, o que estavam provocando mofo, sujeira e o<br />

risco do aparecimento de ratos, baratas e escorpiões no interior do<br />

prédio.<br />

A sala ficava no centro do prédio, entre o corredor da sala<br />

da gerência, a saleta de reuniões e o almoxarifado. Realmente ali<br />

havia muito material orgânico provocando sujeira, mofo, produtos<br />

químicos e o risco a todos os funcionários do lugar.<br />

Havia restos de comida e até materiais de fácil combustão<br />

espalhados pelo chão. O cheiro do lugar era ruim e o chão estava<br />

imundo! Havia teias de aranha, baratas, pão mofado, produtos de<br />

limpeza, papéis e livros jogados sobre mesas e cadeiras.<br />

E embora a ideia apresentada para a solução do problema tenha<br />

sido acatada imediatamente pela simplicidade e eficácia pelo senhor<br />

Alvarez que estava como gerente interino, o gerente da repartição,<br />

Wladmir, não ficou contente, pois a manutenção daqueles materiais<br />

naquela pequena sala era algo que interessava a um dos seus homens<br />

de confiança, justamente o Alisson, pois se esquivaria assim de ter<br />

que providenciar local adequado para a guarda e destinação dos<br />

materiais orgânicos que eram ali depositados.<br />

Com isso, determinou que fosse proibida a entrada do novato<br />

naquela sala, ou que se inteirasse dos assuntos relacionados a<br />

materiais, impedindo assim que fiscalizasse se não havia nenhuma<br />

outra irregularidade que comprometesse a saúde e o bem estar de<br />

todos.<br />

Havia a iminência de uma promoção de cargos naquele ano<br />

pelo gerente geral da empresa, devido à abertura de novas vagas.<br />

O gerente local da repartição, Wladmir, se empenhou para que<br />

o novato não viesse a ser promovido, chegando a externar isso a<br />

um de seus homens de maior confiança, citando ser do interesse<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 29


30<br />

da gerência que o funcionário não fosse promovido senão exerceria<br />

uma influência negativa à visão da gerência entre os demais<br />

funcionários.<br />

E de fato o excesso de confiança naquele funcionário foi um<br />

duro golpe, pois foi justamente quem o traiu, contando a notícia<br />

a outros funcionários e logo chegando ao conhecimento de todos.<br />

Carlos era namorado de outra funcionária da repartição,<br />

Valéria. Tinha um bom conhecimento de leis, e sabia que ali naquela<br />

repartição estavam ocorrendo muitas arbitrariedades. Quando o<br />

desejo do gerente foi externado, abandonou de si qualquer lealdade<br />

que possuía ao chefe e se desviou do caminho de auxiliá-lo a<br />

continuar com a execução de seus atos de excessiva nocividade em<br />

relação aos funcionários do lugar.<br />

E Carlos criou coragem para deixar perceber que já não era leal<br />

ao regime autoritário que se instalou na repartição.<br />

Wladmir determinou então que o gerente direto Alisson<br />

fizesse contra o novato uma avaliação de eficiência ruim, mesmo<br />

que para isso fosse necessário mentir nas informações. Isso o<br />

colocaria num patamar mais baixo do que os demais que se<br />

candidataram àquela promoção. O que ocorre é que o gerente geral<br />

não conhecia pessoalmente todos os funcionários da empresa, pois<br />

eram milhares. O que era relatado pelos gerentes, era acatado pelo<br />

gerente geral, entendendo esse que os seus homens de confiança<br />

seriam leais e justos em relação aos seus subordinados, assim com<br />

era com eles em todos os aspectos.<br />

O desejo do gerente Wladmir de prejudicar o novato já era<br />

do conhecimento de toda a repartição, pelo que foi exposto pelo<br />

Carlos no vestiário.<br />

Aliás, a avaliação foi tão ruim e com teor tão tendencioso<br />

em relação à produção profissional do novato, que provocou<br />

comentários nos demais funcionários até das outras repartições<br />

que compunham o bloco.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Foi se queixar ao gerente intermediário, o senhor Tarcísio, que<br />

o aconselhou a procurar trabalhar de acordo com o que o gerente<br />

Wladmir queria ou então teria problemas naquele lugar.<br />

Tarcísio era um homem de idade bem avançada, conivente com<br />

todos os atos de abusoe restrição de direitos cometidos pelos demais<br />

gerentes de repartição na composição do bloco intermediário.<br />

Só o que lhe interessava era produção constante, embora quem<br />

produzisse estivesse descontente. Estava para se aposentar e já<br />

não tinha interesse em tomar partido de nenhuma causa trazida<br />

pelos funcionários de alguma repartição. Mas por educação sempre<br />

recebia os funcionários que o procuravam.<br />

No vestiário alguns colegas de trabalho o aconselhavam a<br />

tentar mudar de repartição, conversando novamente com o senhor<br />

Tarcísio, pois era claro que estava sendo perseguido pela gerência e<br />

seus homens de confiança.<br />

E foi o que fez, procurando melhorar as condições de trabalho<br />

procurou um interessado em trocar de lugar em outra repartição,<br />

levando os nomes pessoalmente ao gerente Tarcísio, que o atendeu<br />

com cordialidade e disse que iria providenciar que fosse feita a<br />

troca, porém o gerente Wladmir negou, alegando que não poderia<br />

dispor de seu funcionário mais experiente no serviço e ceder vaga<br />

ao que o que viria em seu lugar.<br />

Até mesmo os homens que compunham o círculo superior<br />

estranharam a negativa do Wladmir, contudo eram submissos<br />

demais para perguntar. Não queriam questionar uma visão de<br />

gerência daquele que por conveniência ou passividade admiravam<br />

como a um deus.<br />

Meses depois, um dos homens de confiança do gerente acusou<br />

o novato de ter dito algumas coisas a respeito da gerência, com<br />

caráter depreciativo à imagem do gerente Wladmir, e a acusação foi<br />

amplamente acatada pela gerência que mandou descontar no salário<br />

do funcionário alguns dias de pagamento, a título de punição.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 31


A incredulidade da acusação perante os demais funcionários<br />

gerou uma sensação de insegurança dentro da repartição, que se<br />

tornava pouco a pouco um regime ditatorial. Não havia nenhuma<br />

prova contra o funcionário e mesmo assim os apensos foram<br />

acatados como de ordem punitiva direta. Foi a segunda vez em<br />

que o Wladmir rasgava a Constituição Federal a seu bel-prazer<br />

e gozava o fato de ser uma pessoa cretina pela própria natureza,<br />

rejeitada pela decência e moral!<br />

Com isso, vários funcionários pediram para trocar de repartição.<br />

Messias, Valéria, Carlos, Solto, Cheres, Kaio, Praxedes, Paulo Pirre,<br />

Jorge Soares e muitos outros bons funcionários, mas que não eram<br />

a imagem e semelhança da gerência, os quais presenciando de perto<br />

o que vinha acontecendo com o novato, sentiram a necessidade de<br />

sair daquele lugar com urgência. Sentiam que suas vidas corriam<br />

perigo naquele lugar. Não havia respeito aos direitos humanos, e a<br />

arbitrariedade era sempre acobertada por quem tinha o poder.<br />

O Júnior estava para se aposentar, por isso começou a<br />

desagradar o gerente Wladmir abertamente, expondo todas as<br />

suas insatisfações guardadas há muito tempo naquele ambiente<br />

autoritário, regime de servidão, porque sabia que o gerente já não<br />

poderia mais ousar nas suas perseguições e arrogância.<br />

O Rayner saiu da repartição após discutir com o gerente<br />

Wladmir, chegando até a colocar o dedo no rosto dele e exigir<br />

respeito por parte do chefe. Nesse dia houve uma grande discussão<br />

e outros funcionários precisaram conter os ânimos dos dois.<br />

No evento mais gritante de abuso, o funcionário Messias quase<br />

foi demitido depois que um dos carros da frota da empresa fundiu o<br />

motor, e houve um consenso da gerência em alegar que a causa teria<br />

sido o descuido do funcionário com os bens materiais da repartição.<br />

Isso ocorreu logo após o funcionário ter sido visto conversando<br />

com o novato em caráter confidencial no vestiário pelo James que<br />

passando pelo corredor ouviu parte da conversa.<br />

De fato a frota de veículos era muito mal acondicionada, em<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

32


garagens a céu aberto e sem mecânicos próprios da empresa, sendo<br />

contratados serviços terceirizados que melhor compensassem no<br />

preço e nas formas de pagamento.<br />

O gerente consentiu que todos os que pediam fossem trocados,<br />

pois não lhe eram submissos. O câncer representado pelo novato<br />

já havia lhes tirado o medo dos olhos e do coração e se tornaram<br />

pessoas de opinião formada, ou seja, já não serviam para a gerência.<br />

E nessa troca de peças deixou o pensador em situação difícil, pois<br />

era o único que não conseguia sair dali, mesmo com inúmeras<br />

tentativas frustradas.<br />

A repartição agora tinha um déficit de funcionários muito<br />

grande, o que provocaria maior carga de trabalho nos demais para<br />

compensar as perdas de recursos humanos.<br />

Enfraquecido de apoio, tendo em vista que todos os que não<br />

eram leais ao sistema ditatorial imposto pelo gerente Wladmir<br />

tinham ido embora, já não havia mais defesa contra os ataques<br />

idealizados por ele.<br />

O gerente estava cego pelo poder! Já não se preocupava com<br />

mais nada, apenas vencer a guerra de imagem e liderança.<br />

O gerente queria demonstrar poder usando como exemplo o<br />

novato. Era necessário à sua autoafirmação de força e soberania que<br />

o motivo de seus desgostos hedonistas fosse massacrado na frente<br />

dos demais funcionários com ilegalidades cada vez mais ultrajantes<br />

e um assédio moral que escapava a tudo que fosse previsto nas leis<br />

trabalhistas em vigor.<br />

Isso garantiria de vez a afirmação de poder e representatividade,<br />

pois submeteria toda a repartição à submissão plena e cega aos<br />

caprichos do gerente Wladmir.<br />

Mas um incidente minou o intelecto maligno daquele homem<br />

tão nocivo e uma organização importante mandou através de<br />

carta registrada à repartição um convite para uma reunião seleta<br />

com a cúpula de uma organização influente na cidade, e o convite<br />

era justamente direcionado ao novato. Seria tratado de assuntos<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 33


envolvendo propostas ao Poder Público para a melhoria das<br />

condições de trabalho de cavalos no município, cuja pretensão seria<br />

o veto à tal exploração, além do plantio de uma grande quantidade<br />

de árvores. A reunião seria presidida por um vereador do município,<br />

muito influente em causas relacionadas ao meio ambiente e recursos<br />

naturais.<br />

Um desgosto como esse! Como é possível? Justo agora que<br />

estava tudo indo tão bem para os planos pessoais cravados dentro<br />

da repartição.<br />

Sentindo-se impossibilitado em negar o pedido, e procurando<br />

esconder das entidades externas tudo que estava operando na<br />

repartição, à margem da lei e do caráter, liberou o funcionário no<br />

dia e hora marcados para o encontro, a fim de agradar à cúpula, e já<br />

planejando uma forma de tentar minar qualquer eventual convite<br />

posterior.<br />

Contudo o encontro havia sido um sucesso! O pensador<br />

compareceu bem vestido, num terno de cor escura, gel nos<br />

cabelos e barba bem feita! Foi muito elogiado pelas ideias que<br />

demonstrou para a modernização do quadro produtivo de vários<br />

seguimentos! Praticamente discursou todas as viabilidades do<br />

novo projeto de lei acerca dos semoventes. Apresentou como<br />

viabilidade que o plantio das árvores fosse feito junto às escolas,<br />

como forma de conscientizar os alunos para a preservação<br />

ambiental e garantir maior participação popular nos atos de<br />

cidadania. E tendo apresentado inovações tão notáveis, recebeu<br />

outros convites para representar o seu seguimento de trabalho,<br />

deixando o gerente possesso de ódio, pois em pouco tempo<br />

notava-se claramente que sua imagem era venerada somente<br />

no interior da repartição, pois havia implantado seu regime<br />

ditatorial, através da inquisição e do medo, mas que fora dali<br />

havia todo um mundo que não lhe era submisso, e que não se<br />

conquistava pela opressão e sim pela eficiência e liderança, pelo<br />

34 carisma e prestatividade! rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


E o câncer que representava os ideais do pensador começou<br />

a influenciar no modo de pensar de alguns funcionários.<br />

Estes foram percebendo pouco a pouco que possuem direitos<br />

profissionais, e que o gerente Wladmir não era um deus e sim<br />

uma pessoa de carne e osso. Que a ditadura moral somente<br />

conduziria suas vidas ao infortúnio. Que ele era um funcionário<br />

da repartição e não o dono dela. Nada ali era dele e sim dos<br />

acionistas que todo mês injetavam dinheiro na empresa. Que o<br />

assédio profissional para forçá-los a execução de atitudes que<br />

visam agradar seu bel-prazer, e o cunho pessoal de seu desejo<br />

de autoafirmação de poder, jamais seriam concretizados se não<br />

houvesse a participação de suas pessoas, na passividade das suas<br />

emoções, pois de outro modo o brilho dele cada vez mais iria se<br />

reduzir, até se apagar por completo, como estrelas que morrem<br />

nos confins do universo, e aquele regime ultrajante de assédio<br />

moral se extinguir.<br />

E num acesso de fúria, o gerente acionou o gerente<br />

intermediário, alegando que o pensador o havia caluniado, sendo<br />

então encaminhada à decisão do bloco intermediário a demissão do<br />

funcionário.<br />

Como era de praxe, havia a necessidade de decisão judicial<br />

sobre o caso, porém como não havia prova alguma o processo de<br />

demissão nem sequer foi instaurado, sendo arquivado logo que deu<br />

entrada na esfera judicial.<br />

Foi aí que a greve branca começou diante do último desaforo<br />

cometido pelo gerente Wladmir.<br />

Em pouco tempo os resultados da produção da repartição<br />

caíram drasticamente, não pela vontade do pensador, e sim pela<br />

própria revolta social e moral que as ações do ditador começaram<br />

a despertar em todos. Os números caíam consideravelmente<br />

em comparação com os balanços apresentados pelas outras<br />

repartições espalhadas por outros locais e que compunham o<br />

bloco intermediário.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

35


Em poucas semanas havia mais de trezentas ordens de<br />

serviço aguardando cumprimento sem, contudo haver qualquer<br />

manifestação profissional mais efetiva dos funcionários ligados à<br />

execução do serviço para cumpri-las.<br />

Então houve a queda do Alisson, como uma resposta do<br />

gerente Wladmir aos acionistas, que começavam a pressionar<br />

por melhorias na qualidade do serviço, e para tentar acalmar os<br />

ânimos dos funcionários. Foi notadamente uma prova de que o<br />

império que se consolidou naquele lugar não era permanente,<br />

e que a imposição do assédio moral somente aconteceria se os<br />

próprios trabalhadores permitissem, deixando de correr atrás dos<br />

seus direitos.<br />

O Alisson havia caído devido à presença do novato. Isso é certo.<br />

E todas as suas tentativas frustradas de eliminar a concorrência<br />

do novato na liderança, acabaram por conduzi-lo ao fracasso e à<br />

humilhação de sair da repartição pela porta dos fundos, tendo os<br />

funcionários subalternos comemorado a saída de um funcionário<br />

tão prejudicial à paz e à harmonia!<br />

Ele era um homem de idade avançada, com muitos anos<br />

de serviço na repartição, porém de índole muito prejudicial a<br />

todos! Não procurava ser gentil ou cortês em nenhuma ocasião.<br />

Descumpria promessas de folga ajustadas, mandava caçar férias e<br />

não se preocupava em ser querido na empresa, antes, sentia-se feliz<br />

por ser odiado e temido. Não possuía a mínima carga cultural que o<br />

ajudasse a promover justiça no ambiente de trabalho, onde exercia<br />

a chefia direta de cerca de quarenta funcionários.<br />

Contudo, era um dinossauro que chefiava os seus funcionários!<br />

Uma pessoa cheia de falhas moraisequese encarregara pessoalmente<br />

de procurar prejudicar o novato de todas as formas possíveis, até<br />

que suas tentativas frustradas foram se esgotando, pois sempre<br />

deparava com um funcionário moderno, cheio de conhecimentos<br />

técnicos e de disposição para lutar por seus direitos quando<br />

36 houvesse alguma ilegalidade. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Com a queda de seu homem de confiança, seu império<br />

desmoronou, e o gerente já não exercia poder sobre todos os<br />

funcionários, restando apenas alguns leais, como o Fábio, que<br />

assumiu a vaga deixada pelo Alisson. Era um serviçal capaz de<br />

sacrificar a vida para agradar a gerência, almejando, com isso, várias<br />

subidas de cargo, abrindo mão inclusive de seus escrúpulos para<br />

ser leal a qualquer preço; o James, que era um misto de boa pessoa e<br />

capacho bajulador, estando sempre em desarmonia com sua própria<br />

predominância de caráter; o Cris, que, embora leal, conservava um<br />

caráter que não se subjugou, antes disso, tentando sempre debater<br />

com o gerente por uma solução menos prejudicial a todos, sendo<br />

sempre vencido pela imposição, o Nicolau, que era justamente<br />

quem controlava todos os apensos. A queda do Alisson foi uma<br />

resposta aos acionistas que começavam a pressionar melhorias na<br />

repartição.<br />

Os outros funcionários ficaram no anonimato, por medo da<br />

gerência ou da ameaça em potencial ao regime de imposição que se<br />

instalara na repartição devido à greve branca.<br />

No fim daquele ano, houve uma festa de confraternização<br />

entre os funcionários, sendo convidado o novo gerente do<br />

bloco intermediário, senhor Barcelos, que assumiu a vaga após a<br />

aposentadoria de Tarcísio. A divisão social existente na repartição<br />

ficouevidente,aopassoquesomentecompareceramosqueaindaeram<br />

submissos ou leais ao gerente Wladmir, ou que temiam represálias<br />

e procuravam se socializar, sem, contudo, tomar partido pela<br />

direita ou pela esquerda na causa que dividiu o lugar em dois polos.<br />

As famílias dos funcionários em questão compareceram à festa<br />

e apenas alguns dos presentes ousou comentar sobre as ausências<br />

generalizadas, embora o clima entre os funcionários tenha sido<br />

notável!<br />

Eram esperados uns duzentos funcionários, os quais levariam<br />

ainda os familiares. No entanto, pelo que foi comentado sobre o<br />

evento, havia na festa os seguintes funcionários:<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 37


Da base aliada à gerência: Fábio, James, Nicolau, Cris, Pontes<br />

e Juliana.<br />

Dos funcionários de classe mais inferior: Sérgio, Vicente, Paulo<br />

Mateus, Roberto, Sanches, Oscar, Demétrius, Solange, que era uma<br />

fofoqueira repudiada por quase todos os funcionários, Castilho,<br />

Queiroz e Samuel.<br />

Contando todos os funcionários presentes e suas famílias, não<br />

chegava a cinquenta pessoas. Com isso, uma grande quantidade de<br />

mesas ficou vazia e o clima, pesado.<br />

Sobrou comida e bebida. Até mesmo o que era mastigado<br />

descia pela garganta com dificuldade, embora pudesse estar<br />

saboroso.<br />

O novo gerente do bloco intermediário desaprovou as ausências<br />

e cobrou do gerente Wladmir uma mudança de postura na empresa.<br />

Na verdade, o novo gerente era nos moldes do gerente local, uma<br />

pessoa que ambicionava cada vez mais poder e admiração. Tinha<br />

interesse naquela confraternização para ser o centro das atenções,<br />

e se viu reduzido em importância, pois as cadeiras vazias chamaram<br />

mais atenção que sua presença. O que o diferenciava do Wladmir<br />

era a apreciação da legalidade quando esta lhe era conveniente. Isso<br />

porque em alguns momentos, para a garantia de sua supremacia,<br />

ousou também restringir direitos de alguns. Os funcionários que<br />

havia chefiado costumavam chamá-lo de “o semideus”, devido<br />

ao fato de não aceitar intervenção, chegando, muitas vezes, a<br />

desconsiderar os acionistas e a vontade do gerente geral; trabalhava<br />

apenas conforme sua própria vontade.<br />

Todos saíram da confraternização com a certeza de que<br />

era necessário tirar o pensador daquele lugar. Ele deu àquelas<br />

pessoas o poder de pensar e questionar o sistema, e esse espírito<br />

de cidadania, embasado na lei, na honra e no caráter, eram males a<br />

serem combatidos a qualquer custo.<br />

Alteração de horários de trabalho, grande quantidade de<br />

apensos cujo teor cada vez mais ilegal já não demonstrava a<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

38


veracidade dos fatos e sim o desejo ardente de sangue e sofrimento,<br />

carga de trabalho mais pesada em relação aos demais funcionários,<br />

reduções de salário, assédio moral, abusos de poder, impedimento<br />

de acesso ao público externo, acusações tendenciosas, calúnias,<br />

negação de férias regulamentares, horário extra sem fundamento<br />

para correção de trabalhos não realizados ou terminados com<br />

imperfeições, acusações de baixa produção e até mesmo a desculpa<br />

da gola da camisa estar amassada...<br />

Ah! Com o passar dos anos a carga de stress foi proliferando<br />

na cabeça do pensador, a ponto de ele começar a beber<br />

descontroladamente! A bebida era um refúgio a todas as agruras<br />

que aquele lugar proporcionava!<br />

O cigarro, também companheiro inseparável dos momentos de<br />

depressão, teve seu consumo aumentado dia após dia.<br />

Não entendo até hoje, e juro que não, como esse funcionário<br />

ainda encontrava forças para chegar de manhã e ainda ir lá<br />

colocar frutas para as maritacas que vinham até ele com alegria<br />

e barulho.<br />

Ele estava pálido! Magro! O rosto descontente...<br />

Finalmente as férias de período lhe foram concedidas, o que<br />

se deu na época de reforma da repartição, e a gerência gostaria de<br />

contar com a participação efetiva, quase escrava de todos. Como o<br />

pensador questionaria demais, acabaram desistindo de convocá-lo<br />

naqueles dias.<br />

Nesse meio tempo, o novato foi vítima de uma tentativa de<br />

latrocínio, justamente no dia em que vendeu o carro para comprar<br />

outro mais novo. O ladrão havia entrado em sua casa para roubar<br />

o dinheiro e acabou ferindo o braço do pensador com uma arma.<br />

E, fugindo logo em seguida sem levar o dinheiro que estava bem<br />

escondido, acabou sendo preso pela polícia que passava pelo local<br />

e foi acionada por moradores da rua onde tudo aconteceu. Mesmo<br />

estando de férias naquela época, fez questão de comunicar o fato à<br />

empresa.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

39


40<br />

O fato foi veiculado em jornais, e o gerente Wladmir acusou o<br />

pensador de ter prejudicado a imagem da repartição, cujo nome foi<br />

noticiado, e, com isso, tentou mais uma vez que o funcionário fosse<br />

demitido.<br />

Diante desse fato, o pensador procurou o Genaro, que era<br />

assessor de um deputado, para que usasse de sua influência junto<br />

ao bloco intermediário para tratar do assunto dos assédios morais<br />

que estavam ocorrendo e de todas as ilegalidades que vinham<br />

acontecendo na empresa.<br />

A repartição ficou na mira direta do poder público, e a<br />

possibilidade de vir à tona a grande quantidade de abusos profissionais<br />

ali cometidos fez acender o sinal de alerta dos gerentes.<br />

Com isso, o gerente do bloco intermediário viu-se obrigado a<br />

transferir o pensador para outra repartição, e esse, em sua saída,<br />

levou consigo todo o brilho que ainda restava na seção. Mais que<br />

isso, outros quinze funcionários pediram para mudar de lugar.<br />

A motivação para o trabalho nos funcionários foi reduzida a<br />

nada: pilhas de ordens de serviço, algumas urgentes, ficavam dias<br />

sobre a mesa da saleta de reuniões, apesar de a gerência ter-se<br />

esforçado ao máximo para incutir-lhes o desejo de trabalhar, ora<br />

com concessões, ora com autoritarismo, não tendo obtido sucesso<br />

em nenhum dos casos. Boa parte dos funcionários que ainda<br />

restaram pediu a troca de repartição, alegando não ter condições de<br />

trabalhar com a atual chefia.<br />

Isso foi novidade! Antes, todos os que pediram transferência<br />

alegaram inúmeros outros motivos, mas dessa vez a revolta social<br />

era evidente! O espírito de democracia havia sido despertado nos<br />

funcionários!<br />

Até os passarinhos deixaram de visitar aquele local, tendo<br />

voado para tão longe que nem nas ruas próximas, nem na copa das<br />

árvores eram vistos. As maritacas já não agitavam as manhãs com<br />

seus gritos alegres.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


As árvores ressecadas foram podadas por ordem da gerência e o<br />

clima ficou mais quente e seco em todas as salas.<br />

Na verdade, só Deus soube os motivos pelos quais o gerente<br />

do bloco intermediário, senhor Barcelos, manteve no cargo o<br />

gerente Wladmir, mesmo com tanta rejeição de todos, a ponto de<br />

os funcionários se manterem em greve branca.<br />

O tempo foi passando e, após três anos, o estado emocional do<br />

pensador já estava bastante debilitado devido ao assédio moral e ao<br />

abuso de poder perpetrados contra ele na antiga repartição.<br />

Foi bem recebido no novo local de trabalho, porém as marcas<br />

recentes ainda demorariam muito para se apagarem.<br />

Será que em todo lugar seria assim? Será que em todas as funções<br />

haveria perseguição, especialmente quando houvesse conflito de<br />

pensamentos e técnicas de trabalho, ou quando alguém conseguisse<br />

se destacar, embora não fosse mais que um mero empregado?<br />

Solidão... vem e arranca as esperanças do coração do homem.<br />

Depressão aguda que vira inferno ou vira céu, leva embora o<br />

sorriso dos lábios e provoca a falta de sono e de apetite durante<br />

quatro dias.<br />

As decepções com a vida e com o trabalho foram só<br />

aumentando... Não poderia sair do emprego sem conseguir outro<br />

lugar para trabalhar. Via-se de alguma forma preso ao sistema e sem<br />

condições de sair dele, e agora, após o cansaço dos combates por<br />

justiça, temeroso de represálias.<br />

Mas, em momento algum vendeu seu caráter nem sua honra,<br />

e não se submeteu à imoralidade ou à ilegalidade que tantas vezes<br />

lhe foram determinadas como doutrina. Essa sempre foi sua fonte<br />

maior de energia para resistir, e sempre será, independente de onde<br />

estiver!<br />

A vida há de proliferar os dias dos pensadores para que<br />

possam, com coragem e determinação, mudar os rumos do mundo e<br />

reduzir as forças do mal sobre os mais necessitados.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 41


CAMPO MINADO<br />

42<br />

E, no início, o homem criou o ciúme! Havia uma testa frisada<br />

pelo juntar das sobrancelhas, e os lábios ressecados se mordiam a<br />

cada nova conquista.<br />

Antes tudo era pacífico, mas o surgimento de uma Supernova<br />

abalou a paz de todo o universo. Um brilho reluzente como<br />

sorriso alvo, cativante pairou no centro da galáxia e seu discurso<br />

semelhante à poeira dos astros chegava aos ouvidos como cantilena<br />

suave e agradável!<br />

E então, houve um choque tão brusco que todo o universo ficou<br />

em brasas...<br />

– Senhor! Acorde!<br />

Onde estou?...(voz descompassada) Que lugar é esse? Eu estava<br />

sonhando com um universo... vários astros...uma explosão muito<br />

grande onde as faíscas se espalharam e algumas estrelas ficaram<br />

perdidas...que lugar é esse?<br />

– A sua família está na recepção. Querem vê-lo.<br />

– Que estou fazendo aqui...?<br />

– O senhor está internado numa clínica psiquiátrica. Está<br />

dormindo há dois dias em virtude de remédios e de um forte impacto<br />

que recebeu em seu corpo.<br />

Caminhando com dificuldade e sem conseguir um raciocínio<br />

lógico sobre os fatos, cheguei até uma sala. Lá estavam alguns<br />

parentes que haviam trazido objetos de uso pessoal, tais como<br />

roupas, desodorante, pasta de dente e alguns biscoitos e doces.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


