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22<br />
LUSITANO de Zurique<br />
Crónica<br />
RETRATOS<br />
A SÉPIA<br />
ALICE VIEIRA (*)<br />
A jovem aponta-<br />
-me as fotografias<br />
a sépia na<br />
parede e diz-me:<br />
“Aquilo era o hotel<br />
antigamente.”<br />
Antigamente. O<br />
peso da palavra<br />
é imenso. A jovem<br />
funcionária<br />
deve ter de idade<br />
ainda menos<br />
do que eu tenho de afastamento<br />
deste lugar, onde passei o melhor<br />
da minha infância e adolescência.<br />
Destes enormes retratos a sépia<br />
rebenta a recordação da música<br />
melancólica que o Sr. Fortuna, a D.<br />
Adriana e o Sr. Gualberto tocavam<br />
ao jantar, enquanto os hóspedes<br />
comiam o arroz de vitela desenxabido<br />
que lhes tinha sido receitado,<br />
quem ia para as termas era para<br />
isso mesmo, que remédio.<br />
O palco dava para a enorme casa de<br />
jantar, e também para o salão de baile,<br />
aberto todas as noites às valsas e boleros<br />
para meninas casadoiras. Hoje o palco<br />
desapareceu, desapareceram os músicos,<br />
tudo se transformou em health club,<br />
que os tempos são outros e requerem outras<br />
distracções, e as meninas casadoiras<br />
têm mais que fazer do que acompanhar<br />
os pais às termas. A jovem funcionária<br />
pensa que eu não devo estar no meu juízo<br />
perfeito quando lhe falo do palco e do<br />
teatro que nele se fazia, e daqueles “quadros<br />
vivos” tão românticos, nas festas de<br />
beneficência para a Casa do Gaiato. Sorri,<br />
murmura, “pois, antigamente”, e tenho<br />
a certeza de que ela me olha com aquele<br />
vago sorriso meio incrédulo de quem olha<br />
para uma reprodução de um dinossauro<br />
e pensa: “Mas será possível que alguma<br />
vez tenha existido um bicho assim?”<br />
Destes retratos a sépia rebenta a recordação<br />
da Rosalina, que me deitava todas<br />
as noites e vinha muitas vezes ver se eu<br />
dormia, mas era difícil dormir ouvindo a<br />
música dos salões, e imaginando os adultos,<br />
vestidos a preceito, a rodopiarem ao<br />
seu ritmo, como o Sr. João Fernandes,<br />
que era muito alto e cheirava sempre a<br />
água-de-colónia, e sorria muito para toda<br />
a gente, e tinha imensos netos e brincava<br />
com eles todos. O Sr. João Fernandes foi<br />
a minha primeira paixão. Mas ele tinha 80<br />
anos e eu tinha uns quatro ou cinco; era,<br />
logo à partida, um amor impossível. Se eu<br />
não conseguia mesmo adormecer, então<br />
a Rosalina contava-me histórias, sobretudo<br />
aquela do rei que promete uma das<br />
suas duas filhas a um príncipe e, quando<br />
este chega para a vir buscar, não se lembrando<br />
em qual recaíra a escolha, o rei<br />
passa tempo todo a perguntar “qual delas,<br />
meu Deus, qual delas?” e, garantia a<br />
Rosalina, era por isso que aquela terra se<br />
chamava Caldelas. [Amares]<br />
Destes retratos a sépia rebenta a recordação<br />
do Sr. Gualberto, batendo ligeiramente<br />
os tacões quando se apresentava,<br />
“Gualberto, o do saxofone!”, trazendo<br />
sempre atrás de si a multidão de miúdos<br />
que os pais queriam ver sossegados e,<br />
se possível, longe deles. O Sr. Gualberto<br />
era o nosso rei - e nunca nenhum rei<br />
teve súbditos mais fiéis. Durante o tempo<br />
de escola, eu morria de saudades do<br />
Sr. Gualberto (que me mandava sempre<br />
os parabéns numa sua fotografia a tocar<br />
saxofone) e da Rosalina, que cheirava a<br />
sabão e tinha carrapito e era redonda, redonda,<br />
como todas as avós que eu só conhecia<br />
dos livros de histórias, e um colo<br />
onde eu cabia toda.<br />
Destes retratos a sépia rebenta a recordação<br />
do cubículo do Manel, do PBX, onde<br />
nós todos largávamos tudo, casacos, bolas,<br />
patins, triciclos, bonecas, em que ele<br />
tropeçava constantemente, “ai meu Deus<br />
que ainda um dia parto uma perna!”, sempre<br />
que o telefone tocava e ele tinha de<br />
passar as chamadas aos hóspedes.<br />
Quarenta anos depois regresso a este lugar<br />
- agora transformado num hotel igual<br />
a todos - e sei que nestes retratos a sépia<br />
ficámos todos para sempre, eu, a Rosalina,<br />
o Sr. Gualberto, o Sr. Fortuna, a D.<br />
Adriana, o Manel, o Sr. João Fernandes,<br />
e lá iremos viver, e seremos muito felizes,<br />
e dançaremos sempre nos salões, e não<br />
havemos de morrer nunca.<br />
(*) Escritora e jornalista