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Revista Dr Plinio 64

Julho de 2003

Julho de 2003

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Pelas narrações da Escritura e pelas imagens que o representam, Santo Elias nos<br />

aparece como um perfeito modelo de varão temente a Deus, sério, digno, majestoso,<br />

com o coração imbuído de zelo no serviço do Altíssimo. A fisionomia possante, a<br />

barba espessa e farta, o fulgor do olhar de quem transmite os ditames divinos para o mundo,<br />

os gestos, as atitudes, tudo nele reflete a ênfase — quase diria a pompa — dos profetas do<br />

Antigo Testamento.<br />

E se não bastasse ser um espírito incendiado de amor ao Messias que viria, Elias teve por um<br />

de seus mais valiosos galardões a devoção à Santíssima Virgem, séculos antes de Ela nascer.<br />

Foi, com justiça, o precursor das gerações e gerações de filhos que louvariam e aclamariam<br />

Nossa Senhora como Bem-aventurada até o fim dos tempos.<br />

(“Santo Elias enfrenta o Rei Acab” — Igreja de São José, Madri)


Sumário<br />

Na capa, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em fins<br />

da década de 1980, tendo<br />

ao fundo uma vista da<br />

laguna de Veneza com o<br />

Bucentauro, barco de gala<br />

usado pelos Doges<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

<strong>Revista</strong> mensal de cultura católica, de<br />

propriedade da Editora Retornarei Ltda.<br />

CNPJ - 02.389.379/0001-07<br />

INSC. - 115.227.674.110<br />

Diretor:<br />

Antonio Augusto Lisbôa Miranda<br />

Jornalista Responsável:<br />

Othon Carlos Werner – DRT/SP 7650<br />

Conselho Consultivo:<br />

Antonio Rodrigues Ferreira<br />

Marcos Ribeiro Dantas<br />

Edwaldo Marques<br />

Carlos Augusto G. Picanço<br />

Jorge Eduardo G. Koury<br />

Redação e Administração:<br />

Rua Santo Egídio, 418<br />

02461-011 S. Paulo - SP - Tel: (11) 6236-1027<br />

Fotolitos: Diarte – Tel: (11) 5571-9793<br />

Impressão e acabamento:<br />

Pavagraf Editora Gráfica Ltda.<br />

Rua Barão do Serro Largo, 296<br />

03335-000 S. Paulo - SP - Tel: (11) 291-2579<br />

4<br />

5<br />

6<br />

10<br />

15<br />

21<br />

25<br />

EDITORIAL<br />

Insaciável na procura do Bem, do Belo e da Verdade<br />

DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

14 de julho de 1945 recepção<br />

a Nossa Senhora Aparecida<br />

DR. PLINIO COMENTA...<br />

“Cria em mim, ó Deus um coração puro...”<br />

DONA LUCILIA<br />

Mais um vez, o “filhão” na Europa...<br />

PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

O cisma da Inglaterra refletido<br />

em ambientes, personagens e símbolos<br />

ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

O Magnificat, hino de sabedoria,<br />

humildade e grandeza<br />

DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Não há paz sem a Lei de Deus<br />

Preços da assinatura anual<br />

Julho de 2003<br />

Comum. . . . . . . . . . . . . . . . R$ 75,00<br />

Colaborador . . . . . . . . . . . . R$ 110,00<br />

Propulsor . . . . . . . . . . . . . . R$ 220,00<br />

Grande Propulsor. . . . . . . . R$ 370,00<br />

Exemplar avulso. . . . . . . . . R$ 10,00<br />

Serviço de Atendimento<br />

ao Assinante<br />

Tel./Fax: (11) 6236-1027<br />

28<br />

32<br />

36<br />

A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

Reflexões sobre um café<br />

LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Desponsórios com a beleza<br />

ÚLTIMA PÁGINA<br />

Divino artifício de bondade<br />

3


Editorial<br />

Insaciável na procura do Bem,<br />

do Belo e da Verdade<br />

Opresente número de nossa revista oferece<br />

ao leitor uma feería de facetas do carisma<br />

e da espiritualidade de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

Uma delas é seu inflamado amor à Santa Igreja<br />

Romana, à qual desejava estar inteiramente unido<br />

de corpo e alma, bem como a Jesus Cristo, seu divino<br />

Fundador, e a Maria Santíssima, Mãe da Igreja.<br />

Nas seções “Datas na vida de um cruzado” e “Eco<br />

fidelíssimo”, pode-se quase apalpar esse amor, patenteado<br />

especialmente nos seus comentários ao Magnificat,<br />

em que considera a jubilosa e insondável grandeza<br />

de Nossa Senhora.<br />

Outra faceta é a contínua consideração da beleza,<br />

bondade e verdade das coisas criadas, enquanto<br />

símbolos que conduzem ao Criador. Pode o leitor<br />

notá-la na análise de um filme sobre a vida de São<br />

Tomás Morus, na qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> deixa ver como a<br />

procura constante dos símbolos, enquanto meio de<br />

elevar a alma a Deus, era-lhe tão conatural como a<br />

própria respiração.<br />

Esta conaturalidade não passou despercebida a um<br />

seu jovem discípulo, o qual declara: “Se para nós é<br />

necessário esforço a fim de subirmos das criaturas<br />

até Deus e nos mantermos nesse patamar de cogitações,<br />

para <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> era o contrário: ele precisava<br />

esforçar-se para descer!”<br />

Em artigo para um jornal paulistano, que reproduzimos<br />

na seção “A sociedade analisada por <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong>”, afirma este: “Todo o universo foi criado à<br />

imagem e semelhança de Deus. De onde existirem<br />

analogias entre todas as criaturas. Pois seres análogos<br />

a um terceiro são, por isto mesmo, análogos entre<br />

si. Daí as coisas materiais terem o poder de exprimir<br />

as espirituais.”<br />

Esta afirmação é um eco fiel do ensinamento do<br />

Catecismo da Igreja Católica (nº 319): “Deus criou o<br />

mundo para manifestar e para comunicar a sua glória.<br />

Que suas criaturas participem de sua verdade, de sua<br />

bondade e de sua beleza, é a glória para a qual Deus<br />

as criou.”<br />

E uma nota característica do apostolado de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

consistiu em relembrar insistentemente essa doutrina<br />

e lutar pela sua aplicação nesta terra, por meio<br />

da “consecratio mundi”, a instauração do Reinado social<br />

de Jesus Cristo nas almas e nas nações. Um passeio<br />

com ele por Veneza, na seção “Luzes da Civilização<br />

Cristã”, nos levará a fazer um ato de amor a Deus<br />

refletido na sociedade temporal iluminada pela Igreja.<br />

Por fim, em “<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> comenta” podemos ver<br />

esse mesmo peregrino do absoluto, do bom, do verdadeiro<br />

e do belo, considerando-se nada diante da<br />

presença augusta de Deus, ao glosar o salmo Miserere,<br />

que muito o tocou na primeira mocidade, e o agradou<br />

ao longo de toda sua vida.<br />

Aceite, caro leitor, nosso convite: deixe-se levar,<br />

nas páginas desta revista, per visibilia ad invisibilia,<br />

das coisas visíveis até as invisíveis, guiado por este<br />

peregrino insaciável de Bondade, Verdade e Beleza.<br />

DECLARAÇÃO: Conformando-nos com os decretos do Sumo Pontífice Urbano VIII, de 13 de março de 1625<br />

e de 5 de junho de 1631, declaramos não querer antecipar o juízo da Santa Igreja no emprego de palavras<br />

ou na apreciação dos fatos edificantes publicados nesta revista. Em nossa intenção, os títulos elogiosos não<br />

têm outro sentido senão o ordinário, e em tudo nos submetemos, com filial amor, às decisões da Santa Igreja.<br />

4


DATAS NA VIDA DE UM CRUZADO<br />

14 de julho de 1945<br />

Recepção a Nossa Senhora Aparecida<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em meados da década de 1940<br />

A<br />

Avinda da milagrosa imagem de Nossa<br />

Senhora Aparecida a São Paulo não<br />

poderia deixar de ser para a alma católica<br />

de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> motivo de grande júbilo, que ele<br />

extravasa nas páginas do “Legionário”.<br />

Aproxima-se o dia em que Nossa Senhora Aparecida<br />

virá a São Paulo, a fim de receber as homenagens<br />

da população paulistana.<br />

No momento, todas as energias, todas as dedicações,<br />

todo o entusiasmo devem estar não só<br />

voltados, mas absorvidos e monopolizados pelo<br />

grande acontecimento. É ordem expressa do Exmo.<br />

Revmo. Sr. Arcebispo Metropolitano que<br />

todos os católicos devotos concorram para que<br />

Nossa Senhora tenha em São Paulo uma recepção<br />

grandiosa. São Paulo é a metrópole do Estado<br />

em que Nossa Senhora quis armar seu trono.<br />

É na arquidiocese de São Paulo que se encontra<br />

a Basílica da Aparecida. Os paulistas têm para<br />

com Nossa Senhora uma devoção ardentíssima e<br />

tradicional. Por todos os títulos, a manifestação do<br />

dia 14 tem de ser como as mais grandiosas a que<br />

São Paulo já tenha assistido. Ela nos deve fazer<br />

lembrar, por sua magnificência e amplitude, os<br />

dias memoráveis do Congresso Eucarístico.<br />

A manifestação do dia 14 está muito longe de<br />

ter um sentido meramente humano. A presença<br />

da verdadeira Imagem de Nossa Senhora Aparecida,<br />

entre nós, é uma graça. Maria Santíssima<br />

é Medianeira de todas as graças, e seus favores<br />

são mais abundantes, quando suplicados aos pés<br />

das imagens benditas que, em quase todos os países<br />

do mundo, são veneradas de um modo especial<br />

em algum Santuário nacional. Os mexicanos<br />

têm Nossa Senhora de Guadalupe. Os argentinos<br />

têm Nossa Senhora de Lujan. Os brasileiros têm<br />

Nossa Senhora Aparecida. As imagens de Lujan,<br />

de Guadalupe, de Aparecida, foram escolhidas<br />

pela Providência para despertar de modo especial<br />

a devoção a Maria Santíssima. Sua presença entre<br />

nós é, pois, um penhor especial da generosidade<br />

de Nossa Senhora. Devemos aproveitar avidamente<br />

as graças que sua presença acarretará para<br />

nós.<br />

“Procurai primeiramente o Reino de Deus e<br />

sua Justiça, e todas as coisas vos serão dadas por<br />

acréscimo”, prometeu Nosso Senhor. Podemos<br />

e devemos pedir graças temporais. Mas muito<br />

acima delas estão as graças espirituais. [...]<br />

Nossa grande prece deve ser acima de tudo<br />

pela recristianização do Brasil. Se devemos amar<br />

acima de tudo a Deus, nosso Senhor, devemos<br />

amar logo abaixo d’Ele a Igreja de Deus, que é o<br />

Corpo Místico de Cristo. Sarmentos desta Vinha,<br />

o que pediremos a Nossa Senhora é que fiquemos<br />

sempre unidos ao cepo divino, sempre ligados<br />

à Igreja de Deus, sempre fiéis à Rocha de<br />

São Pedro. Porque se tivermos esta graça, todas<br />

as outras serão supérfluas... e nos serão dadas de<br />

acréscimo!<br />

(Excertos do “Legionário”, 8/7/1945, nº 674)<br />

5


DR. PLINIO COMENTA...<br />

“O Rei David<br />

em oração”,<br />

iluminura<br />

medieval para<br />

os Salmos<br />

Penitenciais<br />

“Cria em mim, ó Deus,<br />

um coração puro...”<br />

6


C<br />

ontinuamos neste número a publicação da conferência de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> sobre o Salmo 50, o Miserere, feita para uma assistência<br />