E disseram que eu estava internado naquele lugar por estar<br />

com problemas sérios de depressão causada por perseguição no<br />

ambiente de trabalho e por outro motivo que não quiseram revelar.<br />

– E quem está cuidando dos meus animais?<br />

– A prima Sara está cuidando deles. Não se preocupe que tudo<br />

está bem. Fomos até sua casa, pegamos os animais e os levamos<br />

para a casa dela, onde ficarão em segurança até você se recuperar<br />

do trauma.<br />

Sentindo dificuldade de falar devido aos fortes sedativos que<br />

nem sei quantas vezes foram aplicados em meu corpo, preferi<br />

permanecer em silêncio, apenas ouvindo.<br />

Logo veio um funcionário com uma ficha de internação para<br />

que eu assinasse. Eu procurava ler o que estava escrito, mas meus<br />

olhos embaçavam após algumas palavras. O funcionário disse que<br />

era apenas o consentimento de internação. Que o enfermeiro da<br />

ambulância conveniada com o meu emprego relatou que o pedido<br />

de internação havia sido feito por mim e por isso eu teria que assinar<br />

o documento, consentindo com o tratamento.<br />

Que campo minado repleto de bombas é a minha vida! Não<br />

posso confiar em ninguém. Jamais consenti em ser internado.<br />

Estavam me colocando naquele lugar contra a minha vontade, mas<br />

naquele momento eu estava muito fraco para tentar alguma coisa.<br />

Percebi que não tinha condições de me opor a nada. Era como se<br />

somente meu corpo tivesse vida, e minha alma estivesse morta e<br />

sem brilho.<br />

Assinei o documento e a letra saiu forçada! Os dedos não se<br />

mexiam com naturalidade. Sabe-se lá o que havia na injeção que foi<br />

aplicada em meu braço direito! O que dá a essas pessoas o direito de<br />

fazer semelhante atrocidade com alguém e não haver qualquer tipo<br />

de punição? Produzem loucos a partir de pessoas normais abaladas<br />

por algum problema que muitas vezes não tem nada a ver com a<br />

loucura.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

43


44<br />

Dois dias direto dormindo! O que é isso? Que tipo de veneno é<br />

esse que foi injetado em minha veia? Para depois o médico escrever<br />

o que quiser em minha ficha, com base apenas em seu interesse<br />

pessoal ou profissional. Talvez seja por este mesmo motivo que<br />

todas aquelas pessoas que estavam no ambulatório foram se<br />

transformando em espectros, após a aplicação do veneno.<br />

O cumprimento das ordens, mesmo que ilegais, unicamente<br />

para que o sistema continue operando com todas as regalias da<br />

classe que comanda, num fechamento que passa por cima até<br />

mesmo das leis vigentes. Isso tudo é disciplina. Não a disciplina que<br />

vem de ser íntegro, lastreada na boa educação, e sim a disciplina<br />

de ser discípulo, de seguir fiel e prontamente o que é determinado,<br />

conivente com a mentalidade de quem está no nível do governo.<br />

Por isso é um campo minado. Um esquema de pirâmide, onde<br />

poucos têm privilégios e a maioria carrega fardos mais pesados que<br />

o próprio corpo.<br />

Jamais segui de maneira cega qualquer ordenamento ou<br />

sistema, pois acredito que isso se denomina fidelidade cega, e retira<br />

do homem a sua personalidade, transformando-o num reles objeto<br />

de uso pessoal.<br />

Fidelidade é, antes de tudo, saber se opor ao sistema quando<br />

há ilegalidade. Há, contudo, a forma leal e a forma desleal. Lealdade<br />

é pautar-se na lei para agir em sociedade dentro de um conjunto.<br />

Qualquer coisa que fuja disso, que não dê o direito de uma das<br />

partes manifestar o pensamento ou expor opiniões, técnicas que<br />

vão melhorar a execução do sistema, não pode ser considerado<br />

fidelidade e sim escravidão moral. Qual é a legalidade de um<br />

sistema baseado na inquisição e na imposição? Um assédio moral<br />

que coíbe qualquer conduta que não vá agradar à cúpula?<br />

Por outro lado, seoindivíduoinserido no todo sabeser discípulo,<br />

embora perca toda uma vida de liberdade de trabalho para ser<br />

unicamente um instrumento, não pisará nos artifícios deixados no<br />

campo, pois são armadilhas contra os inimigos. Inimigos que não<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


impunham armas, e sim livros, não usam coletes à prova de balas,<br />

ao contrário, levam flores nas mãos para oferecer, mas pensam, e<br />

o mundo dos pensadores é ambiente de perseguição repleto de<br />

mágoas e desejos. Um local de sonhos e aspirações à aceitação dos<br />

ideais.<br />

Os idealistas conseguem mudar o mundo, mas somente depois<br />

de muito sofrer com prisões e perseguições. O abuso caminha lado a<br />

lado com os idealistas. E quando os idealistas caminham um pouco<br />

mais para a direita, a corrente de abusos que tenta prendê-los no<br />

trajeto em linha reta se arma, repleta de instrumentos cortantes<br />

que rasgam a carne e procuram sugar a determinação dos ideais.<br />

Quando os idealistas então decidem ir para o lado esquerdo a<br />

outra corrente já está armada como um cão feroz que tenta intimidar<br />

e empunha seus instrumentos de guerra.<br />

Desde o princípio da existência social, é dessa forma que as<br />

mudanças são feitas. Sempre à custa de muito sangue derramado, de<br />

muitas lágrimas, e, embora os ideais dos pensadores não se abalem<br />

pelos chicotes do arcaísmo social em sua esfera mais representativa,<br />

as chagas deixadas permanecerão por toda a vida.<br />

Após conversar com os parentes, levaram-me de volta à cama e<br />

dormi novamente. O efeito dos medicamentos era muito forte e até<br />

os passos eram difíceis!<br />

Mais algumas horas de sono e então despertei. Era um quarto<br />

com seis camas de solteiro e em cada cama havia um paciente. Em<br />

silêncio, caminhei até a porta do quarto, e havia um corredor com<br />

vários outros quartos iguais, e pacientes em todos eles.<br />

Estava numa clínica psiquiátrica. Aos poucos, fui recobrando a<br />

lucidez dos pensamentos e procurando entender tudo o que estava<br />

acontecendo.<br />

Caminhei pelo corredor procurando pela cozinha e uma<br />

enfermeira rapidamente trouxe algo para que eu comesse e me<br />

ofereceu soro, devido à desidratação provocada pelo período em<br />

que fiquei sem alimento. Lanchei um pão com manteiga, um copo<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 45


de café com leite, biscoitos trazidos pelos parentes e, em seguida,<br />

bebi o soro.<br />

Após um tempo, que não sei precisar quanto, sentado em um<br />

banco, peguei uma roupa numa mochila que os parentes haviam<br />

trazido e fui até o banheiro tomar banho. O banheiro masculino<br />

possuía quatro boxes com privada e cinco boxes com chuveiro,<br />

todos um ao lado do outro. Havia um grande espelho sobre a pia e<br />

duas torneiras.<br />

A água era muito quente, devido ao fato de ser um lugar muito<br />

frio nessa época do ano.<br />

A clínica ficava numa fazenda cercada de montanhas, nas<br />

proximidades de uma rodovia.<br />

Debaixo do chuveiro, procurava me lembrar de tudo o que havia<br />

acontecido, porém não me recordava senão de entrar no hospital e<br />

tudo o que me trouxe até esse lugar.<br />

Meu corpo doía em toda a parte frontal, principalmente no<br />

peito. A água do chuveiro ajudava a reduzir os efeitos da dor.<br />

Meu rosto no espelho demonstrava a carência de vida. Parecia<br />

um defunto de olhos abertos, e não havia brilho nos olhos. Tão feia<br />

era a visão que não consegui ficar durante muito tempo olhando a<br />

minha própria imagem e saí da frente do espelho de cabeça baixa.<br />

46<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


SUICÍDIO<br />

Após alguns dias, com as dores no corpo passando, algumas<br />

recordações vagas começavam a brotar na memória. Um misto de<br />

loucura e sensatez! Fatos esparsos, como um quebra-cabeça sendo<br />

montado.<br />

Diálogos, expressões de rostos, lugares, visões... tudo ainda<br />

muito desconexo! Num instante, estava no trabalho, em outro, no<br />

hospital, até que foram clareando os elos entre os fatos...<br />

Lembrei-me do dia em que fui assaltado pela segunda vez,<br />

quando saí de casa para ir ao centro da cidade. Ainda não havia<br />

comprado o novo carro e, ao chegar ao ponto de ônibus, dois<br />

homens armados numa motocicleta exigiram a carteira e a bolsa<br />

que estavam em minhas mãos.<br />

Nesse dia, foram levados todos os documentos e uma<br />

considerável quantia em dinheiro, que seria usada para pagar o<br />

aluguel da casa. Lembro-me de que, devido à comoção, nesse dia<br />

não trabalhei, e de que foi no dia seguinte que tudo começou...<br />

– Preciso de um carro pra me levar até o hospital. Não estou bem.<br />

– Mas o que foi? Está com algum problema de saúde?<br />

Nesse momento, arremessando objetos ao chão, o controle foi<br />

escapando. As mãos começaram a tremular, e a cabeça se movia<br />

com muita agilidade e nervosismo.<br />

– Já disse que não estou bem, oras. Preciso ficar repetindo? Não<br />

deveria nem estar trabalhando nessas condições de trabalho, no<br />

meu atual estado mental.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

47


– Vou ligar para o gerente e verificar se ele pode te liberar do<br />

trabalho hoje. Então você vai para o hospital em seu carro.<br />

– Como quer que eu dirija nessas condições? Nem se tivesse<br />

carro. Não está vendo o que está acontecendo? Preciso de que<br />

alguém me leve até o hospital.<br />

Lágrimas rolando pelo rosto delicadamente, ostentando raiva e<br />

indignação por acontecimentos recentes que fizeram explodir uma<br />

revolta interior e um rancor pela própria existência. Num segundo,<br />

um soco no ar na direção do vazio.<br />

– Olha, procure se acalmar. Vá lá em cima. Tome um banho.<br />

– Não preciso que fiquem o tempo todo me ordenando as coisas!<br />

Já disse que não estou bem e querem que eu vá tomar banho? Ora, vão...<br />

Nesse momento, com um pouco de lucidez, saí da saleta de<br />

reuniões aos prantos, subi as escadas e abri a porta do banheiro<br />

com um chute.<br />

Ao lavar o rosto e olhar no espelho, a morte falava comigo:<br />

– Filho, prepare-se! Chegou o momento de me acompanhar.<br />

Desça ao casarão sem demora...<br />

Por um momento, observei aquela figura espectral com o rosto<br />

semelhante ao de um homem desfigurado. Havia sangue ressecado<br />

numa das narinas e um colar de espinhos aparecendo por baixo da<br />

capa preta e suja de carne. A carne parecia podre e exalava almas<br />

como fumaça saindo do corpo após um banho quente.<br />

Passei as mãos nos olhos e, ao olhar no espelho, era minha<br />

imagem que estava lá. Pálido! Sem vida! Sem motivos para sorrir ou<br />

acreditar num mundo mais justo e digno.<br />

Voltei para o lado da porta e uma voz dizia:<br />

– Não se vá. Eu não estou lá fora. Estou dentro de você.<br />

Loucura! Demência! Corri até meu armário e tirei rapidamente<br />

o uniforme do serviço.<br />

Quando desci as escadas, todos na repartição já estavam nos<br />

seus afazeres do dia. Passei em silêncio, com o rosto e os cabelos<br />

ainda molhados e uma grande sensação de ódio e de escuridão!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

48


Ao sair na rua, o motorista do primeiro carro que veio em minha<br />

direção me acenou. Era uma figura também espectral e sem carnes<br />

no rosto, apenas pedaços de pele podre. Passou por mim e meu<br />

corpo bambo, agitado pelo vento, ainda titubeou até ir de encontro<br />

ao veículo e se chocar contra o capô.<br />

Tudo estava ficando muito estranho! O céu da manhã foi se<br />

tingindo de um cinza cadavérico! As nuvens pareciam feitas de<br />

muitos ossos humanos e, no alto, embora na realidade não estivessem<br />

lá, minha loucura percebia abutres com bicos ensanguentados, cujo<br />

sangue pingava e atingia meu corpo.<br />

Das paredes do instituto de ofídios e estudo de animais<br />

peçonhentos, saíam milhares de mãos tentando me puxar para<br />

dentro e eu tentava escapar delas e dos abutres.<br />

Escondi-me debaixo de uma árvore para que o sangue não me<br />

atingisse, mas a árvore tinha muitos vermes em seu tronco. Eles<br />

pareciam homens com lanças nas mãos, saindo de frestas no tronco<br />

e tentando espetar meus dedos.<br />

Muitos homens pequenos, usando armadura preta e tendo duas<br />

lanças nas mãos, agitando-as contra o vento, vinham em minha<br />

direção.<br />

Corri sem rumo, tentando escapar das gotas de sangue e dos<br />

vermes armados e, de repente, estava em outro lugar. Era uma<br />

escadaria e várias pessoas passavam por mim apressadas, até<br />

trombavam em mim, pois eu estava sentado no meio de um degrau.<br />

As mãos estavam colocadas no rosto tentando escapar desse<br />

momento tão difícil, de loucura.<br />

– Levante-se! Veja que seu transporte já está vindo! Apresse-se<br />

para tomar a condução.<br />

Era uma voz diabólica, com ecos de sofrimento, chamando<br />

no alto-falante que estava no teto, acima de minha cabeça. Ficava<br />

repetindo as mesmas coisas o tempo todo.<br />

Eu estava numa estação de metrô. Não sei em qual das<br />

estações da cidade, mas de alguma forma fui parar lá, embora não<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 49


50<br />

me lembrasse de ter caminhado até o metrô. A última cena de que<br />

consegui me lembrar foi de ter parado embaixo da árvore, tentando<br />

escapar dos abutres.<br />

Num instante depois, estava num céu negro, repleto de<br />

estrelas negras que não brilhavam, ao contrário, tornavam<br />

mais negros os horizontes do espaço sideral. Havia um pouco<br />

de claridade somente onde não havia estrelas, porque elas<br />

eram injustas! Aglomeravam-se e criavam uma constelação<br />

impenetrável! Irredutível!<br />

Lá no centro da constelação, vi a morte segurando um globo<br />

com milhares de vozes. Era uma cena horrível, como se as vozes<br />

fossem as almas aflitas cujas vidas se resumiram em desgostos e<br />

decepções!<br />

Ela usava um traje de gala, ostentando muitos títulos e brasões,<br />

e, nas pontas do traje, havia mãos com unhas enormes, arranhando<br />

o ar de forma ameaçadora!<br />

Novamente meus olhos clarearam por um tempo...<br />

Vinha um metrô, bem longe, encoberto por uma bruma. Só<br />

era possível enxergar a luz branca. Cheguei até a beira da faixa<br />

de segurança, enquanto a morte ficou do outro lado da linha me<br />

chamando e tendo nas mãos algo semelhante a um globo, porém<br />

de cor cinza e negro ao invés do azul do mar. Dessa vez, milhões de<br />

vozes falavam e gritavam de dentro do globo. Era o mesmo globo<br />

que havia visto antes, porém agora estava mais próximo. E era mais<br />

nítido o casarão.<br />

Ela dizia para não me demorar que logo estaria em casa.<br />

Então, fui entrando num estado de transe eventual, que nada<br />

mais parecia ter importância na vida. Lembrei-me da infância, dos<br />

desejos que jamais foram realizados, das brincadeiras de roda, de<br />

polícia e ladrão, de roubar bandeira, de pique-esconde e futebol.<br />

Ao recordar a adolescência, vieram à mente o primeiro amor, as<br />

aspirações sobre o futuro e o primeiro emprego que consegui numa<br />

lojinha de sapatos lá naquele bairro onde passei a infância. Os<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


amigos que as estradas da vida levaram em busca do ouro em lavras<br />

que talvez nenhuma riqueza vá proporcionar.<br />

Porém, o sonho impulsiona o desejo aventureiro no coração de<br />

cada um. E aquele que segue o seu caminho, a sua estrada, talvez<br />

jamais volte ao lugar de onde partiu. Torna-se um errante pelo<br />

mundo, sempre à procura de novas aventuras.<br />

As antigas festas, as ruas do bairro, a simplicidade da vida<br />

quando ainda não havia os problemas de relacionamento social, que<br />

podem reduzir o próprio direito de viver e tornar a vida, de forma<br />

sarcástica, no mero acatamento de imposições sem fundamento.<br />

Um robô do sistema...<br />

O mundo não é dos pensadores e sim dos escravos e de seus<br />

respectivos senhores que os açoitam o tempo todo e não há revolta.<br />

Quem pensa num mundo como esse e possui autonomia, torna-se<br />

um problema a ser exterminado a qualquer custo. Um câncer no<br />

meio do sistema regrado de autoafirmação de poder e de submissão<br />

plena e cega.<br />

Um jardim de flores se descortinou diante de mim na extensão<br />

dos trilhos do metrô. Eles davam acesso a um lugar calmo, onde<br />

borboletas voavam e pássaros cantavam. Uma brisa levava o<br />

perfume de muitas flores que eram agradáveis e a morte havia se<br />

transformado numa linda moça que segurava um raminho de flores.<br />

Ela sorria vários sorrisos como que em sonho. Usava um vestido<br />

longo tal qual donzela de romance!<br />

Lá não havia sofrimento nem dor! Não havia motivos para<br />

o choro nem para o desespero! Havia apenas um jardim imenso,<br />

repleto de flores!<br />

Embriagado de êxtase e excitação por um mundo melhor, uma<br />

saída para os problemas que estava enfrentando, desci pelo trilho e<br />

comecei a caminhar naquela direção agradável. Eu já não detinha o<br />

controle sobre a minha vida.<br />

Atrás de mim, vi um mundo negro, repleto de fantasmas<br />

horrendos que não queriam se desgarrar do meu corpo. Parecia que<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 51


52<br />

a minha lágrima é que dava poder ao ódio estampado na face de<br />

cada um deles.<br />

Eles pareciam querer me puxar de volta, pois o poder estava se<br />

esgotando em seus peitos sem coração, onde somente os pulmões<br />

inspiravam a fumaça negra da poluição social. Era necessário que<br />

eu fosse a fonte que alimentava o ódio, mas, sem minha presença, já<br />

não haveria mais motivo para que esse existisse.<br />

Olhei então para frente e novamente vi a figura daquela mulher.<br />

Ela foi se desfigurando, caindo-lhe as peles do rosto. As flores<br />

murcharam e seus espinhos entravam na carne dos braços, fazendo<br />

porejar sangue negro e de cheiro ruim.<br />

Um grito distante foi chegando aos meus ouvidos e de repente<br />

não vi mais nada além do céu azulado, com um tom diferente, quase<br />

roxo!<br />

Havia um calor insuportável no chão e um gosto estranho,<br />

como o cheiro do ácido, na boca. Uma sensação de coração batendo<br />

forte, e as artérias e veias do corpo desesperadas, querendo jorrar<br />

o sangue pelo corpo todo, como se a quantidade de sangue fosse<br />

maior do que poderia passar por elas.<br />

Até que tudo se apagou por algum tempo.<br />

Estava na lembrança. Eu havia tentado suicídio entrando na<br />

pista do metrô. Por isso, vim parar nesse lugar. A clareza dos fatos<br />

era inevitável! Eu não me lembrava de nada, por causa do impacto,<br />

mas certamente tinha sido arremessado pelo metrô. Então, tudo<br />

fazia sentido: a dor no corpo, as pessoas, os lugares.<br />

Finalmente minha lucidez começava a voltar e eu podia traçar<br />

um raciocínio lógico de como tudo tinha começado.<br />

De fato, eu não estava morto, mas meu coração e minha vontade<br />

de viver estavam em cinzas! A vida é difícil e repleta de mágoas!<br />

Muitas vezes, o desespero nos conduz a loucuras que podem atingir<br />

muito mais do que a nós mesmos.<br />

Mas eu não havia morrido. Pelo menos parecia que não.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Como o ser humano é tendencioso, seu desejo de ser importante<br />

é mais valioso do que comer e beber!<br />

A imposição de se destacar no seio da comunidade surge em<br />

quem mira o poder como o líquido precioso da vida e do prazer!<br />

Nada pode abalar o império consolidado de força e soberania,<br />

mesmo que seja algo justo, tira-lhe o brilho de estar acima da lei e<br />

perturba o olhar dos poderosos.<br />

A vida é difícil E repleta de sonhos! O sistema social imposto,<br />

entretanto, rouba até os sonhos que ainda não foram sonhados e os<br />

sorrisos de prazer ainda não provocados! Transforma a liberdade<br />

e até mesmo o próprio sentimento de que somos uma pessoa, com<br />

direitos e obrigações, em um ambiente de privações e humilhação<br />

moral. Até que o próprio desejo de viver acaba como o último gole<br />

de uma bebida que antes era gelada, doce e gasosa, mas cujo resto<br />

se torna amargo, morno e sem espuma.<br />

Ao lembrar de tudo isso, fui até um canto e fiquei de cabeça<br />

baixa, sem dizer nada, olhando para o chão até as lágrimas rolarem<br />

e caírem na terra.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 53


CAMPO DE CONCENTRAÇÃO<br />

54<br />

– Olha o café, moçada! Olha o café!<br />

Uma voz gritando pelo corredor, às sete horas da manhã de um<br />

dia bastante frio e com neblina cobrindo a serra que fica atrás da<br />

clínica, onde há uma horta.<br />

Vi que os pacientes iam se deslocando para a área da cozinha<br />

e uma fila se formou. Fiquei atrás na fila, e os pacientes foram<br />

entrando. Logo também entrei.<br />

Havia uma pessoa atrás de um balcão que, com um garfo,<br />

pegava o pão para cada paciente e logo em seguida outra servia café<br />

e leite. Os copos eram de plástico, iguais aos que há duas décadas<br />

eram usados para servir leite na escola onde estudei.<br />

A cozinha tinha três mesas grandes de madeira, uma ao lado<br />

da outra, e os bancos eram contínuos. Os pacientes se sentaram<br />

e tomaram o café. Do outro lado da cozinha, o mesmo aparato<br />

separava os pacientes crônicos, e, em outra ala, ficavam as<br />

mulheres internas. Fiquei em pé, próximo à porta, observando<br />

tudo que acontecia.<br />

Em seguida, logo após tomar o café, fui caminhar pelo corredor,<br />

olhando bem a fisionomia de cada um, tentando formular uma<br />

opinião sobre aquele local.<br />

Num primeiro momento, imaginei-me num campo de<br />

concentração. Estava preso àquela realidade, internado contra a<br />

minha vontade, com base no laudo de um médico, por eu ter tentado<br />

suicídio e sobrevivido ao choque contra um metrô.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Havia uma sala de enfermagem próxima à cozinha e, ao passar<br />

por lá, uma enfermeira perguntou se eu havia tomado o remédio.<br />

Não estava sabendo de nada e, por isso, perguntei. Ela esclareceu<br />

que todos os pacientes ali internados tomavam algum tipo de<br />

medicamento receitado pelo médico que acompanha o tratamento.<br />

No meu caso, estavam receitados dois calmantes pela manhã e, à<br />

noite, um calmante mais forte para ajudar no sono.<br />

Era tudo muito regrado! O café da manhã era servido às sete<br />

horas, os portões da área externa eram abertos às oito e meia. Então,<br />

os pacientes tinham de ir para fora para participar da caminhada<br />

ou de terapia ocupacional, numa área onde eram feitos desenhos,<br />

objetos de decoração, artesanato ou exercícios físicos.<br />

A caminhada era acompanhada por algum funcionário da<br />

clínica em uma estrada de terra que, segundo eles, se estendia por<br />

dois quilômetros, até uma igreja, num povoado próximo.<br />

Nos primeiros dias, não participei de nada. Estava muito<br />

abalado por estar ali. Quando a vendinha abria, eu comprava<br />

cigarros e ficava olhando o movimento lá na rodovia através da<br />

grade da clínica, tomando o sol da manhã.<br />

O almoço era servido às onze horas. Meia hora antes, de<br />

segunda a sexta-feira, os pacientes assistiam a palestras sobre<br />

temas variados.<br />

Novamente a fila para o almoço: cada um pegava o prato e<br />

as cozinheiras colocavam a comida. Após o almoço, não havia<br />

muito que fazer. Podia-se assistir o jornal pela televisão na sala de<br />

palestras, fumar um cigarro ou deitar na cama. O espaço de terapia<br />

ocupacional ficava fechado para que as terapeutas Lígia e Claudete<br />

também fossem almoçar e pudessem ter um horário de descanso.<br />

Na parte da tarde, o recinto funcionava somente a partir das treze e<br />

trinta, ficando até as dezesseis e trinta.<br />

Era proibido o uso de celular dentro da clínica e todos os<br />

aparelhos dos pacientes ficavam guardados com a assistente<br />

social, desligados e identificados, e somente eram devolvidos<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 55


aos familiares em dia de visita ou quando o paciente recebia<br />

alta. Isso era justificado pela assistente social, senhora Iara, pelo<br />

fato de que ali estavam internados alguns pacientes que tinham<br />

vício em álcool e drogas e que usavam o celular para pedir o<br />

que sentiam desejo de consumir. De madrugada, o ilícito era<br />

jogado por cima do muro na direção do pátio interno, quando<br />

todos estivessem dormindo, sendo rapidamente recolhido pelo<br />

paciente interessado.<br />

Às quinze horas, havia o café da tarde e às dezessete, era<br />

servido o jantar. Após esse horário, às dezenove horas, era servido<br />

um mingau, leite queimado ou achocolatado quente.<br />

As roupas de cada paciente eram identificadas com o seu nome<br />

e guardadas na rouparia, em armários individualizados, para que<br />

nada fosse misturado.<br />

Todas as manhãs cada paciente levava um par de roupas sujas<br />

para a rouparia e à tarde, antes das dezessete, ia buscar um par de<br />

roupas limpas. Isso para evitar trocas de roupas entre pacientes ou<br />

até mesmo o sumiço de alguma peça.<br />

O portão da área externa era fechado às dezessete e após esse<br />

horário os pacientes não tinham mais acesso à área externa da<br />

clínica.<br />

As noites eram monótonas! Não havia muito que fazer também.<br />

Os pacientes mais velhos dormiam sempre muito cedo.<br />

Havia um paciente, o Sebastião, que costumava tocar gaita em<br />

alguns dias da semana no pátio próximo à cozinha. Vez ou outra,<br />

alguns se animavam a jogar baralho ou uma sinuca, que ficava na<br />

sala de palestras.<br />

Sebastião era um policial aposentado. Dizia que quando chegou<br />

à clínica ainda era do serviço ativo, que tinha problemas com as<br />

bebidas e foi internado pela família.<br />

Então comecei a fazer amizade com os pacientes do meu quarto.<br />

Havia o Fausto, que estava com problemas de excesso de<br />

bebida, e, para minha surpresa, trabalhava na mesma empresa que<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

56


eu, porém numa repartição em outra cidade. Ele contou que passava<br />

por problemas em seu casamento e também no serviço, sendo<br />

constantemente perseguido, embora passasse por tratamento<br />

médico há algum tempo. Contou de outros funcionários que<br />

também sofriam perseguição e contou sobre sua vida lá na cidade<br />

onde morava, das pessoas que tinha saudade e das festas.<br />

Sobre o assédio moral, falou que nos anos em que trabalhou na<br />

repartição presenciou diversas formas de abuso, cometidas sempre<br />

com o conhecimento da gerência, mas que nada era feito para<br />

melhorar as condições de trabalho dos mais baixos na hierarquia.<br />

Havia o João, um paciente que estava internado há dezoito<br />

anos na clínica, e tinha autorização para sair nos finais de semana<br />

para ir até a cidade próxima. Dizia que estava internado por causa<br />

de bebida e que a família, no caso seus irmãos, não o aceitavam em<br />

casa por causa do vício.<br />

O Deivisson, um paciente que tinha uma televisão, um aparelho<br />

de DVD e alguns outros pertences, era uma pessoa muito alegre e<br />

descontraída, comunicativo que só! Após alguns dias, foi mudado<br />

de quarto, pois concordou em cuidar de um paciente mais idoso que<br />

dormia num quarto particular de apenas duas camas. O Deivisson<br />

o ajudava a se vestir e tomar banho e lhe buscava o café. À noite,<br />

sempre fazia café numa cafeteira elétrica e levava para os outros<br />

pacientes, passando sempre em nosso quarto para conversar um<br />

pouco.<br />

O Osvaldo não era muito comunicativo. Sempre calado, nunca<br />

se soube nada sobre ele. Dormia cedo e ao acordar saía do quarto e<br />

se isolava do resto das pessoas.<br />

O Borges reclamava o tempo inteiro de estar internado.<br />

Não conversava conosco. Falava somente para si mesmo sobre<br />

a infelicidade da vida, que aquele lugar não resolveria nada, que<br />

queria ir embora e que sua família o odiava. Outras vezes, reclamava<br />

do governo por haver tanta corrupção num país com excesso de<br />

riquezas, mas que, devido à corrupção, não consegue crescer.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 57


