Chicos 62 - 22.09.2020
Chicos é uma publicação literária que circula apenas pelos meios digitais. Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar nossas edições. A linha editorial é fundamentalmente voltada para a literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números, uma diversidade temática.
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Nº 62
22 de setembro de 2020
e-zine de literatura e ideias de
Cataguases – MG
Um dedo de prosa
Esta é a nossa edição 62
Quarentena 2020
Chicos é uma e-zine que circula apenas pelos meios digitais.
Envie-nos seu e-mail e teremos prazer de te enviar
nossas edições ou visite-nos nos links listados nesta
página.
A linha editorial é fundamentalmente voltada para a
literatura dos cataguasenses, mas aberta ao seu entorno
e ao mundo. Procura manter, em cada um dos seus números,
uma diversidade temática.
Neste número de início da primavera, em meio a quarentena,
ainda acuados pelo Covid 19, choramos nossos
mortos em meio à indiferença de muitos. Além das perdas
pela pandemia, que para muitos e os governos são
apenas números, perdemos neste inverno que findou
nossa maior poeta Lina Tâmega Peixoto.
Ainda que tristes, desejamos uma boa leitura para todos!
E até o início do verão.
Os Chicos
Capa: Foto Vicente Costa
Desenhos Altamir Soaress
Editores:
Emerson Teixeira Cardoso
José Antonio Pereira
Colaboradores:
Gabriel Franco
Vicente Costa
José Vecchi de Carvalho
Fale conosco: cataletras.chicos@gmail.com
Esta edição é dedicada a Lina Tâmega Peixoto
05.06.1931 a 01.09.2020
Visite-nos em:
https://independent.academia.edu/ChicosCataletras
https://www.yumpu.com/pt/chicos_cataletras
01
Chicos
ÍNDICE
03 Meu companheirinho Joaquim Branco
04 Alguma poesia P J Ribeiro
07 carta para um país Vera Lúcia de Oliveira Maccherani
09 Sempre Flausina Márcia
1 2 Poema 05/20 Luiz Ruffato
1 3 voo de taxi Cassiana Lima Cardoso
1 5 A casa é perturbadora na sua norma clássica + 3 poemas Adília Cesar
1 9 Alçapão + 2 poemas Ronaldo Cagiano
22 [trazes] Inez Andrade Paes
23 Desolação + 2 poemas Alberto Bresciani
27 [Saudades do mar] Helen Massote
28 A árvore do esquecimento Fernando Abritta
3 1 Bird’s flight Eduardo Dalter
32 Será tudo apenas mais um dia da mentira? José Antonio Pereira
34 Qual seja a sorte sua? Fernando Cesário
36 Retalhos José Vecchi de Carvalho
39 Como um pássaro Emerson Teixeira Cardoso
40 A donzela de Orléans e a Donzela dos Gerais Vera Lúcia de Oliveira
42 Criaturas do mar Raquel Naveira
44 Armando Leone Enzo Menta
46 Antiga estampa Danilo Gomes
49 um tempo em que nada mais surpreende Lourenço Cazarré
52 Acorda, Brasil: Eis a língua viva de Eugênia Sereno Eltânia André
55 Lina Tâmega Peixoto: palavra & perenidade Ronaldo Werneck
62 Um colosso Antônio Jaime Soares
64 Lygia Fagundes Telles, a dignidade da palavra Álvaro Alves de Faria
70 Minas Gerais—300 anos Hugo Pontes
72 Lendo os clássicos Luiz Ruffato
75 Clips
02
Chicos
Meu companheirinho
*Joaquim Branco
Quando criança,
minha mãe me
chamou um dia e
disse: seu irmão
Pedro vai ser seu
melhor companheiro,
você vai precisar. Dito e feito. Daí em
diante, foi sempre assim. Juntos, ajudando
um ao outro em todas as ocasiões, ele mais
a mim do que eu a ele.
Fomos como os amiguinhos inseparáveis
Tom Sawyer e Huckleberry Finn, das aventuras
infantis eternizadas por Mark Twain.
E foi assim que estudamos na mesma turma
no colégio e na faculdade, editamos suplementos
literários, livros, organizamos eventos,
exposições, ao longo dos anos.
Seus livros são o registro de uma aventura
estética e humana que vai além da literatura,
pois ele é um autor que segreda seu texto
em imagens que atingem o centro da linguagem,
em busca do pensamento que requer
do leitor algo mais do que a simples leitura.
Ele retrata geralmente episódios rápidos em
suas micronarrativas em suspensão, como se
algo faltasse e pedisse para alguém complementar
de acordo com as possibilidades de
cada mente. Seu temperamento meio fechado
inclinava-se para o caos nosso de cada
dia, às vezes, sob um “céu azul... de cobalto”.
Mas tudo passa e aconteceu o pior...
Agora acabo de perder meu companheirinho
Pedro, querido irmão. Nunca mais teremos
nossa conversa diária (quando estava na cidade)
de momentos de baixo astral e também
de risos altos que chamavam a atenção
das outras pessoas da casa.
E certamente a literatura brasileira perde um
expoente: P. J. Ribeiro (1942-2020).
(30-04-2020)
* Joaquim Branco
Nasceu em Cataguases MG. Poeta, crítico e professor de literatura. Envolvido
desde cedo com literatura, Joaquim Branco participou da organização da Exposição
de Poesia Concreta de Cataguases, em 1968. No ano seguinte, publicou
seu livro de estreia, Concreções da Fala, ligado à estética concretista. Em 1969,
ele já estava ligado ao Poema Processo, uma radicalização da poesia concreta
que dá mais ênfase a elementos gráficos não verbais. Tem uma extensa bibliografia.
03
Chicos
Alguma poesia de P J Ribeiro
Loteria
Se eu ganhar na loteria
te levo
pra mostrar minha poesia.
Ilhas
Pegamos o barco, ligamos o motor,
zarpamos pras ilhas
do coração
De que me adianta?
De que me adianta ser feliz em
Atlanta?
De que me vale ser uma besta em
Sales?
O que me impede de ser um cego em
Medes?
O que me leva a esconder nas trevas?
04
Chicos
Um dia alguém te afagou nos braços
Lembras-te de que um dia
alguém te coçou a cabeça
e te afagou nos braços
e te entupiu as narinas e a boca
com um leite quente
que escorria de dentro
de um peito vermelho?
Sabes que este leite
que te serviu de alimento
por algum tempo
é o que te sustenta até hoje?