formada, em sua grande maioria, por ouvintes<br />

muito jovens.<br />

Ao pecar, o homem encontra-se só diante<br />

de Deus<br />

Pequei contra Ti só, e fiz o mal diante dos teus olhos,<br />

para que sejas encontrado justo nas tuas palavras, e venças<br />

quando fores julgar.<br />

“Pequei só contra Ti”, quer dizer:<br />

Vós sois tal que, embora haja uma multidão incontável<br />

de homens, o que cada<br />

um faz é tão conhecido,<br />

pesado, ponderado e<br />

julgado por Vós, que a<br />

ação de cada um deles é<br />

como se estivesse só diante<br />

de Vós.<br />

Quando pequei, ó<br />

Deus — eu louco, desatinado,<br />

transviado — pequei como se estivesse só diante<br />

de Vós. Entrei na sala dos vossos julgamentos, estáveis no<br />

vosso trono, cercado do incenso dos Anjos e da reverência<br />

de toda a corte celeste. Não me incomodei: fui diante<br />

de Vós e pequei. Preciso me arrepender. Ó Deus, tende<br />

pena de mim!<br />

Eis que eu fui concebido em iniqüidades, e minha mãe<br />

concebeu-me no pecado.<br />

O mal que há em mim vem da raiz. É o pecado original<br />

de que sou portador. Minha mãe concebeu-me no pecado<br />

original.<br />

Meu Deus, é verdade, dei consentimento a meus próprios<br />

pecados, mas tende pena de mim. Permiti que, envergonhado,<br />

acanhado, humilhado, murmure em meu favor<br />

uma atenuante que já conheceis: fui gerado nas más tendências,<br />

nos defeitos naturais que o pecado original coloca<br />

no homem, e, em virtude disso, tenho inclinação para<br />

o mal. Cedi a essa inclinação e aqui estou para pedir perdão.<br />

Mas lembrai-Vos de que o primeiro impulso me veio<br />

de uma coisa da qual não tenho culpa.<br />

Eis que Tu amaste a verdade, e me revelaste o segredo e o<br />

mistério da tua sabedoria.<br />

Com o arrependimento, começa<br />

a transparecer, de dentro<br />

das trevas do pecado, a alvura<br />

da alma perdoada<br />

Aqui o Salmista sublinha: “Eis que Tu amaste a verdade”,<br />

como quem diz:<br />

Fui eu quem não amou a verdade. Fui adúltero, e o<br />

adultério vem carregado de mentira. Essa mentira, eu a<br />

cometi, não amei a verdade. Que diferença, ó Deus, entre<br />

Vós, sentado num trono carregado pelos Querubins e<br />

pelos Serafins, e eu mentiroso!<br />

“Deus odeia a boca mentirosa”, diz a Escritura. Uma<br />

dessas bocas é a minha.<br />

Em vez de me servir da<br />

palavra que dais a cada<br />

homem para dizer a verdade,<br />

utilizei-me de<br />

meus lábios pecadores,<br />

de minha voz prevaricadora,<br />

para mentir. É<br />

tão nobre comunicar o<br />

próprio pensamento, comunicar a verdade a um outro<br />

que também diz a verdade! E como é vil os homens se entreterem<br />

na mentira, se entreterem no pecado! Que indignidade!<br />

Esse indigno sou eu, meu Deus. Fiz isso diante<br />

de Vós.<br />

O perdão, a purificação e a exultação<br />

A esta altura, o pecador já se acusou largamente e vemos<br />

começar a transparecer de dentro das trevas do pecado<br />

a alvura da alma perdoada:<br />

Tu me aspergirás com o hissope, e serei purificado; lavarme-ás,<br />

e me tornarei mais branco que a neve.<br />

Dizer a Deus: “Vós fareis isso...”, já é um ato de confiança.<br />

É dizer-Lhe: “Vós vencereis, com vossa misericórdia,<br />

o meu pecado e eu me tornarei mais alvo do que a neve.<br />

Aspergir-me-ás com o hissope e ficarei limpo, ficarei de<br />

uma alvura cintilante, de uma alvura quase capaz de ferir<br />

a vista.”<br />

O porco, o nauseabundo, está agora perfumado<br />

como uma flor. É o perdão de Deus que baixou sobre<br />

ele.<br />

7


DR. PLINIO COMENTA...<br />

Tu me farás ouvir uma palavra de gozo e de alegria, e se<br />

regozijarão os meus ossos humilhados.<br />

Expressão muito bonita. No latim, “et exultabunt ossa<br />

humiliata” — os meus ossos humilhados exultarão. Significa<br />

dizer: “Estava humilhado e envergonhado, pelo meu<br />

pecado, até os ossos”.<br />

Imaginem uma pessoa que está com tanto temor que<br />

este a faz trepidar até aos ossos, e ouve uma palavra de<br />

perdão. Então o bem-estar, a suavidade, a alegria penetram<br />

também até seus ossos.<br />

O pecador diz a Deus: “Quando Vós me disserdes essa<br />

palavra de perdão, os meus ossos humilhados pelo pecado,<br />

humilhados pela contrição, esses ossos exultarão”.<br />

Completai vossa obra: dai-me um coração<br />

puro e um espírito magnânimo<br />

Aparta o teu rosto dos meus pecados, e apaga todas as<br />

minhas iniqüidades.<br />

É muito interessante a formulação deste pedido. O<br />

Salmista diz: “Aparta teu rosto dos meus pecados”, e não:<br />

“Aparta teu rosto de mim”.<br />

Como quem suplica: “Limpai meu rosto, para que possais<br />

olhá-lo sem náusea, sem horror, para que ele possa<br />

ser um reflexo de vossa suprema beleza”.<br />

Cria em mim, ó Deus, um coração puro...<br />

Já é a descrição da alma que se regenera.<br />

O pecador pede a Deus um coração<br />

puro, dizendo: “Meu coração não<br />

vale mais nada, não era nada, mas<br />

Vós me limpastes. Completai vossa<br />

obra, fazei de meu coração um coração<br />

puro”.<br />

... e renova nas minhas entranhas<br />

um espírito reto.<br />

Ou seja, ele pede para renovar<br />

aquilo que ele já não tinha mais. Como<br />

pecador, ele sabe que ficou com<br />

o espírito torto, mas pede a Deus:<br />

“Dai-me, por vossa graça, um amor<br />

novo às coisas retas, ao estado de<br />

graça. Renovai nas minhas entranhas<br />

um espírito tão reto que minha emenda<br />

seja completa, vá até onde possa ir,<br />

chegue ao meu mais íntimo. Se Vós<br />

renovais nas minhas entranhas o espírito<br />

reto, volto a ser o velho David,<br />

amigo vosso”.<br />

“Limpai meu rosto,<br />

ó Deus, para que<br />

ele possa ser um<br />

reflexo de vossa<br />

suprema beleza!”<br />

À esquerda, “David recebe Betsabé” —<br />

Tapeçaria do Museu do Escorial<br />

8


Não me arremesses de tua presença,<br />

e não tires de mim o teu espírito<br />

santo.<br />

Depois de ter pedido tudo isso,<br />

fica ainda com medo: “Mas quem<br />

sabe?... Estarei tão arrependido<br />

como é preciso para que Ele me<br />

perdoe? Será que Ele já me perdoou<br />

mesmo?”<br />

Dá-me a alegria da tua salvação,<br />

e conforta-me com um espírito<br />

magnânimo.<br />

Ele pede um espírito magnânimo.<br />

Nada de coisas tacanhinhas,<br />

pequenininhas, banais, de todos<br />

os dias. Nada de ser o homem<br />

medíocre e banal, trivial, que se<br />

preocupa só com seu biscoitinho,<br />

com seu lanchezinho, com seu<br />

chinelo, com seu conforto. O homem<br />

medíocre não tem esse espírito<br />

magnânimo de que fala o<br />

salmo.<br />

“Arrependimento do filho pródigo” (Museu do Prado - Madri)<br />

O pecador nauseabundo se sente agora perfumado como uma flor,<br />

porque o perdão de Deus desceu sobre ele<br />

Uma retribuição a<br />

Deus: fazer apostolado<br />

Ensinarei aos iníquos os teus caminhos, e os ímpios se<br />

converterão a Ti.<br />

Se me fizerdes, ó Deus, todos esses benefícios que estou<br />

pedindo, então eu também serei de alguma utilidade<br />

para vossa glória. Ensinarei aos ímpios a virtude, farei<br />

apostolado junto a<br />

eles.<br />

Tarefa árdua esta,<br />

desagradável, que põe<br />

às vezes em brasas e<br />

chamas o respeito humano,<br />

mas ele o promete!<br />

Ele foi perdoado,<br />

lavado, reintroduzido<br />

no amor de Deus. E sabe que Deus deseja tanto a salvação<br />

de cada um que quer o mesmo para todos os homens.<br />

Sabe, portanto, que ele agradará altamente a<br />

Deus se fizer pelo pecador o que Deus fez por ele, e<br />

por isto promete: “Ensinarei aos ímpios os vossos caminhos”.<br />

Acho de uma sonoridade muito bonita a frase latina:<br />

et impii ad te convertentur. Quer dizer: os ímpios, os homens<br />

de má vida, os homens de má doutrina, se voltarão<br />

para ti, ó Deus, se converterão. É uma promessa feita:<br />

retribuir entregando a Deus um mundo convertido. No<br />

meu modo de sentir, é de uma grande beleza.<br />

Uma recordação pessoal e um convite<br />

"Nossa Senhora teve pena de mim<br />

e me abriu os olhos; li por<br />

coincidência este salmo, senti-me<br />

tocado a fundo e me converti"<br />

Não posso deixar de acrescentar aqui uma recordação<br />

pessoal cheia de gratidão, a propósito deste salmo.<br />

Em certo momento<br />

de minha infância, andei<br />

mal. Nossa Senhora<br />

teve pena de mim e me<br />

abriu os olhos; li por<br />

coincidência este salmo,<br />

senti-me tocado a fundo<br />

e me converti. Não<br />

deixo de agradecer por<br />

isso a Nossa Senhora.<br />

Convido-os, quanto às suas vidas individuais, a fazerem<br />

o mesmo.<br />

Se alguém alguma vez andou mal — e quem é que não<br />

andou mal?— a solução é ajoelhar-se, pedir perdão a<br />

Nossa Senhora e dizer-Lhe:<br />

“Eu vou batalhar para o triunfo de vosso reino, vou<br />

ensinar aos ímpios as vossas vias e eles se converterão a<br />

Vós. Vós dominareis o mundo, ó minha Mãe, porque<br />

lutarei por Vós, e toda a força que Vós me derdes será<br />

gasta inexoravelmente em vencê-lo.” !<br />

9


DONA LUCILIA


Mais uma vez,<br />

o “filhão” na Europa...<br />

Não muito tempo após a mudança de Dª Lucilia<br />

para o novo apartamento, enquanto ela ainda<br />

acompanhava os últimos retoques na sua decoração,<br />

foi surpreendida por outro hiato no convívio com<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>. A consolá-la, restava-lhe o aconchego do lar<br />

tão carinhosamente preparado por seu filho. Assim, logo<br />

a princípio, aquelas abençoadas paredes seriam marcadas<br />

pela resignação de Dª Lucilia.<br />

Outro sacrifício pela causa católica<br />

Da anterior estadia de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Europa resultaram<br />

promissores contatos, que davam esperança de<br />

frutificação para a causa católica. Por isso julgou ele<br />

necessário estreitar os laços estabelecidos em 1950<br />

e tentar ampliá-los ainda mais.<br />

O esforço apostólico realizado nessas viagens<br />

e as confiantes orações de Dª Lucilia para que<br />

seu filho fosse bem sucedido desabrochariam<br />

anos mais tarde em valiosos e duradouros re-<br />

sultados. A Dª Lucilia seria difícil imaginar, naquela<br />

ocasião, que o sofrimento pedido a ela pela Providência<br />

alcançaria graças abundantes para um apostolado de êxito<br />

então inverossímil.<br />

Tal como na viagem anterior, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> achou melhor<br />

nada contar a sua mãe. <strong>Dr</strong>. João Paulo, Dª Rosée e os parentes<br />

mais próximos só lhe dariam a notícia quando, de<br />

Paris, recebessem uma comunicação dele. O “destino” de<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> seria desta vez São Lourenço, em Minas Gerais,<br />