Falava sobre fraudes nas loterias e jogos autorizados pelo governo,<br />

dizendo que sempre jogava em vários jogos antes da internação e<br />

que os resultados eram manipulados.<br />

Citava casos famosos de corrupção e desvio de dinheiro<br />

envolvendo a política e as obras públicas, e que, embora veiculados<br />

pela mídia, não resultavam em nada, e, quando muito, o responsável<br />

cumpria prisão domiciliar em mansão que havia adquirido com o<br />

dinheiro do povo. Falava de abusos de autoridade das polícias<br />

em seu estado. Que já apanhou de um policial que comandava o<br />

policiamento em um evento de manifestação pública e que recebeu<br />

um golpe de bastão porque gritava bastante e segurava uma faixa<br />

de protesto.<br />

Na verdade, uma onda de revoltas populares tomara conta do<br />

país nos últimos meses. A sociedade já não aceitava a corrupção, o<br />

abuso de poder e o assédio moral dos mais fortes impingindo aos<br />

mais fracos todo tipo de exclusão de direitos.<br />

Havia, em todo o país, uma onda crescente de descontentamento<br />

com o desvio de dinheiro público e com a precariedade da segurança<br />

pública e dos serviços públicos de saúde, devido à falta alarmante<br />

de profissionais e de prédios para atender a população. O povo<br />

descobriu que democracia é o governo do povo por meio de seus<br />

representantes eleitos, e não a monarquia que vinha sendo exercida,<br />

onde o representante não cumpria nada do que era prometido em<br />

campanha política.<br />

E a noite caiu com a neblina cobrindo todo o horizonte.<br />

Olhava pela janela do quarto enquanto fumava um cigarro.<br />

Ainda estava muito abatido por estar internado e não aceitava o<br />

fato de estar ali contra a minha vontade.<br />

Conversava muito com o Fausto. Ele dizia que estava internado<br />

há dois meses e que logo receberia alta. Que o tempo de internação<br />

fez muito bem e que agora está mais controlado emocionalmente!<br />

Depois, fui até o posto de enfermagem tomar o remédio da<br />

noite e veio um sono muito forte! Então dormi pela primeira vez<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

58


na clínica, após passar um dia inteiro acordado, apenas observando<br />

tudo que ali havia e como funcionava.<br />

Conheci pessoas que fariam parte do meu convívio diário e não<br />

deixava de pensar na tristeza da vida e em tudo que aconteceu de<br />

ruim para que chegasse ao ponto de ser necessária minha internação<br />

numa clínica psiquiátrica.<br />

A noite estava calma! Havia muitos cobertores disponíveis para<br />

cada paciente devido ao frio intenso da época do ano. Ao adormecer,<br />

meu corpo mergulhou profundamente no sono, derramando num<br />

arfar toda a carga de pensamentos que permaneceram em minha<br />

mente por todo o dia.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 59


A HORTA<br />

60<br />

Havia uma plantação agrícola nos fundos do lugar. Tudo muito<br />

bem feito e cultivado na terra, semelhante à típica horta do campo!<br />

De um lado, eram cultivadas couves, no outro, umas alfaces,<br />

cebolinha, cenouras e outros legumes. Havia uma amoreira muito<br />

grande, e deu vontade de provar dos seus frutos, porém, nessa época<br />

do ano, estavam muito verdes e ainda sem o doce sabor das amoras.<br />

Lá no final da horta, havia um espantalho voltado para a<br />

montanha que, de tão parecido com espantalho, no fim das tardes<br />

e cair da noite, parecia que ganhava vida e ficava dançando um balé<br />

da noite. Um fantasma acordado pelos pensamentos e aspirações<br />

de quem apenas via a tudo do lado de dentro da clínica.<br />

Era uma troca de papéis, pois, a cada manhã, o espantalho<br />

cumpria sua missão, afugentando os pássaros que costumavam<br />

atacar as plantações ou animais de terra que fariam buracos e<br />

estragariam tudo o que era cultivado.<br />

Nas noites, entretanto, ao ganhar vida, impulsionado pelos<br />

nossos sonhos, que às vezes fogem da realidade, para alimentar de<br />

fantasia um ambiente interno que foi esvaziado pelas tristezas, por<br />

sentimentos tolos de justiça que muitas vezes não serão vistos, por<br />

privações da saúde, de afeto, de carinho, vem o simpático fantasma<br />

protetor da horta a dançar lá no final daquela plantação, o que, na<br />

verdade, não é mais que o vento forte da noite trazendo a geada e<br />

sacudindo o boneco de pano de um lado para o outro, enquanto sua<br />

plateia imóvel apenas observava das janelas de grades finas.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A VENDINHA<br />

Havia uma vendinha na saída da clínica, onde os pacientes<br />

compravam lanches e cigarros para fumar à noite. Tudo<br />

metodicamente controlado!<br />

Cada paciente dispunha de uma conta para poder gastar a cada<br />

dia, um valor módico, somente a quantidade de dinheiro disponível<br />

para o dia, num limite que era depositado antes pelos parentes.<br />

Isso ensinava a regrar o dinheiro. Era uma vendinha simples,<br />

porém tinha uma diversidade de materiais muito grande! Desde<br />

barbeador até sabonete, doces da roça, cigarros, bolos, sanduíches,<br />

sucos e refrigerantes...<br />

Todas as manhãs, os pacientes crônicos eram liberados mais<br />

cedo para se deslocarem até a vendinha e comprar o que precisassem<br />

para o dia, e, no horário das oito e meia, nós éramos liberados para<br />

a mesma ala externa para também comprar alguma coisa antes das<br />

atividades da manhã.<br />

Formava-se uma fila de pacientes os quais logo escolhiam o que<br />

queriam e depois iam para alguma atividade.<br />

Um balcão pequeno, com vitrine de vidro, contendo doces<br />

e biscoitos, algumas prateleiras com salgadinhos, cigarros,<br />

doces caseiros, bolos e sabões. Duas geladeiras, uma cafeteira e,<br />

pendurados no canto da parede, utensílios de higiene pessoal.<br />

A vendinha continuava aberta até o horário próximo ao almoço,<br />

e fechava por algumas horas, voltando a abrir depois das treze e<br />

fechando antes das dezesseis.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 61


Um casal se revezava nos dias de trabalho. Uma mulher loira e<br />

um rapaz moreno.<br />

A vendinha abria todos os dias da semana para atender os<br />

pacientes, e os preços eram módicos, nada aquém nem além do<br />

justo preço para cada mercadoria.<br />

Às vezes, na fila eu ficava ansioso por causa de algum cliente<br />

indeciso que demorava a fazer o pedido, mas também isso era<br />

ensinamento! Ensinava a ser paciente!<br />

Em algumas ocasiões, à noite, depois que a vendinha fechava,<br />

fumando um cigarro diante da janela de grades finas do quarto onde<br />

dormia, eu me pegava olhando para a porta da vendinha e lembrava<br />

os momentos de confusão na fila das manhãs, percebia a calmaria<br />

que deixava no ar até mesmo ecos e risos.<br />

Ficava pensando na diferença desse lugar, tão calmo e correto,<br />

daquele de onde eu vim, agitado e truculento.<br />

E a vendinha tão simples e com uma fundamentação de<br />

existência mais definida que muitas pessoas ou empresas! Ela<br />

cumpria sua missão de servir aos pacientes sem nenhum cunho<br />

pessoal, ao contrário de muitas empresas e até órgãos públicos,<br />

que se subordinam ao chefe, governo ou comando, e são obrigadas<br />

a agir conforme desejos e aspirações pessoais de quem no papel é<br />

um instrumento a serviço das pessoas, mas acaba por menosprezar<br />

a própria essência do cargo que ocupa para atender a interesses<br />

subjetivos.<br />

Bom é ver que um universo pode ser pequeno, mas sendo bem<br />

definidos os seus fundamentos, e na prática tudo que se executa é a<br />

missão de atender, tudo ocorre conforme o que foi planejado lá no<br />

início.<br />

A vendinha é o centro de compras dos pacientes da clínica.<br />

62<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O LIXADOR DE CHAVES<br />

João não era muito comunicativo até um mês atrás, segundo o<br />

Fausto.<br />

Estava internado há dezoito anos e gostava muito de ficar<br />

lixando chaves que não eram próprias dos cadeados nos quais<br />

tentava encaixá-las. Era o seu passatempo preferido!<br />

Dizia que quando chegava paciente novo evitava puxar<br />

conversa, pois cada um ali tinha um problema diferente lá fora, e que<br />

justamente por não conhecer o sofrimento dos outros, esperava que<br />

os próprios novatos se adaptassem ao lugar para depois procurar<br />

diálogo. Entendia bem do sofrimento alheio!<br />

Dizia que nos anos em que estava internado pôde aprender<br />

muito sobre o mundo fora da clínica, o que o fez acreditar estar<br />

seguro no lugar contra toda uma sociedade autoritária, interesseira<br />

e impositiva, em que a necessidade de ser importante é motivo para<br />

humilhar, desacatar, privar de direitos os mais fracos e humildes e<br />

que tudo gira em torno do interesse pessoal e do dinheiro.<br />

As pessoas não sentem fome, frio ou calor; querem é ser<br />

importantes dentro da sociedade. Um mar de cobras onde cada<br />

uma tenta picar as outras com mais força para tirá-las do caminho<br />

da autoafirmação.<br />

Os seres humanos não estão nem aí para o amor, se casam por<br />

mera conveniência. Ou porque querem melhorar de vida, ou para<br />

ter alguém para lavar as louças, ou porque os pais querem ostentar<br />

um genro ou nora dignos da fidalguia, de porte, loiros, olhos claros<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 63


e, claro, endinheirados. Dizia isso baseado na experiência de ter<br />

conhecido tantas e tantas pessoas diferentes ao longo de muitos<br />

anos internado.<br />

A única vez que falou em família somente se referiu aos<br />

familiares como “aqueles que não me querem”.<br />

Seu fumo de rolo, já picado e guardado metodicamente em<br />

trouxinhas de plástico, até semelhantes às trouxas de maconha<br />

que são vendidas nas grandes cidades, digo, nas grandes, pequenas,<br />

médias, na roça, nas escolas, nos bares, no teatro, no cinema, nas<br />

ruas e vielas, em todo lugar.<br />

Depois de um tempo, apelidamos o João de “bumbum de<br />

veludo”, devido ao fato de ele ficar lixando as chaves. Lustrava<br />

cada uma como se não estivesse ainda com o brilho aveludado que<br />

esperava.<br />

Fizemos piadas, criamos uma musiquinha, enfim, conseguimos<br />

adquirir mais confiança do João para conversar.<br />

Ele era uma pessoa boa, embora guardasse em silêncio uma<br />

mágoa muito grande, que jamais conseguimos que revelasse nos<br />

diálogos, e isso é coisa que está guardada sob sete chaves, dentro<br />

de seu coração.<br />

64<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O REJEITADO<br />

Nenhum interno da clínica gostava de um paciente, o Lucas<br />

Stephanini, que veio da cidade grande.<br />

Diziam que ele era muito fofoqueiro! Que contava ao enfermeiro<br />

chefe todas as conversas que havia entre os pacientes e que<br />

reclamava de qualquer coisa que o incomodasse.<br />

Diziam que se achava melhor do que os outros e que era<br />

arrogante a ponto de dar respostas grosseiras a funcionários da<br />

clínica, sob o pretexto da conversa ou da pergunta feita ser estúpida.<br />

Sentia-se protegido contra todos pelo fato de seu pai ser uma<br />

pessoa muito influente e chefe de polícia na cidade de onde viera.<br />

Foi internado pelo próprio pai, como medida de segurança, pelo<br />

fato de ter problemas com uso de drogas.<br />

Era comum haver alguma confusão envolvendo o Lucas.<br />

Ameaças do Franklin, um paciente do mesmo quarto, que sempre<br />

discutia com ele no corredor, chegando a apontar o dedo em riste<br />

ou dar empurrões.<br />

Também em outra oportunidade, o Deivisson saiu de licença<br />

para passar o dia na cidade e o Lucas comentou com o enfermeiro<br />

chefe que ele havia comprado uma faca para cortar laranjas e entrou<br />

com ela escondida na clínica. Quando foi dada busca no quarto, a<br />

faca de serra estava entre as coisas do Deivisson, e ele teve de passar<br />

a noite no R3, que é um quarto de pacientes mais problemáticos,<br />

na ala dos pacientes crônicos. Uma espécie de castigo para quem<br />

provocasse algum problema dentro da clínica.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 65


Depois desse dia, o Deivisson o cercou no corredor, só não<br />

vindo a machucá-lo porque nós o seguramos.<br />

Lucas também tinha problemas com a Adalgisa, uma garota<br />

menor de idade que estava internada por ordem judicial por ter<br />

se envolvido com drogas. Ele criticava demais a jovem, a ponto de<br />

provocar bate-boca no corredor, dos quais sempre escapava calado<br />

para o quarto após ter armado a confusão.<br />

O rejeitado sabia da sua condição de pessoa não aceita na<br />

clínica, mas parecia não se incomodar com isso, bloqueando os<br />

ouvidos para toda a carga de rejeição social que o cercava.<br />

Ouvia conversas no corredor, fazia intrigas, era sempre<br />

criticado por suas condutas, mas não procurava se acertar para ter<br />

uma aceitação.<br />

Seu egocentrismo parecia falar mais alto sempre que algum<br />

problema acontecia.<br />

Lucas também denunciou uma tentativa desesperada de fuga de<br />

uma paciente, a Vera. Foi num dia de visitas, quando ela aproveitou<br />

o portão aberto e fugiu. Porém, como o Lucas denunciou-a<br />

rapidamente, até apontando a direção em que ela havia corrido, em<br />

pouco tempo ela estava de volta, trazida por funcionários.<br />

Escapou de ficar de castigo no R3 porque tomava conta de um<br />

paciente bem idoso e com problemas mentais, um fazendeiro que<br />

foi internado pela família, pois não queriam cuidar dele em casa.<br />

66<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O FAZENDEIRO<br />

Havia um senhor de idade bem avançada internado na clínica.<br />

A família decidiu pela sua internação, pois ele já não batia bem da<br />

cabeça.<br />

Lá na fazenda, de que ainda era o dono, fazia artes igual criança<br />

e, já cansado de tanto que trabalhou para erguer o império das mais<br />

de mil cabeças de gado, dez mil galinhas, uma vasta plantação de<br />

cana-de-açúcar, os alambiques de produção de cachaça e se envolver<br />

nos negócios agrícolas, acabou enlouquecendo.<br />

Aos 89 anos, era milionário e sofredor. Todos os dias, acordava<br />

às quatro e meia da madrugada, embora não tivesse despertador<br />

perto do leito, e os galos que cantavam na fazenda ficassem muito<br />

longe, sendo impossível que o velho pudesse ouvi-los de seu quarto.<br />

Mas sua pontualidade era invejável!<br />

A Vera tinha um carinho todo especial pelo fazendeiro, a quem<br />

tratava como um familiar!<br />

Caminhava pelos corredores da clínica chamando os bois e<br />

costumava arrastar os tapetes que encontrava pelo caminho falando<br />

com eles para não se desgarrarem da boiada. Então depois de juntar<br />

todos os tapetes em um mesmo lugar falava com eles para não se<br />

afastarem para a direção do precipício, e depois voltava a percorrer<br />

os corredores.<br />

Se alguém o reprimisse, então lhe voltava um pouco de lucidez<br />

e se lembrava de que, na verdade, aquilo era um tapete e não um boi.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 67


Costumava fazer as necessidades em algum canto do corredor,<br />

quando não havia ninguém olhando. Se fosse surpreendido, falava<br />

que estava no mato, que não era proibido fazer ali, e, procurando<br />

nas paredes por folhas de bananeira ou qualquer outra coisa para<br />

se limpar, acabava por sujá-las com marcas de fezes, ao que ele agia<br />

com naturalidade.<br />

Quando passava por alguma crise, tentava de todas as maneiras<br />

fugir da clínica a fim de voltar para sua fazenda que com tanto<br />

esforço ergueu. Subia em cadeiras e tentava escalar as paredes como<br />

se fossem árvores.<br />

Seus filhos e netos até costumavam aparecer, quando não<br />

estavam ocupados usufruindo dos tantos bens..<br />

Em seu olhar cansado, o peso de uma vida que se notava na<br />

quantidade de rugas e nos calos que se amontoaram uns sobre os<br />

outros nas mãos e nos pés para criar os filhos e também os primeiros<br />

netos que já eram casados e já lhe haviam dado seis bisnetos.<br />

Dos filhos, apenas um dos nove morava na fazenda. Todos os<br />

outros queriam distância do lugar, refugiando-se no conforto da<br />

cidade grande, longe da sujeira e do cheiro do gado.<br />

E os dias se passavam com o velhinho fazendo todas as manhãs<br />

o seu trabalho nos corredores, juntando seus bois e nunca deixando<br />

nenhum deles espalhado.<br />

E se guardava mágoas de sua família pelo abandono daquele<br />

que nem viveria mais tanto tempo e lhes deixaria tudo, ninguém<br />

sabe dizer. Seu olhar parecia implorar por um leve resquício de<br />

dignidade em acolher na velhice quem tanto serviu.<br />

Ninguém podia saber se possuía lucidez para se sentir<br />

magoado, pois não se sabia diferenciar os momentos de loucura que<br />

são muitos, dos poucos instantes de lucidez quando falava sobre a<br />

vida na fazenda.<br />

68<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


OS BOIS<br />

A natureza foi transformada! Onde antes havia floresta, que de<br />

tão densa era necessário abrir caminho entre os cipós, hoje existe<br />

pasto.<br />

Um imenso tapete verde que ia até a encosta da montanha,<br />

onde, antes, cantavam pássaros, agora somente galos antes do<br />

amanhecer, chamando os senhores para tocar o gado para o<br />

campo.<br />

Os bois ficam pastando no campo de futebol existente em<br />

frente da clínica. São ao todo dezessete animais, todos de grande<br />

porte. Já adultos e prontos para o abate. São tão submissos!<br />

Aceitam o fato de a vida se resumir apenas em comer o capim e<br />

seguir de um canto a outro, obedecendo a horários que nada dizem.<br />

Seus donos aguardam que cresçam mais um pouco ainda para o<br />

dia de servirem de alimento e serem vendidos aos frigoríficos lá<br />

da cidade.<br />

Cada um dos bois sabe a sua função de cada dia, de apenas comer<br />

grama na parte da manhã e depois de determinado horário, assim<br />

que o boi mais graduado na hierarquia sair do pasto, os demais em<br />

fila e pisadas retas devem seguir a mesma direção.<br />

Obedecer a horários para o pastoreio na fazenda é a única<br />

função a ser executada a cada dia. Não há outra filosofia de vida.<br />

Esses animais de grande porte, em eras remotas, teriam uma<br />

sociedade selvagem semelhante aos mamutes ou aos búfalos e<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 69


seriam caçados por homens nômades que morariam em cavernas.<br />

Mas teriam uma vida livre e sem as regras impostas pelo seu senhor.<br />

Hoje são simples cumpridores de ordem, sem vontade própria e<br />

sem condições de modificar o sistema regrado e sem fundamento<br />

ao qual pertencem.<br />

O que difere esses animais de alguns setores da sociedade é<br />

que, durante o trajeto que fazem pela trilha da estrada de terra ao<br />

deixar o campo todas as manhãs, um boi não pisa na merda deixada<br />

pelos bois que conduzem a boiada, antes disso, sabem desviar do<br />

excremento deixado pelos que vão à frente.<br />

Nosso sistema é diferente! Muitas vezes os erros dos que<br />

conduzem são seguidos cegamente por quem não detém tanto<br />

poder de decisão, e apenas seguem por medida única e exclusiva<br />

do interesse em agradar quem pode prejudicar os mais baixos,<br />

mesmo que para isso seja necessário pisar na merda que é deixada<br />

no caminho.<br />

Por isso é pregado que não se deve desagradar quem está no<br />

topo, pois poderá haver retaliação, e a vida, que já é difícil, passa a<br />

ser mais difícil ainda, ao ponto de já não se imaginar escolha a não<br />

ser dar cabo da própria existência!<br />

Os bois, entretanto, não sabem se matar, mas todos sabem que<br />

irão morrer. E dias antes do abate, um dos dezessete bois saiu pelo<br />

campo em linha reta a caminho da rodovia.<br />

Passos lentos, devido ao seu grande peso, porém decididos.<br />

Não se desviou pelo caminho, nem para a direita nem para a<br />

esquerda. Saiu pelo portão de entrada, onde os outros bois ficavam<br />

pastando como de costume.<br />

Em pouco tempo somente o que se podia enxergar nesse dia<br />

tão nublado era um ponto negro chegando até a rodovia, seguindo<br />

talvez para a sua última jornada e levando consigo um viajante<br />

desatento.<br />

Seria uma vingança daquele boi contra o seu dono ou contra a<br />

70 má sorte da própria existência? rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Sua carne ofertada de graça aos urubus, aos abutres que lá<br />

do céu acompanhavam a caminhada, voando em círculos, seria<br />

oferenda pacífica ou, na podridão da vida sem sentido, uma forma<br />

de afrontar o seu senhor?<br />

E depois de um tempo coberto pela neblina não vi mais o boi.<br />

Foi se formando uma grande fila de carros e caminhões em meio a<br />

uma neblina muito espessa.<br />

Nos dias que antecederam o abate, só contei os dezesseis bois<br />

que ficaram no pasto.<br />

Aquele que se extraviou sumiu para sempre e, embora o seu<br />

destino tenha sido o mesmo dos demais, houve uma revolta moral, e<br />

o boi que foi embora escolheu morrer por uma causa, a sua vontade<br />

própria, e não apenas pela vontade do seu senhor, a dolorosos<br />

golpes de machado na cabeça.<br />

Ele foi embora para a rodovia e, quando o caminhão bateu, o<br />

motorista quase não se feriu. É o que disseram os funcionários.<br />

Outro chegou atrasado por causa do acidente e falou que o<br />

caminhão ficou com a frente destruída, e não havia seguro. Que<br />

houve um congestionamento muito grande por causa do acidente<br />

e que muitos motoristas esperaram horas até que o caminhão fosse<br />

rebocado do local.<br />

Na verdade, as estradas são construções arquitetadas pela<br />

própria morte para desafiar os viajantes! Suas curvas são maliciosas<br />

e guardam o choro de muitas almas em suas histórias precocemente<br />

finalizadas.<br />

Os últimos segundos da vida que vai se apagar são negros!<br />

É possível enxergar ao longe quem usa a capa preta, vindo<br />

silenciosamente recolher o seu despojo.<br />

O que difere essa entidade sombria do senhor no dia do abate<br />

desses inocentes animais?<br />

Após a perda do boi, o vaqueiro passou a vigiar os demais e<br />

colocou dois cães para evitar que os outros escapassem para a<br />

rodovia como fez o primeiro.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

71


Chegou o dia do abate.<br />

Ao tomar sol pela manhã, o campo estava vazio e os bois não<br />

vieram como de costume. Nenhum deles.<br />

E depois disso não vi mais nenhum boi no campo de futebol ou<br />

na estrada de terra que vai para a fazenda.<br />

72<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A VELHA<br />

Uma das pacientes era uma senhora muito idosa.<br />

Ela já não conversava, porém seu rosto demonstrava muita<br />

raiva e tristeza.<br />

Era difícil para ela se alimentar, e os funcionários precisavam<br />

convencê-la da necessidade do alimento! Por vezes, era preciso que<br />

alguém a carregasse até o refeitório, pois se negava a sair do quarto.<br />

Estava internada havia alguns meses, segundo o João, e não aceitava<br />

contato com ninguém.<br />

A psicóloga Vanusa tinha dificuldades para tratá-la, mas<br />

sempre se empenhava bastante para que a idosa tivesse um pouco<br />

de recuperação, sem nunca ter desistido de devolver a ela um pouco<br />

da lucidez que uma vida já cansada havia levado. A velha estava<br />

com noventa e sete anos.<br />

Sua mentalidade não era a de uma pessoa normal, já que estava<br />

muito debilitada. Nas vezes em que estava mais nervosa, não<br />

deixava ninguém chegar perto. O Franklin tentava puxar conversa,<br />

e ela dava socos no ar na direção dele.<br />

Eu via em suas ações o sentimento de revolta, pois era uma<br />

pessoa já cansada de viver e não guardava senão vagas lembranças<br />

desconexas da vida. Já não falava e somente podia se expressar por<br />

meio de gestos e gemidos que sempre balbuciava quando alguém<br />

a carregava para o refeitório para se alimentar de sopa, já que nem<br />

dentes possuía mais.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 73


O CORREDOR<br />

74<br />

Era noite! A bruma cobriu todo o horizonte e lá do lado de<br />

fora da clínica uma fina camada branca escondia o verde da grama,<br />

tornando a vegetação escrava do frio intenso da estação.<br />

Eu havia acabado de ler um livro da autora Lucília Junqueira<br />

de Almeida Prado, chamado Antes Que o Sol Apareça, da biblioteca<br />

da clínica.<br />

Nele é retratada a difícil vida de uma família rural que vive<br />

das estações do ano, trabalhando como boias-frias e utilizando<br />

condições precárias de transporte nos antigos caminhões pau-dearara,<br />

que levavam os trabalhadores sem as mínimas condições<br />

de segurança, dependurados na caçamba, os quais provocavam<br />

muitos acidentes e geravam riscos à vida de todos.<br />

O livro é muito interessante, e a prisão à sua leitura me ajudou<br />

a formular inúmeras reflexões sobre minha morte espiritual.<br />

Lembro que, numa das passagens do livro, a personagem<br />

Rosa, filha do casal principal do livro, vai morar em São Paulo e<br />

há um acidente grave: o prédio onde ela trabalhava pegou fogo.<br />

Depois desse acidente, e com a morte da garota, se desenvolve<br />

um rito simples de amor à vida, na sentimentalidade do povo<br />

humilde em sua essência mais rica! A surpresa ficou por conta<br />

do final, quando o amor demonstra ainda mais querência em<br />

perdoar quem comete falhas tão graves de negação ao passado<br />

apenas pelo fato de a pessoa renascer da cinza e, embora por<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