De: Drogaria (2008)
05
Chicos
* P J Ribeiro
Pedro José Branco Ribeiro, carioca, criado em Cataguases (MG), formado em
Letras, 20 livros publicados, além de uma parceria com Wlademir Dias-Pino
(Bonifácil), com publicações em dezenas de jornais e revistas do país e do exterior,
Co-fundador de O Muro, Totem, SLD, participante dos movimentos da
poesia concreta, poema-processo, arte-postal e poesia visual.
06
Chicos
carta para um país
*Vera Lúcia de Oliveira Maccherani
prezado país das lesmas vagarosas, dos pardais afoitos, dos quintais onde eu
virava planta e bicho caseiro
prezado país das moitas de capim, cresci você em mim, mas você não cresceu
passou da infância à velhice num lance de dados mal jogados
prezado país das palavras perdidas em nós
prezado país do meu pai, do meu pé de manga que ele plantou, você adoeceu
precocemente, você morreu sem enterro e não pode ser enterrado porque em
mim você está vivo e submerso esperando esperando
prezado país que se perdeu e buscamos em vão nos muros de casas sem jardim,
nos edifícios murados vivos, nos carros de vidros ofuscados pelo medo,
nas janelas com grades, o rosto nosso de cada dia que partiu para longe de si
mesmo
prezado país que vive em branco porque também pereceu em sua aridez
esse fogaréu de esperanças atingiu o céu de tão alto que para alimentá-lo se
abatem corpos negros e pobres
prezados país dos negros e pobres, das mulheres negras e pobres, das crianças
sem futuro, dos índios que se foram
07
Chicos
prezado país eu já desisti de buscar o espelho em que via a vida de milhões comungando
comigo
ou só eu comungava um país que só existia em mim
prezado país de joelho que implora deus a um deus que é ruim e escolhe o lado
pior em que estar
prezado país das igrejas, das paredes onde se dispara nos corpos postos para
serem fuzilados e onde tombam por uma bala sem dono
prezado país de lama esbranquiçada, vou fazer o seu enterro precoce e você
nem é dentro
essa carta não tem endereço pois você nem existe para além daquela porta em
que vou e venho com as flores do enterro sem alarde, sem discurso, sem indulto,
sem absolvição
Perugia, julho de 2020.
* Vera Lúcia de Oliveira Maccherani
Poeta, ensaísta e professora de Literaturas Portuguesa e Brasileira na Università
degli Studi di Perugia. Recebeu diversos prêmios pela sua produção, entre
os quais o Prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras (Rio de Janeiro,
2005), o Prêmio Internacional de Poesia Pasolini (Roma, 2006), o Prêmio Literatura
para Todos (Brasília, 2006). A autora, que escreve tanto em português
como em italiano, tem poemas e ensaios publicados no Brasil, Itália, França,
Alemanha, Romênia, Estados Unidos, Espanha e Portugal.
08
Chicos
[Antes era]
*Flausina Márcia
Antes era
Depois
filha dos meus pais
irmã dos meus irmãos
neta sobrinha prima
afilhada amiga e
Aquarela do Brasil
“O Povo Brasileiro”
Darcyzou-me nação
em si
Para si é o nosso chis
Feitos de
desindianizados
desportuguezados
desafricanizados
submetemo-nos
ao labor insano
de surgirmos Cultura
Desde Uirá ante Deus
“Sou do seu povo,
o que come farinha”
Ao grosso melado
que gerou Palmares
e zumbizou Deus
09
Chicos
Cabanagem Balaiada Canudos
de junções crioula cabocla
sertaneja e caipira pira pora
Nossa Senhora de Aparecida
Sempre
Um território empresa
coloniada ao jesus cristo.
Independência coroada
República militarizada
Somos Nação
A dizer para si
sou doçura criativa
que come culturas
invade sesmarias
põe miséria na rua
e o ridículo no poder
Não sou verde, ou amarela
nem azul, nem branca.
Sou a mulher da Terra
mãe dos filhos deste solo
donde brotam princípios
de sociedade solidária
planos de autogoverno
desejo de se orgulhar.
10
Chicos
Sou filha do trabalho
irmã das identidades
inimiga do rei
O Guarany suicida,
da terra cansada de
engolir cadáveres,
ensina, aterrorizado,
que é luta de vida
ou morte.
Então, pára o mundo
quero subir, saber
sacrificar o lucro.
* Flausina Márcia
Nasceu em Cataguases (MG) e mora em Belo Horizonte (MG) onde trabalhou
na Secretaria de Cultura de Minas Gerais. Publicou entre outros: Vagalume
(2002), Sua Casa Minha Cruz (2003) e Poemas Declives (2014).
11
Chicos
05/20
*Luiz Ruffato
Exilado entre as quatro paredes do meu quarto
Tendo por única companhia
O ancestral silêncio dos meus gatos
Acompanho imperturbável
O naufrágio lento do imenso barco
Que outrora eu chamava utopia
Sei que por detrás das cortinas da janela
Há rangidos, gritos, alvoroço
Mas meu corpo se recusa a ir até ela
Pois sondar o insondável
Não traria de volta o meu querê-la
E aguardo calmo a água me alcançar o pescoço
* Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de
sua autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu
APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado
de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor
reconhecido no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório,
com a publicação do romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma,
son tanto Felice em 2005, composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro.
12
Chicos
voo de táxi
*Cassiana Lima Cardoso
um taxista me disse
que dirigir é fácil
e me deu sábios conselhos
sobre a arte de conduzir um automóvel.
um me ensinou a fazer arroz doce
outro chama-se john lennon
outro gosta de marx
outro é da bahia
de santa catarina
do piauí
de astolfo dutra, em minas gerais
– creio que esse me ensinou a fazer a
iguaria –
um me disse ter saudades da ditadura
que ali ninguém fazia de bobo não
outro (alegria)
me disse – ainda ontem –
que vai votar no filho de caetés
um me mostrou foto de gente morta
outro piscou para a travesti na glória
achei simpático, pisquei também.
13
Chicos
um estuda esperanto e sabe poemas
de augusto dos anjos de cor
um escutava boleros
outro, sucessos de rita pavone
outros, só hino de igreja
outro me pediu para escolher
a estação de rádio
e o acaso nos fez cantar juntos
um samba de Dona Ivone Lara.
um taxista me disse que não tem pressa
para nada nessa vida
outro que está difícil pagar as contas
um que descobriram uma bactéria nova
outro, que levou a mulher para saquarema,
levou ao shopping, comprou vestido,
perfume, leva a jantares
mas ela gosta mais do cachorro da família
que dele.