onde faria uma temporada de repouso. Filho carinhoso,<br />

deixou prontas quatro afetuosas cartas a serem entregues a<br />

sua mãe, como se tivessem sido enviadas daquela estância.<br />

Terá Dª Lucilia notado uma maior efusão nas manifestações<br />

de amor filial, quando <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dela se despediu<br />

naquela fria manhã de junho? Em qualquer caso, seu maternal<br />

coração o acompanhou passo a passo com suas<br />

bênçãos, desde o momento em que, indo com ele até a saída<br />

do apartamento, viu-o entrando no elevador. O ruído da<br />

porta que se fechava marcava uma nova separação.<br />

Com as vistas postas na imagem do Sagrado Coração<br />

de Jesus, ela entregou-se empenhadamente às orações pelo<br />

bom êxito da viagem, confiando ao Divino Redentor suas<br />

apreensões, pois... uma vez mais seu coração lhe dizia que<br />

talvez <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> estivesse partindo para bem mais longe<br />

do que anunciara.<br />

A fim de amenizar o<br />

sofrimento de Dª Lucilia com<br />

mais uma separação, <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> deixou a entender que<br />

iria para São Lourenço, de<br />

onde enviou quatro afetuosas<br />

cartas à sua mãe...<br />

Na página anterior, Dª Lucilia na<br />

década de 1950; à esquerda,<br />

fac-símiles das referidas cartas<br />

11


DONA LUCILIA<br />

Cartas de “São Lourenço”<br />

Dias depois, tendo Dª Rosée recebido<br />

um telegrama no qual <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

comunicava ter chegado bem a Paris,<br />

apesar de um atraso em Dakar, quis logo<br />

dar a sua mãe a boa nova.<br />

Em carta do dia 12 de junho, <strong>Dr</strong>. João<br />

Paulo conta a seu filho como Dª Lucilia<br />

recebeu a notícia. Logo que tomou conhecimento<br />

da verdade inteira, ela censurou<br />

atenciosamente seu esposo por<br />

não a ter colocado a par da viagem, e<br />

passou a derramar copiosas e entristecidas<br />

lágrimas. E assim prosseguia <strong>Dr</strong>.<br />

João Paulo:<br />

Depois lhe passei as cartas que deveriam<br />

ter vindo de São Lourenço; leu-as<br />

todas imediatamente e as guardou. Seguise<br />

a visita das irmãs, da Dora, etc. etc., e<br />

tudo entrou em fase de calma. Lembraram-lhe<br />

que a viagem te seria muito proveitosa<br />

ainda sob o ponto de vista da tua<br />

saúde; como disse Camões: depois de procelosas<br />

tempestades, noturnas sombras e<br />

sibilantes ventos, trouxe a manhã serena<br />

claridade, esperança de porto e salvamento.<br />

Em suma, voltou tudo ao normal. Hoje,<br />

dia do Corpus Christi, assistimos à missa<br />

de praxe e aguardamos a hora para<br />

ver a procissão na cidade.<br />

A leitura das cartas do “filhão querido”<br />

aliviou-a um pouco do pesar intenso<br />

de seu coração, pois recordavam a felicidade<br />

que lhe pervadia a alma durante<br />

as prosinhas com ele:<br />

Luzinha querida,<br />

Tenho gostado bastante daqui, onde<br />

trato de repousar o mais possível, e tirar todo o proveito para<br />

minha saúde. Estou persuadido de que São Lourenço tem<br />

águas excelentes para mim. Dou-me muito bem com elas.<br />

Sinto muita falta, é claro, da minha Lú querida, lamentando<br />

não poder trazê-la no bolso... como a trago no coração.<br />

Mande dizer-me como estão as coisas: isto é, se a Lú tem<br />

tratado de deitar cedo, dormir bastante, levar uma vida bem<br />

tranqüila, e ir a alguns cinemas.<br />

Mande contar-me também como vai nossa deliciosa casa,<br />

e como vão seus freqüentadores. Não preciso dizer-lhe que<br />

quero, especialmente, notícias de Papai, Rosée, Maria Alice.<br />

Com mil beijos, pede-lhe a bênção o filho que a respeita e<br />

quer tanto quanto se pode querer alguém.<br />

<strong>Plinio</strong><br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> em 1952<br />

As expressivas manifestações de afeto que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> empregava<br />

em suas cartas reconfortavam, em boa medida, Dª<br />

Lucilia da privação da presença dele, e se não podiam “estar<br />

juntos e olhar-se”, ficava por escrito o “quererse bem”.<br />

Manguinha do fundo de meu coração<br />

Como vai a Senhora? Estou com imensas saudades suas,<br />

e desejoso de voltar logo pra junto da “saia da Mãe”. E como<br />

vai Papai? E a vidinha da Lú, como vai? Juízo? Horários?<br />

Muito sono?<br />

Por aqui, continuo aproveitando todas as ocasiões para me<br />

refazer dos cansaços de São Paulo. O clima é ótimo, a alimentação<br />

também, enfim, está tudo a meu contento, ou pelo<br />

menos estaria se a Lú estivesse a meu lado.<br />

Mande-me sempre notícias suas. Quero saber de tudo,<br />

inclusive dos sonhos, dos pesadelos, dos incidentes na rua,<br />

12


etc. Enfim, tudo quanto se relaciona com minha marquesa<br />

me interessa.<br />

Mil beijos, meu amor. Reze por mim. Do filho que lhe<br />

pede a benção, e que certamente quer MUITO MAIS à Senhora,<br />

do que a Senhora o quer.<br />

<strong>Plinio</strong><br />

Duas cartas não bastariam para esgotar o que o amor<br />

filial teria a dizer a uma mãe? Quiçá, mas em se tratando<br />

de Dª Lucilia, sua benevolência inspirava palavras sempre<br />

novas de carinho e retribuição.<br />

Mãezinha, meu amor,<br />

Por aqui, vai tudo continuando normalmente, como não<br />

poderia deixar de ser.<br />

Só o que não está normal é que tenho umas saudades<br />

enormes da minha Lú, com vontade de mandar um paraquedista<br />

confiscá-la à força, e trazê-la para cá.<br />

Papai vai bem? E nosso “palácio”? Tudo em ordem? O<br />

elevador não tem enguiçado? Tem havido bastante água<br />

quente para os banhos da Marquesa?<br />

Não estou familiarizado com esta pífia máquina de escrever<br />

e, por isto, cometo erros de toda a ordem. Entretanto, sempre<br />

dá para amparar minha preguiça de escrever à mão.<br />

Mil beijos, minha querida. Juízo, juízo, muita água da Prata,<br />

muito sono, distrações, muita oração: é o meu programa<br />

para a Lú querida.<br />

Não imagina quantas saudades tenho de minha Manguinha.<br />

Envia-lhe um milhão de beijos, e pede sua bênção, o<br />

filho que a quer e respeita imensissimamente.<br />

<strong>Plinio</strong>.<br />

E, por fim, a última das cartas supostamente de São<br />

Lourenço, vinha coroar com especial benquerença as atenções<br />

que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, como extremoso filho, tivera antes de<br />

viajar:<br />

Lú, minha flor do coração,<br />

Vai passando o tempo, e eu sempre com mais saudades<br />

da Senhora. De minha parte, continuo indo muito bem. E<br />

a Senhora? E o que me conta de Papai, de Rosée, de Maria<br />

Alice?<br />

Tenho o projeto de a trazer por aqui, quando vier de outra<br />

vez. Mande-me dizer detalhadamente como está, o que<br />

tem feito, pensado, sentido, sonhado: quero saber de tudo<br />

ponto por ponto. E se tiver saído um pesadelo complicado,<br />

em que entra um folhetim inteiro, mande dizê-lo também.<br />

Mil abraços e beijos. Pede sua bênção o filho que a quer<br />

sempre mais e mais<br />

<strong>Plinio</strong><br />

“O Divino Espírito Santo estará<br />

sempre em ti”<br />

Enquanto não chegassem as primeiras cartas da Europa,<br />

Dª Lucilia por certo preencheria os intervalos dos<br />

seus longos períodos de oração com a leitura das que <strong>Dr</strong>.<br />

<strong>Plinio</strong> deixara antes de partir. Com isso, algo da presença<br />

dele se fazia sentir, e mais fácil se tornava suportar com<br />

resignação as saudades do convívio. Mas, para seu amor<br />

materno, isto não bastava. Queria logo travar contato epistolar<br />

com o estremecido filho.<br />

As Termas de<br />

Montecattini, na Itália<br />

Desejosa de que seu<br />

filho desfrutasse dos<br />

benefícios que essa<br />

famosa estação de<br />

águas traria à saúde<br />

dele, Dª Lucilia não se<br />

esqueceu de<br />

recomendá-la logo na<br />

primeira carta que<br />

enviou a <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong><br />

13


DONA LUCILIA<br />

São Paulo — 13-6-952<br />

Filho querido de meu coração!<br />

Que Deus te abençoe pelo bom êxito do “logro” que me<br />

pregaste!<br />

Só no dia 10 Rosée trouxe os telegramas de Dakar e o de<br />

Paris , e na paz, apesar de tudo...<br />

Dei em primeiro lugar, graças a Deus pela felicidade da<br />

apavorante travessia, e depois, emocionadíssima, não podia<br />

dar crédito a tudo o que seu pai, Rosée e Maria Alice me<br />

diziam, e me exasperava a idéia de passar três longos meses<br />

sem te ver! — Procuro enfim, consolar-me com a certeza de<br />

quão benéfica te será esta viagem para tua saúde, estudos e<br />

observações. — Seria tão bom se pudesses passar uns vinte<br />

dias em Monte Cattini¹! É essa a terceira vez que tento escrever-te;<br />

mas tenho tido a casa cheia, a seu pedido, vê-se, —<br />

e... um beijo por tudo! Rosée tem vindo duas vezes por dia,<br />

e até jantou duas vezes aqui, e tem também me trazido toda<br />

a sorte de doces, para que não me preocupe com as sobremesas,<br />

e para grande gáudio da cozinheira. Enquanto não<br />

estiveres de volta, não terei gosto para fazer cousa alguma, só<br />

procuro boas receitas.<br />

Quanto ao money... faço como da outra vez: economizo<br />

tudo para você, tirando o estrito possível, se for necessário;<br />

de sorte que, se precisares, é só telegrafar.<br />

Peço-te com insistência uma cousa: manda dizer uma<br />

missa, e acender uma boa vela por Rosée no altar de Nossa<br />

Senhora de Begoña na Espanha, para aumentar a sua fé, e<br />

pela sua saúde e felicidade. Ela está muito magra e pálida.<br />

Fui ontem à missa, comunguei, e acompanhei parte da<br />

procissão do Santíssimo, até a Catedral, tudo por sua intenção....<br />

ah, meu filho querido... as saudades são tantas!<br />

Continuo firme nas minhas ladainhas e terços ao meu<br />

amantíssimo Sagrado Coração de Jesus, e à Virgem Santíssima<br />

aos quais te confiei ao nasceres, e tenho fé, o Divino<br />

Espirito Santo, estará sempre em ti, que bem o mereces, filho<br />

querido! Despeço-me enviando-te minhas bênçãos, muitos<br />

beijos e abraços afetuosos.<br />

De tua mamãe,<br />

Lucilia.<br />

(Transcrito, com adaptações, da<br />

obra “Dona Lucilia”, de João S. Clá<br />

Dias)<br />

1 ) Estação de águas na Itália.<br />

Fac-símiles de uma das cartas que<br />

Dª Lucilia enviou a<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> na Europa, em 1952<br />

14


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

O CISMA DA INGLATERRA<br />

refletido em<br />

ambientes,<br />

personagens<br />

e símbolos<br />

São Tomás Morus<br />

Henrique VIII<br />

C<br />

omentando o filme “O homem que não vendeu sua alma” (¹) — sobre a vida de São<br />

Tomás Morus, martirizado em 1535, em defesa do primado do Papa contra as pretensões<br />

do Rei Henrique VIII — <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> nos conduz por uma elevada análise da<br />