uma tela de televisão, o coração humilde saber que ainda há<br />

esperança!<br />

Havia um corredor, de exatos quarenta metros, que dava<br />

acesso aos quartos. Foi ali, naquele local, que me concentrei e<br />

que ocorreu minha primeira reflexão sobre a vida. Lá no final do<br />

corredor, onde havia um sofá de dois lugares. Após ler o livro,<br />

fui pra lá meditar sobre a vida ruim de um pensador, enquanto a<br />

cerração corria pelo lugar com ferocidade e ousadia!<br />

Nos primeiros dias, desacostumado ao fato de estar internado<br />

e me sentindo desamparado frente a problemas tão cruéis quanto<br />

o assédio moral e o abuso de poder, ficava fumando cigarros, no<br />

final das tardes, para relaxar.<br />

E observava os pacientes da clínica, cada um com o seu modo<br />

de viver e conviver com o problema que os trouxe a esse lugar de<br />

tratamento. Ao mesmo tempo, sentia profunda indignação com<br />

a impotência dos mais fracos perante o poder maquiavélico dos<br />

sistemas social e profissional humanos.<br />

Não há socialismo nas ações dos homens de negócios. Não há<br />

apoio mútuo nem compaixão com os problemas alheios. O que há<br />

é somente o desejo de ser onipotente a qualquer custo.<br />

E ali no corredor, filosofando sobre a vida, aceitando cada vez<br />

mais o fato de estar doente, tendo meus ideais inoculados pelo<br />

peso maléfico dos verdadeiros doentes morais, olhava o corredor<br />

em sua extensão e me lembrava do dia do acidente, das loucuras<br />

que pairaram sobre minha mente naqueles momentos de terror,<br />

lembrava os gritos das pessoas, a freada brusca do metrô e o<br />

momento em que fui sedado no hospital.<br />

O corredor parecia uma passagem ou uma travessia! Cada<br />

vez que eu cruzava a sua extensão era como se houvesse algo<br />

de muito importante a fazer do outro lado, mas nunca havia.<br />

Eu era um morto em cinzas, porém com as funções vitais ainda<br />

íntegras.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

75


MÃOS TRÊMULAS<br />

76<br />

A abstinência das drogas provoca sensações diferentes em cada<br />

pessoa.<br />

Percebi que vinha lá do final do corredor um senhor de idade,<br />

recém-internado. Ele tinha vendido todos os móveis da casa para<br />

comprar entorpecentes.<br />

Após o período inicial de desinfecção, suas mãos ficavam<br />

tremendo, sem coordenação.<br />

Ao me ver fumando, veio depressa. Sentou-se do outro lado da<br />

poltrona e, como não tinha cigarros, de maneira bem tímida, pediume<br />

um.<br />

Contou-me sobre a vida os motivos que o levaram a aceitar a<br />

internação:<br />

– Em minha cidade eu era muito conhecido! Tinha o meu<br />

comércio na praça, fui casado por mais de dez anos. Era feliz!<br />

– E como isso tudo começou, senhor Elias? Perguntei fitando<br />

seu semblante resignado, de olhos rígidos e atentos!<br />

– Foi logo após ela ter ido embora. Eu a amava muito!<br />

– Como foi isso?<br />

Ela descobriu que eu usava drogas, mas nunca fui de brigar<br />

com ela. Eu fumava meu cigarrinho escondido, na casa de um<br />

amigo, e depois ia embora, tomava meu banho, levava frutas e<br />

verduras.<br />

– Mas isso não é motivo...<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Espera, tem mais. Ela estava querendo se separar já havia<br />

um tempo. Dizia que estava infeliz longe dos pais e queria ficar<br />

mais tempo com eles. Começou a fazer viagens constantes que<br />

demoravam quase o mês todo.<br />

– Sentia que ela já não o amava? Perguntei, demonstrando<br />

curiosidade em ouvir o que ele tinha a dizer. Reparei suas mãos<br />

cada vez mais trêmulas segurando o cigarro, deixando até mesmo<br />

algumas cinzas caírem sobre a roupa.<br />

– Foi tudo muito de repente! Ela foi embora. Separou-se de mim<br />

e levou metade de tudo. Vendi a casa e a loja, depositei o dinheiro na<br />

conta do banco e, depois de um tempo, veio um oficial de justiça me<br />

procurar para assinar os papéis.<br />

– E depois disso, não se falaram mais?<br />

– Ela sumiu no mundo. Tentei ligar algumas vezes, mas nunca<br />

atendia minhas ligações.<br />

– Compreendo...<br />

– Fui morar numa estalagem em outra cidade e comecei a beber<br />

muito, cada vez mais afundando nas drogas até que comecei a<br />

roubar por não ter mais dinheiro. Havia perdido tudo.<br />

– Então está internado por ordem judicial.<br />

– Vou cumprir pena aqui. Fui julgado, e foi determinada a<br />

internação para me tratar.<br />

– Mas o que fez?<br />

– Depois de um tempo a encontrei. Estava casada com outro<br />

homem. Eu era um mendigo que ficava pedindo esmolas no centro e<br />

a vi passando com aquele rapaz bem mais novo do que eu, sem ruga<br />

no rosto e porte de atleta.<br />

De repente, as mãos de Elias começaram a tremer mais ainda, e<br />

ele começou a ficar mais agitado.<br />

– Entendo. Essas coisas nos tiram do sério mesmo. Escute, tome<br />

mais um cigarro e me conte o que houve, vai ajudar a descarregar<br />

esse peso.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 77


– Eu tentei matar o homem, mas, quando dei a facada, pegou de<br />

raspão no braço e só veio a sangrar. Várias pessoas estavam na rua<br />

e me seguraram. Um deles até me conhecia de tanto ficar naquele<br />

lugar, pedindo dinheiro e comida. Não deixou que me batessem.<br />

– E depois?<br />

– Fui preso, e algumas pessoas, que me conheciam dos tempos<br />

da venda que eu possuía na praça da antiga cidade, procuraram me<br />

ajudar. Eles nem sabiam de tudo o que estava acontecendo comigo.<br />

– E vai ficar aqui por muito tempo?<br />

– Eu quero ficar. Se eu sair daqui, não terei nem onde passar as<br />

noites. Não me sobrou nada na vida.<br />

Fiquei imaginando o que poderia estar passando pela cabeça<br />

dele, mas tentar entender um problema tão sem solução acaba<br />

fazendo com que pensemos nos nossos próprios e ficamos também<br />

tristes e deprimidos.<br />

Então, ao se levantar e caminhar pelo corredor, novamente as<br />

mãos tremiam, denunciando a falta do entorpecente para o corpo e<br />

o vazio da própria existência, difícil de preencher novamente com<br />

qualquer tipo de plano ou sonho.<br />

Havia uma paciente na ala feminina cujas mãos também<br />

ficavam tremendo bastante, em determinados dias, e esse estado se<br />

espalhava pelo corpo, provocando também movimentos na cabeça.<br />

Todos os dias, cumprimentava a todos, lá do balcão da área feminina<br />

da cozinha. Às vezes, pedia que jogássemos um cigarro e, em dias<br />

em que estava mais aflita pela carência de entorpecente, ficava<br />

agressiva e nem os remédios controlados, que todos os pacientes<br />

tinham de tomar, ajudavam-na a se acalmar.<br />

78<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A RODINHA DE BRASAS<br />

Por motivos de segurança, devido ao fato de haver internos<br />

com sérios distúrbios mentais, era proibido que qualquer paciente<br />

tivesse isqueiros ou fósforos em seu poder, mesmo que bem<br />

guardados. Era a regra, sem exceção.<br />

Qualquer funcionário que visse algum paciente com isqueiros<br />

tinha ordem para tomar e guardar no posto de enfermagem.<br />

Então, quando algum paciente conseguia acender um cigarro,<br />

os demais que fumavam sempre pediam a brasa emprestada para<br />

acender seus cigarros. A brasa era passada de cigarro em cigarro<br />

e durante o dia era raro que não houvesse ao menos uma pessoa<br />

fumando.<br />

O paciente que passava pelo pátio procurava para ver se havia ali<br />

alguém fumando, o que era comum, para pedir a brasa emprestada e<br />

acender seu cigarro.<br />

Alguns pacientes conseguiam esconder isqueiros e, à noite,<br />

acendiam cigarros quando a rodinha de brasas já estava desfeita.<br />

Então sempre aparecia um, como que guiado pela fumaça, pedindo<br />

a brasa emprestada.<br />

Era algo que fazia até mesmo o paciente que já estava deitado<br />

sair do quarto, ao perceber que havia alguém fumando, pois a grande<br />

maioria ali não tinha isqueiros e quem os tinha escondia bem para<br />

evitar que fossem recolhidos pelos funcionários.<br />

Para acender o cigarro, ia até o esconderijo, acendia rapidamente<br />

e voltava a guardar o objeto valioso tão cobiçado!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 79


OS REMÉDIOS DO DESEJO<br />

Desde o dia em que cheguei aqui na clínica, algumas sensações<br />

como o desejo foram praticamente abolidas do meu corpo.<br />

A quantidade de remédios necessários para que os pacientes<br />

fiquem relaxados e calmos durante o tratamento também serve<br />

para evitar determinadas condutas.<br />

São poderosos inibidores de emoções e desejos!<br />

Não é interessante que haja relacionamento afetivo entre<br />

os pacientes. Na verdade, são proibidos os beijos e certos<br />

assanhamentos entre pacientes. Tudo é muito controlado! Há no<br />

posto de enfermagem as fichas de cada paciente onde são anotados<br />

os medicamentos receitados pelo médico responsável.<br />

Tudo o que o paciente faz de errado é anotado em sua ficha, e se<br />

esquecer do remédio, os enfermeiros vão atrás dele para lembra-lo.<br />

Antes de cada horário de tomada de medicamento, a equipe<br />

de enfermagem faz a separação, com o nome de cada paciente<br />

anexado ao medicamento, sendo impossível que, por algum<br />

descuido ou falta de vontade, o paciente deixe de tomar o que lhe<br />

foi prescrito.<br />

Havia dias em que, na parte da manhã, eu ficava com certa<br />

sonolência devido ao uso dos medicamentos, e o Fausto havia<br />

falado que, nesses dias, é bom ingerir muita água para que o efeito<br />

seja mais breve e logo o corpo possa restabelecer o funcionamento<br />

normal.<br />

80 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Percebi também que as unhas não estavam crescendo como<br />

antes. Nessa época, cheguei a ficar duas semanas sem precisar<br />

cortar as unhas das mãos e dos pés.<br />

Os medicamentos neutralizavam a maioria das emoções, como<br />

amor, ódio, tensão, saudade, desgosto e vingança, deixando o corpo<br />

num estado de tranquilidade plena e numa carência de ânimo para<br />

qualquer ato nocivo à paz e à ordem.<br />

Eu parecia um vegetal! Sem ações de anarquia ou pensamentos<br />

revolucionários. Imune às emoções que sempre foram uma das<br />

minhas grandes qualidades.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 81


A IMAGEM DA ESTRADA<br />

82<br />

No primeiro dia de visitas coletivas, o pensador ainda não podia<br />

receber ninguém, pois cada paciente internado ficava quinze dias<br />

sem receber visitas ou ter contato com os parentes e conhecidos.<br />

Era uma norma da clínica para promover a reabilitação do paciente<br />

e a equipe médica traçar um plano de ação para minimizar os<br />

problemas psicológicos de cada um. Os pacientes chamavam de<br />

quarentena do inferno.<br />

Era sábado de manhã e não havia nada para fazer. Após tomar<br />

café, ele foi para a área externa ler um livro, dessa vez a obra que<br />

escolheu na biblioteca foi O Cortiço, de Aluísio de Azevedo.<br />

Um livro interessante, que dá vida ao povo humilde dos cortiços,<br />

em que o personagem João Romão cria, com certas picaretagens,<br />

uma estalagem, talvez uma pequena favela ou algo parecido, e, ao<br />

longo do livro, a vida do povo humilde ganha status de interesse, ao<br />

passo que é conhecido o modo de ser e viver da classe mais baixa da<br />

sociedade, demonstrando que há muita cultura nos ambientes mais<br />

humildes e menos favorecidos.<br />

As intrigas, os ciúmes, a velha bruxa que sonhava incendiar o<br />

cortiço e até mesmo a briga entre o português casado e o mulato<br />

capoeira pela posse do corpo e da essência da baiana cheirosa e<br />

sedutora tornam o livro atraente.<br />

Nessa guerra de ciúmes, após uma briga iniciada numa roda de<br />

samba no cortiço, o capoeira, magrelo, astuto, melindroso e com<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


uma vasta história criminal, apunhala o português, levando-o a ficar<br />

internado e passar por um doloroso tratamento pós-operatório.<br />

Certo é que, ao se recuperar, o luso se vinga do mulato<br />

cercando-o com outros comparsas na encosta da praia.<br />

É difícil imaginar tal situação hoje em dia, na qual uma pessoa<br />

esfaqueia a outra e não vai presa, se localizada pela polícia. O<br />

livro conta que o capoeirista ganhou até fama no cortiço vizinho,<br />

sendo apoiado pela malandragem, frequentando normalmente um<br />

botequim que havia no bairro, como se nada houvesse acontecido.<br />

Numa situação dessas, hoje em dia, o indivíduo seria preso, e,<br />

na sua prisão, já imaginaria de mil formas o dia de sua morte, pois<br />

é difícil imaginar, num mundo que vive de vingança e acerto de<br />

contas, que um crime contra a vida ficasse sem punição. Isso mexe<br />

com a honra das pessoas. Brigar por motivos banais e tentar tirar a<br />

vida dos outros é ato de covardia que, na moderna visão vingativa<br />

do povo, não fica sem retaliação à altura.<br />

No livro, o capoeirista é morto com várias pauladas, o que<br />

também é incomum hoje em dia. A modernidade usa armas e<br />

instrumentos de tortura, capazes de fazer a pessoa implorar pela<br />

morte rápida e sem dor, mas ao contrário sentiria desfalecer cada<br />

partícula de vida, e nem mesmo gritar seria possível.<br />

Após o homicídio, o corpo do capoeirista é jogado num<br />

desfiladeiro, na encosta da praia, e foi encontrado dias depois.<br />

E o pensador reflete sobre o livro e sobre a vida, contrastando<br />

com um sol arredio no céu, ora desafiando o cobertor de nuvens, ora<br />

reinando absoluto num céu limpo e claro!<br />

O que falta ao homem é conhecer melhor a sociedade em que<br />

vive. Talvez se os que governam ou comandam tivessem participado<br />

da vida no seio pobre da sociedade, teriam maiores condições de<br />

governar justamente essa massa social que, em todos os sistemas<br />

sociais e profissionais, é a maioria.<br />

O imperialismo surge justamente devido ao afastamento de<br />

quem possui poder da classe que é governada ou comandada.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 83


Após terminar a leitura, e já com o sol da tarde clareando as<br />

matas e a rodovia, o pensador foi para um quiosque localizado na<br />

entrada da clínica e ficou admirando a estrada.<br />

Uma grande quantidade de carros seguia seu destino! Alguns<br />

apressados, outros na calmaria da viagem para relaxar e esquecer os<br />

problemas. Caminhões carregados de mercadorias iam em direção<br />

à cidade grande para abastecer o comércio. Ônibus passavam, com<br />

várias pessoas olhando pela janela, viajando a trabalho, a passeio,<br />

para procurar emprego e se consultar nos hospitais da cidade.<br />

A imagem da estrada provocou muita tristeza! O pensador se<br />

lembrava dos desgostos provocados por pessoas de espírito tão<br />

vazio. O silêncio dos carros ao passar pela estrada, às vezes quebrado<br />

por buzinas, despertava de súbito o desejo de chorar. Chorar pelas<br />

lembranças da perseguição moral que nada mais significa que um<br />

ciúme, exteriorizado em ações, de gente que nasceu com alguns<br />

dons, porém com o intelecto maligno. E essa gente não aceita que<br />

outra pessoa também os possua, fazendo o impossível para lhe<br />

apagar o brilho e a vontade de viver.<br />

Foi lá naquela estrada que passou a ambulância que o trouxe<br />

a este lugar, e, embora estivesse desacordado, parecia se lembrar<br />

dos momentos, como se sua alma, para protegê-lo, saísse do corpo<br />

e ficasse sentada na ambulância, como uma sentinela fiel, olhando<br />

pela janela para reconhecer o caminho por onde deveria voltar para<br />

sua casa e se reerguer dos momentos de infelicidade.<br />

As estradas provocam sensação de liberdade e paz nos homens!<br />

Embora seja arriscado trafegar por elas pelo grande número de<br />

acidentes e devido ao descaso do poder público em aumentar a<br />

quantidade de placas, investir em duplicações, em sinalização e<br />

acostamentos, em segurança, enfim.<br />

A estrada sempre leva a um destino, mesmo que este seja a<br />

morte em alguma de suas curvas.<br />

Paisagens belíssimas de montanhas e rios se descortinam<br />

às margens das estradas! Tudo isso provoca um esvaziamento<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

84


considerável da carga de stress que a vida em sociedade provoca em<br />

cada indivíduo.<br />

A sociedade é egoísta por natureza! Julga, sem fundamento,<br />

os indivíduos inseridos no meio social pelo simples fato de serem<br />

diferentes em algum aspecto. Imaginem como seria ruim se todos<br />

fossem iguais em todos os sentidos, desde o modo de se vestir,<br />

ao modo de pensar e viver, unicamente seguindo a filosofia de<br />

pensamento dos mais antigos no seio social!<br />

Não haveria a própria sociedade, com a supremacia da<br />

democracia e sim um regime simplificado à carência de vontade<br />

própria em cada indivíduo.<br />

Todos usariam a mesma roupa, o mesmo corte de cabelo,<br />

o mesmo jargão decorado, gostaria das mesmas coisas, e dessa<br />

monotonia social resultaria a própria extinção da sociedade e<br />

a transformação da vida numa mecanização da individualidade<br />

humana.<br />

Sim, seríamos todos robôs! Sem ações próprias, sem amor<br />

próprio, sem individualidade e sem interesse.<br />

Logo a tarde foi cedendo lugar ao frio da noite, e o pensador<br />

foi até a lavanderia pegar uma calça de moletom, uma blusa de cor<br />

verde, um par de meias, uma cueca e um gorro. Ao voltar, em direção<br />

à área interna da clínica, deu a última olhada em direção à estrada,<br />

tendo o sol já se escondido atrás da serra e a luz no lado oposto já<br />

vinha mostrando uma cor vermelha, escondida parcialmente atrás<br />

de uma nuvem.<br />

A estrada já não apresentava o mesmo movimento intenso de<br />

horas atrás. Quem tinha que ir já se foi antes que a noite caísse, e os<br />

que voltavam já estão no aconchego de casa há muito tempo.<br />

Só ficaram as marcas no asfalto, das frenagens de pneus, dos<br />

animais que ali morreram, das pedras arrancadas do chão e a poeira<br />

que deixaram, já quase extinta, somente ganhando o ar novamente<br />

quando passa um carro, no escuro da noite, clareando as curvas da<br />

estrada e o mato verde na extensão da sua encosta.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 85


O FRIO E AS NEBLINAS<br />

86<br />

– Que frio é esse Fausto? Não sei como se acostumou com o<br />

clima daqui.<br />

– A gente se acostuma. Lá onde eu moro, no município de São<br />

João do Reino também é bastante frio nessa época!<br />

– Esse ano está mais quente que os anos anteriores! Tinham<br />

que ter visto o frio que fez quatro anos atrás, aquilo sim que foi frio<br />

mesmo! Disse o João com propriedade.<br />

– Lá onde eu moro não faz tanto frio assim. A coisa mais difícil<br />

de acontecer por lá são neblinas.<br />

– Hoje à noite não vai haver neblina porque vai chover. A<br />

neblina vai aparecer só de manhã, quando a chuva parar.<br />

– Como sabe, João? Também anda prevendo o tempo?<br />

Estou há muitos anos nesse lugar e aprendi, com o passar dos<br />

anos, a entender a natureza das coisas. O tempo sempre avisa o que<br />

vai acontecer. Como hoje não está tão frio como deveria, a chuva não<br />

demora a cair. Se não fosse chover, já teríamos neblina. Aconselho<br />

que fechem as janelas antes de dormirem.<br />

– Que interessante! São coisas que não nos acostumamos a<br />

reparar, não.<br />

– Quando se fica muito tempo preso a um lugar, como eu<br />

estou, aprende-se a observar coisas que passam despercebidas no<br />

dia-a-dia. Se aplicássemos esse aprendizado em nosso cotidiano,<br />

evitaríamos muitos transtornos! Saberíamos mais facilmente<br />

identificar as pessoas ruins e nos afastar delas, poderíamos prever<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


com boa antecedência o resultado dos nossos planos de vida. Coisas<br />

ruins, como a perseguição e o assédio moral que sofremos, não<br />

teriam acontecido se se pensasse melhor antes de trabalhar num<br />

bom emprego que paga muito bem, mas que rouba sua felicidade e<br />

a joga fora como lixo, num sistema que oprime a todo instante, não<br />

dando credibilidade alguma a quem não é mais que um mero objeto<br />

de uso numa doutrina arcaica que não procura progredir.<br />

– Não é tão simples assim, João. Acredito ser mais fácil prever o<br />

frio que as más intenções das pessoas.<br />

– Mas tudo serve de aprendizado. Você escolheu um bom<br />

emprego. Mas veja que há pedreiros felizes e empresários infelizes.<br />

Em determinado lugar, há um padeiro muito feliz e um cliente<br />

da padaria que vai todos os dias de terno para o serviço, com a<br />

expressão do desgosto pela vida.<br />

Isso está em toda parte! Parece que quem mais se diverte ou é<br />

feliz é justamente quem menos pode e menos tem. Isso prova que a<br />

felicidade não está em possuir um cargo elevado numa repartição,<br />

empresa ou instituição, e sim em fazer um bom trabalho, sendo,<br />

antes de tudo, um bom amigo, um bom profissional, um bom pai e<br />

um bom esposo!<br />

As horas passaram e, no meio da madrugada, acordei com<br />

um barulho na janela. Os pingos de chuva entravam pela fresta e<br />

chegavam ao chão do quarto. Então me levantei e vi que os outros<br />

pacientes do quarto dormiam um sono profundo. Um vento gelado<br />

com cheiro de terra molhada percorria o quarto. Fechei a janela<br />

por completo, voltando a dormir em seguida, enrolado em três<br />

cobertores.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 87


OS EMBATES<br />

Todas as pessoas passam por problemas na vida. Na verdade,<br />

poucas encontram a solução plena de seus problemas.<br />

Unsaprendemmais facilmente aconvivercom tantas decepções,<br />

que na maioria dos casos se parecem: a perseguição moral no local<br />

de trabalho, a falta de dinheiro, a depressão, as drogas, o excesso<br />

de bebida e até mesmo a perda repentina da lucidez e o desejo de<br />

acabar com a vida.<br />

Mas as pessoas são dotadas de personalidade, e na vida<br />

em sociedade, seja ela qual for, há sempre os conflitos entre as<br />

personalidades. É por isso que, muitas vezes, uma pessoa que<br />

possui um status elevado no ambiente social se sente ameaçada<br />

quando, do nada, surge um obstáculo que é justamente uma pessoa<br />

que se destaca no ambiente. E o indivíduo dotado da condição de<br />

soberania, na maioria das vezes, procura eliminar seu concorrente<br />

a qualquer custo, pois vê sua importância se reduzir devido a um<br />

dom encontrado nele, e que não possui.<br />

Nesse contexto, por vezes os pensadores ponderam sobre onde<br />

se encaixa o patamar revolucionário, voltado ao socialismo.<br />

Na sociedade humana capitalista, é importante demais ser<br />

alguém que ocupa uma posição social de destaque! Para o ser<br />

humano, estar no topo é mais importante do que comer, beber ou<br />

ter saúde física e mental.<br />

Em qualquer lugar é assim. No trabalho, na família, numa festa,<br />

confraternização, no barzinho e até mesmo na intimidade.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

88


Na clínica não é diferente. Há alguns pacientes que querem<br />

ocupar um lugar de destaque entre os internos. É comum no<br />

corredor se ouvir algum embate. Ou porque alguém fica fumando<br />

perto dos quartos, ou por causa de alguma fofoca com o nome da<br />

outra pessoa, ou o barulho do som, a mudança de canal da televisão,<br />

um esbarrão na fila do almoço ou do lanche e até mesmo pela altura<br />

das conversas à noite.<br />

Há aqueles que querem ser os donos da situação e os moralistas,<br />

que, por qualquer motivo, querem gritar e se fazer notar, e aqueles<br />

que são eternos provocadores.<br />

O interessante é que, embora as pessoas estejam em um<br />

determinado momento da vida inseguras sobre a racionalidade<br />

dos pensamentos e ações, conseguem conviver no ambiente social<br />

mesmo tendo personalidades tão distintas e problemas de vício ou<br />

algum transtorno mental, em alguns até permanente.<br />

Isso nos leva a crer que o tamanho das sociedades e as<br />

características dos indivíduos que as compõem é que darão origem<br />

à natureza e à amplitude dos embates que formam o seu cotidiano.<br />

Eu não entrava em tais conflitos. Na verdade, ainda estava me<br />

sentindo ideologicamente morto. Ainda não havia encontrado uma<br />

razão para vencer toda a situação em que estava.<br />

Um morto que respira e come, dorme e acorda, vê o sol da<br />

manhã e o luar reinarem no céu, que sente frio e sede, mas não tem<br />

uma razão para ressuscitar e voltar a ser um pensador, um ideólogo,<br />

capaz de confrontar a ilegalidade onde quer que ela esteja, não<br />

importando o peso do fardo e as consequências da coragem e do<br />

amor pela justiça e pela honra.<br />

Esse ser morto dentro de mim, queimado no âmago do coração<br />

e derrotado pelas desilusões da vida compara-se a um montinho de<br />

cinzas após a brasa queimar tudo que encontra pelo caminho.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 89


DESENHOS NA PAREDE<br />

90<br />

– Bom dia! – Disse a terapeuta ocupacional Claudete.<br />

– Olá, tudo bem?<br />

– Fiquei sabendo que você desenha muito bem! Gostaria de<br />

convidá-lo para fazer os novos desenhos na parede do espaço de<br />

terapia ocupacional. Ontem, vi um desenho seu lá, numa folha<br />

de papel, e amei! Mas, se achar melhor, pode fazer alguma outra<br />

atividade lá na terapia, o que acha?<br />

– Não há tintas suficientes para fazer os desenhos. Não é tanto<br />

pelo trabalho, é o material mesmo. Não estou muito animado a fazer<br />

nada. Eu fiz aquele desenho porque a Adalgisa me pediu para que<br />

pudesse fazer uma estampa.<br />

– Vamos fazer o seguinte: faça um desenho só, e eu convenço<br />

a dona Hélida, proprietária da clínica, a comprar mais material<br />

amanhã mesmo.<br />

– Tudo bem! Posso fazer qualquer coisa que quiser?<br />

– Sim. O artista aqui é você. E não percebe como essas paredes<br />

estão feias, sem vida?!<br />

– Está bem, então. Vamos aproveitar a manhã, não é verdade?<br />

– Isso mesmo, garoto!<br />

Na verdade, as artes já nascem com o artista! Estão no<br />

gene, no sangue, no modo de andar, de olhar, de viver! Não há<br />

como aprender a ser artista, o máximo que se pode obter com o<br />

aprendizado é fazer arte.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Expressão artística fundamentada na essência da carne e do<br />

espírito somente pode entender quem foi gerado no crisol divino<br />

da criação e mergulhado no licor sagrado do dom artístico!<br />

É o dom da arte! Algo que para o artista vale mais que cem<br />

moedas de ouro! A sua tradução intelectual nas variadas formas de<br />

expressão, tanto em palavras, quanto gestos e movimentos, figuras,<br />

sons e fala. A arte surge do artista tal qual a planta no agreste<br />

ressecado, carente de chuva: não se entende como é possível, mas se<br />

vislumbra que é!<br />

Corre água no interior das palmas mesmo que elas sejam o<br />

cenário do sertão seco e carente das chuvas e rios.<br />

Para o artista de verdade, as palavras não são apenas o talho e<br />

o filete, ornadas conforme a caligrafia escolhida, ou a Gótica, ou a<br />

Ronde Francesa, a Manuscrita Italiana ou Manuscrita Comercial<br />

Inglesa.<br />

Para o artista, a música não é apenas a execução lógica de<br />

campos harmônicos e tons que somente se explicam num contexto<br />

lógico. É inovar conforme a sua ousadia e se aventurar, até mesmo<br />

numa troca de tom no meio da canção.<br />

O artista de verdade se expressa com o corpo ao dançar, não<br />

apenas para mostrar o que o contexto musical representa, ele<br />

transcreve em ações aquilo que o espírito transborda.<br />

Morto espiritualmente, eu já havia me esquecido disso. Meu<br />

corpo apenas vivia, já não possuía nenhum ideal nem a sedução<br />

comunista dos ideais contrários ao maquiavelismo do atual governo.<br />

O primeiro desenho estava terminado. Um painel vistoso com<br />

dois pássaros alimentando um filhote, muma árvore.<br />

A gravura gerou comentários na clínica, e todos que viram<br />

gostaram muito da figura, que se destacou no meio de tantos<br />

rabiscos antigos que estavam no lugar, já envelhecidos pela ação<br />

do tempo.<br />

No dia seguinte, todas as tintas pedidas estavam no espaço<br />

de terapia ocupacional, separadas com o meu nome. A terapeuta<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 91


havia realmente convencido a proprietária da clínica a adquirir os<br />

materiais necessários.<br />

Seria um modo interessante de passar o tempo, além de dar<br />

uma nova imagem ao espaço de terapia ocupacional, que era uma<br />

pequena casa onde eram guardados os trabalhos feitos pelos<br />

pacientes e todos os materiais usados para a terapia, tais como<br />

tintas, lantejoulas, barbantes, palhas, cabaça, cola, fitas adesivas,<br />

brilhos, entre outros.<br />

E a área externa da terapia ocupacional consistia de um quintal<br />

com paredes delimitando o espaço das atividades. Foi justamente<br />

nessas paredes que um lindo trabalho artístico foi elaborado!<br />

Muitas cores, nas quais se destacavam o verde e o rosa, cores<br />

representativas do amor e da esperança.<br />

Na verdade, a combinação das cores verde e rosa tem um<br />

significado espiritual muito grande! Transmitem paz e alegria<br />

muito intensas! São as cores da Estação Primeira de Mangueira, a<br />

tradicional escola de samba do carnaval carioca, muito querida em<br />

todo o país!<br />

Também foram usados vários tons de vermelho, uma cor<br />

marcante para o ideal revolucionário. Em vários países, é a cor do<br />

comunismo e do socialismo.<br />

Numa das paredes, desenhou-se um painel único com a<br />

alimentação das aves, um beija-flor tirando o néctar de uma planta<br />

rara, um cavalo e duas aves silvestres, tudo com muita cor e magia!<br />

No outro painel, de um canto a outro da parede, surgiu o fundo<br />

do oceano, concentrando, em magia e sutileza, a imagem das sereias<br />

e dos corais.<br />

Em outro canto, revelou-se o esplendor do samba, com uma<br />

autêntica roda de samba, alegre, festiva! As matas e um índio<br />

caçador, um rei da mata, empunhando sua flecha, tendo ao fundo<br />

uma cachoeira imensa, de águas azuis! Borboletas e flores! Um<br />

contraste harmônico e alegre de cores e paisagens que se projetaram<br />

92 até a porta do espaço. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Foi como se a própria porta tivesse se transformado num livro<br />

da vida, e a passagem fosse folha em branco para ser preenchida<br />

com ações para o bem-estar de cada um.<br />

Os trabalhos artísticos auxiliaram o processo de adaptação<br />

àquele lugar, visando ocupar o tempo e tirar da memória tantos<br />

momentos de depressão e cenas de retaliação aos dons que a vida<br />

proporcionou.<br />

As pinceladas na parede foram rasgando o coração, para<br />

arrancar de seu interior um ranço de decepção e impotência moral<br />

que haviam envenenado a vontade de viver.<br />

E daí em diante, passava os horários de terapia fazendo os<br />

desenhos na parede, retocando as cores, criando efeitos de luz e<br />

sombra para que ficasse o mais perfeito possível! A importância do<br />

detalhe é algo tão valioso quanto a perfeição na lapidação de um<br />

diamante!<br />

Ao fim de duas semanas, todas as paredes estavam cobertas de<br />

gravuras muito coloridas! Havia uma sensação gostosa de ambiente<br />

novo, com o cheiro de tinta ainda pairando no ambiente!<br />

Sabendo da notícia, um jornal local procurou a clínica para<br />

exibição de umareportagemsobreo trabalho de terapia ocupacional.<br />

Na verdade, o que queriam era mostrar os painéis criados, pois não<br />

foi possível gravar mais que imagens dos trabalhos artísticos, sem<br />

a exibição de nenhum paciente da clínica, a fim de se evitarem<br />

transtornos com familiares.<br />

Os pacientes e funcionários gostaram muito do novo espaço e<br />

várias vezes paravam para admirar os trabalhos. A porta virou um<br />

livro aberto com uma mensagem agradável, e as paredes, uma tela<br />

de um mundo mais alegre, mais festivo.<br />

De fato, foi traduzido em imagens um desejo que há muito<br />

tempo estava anestesiado em minha alma, que só carregava as<br />

chagas da perseguição e as marcas da chibata que há muitos anos já<br />

não açoitavam nem mesmo os escravos!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 93