De: Matrioska de Chita: haicais e outros poemas
(2020)
* Cassiana Lima Cardoso
Nasceu em São Bernardo SP, mas cresceu em Cataguases MG, considerandose
mineira de formação. Graduada em Letras pela Universidade Federal de
Viçosa (UFV), em Minas, doutora em Literatura Comparada e mestre em
Poética pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é professora e
escritora. Participou de duas antologias, Haicais e poemas curtos (2018) e
Entradas para cotidianos (2019), coletânea de microcontos. Ainda no ano de
2019, publicou seu primeiro livro, Desastrada e outros contos breves, integrando
a Coleção I do Mulherio das Letras.
14
Chicos
[A casa é perturbadora na sua norma clássica.]
*Adília César
*
A casa é perturbadora na sua norma clássica.
No encaixe dos braços e das pernas
a porta é assimétrica no som de abrir o coração.
Range a fábula
e perturba a saudação da linguagem pura.
O coração esquece a sua milimétrica geometria.
Atravessá-la sem a abrir, é o que me proponho
sem olhar para trás, sem ver a besta que me persegue.
Entrar é lembrar e sair é esquecer. No corpo.
15
Chicos
[O afecto coincide com o rigor da mesma fraqueza]
*
O afecto coincide com o rigor da mesma fraqueza
quando estou enfiada no buraco de uma agulha.
Zona de alarme, nó do pensamento, linha ausente.
Separo a estrutura da linha do desejo:
força tensão fragilidade dinâmica.
O aço do orifício funde-se e a toupeira ascende, assustada.
Ainda estou dentro do meu corpo. O bicho não me vê.
Existo por dentro em existência, mas não em essência
quando anulo este momento ao renascer pelo lado de fora.
Uma agulha no coração é desejo pelo desejo:
força tensão fragilidade dinâmica.
E fico presa num buraco imaginário: é isto o amor.
Sim, tenho a certeza que isto é amor.
16
Chicos
[Meia-noite ou outra hora mais indecisa]
*
Meia-noite ou outra hora mais indecisa.
O tempo, mestre da sua competência
a ler relógios. Objectos obsessivos, tão inúteis.
Essa foi a tarefa do dia:
aniquilar instrumentos de controlo e coordenação
e partir todas as horas em fragmentos do presente.
Encostam-se esses instantes ao meu peito interrompido
como rodas dentadas e gordurosas separadas pelo silêncio.
Mecanismo de compreensão dos instantes
interruptor do sangue, lavagem cerebral.
Que fazer com o futuro
se a sombra é uma habitação completa?
17
Chicos
Há-de vir o dia em que os meus filhos chorarão por mim.
*
Há-de vir o dia em que os meus filhos chorarão por mim.
Para onde foi o som?
O silêncio é uma voz estreita e solúvel.
Paraondefoiosom?
É nítida esta sensação de murmúrio ofegante
no cérebro e na voz desabitada.
Aconchego a solidão numa referência à noite.
Penso sobre o escuro do corpo desta noite tão só
e o luar eterniza-se na cortina que me separa do mundo.
Se o negrume me cobrir por inteiro
se a chuva for o único nome do inverno
eu mesma serei silêncio na contemplação.
E recolho os infindáveis voos
de pequenos insectos sem nome
enfeito o meu corpo com a leveza dessas asas perfeitas.
Fragmentos brilhantes de olhos macios como cera.
Voz rara, lufada de assombro no ponto de fuga.
De: Uma agulha no coração (2020)
* Adília Cesar
Nasceu em Lagos e reside em Faro, Portugal. É educadora de infância e formadora
no âmbito da Didática das Expressões Artísticas, sendo Mestre em
Teatro e Educação pela Universidade do Algarve. Autora dos livros O que se
ergue do fogo (2016), Lugar-corpo (2017); O tempo o tempo (2019) e Uma
agulha no coração (2020). Edita, juntamente com Fernando Esteves Pinto, a
revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.
18
Alçapão
Chicos
*Ronaldo Cagiano
Arquivo cruel é a memória,
e nela estamos presos
como numa armadilha.
Gilberto Tadeu Nable
Acesa como a verdade,
a lembrança é esse temporal que cresce
por dentro
mergulha-nos
num caudal
de desconfortos
e apreensões
19
Flagrante
Chicos
A máquina alucinada
perfura a madrugada
como uma bala perdida:
o apito da velha maria-fumaça
ainda percorre os meus tímpanos
como um susto na escuridão.
Meu quarto, que não tinha ouvidos,
mas um rebanho de sombras,
ensurdecia-se ao prenúncio do longo grito,
lamento rascante da fera metálica
violando a janela do antigo menino
povoado de cicatrizes
E os dias nasciam pontualmente
e incólumes
sem nenhuma culpa
nem revoltas.
20
Chicos
Pórtico
Da janela
esquartejo a montanha
e não consigo
domar a angústia
do que está além
Debruçado
nessa geometria,
labirinto sem resposta
nem saídas,
sou ave
desidratada
pelo deserto que os olhos
contemplam
De: Cartografia do abismo (2020)
* Ronaldo Cagiano
Nasceu em Cataguases MG, mora atualmente em Portugal. Autor, dentre outros,
de Dezembro indigesto (Contos, Prêmio Brasília de Produção Literária
2001), O sol nas feridas (Poesia, Finalista do Prêmio Portugal Telecom 2012) e
Eles não moram mais aqui (Contos, Prêmio Jabuti 2016).
21
Chicos
[trazes]
*Inez Andrade Paes
trazes
agarradas à tua roupa
restos de flores
e hastes de uma planta
Malmequeres azuis de Inez Andrade Paes
* Inez Andrade Paes
Nasceu em Pemba (Moçambique), é autora de O Mar que Toca em Ti
(Crônica de viagem - 2002); Paredes Abertas ao Céu (Poesia - 2011); Libreto
em três atos, constituindo a Cantoriana Marítima - Acto I Mar falante, Acto
II Transparente Luva de Água, Acto III Flores de Acanto em Marfileno Lençol
; D Estrada Vermelha (Poesia 2015); Da Eterna vontade (Poesia 2015) : À
Margem de Todos os Rostos (2017). Coordena desde 2012 o Prêmio Literário
Glória de Sant”Anna.