História.<br />

15


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

Procuremos colocar diante<br />

de nossos olhos alguns aspectos<br />

do filme que nos tornam<br />

mais presentes a atmosfera, as<br />

particularidades e circunstâncias da<br />

época, refletindo o que considero<br />

“Ambientes, costumes, civilizações” ².<br />

Antes de tudo, chamo a atenção<br />

para o seu lado simbólico, expresso de<br />

maneira muito fina e atraente. Por<br />

exemplo, logo no início, vêem-se alguns<br />

marrecos voando sobre o Rio<br />

Tâmisa, meio dispersos no céu. De repente,<br />

um deles faz movimento mais<br />

intenso numa direção e todos os outros<br />

o seguem. Esta cena — na aparência<br />

um incidente — tem um sentido<br />

simbólico. Ela insinua a versatilidade<br />

dos homens, assinalada pela versatilidade<br />

de certos animais gregários<br />

que vão indo sem rumo e, de súbito,<br />

um ou dois tomam determinado caminho,<br />

acompanhados pelos demais.<br />

É bem este o papel que o rei representa<br />

no filme. Nação católica, a Inglaterra<br />

seguia seu curso. Mas, em<br />

determinado momento, por uma veleidade<br />

qualquer, Henrique VIII muda<br />

de atitude, e com essa transformação,<br />

o país inteiro abandona a Santa<br />

Igreja.<br />

Com efeito, no século XVI a Idade<br />

Média estava acabando de desaparecer,<br />

e com a morte de São Tomás<br />

Morus, a monarquia orgânica também<br />

deixaria de existir. Esta se baseava<br />

no princípio da subsidiariedade, segundo<br />

o qual cada corpo social deve<br />

Com a morte de<br />

São Tomás Morus<br />

a monarquia<br />

orgânica deixaria<br />

de existir<br />

na Inglaterra<br />

O desejo de liquidar as<br />

organicidades<br />

Havia, porém, um sentido mais<br />

profundo para essa mudança.<br />

tirar de si mesmo a solução de seus<br />

respectivos problemas, sendo apoiado<br />

pelo corpo superior apenas na medida<br />

em que não for capaz de resolver<br />

suas dificuldades.<br />

Assim, na Europa medieval cada<br />

região e cada cidade possuía suas leis,<br />

instituições, vida e costumes próprios,<br />

o mesmo se dando com as corporações<br />

de ofício dentro das cidades, assim<br />

como com os pequenos feudos encaixados<br />

em feudos maiores. Os grandes<br />

só intervinham na existência dos<br />

pequenos para remediar as violaçoes<br />

da Lei de Deus e dos princípios da<br />

civilização cristã, ou para sustentá-los<br />

quando por si mesmos não podiam<br />

fazê-lo.<br />

Acima dessa cadeia de subsidiariedades<br />

estava o Rei, que exercia o<br />

mesmo princípio em relação a todos<br />

os seus menores. Ele era o mantenedor<br />

de todas as autonomias e liberdades,<br />

como era também o coordenador<br />

e o estimulador de todas as<br />

atividades gerais de seu reino.<br />

Entre essas autonomias, a maior e<br />

mais notável era a da Igreja. E quando<br />

se trata da Esposa Mística de Cristo<br />

não se poder falar em autonomia,<br />

mas de soberania. A Igreja é uma entidade<br />

soberana tanto quanto o Estado,<br />

e Ela, na sua esfera própria, não pode<br />

absolutamente ser governada pelo rei.<br />

Ora, com a decadência da Idade<br />

Média, os reis começaram a se tornar<br />

absolutos, tomando como modelos<br />

os imperadores<br />

romanos,<br />

verdadeiros<br />

déspotas. E<br />

com a mania<br />

de voltar às<br />

fontes romanas,<br />

passaram<br />

a eliminar todas<br />

as autonomias<br />

inferiores, jogando-se particularmente<br />

contra a soberania da Igreja.<br />

Eles não A queriam como força<br />

superior — na sua esfera própria —<br />

ao poder temporal, e, portanto, independente<br />

do Estado, mas como instrumento<br />

para o governo do país.<br />

16


Seguindo essa tendência, Henrique<br />

VIII declarou a igreja da Inglaterra<br />

separada de Roma, chamando<br />

para si a suprema autoridade também<br />

na esfera eclesiástica. Com isso ele<br />

atingia seu objetivo, ou seja, o domínio<br />

pleno e absoluto sobre todo o país.<br />

Esse foi o fato trágico que se passou<br />

na Inglaterra daquele tempo.<br />

A Cristandade em agonia<br />

simbolizada por São<br />

Tomás Morus<br />

Voltando à análise do filme, percebemos<br />

nele um espetáculo de “ambientes<br />

e costumes” que apresenta<br />

ao pisar inconsideradamente na lama,<br />

olha para eles e solta uma gargalhada.<br />

E todos respondem com gargalhadas.<br />

Eles não estavam achando graça<br />

em nada, mas riam porque o monarca<br />

os fitou com ferocidade, como quem<br />

diz: “Riam, porque eu quero que vocês<br />

riam”. E todos obedecem porque<br />

o Rei lhes dava uma vida alegre, luxuosa,<br />

cômoda, gostosa e brilhante,<br />

em que eles se compraziam.<br />

Nessa cena aparece o aspecto revolucionário<br />

da corte, que começa a<br />

perder o sentido do dever, porque<br />

perdia o sentido da Religião: onde<br />

morre este, aquele desaparece por<br />

completo. E aí se manifesta, também,<br />

Pouco adiante, vê-se a cena dos fidalgos<br />

na casa de Morus, conversando<br />

com a família. Quando o Rei decidiu<br />

sair, eles o seguiram sem se despedir<br />

do anfitrião, porque perceberam<br />

que este tinha brigado com Henrique<br />

VIII. É o modo absolutista, revolucionário,<br />

de viver a instituição da<br />

monarquia. Portanto, algo degradante.<br />

O mesmo se nota na cena precedente,<br />

em que o Rei e Tomás Morus<br />

conversam sozinhos no jardim. Henrique<br />

VIII tenta induzi-lo a aceitar<br />

seu divórcio, tomando atitudes muito<br />

variáveis. Ora procura ameaçá-lo, ora<br />

assume ares de grande intimidade,<br />

como quem o respeita. Depois, com<br />

maneiras de crápula, tenta debochar<br />

do seu interlocutor, querendo colocá-lo<br />

na alternativa de romper com<br />

ele ou acompanhá-lo na aceitação do<br />

pecado.<br />

ainda muitos aspectos<br />

medievais, misturados<br />

a outros de<br />

cunho renascentista.<br />

Donde uns contrastes<br />

chocantes<br />

de lados simpáticos<br />

e antipáticos — digo<br />

mais, revolucionários<br />

e contra-revolucionários³<br />

— que cercam a atmosfera<br />

da coroa inglesa.<br />

Então, na cena da chegada de Henrique<br />

VIII à casa de São Tomás Morus,<br />

aquele tipo do Rei absoluto que<br />

pula como um porco para fora do barco,<br />

metendo os pés no lodo, é um tirano<br />

dos fidalgos que o acompanham.<br />

Depois de ver que fez uma asneira<br />

aquele domínio dos reis sobre os nobres,<br />

simbolizado pelos marrecos do<br />

início do filme.<br />

Modelo de fidalgo<br />

católico, sabia<br />

que devia obedecer<br />

antes à Lei de<br />

Deus que ao seu Rei<br />

E se percebe em Tomás Morus o tipo<br />

do cortesão medieval, sério, digno,<br />

inteligente, composto — ao contrário<br />

dos outros cortesãos, homens sem<br />

compostura nem dignidade — fiel à<br />

tradição católica de respeito para com<br />

o seu rei, mas de respeito também para<br />

com a sua própria consciência. Ele<br />

tem noção da existência da regra divina,<br />

superior à humana, que deve ser<br />

obedecida acima de qualquer coisa.<br />

Ora, no diálogo do jardim abordase<br />

a questão do casamento do Rei. A<br />

Rainha, Catarina de Aragão, tinha<br />

sido esposa do falecido irmão dele.<br />

Então Henrique VIII, usando de um<br />

sofisma barato, diz que não podia ter<br />

se casado validamente com a viúva<br />

do irmão.<br />

A tática de Tómas Morus, por sua<br />

vez, é de uma frieza política e bem cal-<br />

17


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

culada. Não adianta um só passo, espera<br />

o Rei chegar ao ponto e, no momento<br />

de se pronunciar, apenas diz:<br />

— Não posso. Quanto a isso, dependo<br />

do Papa.<br />

Vem a saída débil do Rei:<br />

— Eu lá preciso do Papa para me<br />

dizer se estou em pecado ou não?<br />

De fato, ele só necessitava do Papa<br />

para anular o seu casamento. E o<br />

diálogo composto pelo roteirista do<br />

filme está primorosamente tecido, de<br />

maneira a caracterizar os personagens.<br />

Então o Rei faz o cerco dele,<br />

uma verdadeira guerra de nervos bem<br />

planejada: ora agrados exagerados,<br />

ora ameaça de chacal; ora se mostra<br />

como tendo grande esperança numa<br />

solução, ora com uma forte tentação<br />

de desespero. E a personalidade do<br />

rei é inteira calculada nessa perspectiva<br />

de antagonismos, é um homem<br />

todo feito de contradições.<br />

Elementos de grandeza e<br />

sacralidade<br />

Outros interessantes aspectos do<br />

filme merecem ser considerados.<br />

Rei à casa de Tómas Morus. O barco<br />

que traz o monarca é estupendo, de<br />

madeira ricamente entalhada, tendo<br />

na proa a escultura de um animal mitológico<br />

que parece segurar toda a natureza<br />

com a mão, e por isso se acha<br />

Dentro do horror<br />

da apostasia, um<br />

“canto de cisne”,<br />

o perfume da última<br />

cerimônia católica<br />

na ponta como extraordinária figura<br />

dominadora. Henrique VIII vem sentado<br />

debaixo de um magnífico dossel,<br />

cercado pelos numerosos cortesãos<br />

que fazem sala para ele. Quando<br />

o barco aporta, o Rei se ergue, os<br />

remadores levantam os remos, que<br />

se pensava serem inteiramente brancos,<br />

e, de repente, vê-se que as extremidades<br />

espalmadas são vermelhas.<br />

Todos permanecem eretos até o soberano<br />

descer.<br />

Outro trecho igualmente muito bonito<br />

como decoração tradicional, evoca<br />

um episódio tristíssimo: o momento<br />

em que os bispos da Inglaterra<br />

aceitam a supremacia do Rei sobre a<br />

Igreja. Começa a tocar um sino, entram<br />