AS TROCAS DE OBJETOS<br />

Foi quando faltou cigarro na cantina.<br />

Um desespero silencioso pairou durante a manhã, pois alguns<br />

pacientes ainda tinham cigarros. Quando acabaram os da grande<br />

maioria, houve uma revolução! As pessoas ficavam nervosas ao<br />

saber que não iriam fumar.<br />

Muitos pacientes procuravam quem ainda tinha cigarros para<br />

propor a troca por um par de meias, uma blusa, bermuda e até<br />

dinheiro.<br />

Na verdade, eu não sabia que alguns pacientes conseguiram<br />

esconder dinheiro na clínica entre os seus pertences. Essa notícia<br />

me deixou surpreso!<br />

Se o fazendeiro visse, iria dar problema, pois outro dia uma<br />

enfermeira lhe mostrou uma moeda de dez centavos, e ele entrou<br />

em crise falando que ela lhe havia prometido dois mil. Na verdade,<br />

o boiadeiro tinha diversas crises. Ainda bem que não fumava.<br />

Ele tentava pular a divisória do posto de enfermagem e entrar<br />

lá de qualquer maneira, xingando e delirando que a enfermeira<br />

disse que lhe daria dois mil e que estava voltando atrás em sua<br />

palavra.<br />

Os pacientes crônicos estavam desesperados querendocigarros!<br />

Pegavam restos de cigarro no chão, catando as guimbas para tirar<br />

o fumo. Reviravam a grama, tateando cada centímetro à procura de<br />

restos dos restos jogados.<br />

Eu ainda tinha a metade de um maço de cigarros. Como não<br />

queria trocar nada, se algum paciente chegasse pedindo, eu tirava<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

94


um do bolso, pois o restante estava guardado para evitar que eu<br />

também entrasse no desespero de ficar sem o doce vício, que aquieta<br />

as emoções e tensões aqui nesse lugar.<br />

Entretanto, as trocas de objetos logo foram descobertas, e a<br />

direção determinou as devoluções de todos os objetos que tinham<br />

sido trocados por cigarros.<br />

Foi uma tarde inteira de devoluções de objetos, sendo<br />

monitoradas pelos enfermeiros. E tudo aconteceu porque faltou<br />

cigarro na vendinha. A situação foi tão alarmante que a direção da<br />

clínica chamou a atenção do rapaz que estava lá no dia, cobrando<br />

mais eficácia no serviço para não prejudicar os pacientes que<br />

dependem do vício.<br />

Depois desse dia, contudo, as trocas continuaram acontecendo.<br />

Os pacientes descobriram que o interior da clínica poderia ser uma<br />

sociedade, tal qual a que estavam acostumados no mundo lá fora,<br />

até mesmo com uma rede de comércio, bastando para isso apenas<br />

uma oferta e uma procura.<br />

Houve troca de um sabonete chinês, muito cheiroso, por um<br />

maço de cigarros. Outro paciente queria fumar um cigarro de<br />

melhor marca e comprou com dinheiro. Um outro, conseguiu, sabese<br />

lá como, um aparelho celular em ótimo estado de funcionamento<br />

com bateria e carregador.<br />

As pessoas sentiam saudade da vida social, e isso alimentou,<br />

desde aquele dia, as constantes trocas de objetos no interior da<br />

clínica.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 95


VISITAS<br />

96<br />

Depois de quinze dias internado, o pensador finalmente poderia<br />

receber visitas e ligações, as quais eram direcionadas ao telefone da<br />

sala da assistente social Iara e atendidas na presença dela.<br />

Era domingo de manhã e várias pessoas ligaram. Queriam falar<br />

com ele, ouvir sua voz e saber como estava.<br />

Passou boa parte da manhã atendendo ligações de amigos,<br />

familiares, pessoas importantes e comuns, e a todos dirigia palavras<br />

de respeito e gratidão por terem se preocupado com ele. Até mesmo<br />

um representante do partido comunista ligou, para falar que sentia<br />

falta da sua presença nas reuniões da cidade, que sempre o viam<br />

como um político em potencial, embora sempre acabasse desviando<br />

do assunto.<br />

Vieram da cidade onde morava, já na parte da tarde, sua irmã<br />

Karolina, a amiga Riana, a prima Sirlene e seu esposo Ademar.<br />

Trouxeram no carro um cobertor de veludo, vários salgados, duas<br />

cartas de familiares, doces e balas de que muito gostava.<br />

Era dia de visitas coletivas e alguns pacientes receberam seus<br />

parentes, entre eles os parentes do fazendeiro, os quais chegaram<br />

num carro novo. Ao caminhar pelo interior da clínica<br />

mostrando aos que vieram as dependências, o pensador falava sobre<br />

as experiências que estava tendo, apresentava-os aos pacientes e<br />

contava um caso ou outro sobre algum paciente.<br />

Com um pedido feito antes à dona da clínica, obteve autorização<br />

para que o enfermeiro-chefe acompanhasse os parentes até o<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


espaço de terapia ocupacional, e quando a porta foi aberta todos<br />

ficaram admirados com os mosaicos que cobriam todas as paredes<br />

de um canto a outro, com graça, alegria e perfeição nos traços de<br />

cada desenho. O enfermeiro chefe ainda não havia visto os murais<br />

e chegou a tocar nas paredes, admirando-as. Os visitantes tiraram<br />

várias fotografias do lugar, que disseram estar belíssimo!<br />

Um ambiente tão puro e cheio de vida, repleto de cor e<br />

esperança! Parecia que ali era um novo mundo, sem as cinzas que<br />

infeccionam os pulmões na vida em sociedade.<br />

Realmente foi exteriorizado em imagens outro universo,<br />

existente na subjetividade do pensador, que não foi poluído ou<br />

ferido pela aspereza da vida em sociedade.<br />

Depois, foram todos para um local onde havia cadeiras e mesas.<br />

A assistente social então chamou as mulheres para conversar à<br />

parte, numa sala, e o pensador ficou conversando com o Ademar.<br />

Falou dos momentos que passou e que foram decisivos para o<br />

quadro de depressão a que estava submetido, recebendo conselhos<br />

importantes para não deixar que as tristezas da vida abalassem uma<br />

pessoa de futuro tão promissor, devido à grande intelectualidade<br />

que possuía.<br />

Ao abrir um salgadinho, do que mais apreciava, feito de farinha<br />

de trigo cozida, uma paciente entrou na sala e pediu um pouco, ao<br />

que ofereceu com gesto de desprendimento e alegria. A paciente<br />

estava internada há um ano e seus parentes nunca foram visitá-la,<br />

por morarem muito longe e não terem muitos recursos.<br />

Após um tempo e depois de muito conversarem, as mulheres<br />

retornaram.<br />

O sol já estava se escondendo, deixando que os primeiros<br />

sinais da noite aflorassem, trazendo o frio e o brilho da lua cheia no<br />

horizonte oposto, quando os parentes se despediram.<br />

E, ao entrarem no carro, desejaram melhoras, dizendo que iriam<br />

ligar constantemente para ter notícias, já que agora não estaria mais<br />

tão isolado, podendo receber notícias.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 97


Nesse intervalo, outras pessoas ligaram para a clínica a fim<br />

de saberem notícias suas. E ao saber disso pela assistente Iara,<br />

ficou contente de haver tantos conhecidos preocupados com sua<br />

melhora.<br />

Uma das pacientes, a Salomé, passou o dia inteiro dizendo<br />

que seus dois filhos iriam visitá-la, mas a tarde passava e nada de<br />

aparecerem.<br />

Foi decaindo, ficando com um semblante descontente e<br />

apreensivo, até que, pouco tempo antes do horário de visitas se<br />

encerrar, o casal de filhos chegou de carro. Uma jovem de dezenove<br />

anos, loira e muito bem apessoada, e um jovem de treze anos,<br />

rechonchudo e de cabelos arrepiados!<br />

A vida é difícil! Lutamos para vencer !<br />

Viver é procurar diamantes onde só existe areia...<br />

Ela, maravilhada com a presença dos dois, andou com eles pelo<br />

interior da clínica, apresentando-os aos funcionários e pacientes,<br />

e, embora a visita tenha sido muito curta devido ao horário, sua<br />

fisionomia estava muito melhor!<br />

Era possível perceber um olhar entristecido nos pacientes<br />

que não receberam visitas, pelo menos em alguns deles, outros já<br />

estavam acostumados ao abandono dos amigos e da família e já não<br />

prestavam culto a certos sentimentos como a saudade.<br />

98<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A ANSIEDADE<br />

Era manhã! Ao chegar à janela do posto de enfermagem, havia<br />

vários pacientes esperando os seus respectivos remédios.<br />

A enfermeira colocou rapidamente em minha mão dois<br />

comprimidos e recusei o copinho descartável dessa vez, dizendo<br />

que iria tomar o medicamento no bebedouro para dar lugar aos<br />

outros pacientes que aguardavam na fila torta que se formou.<br />

Entretanto, ao chegar ao bebedouro, acabei guardando os<br />

comprimidos no bolso. Estava cansado de tudo aquilo! Do estado<br />

de dormência que ficava no corpo todas as manhãs, uma sensação<br />

de impotência moral e espiritual que me impedia, por exemplo, de<br />

sentir ódio ou revolta.<br />

Os comprimidos não estavam me impedindo de viver, de sentir<br />

os sentimentos que eu sempre senti, amar o que sempre amei e<br />

odiar também. Mas, por outro lado, me impediam de me revoltar e<br />

porejar do corpo como suor o idealismo intelectual que sempre foi<br />

uma chaga perene em meu semblante, tal qual uma imagem de fênix<br />

brotando da testa.<br />

Isso mesmo! A fênix. O pássaro de fogo no qual sempre me<br />

inspirei, que sempre renascia das próprias cinzas.<br />

As horas foram passando e com a abstinência do medicamento,<br />

a primeira sensação sentida foi uma grande ansiedade! Meu sangue<br />

corria mais acelerado e o coração batia mais intensamente!<br />

Acendia um cigarro atrás do outro. Consegui um isqueiro com<br />

um paciente a troco de um maço de cigarros e, sem me<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 99


100<br />

preocupar se alguém estava vendo, acendia os cigarros ali mesmo<br />

no corredor, contrariando todas as regras e proibições. Com o<br />

passar das horas, ansiedade foi só aumentando! E na hora do<br />

almoço, pela primeira vez desde que aqui cheguei, estava com<br />

fome.<br />

Antes, parecia que me alimentar, em vez de necessidade, era<br />

uma tarefa sem sentido a ser cumprida. Eu não sentia fome, medo,<br />

coragem, sono, saudade, amor ou ódio.<br />

Mas hoje, com a carência da droga, meu corpo foi tomado por<br />

grande euforia! Depois de muito tempo, eu sentia os olhos ardendo,<br />

e a imagem do ser debilitado e anestesiado, incapaz de reagir diante<br />

das dificuldades, começou a esmaecer diante do espelho.<br />

A ansiedade, entretanto, não tinha um motivo determinado.<br />

O corpo se ludibriava com um desejo puro e suave, repleto de<br />

ideais que turbinavam milhões de pensamentos a cada momento.<br />

A vivacidade do corpo! O ato de respirar e, depois de muito tempo,<br />

perceber a presença do ar com todos os seus cheiros.<br />

À tarde, senti vontade de comer um doce e fui ver se havia<br />

algum na cantina. Havia um doce cristalizado que desde a infância<br />

não provava. Coberto de açúcar, de cor vermelha e amarela, parecia<br />

uma bala de goma! Muito saboroso! Comprei vários doces e guardei<br />

no bolso para comer mais tarde.<br />

Na hora de dormir, o sono demorou a chegar. Fui até o pátio<br />

da área interna e fiquei admirando as estrelas. Levei alguns doces<br />

e me sentei em um dos bancos, justamente o preferido da velha<br />

resmungona.<br />

O suor, nesse dia, foi bem mais intenso devido à agitação do<br />

dia, cheio de ansiedade!<br />

O céu...<br />

Um céu repleto de estrelas que nada dizem, não têm ações<br />

próprias, somente cumprem sua missão de ficar ostentando brilho,<br />

sem nada fazer pelos habitantes da terra, aqui embaixo.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Ao comer doce, lembrei-me de momentos da infância em que<br />

olhava para o céu com tanta naturalidade, como se estar sob ele<br />

fosse algo comum.<br />

Pensamos de forma muito terrestre! Somos limitados a viver<br />

as agruras sociais e o desejo hedonista com o qual apenas poucos<br />

estudiosos estão preocupados, com a conquista do universo, com<br />

a descoberta de novas formas de vida ou puramente o motivo de<br />

existirmos.<br />

Claro, por ser improvável, preferimos acreditar nas soluções e<br />

explicações mais simples, porém, desprezar que há muito oculto a<br />

ser descoberto é ignorância.<br />

Acreditar numa explicação simples é arbítrio do ser humano,<br />

mas fechar os olhos para a realidade é como olhar para o céu e<br />

apenas enxergar pontos luminosos.<br />

Para os esclarecidos, cada ponto é um sol igual ao que nos dá o<br />

calor das manhãs e o direito de viver. Se o que há lá fora ainda não<br />

foi descoberto, uma hora ainda será.<br />

Após comer o último doce, acendi um cigarro para acalmar um<br />

pouco a ansiedade desse dia. Deixar de tomar os remédios foi uma<br />

atitude perigosa, visto que eu ainda estava com depressão, mas<br />

correr risco é arbítrio do homem.<br />

Então decidi que não iria mais tomar os comprimidos. Talvez<br />

outro paciente sem esses medicamentos ficasse agressivo. Eu,<br />

porém, voltei a pensar, a ter sentimentos que já havia esquecido.<br />

Era como uma águia, após se recolher aos picos altos, com as<br />

penas já gastas, unhas que não mais seguravam as presas e o bico,<br />

curvo, dificultava os ataques.<br />

Recolhida ao local escolhido ou determinado pela natureza,<br />

a águia, num processo doloroso de renovação, arranca o bico<br />

batendo-o constantemente contra as rochas, e, ao nascer o novo<br />

bico, arranca todas as unhas para que novas possam surgir, e arranca<br />

também todas as penas do corpo.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 101


Quando a águia termina esse processo, é como se um novo ser<br />

deixasse as montanhas! Como se voltasse a viver depois de haver<br />

morrido. Eu queria sentir essa sensação de euforia com o primeiro<br />

voo depois de haver perdido a vontade de viver.<br />

Deixar as sensações do corpo explodir novamente e tornar-me<br />

um ser de atitude, mais que isso, um novo ser! Inquestionável em<br />

coragem, determinação, ousadia e consolidação de ideais que não<br />

se abalam por motivo algum!<br />

Após terminar o último trago e cientificar-me, olhando<br />

novamente para as estrelas, sobre o motivo real da ansiedade<br />

que durante o dia causou tanta euforia em meu ser, passei pelo<br />

corredor, parando ainda um momento no bebedouro e tomando<br />

uma boa quantidade de água gelada! Pensei que se resfriasse minha<br />

temperatura interna, sentiria frio e, ao encobrir todo o corpo, o<br />

sono chegaria mais facilmente.<br />

Há muito tempo estava dormindo, mais do que o corpo<br />

necessitou, e houve o desejo de acordar.<br />

102<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


OS AMORES PROIBIDOS<br />

Deivisson está encantado pela paciente Adalgisa, uma<br />

adolescente do município de Viscoso, que por lá se envolveu com<br />

drogas ilícitas e, por determinação do juiz, foi internada para<br />

tratamento.<br />

A adolescente é morena, de estatura mediana, curvas muito<br />

bem distribuídas, seios volumosos e firmes, rígidos como uma fruta<br />

rosada! Longos cabelos que vão até a cintura!<br />

Seu modo um pouco arrogante é típico de adolescentes<br />

desaforados, porém, em certos momentos, é uma garota muito<br />

comunicativa. Mas, por alguma contrariedade já fica com raiva e<br />

grita aos berros!<br />

Franklin também já gostou da paciente Sabrina, uma morena<br />

alta, também nova, com dezenove ou vinte anos. Esbelta e de pele<br />

morena e fisionomia brilhosa! Também de gênio forte como a<br />

Adalgisa!<br />

Chegaram a trocar uns beijos escondidos pelo corredor ou na<br />

sala de palestras, quando não havia nenhum enfermeiro por perto.<br />

Uma pegação que vem e acontece no calor do momento, assim<br />

de repente, quando há tensão ou saudade mesmo do desejo de amar<br />

e viver a aventura.<br />

Qualquer tipo de envolvimento afetivo entre pacientes ou entre<br />

funcionários, porém, é proibido na clínica, sendo conduta que gera<br />

passagem corretiva pelo R3, o setor mais temido da clínica, ou até<br />

demissão do funcionário que se envolver com qualquer paciente.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 103


104<br />

Segundo o João, há uma história de um funcionário da clínica<br />

que foi demitido por ter sido flagrado aos beijos com a Adalgisa,<br />

tempos atrás, logo que ela chegou e foi internada na clínica, e teria<br />

provocado no enfermeiro um desejo incontrolável!<br />

Na verdade isso existe em todo lugar – disse o Fausto. Em<br />

empresas ou repartições, há sempre um querendo uma vantagem<br />

amorosa, seja ela lícita ou não.<br />

– O que o povo quer mesmo é diversão! – disse o João.<br />

Principalmente quem tem algum poder de chefia ou gerência. Basta<br />

ver uma mulher bonita novata na empresa que logo quer mostrar as<br />

asinhas, cheio de gentilezas e agrados.<br />

– Lá onde trabalho, houve um problema assim. Uma mulher<br />

casada foi trabalhar na empresa. Era muito bonita e atraente!<br />

Caminhando pelos corredores, provocava sussurros e logo um dos<br />

gerentes de setor se interessou por ela. Levava presentes e fazia<br />

diversos elogios. Depois de um tempo, deixou mais claras as suas<br />

intenções de tê-la a qualquer custo, oferecendo-lhe um cargo de<br />

confiança no setor, embora houvesse funcionários que estavam no<br />

setor há mais de dez anos sem jamais terem sido promovidos.<br />

– Isso existe em quase todo lugar, Fausto! Sempre haverá<br />

alguém interessado na outra pessoa. Depende de a pessoa ceder ou<br />

não às investidas.<br />

– Pois é, só que nesse caso, lá na repartição, deu um problemão<br />

porque a mulher contou ao marido que estava sendo assediada, e ele<br />

apareceu lá no dia seguinte. Era chefe de polícia e levou cinco carros<br />

para provocar um impacto na gerência da empresa. Queria levar o<br />

gerente de setor preso de qualquer forma ou aplicar, ali mesmo, um<br />

corretivo nos moldes do auge da Ditadura.<br />

– Na minha antiga repartição, houve um problema assim. Uma<br />

funcionária muito bonita, chamada Alice foi trabalhar na empresa.<br />

Ela não era casada, tinha uma filha com um rapaz do município de<br />

Ouros, no sul do estado, e namorava outro rapaz. Um gerente de<br />

setor, que era casado, ofereceu inúmeras coisas a ela, dizendo que<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


iria se separar da mulher para ficar com ela, que tinha casa, que<br />

poderia colocá-la para coordenar o setor junto com ele.<br />

– Mas o que houve? – perguntou o João.<br />

– Eu não sei muito bem, só o que sei é que pouco tempo depois<br />

ela havia sido transferida de setor. Nem ficou na empresa e decidiu<br />

sair, talvez devido ao assédio que vinha sofrendo por parte do<br />

gerente.<br />

– Deve ser. Nesse caso que eu estava contando, como virou<br />

caso de polícia, o gerente de lá se viu obrigado a dar uma solução,<br />

conversou com todos os gerentes de setor e disse que se ficasse<br />

sabendo de algum assédio às mulheres na repartição iria demitir<br />

ou transferir o acusado para um lugar longe de casa como medida<br />

punitiva.<br />

O amor proibido é fogo que arde no corpo! Um desejo de ter<br />

aquilo que os olhos primeiro observam e o cérebro acha agradável.<br />

Muitas vezes, o indivíduo tem mulher e filhos, e a esposa<br />

é até bonita e agradável, mas surge algo novo! Algo que não é da<br />

posse e usufruto e, somente por ser inacessível, provoca o desejo<br />

consumista no homem.<br />

E o Deivisson começou a dar pequenos agrados à Adalgisa, tais<br />

como chocolates, doces e até um ursinho de pelúcia, que mandou<br />

trazer da cidade.<br />

Nós sabíamos que até trocavam alguns beijos, às escondidas.<br />

Em algumas vezes, até tiritando os dentes, ou de frio ou de medo<br />

de serem descobertos, atrás de uma árvore ou na sala de palestras,<br />

localizada no interior da clínica, junto ao pátio, próxima do<br />

refeitório.<br />

Contava as peripécias à noite, sempre que ia levar café. Falava<br />

dos encontros às escondidas e da sensação de estar fazendo algo<br />

proibido, o que provocava mais ainda o desejo.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 105


O TROTE<br />

– Socorro, tia! Acabei de sofrer um acidente de carro, estou<br />

muito machucado.<br />

– Onde está? O que aconteceu?<br />

– Não estou conseguindo falar direito. Estou muito machucado.<br />

Vou passar para o mecânico que está aqui me ajudando.<br />

– Alô? Quem fala?<br />

– O que houve com meu sobrinho? Diga?<br />

– Olha, dona, ele estava indo pra casa num carro emprestado<br />

pela clínica devido ele ter apresentado bom comportamento, porém<br />

houve um acidente aqui na fazenda Rosário. O carro está muito<br />

estragado e precisarei que deposite um valor em dinheiro numa<br />

conta que vou passar, mas é urgente, afinal tenho de atender outros<br />

clientes.<br />

– Espere. Vou ligar para a família dele. Precisam saber que<br />

sofreu acidente.<br />

– Não posso esperar mais. Há uma viatura aqui prestando apoio<br />

e sinalizando o acidente, mas eu não posso começar o conserto do<br />

carro sem o valor depositado.<br />

– Tudo bem! Passe-me o número da conta que deposito já o<br />

dinheiro.<br />

106<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Naiara, aqui é sua tia. Como está seu irmão?<br />

– Boa tarde tia! Ele continua internado na clínica.<br />

– Não, Naiara, falei com ele há pouco. Ele estava vindo para<br />

casa num carro emprestado pela clínica, mas o carro bateu perto de<br />

uma fazenda. O mecânico que está arrumando o carro me pediu pra<br />

fazer um depósito.<br />

– Olha, isso foi um trote! Ele não teve alta médica ainda, liguei<br />

pra lá agora e falei com ele no telefone da assistente social. Não<br />

podia ter feito o depósito, não. Alguém conseguiu o telefone da<br />

mercearia e se passou por ele.<br />

Na verdade, as falsas ligações de estelionatários se fazendo<br />

passar por parentes, amigos, filhos ou sequestradores têm evoluído<br />

muito nos últimos anos!<br />

Esses golpistas se aproveitam da fragilidade alheia e estudam<br />

suas vítimas antes do golpe ser aplicado. Imitam a voz da pessoa,<br />

falam com propriedade sobre fatos que são do conhecimento da<br />

vítima, induzem ações ou omissões, tudo metodicamente elaborado<br />

para garantir o sucesso do empreendimento delituoso.<br />

Após o trote, foi feito o registro de ocorrência na polícia daquela<br />

cidade, sendo passado o número da conta que o golpista informara,<br />

os valores depositados e as demais informações necessárias para a<br />

investigação do caso.<br />

Há tantas pessoas que vivem da ilusão aos outros! Por isso, o<br />

comércio está quebrado. Ninguém mais confia.<br />

Quando o cliente chega para comprar um carro ou uma casa,<br />

por exemplo, o vendedor, disfarçado em pele de cordeiro, já vai logo<br />

pedindo sinal adiantado, sem nem mesmo saber se haverá condições<br />

de o negócio ser concretizado.<br />

Quando há algum problema que impossibilita o negócio, o<br />

golpista já até usou o dinheiro pago no sinal para outros fins, e o<br />

comprador ou recorre à justiça ou a faz por suas próprias mãos.<br />

O certo é que dificilmente verá o dinheiro novamente, pois quem<br />

aplica esse tipo de golpe já está cheio de processos semelhantes e<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 107


já não faz questão de andar conforme a lei, antes disso aprendendo<br />

com o tempo várias artimanhas para ludibriar a justiça, que já é cega.<br />

Há muitos casos em que os golpistas tiram todos os bens do nome,<br />

passando para o de parentes ou conhecidos de confiança, para não<br />

terem o que ser confiscado pela justiça em eventuais processos.<br />

Enganadores estão em toda parte, sempre sobrevivendo às<br />

custas de enganar o povo, se aproveitando da inocência e fragilidade<br />

alheia, ou talvez do desejo consumista na realização de um sonho<br />

material.<br />

É um produto defeituoso que o vendedor já sabe que trará<br />

problemas, um plano de telefonia ou de internet que é aquém do<br />

estabelecido em contrato, o plano de saúde que se paga a vida inteira<br />

e quando se precisa dele, não cobre o procedimento, seguros, enfim,<br />

o comércio está aí para enganar, e foram os próprios comerciantes<br />

que criaram esse estado deplorável de confiança da população.<br />

108<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A PEGADINHA DO BONECO<br />