22
Chicos
Desolação
*Alberto Bresciani
I
Tiraram-nos o sol,
as mãos, a pele.
estão secos os campos
de trigo.
Nesta baía,
a água não vive.
Repete a última
e desoladora palavra.
II
Somos o povo
sem destino e herança
: surdos, cegos, vergados.
III
À porta do templo
os dentes dos lobos
nos raspam os ossos.
23
Chicos
Tecelão
A bisavó tramava
colchas e as desfazia
para um nome
do qual se esquecera.
Não sei bem fiar
mantas, tapetes,
mas, secreto,
conto pontos
no ar.
Isso podia
urdir escadas magirus
ao meu impossível,
mas o fato
é que a tecedura nunca cessa,
e logo se ameaça rede
e pesa ou embosca.
Ao descuido, afoga.
Com isso e cuidado,
entrelaça os nós.
linhas de cor,
reflexos falsos.
Às vezes, espeto o dedo.
em outras,
acerto o debrum,
a história do dia.
24
Chicos
Por outro lado
Há outro lado - sempre,
um outro ponto de vista.
É preciso saber disso,
não negar Whitman
ou as experiências provocadoras
de jovens poetas franceses,
ou o fato de, ao abrir a porta,
o mundo ter mudado,
ter virado de ponta-cabeça
e o seu rosto ser outro rosto,
porque um novo vinco
dobra a sua pele ou ainda
porque você acordou feliz,
mais do que ontem,
muito mais do que foi a vida toda.
E então você olhará
para o jardim deformado
(as plantas crescem,
brotam ervas,
os gatos caçam, cavam,
parecia feio ontem)
e o achará tão belo,
como aqueles parques,
onde brincava na infância.
25
Chicos
E pode acontecer até
de sentir algo como adormecer,
sem receios, um edredom,
cinto de segurança,
um proposito afinal, sim
sem fome e tristeza
influxo real, de proteção
sentir a mão de seu avô.
De: Hidroavião (2020)
* Alberto Bresciani
Nasceu no Rio de Janeiro RJ, mora em Brasília DF. Poeta, é autor entre outros
de O Incompleto movimento (2011), Paredes Abertas ao Céu ( 2011), Outras
ruminações (2014), Hiperconexões (2014), Pássaro liberto (2015), Fundamentos
de ventilação e silêncio (2019)
26
Chicos
[Saudades do mar]
*Helen Massote
Saudade do mar
No colo da manhã
Devagar
Ondeia a vista
De leve
100 mil votos
De felicidade
Perdida
Nessa vaga
Imensidão
Do olhar
* Helen Massote
Nasceu em Belo Horizonte (MG) e mora no Rio de Janeiro (RJ). Redatora, poeta
e cronista trabalha no Portal Fiocruz.
27
Chicos
*Fernando Abritta
Talvez não entenda
a lenda silenciosa em mim
(Em mim, Luiz Ruffato)
4 - A verdade
No mar calmo, navio negreiro desliza rápido movido por forte e constante vento.
Dentro leva muitos escravizados e uma rainha esposa do poderoso rei Agonglô que
morreu deixando dois sucessores: Adandozan, o regente, para reinar até quando
Guezo, o rei bebê filho de Nã Agotimé, estivesse pronto. Do alto de seu trono
Adandozan determinou e entregou aos brancos negreiros mãe de rei infante para
que nunca ninguém mais a visse e nem lembrasse da ordem dada por Guezo. Fez
Nã Agotimé rodar tronco da árvore que rouba memórias, a árvore do esquecimento.
Fez dela escrava de brancos que a levaram para que sumisse no outro lado das
águas em terras desconhecidas.
Navio negreiro desliza rápido movido por vento forte e constante. Agora as águas
são azuis ou de um verde muito escuro.
Orixás continuam a conversa iniciada em cena anterior já publicada na Chicos.
28
Chicos
XANGÔ exclama de novo – Exu está lá dentro fazendo traquinagens. Na certa Olódùmarè já
sabe dessa história. Exu não poderia deixar de ir lá contar tudo isso ao pai.
OXUM completa ─ Exu não pode fugir de seu chi, de seu destino. Olódùmarè criou ele depois
de todos nós com essa missão: vigiar as ações de todos e conferir se estamos
todos cumprindo nosso desígnio. Não há o que condenar em Exu.
Quando Olódùmarè pensou criar o Universo, criou primeiramente quatro divindades.
A primeira foi Ogum, com a função de ensinar aos homens a arte da caça e da forja,
da guerra e da vida no Aiyê, o mundo dos homens. Ogum, o civilizador.
Depois criou Obatalá que, no Orun, o céu de Olódùmarè, seria responsável pela religiosidade
e pelos códigos morais.
Após fez Ifá, senhor do segredo do oráculo, e que traria do Orun as divindades que
formariam este oráculo no Aiyê, o mundo dos homens, ligando assim céu e terra.
Daí fez Exu, para vigiar os três e ver se estavam fazendo tudo conforme as regras de
Olódùmarè.
IEMANJÁ (saindo de seu mutismo, coloca sua raiva) ─ E Exu faz isso muito bem. Se ele está
naquela casca de coco, Olódùmarè está envolvido nessa história. Verdade, Oyá ?
OYÁ confirma ─ Sim, ele continua lá. Vi homens negros, novos e velhos, vi mulheres e meninas,
vi crianças e grávidas. Todos apertados, uns dentro dos outros como em pencas
de bananas, assentados no piso duro de madeira, amassados uns contra os outros
que nem banana num cacho grande e apertado. Todos atados, travados a uma corrente
grande.
Vi que o barco carrega muitos, muitos, em seu porão, porões que são três pisos de
teto baixo e apertado. Um branco de chicote agrupando negros ainda mais, apertando
ainda mais, e tantos que se preocupam com o equilíbrio do barco, com medo de
que essa casca de coco vire e entorne todos no oceano como prendas a ti, Iemanjá.
Vi Exu lá, entre negros cegos de medo, acorrentados, mudos de desespero, amontoados
no piso sujo de madeira, no escuro do porão do navio, se mijando, se cagando,
num calor infernal.
Ah, mas vi também uns protegendo os outros, cruzando a dificuldade de diferentes
línguas, pulando muros de velhas rixas, esquecendo dores de muitas guerras, atravessando
fronteiras de ódio que grupos criam para se proteger e que acabam virando
gaiolas, prisões. Nessa fornalha, esse barquinho, essa casca de coco flutuante, um
povo diferente está sendo cozido.