vários prelados em cortejo, paramentados<br />

de acordo com a sua dignidade,<br />

e se formam sobre um alto<br />

estrado. Atrás deles se vê um grande<br />

Crucifixo. Dali a instantes surge um<br />

arauto do Rei e anuncia que este exigia<br />

a separação de Roma. Nesse momento<br />

o filme focaliza os rostos dos<br />

bispos, com expressões de dúvida e<br />

hesitação...<br />

Do lado “Ambientes e Costumes”,<br />

esta cena de apostasia nos faz compreender<br />

a bela e dramática história<br />

da Igreja na Inglaterra. Assim<br />

como, segundo narram as lendas<br />

mitológicas, o cisne proferia a sua<br />

mais bonita canção no momento de<br />

morrer — o chamado “canto do cisne”<br />

— assim se pode dizer que aquele<br />

episódio foi o “canto do cisne”<br />

da Igreja na Inglaterra. Na hora de<br />

expirar, ainda deitava o perfume de<br />

sua última cerimônia, maravilhosamente<br />

linda, dentro do horror que<br />

se praticava.<br />

Tome-se, por exemplo, os trajes do<br />

Cardeal Wolsey. Enquanto tais, são<br />

de uma magnificência que exprime<br />

de modo esplêndido a dignidade cardinalícia<br />

e a nobreza dos que são os<br />

primeiros suportes do Papa.<br />

Bela também, sob diverso ponto de<br />

vista, é a mesma cena da chegada do<br />

A cena é de uma grandeza, de uma<br />

seriedade, numa palavra, de uma sacralidade<br />

verdadeiramente estupenda!<br />

Um “canto de cisne”<br />

O filme se “escurece”: o<br />

processo<br />

A partir do momento em que São<br />

Tómas Morus se demite do cargo de<br />

Chanceler do Reino, o filme passa a<br />

ser escuro, transcorrendo em ambientes<br />

pequenos.<br />

18


No julgamento,<br />

São Tomás Morus<br />

aparece como<br />

um homem<br />

completamente só;<br />

todos votaram<br />

a sua morte<br />

distância ainda maior, o réu vai diminuindo<br />

e se apagando.<br />

Poder-se-ia desenvolver toda uma<br />

teoria das distâncias, ligada ao porte,<br />

ao tom da voz, à elevação do que<br />

Morus diz, a convicção com que ele<br />

fala e a dramaticidade do julgamento.<br />

Um conteúdo dramático aumenta<br />

a necessidade de distância. Pelo<br />

contrário, se ele estivesse sendo julgado<br />

por um crime passível de seis<br />

meses de prisão, aquele espaço seria<br />

ridículo. Para um homem prestes a<br />

receber a pena de morte, é uma bela<br />

distância, adequada ao ator, ao contexto<br />

dentro do qual ele falava e ao<br />

tema que estava sendo tratado.<br />

“Bonum” e “verum”<br />

separados do<br />

“pulchrum”<br />

O escritório do Cromwell, por<br />

exemplo, é um pequeno porão onde<br />

se faz a contabilidade do palácio,<br />

sem nada da instalação digna de um<br />

ministro de um grande reino.<br />

Já na cena do processo, a fita decai<br />

bruscamente. Dir-se-ia ter entrado<br />

outro diretor, e todo o ambiente<br />

— que é o objeto de nossa preocupação<br />

— passa a ser sem graça, sem<br />

interesse, enquanto, pelo contrário,<br />

a parte de narração toma importância.<br />

O filme torna-se mais teatro que<br />

cinema, onde os diálogos primam sobre<br />

os cenários e os jogos fisionômicos.<br />

Os personagens são todos melados<br />

e exagerados, como o Cromwell,<br />

que representa de maneira demasiada<br />

a traição e a brutalidade. Há uma<br />

coerência, sim, entre o físico dele e a<br />

sua oratória de acusação. A voz é<br />

vulgarmente sonora, ou melhor, sonoramente<br />

vulgar.<br />

A cadeira de São Tomás Morus<br />

está colocada a uma bonita distância<br />

dos três dignitários, assentados sob<br />

um dossel e um vitral. O problema<br />

distância reveste-se de uma importância<br />

peculiar, porque confere a verdadeira<br />

dimensão à solenidade da<br />

cena. Quanto maior a distância, mais<br />

grave é a situação do réu, maior a imponência,<br />

e tanto mais a cena ganha<br />

em esplendor. Mas, passando-se dessa<br />

medida imponderável — toda ela<br />

dependendo de senso — para uma<br />

Aí nos deparamos com São Tomás<br />

enquanto homem completamente só.<br />

Ele discute com uma lógica tal que encosta<br />

todos os seus acusadores na parede.<br />

Em vários momentos, as pessoas<br />

ficam sem saber o que dizer, e algumas<br />

até começam a dar razão a ele. Porém,<br />

no fim todos votam a sua morte.<br />

Fica-me a lembrança do belo traje<br />

do homem que traiu São Tomás Morus.<br />

Tenho a impressão de que cada<br />

povo possui um talento especial para<br />

manusear determinada cor ou grupo<br />

de cores. O francês, por exemplo, com<br />

o bleu de roi, o ouro sobre azul. Os<br />

ingleses, no meu entender, dominam<br />

o verde. Em primeiro lugar, o dos<br />

seus gramados, simplesmente fenomenais.<br />

Eles plantam esmeraldas! E<br />

tiveram a maestria de fazer jardins<br />

bastante simples, imensos, às vezes<br />

sem flores nem adornos, apenas o<br />

verde. Mas, quem tem aquele verde,<br />

tem também o direito e até o dever<br />

de proceder assim.<br />

E a beleza da vestimenta do traidor<br />

está nos seus vários tons de verde,<br />

combinando com a cor dos olhos dele<br />

e o seu modo de ser. Ele é esbelto,<br />

um pouco elegante de atitudes, vivo<br />

e sabe movimentar-se de maneira a<br />

tirar dos verdes todos os matizes possíveis.<br />

É, de longe, o personagem mais<br />

decorativo da cena inteira.<br />

Agora, esse verde é posto intencionalmente<br />

na roupa do traidor, para<br />

acentuar o conflito entre o verum<br />

e o bonum de um lado, e o pulchrum<br />

de outro. É como um punhal que penetra<br />

na carne para dividi-la. O espí-<br />

19


PERSPECTIVA PLINIANA DA HISTÓRIA<br />

rito desprevenido fica sem coragem<br />

de elogiar o verde, por repulsa à traição.<br />

Entretanto, é preciso saber desprezar<br />

a traição e dizer: “Pena que<br />

esse verde não seja para ornar um varão<br />

de Deus!”<br />

Mas, note-se, não qualquer varão<br />

de Deus. Tem de ser um inglês, porque<br />

para este é que o verde cairia<br />

bem.<br />

O martírio: algo voltará<br />

No fim, a cena do carrasco. Este é<br />

apresentado ali do mesmo jeito como<br />

o viam na Idade Média, isto é, um<br />

executor a mando do Estado. Donde<br />

aquela atitude característica que nos<br />

causa uma espécie de arrepio. Além<br />

disso, os outros aspectos da cena eram<br />

rigorosamente fiéis à realidade da<br />

época, inclusive a forma do machado<br />

usado para decapitar São Tomás Morus,<br />

e o fato de o carrasco se ajoelhar<br />

pedindo que a vítima o perdoe por<br />

matá-la. Era uma antiga tradição, uma<br />

forma de caridade cristã, como quem<br />

serviço manual, ainda que seja o de<br />

pôr termo à existência do condenado.<br />

A cena em que o carrasco abre a<br />

camisa de Morus está bem executada,<br />

com uma certa brutalidade de<br />

quem prepara o outro para a morte:<br />

“Agora se cumprirá o seu destino, e<br />

sobre você cairá a cólera do Rei”. Ele<br />

Personificava o que<br />

havia de bom<br />

no país inteiro; sua<br />

fidelidade não<br />

permitiu que<br />

o caniço fosse por<br />

completo quebrado<br />

morre com um só golpe de machado<br />

e termina a história de São Tomás<br />

Morus.<br />

Termina? Não. Ele personificava<br />

o que havia de bom no país inteiro.<br />

Quebrado esse homem, quebrar-se-ia<br />

não permitiu que o caniço fosse por<br />

completo quebrado.<br />

Concluo esses comentários lembrando<br />

que há uma particularidade<br />

na vida de São Tomás Morus não explicada,<br />

nem no filme nem nas biografias<br />

do santo. Ele previa a aproximação<br />

de sua morte e, entretanto,<br />

não tentou fugir para a França, como<br />

fizeram muitos outros ingleses ameaçados.<br />

Por que não procurou se subtrair<br />

à vingança do Rei?<br />

Não sabemos. Contudo, haveria<br />

uma explicação à altura dele. Era<br />

bom que o seu sangue fosse vertido<br />

em cima desse crime, para que, consumada<br />

a maldade, um resto permanecesse:<br />

este mesmo sangue de um<br />

mártir católico, semente e promessa<br />

de futuros dias de glória<br />

para a Igreja na Inglaterra. Algo<br />

voltará.<br />

Eis o fundo da história de<br />

São Tomás Morus.<br />

diz: “Se esta sentença é injusta, em<br />

nome dos homens eu lhe peço perdão,<br />

antes de tirar-lhe a vida”.<br />

Tomás Morus o perdoa e lhe dá<br />

uma gratificação em moedas, num<br />

gesto que encerra grande nobreza,<br />

sem deixar de ser tremendo: é a idéia<br />

cavalheiresca de recompensar todo<br />

o país. Porém, uma vez que o homem<br />

não se quebrou, quebra-se o resto?<br />

Sim, mas a nação fica como um caniço<br />

partido, embora não inteiramente<br />

cortado. Então podemos dizer que,<br />

se hoje o anglicanismo ainda conserva<br />

pompas, ritos e cultos parecidos<br />

com os da Igreja Católica, é porque<br />

a fidelidade de São Tomás Morus<br />

1 “A Man for all Seasons”, EUA, 1966.<br />

2 Assim se intitulava uma seção do antigo<br />

jornal “Catolicismo” escrita por<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>.<br />

3 As palavras “revolucionários” e “contra-revolucionários”,<br />

têm o sentido<br />

que <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> lhes deu em “Revolução<br />

e Contra-Revolução”, de<br />

1959.<br />

20


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

“A Visitação”,<br />

por Fra Angélico<br />

O Magnificat, hino de sabedoria,<br />

humildade e grandeza<br />

Único cântico que se sabe proferido por Nossa Senhora em sua vida terrena, o<br />

“Magnificat” despertava na alma de <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> enlevadas considerações que ele,<br />

em mais de uma ocasião, comprouve-se em transmitir a seus jovens discípulos. Como<br />