Sabino era cachaceiro! Chegou de repente no quarto, sedado e<br />

ficou dormindo por três dias, sob o efeito dos remédios.<br />

Quando acordou já foi logo pedindo cachaça, não se preocupando<br />

em estar internado se tivesse cachaça para beber.<br />

– Moço, o que eu vou fazer sem cachaça?<br />

– Bom, Sabino, aqui na clínica você não vai conseguir cachaça,<br />

não.<br />

– E o que eu vou arrumar da vida? Acho que vou comer alguma<br />

coisa e depois dormir de novo, então.<br />

Ele dormia, acordava na hora do café da manhã, depois voltava<br />

para o quarto para a soneca de antes do almoço, a qual era pesada e<br />

nada o acordava.<br />

Como se tivesse um relógio biológico, levantava-se pontualmente<br />

na hora do almoço e chegava antes de todos à fila<br />

do refeitório.<br />

Sempre que era servido, pedia para que colocassem mais ainda,<br />

e pegava um prato separado só para a salada.<br />

Após o almoço, fumava um cigarro e dizia sempre que queria<br />

uma cachaça para as enfermeiras do posto. Com as respostas<br />

que recebia sobre a impossibilidade, exibia uma expressão de<br />

descontente e tome outra soneca antes do lanche das quinze horas!<br />

Sempre recebia a negativa com a mesma frase:<br />

– Ô, lasqueira!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

109


110<br />

Uma acordada rápida, o deslocamento ligeiro até a cantina e<br />

uma voltinha curta pela área externa, só pra esticar os músculos e<br />

lá vai mais uma soneca.<br />

Na hora do jantar, costumeiramente era um dos primeiros da<br />

fila, e um dos últimos a sair do refeitório, sempre pedindo para<br />

repedir o prato.<br />

E de onde o infeliz tirava sono para dormir à noite inteira acho<br />

que nem a ciência conseguiria explicar.<br />

– Ele está dormindo de novo, João?<br />

– Esse aí não tem jeito. Só come e dorme, come e dorme.<br />

– Amanhã vou fazer uma brincadeira com ele pra ver se ele faz<br />

alguma coisa.<br />

– Rá! Rá! Rá! Conhecendo bem o seu jeito brincalhão, até<br />

imagino o tipo de coisa que vai aprontar.<br />

– Eu acho que deveríamos colocá-lo pra dormir com o bumbum<br />

de veludo.<br />

– E já vem com essa palhaçada de bumbum de veludo de novo.<br />

Não tem outra coisa pra fazer, não?<br />

– Ei, essa ideia é ótima!<br />

– O quê? Já vai começar com as piadinhas também?<br />

Exatamente! Amanhã vou pôr um boneco de pano para dormir<br />

com ele!<br />

– Rá! Rá! Rá! Rá! Você não vale nada! O que vai fazer?<br />

Espere ele sair pra tomar café, amanhã, e verão.<br />

– E a noite passou bem rapidinho, afinal todos queriam ver<br />

mesmo a brincadeira do boneco.<br />

Sabino acordou pontualmente, pedindo cachaça:<br />

– Será que hoje vão me deixar beber uma cachaça? Já tem cinco<br />

dias que estou aqui.<br />

– De novo essa história, Sabino? Olha só, João, ele ainda insiste<br />

na cachaça. Rá! Rá! Rá!<br />

– Pede lá na cantina, de repente eles te dão.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Nossa! Por falar em cantina está na hora do café. Preciso<br />

correr pra não pegar fila, acabei de acordar e já estou com sono<br />

outra vez.<br />

Então, todos olharam para mim e deram uma boa risada, assim,<br />

bem estridente que ecoou pelo corredor.<br />

Assim que Sabino foi para o refeitório aguardar o café, peguei<br />

alguns cobertores, esparadrapo, uma faixa e um par de óculos que<br />

Fausto emprestou.<br />

Enrolei os cobertores e, com o esparadrapo, fui delineando<br />

braços, pernas e dorso. O rosto foi feito com algumas roupas e com<br />

a faixa, por fim adornado com os óculos.<br />

Corri até o refeitório e disse:<br />

– Sabino, chegou um paciente novo. Está operado na cabeça e<br />

também é cego. O enfermeiro chefe falou que ele terá que ficar em<br />

sua cama até conseguirem um leito.<br />

– O quê? Mas como foi acontecer uma coisa dessas? Vou lá ver<br />

isso agora. Eu tiro esse infeliz da minha cama agora mesmo.<br />

– Não, homem! Você não pode mexer nele, afinal está sedado e<br />

operado. O jeito vai ser você ir pra terapia ocupacional na parte da<br />

manhã ou ficar aguardando na área externa, fazer uma caminhada,<br />

sei lá! Dormir será impossível!<br />

– Eu vou lá ver esse gaiato agora mesmo.<br />

Nesse momento, não consegui segurar o riso e achei melhor<br />

ficar no refeitório enquanto passava a crise de gargalhadas.<br />

No corredor, vários pacientes ficaram vendo o Sabino passar<br />

com um copo de café com leite na mão direita e metade de um pão<br />

na esquerda. Todos já sabiam da brincadeira e não conseguiam<br />

segurar o riso.<br />

João falou que o Sabino entrou no quarto, xingou o boneco de<br />

folgado e ainda deu um cutucão no boneco esperando que acordasse.<br />

Ao voltar estava desolado, pois perderia o sono da manhã antes<br />

do horário do almoço.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 111


– Moço e agora? Chamei o folgado lá na cama e ele nem se<br />

mexeu. Se ele cismar de dormir muito eu não sei o que vai ser de<br />

mim.<br />

– Bom, por que não faz uma caminhada, então? Respira um ar<br />

puro!<br />

Está louco? O que eu mais queria agora é uma cachaça e depois<br />

tirar um cochilo. Só de pensar em fazer alguma coisa me dá sono.<br />

– E por que veio pra cá?<br />

– Moço, nem te conto. Eu estava em casa tomando uma cachaça<br />

muito boa! De repente, veio um pessoal do outro lado da rua<br />

querendo que eu abaixasse o som, aí peguei meu vinte e dois e dei<br />

três tiros para o alto. Saiu foi gente correndo!<br />

– Mas não deu nenhum problema não?<br />

– Que nada! Meu padrasto é fazendeiro. Ele que empresta a<br />

casa que serve pra polícia lá na cidade. Se alguém mexer comigo,<br />

ele cria caso. E lá é assim mesmo. Outro dia, não transferiram<br />

um novato porque ele multou o filho da prefeita da cidade? O<br />

moleque é um diabo! Não tinha carteira para andar de moto e<br />

estava empinando a moto que comprou. Isso foi na praça, bem no<br />

centro da cidade.<br />

– Sério? E o que houve?<br />

O policinha foi lá e apreendeu a moto, esvaziou um bloco de<br />

multa em cima do filho da prefeita e o levou pra delegacia. Ela<br />

foi reclamar com o chefe de polícia, e uma semana depois haviam<br />

transferido o novato pra uma cidade que fica uns duzentos<br />

quilômetros de lá.<br />

– Que coisa! Hoje em dia ainda existem situações assim?<br />

– É o que mais tem. Mas aí o meu padrasto me internou aqui<br />

pra que eu desse um jeito nessa cachaçada em que estou.<br />

– E o que está achando daqui?<br />

– Nem sei, só como e durmo. Aliás, eu não vou fazer caminhada<br />

coisa nenhuma. Vou lá dormir...<br />

112 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Rá, rá, rá, rá, rá, rá... – Não foi possível me conter, cheguei a<br />

babar do tanto que ri quando ele falou.<br />

– O que foi?<br />

– Nada, desculpe interromper, mas eu não aguentei. Diga-me:<br />

vai dormir onde?<br />

Na minha cama, ora. Ele chegou depois. Os incomodados que<br />

se retirem.<br />

E o Sabino foi andando pelo corredor. Olhei para o João e para<br />

o Fausto e nenhum dos três conseguiu conter o riso. Logo a clínica<br />

inteira estava sabendo, e fomos todos para a porta do quarto ver se<br />

ele perceberia que era um boneco.<br />

Empurrou o boneco para o canto da parede e deitou na beirada.<br />

Puxou o cobertor e ainda falou que o boneco era muito folgado e<br />

espaçoso.<br />

Fomos todos para a área externa e uma hora depois chega o<br />

Sabino.<br />

– Então, Sabino, não quis dormir?<br />

– Moço, não dá pra dormir perto daquele homem não.<br />

– Por quê? O que houve?<br />

– Bom, ele solta gases e ronca. Até aí tudo bem, mas fica<br />

batendo na gente e isso não dá pra aceitar não. Cheguei a falar com<br />

ele que estava me incomodando, pra ele sair do quarto e procurar a<br />

enfermagem pra conseguirem outra cama.<br />

– E o que ele fez?<br />

– Fingiu que não estava me ouvindo e continuou dormindo<br />

feito uma pedra.<br />

Sabino não havia percebido que era um boneco, e não sei se por<br />

delírio ou exagero imaginou coisas. Passara tanto tempo sem sua<br />

cachaça que já estava tendo problemas de abstinência.<br />

Se fosse um maconheiro eu diria que a que ele usou era da boa,<br />

mas o desejo dele era somente sono, comida farta e cachaça.<br />

Então eu me pergunto: precisa dizer mais alguma coisa?<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 113


Ele deu uma volta na área externa da clínica, fumou alguns<br />

cigarros, visitou a terapia ocupacional e depois foi até a horta para<br />

pegar algumas couves, comendo tudo ali mesmo como um furão<br />

invasor de plantação.<br />

Depois acabamos contando que era um boneco, e ele sorriu com<br />

a brincadeira. Acabou percebendo que estava dormindo demais e<br />

começou a dar uma voltinha pela área externa após cada refeição,<br />

antes do seu cochilo.<br />

114<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O PRESENTE<br />

– Monsenhor! Desculpe desviar, nessa reunião tão importante,<br />

o foco do nosso propósito para esse encontro, mas tenho que levar<br />

ao conhecimento dos senhores irmãos alguns fatos que entre nós<br />

será mantido no mais absoluto segredo, mas será necessária uma<br />

intervenção no sentido de solucionar algumas particularidades que<br />

fogem à luz da legalidade e da igualdade.<br />

– Tem a palavra aberta. Traga o que o aflige para que possamos,<br />

com sabedoria, compreender e auxiliar da melhor forma, se os<br />

demais presentes estiverem de acordo.<br />

– O que vou relatar, porém, é algo que precisará ser<br />

metodicamente avaliado pelos senhores irmãos devido ao fato de<br />

que a influência que temos será um fator de decisão para a melhor<br />

solução de tudo o que está acontecendo.<br />

– Continue! Tem a palavra...<br />

– Senhor Lino! Obrigada por me atender!<br />

– Boa tarde, senhora!<br />

– Sei que vim em momento inoportuno, mas o assunto de que<br />

vim tratar é urgente! Não poderia esperar mais essa entrevista para<br />

debatermos sobre o caso.<br />

– Não há de quê, senhora Flávia! A que devo a honra de sua<br />

visita? Pode falar abertamente! Estou à sua inteira disposição!<br />

Vim tratar de assunto relacionado a um de seus funcionários.<br />

Na verdade, um funcionário diferenciado, cujo trabalho temos<br />

acompanhando com o passar dos anos. Vários fatos chegaram ao<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 115


116<br />

nosso conhecimento e queremos saber, da parte de sua repartição,<br />

o que tem sido feito para ajudá-lo.<br />

– Já sei até do que se trata. Ele ainda está internado em outra<br />

cidade, mas estamos oferecendo todo o suporte necessário. O<br />

problema é que ele passou por muitas situações inadequadas<br />

na repartição onde trabalhava, e isso vinha abalando seu estado<br />

emocional há vários meses. Quando chegou aqui, há mais ou<br />

menos um mês, já não estava bem. No dia em que tudo aconteceu,<br />

eu estava fora, participando de um congresso. Fui saber do<br />

incidente no metrô por meio dos jornais. Ao ligar para o setor<br />

onde trabalhava, disseram que ele até chegou a vir para o serviço<br />

no dia, mas que seu estado emocional não era outro senão o de<br />

mais profunda depressão!<br />

– Ele é uma pessoa muito querida entre nós! No meu caso,<br />

como sabe, estou representando mais do que uma grande equipe<br />

de militantes, grandes amigos que ele angariou ao longo dos anos.<br />

Todos estão muito apreensivos e até descrentes quanto à empresa<br />

pelos fatos que o levaram a tentar suicídio e pela ineficácia de<br />

algumas das repartições em atender à demanda de ordens de serviço.<br />

Há muita coisa fora dos padrões de aceitação e a responsabilidade<br />

sobre isso não pode cair senão nas costas dos gerentes.<br />

– Entendo que há muito para ser melhorado sim! Pelo pouco<br />

que o vi trabalhando percebi que é uma pessoa de valorosos<br />

princípios! Um profissional extremamente eficaz na elaboração de<br />

seus projetos! Pode ter certeza que, da minha parte, estou sempre<br />

apoiando suas pesquisas profissionais e seus trabalhos, que são de<br />

fato muito interessantes!<br />

– Trouxe aqui alguns panfletos sobre um novo trabalho que<br />

estamos elaborando, que espero ser do seu agrado. Irei também<br />

comunicar aos outros membros o que foi aqui discutido, mas é bom<br />

saber que, da parte dessa gerência, há um novo posicionamento em<br />

relação a ele. Chegamos a nos manifestar diretamente ao gerente<br />

Barcelos sobre a nossa insatisfação com determinadas condutas<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


que, além de desaprovadas pelos acionistas, são rejeitadas por todos<br />

aqueles que estão ligados aos serviços aqui prestados.<br />

– Não tenha dúvidas de que estamos nos empenhando para<br />

promover muitas melhorias internas. Algumas questões fogem<br />

à minha alçada, mas o que posso fazer para melhorar as coisas<br />

para os meus funcionários e para o público, isso tenho feito<br />

constantemente. Não podemos oferecer um produto de qualidade<br />

se não nos preocuparmos com quem está na linha de produção.<br />

– Obrigada pela atenção, senhor Lino! Muito bom saber que<br />

podemos contar com pessoas como o senhor!<br />

– Tenha um ótimo dia, senhora Flávia! E muito obrigado pela<br />

sua visita!<br />

– Senhor Bretas! Que bom vê-lo novamente em meu gabinete!<br />

Sua presença é sempre muito agradável!<br />

– Deputado Freitas, boa tarde! O assunto que me traz até aqui<br />

é algo que requer a sua atenção para uma intervenção decisiva e<br />

imediata. Trata-se de um incidente que vem se arrastando há vários<br />

anos, e não há momento mais oportuno para cobrar seu apoio e<br />

deliberação junto à Casa Legislativa do que agora.<br />

– Conte-me o que está acontecendo, se estiver ao meu alcance<br />

solucionar.<br />

– Um instante. Deixe-me mostrar os documentos que trouxe<br />

comigo na pasta, pois comprovam todo o teor do assunto que vim<br />

relatar, para o qual solicito sua intervenção.<br />

– Sim, isso é interessante! Vou chamar minha assessora, Rosina,<br />

para acompanhar o que tem a relatar e providenciar um despacho,<br />

se for o caso.<br />

– Isso é o desejo de todos aqueles que me indicaram para trazerlhe<br />

essa demanda, que necessita de intervenção urgente e decisiva<br />

por parte de Vossa Excelência, tendo em vista a gravidade dos fatos<br />

e todas as consequências que podem surgir de um caso como esse.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 117


– Já ouvi algo a respeito, mas até o momento procurei não<br />

interferir porque achei que o caso já estava sendo solucionado pelo<br />

Deputado Juarez. Além do mais, eu não queria entrar em conflito<br />

com os comunistas, pois poderiam interpretar mal as minhas<br />

intenções.<br />

– Ele não fez muito para solucionar essa situação. Antes disso,<br />

se esquivou. E agora, antes que o rapaz termine a internação, quero<br />

viabilizar uma forma de trazê-lo para esta cidade, ou então, em<br />

último recurso, providenciar sua alta imediata, tendo em vista que a<br />

internação foi arbitrária e compulsória, não dando a ele o direito de<br />

escolher o melhor tratamento. Segundo o Genaro, o rapaz chegou a<br />

reclamar várias vezes de que a internação traria prejuízos, inclusive<br />

não tendo dado a ele a oportunidade de ao menos buscar roupas em<br />

sua casa.<br />

– Sem dúvida, uma situação lamentável de falta de respeito ao<br />

ser humano!<br />

– Com licença, senhores! Posso entrar?<br />

– Pois bem, vamos então começar a reunião.<br />

– Sim! Pedi para que a Ester trouxesse bolachas e um cafezinho.<br />

118<br />

– Grande companheiro Genaro! É sempre um prazer recebê-lo<br />

em minha sala! Ainda mais para um assunto de tamanho interesse<br />

como esse! Fiquei muito satisfeito ao receber sua ligação, e certo de<br />

que poderei ser muito útil!<br />

– O prazer é todo meu, Excelência!<br />

– Ontem, quando me adiantou tudo por telefone, vou confessar<br />

quefiqueichocadocom tudo isso! Algome despertou umsentimento<br />

íntimo de revolta e insatisfação que me fez perder o apetite.<br />

– Pois é! Eu acompanhei todos os passos e quero uma avaliação<br />

de todo o material que tenho em mãos para que possamos viabilizar<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


este assunto o mais rápido possível, e digo isso independente da<br />

vontade do homem! Estou disposto a passar por cima da arrogância<br />

dele e levar o fato até o Congresso, se for o caso.<br />

– Claro! Isso também é do meu extremo interesse! Mas, e o<br />

rapaz? Já está melhor?<br />

– Eu o conheço bem! É um militante! Um pensador! Teve o<br />

seu brio ferido, é apenas uma questão de tempo para renascer das<br />

próprias cinzas, da sua desilusão, e se tornar uma arma poderosa<br />

contra o assédio moral!<br />

– Já ouvi falar muito dele! É realmente um idealista!<br />

– Como sabe, agora estou aliado a antigos representantes<br />

políticos. Abandonei de vez a assessoria jurídica do Deputado<br />

e estou com novos projetos em mente, voltados para a ética e<br />

cidadania, e para confrontar situações como essa. Na verdade,<br />

estou com uma atuação mais ampla do que antes, e isso tem me<br />

proporcionado mais condições de aplicar medidas mais enérgicas<br />

contra os abusos cometidos contra o ser humano em seu local de<br />

trabalho.<br />

– Essas fotografias são recentes?<br />

Sim! Todas são. Condizem com a verdade dos fatos e, nos<br />

documentos, também há todo um conjunto de provas.<br />

– Isso, entretanto, é uma faca de dois gumes. E quero deixar<br />

claro que o posicionamento que eu adotar não será reversível.<br />

– É o que também espero e, antes de tudo, quero deixar claro<br />

que a Frente do movimento também atuará no mesmo sentido e<br />

com toda a influência que temos para erradicar de vez esse tipo<br />

de situação. O país está estremecendo de cima a baixo com a<br />

revolta popular e as manifestações públicas. Se nós, que somos<br />

organizados, não pactuarmos da mesma filosofia de mudanças na<br />

forma de conduzir este país, ficaremos para trás.<br />

Exatamente! O povo já não aceita a corrupção que se instalou<br />

em todo lugar, o abuso de poder ou de autoridade, a imposição e a<br />

restrição dos seus direitos. As pessoas querem pão e cachaça, leite<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 119


e saúde, dinheiro e dignidade! É como se um gigante acordasse<br />

para pisotear os salteadores. E nós, mesmo que sejamos pessoas<br />

importantes e influentes, não podemos ficar alheios a tudo isso.<br />

Precisamos participar do processo de mudanças desde já.<br />

– Que coisa mais triste aconteceu, não é Edmara?<br />

– Todos gostam muito dele! Deveríamos fazer alguma coisa<br />

para que ele pudesse voltar.<br />

– Talvez se mandássemos uma carta a alguma autoridade,<br />

essa situação pudesse ser amenizada. Os membros da sociedade<br />

têm poder para cobrar das autoridades! Precisamos usar isso para<br />

ajudar quem é parceiro dos nossos trabalhos e sempre nos ajudou.<br />

– Ele sempre nos ajudou muito! É verdade! Sempre alegre e<br />

prestativo! Perdi a conta das vezes que nos atendia até mesmo nos<br />

dias em que estava de folga. Vamos, sim, fazer alguma coisa. Vamos<br />

reunir todo mundo hoje após o expediente e debater a respeito, o<br />

que acha?<br />

– Gostei da sua sugestão! Podemos marcar para as dezoito<br />

horas.<br />

– Tenho certeza de que todos irão se sensibilizar com o caso,<br />

afinal não podemos permitir que coisas assim aconteçam, nem com<br />

ele nem com qualquer outra pessoa.<br />

– As pessoas não respeitama lei. Sóquandocaem em um processo<br />

é que passam a dar valor. Temos que combater essas atitudes com<br />

pesos e medidas iguais, se não esses absurdos envolvendo chefes e<br />

empregados continuarão indefinidamente.<br />

120<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– E isso é tudo, Monsenhor. Após muito pensar, essa foi a<br />

solução que encontrei para o assunto e quero propô-la para votação<br />

dos demais.<br />

– Que os fatos verdadeiros que são trazidos a essa Irmandade,<br />

na data de hoje, não escapem de uma solução, a menos que algum<br />

dos senhores tenha opinião em contrário.<br />

– Seja feito conforme proposto, Monsenhor!<br />

– Não há aqui nenhum dos irmãos que deseja o contrário!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 121


LEMBRANÇAS DA ROÇA<br />

Sentado num banco, tendo no ambiente o cheiro maravilhoso<br />

da dama-da-noite, estava apreciando a leitura de O Tronco do Ipê, de<br />

José de Alencar.<br />

Um romance bem simples e de fácil compreensão! Confesso<br />

que não gostei muito quando o personagem Mário tira de uma<br />

árvore um ninho de anus, encantado com a beleza dos ovos azuis,<br />

para mostrar à sua amiga de infância, e mais que isso, uma pessoa<br />

que estaria ligada a ele por toda a vida em momentos fantásticos de<br />

predileção do destino!<br />

O personagem Benedito, um preto velho, tido por muitos como<br />

um ente cuja ligação com o outro mundo se torna notória até hoje<br />

em alguns cultos da umbanda, aparece na obra com simplicidade e<br />

sabedoria, demonstrando a decência do povo escravo.<br />

As matas, a natureza, os detalhes da paisagem como um elo<br />

com a essência humana mais uma vez se mostram presentes na obra<br />

tão bem escrita por José de Alencar!<br />

Então se aproximou o fazendeiro. Foi chegando tímido e se<br />

sentou no outro banco. Dei uma respirada mais forte para perceber<br />

se não estava cagado. Continuei lendo o livro e, por algum tempo,<br />

não dei importância à sua presença até que ele puxou assunto.<br />

– Hoje, lembrei-me do primeiro dia em que fizemos o parto de<br />

uma vaquinha lá na fazenda do Tião Ozório, há muitos anos.<br />

Estranhei que ele falou com muita sobriedade! E, ao interromper<br />

122 a leitura do livro, olhei para ele e apenas disse: rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


– Sério? E quem é Tião Ozório?<br />

Na verdade, eu não esperava resposta; afinal ele tinha tantas<br />

alucinações.<br />

– Tião Ozório foi um dos grandes amigos que tive na vida!<br />

Passamos a infância juntos na fazenda. Ele era pobre e morava<br />

numa casinha com os pais.<br />

– É mesmo?<br />

– Sim! Isso foi há muitos anos! Um tempão atrás! Tu nem era<br />

nascido e ainda nem podia foliá as folhas de um livreto. Quando era<br />

hora de ir pra escola, meu pai passava pela estradinha, e ele tava lá<br />

indo a pé. Magrinho que só! A mochila veia nas costas fui eu que<br />

dei de presente quando tinha seis anos só, na festa de aniversário.<br />

Então, o pai velho parava e dava carona pro meu amigo de infância.<br />

Nós gritava, pulava no carro, e o pai sempre fazia festa! Derrapava o<br />

carro nas poças de água, brincávamos e a cantoria se estendia pelo<br />

caminho.<br />

– Que interessante, senhor Bento!<br />

Depois de um tempo a famía dele comprou umas terrinha lá<br />

pros lados do riachão.<br />

Fiquei ouvindo o que dizia o velho Bento, enquanto seus olhos<br />

pareciam querer penetrar no tempo e voltar aos anos que já viveu.<br />

Talvez essa seja a sua vontade de fugir, de voltar a ter uma vida que<br />

a idade e a loucura lhe tiraram.<br />

– Depois que a gente cresceu e formou famía me chamou mais<br />

minha muié pra padrinho. Ele que já era meu cumpadre, quase um<br />

irmão sempre foi muito boa pessoa que com muito custo conseguiu<br />

as coisas! Era um tempo tão bonito! Eu, todas as manhãs, acordava<br />

cedo, dava um beijo na minha veia antes mesmo dela se levantar<br />

pra me preparar o café. Eu ia pra minha roça cuidar dos bois que<br />

não paravam de parir. E o Tião, meu grande amigo, admirava de<br />

todo as suas prantação de milho e café. Não tinha experiência com<br />

gado.<br />

– E como foi o parto?<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

123


Ah, foi uma doidura! Tião chegou correndo em casa, gritando<br />

pra eu ir ajudar a sua vaca a parir. Corremos pra lá num galope! A<br />

vaca dele tava deitada no estábulo prestes a parir. O bicho sentia as<br />

dor do parto, e eu já tava muito bem acostumado. O Tião que num<br />

tava muito tranquilo com tudo aquilo, mas deu tudo muito certo.<br />

– E depois? O que houve?<br />

Ah, um bezerrinho muito formoso! Gordo que só! Que tempo<br />

aquele, eu fui muito feliz!<br />

Eu prestando atenção no velho, quando, de repente, ele se<br />

levantou e saiu pelo corredor para juntar seus bois, arrastando os<br />

tapetes que encontrava pelo caminho.<br />

A vida até parece um abismo! Cada pessoa, independente do<br />

que viveu, é um livro repleto de histórias! O que torna o destino de<br />

alguns mais cruel do que o de outros?<br />

Há tantas pessoas que aplicam golpes nos outros, que enganam<br />

justamente quem está em busca da realização de um sonho e<br />

acreditam que a justiça jamais virá bater em sua porta e levar mais<br />

do que se possa pagar naquele momento.<br />

E ela vem furtiva, num dia em que não se espera receber visitas.<br />

Um dia em que se acha que o expediente será tranquilo, e de repente<br />

a imposição do momento não dá o direito de escolha, e nem mesmo<br />

os gritos ou as palpitações do coração podem salvar do destino já<br />

ajuizado.<br />

Fiquei impressionado com as lembranças do velho fazendeiro<br />

num dos seus raros momentos de lucidez que pude perceber nesse<br />

tempo de internação.<br />

Depois, voltei a ler o livro, folheando páginas repletas de<br />

cultura!<br />

O boqueirão realmente era onde Iara seduzia com o olhar e o<br />

sorriso, convidando os desavisados para morrer nos encantos de<br />

uma enganação de sereia.<br />

Na verdade a vida é assim mesmo! As seduções convidam os<br />

124 desavisados a errar. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


As pessoas enganam com muitas falsas propostas, tiram o<br />

dinheiro dos outros e, já experientes na arte de enganar, não temem<br />

a ira que se esconde lá adiante.<br />

E há pessoas que sempre foram fiéis e acabam num abismo de<br />

loucura e desgosto, como o velho fazendeiro, milionário e infeliz,<br />

lembrando da vida com lucidez e saudade, e vivendo dias de<br />

loucura, sendo talvez esse o remédio encontrado por seu coração<br />

para minimizar a dor dos últimos dias que antecedem o descanso<br />

já tardio.<br />

A vida é difícil! Lutamos até vencer.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 125