29
Chicos
IEMANJÁ (agora brincando com a trança de seus cabelos, desenhando peixes na superfície
das águas, se fingindo de desinteressada) – Não ouço nada, nada vejo, a não ser minha
bela figura refletida na calma superfície azul do mar.
OYÁ continua ─ Venha, Xangô, com seu machado ferir o céu trazendo o trovão. Vamos soprar
esse barco sobre o espelho de Iemanjá. Vamos atravessar a rainha que lá está,
levar essa casquinha de coco para o outro lado do mar. Olorum deve ter o que fazer
com ela do lado de lá.
IEMANJÁ – Se Olódùmarè está envolvido nessa história, que essa casca de coco contém de
tão importante, Oyá?
XANGÔ responde ─ Olorum sabe tudo. E sabe que seus filhos passaram pela Árvore do Esquecimento.
Como se lembrarão dos oráculos de Ifá? Quem fará as ofertas e manterá
o vínculo entre os mundos de Orum e de Aiyá? Como as pontes entre os humanos
e os deuses se restabelecerão?
Olorum sabe tudo. E pergunta: quem dará nome a meus filhos? Quem vai lhes arrancar
os primeiros cabelos? Quem sussurrará em seus ouvidos seu nome para que eles
não se percam de seu povo?
Olorum sabe tudo. E sabe que esses jamais retornarão às suas aldeias, jamais se encontrarão
em seus mercados, nem passearão por suas cidades.
Olorum sabe tudo. E pergunta como sobreviverão esses sem memória, esses que perderam
as coisas e o nome das coisas. Na certa jamais irão beber o chá das folhas de
boaobá.
Olorum sabe. Mas não responde. Quem passará a eles a sabedoria dos provérbios?
Contará histórias de seus antepassados? Ensinará a eles o que é bom e o que é ruim?
Oyá, sopre um vento suave sobre esse barco para que qual ave ele siga para um ninho.
Sopre leve, Oyá. Sopre.
Comtinua...
* Fernando Abritta
Nasceu na Serra da Onça, Cataguarino, distrito de Cataguases-MG. Mora em
Juiz de Fora MG Entre outros publicou os livros umÁrvore, O Caso da Menina
Que Perdeu a Voz, e, em parceria com Joaquim branco, Uma Verde História,
além de um ebook, Relâmpago.
30
Chicos
Bird's flight
*Eduardo Dalter
Las historias que arden y fluyen por debajo
de la historia;
las voces que pugnan entre las paredes
del silencio;
y los ríos que desbordan por encima
de las calmas.
De: Desocupado y otros poemas (2019)
* Eduardo Dalter
Nasceu em Buenos Aires (Argentina) onde reside. Poeta, tradutor, crítico e
ensaísta, editou nos anos 1990 a revista Cuaderno Camin de Poesía, em que
divulgava a poesia latino-americana. Publicou seu primeiro livro Aviso de Empleo
em 1971, seus poemas e escritos foram divulgados por importantes revistas
e jornais culturais do continente.
31
Será tudo apenas mais um dia da mentira?
Chicos
*José Antonio Pereira
Emi acordou, espreguiçou longamente
feito os gatos e relaxou. Durante alguns
minutos bateu uma indecisão, coisa rara
no seu dia a dia. Levantou-se, instintivamente
arrumou a cama. Entrou no chuveiro,
simultaneamente escovou os dentes.
Toalha enrolada no corpo, parou diante do
espelho e se olhou nos olhos. – O que é
isto? Voltou ao quarto. Atirou a toalha
sobre a cama, corpo nu e novamente repetiu
lentamente tentando ouvir o eco, – O
que é isto?
Apesar de já estarmos há alguns dias
no outono, faz calor. Estica a toalha, deita
sua nudez sobre a toalha fresca, a cama
parece ótima, olha para o teto e fala, – Eu
estava no automático há tanto tempo... tudo
tão acelerado. E agora? Ainda não
aceita a ideia. A confusão aumentara mais
ainda na terça-feira de carnaval, por conta
dos felinos e gulosos olhares de uma pessoa.
Quarta-feira de cinzas acordou com o
telefone, sol a pino, esfregou os olhos, boca
bilienta, cabeça doendo, olhou para o
lado, os felinos olhos cor de mel dormem.
Não lembra seu nome. No telefone, empilharam
ligações durante a manhã inteira.
Os olhos cor de mel já tinham partido
quando o telefone toca novamente. Atende
e é atropelado por perguntas e palavrões.
O outro lado da linha, com um sonoro filha-da-puta,
rompeu a já instável relação,
bem ao cair da tarde daquela quarta-feira
de cinzas. Ressaca e discussão de relação,
nunca acabam bem. Resigna-se e num
muxoxo faz um ato de fé, – É a vida!
O minúsculo quarto e sala ficou grande.
Já sente falta do calor de um corpo
dividindo a cama ao dormir, – Até quando
vou aguentar deitar-me sem abraços e
acordar sem beijos. Solidão não é comigo.
Mensagens pipocam no uatizape. – Não
estou nem aí. Não vou entrar nisto agora,
todo mundo fala de tudo, entende de tudo,
sabe de tudo. Olha no que deu? E responde
a si mesmo convicto, – Deu merda!
Vestiu uma camiseta, anda sem propósito
entre o quarto e a sala, – Ficou grande!
Faz dias, só falo com o espelho e o interfone.
Toca o telefone, – Olá chefe, bom
dia! Apesar desta prisão domiciliar estou
bem. Entendi. Mas no meu telefone?
Não tem outra forma? Mas isto não é o
meu trabalho. Fazer o quê? Desliga,
abre o armário, escolhe uma roupa como
se fosse ao trabalho, força do hábito. –
Home office? Home office o cacete! Virei
atendente de call center. Detesto estes
32
Chicos
anglicismos. Gosto das palavras na minha
língua, adoro despi-las morfologicamente.
Volta para a sala, pega um livro de
poesias O mundo sem explicação de Ronaldo
Cagiano. – Tudo a ver com a ocasião!
A poesia me permite fugir para um
mundo paralelo. E este mundo? Foda-se
este mundo. Telefone toca, atende, – Mac
Marketing bom dia! Sim! Emi ao seu
dispor. Como Emi de quê? Pode ser,
por exemplo, Emi de Emília. Voz grossa?