essas, que abaixo transcrevemos.<br />

Entoado por Nossa Senhora<br />

no encontro com Santa Isabel,<br />

o Magnificat é um maravilhoso<br />

hino inspirado pelo Altíssimo,<br />

é Deus cantando sua própria gló-<br />

ria pelos lábios da mais amada das suas<br />

filhas. É, também, uma linda mensagem,<br />

coerente, lógica e séria, que Ele<br />

transmitiu a todos os homens de todos<br />

os séculos, pela voz virginal de Maria.<br />

O cântico se inicia com a palavra<br />

Magnificat — do latim magnus, isto<br />

é, grande — para enaltecer Aquele<br />

que é a Grandeza personificada, reconhecendo<br />

que Deus merece este<br />

21


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

superlativo de louvor e de honra na<br />

sua glória extrínseca, passível de crescimento,<br />

por haver realizado n’Ela,<br />

Virgem bendita, o cumprimento da<br />

maior e mais alvissareira promessa<br />

divina feita à humanidade: a Encarnação<br />

do Verbo.<br />

A exultação em Deus, seu<br />

Salvador<br />

Então a alma d’Ela se apressa em<br />

extravasar o seu sentimento de profunda<br />

gratidão, proclamando como o<br />

Senhor assim se revelava o magno<br />

por excelência.<br />

Em seguida, vem a alegria: Et exsultavit<br />

spiritus meus in Deo salutari<br />

meo — “E o meu espírito exulta!”<br />

Exultar é sentir um júbilo intenso,<br />

e não uma qualquer satisfação, como<br />

a que poderia experimentar alguém<br />

se soubesse que os seus investimentos<br />

renderam um pouco<br />

além do esperado. Esta seria<br />

uma alegria pequena, perto<br />

daquela que se exprime<br />

pela palavra “exultação”.<br />

Por isso Nossa Senhora<br />

a emprega, para significar<br />

como seu espírito<br />

transbordou de gáudio em relação a<br />

Deus, o seu magnífico Salvador.<br />

Essa felicidade se mostra tanto<br />

mais intensa quanto, conforme o pensamento<br />

que se completa no versículo<br />

seguinte, Ela considera a sua pequenez<br />

e vê como Deus a salvou de<br />

modo extraordinário, super-excelente,<br />

não só fazendo d’Ela a Mãe do<br />

Verbo Encarnado, mas dispondo que<br />

Ela tivesse em toda a existência de<br />

Nosso Senhor Jesus Cristo o papel<br />

admirável que sabemos.<br />

Legítima alegria por ter<br />

sido engrandecida<br />

Depois de afirmar a sua exultação,<br />

a Santíssima Virgem manifesta então<br />

o motivo dessa imensa alegria: Quia<br />

respexit humilitatem ancillae suae —<br />

“porque Deus olhou para a humildade<br />

da sua Serva”. Em conseqüência<br />

dessa atenção do Senhor para com<br />

Ela, ecce enim ex hoc beatam me dicent<br />

omnes generationes, eis que “todas<br />

as gerações”, isto é, todos os homens<br />

até o fim do mundo, vão por<br />

sua vez enaltecê-La, chamando-A<br />

“bem-aventurada”.<br />

Quia fecit mihi magna<br />

qui potens est —<br />

“porque me fez grande<br />

Aquele que é po-


deroso”. Percebe-se aqui, mais uma<br />

vez, o gáudio de Maria por ter sido<br />

objeto de um especial desígnio do<br />

Onipotente: Ela, tão humilde, tornouse<br />

grande pela força d’Ele.<br />

Há, nessa passagem, um interessante<br />

ensinamento que deve ser considerado.<br />

Alegrando-se com a grandeza divina,<br />

Nossa Senhora ao mesmo tempo<br />

se alegra com o fato de ter sido<br />

também engrandecida por uma condescendência<br />

d’Ele, e sabe que essa<br />

sua magnitude Lhe valeria o louvor e<br />

a devoção das gerações vindouras. É<br />

uma glória única, que a cobre de felicidade,<br />

e pela qual, cheia de reconhecimento,<br />

agradece a Deus.<br />

Ora, essa atitude de Nossa Senhora<br />

aceitando, auferindo e amando a<br />

própria excelência, demonstra como<br />

é legítimo nos alegrarmos com a grandeza<br />

que Deus eventualmente nos<br />

conceda. Desde que, a exemplo de<br />

Maria, esse júbilo esteja alicerçado<br />

no amor a Ele, compreendendo que<br />

essa glória estabelece uma relação<br />

mais íntima entre nós e o Criador.<br />

Et sanctum nomen eius — “E o Seu<br />

Nome é Santo”. Quer dizer, “Deus<br />

agiu assim para comigo, e procedeu<br />

santamente”. Essa fabulosa obra que<br />

o Senhor realizava na sua serva, vinha<br />

marcada pela infinita perfeição<br />

com que Ele modela tudo quanto sai<br />

de suas mãos onipotentes.<br />

Misericórdia para os que<br />

temem a Deus<br />

Após ter manifestado de tal maneira<br />

a grandeza de Deus e a sua própria,<br />

Nossa Senhora evoca o aspecto<br />

de bondade: Et misericordia eius a<br />

progenie in progenies, timentibus eum<br />

— “e a misericórdia d’Ele se estende<br />

de geração em geração, sobre aqueles<br />

que O temem”.<br />

Significa que o fato de Deus A ter<br />

feito tão grande redunda num benefício<br />

e numa obra de misericórdia de<br />

que se aproveitarão todos os homens<br />

em todas as épocas da História. Com<br />

uma restrição, porém: timentibus eum<br />

— aqueles que temem a Ele.<br />

Eis outra importante lição a ser<br />

colhida do Magnificat.<br />

O temor se divide em servil e reverencial.<br />

O temor servil é aquele que<br />

tem, por exemplo, um escravo ao fazer<br />

a vontade de seu dono pelo receio<br />

de sofrer duros castigos se não<br />

obedecer. O temor reverencial é aquele<br />

que alguém demonstra em relação<br />

a outrem, não por medo das penalidades<br />

que lhe possa infligir, mas por<br />

respeito e veneração pela superioridade<br />

dele, por não querer ultrajá-lo nem<br />

violar a obediência que deve a ele.<br />

Um exemplo maravilhoso de temor<br />

reverencial encontramos nas ardorosas<br />

palavras que Santa Teresa de<br />

Jesus dirige a Nosso Senhor: “Ainda<br />

que não houvesse Céu, eu vos amara;<br />

ainda que não houvesse inferno,<br />

eu vos temera”. Quer dizer, ainda<br />

que Deus não lançasse à geena aqueles<br />

que se revoltam contra Ele, por<br />

ser Ele quem é e pelos infinitos títulos<br />

que Ele possui acima de nós, temeríamos<br />

não fazer a vontade d’Ele.<br />

É essa a forma altíssima e nobilíssima<br />

do temor reverencial.<br />

Então, aos que amam a Deus com<br />

um amor tal que até O temem — não<br />

apenas por causa do inferno, mas sobretudo<br />

por não querer desagradá-<br />

Lo na sua infinita santidade —, para<br />

estes se abre a inesgotável misericórdia<br />

de Deus: et misericordia eius a<br />

progenie in progenies, timentibus eum.<br />

Cumpre salientar que, muitas vezes,<br />

a bondade divina não se prende<br />

a essa restrição, superando-se em requintes<br />

de solicitude até mesmo para<br />

com homens que pouco ou nenhum<br />

temor de Deus experimentavam, antes<br />

de serem tocados pela graça e se<br />

converterem.<br />

Pode-se supor, por exemplo, que<br />

São Paulo na via de Damasco não<br />

tivesse temor de Deus. Mas, atingido<br />

por um raio, ele caiu do cavalo, perdeu<br />

a visão, e logo ouviu a voz de Nosso<br />

Senhor que o interpelava. Quando<br />

se levantou, era outro homem,<br />

tornando-se o grande Apóstolo dos<br />

gentios. Era uma extraordinária ação<br />

da misericórdia divina — muito<br />

provavelmente a rogos de Maria —<br />

estendendo-se sobra uma alma que<br />

até então não temia a Deus.<br />

Queda dos soberbos e<br />

exaltação dos humildes<br />

Fecit potentiam in brachio suo, dispersit<br />

superbos mente cordis suis —<br />

“Manifestou o poder do seu braço, e<br />

dissipou aqueles que se orgulhavam<br />

nos pensamentos do seu coração”.<br />

Deus age com energia em relação àqueles<br />

que se fecham para a graça, que não<br />

O temem nem O amam nos seus corações<br />

Entendamos o que significa “manifestar<br />

o poder de seu braço”. Tratase<br />

de uma metáfora, pois Deus, puro<br />

espírito, não possui braço. Este, porém,<br />

é no homem o membro pelo qual<br />

ele mostra a sua força e executa os decretos<br />

de sua inteligência e de sua vontade.<br />

Então, ao se referir ao “braço de<br />

Deus”, Nossa Senhora nos faz ver<br />

como Ele age energicamente em relação<br />

aos soberbos e orgulhosos, àqueles<br />

que se fecham para a ação da graça<br />

e não O temem nem O amam nos<br />

seus corações. Para com esses, Deus<br />

manifesta o poder de seu braço.<br />

O pensamento se completa no<br />

versículo seguinte: Deposuit potentes<br />

de sede, et exaltavit humiles — “De-<br />

23


ECO FIDELÍSSIMO DA IGREJA<br />

pôs de seus tronos os poderosos, e<br />

exaltou os humildes”.<br />

Por meio da Encarnação do Verbo,<br />

Deus quebrou o poder com que o<br />

demônio e seus sequazes neste mundo<br />

atormentavam os bons. Então,<br />

depôs aqueles de seus tronos, e exaltou<br />

a estes que eram perseguidos.<br />

Alguém poderia objetar: “Mas,<br />

<strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong>, não foi o que aconteceu.<br />

Deu-se o contrário! Anás, Caifás, Pilatos<br />

e congêneres, todos se achavam<br />

nos seus tronos, perseguiram e mataram<br />

Nosso Senhor!”<br />

É verdade. Mas essa história não está<br />

narrada até o fim. Porque depois de<br />

Jesus ter sido morto, aconteceu precisamente<br />

o que aqueles poderosos queriam<br />

evitar: Ele ressuscitou, triunfando<br />

sobre a morte e sobre todos<br />

os seus algozes. Com Ele, triunfava<br />

a Santa Igreja, venciam<br />

os Apóstolos e Nossa Senhora,<br />

os humildes até então<br />

desprezados. E para<br />

todo o sempre, serão estes<br />

glorificados e exaltados,<br />

enquanto Anás, Caifás<br />

e Pilatos serão mencionados<br />

com vitupério e<br />

horror. Então se comprovou<br />

a veracidade do dito:<br />

deposuit potentes de<br />

sedes, et exaltavit humiles.<br />

Essa idéia ainda prevalece<br />

na seqüência do<br />

cântico: Esurientes implevit<br />

bonis, et divites dimisit<br />

inanes — “Cumulou<br />

de bens os famintos,<br />

e despediu os ricos com<br />

as mãos vazias”.<br />

Nossa Senhora não<br />

pretende fazer aqui uma<br />

alusão aos recursos materiais<br />

ou financeiros. Ela<br />

se refere, antes de tudo,<br />

aos que se acham na carência<br />

de bens espirituais,<br />

aos indigentes das<br />

dádivas celestiais. A esses<br />

pobres de espírito<br />

Jóia inapreciável,<br />

o Magnificat se<br />

encerra pensando<br />

na Encarnação<br />

do Verbo, como<br />

o fizera na<br />

primeira estrofe<br />

“Anunciação”, detalhe,<br />

por Rogier Van der Weyden<br />

que, humildemente, suplicam essas<br />

graças, Deus os atende na abundância<br />

infinita de sua misericórdia. Pelo<br />

contrário, aos “ricos”, àqueles que se<br />

julgam inteiramente satisfeitos no seu<br />

orgulho, Deus os despede de mãos vazias,<br />

isto é, sem torná-los partícipes do<br />

tesouro de seus dons sobrenaturais.<br />

Em Maria, cumpre-se a<br />

promessa feita a Abraão<br />

Por fim, Nossa Senhora volta à idéia<br />

central que inspira esse hino maravilhoso:<br />

Suscepit Israel puerum suum:<br />

recordatus misericordiae suae — “Tomou<br />

cuidado de Israel, seu servo,<br />

lembrado da sua misercórdia”.<br />

Quer dizer, o Povo Eleito receberia<br />

em breve o Messias há milênios<br />

prometido, a Quem Deus enviaria<br />

ao mundo, recordando que<br />

sua misericórdia assim havia<br />

disposto. Daí a conclusão:<br />

Sicut locutus est ad patres<br />

nostros, Abraham et semini<br />

eius in saecula — “Conforme<br />

tinha dito a nossos<br />

pais, a Abraão e à sua posteridade<br />

para sempre”.<br />

A promessa feita a<br />

Abraão, fundador da raça<br />

hebraica, e aos descendentes<br />

dele ao longo dos séculos,<br />

de que o Salvador<br />

nasceria de sua progênie,<br />

acabava de ser cumprida.<br />

Nossa Senhora já trazia<br />

em seu claustro materno<br />

o Esperado das nações.<br />

Ela, uma filha de Abraão,<br />

daria à luz o Filho de<br />

Deus.<br />

E assim o Magnificat,<br />

esta jóia inapreciável, este<br />

maravilhoso cântico de<br />

sabedoria, humildade e<br />

grandeza, muito harmoniosamente<br />

se encerra<br />

pensando na Encarnação<br />

do Verbo, como o fizera<br />

na primeira estrofe. !<br />

24


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

Não há paz sem<br />

a Lei de Deus<br />

A<br />

paz<br />

— na família, na nação, no plano internacional — todos<br />

a desejam. Mas onde e como obtê-la? <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> dá-nos<br />