A IGREJINHA<br />

126<br />

Já estava decidido que eu sairia da clínica no sábado. Houve<br />

pressão muito grande das pessoas que sempre confiaram em meu<br />

trabalho, e um acordo impositivo foi feito para que eu pudesse fazer<br />

o tratamento fora do ambiente de internação.<br />

Na realidade, ainda não sabia que a Irmandade se envolveria no<br />

assunto, uma vez que não sou membro, mas já esperava que o bloco<br />

comunista entrasse no mérito. São muitos amigos que conquistei<br />

ao longo dos anos! Pensadores, ambientalistas, políticos e, embora<br />

eu não tenha muita coisa, senão um salário ridículo para o tanto que<br />

trabalho e umas contas a pagar, possuo um reconhecimento pessoal<br />

muito satisfatório.<br />

É muito gratificante ser querido pelas pessoas! Ser uma imagem<br />

positiva de liderança e confiabilidade! Saber que há sempre quem<br />

nos apoiará nos momentos das dificuldades!<br />

Mais umavez deixei de tomar o medicamento. Queria participar<br />

da caminhada, pois, desde que havia chegado, a única atividade que<br />

fazia era terapia ocupacional.<br />

Contudo, já não havia mais espaço para novos desenhos<br />

nas paredes e não havia vontade de produzir nenhuma peça de<br />

artesanato. Simplesmente cansado de trabalhar a mente e o espírito,<br />

ansiava para que o corpo pudesse de novo saborear a sensação de<br />

produzir suor e odor.<br />

Quando a área externa foi aberta, comprei um refrigerante para<br />

refrescar o calor que fazia naquela manhã.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


A terapeuta ocupacional passou chamando os pacientes para<br />

que fossem para aárea de terapia e eu fiqueiaindaum tempo próximo<br />

à cantina, aguardando o coordenador da caminhada chegar.<br />

Lembro que éramos nove pessoas participando da caminhada:<br />

a Zuleide, uma paciente que tinha problemas com uso de drogas e<br />

fazia tratamento na clínica há mais de um ano. Ela sentia tremores<br />

nas mãos o tempo todo, como é comum nos pacientes com o seu<br />

quadro. Era ela a garota que eu vi logo nos primeiros dias com<br />

as mãos bem trêmulas devido à abstinência; o Fabrício, que na<br />

verdade nunca falou soube o motivo de estar na clínica; o Chico,<br />

que também não falava muito sobre os motivos que levaram à sua<br />

internação. Ele não se desgrudava do seu aparelho de som, sempre<br />

ouvindo músicas de periferia. Os outros participantes eram a<br />

Silviane, uma mulher mais velha; o senhor Pascoal; Baltazar; Rosa e<br />

o coordenador Sérgio.<br />

O caminho era de terra! Uma estradinha curta de chão batido<br />

que dava acesso a um pequeno povoado.<br />

Passamos por um local onde havia muito gado pastando numa<br />

grande área verde.<br />

Mais a frente havia uma vistosa plantação de milho. Um lençol<br />

verde e amarelo, cores do Brasil! Gralhas lá no meio da plantação,<br />

saboreando algumas espigas, lembraram-me do tempo em que eu<br />

levava frutas para as maritacas, e estas vinham buscar em minhas<br />

mãos a oferenda saborosa.<br />

As casas dos moradores contrastavam com a paisagem das<br />

montanhas repletas de eucaliptos.<br />

Chegamos a uma igreja pequena, onde havia uma mina d’água<br />

nos fundos.<br />

Devido ao calor intenso, fomos todos até lá saciar a sede. A água<br />

era fria e pura, muito boa! Até o barulho dela, tocando nas rochas,<br />

significava pureza e frescor!<br />

O dia estava quente, e por isso molhei os cabelos e os braços<br />

naquela água tão refrescante e límpida!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 127


Enchi as mãos de água, e, num gesto de libertação, jogava a<br />

água para o ar na direção da grama do descampado, com a intenção<br />

de molhar o ambiente ao meu redor, inclusive a mim.<br />

Depois, enquanto todos descansavam, fui até a porta da<br />

igrejinha para ver o seu interior, mas as portas estavam trancadas.<br />

Sérgio falou que naquela igreja não havia padre. Que, de<br />

tempo em tempo, vinha um padre do município vizinho para<br />

rezar a missa.<br />

Na porta lateral, havia uma fresta e, ao olhar o interior da igreja,<br />

vi enfileirados vinte bancos de madeira, todos muito empoeirados.<br />

O ar que exalava de dentro era de casa fechada há muito tempo!<br />

Senti como se os cantos dominicais ecoassem no interior daquela<br />

construção, evidenciando o passado.<br />

O altar da igrejinha era simples, muito simples! Havia uma<br />

mesinha com um lenço branco por cima. Duas cortinas de cor bege<br />

estampavam as paredes do altar e em tudo havia bastante poeira!<br />

Depois ao olhar em volta, notei que havia, do outro lado da<br />

igreja, outro descampado repleto de grama.<br />

Chico falou que quando era pequeno, no bairro onde morava,<br />

costumava descer um descampado como esse com pranchas feitas<br />

de papelão. Que ele e seus amigos não possuíam brinquedos e, por<br />

isso, as diversões preferidas eram a descida do descampado, as<br />

pipas e o jogo de futebol.<br />

Foi só isso. Não falou mais nada. Ele, por algum motivo, se<br />

sentia mal ao falar de seu passado.<br />

E chegou o momento de voltarmos à clínica pelo mesmo<br />

caminho.<br />

O sol estava muito forte, provocando até marcas da blusa nos<br />

braços, o que me fez tirar a blusa para queimar igualmente todo o<br />

dorso e não apenas os braços.<br />

Passando pelo coqueiral, Fabrício começou a gritar, admirando<br />

o eco de sua voz voltar das matas que cobriam a montanha bem<br />

128 distante, após os imensos coqueiros. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Chegamos a fazer piadas sobre uma resposta diferente daquela<br />

que esperava, provocada por alguém que estivesse nas matas.<br />

Gargalhadas! Suor pela caminhada! Contato com a natureza!<br />

Chegamos à clínica no horário da palestra, e eu estava um<br />

pouco cansado pelo exercício! Muito suado, após a palestra achei<br />

melhor tomar um bom banho.<br />

Foi a primeira vez que cheguei atrasado para almoçar,<br />

contrariando o horário; entretanto, não havia filas, e não precisei<br />

ficar esperando que ninguém fosse servido.<br />

Havia gostado do passeio! Foi bom conhecer um lugar diferente!<br />

Exercitar um pouco o corpo. Isso ajuda a mente a aliviar o stress<br />

deixado pelos problemas do cotidiano e proporciona mais saúde.<br />

Ainda mais com o soninho bom que tirei depois do almoço, só<br />

vindo a acordar quando um enfermeiro foi até o quarto dizendo<br />

que havia uma ligação para mim de uma das mulheres que ligavam<br />

para a clínica se identificando como parente, pedindo notícias<br />

minhas.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 129


VISITA À ALA DOS LOUCOS<br />

130<br />

Era o penúltimo dia na clínica.<br />

Haveria um culto evangélico no salão principal, e a terapeuta<br />

Claudete pediu que eu fosse com ela fazer a arrumação do salão.<br />

Fiquei interessado em ir, pois passaria por dentro de outra ala<br />

da clínica onde ficavam os pacientes crônicos, aqueles que possuíam<br />

um grau muito mais elevado de distúrbios mentais.<br />

Uma porta verde separava o ambiente da administração da ala<br />

dos crônicos.<br />

Ao passar pela porta, um cheiro forte de mofo e cigarros<br />

impregnava o corredor que dava acesso às escadas.<br />

Nas paredes havia marcas de mãos, fezes ressecadas, pichações<br />

e tocos de cigarros enfiados em buracos.<br />

O chão, embora estivesse limpo e ainda molhado, devido à<br />

limpeza das faxineiras, já exibia algumas cinzas de cigarro nos<br />

cantos.<br />

Um paciente passou correndo, segurando uma boneca bem<br />

velha e até esbarrou na Claudete, e logo em seguida vieram outros<br />

pacientes dizendo que iam pegar o ladrão e que eram da polícia, que<br />

iriam prender o ladrão e proteger a todos.<br />

Outro paciente olhava fixo para a parede, como se fosse uma<br />

estátua, e, de repente, deu um grito eufórico e começou a chorar<br />

deitado ao chão, contorcendo-se.<br />

Claudete falou que esses comportamentos eram normais<br />

no dia a dia daquela ala, onde os pacientes precisavam ter certa<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


autonomia para se desprender do stress da internação e viver<br />

um mundo onde a realidade não importa tanto quanto ter um<br />

pouquinho de felicidade e prazer.<br />

Nas paredes de um dos quartos, deparei com a pintura mais<br />

surreal que meus olhos já puderam ver! Havia, de uma extremidade<br />

a outra, inúmeros rostos com expressões que iam do ódio ao desejo<br />

de perdão e ao amor mais puro do mundo!<br />

Claudete contou que o artista que pintou a imagem<br />

com<br />

todos aqueles rostos se matou logo após terminá-la, e que nenhum<br />

paciente até então havia tocado naquela parede, pois acreditavam<br />

que quem nela tocasse também morreria. Por isso, ela estava tão<br />

limpa e conservada, diferente das demais.<br />

Subindo as escadas, uma paciente, chamando-me de pai, se<br />

apegou em minhas mãos e foi abraçada comigo até a entrada do<br />

salão, enquanto outra ficava perto, apenas observando.<br />

As cadeiras estavam fora do lugar, alguns bancos virados, as<br />

janelas sujas de batom e papéis rasgados espalhados pelo chão.<br />

Em pouco tempo, enquanto Claudete varria o chão, tirei as<br />

cadeiras e bancos do caminho e, em seguida, fui colocando tudo no<br />

lugar, de forma organizada.<br />

Arrumei as cortinas do altar e forrei de novo o lençol da mesa.<br />

Separei o lugar para os músicos e limpei a janela próxima da porta,<br />

enquanto Claudete ficou por conta da outra janela.<br />

Claudete foi falando sobre sua vida, que era casada e tinha uma<br />

filha. Que sentia solidão pelo fato de seu marido ser doente, e que o<br />

tratamento era muito doloroso para a família.<br />

Ao contar sobre os anos em que trabalha na clínica, falou de<br />

pacientes que chegaram e que cativaram a todos com seu jeito<br />

alegre, outros, com as manias ou loucuras inerentes à doença<br />

e, com muito carinho, falou da filha e dos brinquedos de que<br />

gostava.<br />

Tinha uma expressão alegre e saudosista! Falava com voz<br />

um pouco triste, melancólica, porém cercada do liquor da vida, e<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 131


132<br />

dizia estar vivendo por um motivo muito especial! Dedicava-se às<br />

pessoas.<br />

Após terminarmos, ela ainda me ofereceu um pedaço de doce<br />

que trazia na bolsa. Sentamo-nos num dos bancos e continuamos a<br />

conversar por alguns minutos.<br />

Uma paciente chegou à porta, mas, ao nos ver, foi logo embora.<br />

O tempo foi passando e deixamos tudo arrumado antes de sair.<br />

Fechamos a porta do salão para que nenhum paciente entrasse e<br />

revirasse tudo novamente.<br />

Havia uma paciente jogando roupas pela janela e dessa vez<br />

Claudete a impediu. A paciente, então, começou a gritar, falando<br />

vários palavrões e saindo em seguida, a passos fortes no chão.<br />

Claudete contou que aquela paciente jogava as próprias<br />

roupas fora, queimava ou rasgava, deixando tudo espalhado pelos<br />

corredores. Que não tinha problemas mentais, mas era viciada em<br />

drogas de maneira compulsiva! Que sua família a internou com<br />

medo de que traficantes do lugar onde mora continuassem a abusar<br />

dela devido ao vício, e ela aparecesse grávida em casa, após oferecer<br />

o corpo em troca de entorpecentes.<br />

Ao passar pela parede com a pintura, novamente olhei para<br />

aqueles rostos. Pareciam sair da parede, retratando não só uma<br />

inspiração artística surreal, mas também um infortúnio muito<br />

grande! O paciente, ao se expressar, deixou sair todos aqueles<br />

espíritos de sua alma, e os rostos desses espíritos estavam cheios<br />

de sonhos inacabados, de tristezas com a vida, de lágrimas roladas<br />

devido a um sofrimento de vida que passa pelo profissional, pelo<br />

pessoal e familiar. Crianças estampadas na parede com rostos de<br />

fome e frio, e adultos com a expressão do desgosto. Os que sorriam<br />

eram poucos, com traços mais distantes, mais frágeis! O artista se<br />

empenhou em deixar esse testamento de sua alma! É como se ele<br />

quisesse mostrar que a alegria até existiu em sua vida, mas estava<br />

muito distante dos últimos momentos.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Antes que pudesse sair pela porta, veio um último paciente até<br />

mim e, esbarrando em meu braço, falava algo que não dava para<br />

entender. Ainda insisti em perguntar-lhe o que era, mas ele saiu<br />

correndo pelo corredor aos gritos e batendo com as mãos na cabeça.<br />

Depois de algumas horas, fui tomar o café da tarde.<br />

Da mureta da cozinha, fiquei olhando aqueles pacientes que<br />

todos os dias eu via tomando o café nos bancos da ala dos crônicos.,<br />

Mas não imaginava que a ala onde ficavam era um lugar tão cheio<br />

de problemas! E mais ainda, que em meio a tantos problemas, eles<br />

simplesmente não têm preocupações e vivem uma vida de desapego<br />

e anarquia. Quem poderia imaginar que essas pessoas tão quietas e<br />

anestesiadas moralmente na mesa de café possuíssem a sua própria<br />

anarquia social, sem regras e sem exceções!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 133


SEGUE A SUA ESTRADA<br />

134<br />

Quando saí, os pacientes que estavam na área externa vieram se<br />

despedir. Abraços, beijos e desejos de um bom retorno, de felicidade<br />

e de sorte.<br />

Na verdade, nunca fui de confiar muito na sorte, mas agradeci<br />

pelo carinho de tantas pessoas. Penso que o que conduz alguém às<br />

vitórias é a preparação e não a fé ou a sorte.<br />

O mundo lá fora sempre será uma torrente de desgostos e<br />

desilusões, tanto para mim quanto para todos que resolvem lutar<br />

por um mundo melhor, ou que já nascem com essa chaga em seu<br />

rosto, de ser um ente defensor da cidadania e da legalidade.<br />

Ou eu decidia renascer das próprias cinzas em que minha vida<br />

se transformou e novamente fazer das brasas da minha justiça o<br />

delineador das arbitrariedades e do assédio moral, ou ficaria aqui<br />

para sempre, apagado e em cinzas.<br />

Antes de sair, deixei o seguinte recado fixado na parede em<br />

frente ao posto de enfermagem:<br />

Caros amigos!<br />

Desejo toda a felicidade do mundo a vocês! Todos vocês são uma parte da<br />

minha história e estarão eternizados para sempre no livro da minha vida!<br />

Obrigado a todos os funcionários que souberam me respeitar e ajudar no<br />

que estava ao alcance, nos dias em que aqui fiquei.<br />

Desejo muita luz a todos e espero que todos fiquem em paz!<br />

Obrigado por tudo!<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Caminhei pela estradinha de terra até passar pela ponte que<br />

atravessa o riachinho, e, ao chegar à rodovia, fiquei no acostamento<br />

esperando por um ônibus.<br />

Um ônibus do município não demorou muito a parar, como se<br />

já soubesse que eu o aguardava. Rotina de pessoas do interior, já<br />

acostumadas a se cumprimentarem pelos nomes a cada manhã, a<br />

caminho da cidade.<br />

Enfim, conheci o município de Balancena, lugar onde fiquei<br />

internado de forma compulsória, chegando aqui sedado e morto<br />

de espírito, numa ambulância, somente tendo sido viabilizada<br />

minha liberação depois que várias pressões externas e o bom<br />

relacionamento que adquiri junto à equipe médica se tornassem<br />

fatores decisivos para minha alta. O tratamento condicional externo<br />

foi aceito, tendo em vista que eu precisava voltar, pois ainda havia<br />

muita coisa para ser resolvida.<br />

Balancena manifestou aos meus olhos como uma cidade em<br />

crescimento, com bom acesso à rodovia e ruas ligando os bairros<br />

ao comércio de maneira fácil e rápida, indicando ser uma cidade de<br />

serviços e com grande mobilidade urbana!<br />

Chegando à rodoviária desse município de cerca de noventa mil<br />

pessoas, como foi dito pelo cobrador do coletivo, conferi se a cópia<br />

do boletim de ocorrência do assalto e o sumário de alta estavam na<br />

bolsa, pois eram os únicos documentos que eu levava comigo.<br />

Parei numa lanchonete da rodoviária, comprei refrigerante,<br />

coxinha e pastel de queijo. Estava com fome, pois já era meio-dia e<br />

o café que tomei na clínica foi às sete horas da manhã, como todos<br />

os dias.<br />

Comprei a passagem e fui aguardar na plataforma pelo ônibus,<br />

que só iria sair de Balancena às treze horas.<br />

Quando o ônibus chegou apresentei a passagem e entrei para<br />

aguardar o horário de saída na cadeira reclinável de número vinte e<br />

sete. Estava um pouco cansado do trajeto de vinte quilômetros que<br />

fiz de ônibus, em pé, até a rodoviária.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 135


Na volta pra casa, antes de sair da rodoviária, o motorista do<br />

ônibus avisou que seria necessário mudar o percurso pelo município<br />

de Pedras Negras, devido à manifestação popular em Congados,<br />

em retaliação contra as autoridades pelo pedido de construção de<br />

uma passarela na rodovia, onde muitos eram atropelados, e contra<br />

a corrupção que assolou o país.<br />

A participação popular no processo democrático tem crescido<br />

muito! As pessoas já não aceitam simplesmente ser alvo de todo tipo<br />

de abuso e se lamentar em silêncio, ostentando medo e ignorância<br />

no rosto.<br />

Ao contrário, as classes mais humildes estão buscando cada<br />

vez mais informação e lutando pelos seus direitos. O acesso à<br />

informação aumenta a cada dia. A imposição cultural e a influência<br />

tendenciosa dos homens que usam terno está esmaecendo cada vez<br />

mais, e até mesmo aqueles que trabalham na informalidade já têm<br />

uma conta de acesso às redes sociais.<br />

As cidades e rodovias estão em chamas! Populares ateiam fogo<br />

em pneus e trancam a rua, impedindo o fluxo de veículos em ambos<br />

os sentidos.<br />

A democracia é do povo! Pertence ao povo, mas os integrantes<br />

de poder público tomaram o país por muitos anos como sua posse,<br />

seu despojo. As manifestações se mostram como a revolta dos<br />

verdadeiros donos do poder.<br />

As pessoas querem ser ouvidas! Querem respostas do poder<br />

público às necessidades básicas como segurança pública de<br />

qualidade, construção de novos centros de saúde, melhorias<br />

urgentes na educação, construção de passarelas para evitar os<br />

constantes atropelamentos em rodovias, distribuição de verbas,<br />

punição à corrupção e melhor qualidade de vida.<br />

Nas cidades, organizam-se marchas com centenas de milhares<br />

de pessoas carregando faixas, pintando o rosto, provocando barulho<br />

136 e parando o trânsito. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


As pessoas querem ser vistas pelos políticos! Não são mais<br />

os meros fantoches que a cada quatro anos são lembrados e<br />

depois esquecidos por mais quatro. Querem que seus direitos<br />

constitucionais sejam respeitados!<br />

As pessoas querem cidadania e já não aceitam a truculência<br />

do poder público, pois são os cidadãos que o sustentam, desde a<br />

educação, saneamento básico, segurança pública, saúde e todas<br />

as regalias que por anos foram usufruídas pelos representantes da<br />

população, e que agora enfrentam um gigante irredutível que não<br />

tem liderança formada. É o desejo democrático em sua manifestação<br />

plena!<br />

No caminho de volta, avistei na rodovia um caminhão de lixo<br />

recolhendo pedaços de pneus, partes de carros, e até mesmo um<br />

sofá, que foi jogado à beira do asfalto. Pensamentos enleados, mas<br />

havia algo de humanitário na ação dos catadores! Não sei se estavam<br />

fazendo aquilo por mera obrigação ou pela consciência de terem<br />

uma rodovia mais limpa e sem o risco de acidentes provocados pelo<br />

lixo que é abandonado no trecho da cidade de Balancena.<br />

Mais à frente, havia uma ferrovia à direita da rodovia e um trem<br />

enorme passava por ela!<br />

Olhando da janela aquela locomotiva com mais de sessenta<br />

vagõescarregados, foi bom ter uma lição prática do desenvolvimento<br />

humano, transformando o mundo, escoando a produção pelos<br />

trilhos cujas imagens ilustravam os livros de história nos tempos<br />

de escola.<br />

Conselheiro Leopardo, que cidade agradável com feitios de<br />

cidade grande e o modo característico do povo quietinho da terra<br />

desse estado tão carismático! Povo que adormece e deixa a cidade<br />

sob a suave brisa e cheiro das flores!<br />

Lembro-me que o ônibus passou por uma avenida repleta<br />

de comércios, porém, no modo de vestir das lindas mulheres que<br />

andavam pelas calçadas, uma tradição tão apaixonante quanto o<br />

próprio ar que se respirava pela janela ao colocar a cabeça para o<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 137


lado de fora do ônibus para apreciar, mais de perto, tanta formosura!<br />

Município de Pedras Brancas! Que paz! Quantas flores ao longo<br />

da passagem! A maioria de cor roxa.<br />

O ônibus passava por ruasrepletas de ipêsque, de tão carregados<br />

de flores roxas, formavam nas calçadas um lençol de flores jogadas,<br />

tal qual nas cenas de cinema!<br />

Muitas pessoas tiravam fotografias para levar de lembrança.<br />

Chegaram até a pedir ao motorista para passar mais devagar por<br />

uma rua onde, nos dois lados, os ipês-roxos disputavam olhares<br />

admirados e cheios de uma ternura que há muito tempo não se via.<br />

Coisa de olhar de criança, desses que, depois que chega a idade<br />

adulta e as mazelas sociais e sentimentais roubam os sorrisos<br />

e o prazer, já não se revelam mais, manchados de desgosto pelos<br />

pecados alheios, surrados de lágrimas!<br />

Os ipês perfilados, enquanto o ônibus passava revistando com<br />

muitos olhares uma perfeição que somente a natureza sabe oferecer!<br />

Em compensação, na Praça Sagrada Cruz, no centro da cidade,<br />

o ônibus demorou a passar, pois havia dezenove carros estacionados<br />

em local proibido. Não havia sequer um dos motoristas que pudesse<br />

comparecer ao local para tirar o veículo. Foram necessárias várias<br />

manobras para que a viagem pudesse continuar, formando um<br />

congestionamento com vários veículos.<br />

Nem é necessário comentar a beleza que é o município de<br />

Pedras Negras, pois todos já sabem! É um lugar maravilhoso! Lindas<br />

construções do Barroco e ladeiras de pedras! As montanhas parecem<br />

pepitas de ouro bem escuro, talvez preto! Sim, várias pepitas de<br />

ouro preto jogadas do céu, formando uma cortina de montanhas<br />

que a visão chega a ficar ofuscada de tamanha admiração!<br />

Um cheiro agradável de café invadiu uma das ruas onde<br />

passamos! Um sentimento de doce saudade e de simplicidade!<br />

Na varanda de uma casa, uma senhora de idade já avançada<br />

jogava muitas sementes para os pombos que tomavam conta da<br />

138 calçada. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O ônibus deixou a cidade e o mato esverdeado foi se revelando<br />

nos dois lados da rodovia.<br />

Depois de uma cortina de palácios naturais onde a mão do<br />

homem não pôde bulir, a visão da metrópole! Com um céu cinzento<br />

de tanta poluição e uma infinidade de prédios de cores escuras!<br />

Nem mesmo o sol da estação penetra em suas frestas onde raio<br />

algum tem espaço.<br />

Não há luz natural, de fogo que queima tal qual o sol e oferece<br />

calor, somente as luminárias que iluminam a escrivaninha do<br />

escritório e os postes da rua onde os carros se enfileiram e as pessoas<br />

passam umas por cima das outras.<br />

Não há ventos e nem mesmo a chuva consegue passar pela<br />

cortina de poluição que o amor não pode abrandar.<br />

As cinzas queimando, deixando no ar a fumaça negra, tornando<br />

o lugar seco e sem vida. Ali nem mesmo os cactos querem crescer,<br />

pois o ar é pesado!<br />

Nesse momento, meus olhos se acenderam como fogo e pude<br />

sentir o calor com que queimaram. Essa era a resposta natural do<br />

renascer das cinzas. Percebi que eu estava vivo e pronto para a<br />

guerra contra qualquer um que ousasse, em qualquer momento, se<br />

armar de maldade contra os ideais puros, fortes, valentes e dignos<br />

que sempre levei em meu coração, e os transformei em ações.<br />

Ao entrar nos domínios da metrópole, o ar, que era puro,<br />

tornou-se ruim e pesado! Senti pena das pessoas nos pontos de<br />

ônibus lotados. Todas tão humildes! Trabalhadores que alimentam<br />

o sistema social.<br />

No rosto, a expressão de cansaço, depois de um dia inteiro<br />

trabalhando.<br />

Devido ao horário de grande fluxo de veículos, o ônibus<br />

demorou a chegar à rodoviária. Ao passar por um bar, tomei um<br />

trago de Salinas e acendi um cigarro, esperando minha prima trazer<br />

as chaves de casa, pois quando fui internado ela as guardou até o dia<br />

de meu retorno.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

139


Ela contou que tomou conta dos animais enquanto fiquei<br />

internado, e que, como era noite e eu estava cansado, seria melhor<br />

ir para casa descansar que no outro dia levaria embora os pequenos.<br />

Foi bom saber que tudo estava bem! Sempre gostei muito dos<br />

animais, das plantas, da natureza e do meio ambiente! Trato os<br />

meus animais de estimação como se fossem filhos e não aceito que<br />

qualquer animal seja maltratado em minha presença.<br />

Ao chegar a minha casa, tudo estava muito organizado! A prima<br />

falou que veio aqui fazer faxina para que, quando eu chegasse, não<br />

tivesse com o que me preocupar.<br />

Dentro do armário havia vários pacotes do meu salgadinho<br />

preferido e na geladeira, sucos e leite.<br />

A Célia, que tem um bar na rua, chamou-me para comer<br />

bolinhos que estava preparando. Tomei um banho, passei gel nos<br />

cabelos, fiz a barba que já estava grande, passei meu perfume, que<br />

ficou para trás naquele dia em que fui trabalhar, e fui lá um pouco.<br />

Muitas pessoas disseram que ficaram preocupadas ao ver as<br />

notícias no jornal.<br />

Todos os que me viam no bar paravam para saber das novidades.<br />

Fiquei um pouco no bar, tomei duas cervejas e depois dormi<br />

um sono muito pesado, provocado pelo cansaço da viagem.<br />

140<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


O DESPERTAR<br />

Havia um comunicado para eu comparecer ao serviço<br />

imediatamente após ser liberado da clínica de tratamento<br />

psiquiátrico no município de Balancena. Recebi a correspondência<br />

em casa, entregue por um agente dos Correios, com aviso de<br />

recebimento que eu havia de assinar.<br />

Estava assinada pelo gerente Lino e não tratava de nenhum<br />

assunto específico, apenas pedia meu comparecimento.<br />

Após o banho, vesti uma roupa social e fui até o ponto de ônibus<br />

aguardar o coletivo.<br />

O trânsito estava intenso naquela manhã, com muitas buzinas<br />

e pessoas apressadas para chegar ao trabalho.<br />

Tudo devido à iminência nunca avisada de manifestações<br />

populares que interrompiam o fluxo de veículos.<br />

Quando cheguei à repartição, fui diretamente até a recepção, a<br />

fim de evitar ser notado pelos demais funcionários. Sei que muitos<br />

deles parariam os afazeres para vir fazer perguntas, e eu queria<br />

apenas saber do que se tratava a convocação e ir embora. Afinal,<br />

estava licenciado de qualquer atividade laboral.<br />

Não é fácil ser um renascido! As pessoas olham como se<br />

estivessem diante de um ente ou do céu ou do inferno, olham com<br />

surpresa, medo ou curiosidade.<br />

Ao ser encaminhado pela recepcionista até a presença dele,<br />

notei um olhar de pessimismo em seu rosto.<br />

– Sente-se! Precisamos conversar.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 141