Então é Emílio para você. Mal-educado!
Grosso!
Se irrita, vai para a cozinha. Decide-se
por um café. Enquanto a cafeteira aquece,
– Eu atendendo telefone de cliente.... Isto
nunca vai dar certo. O cheiro do café toma
conta da cozinha. Acalma e entra na
internet, nada de novo, as notícias se repetem
e fala olhando para o teto. – O chefe
do executivo não diz coisa com coisa. Como
é turrão! Cada dia que passa fica pior.
Estamos num macunaímico hospício onde
caducam velhos generais sem tropas. Que
notícia maluca é esta? “O governo brasileiro
declarou seu apoio à proposta norteamericana
para a crise da Venezuela. Ela
prevê a saída do poder do autoproclamado
presidente interino Juan Guaidó." O meu
país pirou.
Entrara na quaresma só, tomara uma
decisão. – Preciso dar um tempo nos meus
relacionamentos. Estava à beira de uma
crise. Um emaranhado de situações por definir,
precisava desatar todos os nós. Só
que aí, a quaresma misturou com a quarentena.
Para me ferrar mais ainda, no
meu primeiro trabalho do dia, atendo um
cliente que quer decidir, sem nunca ter me
visto, em três frases ditas por mim, o que
sou e quem eu sou. Nem bala banhada
em cera de vela de altar dá jeito neste traste.
Enquanto lava a xícara, suspira fundamente
e tenta se iludir. – Hoje é primeiro
de abril e, amanhã vai ser outro dia.
Quarentena 2020
* José Antonio Pereira
Nasceu em Cataguases MG, é coautor de A casa da Rua Alferes e outras
crônicas (2006) e autor de Fantasias de Meia Pataca (2013).
33
Qual seja a sorte sua?
Chicos
*Fernando Cesário
A grua desce e ela tenta um close sobre
tais protagonistas, ao mesmo tempo tão
estranhos e tão adjacentes, insondáveis e
familiares! Sensações estranhas e desconfortáveis!
Sob as nuvens, o céu escurece. Aventurar
um contato humano, uma abertura de
fronteiras. Talvez até mesmo um lançar de
boia. Fica ao lado dela. Como num drama
de cinema. Mas tudo parecia fugir, como as
fugas que existem nos sonhos. A mente tentava
delinear uma fisionomia para a outra
avó de Maria Ifigênia e vinha sempre um
mesmo resultado: o rosto formalizado, pele
encarquilhada... Uma criatura pura e conformada,
destituída de forças, amoldada aos
ares que respira. E uma casinha de cômodos,
numa rua abandonada à própria sorte,
de um bairro perdido no mapa urbano. Sempre
assim. E tais deduções decorriam do hábito
de Tomás mostrar-se tão fechado, tão
cheio de reservas. Raramente deixava escapar
pinceladas biográficas ou familiares: o
pai, alcoólatra, falecera quando Tomás, filho
temporão, tinha cinco anos. Lembrava-se
pouquíssimo dele a não ser de sua pele extremamente
branca, os olhos absurdamente
azuis. Os irmãos já trabalhavam na fábrica
de tecidos, João, no serão, Isabel, de turno,
seis às duas ou duas às dez da noite. Acontecia
de se encontrarem, passarem um pelo
outro entre os teares, um chegando, o outro
saindo, rendendo-se na tarefa. Um assumia
as máquinas, o outro ia para casa dormir,
cada qual dobrado sob o peso do enfado e
da desesperança. Sobreviventes! Sobreviviam
e isto é de se contar. Marília ia colando
aquelas páginas soltas do velho diário. Tomás
e suas histórias secretas. Distinguia com
precisão o canto dos pássaros; aprendera na
infância, nos limites extremos da cidadezinha,
além das cercas de arame-farpado, o
mundo interditado de várzeas e pastos, de
onde avezinhas ingênuas, atraídas pelo alpiste
ou fubá, vinham para submergirem nos
alçapões. Ó, o coleiro é assim: e imitava,
com perfeição. Canário... Trinca-ferro... Ela
ria com a brincadeira, ele a acompanhava e
acabavam abraçados, perdidos nas cores das
íris, no azul do mar, no cinza de nuvens e de
névoas. Soltou um longo suspiro. Um dia,
anos atrás, conduziu-a por trilhas no Alto da
Boa Vista. Vivamente comovido, via-o fitar
as copas das árvores, os líquenes em suas
cascas e sobre pedras, as plantas rasteiras, o
mapa dos raizames pelo chão. O cheiro de
mato. Uma sabiá-laranjeira! Ouviu?, interrogava,
cheio .de suspense, como se aquela
fosse a mais extraordinária descoberta e revelação
a ser feita. Sustava os passos diante
de uma teia de aranha interposta no caminho,
esticava o dedo quase tocando-a e recuava.
Uma pessoa sensível. Abaixava-se,
34
Chicos
evitando rompê-la, na passagem, conduzindo-a
no mesmo movimento. Envolvia o seu
pescoço, apertava-a junto a si, quando a trilha
se estreitava, segurava-a com firmeza
diante de passagens arriscadas ou escorregadias.
Apesar de tudo isso, se inquirido diretamente
acerca de algo que se confundisse
com sua história pessoal, ele, enigmático e
profundo, enclausurava-se nos seus grandes
e pesados silêncios. Por exemplo, jamais
compreendeu como ele fez para sobreviver,
onde pernoitara, em suas temporadas ali, em
Ouro Preto, onde conseguia recursos para se
manter? Como peças de quebra-cabeças, ela
precisava juntar os retalhos caídos no chão,
cerzi-los com fios duráveis, tecer a colcha
que, um dia, talvez, Maria Ifigênia quererá
erguer para ver o que havia por debaixo. E a
mãe? Em carne e osso, indagava-se, em suas
verdadeiras cores, lembraria algo em Tomás?
Comover-se-ia ao deparar os mesmos
traços fisionômicos que se perpetuassem talvez
em Maria Ifigênia? Seria trágico um tal
‘reencontro’? Ela se perguntava todas essas
coisas. Identificava, em seu interior, algo parecido
com empatia, uma empatia preexistente,
diria, uma solicitude e até mesmo –
por que não reconhecer? – certa dose de piedade.
