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Novembro nº 247

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22<br />

LUSITANO de Zurique<br />

Crónica<br />

RETRATOS<br />

A SÉPIA<br />

ALICE VIEIRA (*)<br />

A jovem aponta-<br />

-me as fotografias<br />

a sépia na<br />

parede e diz-me:<br />

“Aquilo era o hotel<br />

antigamente.”<br />

Antigamente. O<br />

peso da palavra<br />

é imenso. A jovem<br />

funcionária<br />

deve ter de idade<br />

ainda menos<br />

do que eu tenho de afastamento<br />

deste lugar, onde passei o melhor<br />

da minha infância e adolescência.<br />

Destes enormes retratos a sépia<br />

rebenta a recordação da música<br />

melancólica que o Sr. Fortuna, a D.<br />

Adriana e o Sr. Gualberto tocavam<br />

ao jantar, enquanto os hóspedes<br />

comiam o arroz de vitela desenxabido<br />

que lhes tinha sido receitado,<br />

quem ia para as termas era para<br />

isso mesmo, que remédio.<br />

O palco dava para a enorme casa de<br />

jantar, e também para o salão de baile,<br />

aberto todas as noites às valsas e boleros<br />

para meninas casadoiras. Hoje o palco<br />

desapareceu, desapareceram os músicos,<br />

tudo se transformou em health club,<br />

que os tempos são outros e requerem outras<br />

distracções, e as meninas casadoiras<br />

têm mais que fazer do que acompanhar<br />

os pais às termas. A jovem funcionária<br />

pensa que eu não devo estar no meu juízo<br />

perfeito quando lhe falo do palco e do<br />

teatro que nele se fazia, e daqueles “quadros<br />

vivos” tão românticos, nas festas de<br />

beneficência para a Casa do Gaiato. Sorri,<br />

murmura, “pois, antigamente”, e tenho<br />

a certeza de que ela me olha com aquele<br />

vago sorriso meio incrédulo de quem olha<br />

para uma reprodução de um dinossauro<br />

e pensa: “Mas será possível que alguma<br />

vez tenha existido um bicho assim?”<br />

Destes retratos a sépia rebenta a recordação<br />

da Rosalina, que me deitava todas<br />

as noites e vinha muitas vezes ver se eu<br />

dormia, mas era difícil dormir ouvindo a<br />

música dos salões, e imaginando os adultos,<br />

vestidos a preceito, a rodopiarem ao<br />

seu ritmo, como o Sr. João Fernandes,<br />

que era muito alto e cheirava sempre a<br />

água-de-colónia, e sorria muito para toda<br />

a gente, e tinha imensos netos e brincava<br />

com eles todos. O Sr. João Fernandes foi<br />

a minha primeira paixão. Mas ele tinha 80<br />

anos e eu tinha uns quatro ou cinco; era,<br />

logo à partida, um amor impossível. Se eu<br />

não conseguia mesmo adormecer, então<br />

a Rosalina contava-me histórias, sobretudo<br />

aquela do rei que promete uma das<br />

suas duas filhas a um príncipe e, quando<br />

este chega para a vir buscar, não se lembrando<br />

em qual recaíra a escolha, o rei<br />

passa tempo todo a perguntar “qual delas,<br />

meu Deus, qual delas?” e, garantia a<br />

Rosalina, era por isso que aquela terra se<br />

chamava Caldelas. [Amares]<br />

Destes retratos a sépia rebenta a recordação<br />

do Sr. Gualberto, batendo ligeiramente<br />

os tacões quando se apresentava,<br />

“Gualberto, o do saxofone!”, trazendo<br />

sempre atrás de si a multidão de miúdos<br />

que os pais queriam ver sossegados e,<br />

se possível, longe deles. O Sr. Gualberto<br />

era o nosso rei - e nunca nenhum rei<br />

teve súbditos mais fiéis. Durante o tempo<br />

de escola, eu morria de saudades do<br />

Sr. Gualberto (que me mandava sempre<br />

os parabéns numa sua fotografia a tocar<br />

saxofone) e da Rosalina, que cheirava a<br />

sabão e tinha carrapito e era redonda, redonda,<br />

como todas as avós que eu só conhecia<br />

dos livros de histórias, e um colo<br />

onde eu cabia toda.<br />

Destes retratos a sépia rebenta a recordação<br />

do cubículo do Manel, do PBX, onde<br />

nós todos largávamos tudo, casacos, bolas,<br />

patins, triciclos, bonecas, em que ele<br />

tropeçava constantemente, “ai meu Deus<br />

que ainda um dia parto uma perna!”, sempre<br />

que o telefone tocava e ele tinha de<br />

passar as chamadas aos hóspedes.<br />

Quarenta anos depois regresso a este lugar<br />

- agora transformado num hotel igual<br />

a todos - e sei que nestes retratos a sépia<br />

ficámos todos para sempre, eu, a Rosalina,<br />

o Sr. Gualberto, o Sr. Fortuna, a D.<br />

Adriana, o Manel, o Sr. João Fernandes,<br />

e lá iremos viver, e seremos muito felizes,<br />

e dançaremos sempre nos salões, e não<br />

havemos de morrer nunca.<br />

(*) Escritora e jornalista

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