a resposta neste artigo.<br />

Segundo São Tomás de Aquino, a paz é a tranqüilidade<br />

da ordem. Esta definição do Santo Doutor<br />

deixa entrever que há duas espécies de tranqüilidade:<br />

a que provém da ordem e a que provém da desordem.<br />

A paz, fruto da ordem<br />

Tome-se um adolescente saudável que dorme. Todo o<br />

seu físico está em ordem perfeita. Todos os órgãos funcionam<br />

admiravelmente bem. Nenhuma dor, nenhum mal-<br />

25


DENÚNCIA PROFÉTICA<br />

estar lhe perturba o repouso. A saúde — que é a ordem<br />

do corpo — gera nele uma tranqüilidade física que se traduz<br />

eloqüentemente pela placidez do sono. Fisicamente,<br />

o sono é, para este adolescente, uma situação de paz, pois<br />

que é um momento de tranqüilidade gerada pela sua ordem<br />

orgânica.<br />

O mesmo conceito se pode aplicar a um povo. Suponhase<br />

que nele tudo se encontre em ordem: as inteligências,<br />

pela posse segura e firme da Verdade, que é a Religião Católica;<br />

as vontades, pela sua vigorosa adesão à virtude que<br />

a Igreja ensina e ajuda a praticar; as sensibilidades, pelo<br />

completo domínio a que<br />

a sujeitaram a inteligência<br />

e a vontade; os corpos,<br />

pela existência de um alto<br />

padrão coletivo de<br />

saúde; a vida econômica,<br />

por um perfeito aproveitamento<br />

dos abundantes<br />

recursos naturais do lugar. Evidentemente, uma<br />

grande e benfazeja tranqüilidade reinará sobre toda a sociedade,<br />

como fecundo e feliz transbordamento da tranqüilidade<br />

interior de cada alma. Esta tranqüilidade completa,<br />

decorrente da ordem intelectual, moral e econômica<br />

existente no país, é o que se pode chamar paz: será a<br />

paz interior. A paz exterior se somará a esta, se também<br />

as relações do país com outros povos estiverem em ordem.<br />

Assim, a paz é realmente a tranqüilidade da ordem.<br />

Uma caricatura da verdadeira tranqüilidade<br />

A tranqüilidade decorrente da<br />

ordem intelectual, moral e<br />

econômica existente num país<br />

é o que se pode chamar paz<br />

Retomemos o exemplo do adolescente. Em dado momento,<br />

durante seu sono plácido, alguma perturbação orgânica<br />

ocorre: será, digamos, uma nevralgia violentíssima.<br />

Imediatamente, com a cessação da ordem orgânica, desaparecerá<br />

a paz: o sono termina, e o paciente começa a dar<br />

mostras agudas de sua dor. É a desordem gerando a intranqüilidade.<br />

Imagine-se, porém, que a dor aumente tanto<br />

que chegue a causar um desmaio do paciente. A desordem<br />

orgânica terá chegado a seu auge, e a perda dos sentidos<br />

e a completa tranqüilidade do desmaio serão a consumação<br />

da desordem física.<br />

Essa desordem, exatamente por se ter tornado muito<br />

aguda e ter com isto suprimido todos os meios de resistência,<br />

causará, com a aparente cessação da reação orgânica,<br />

uma tranqüilidade profunda. Esta tranqüilidade será<br />

o reinado da desordem, será o cúmulo da desordem, será a<br />

desordem erigida em soberana absoluta do corpo. Ela não<br />

será senão uma caricatura da tranqüilidade da ordem.<br />

Em suma, o sono do adolescente, tranqüilo e saudável,<br />

e o desmaio profundo e perigoso que imaginamos em seguida,<br />

estão nos extremos opostos. Nos exemplos que figuramos,<br />

o maior bem orgânico do corpo terá sido a tranqüilidade<br />

da ordem; a intranqüilidade decorrente da desordem<br />

será um mal. Mas o mal supremo será, sem dúvida,<br />

a tranqüilidade da desordem, ou seja o desmaio, para não<br />

dizer a morte.<br />

A tranqüilidade da desordem é o pior dos<br />

males<br />

O mesmo conceito se pode aplicar à vida espiritual.<br />

Tome-se um homem de consciência limpa e reta: sua consciência<br />

estará em ordem, e esta ordem gerará nele uma<br />

tranqüilidade que se chama<br />

paz. O que não se tem<br />

dito e escrito sobre os encantos<br />

da paz de consciência!<br />

E no que consistem<br />

estes encantos, senão<br />

na suave e deleitosa tranqüilidade<br />

que a ordem<br />

origina? Se, por desgraça, a consciência deste homem<br />

passa a ser perturbada por uma ação má, esta perturbação<br />

suprime a ordem espiritual, e imediatamente a paz<br />

desaparece. É a luta terrível dos remorsos que cruciam a<br />

26


alma e, ou a elevam pela humildade e pelo auxílio da graça<br />

de Deus até as alturas de uma contrição, ou a abatem,<br />

pelo desespero, até os extremos a que Judas chegou.<br />

Imagine-se, entretanto, que nesta alma desgraçada,<br />

pouco a pouco, os remorsos vão desaparecendo, até se<br />

transformarem em um vago rumor, que só de quando em<br />

vez perturba a consciência, logo abafado pelos ruídos das<br />

distrações mundanas. Evidentemente, o desaparecimento<br />

do remorso gera o desaparecimento da luta espiritual,<br />

e uma tranqüilidade embrutecida e opaca baixa sobre esta<br />

alma em que os últimos lampejos de virtude se extinguiram.<br />

Nesta alma haverá novamente<br />

tranqüilidade.<br />

Mas uma tranqüilidade<br />

que, sendo o triunfo da<br />

desordem, constitui uma<br />

desgraça mil vezes maior<br />

do que a intranqüilidade<br />

das torturas de consciência, e se encontra no extremo<br />

oposto da tranqüilidade ordenada e feliz, em uma palavra,<br />

da paz de consciência autêntica, do homem limpo e<br />

reto de espírito.<br />

O risco é estabelecer a injustiça<br />

como regra fundamental<br />

de ação e norma básica<br />

das relações entre os povos<br />

Para resumir: a tranqüilidade da ordem é um grande<br />

bem, e só ela merece o nome de paz. A luta gerada pela<br />

desordem é um mal incontestável; mas o maior dos males<br />

será, certamente, a tranqüilidade da desordem, a tranqüilidade<br />

das consciências embrutecidas no vício, dos corpos<br />

desmaiados pela moléstia, dos cemitérios onde a morte<br />

campeia como soberana [...].<br />

Só haverá paz no mundo com a obediência à<br />

Lei de Deus<br />

Estes conceitos merecem ser transpostos para o plano<br />

internacional. Só merece<br />

o nome de verdadeira paz<br />

a tranqüilidade decorrente<br />

da ordem das relações<br />

entre as nações. E como<br />

a ordem supõe obediência<br />

a Deus, só haverá ordem<br />

internacional quando<br />

houver obediência à Lei de Deus nas relações entre<br />

os povos. [...]<br />

Evidentemente, violações da Lei de Deus sempre as<br />

houve e sempre as haverá, com freqüência maior ou menor,<br />

na História da humanidade. Mas que se transforme<br />

a violação em direito, a desordem em hierarquia legítima<br />

e permanente, e se arvore como princípio básico e fundamental<br />

aquilo que é a negação radical e absoluta de toda<br />

a Lei de Deus, há nisto uma desordem monstruosa e profunda,<br />

com a tendência de se tornar definitiva, que deve<br />

apavorar todo espírito em que ainda bruxuleiam alguns<br />

lampejos, já não direi de senso católico, mas de simples e<br />

reta razão natural. Com efeito, o risco a que aludimos<br />

não consiste em uma simples injustiça. É na glorificação<br />

da injustiça como tal. É na consolidação da injustiça como<br />

regra fundamental de ação e norma básica das relações<br />

entre os povos.<br />

A paz internacional será uma paz autêntica, se ela for<br />

a conseqüência da aplicação dos princípios da Lei de<br />

Deus à vida internacional. Realmente, a Lei cumprida<br />

gera a ordem, e a ordem gera a tranqüilidade, e esta tranqüilidade<br />

da ordem será a paz.<br />

Será uma desgraça, já é agora uma desgraça catastrófica,<br />

que a tranqüilidade da ordem seja violada, e que esta<br />

violação traga lutas cruentas como aquelas que atualmente<br />

assistimos. A humanidade contemporânea pode ser<br />

comparada a um homem doente que se contorce tragicamente<br />

nos paroxismos da dor. E este espetáculo não pode<br />

deixar de concitar à piedade e à prece os espíritos compassivos.<br />

(Excertos de artigo publicado no “Legionário” de<br />

29/12/1940. Título e subtítulos nossos.)<br />

27


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

Reflexões<br />

sobre<br />

um café<br />

N<br />

o<br />

presente artigo, <strong>Dr</strong>. <strong>Plinio</strong> traça considerações sobre o verdadeiro desenvolvimento<br />

do homem e da nação, e levanta interessante questão a respeito das riquezas de alma<br />