Acima de tudo, havia a disposição de
confortá-la, acalentá-la, rodeá-la em um
abraço. Ambas, de coração aberto, poderiam
confessar suas histórias, desvelar segredos,
seguindo sob o mesmo frio. Vestida de seda!
De: Sinos Para os Suicidas
* Fernando Cesário
Nasceu no Rio de Janeiro RJ mora em Cataguases MG, é autor, entre outros,
dos romances Os algozes do sono (2000), Alma de violino Prêmio Lima Barreto
(2004) e Olhos vesgos de Maquiavel (2011).
35
Retalhos
Chicos
*José Vecchi de Carvalho
Nada podia frear a ânsia de percorrer
ruas, praças e bares. Nem mesmo a televisão
podia acalmá-lo. De um canto a outro da
casa, movia-se sem saber aonde ir ou ficar.
Sala, quarto, cozinha e sala novamente.
Mantinha a televisão ligada, enquanto olhos
e dedos esquiavam sobre a tela do smartphone,
mesmo sem se ater a nada do que
via. Ainda preso ao ritmo alucinado da normalidade,
praguejava e pensava em como
escapar do isolamento imposto pela circunstância.
Ao mesmo tempo, vinha à sua mente
o bafo azedo da realidade: ir para o trabalho
não podia, assim como não podia ir a bares,
casas de amigos, estádios de futebol, festas
e outros lugares por aí afora. Tudo de portas
fechadas. E o apartamento que antes lhe servia
apenas de dormitório, agora cercava-o
de todos os lados, o tempo todo. Apenas as
janelas lhe permitiam esticar os olhos e
abraçar a cidade.
Caminhou até à sala, os punhos cerrados
e, como um pugilista atordoado, socava
as paredes num completo desatino. Pensou
nos assuntos do trabalho, depois, em Eunice,
com quem se encontrava quase todos os
dias depois do serviço. Abriu a porta do
rack, tirou um baralho, sentou-se e começou
a brincar com as cartas. Parou por um instante,
procurou um disco que há muito não
ouvia, colocou no aparelho, desligou a TV e
voltou ao baralho. Por ali, permaneceu por
um tempo sem pensar em nada. Mas uma
música chamou sua atenção. Largou reis e
damas sobre a mesa de centro, deslizou o
olhar nas paredes brancas onde catava marcas
sempre invisíveis em dias comuns: um
risco na pintura, um prego onde um quadro
ali esteve por muitos anos, vestígios de insetos
esmagados. Sobre o rack, a fotografia da
filha tentava abraçar os retalhos do pai estilhaçado
por uma vida de trabalho, pressa e
dinheiro.
Geraldo, esmagado no sofá feito um
inseto, ligou o computador onde procurou
algum sentido nas planilhas eletrônicas. Mas
não conseguia se concentrar nos números
azuis e vermelhos que saltavam na tela. Desistiu.
Tentou garimpar na memória filmes,
livros, frases, nomes de autores, lembranças
de um tempo bom. Mas em sua bateia, apenas
fragmentos sem valor. Nada que pudesse
resultar numa colagem alegre e prazerosa.
Esperou a música acabar, fez uma pausa
no aparelho, pegou o telefone e ligou para
Natália. Nunca tinha falado tanto tempo
com a filha como dessa vez. Sentiu vontade
de abraçá-la. Respirou fundo novamente e,
dessa vez, pegou rapidamente o lenço para
conter duas gotas que lhe escorreram pelo
rosto.
36
Chicos
Num impulso, ligou a televisão e, com
o controle remoto na mão, saltava de canal
em canal como um beija-flor percorrendo
um jardim, parando aqui e ali, à procura de
alimento. As notícias também saltavam de
canal em canal, mas ao contrário do beijaflor,
mascateavam uma infinidade de produtos
e intenções que o deixavam perdido numa
trincheira bombardeada por todos os
flancos. Uma gente desesperada invadia sua
casa pelos aparelhos, enquanto uma pandemia
expunha as vísceras de um mundo esfrangalhado.
Melhor desligá-los, pensou, esquecer
essa gente, deixá-los lá fora. Desligou
a TV e o celular. Recolocou a música
em movimento. Voltou ao baralho e concluiu
o jogo. Caminhou até a cozinha, vasculhou
o armário sem saber o que procurava.
Uma compota de doces, um vidro de azeitonas,
pó de café, temperos, amendoins, vasilhas
de mantimentos, uma garrafa de vodca
pela metade, um abridor de latas, um maço
de velas, uma caixa de fósforos. Optou pelo
café e, enquanto esperava a fervura da água,
preparou um pão com manteiga como há
muito não fazia. Sentou-se à mesa e sorveu
meia hora de puro silêncio, podia-se até ouvir
a mastigação e o ruído ao bebericar o
café. Também a música escapava da sala,
esgueirava-se pelo corredor e chegava suavemente
aos seus ouvidos. Não se lembrava
da última vez que tomou um café sem pressa.
Desfez a mesa, lavou os talheres, os
pratos, a xícara, foi até o escritório, abriu a
gaveta da escrivaninha e retirou um caderno,
folheou até chegar a uma lista de filmes que
nunca teve ânimo ou gosto de assistir. Marcou
alguns na lista e voltou à sala. Novamente
a TV embaralhando-lhe os sentidos
frágeis e cada vez mais acuados. O rosto de
Natália, com um leve sorriso, queria dizer
alguma coisa, parecia estender os braços,
cortados pelo fotógrafo, e segurar suas
mãos. Lembrou-se do álbum, Gilda levou.
Um resto da formatura saltou em sua lembrança:
a placa de distinção que a filha recebeu
pelo brilhantismo no curso, Gilda emocionada,
Natália radiante, o baile, a valsa, o
uísque. A alegria. Que alegria, meu Deus!
Era tanta que transbordou. Geraldo vomitou
todo o coquetel no outro dia. A alegria também
subiu por suas tripas e desceu pelo ralo.
Sua vida, cheia de pressa e razão, voltou
ao normal. O casamento que já andava puído
como uma roupa velha, esfarrapou-se
três meses após a formatura de Natália. Pegou
o lenço novamente. Não entendia por
que de uma hora pra outra passou a derramar
lágrimas por qualquer coisinha, uma estranha
incontinência emocional.
Da janela pôde ver umas poucas pessoas
na rua. Um pequeno cortejo delirante em
gritos e gestos incompreensíveis. Pensou em
descer, juntar-se àquelas pessoas, que mal
havia? Mas lembrou-se do sermão que escutou
da filha quando disse que não aguentava
mais ficar em casa, que menina brava, não
sai do meu pé. Lembrou-se também de Eunice
e sua recusa em sair para encontrá-lo.
