Descolonizar_o_Imaginario_web
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um quadro altamente diverso e variado, sem que por isso as<br />
cores originais se percam, mas no qual também se vão mesclando<br />
e dando lugar a novas cores.<br />
Há conflito, mas também há convivência não necessariamente<br />
conflitiva. As relações são assimétricas e desniveladas,<br />
mas isso não significa que necessariamente sejam<br />
contraditórias. Há momentos de alta contradição, o que não<br />
implica que as culturas encontradas não tenham uma um<br />
pouco da outra. Há processos de intercâmbio, de empréstimo<br />
e de conjunção, e, ao mesmo tempo, espaços de continuidade<br />
da singularidade de cada cultura. Há espaços para<br />
a germinação de novas culturas simultaneamente a outros<br />
de fortalecimento das já existentes. Esse é o cenário de<br />
heterogeneidade cultural.<br />
As diferentes matrizes culturais que se relacionam são<br />
portadoras de diferentes condições de poder. Os modos<br />
de vida coloniais modernizadores, senhoriais, gozam da<br />
aceitação oficial e de discursos que os associam ao desenvolvimento<br />
e ao crescimento. Por outro lado, as culturas<br />
indígenas e “populares” são vistas como expressões do<br />
atraso. Por isso, não se pode falar de heterogeneidade sem<br />
falar de relações de poder.<br />
A pergunta que nos fazemos é se essa condição complexa,<br />
que habita nossas cidades e disputa seus sentidos<br />
configuradores, permite a germinação de alternativas<br />
ao desenvolvimento colonial-modernizador capitalista<br />
dominante no mundo, com base nesse horizonte que hoje<br />
denominamos Bem Viver, e que se faz presente por meio<br />
dos modos de vida dos setores indígenas e “populares”<br />
que habitam essas cidades. Não temos respostas definitivas,<br />
e sim algumas experiências e vivências que podem<br />
nos ajudar nesse debate.<br />
318<br />
Bem Viver a partir de contextos urbanos<br />
Na Bolívia, costuma-se situar no ano 2000 o marco do<br />
início do chamado processo de transição 7 que colocou<br />
Evo Morales na Presidência da República e o Estado<br />
Plurinacional (inédito no mundo) como marca principal<br />
da nova Constituição, promulgada em 2009. Essa<br />
transição, no entanto, tem características peculiares em<br />
relação a outras crises e transições que o país viveu, e<br />
que vale a pena observar, já que uma espécie de simultaneidade<br />
de crises lhe dá essa singularidade.<br />
O sistema político em crise foi a ponta do iceberg.<br />
A população perdeu confiança na chamada “classe política”<br />
e na capacidade do sistema político em encontrar<br />
soluções para os graves problemas do país. Os dirigentes<br />
perderam legitimidade, o que gerou um vácuo de<br />
representação. Essa deterioração do sistema político<br />
expressava o limite: não era mais possível buscar saídas<br />
com o que existia.<br />
319<br />
7 Fala-se do ano 2000 como um marco do início desse processo de<br />
transição por causa de dois eventos políticos fundamentais da história<br />
contemporânea da Bolívia. Por um lado, a chamada Guerra<br />
da Água, que provocou uma mobilização popular articulada<br />
entre setores urbanos e rurais contra as políticas das transnacional<br />
Bechtel, por meio de sua subsidiária “Aguas del Tunari”.<br />
Depois de vários dias de duros enfrentamentos que paralisaram<br />
toda a cidade de Cochabamba, o conflito provocou a reversão<br />
dessa empresa para as mãos do Estado boliviano. Considera-se<br />
essa vitória como a primeira derrota das políticas neoliberais e a<br />
visibilização da crise desse modelo estatal. Por outro lado, nesse<br />
mesmo ano ocorreram grandes bloqueios de estradas nacionais<br />
liderados por camponeses e produtores de folha de coca. Esses<br />
fatos colocaram de maneira visível o questionamento sobre o<br />
sistema político e a articulação crescente entre a luta dessa etapa<br />
concreta com a memória histórica que questionava o Estado<br />
colonial republicano. Esses dois eventos de princípios de século<br />
expressam esse marco que costuma ser assinalado como a visibilização<br />
do início do processo de transição contemporâneo.