do brasileiro.<br />

Há muito tempo, muitíssimo até, tenho acerca<br />

do desenvolvimento de nosso País uma impressão<br />

a comunicar.<br />

“Desenvolvimento” é um termo tomado aqui num sentido<br />

que tem parentesco apenas longínquo com o que habitualmente<br />

se entende por tal. Não falo do desenvolvimento<br />

econômico-financeiro. Este é o sentido ápice — e<br />

não raras vezes até único — que se atribui ao vocábulo<br />

em nossos dias (...).<br />

Analogias entre todas as criaturas, e entre<br />

estas e Deus<br />

Na perspectiva em que me coloco, tal forma de desenvolvimento<br />

tem seu lugar. Este não é, entretanto, o ápice.<br />

Pela simples razão de que o homem não é principalmente<br />

estômago. O desenvolvimento-ápice não consiste, pois,<br />

na promoção das coisas do corpo, do “irmão corpo”, segun-<br />

do a linguagem franciscana. Consiste, isto sim, no desenvolvimento<br />

do homem todo, postos na devida hierarquia<br />

os vários elementos deste todo. E, assim, a alma em primeiro<br />

lugar. Entre as caraterísticas da alma, quero destacar<br />

aqui uma das mais nobres, isto é, a aptidão de relacionar<br />

as coisas da matéria com as do espírito, e umas e outras<br />

com Deus.<br />

Todo o universo foi criado à imagem e semelhança de<br />

Deus. De onde existirem analogias entre todas as criaturas.<br />

Pois seres análogos a um terceiro são, por isto mesmo,<br />

análogos entre si. Daí as coisas materiais terem o poder de<br />

exprimir as espirituais. E um dos usos mais nobres que se<br />

possa fazer de cada uma, e de todas no conjunto, consiste<br />

em lhes conhecer essa expressão espiritual. Através dessa<br />

expressão, a inteligência conhece melhor as coisas do espírito.<br />

Serventia excelsa que tem a matéria até para os bemaventurados<br />

após a ressurreição, quando, entretanto, verão<br />

Deus face a face.<br />

28


Uma pessoa penetrada destas grandes verdades, e habituada<br />

a fazer do relacionamento matéria-alma-Deus uma<br />

atividade-réctrix de seu espírito, pode desta maneira chegar<br />

ao ápice de sua personalidade. Ou seja, atingiu o desenvolvimento<br />

ordenado e inteiro de seu próprio eu. Seu desenvolvimento-ápice.<br />

Estas verdades, precisamente porque muito abstratas,<br />

têm, contudo, relação com o que há de mais profundo e<br />

decisivo na realidade concreta. Assim, é fator da grandeza,<br />

do bem-estar e da force de frappe, de um país o relacionamento<br />

íntimo entre os recursos naturais e a paisagem do<br />

território, de um lado, com as características do espírito<br />

nacional, de outro lado, a<br />

ponto de o observador notar<br />

afinidades entre a configuração<br />

dos montes, o<br />

curso e o rumorejar dos<br />

rios, as mil cores e formas<br />

da vegetação, os perfumes<br />

das flores, os sabores da<br />

culinária local, as harmonias<br />

das músicas e das danças populares, das formas e<br />

das cores dos trajes típicos — com o espírito da população;<br />

por exemplo, com o estilo dos gracejos e das brigas<br />

das crianças, dos feitos dos homens maduros e da experimentada<br />

sabedoria dos anciãos.<br />

Tudo isto forma um emaranhado de elementos que se<br />

entrelaçam por mil afinidades indissociáveis. E é a diferença<br />

entre estes — mais até do que os limites territoriais —<br />

que distingue as nações. Que diferença entre a França e<br />

a Alemanha, por exemplo! Salta aos olhos que cada uma<br />

dessas nações forma com o respectivo “emaranhado” um<br />

só todo. Não se pode conceber uma França habitada só por<br />

alemães, nem uma Alemanha habitada só por franceses.<br />

A tradição clássica, e mais tarde a influência profunda<br />

da Igreja, ensinou esses homens a “serem” muito mais<br />

alma do que corpo, a procurarem nas coisas da matéria<br />

analogias e ensinamentos supremos sobre a alma e sobre<br />

Deus. Daí essa admirável consonância entre o corpo e a<br />

alma dos grandes povos. Assim, tais povos foram conduzidos,<br />

numa imensa<br />

ação conjunta, a interpretarem<br />

o respectivo qua-<br />

Os homens massificados<br />

pela civilização moderna já não dro material, encontrando<br />

nele mil afinidades<br />

sabem sentir os significados com suas próprias almas.<br />

Afinidades estas que a<br />

espirituais e “divinos” das coisas<br />

cultura acentuou e pôs<br />

em relevo.<br />

Tenho a impressão de que, dentro da tormenta contemporânea,<br />

a maioria dos homens, descaracterizados,<br />

massificados pela civilização moderna, mecânica e cosmopolita,<br />

já não sabe sentir os significados espirituais e “divinos”<br />

das coisas. Nem perceber os vínculos que os ligam<br />

entre si, nem às paisagens em que nasceram. E em países<br />

novos como o nosso, a interpretação simbólica dos pano-<br />

É fator da grandeza e do bem-estar de um país o relacionamento<br />

íntimo entre seus recursos naturais e as características do espírito<br />

nacional. Abaixo, à esquerda: festa popular alemã; à direita:<br />

crianças francesas com trajes de época<br />

29


A SOCIEDADE, ANALISADA POR DR. PLINIO<br />

ramas, da flora, da fauna, o saboreio ou olfateação dos<br />

produtos da terra, a audição de seus ruídos ou dos cânticos<br />

da natureza, tudo se reduz, para muitos dentre nós,<br />

às vagas recordações de infância que o progresso esmagou<br />

já na adolescência por meio do rolo compressor do<br />

“senso prático”.<br />

Um estabelecimento original<br />

Estas considerações me vieram ao espírito ao saber de<br />

um pitoresco fato que ocorre em Londrina, cidade que há<br />

cerca de trinta anos não visito. Mas sinto satisfação em<br />

contar o que a tal respeito me narraram amigos residentes<br />

na capital do café.<br />

Um homem de espírito e iniciativa instalou ali um café,<br />

em quiosque todo de vidro. Não porém um café qualquer.<br />

No modo de preparar nossa rubiácea, usou ele de nada<br />

menos do que vinte e cinco variedades. Entretido, corro os<br />

olhos em diagonal pela lista desses modos. Entre os cafés<br />

quentes não podia deixar de estar o “café com chantilly”,<br />

seguido entre outros por um enigmático “café escocês”,<br />

daquela Escócia que não produz café. Um pomposo “café<br />

royal” e um espirituoso “café society”. Os cafés frios vêm<br />

comandados, como também é natural, pelo “café vienense”.<br />

Mas o batalhão é menor. São seis, ao passo que os<br />

quentes são doze. Depois dos frios e dos quentes, figuram<br />

sete rotulados como “outros”. Como será o “licor creme de<br />

café”? No que se diferenciará do simples “licor de café”?<br />

E como serão os “confeitos de café”? O fato é que tudo<br />

isto encantou o povo. E o estabelecimento vive cheio.<br />

Riquezas da alma brasileira<br />

A diversificação que um homem de generosa fantasia<br />

soube fazer com o café, em que larga medida se poderia<br />

fazer com tantas de nossas frutas e, mutatis mutandis, com<br />

nossas incontáveis flores? E quantas riquezas de nossa<br />

alma assim mais facilmente se explicitariam?<br />

À luz das analogias de um verdadeiro simbolismo católico,<br />

num simultâneo e glorioso labor de alma de nosso povo,<br />

quanta magnificência diante de nós se desenrolaria!<br />

E se alguém me dissesse que tudo isto não<br />

passa de devaneios porque não resolve o<br />

problema do combustível, eu responderia<br />

com uma boa gargalhada.<br />

Pois um Brasil cristãmente desenvolvido<br />

não se define principalmente<br />

como uma imensa<br />

frota de motores, mas como<br />

uma imensa família de almas.<br />

(Transcrito da “Folha de S.<br />

Paulo” de 20/7/1979)<br />

Na pg. 28<br />

e nestas,<br />

variedades<br />

de bebidas<br />

e doces<br />

elaborados<br />

com café


31


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

Desponsórios com<br />

“Partida do Bucentauro no dia da<br />

Ascensão”, por Canaletto<br />

32


Quando voltamos nossos olhos<br />

para o passado e consideramos<br />

certos momentos áureos da<br />

Cristandade, não nos é difícil<br />

compreender como a boa harmonia<br />

entre o espiritual e o temporal, entre<br />

o religioso e o social constitui a perfeita<br />

ambientação para a existência<br />

da Civilização Cristã. Numa atmosfera<br />

assim formada, nascem costumes,<br />

tradições e instituições abençoadas<br />

pela Providência Divina, e cujas belezas,<br />

em que pese o volver dos séculos,<br />

ainda perduram na lembrança dos<br />

homens.<br />

Um exemplo?<br />

Fins da Idade Média. Uma cidade<br />

à beira-mar, cercada de lagunas, recortada<br />

por canais. Durante o dia, as<br />

fachadas de seus edifícios góticos admiram-se<br />

a si mesmas, refletidas no<br />

imenso e irrequieto espelho de suas<br />

águas. Pela noite, as luzes que escapam<br />

dos interiores apalaciados se confundem<br />

com as cintilações das muitas<br />

lanternas acesas em pontas de estacas<br />

que se cravam no fundo do<br />

mar... É Veneza, a feérica!<br />

A célebre Rainha do Adriático<br />

tinha uma forma de governo peculiar.<br />

Não era dirigida por monarquias<br />

hereditárias. A República Sereníssima<br />

de Veneza tinha por soberanos<br />

os chamados doges, que eram eleitos<br />

e ocupavam o cargo por um período<br />

determinado. Ora, essa instituição<br />

doganal é uma das jóias preciosas da<br />

História da humanidade. Em torno<br />

dela nasceram e desabrocharam diversas<br />

maravilhas que não existiriam<br />

se aqueles homens desistissem de ser<br />

doges, se quisessem ser reis ou príncipes<br />

como os de outros povos. Porém,<br />

como assumiam a sua qualida-<br />

a beleza<br />

33


LUZES DA CIVILIZAÇÃO CRISTÃ<br />

de especial de dirigentes, a bênção ligada<br />

àquela instituição prevalecia e<br />

se estendia sobre toda a sociedade veneziana.<br />

A começar pelo próprio Palácio<br />

dos Doges, edifício magnífico como<br />

símbolo do poder público e da grandeza<br />

de um povo, com seus amplos salões<br />

ricamente decorados, suas paredes<br />

recobertas de tapeçarias e pinturas<br />

lavradas por mestres famosos, e<br />

com sua arquitetura externa que é<br />

um verdadeiro e quase insuperável requinte<br />

do estilo gótico.<br />

Mas o doge era também o protagonista<br />

de um costume em que se pode<br />

perceber de modo particular a mencionada<br />

harmonia entre o espiritual<br />

e o temporal. Trata-se dos desponsórios<br />

de Veneza com o mar.<br />

De longe se vê a movimentação na<br />

Praça de São Marcos, os sinos do<br />

Campanile dobram festivamente, a<br />

multidão se acotovela e vai abrindo<br />

passagem para o cortejo do doge que,<br />

após ouvir a Missa solene, deixa a Catedral<br />

com o seu séquito, cercado de<br />

toda pompa e esplendor.<br />

De longe se vêem miríades de gôndolas<br />

dirigindo-se para o meio do<br />

Adriático, com músicos tocando composições<br />

de Vivaldi, pessoas cantando<br />

e festejando. A melodia se faz ouvir<br />

cada vez mais perto, o som das vozes<br />

e cantigas torna-se mais intenso.<br />

Dali a pouco esse cortejo de pequenas<br />

embarcações estaciona no mar<br />

alto, enquanto as águas continuam a<br />

ser remexidas pelas batidas pesadas<br />

dos remos de uma imensa nau que<br />

surge logo atrás. É o famoso Bucentauro,<br />

todo esculpido e todo folheado<br />

a ouro, todo elegante com suas tapeçarias<br />

pendentes do tombadilho,<br />

trazendo a figura majestosa do doge<br />

em trajes de gala, revestido do barrete<br />

frígio, acompanhado do famoso<br />

Conselho dos Dez, dos altos membros<br />

do Clero, das damas e cavalheiros da<br />

aristocracia veneziana.<br />

As batidas nas águas se tornam<br />

mais suaves, os remos se levantam.<br />

Expectativa geral. Então, de um escrínio<br />

precioso o doge retira um anel<br />

ainda mais rico e o lança ao fundo do<br />

mar. A música recobra intensidade,<br />

ecoam vivas e aplausos, bandeiras e<br />

bandeirolas se agitam: estava afirmado,<br />

uma vez mais, o poder de Veneza<br />

sobre o Adriático e o Mediterrâneo.<br />

Os remos do Bucentauro feriam<br />

novamente as águas e o barco imponente<br />

retornava para a Praça de São<br />

Marcos, entre músicas de violinos e<br />

os brados da população que aclamava<br />

o seu governante. A festa prosseguiria<br />

no Palácio dos Doges, nas luxuosas<br />

residências, nas praças e canais<br />

venezianos, até que se extinguissem<br />

os últimos ecos dos violinos, até<br />

que se emudecessem as vozes envolvidas<br />

na noite da velha e sereníssima<br />

República.<br />

Quando, tempos depois, o advento<br />

das grandes navegações abalou a<br />

O Bucentauro junto ao Palácio dos<br />

Doges — pintura de Canaletto<br />

34


Detalhe da fachada do<br />

Palácio dos Doges<br />

supremacia marítima e comercial<br />

de Veneza, esta se deu conta<br />

de uma outra realidade: perdera<br />

o império dos mares, mas ganhara<br />

o império da beleza.<br />

Ela aproveitara o tempo de sua<br />

opulência para se encher de palácios,<br />

de obras-primas imortais,<br />

para fazer-se umas das cidades<br />

mais lindas e talvez a mais original<br />

de todo o universo. E no momento<br />

em que decaía comercialmente,<br />

as nações insaciáveis das<br />

maravilhas dela começaram a visitá-la,<br />

a freqüentar a feérica moribunda<br />

que ia expirando. E todos<br />

lhe traziam o tributo de sua<br />

admiração: o mundo inteiro ali se<br />

encantava e ali gastava, não querendo<br />

que Veneza morresse!<br />

Então Veneza compreendeu<br />

que, continuando a vida de luxo,<br />

a vida de festa, a vida de arte, ela<br />

prolongava sua própria existência.<br />

Ela tinha uma beleza imorredoura.<br />

Sim, mais do que casar-se com<br />

o mar, a venturosa Rainha do<br />

Adriático desposara-se com o<br />

pulchrum... !<br />

35


Divino artifício<br />

de bondade<br />

Ao destinar, desde toda<br />

a eternidade, a Virgem<br />

Santíssima para Mãe<br />

d’Ele e de todos os homens,<br />

Nosso Senhor como que usou<br />

de um sublime artifício para<br />

aumentar ainda mais, se fosse<br />

possível, a sua infinita misericórdia<br />

em relação a nós.<br />

Com efeito, existindo n’Ele<br />

um equilíbrio absoluto entre<br />

a bondade e a justiça, Jesus<br />

gostaria entretanto de levar<br />

mais longe aquela do que leva<br />

esta. Então o fez através<br />

de Maria, cujo amor materno<br />

é um extremo e um requinte<br />

insuperáveis do próprio<br />

amor de Deus para com seus<br />

filhos, e cuja benevolência ultrapassa<br />

todos os auges de medida<br />

que o coração humano possa<br />

conceber.<br />

Nossa Senhora<br />

Sede da Sabedoria

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