– Sim, e o que deseja, senhor Lino?<br />

– Antes de mais nada, saber como está.<br />

– Estou em recuperação devido a todos os transtornos que o<br />

serviço me causou.<br />

– E o assalto? Está mais tranquilo agora?<br />

– Se eu falasse que sim, estaria mentindo. Não se esquece<br />

simplesmente das coisas ruins que acontecem conosco assim tão<br />

facilmente.<br />

– E em relação à antiga repartição? Você guarda alguma mágoa?<br />

– Senhor Lino, não estou entendendo aonde o senhor quer<br />

chegar com essa conversa.<br />

– Só estou querendo te dar bons conselhos. Você sabe que o<br />

sistema é assim, em todos os lugares: nos hospitais, numa grande<br />

montadora de automóveis, na polícia, nos governos. Tudo gira em<br />

torno de um interesse comum e, por isso, alguém vez ou outra se<br />

sentirá restringido em seus direitos. Mas é prudente ao homem<br />

avaliar as consequências dos seus atos!<br />

– Senhor Lino, o senhor está querendo defender alguém com<br />

seus conselhos? Ou será que estou entendendo errado?<br />

– Sim! Estou. Pelo bem da empresa, pela imagem e pela sua<br />

própria segurança. Você é o elo mais fraco, e, justamente por<br />

acreditar no seu potencial como profissional, estou querendo<br />

oferecer-lhe uma segunda chance. Uma oportunidade única para<br />

esquecer tudo o que se passou e começar do zero.<br />

– Desculpe-me, mas acho que o senhor ainda não entendeu<br />

muito bem, ou talvez não tenha assimilado as coisas que<br />

aconteceram comigo ao longo dos últimos três anos, por isso vamos<br />

desconsiderar que me disse essas palavras.<br />

– Você tem certeza disso?<br />

– Quando se provoca o brio de uma pessoa como eu, os efeitos<br />

podem ser devastadores! Não que eu não tenha vontade de me<br />

vingar de todo o sistema, eu tenho, mas tenho também a minha<br />

ideologia bem arraigada! Eu não escolhi ser um intelectual a lutar<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

142


pela ética e pela constitucionalidade, isso está em mim como parte<br />

perene do meu ser!<br />

– Eu sei, e admiro sua ideologia! Só estou querendo minimizar...<br />

– Desculpe-me interrompê-lo, senhor Lino, mas creio que<br />

nossa conversa não chegará a lugar nenhum. Meu último esforço<br />

para evitar a adoção de medidas mais drásticas já se esgotou. Se eu<br />

pudesse descrever o que tenho sentido nesses últimos dias, relataria<br />

ao senhor o despertar de um vulcão repleto de ânimo para alcançar,<br />

de qualquer forma, os objetivos a que me propus. Deverei carregar<br />

a minha cruz e o peso dela será lutar pela dignidade e pela honra do<br />

meu caráter, dia após dia. Em todos esses lugares que o senhor citou,<br />

também existem pessoas que, como eu, não aceitam a injustiça e o<br />

assédio moral. Sei que assim como eu despertei, outros haverão de<br />

despertar e, em todo lugar onde houver qualquer ilegalidade contra<br />

o homem, ali haverá revolta e mudança! É isso que toda nação está<br />

descobrindo com todas essas manifestações que estão parando o<br />

país. Ninguém aceita mais a ilegalidade e o abuso.<br />

Percebi que o gerente fitou os olhos em mim e observava tudo<br />

que eu dizia, surpreso ou com ódio, naquela situação difícil em que<br />

era obrigado a atuar, supostamente orientado ou ordenado pelo<br />

gerente do bloco intermediário, senhor Barcelos.<br />

– Na verdade, senhor Lino, a gota d’água foi quando o gerente<br />

Wladmir interferiu em minha segurança pessoal e nas minhas<br />

condições de trabalho. Ele não está acima da lei e em hipótese<br />

alguma irei permitir que se faça de juiz sem ter justiça em seu<br />

espírito. Só lhe peço uma coisa, senhor Lino, e agora falo como<br />

funcionário da sua repartição: que não interfira, que sua repartição<br />

não interfira, pois a minha ira não é contra essa repartição, e o que<br />

quer que ocorra, será resolvido unicamente entre mim e a outra<br />

repartição, a justiça trabalhista, a mídia e o governo. Não pretendo<br />

trazer nenhum transtorno para essa repartição, mas já não me<br />

pertencem os limites das minhas ações, pois tudo já está em nível<br />

global! Não sou eu como pessoa que estou iniciando uma guerra, é<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 143


a própria cidadania se manifestando em mim, e digo que ela não irá<br />

refrear o seu desejo.<br />

– Está bem! Eu tentei ajudar.<br />

– Está cumprindo sua função, senhor Lino. Não o culpo<br />

por isso. É um profissional exemplar! Como o senhor disse,<br />

em todos os lugares existe o sistema, contudo, se olharmos no<br />

que se transformou o bloco intermediário, veremos que há uma<br />

blindagem aos gerentes e chefes de setor, enquanto os demais<br />

funcionários recebem diariamente todo tipo de represálias e<br />

punições. Há um surto de assédio moral que mancha qualquer<br />

relação social ou trabalhista, que deveria ser pautada na ética,<br />

na honra, no caráter, no profissionalismo e na Constituição<br />

Federal, pois foi devido a muita luta e sangue derramado que ela<br />

se consolidou, após a Ditadura Militar. Os gerentes e chefes de<br />

setor não estão acima da lei nem são infalíveis. Ao contrário, têm<br />

cometido erros injustificáveis na presença de todos, expondo a<br />

carência de limites aos seus atos de abuso de poder, ao passo<br />

que não existem punições ou castigos a quem está na linha de<br />

comando. Isso, senhor Lino, denuncia a fragilidade de direitos<br />

a que os funcionários de escalão mais baixo estão submetidos,<br />

e se isso, conforme relatou, existe em todas as organizações de<br />

trabalho, é um câncer a ser combatido constantemente e com<br />

todas as forças necessárias até que a cura se manifeste e seja<br />

aplicada com rigor. Costumo dizer que a gameleira é uma árvore<br />

que não cura nenhuma doença, por isso esperar uma solução<br />

vinda da gameleira é ilusão eterna.<br />

Ao me despedir do senhor Lino e deixar sua sala, por intuição,<br />

sabia que ele iria ligar para o gerente do bloco intermediário para<br />

cientificá-lo do teor da conversa.<br />

Eu estava decidido a fazer frente ao problema. O assédio<br />

moral precisa acabar, e uma pessoa que nasceu com o espírito<br />

revolucionário jamais se calaria perante a opressão moral e o abuso<br />

144 de poder. rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Contudo, havia outras coisas para resolver naquele momento.<br />

Durante a internação, a conta de um parcelamento bancário ficou<br />

em atraso, e o banco, além de encaminhar meu nome para o serviço<br />

de proteção ao crédito, bloqueou o pagamento do mês a título de<br />

recuperação de crédito em atraso.<br />

Fui falar com o advogado Wagner, que é conhecido há algum<br />

tempo, a fim de lhe pedir orientações sobre o caso. Queria aproveitar<br />

que estava no centro da cidade para resolver tudo que estivesse<br />

pendente.<br />

Após falar com ele, fui até a unidade da polícia que possui<br />

circunscrição sobre o endereço da agência e solicitei o registro<br />

dos fatos com todo o amparo legal, tendo em vista que o banco, ao<br />

realizar o bloqueio do pagamento, que já é uma miséria, impediu<br />

que alguns medicamentos fossem comprados e que fossem pagas as<br />

contas de água e de energia.<br />

Saindo de lá, fui até o juizado de relações de consumo para<br />

abrir a ação contra o banco. Levei as cópias dos documentos e a<br />

síntese dos fatos, constantes no embasamento legal fornecido pelo<br />

advogado.<br />

Na verdade, o Wagner é um profissional confiável, sempre<br />

muito solícito e profundo conhecedor da lei, notadamente sobre a<br />

proteção dos interesses individuais e difusos.<br />

Após entrar com a ação, parei num restaurante popular para<br />

almoçar, tendo em vista que havia passado a manhã toda em<br />

reunião com o senhor Lino, depois fui visitar o advogado e de lá<br />

fui direto ao juizado dar entrada na ação indenizatória contra o<br />

banco.<br />

Minha ideologia estava renovada! Por muito tempo estive<br />

envenenado por víboras, e não havia esperanças de receber remédio<br />

da gameleira. E deixando de esperar pela cura contra o veneno, de<br />

uma árvore tão passiva como a gameleira, foi necessário morrer<br />

espiritualmente para que, no renascimento, um ser mais forte e<br />

valente surgisse.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

145


Despertado de ânimo, corpo, alma e ideais, naquela manhã fiz<br />

uma importante ligação para o Genaro, para que me acompanhasse<br />

na reunião já marcada com um representante parlamentar, o<br />

Deputado Freitas.<br />

Meu novo estado espiritual era decidido! Forte, valente e digno!<br />

Eu já havia passado por inúmeras privações de direitos, muitas<br />

tentações ao corpo e ao caráter. Já não havia sentimento, senão uma<br />

revolta moral contra o sistema em sua manifestação mais singular<br />

e objetiva.<br />

Heureca! Eu sou um pensador com ideais revolucionários!<br />

Invendível! Irredutível! Endêmico!<br />

146<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


DESVIANDO O OLHAR<br />

Já havia se passado muito tempo desde a última vez que vi a luz<br />

da justiça clarear meus olhos já incrédulos na sociedade humana,<br />

tendenciosa e materialista.<br />

Nesse tempo, vivi um período de arbitrariedades das quais não<br />

tem noção o mais injustiçado dos homens de boa fé e dignidade de<br />

caráter.<br />

Hoje pela manhã, recebi uma ligação do serviço, avisando que<br />

o funcionário Fábio, da antiga repartição, exigia a minha presença<br />

naquele local, a fim de responder a um apenso produzido pelo<br />

gerente Wladmir.<br />

Embora o antigo gerente já não fosse mais meu chefe, e eu<br />

estivesse disposto a levar para a esfera judicial qualquer coisa que<br />

ousasse fazer contra mim, compareci à repartição para saber do que<br />

se tratava. A ilegalidade do apenso era evidente, mas eu não poderia<br />

esperar outro comportamento, pois com o tempo aprendi que ali os<br />

homens, quando desejam poder, ousam passar por cima da lei para<br />

alcançar seus objetivos, sendo necessário o amparo da própria lei<br />

para frear-lhes o impulso hedonista.<br />

A reunião foi inquisitiva por parte do Fábio, havendo duas<br />

testemunhas presentes no local, uma saleta de reuniões e despacho<br />

de documentos da repartição.<br />

– Estou aqui a mando do senhor gerente de repartição Wladmir,<br />

com o objetivo de produzir um apenso em seu desfavor, pelo fato<br />

de, quando foi assaltado, ter usado indevidamente o nome desta<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 147


epartição, causando-lhe prejuízo de imagem. Quero saber o que<br />

tem a relatar.<br />

– Ora, Fábio, não tenho nada a declarar para o senhor, ou<br />

melhor, para você. E, como já deveria saber, digo que nem deveria<br />

ter vindo aqui participar de tudo isso. Um verdadeiro teatro em que<br />

nós somos os fantoches e aquele gerente ordinário, o público.<br />

– Como assim? Está depreciando o gerente?<br />

O espanto foi geral no interior da sala, onde se esperava uma<br />

postura amedrontada, e de repente houve uma resposta seca e fria,<br />

que ecoou como som desagradável.<br />

– Diga ao seu chefe que eu não tenho nada a declarar para ele,<br />

pois ele é o seu chefe, e não meu. Não estou trabalhando para ele<br />

e, sendo assim, somente presto contas sobre o serviço à repartição<br />

onde trabalho e ao público. Ainda mais, sobre sua inquisição, na<br />

condição de cidadão, acho conveniente somente prestar contas à<br />

autoridade competente.<br />

Nesse momento, desviando os olhos e olhando fixo e com<br />

expressão confusa para o computador, fitei os olhos nele esperando<br />

dele o mesmo. Contudo, minha expressão era irredutível! Eu<br />

já estava no limite da aceitação. Já havia se esgotado qualquer<br />

fragilidade do corpo. Olhos de fogo queimam os que olham para ele.<br />

– Tem certeza de que não quer expor os seus motivos? Esses<br />

apensos podem provocar sua demissão.<br />

– Eu insisto que não tenho nada a declarar ao seu chefe de<br />

repartição. E, além disso, caso queira anotar o que estou dizendo,<br />

eu o acuso de estar agindo em retaliação à minha condição de<br />

profissional, criando um documento sem validade jurídica–<br />

unicamente para me trazer o transtorno de sair da minha casa...<br />

Uma tosse forçada de um dos presentes interrompeu o que<br />

eu dizia, mas nem mesmo essa pausa abrandou minha ira naquele<br />

instante...<br />

– E como eu estava dizendo, estou acusando-o de agir em<br />

retaliação à minha condição profissional, criando um documento<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

148


sem validade jurídica unicamente para me trazer o transtorno de<br />

sair da minha casa e vir até aqui, pois ele já estava sob investigação<br />

judicial quando elaborou esses apensos, e, mais que isso, já se<br />

encontrava sob suspeição da casa legislativa por causa dos assédios<br />

profissionais que há muito tempo vem exercendo. Eu não tenho<br />

nada a declarar para vocês dois.<br />

– Bem, mas em relação ao assalto que sofreu? Isso foi veiculado<br />

na mídia. O que tem a dizer?<br />

– Eu não tenho nada a declarar, Fábio, já disse. O processo que<br />

está sendo movido contra ele irá adiante, independente de quantas<br />

pessoas estejam envolvidas. Sempre pactuei que a lealdade de<br />

um profissional para com a chefia não deve, em hipótese alguma,<br />

significar fidelidade cega e plena aos desejos e aspirações do chefe.<br />

Mais uma longa tosse interrompeu o que eu dizia...<br />

E continuando:<br />

– Antes disso, o funcionário deve ser dotado de idoneidade<br />

moral, deve ter o direito de pensar e agir conforme a lei. A imposição<br />

jamais conduzirá esse país a melhores condições de existência e<br />

nossa sociedade, recém-acordada com as manifestações populares,<br />

está se tornando irredutível! Pouco a pouco as formigas estão<br />

percebendo que, se estiverem juntas, nem mesmo o maior dos<br />

animais poderá enfrentá-las. Um gigante que acorda! Assim é o<br />

desejo do povo, e quem não partilhar dele, em algum momento será<br />

esmagado juridicamente, ou agora, ou daqui a um mês, um ano ou<br />

mais. O tempo do abuso de poder já acabou! A sociedade brasileira<br />

já se cansou de ser limitada e um novo tempo de mudanças já<br />

começou.<br />

Com dificuldade, ele digitava tudo e, no interior do seu ser, havia<br />

concordância com o que eu dizia, mas a fidelidade cega o impedia<br />

de demonstrá-la, fosse em palavras ou simplesmente em olhar nos<br />

olhos do seu adversário. Suava frio e denotava nervosismo.<br />

Ele não conseguia acordar e contrariar o sistema. Sentiase<br />

orgulhoso de ser fiel a qualquer preço, pois achava que esse<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 149


comportamento lhe traria uma carreira de sucesso. Eu até o<br />

entendo. Muitas pessoas têm medo da pobreza. Têm medo de ter<br />

que economizar o pão por carência de recursos. Numa sociedade<br />

interesseira. somente quem tem dinheiro fala com coragem e aquele<br />

que depende dela abaixa a cabeça para responder e não olha nos<br />

olhos.<br />

– Sobre o emprego, senhor Fábio, nessa vida somente não<br />

alcança o sucesso quem não se empenha para chegar até ele. Não<br />

devemos temer o futuro, e sim nos prepararmos dia após dia para<br />

tempos em que haja escassez de recursos. Não podemos avaliar<br />

nossa situação profissional pelo medo de perdermos o emprego,<br />

pois isso é justamente o que move toda uma trama de influência e<br />

torna o homem escravo do sistema. Quem está agindo conforme a<br />

lei deve aguardar o amparo dela e isso é justamente o que eu sempre<br />

fiz, pois, de outro modo, o gerente Wladmir já teria concretizado<br />

todos os seus planos contra mim. Não foi em vão eu ter-me rebelado<br />

socialmente contra ele e seus homens de confiança, porque isso<br />

destruiu o espírito de divindade que foi criado naquele lugar. Eles<br />

são homens, você é homem. Devemos respeitá-los como chefes do<br />

serviço e não nos curvarmos como se fossem dotados de poderes<br />

sobre-humanos.<br />

– Está bem! Creio que não há mais nada para eu fazer aqui.<br />

Espero que melhore e que fique bem! Sua insubordinação ainda vai<br />

conduzi-lo ao fracasso.<br />

– Desejo o mesmo ao senhor! Que melhore... e, antes de mais<br />

nada, tenham a bondade de ir para o quinto dos infernos!<br />

Saí da saleta de reuniões, bati a porta com força e, no interior da<br />

sala, como se não houvesse ninguém lá dentro, reinava um silêncio<br />

absoluto!<br />

Antes de ir embora, fui falar sobre o ocorrido com o Donato,<br />

gerente de setor.<br />

Na verdade, eu deixava claro que estava na repartição para<br />

executar o meu trabalho, porém já havia se esgotado a situação de<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

150


harmonia entre a antiga repartição e eu, e no que estivesse ao meu<br />

alcance, não traria problemas para a nova repartição, mas também<br />

não poderia deixar de ir atrás dos meus direitos.<br />

Quando provam o poder, as pessoas costumam ficar cegas a<br />

ponto de mudar o modo de pensar e agir, a colocação das palavras<br />

e os círculos de amizades, se é que as pessoas poderosas possuem<br />

amigos.<br />

Isso é uma coisa que não me importa muito descobrir. Sei que<br />

possuo amigos e o poder não me agrada, afinal, gosto de sorrir e<br />

receber sorrisos verdadeiros em retribuição. Se eu tivesse poder,<br />

perderia esse bem precioso e somente receberia sorrisos falsos e<br />

bajuladores.<br />

E depois, fui embora. Fui para casa descansar, afinal, estando<br />

em tratamento médico, não é bom que uma pessoa fique exposta ao<br />

stress profissional de maneira tão brusca como ocorreu hoje.<br />

Às vezes, mandar alguém ir para o quinto dos infernos produz<br />

automaticamente um inimigo a mais, ou até dois, afinal, até o<br />

tinhoso anda reclamando das mercadorias que lhe são oferecidas,<br />

só que o grande ensinamento que se tira disso tudo é que eu não<br />

estou nem aí !<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA 151


A DEMOCRACIA É DO POVO<br />

Era linda a manhã do dia da Independência do Brasil! Um sol<br />

forte, no céu sem nuvens, clareava o dia.<br />

Tomava meu café da manhã com bolos, biscoitos, gemada com<br />

canela, que adoro, uma banana amassada com aveia e pão integral.<br />

Tudo parte da dieta que comecei a fazer para entrar em forma.<br />

No jornal da manhã, o repórter alertava os motoristas sobre o<br />

trânsito, devido à concentração da maior manifestação popular já<br />

vista em todo o mundo!<br />

Pessoas do país inteiro se reuniram com um único ideal<br />

democrático: manifestar a indignação contra a corrupção política,<br />

o abuso de autoridade dos órgãos públicos, a falta de médicos e de<br />

unidades de saúde em todo o país. E exigir melhorias na educação,<br />

melhores condições de saneamento, mais saúde, melhores condições<br />

de vida, efetividade na prestação de serviços públicos, creches,<br />

escolas, dignidade e cidadania.<br />

Em todas as cidades, em cada estado, milhões de pessoas nas<br />

ruas, de rostos pintados, apitando, soltando foguetes, levando<br />

cartazes, faixas e bandeiras. A repressão policial, em seu nível mais<br />

elevado, atuava para conter as depredações, de um lado repudiada<br />

pela massa popular, e de outro, como último escudo dos políticos<br />

do país.<br />

É o despertar de uma nação que já não suporta ver o dinheiro<br />

público sendo gasto pelos políticos e desviado de obras que nunca<br />

terminam, sendo sempre superfaturadas.<br />

152 rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Um gigante que saiu do seu leito, e não há quem o faça parar.<br />

Despertou e agora tem fome e sede.<br />

Os governos convocam as forças policiais para reprimir o povo,<br />

masaté por eles está lutando a população, exigindo uma equiparação<br />

de salários em nível nacional, aumento de efetivo e melhores cursos<br />

de preparação dos servidores.<br />

Claro, sempre existem vândalos infiltrados nas manifestações,<br />

porém são uma minoria que se aproveita desses momentos para<br />

saquear lojas, furtar objetos e fazer arrastões.<br />

Pouco a pouco, a rua fica cheia! Todos os meus amigos estão<br />

indo para a manifestação.<br />

Apósalimentar os animais de estimação, quesãoaminhamelhor<br />

companhia, e subir no telhado para jogar sementes e migalhas dos<br />

restos do café para os pássaros, fui até lá conversar com eles, e me<br />

chamaram para subir no caminhão junto com todos.<br />

O rosto pintado, borrado de tinta até os cabelos, a blusa já<br />

rasgada numa das golas, aos gritos até mesmo as gotas de saliva<br />

quaram o ar.<br />

Sob foguetes e gritos de ordem, o caminhão deixa a rua de casa<br />

com cerca de cinquenta pessoas na caçamba, segurando faixas e<br />

gritando sons de revolução.<br />

No trânsito, os motoristas buzinando, participam daquele<br />

movimento novo de revolta social. Pessoas dispostas a eliminar<br />

o câncer do maquiavelismo humano, que se instalou em todos<br />

os setores públicos, objetivando subjugar a justiça, o caráter e<br />

a honra para poder agir visando exclusivamente aos interesses<br />

pessoais.<br />

Pouco tempo depois, já não havia condições de o caminhão<br />

transitar. Havia uma multidão de milhares de pessoas bloqueando<br />

a passagem até a Avenida Antônio Charles, que dá acesso ao centro<br />

da cidade.<br />

Eram muitas pessoas! A avenida, mesmo larga, não comportava<br />

aquela imensidão de gente.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA<br />

153


154<br />

Descemos do caminhão e continuamos andando a pé entre os<br />

carros até chegar à avenida.<br />

Muitas faixas, canções, gritos ensaiados, rostos pintados e<br />

barulho. Pessoas soltavam foguetes, outras, enchendo balões de gás<br />

da varanda de casa, soltavam balões com frases contra a corrupção<br />

do governo, a precariedade do setor de saúde, a defasagem da<br />

segurança pública, os impostos elevados e a falta de transparência<br />

dos órgãos governamentais. Em pouco tempo, o céu estava repleto<br />

de balões com faixas de protesto.<br />

Havia um aparato considerável de policiais garantindo a<br />

segurança nos locais por onde aquela imensa massa de pessoas<br />

passava, mas como atuar contra o povo? A polícia, a guarda, os<br />

agentes de trânsito ou até mesmo os seguranças particulares. A<br />

população sempre se manifestou de forma desorganizada, fazendo<br />

quebradeiras, ateandofogoempneusemateriaisdiversos, entrando<br />

em conflito com os órgãos de defesa social. O poder público, nos<br />

últimos meses, deparou com algo inesperado: a manifestação<br />

pacífica e sem liderança definida. As pessoas simplesmente<br />

lotam as ruas e, sem quebrar um só galho de árvore ao longo do<br />

percurso, exprimem o desejo democrático de tomar para si o que<br />

foi subtraído pelos governantes e representantes políticos. Não há<br />

um arruaceiro, uma liderança definida para ser pressionada pelas<br />

autoridades a cessar a manifestação. Os manifestantes relatam<br />

que é o desejo único de todos pelas reformas cobradas.<br />

Se não há dano algum ao patrimônio, se não há violência ou<br />

ilegalidades cometidas pelos populares, o governo não tem como<br />

proibir que o povo vá para as ruas e demonstre todo o furor do seu<br />

descontentamento.<br />

Fazia um tempo que não me sentia assim tão vivo! Pelo suor<br />

de minha pele, muitas mágoas sem solução eram eliminadas e<br />

queimadas pelo vento. A tristeza porejava e esmaecia, e a felicidade,<br />

como ar puro, penetrava nos pulmões que se inflavam.<br />

rENASCENDO DA CINZA - vITOR MOREIRA


Pessoas ao longo da minha vida tentaram reduzir o brilho que<br />

sempre ardeu em meus olhos. Cheguei a morrer sentimentalmente,<br />

mas hoje posso dizer que renasci das minhas próprias cinzas, tal<br />

qual um pássaro de fogo que, ao se apagar, volta mais forte, valente e<br />

digno do seu calor vital, temível e irredutível ao se fazer proprietário<br />

do céu em que voa.<br />

A manifestação chegava ao centro da cidade e havia muita<br />

correria, de pessoas e de carros. Uns queriam fugir do imenso<br />

tumulto, que, anunciado pelas autoridades, chegava a quatrocentos<br />

e cinquenta mil pessoas.<br />

Um imenso telão, colocado por um comerciante na fachada<br />

de seu comércio, na Rua dos Gabirus, bem na esquina com a Rua<br />

Coritiba, num prédio verde, mostrava os atos de manifestação em<br />

todo o país, transmitidos ao vivo por uma rede de televisão. Aquilo<br />

inspirava as pessoas! Demonstrava que a luta por dignidade e<br />

respeito havia tomado conta de todo o país.<br />

Subi num dos palanques da manifestação e lá de cima<br />

cantávamos e gritávamos, incentivando as pessoas a fazer barulho.<br />

A cada hora, um se revezava ao microfone, quando a voz, já rouca,<br />

impedia de continuar a falar.<br />

Lá de cima não era possível ver o final da manifestação, que<br />

se estendia por todos os quarteirões da Avenida dos Paraíbas até a<br />

Praça Raul Sóbis.<br />

A Avenida Principal estava tomada! A grande quantidade de<br />

manifestantes roubou o brilho do desfile da Independência. As<br />

câmeras de televisão foram posicionadas para o possível ponto de<br />

confronto entre o aparato de segurança e a frente da manifestação<br />

popular.<br />

Nos prédios, pessoas agitando bandeiras, soltando balões e<br />

gritando.<br />

– A vida é bonita! Nós temos de lutar!<br />

– A vida é bonita! A gente luta até vencer!<br />

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156<br />

– Somos todos guerreiros trazendo flores nas mãos e ideais<br />

consolidados.<br />

A população já não aceita ver a Constituição Federal ser<br />

devorada por quem está no poder, nos seus diversos níveis, como se<br />

ela fosse um pão açucarado e macio que satisfaz somente a fome de<br />

quem pode usufruí-la.<br />

Uma voz calada jamais verá justiça. Se não houver luta, mesmo<br />

que a custa de muitas feridas, a ilegalidade sempre existirá. Da<br />

vitória, porém, não gozam os que dormem e se calam.<br />

Eu decidi que, se perdesse minha identidade, jamais poderia<br />

lutar pelos meus sonhos.<br />

Eu renasci das cinzas para fazer história! A minha história!<br />

Ideologia que marca os batimentos do meu coração.<br />

Eu não abri mão dos ideais nem mesmo quando a opressão<br />

roubou lágrimas dos meus olhos e até mesmo quando houve a<br />

desistência da vida.<br />

Eu sou a imagem dessa grande quantidade de vozes que está<br />

nas ruas, e agora eu sei que tudo que fiz foi por amor! Sim, amor!<br />

Amor à justiça e à igualdade! Um sentimento puro que não se<br />

mancha pela pressão, pela opressão ou pelo assédio. .<br />

Estava renovado de forças e sentia uma felicidade imensa<br />

no coração por estar no meio do povo, unindo os ideais para<br />

verdadeiramente promover a Independência do Brasil.<br />

Eis que, enquanto eu gritava, um me passou o microfone do<br />

palanque, já cansado e rouco, e me disse:<br />

– Fala alguma coisa aí que já não aguento mais gritar.<br />

Voz! O povo tem voz, mas para ser ouvido deve falar com<br />

propriedade! Sem medo ou receio. Eu sempre acreditei na justiça!<br />

Segurei o microfone, voltei para a multidão o meu olhar<br />

queimando e o corpo retinto, brilhante de suor, e comecei a falar.<br />

E o que eu disse...<br />

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Bem, isso é segredo do povo, de todos aqueles que estiveram<br />

comigo na manifestação. Uma grande nação que, acima de qualquer<br />

dificuldade da vida, luta até obter a vitória! Também o sabem as<br />

autoridades presentes, mas amanhã já não será segredo. Sairá em<br />

todos os jornais, de todos os Estados do país.<br />

Decidi ser feliz, e isso ninguém poderá me tirar!<br />

Fim!<br />

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