Fechou a janela, voltou ao escritório, correu
os olhos pela estante, puxou um livro e colocou
sobre a mesa. Olhou o relógio antes
de folgar a pulseira e tirá-lo do braço. Muito
37
Chicos
cedo para jantar, pensou. De volta à sala,
ligou a TV e nada de bom. Um louco disparava
ofensas e, num grito delirante, declarava
guerra contra moinhos de vento. Geraldo
pensou no que havia feito. Onde estava com
a cabeça quando...? Natália bem que me
alertou e não dei ouvido. Que horror!
Abriu o computador. Números horríveis
saltavam insistentes. Balançou a cabeça num
gesto de objeção. Desligou. Olhou-se no espelho,
o cenho insistindo em negar alguma
coisa que lhe vinha à mente. O que foi que
fiz? Que horror!
“Geraldo Viramundo parecia ter saído
do mundo”. Do seu mundo! Fechou a cortina
e sorriu para si mesmo, meio sem graça,
com uma dose de remorso, talvez, mesmo
assim sorriu pensando na frase que lembrou
ao pegar o livro. Então, conferiu um título
na lista de filmes, puxou-o de dentro do
rack, colocou no aparelho, acomodou-se no
sofá e apagou a luz.
* José Vecchi de Carvalho
Nasceu em Cataguases, após morar por muito tempo em Viçosa vive
hoje em Paula Candido todas cidades mineiras. Coautor de A casa da
Rua Alferes e outras crônicas (2006), e autor de Duas Cruzes (contos
2018) e Contradança (contos 2020)
38
Chicos
Como um pássaro
*Emerson Teixeira Cardoso
Precipitou-se para todas as possibilidades
do precipício. O corpo abandonado entrega-se à
força inexorável, irresistível, do espírito e voa. O
bom senso que se dane nunca acompanhará o
seu desejo de superação. Do outro lado da vida
é que estará realmente o sal da vida. Para os fracos
só resta o espetáculo do naufrágio. Pensar e
agir é a mesma coisa. Abster-se de toda a noção
de racionalidade. O que virá no instante seguinte
ninguém saberá. Ninguém estará mais preocupado
com o segredo da vida. Atenção! A hora é
cia brotará de todas as consciências e inconsciências.
Juvenilidades nascerão inspiradas nas
anêmolas, planta que nasce só nos sítios fustigados
pelas ásperas ventanias. Organismos de movimentos
múltiplos e fantásticos gerarão força
descomunal. Nossos sonhos se igualarão àqueles
do Olimpo mítico, santas serão nossas paixões.
Trabalharemos a semana toda e não descansaremos
um só dia. Nossa voz será a única ouvida
nesse e em outros mundos. Todos se admirarão
de nossa cultura clássica ou neoclássica, não importa
nessas alturas a exata classificação. O nos-
chegada. Hora de quê?
Não importa de que
so saber ciclópico superará todas as enciclopédias
mesmo as virtuais. Sejam já todos bemvindos
ao nosso solene banquete. Os incrédulos
compreenderão. “Tássala! Tássala! Tássala! ” E
mergulharão também no mar das esperanças e
sentirão o estremecimento de um gozo estranho,
misterioso. Fim de nossa aventura. Vitória de
nossa legião. Evoé Dionísio!
nem para quê; importa a chegada. Aos seus lugares!
Preparar! Já!!! Força incomensurável vigorará,
consequência da união de todas as forças
já existentes. Energia hipotética, elétrica será
capaz de gerar atritos impactantes. Engendrar
destruições nunca imaginadas, mas possíveis
nesse plano de capacidades absurdas. Consciên-
* Emerson Teixeira Cardoso
Nasceu em Cataguases MG, é autor de Símiles (2001) poesia, coautor de A casa
da Rua Alferes e outras crônicas (2006). Traduziu O retorno do nativo de Thomas
Herdy. Sempre ativo em publicações literárias. Iniciou-se em Estilete (1967),
mimeografado, editor/fundador do Delirium Tremens (1983) e Trem Azul
(1997).
39
Chicos
A Donzela de Orléans e a Donzela dos Gerais
*Vera Lúcia de Oliveira
Disse Joana D’Arc que quando acabasse
a luta de expulsão dos ingleses da França ela
voltaria a se vestir de mulher. Não teve tempo.
Disse, perante o tribunal da Igreja, que
Deus ordenara que ela se vestisse assim, como
um soldado.
Estaria Diadorim pensando em revelar-se
mulher a Riobaldo depois da luta contra Hermógenes?
Também não teve tempo. Diadorim,
personagem imortalizada em Grande sertão:
veredas (1956), de Guimarães Rosa, foi
criada como menino, pois o pai não teve filho
que o sucedesse. Ela, que se chamava Maria
Deodorina da Fé Bettancourt Marins – sobrenome
francês como Joana –, seguia a ordem
do pai. E Deodorina/Diadorim foi também o
jagunço Reinaldo. Rei da beleza, da força e da
coragem. Reinou no coração de Riobaldo.
Joana, a francesa, e Deodorina, a mineira,
se vestiram como os homens para andar
entre eles, como seus pares. No entanto, a
identidade de Joana era conhecida, e era chamada
de “a Donzela de Orléans”, enquanto a
identidade de Diadorim era desconhecida de
todos. Ambas cortaram os cabelos para melhor
caracterizar a aparência masculina.
Joana foi condenada a comer o pão da
dor e a beber a água da angústia. Tinha visões
do arcanjo Miguel, de Santa Margarida e de
Santa Catarina. Como Joana, Diadorim era
virgem e lutou destemidamente ao lado dos
homens na batalha que a levaria à morte. Joana
ardeu no fogo da crueldade da própria
Igreja naqueles idos de 1431, aos dezenove
anos de idade. Lutou com fervor religioso e
patriótico para expulsar os ingleses, naquela
que ficou conhecida como a Guerra dos Cem
Anos. Fé cega, espada afiada. Diadorim lutou
com coragem, raiva e desejo de vingar o pai,
Joca Ramiro, pois havia jurado vingança a
Hermógenes, o assassino. Faca amolada.
Joana, a Donzela de Orléans, e Diadorim,
a Donzela dos Gerais, usavam roupas
masculinas para preservar a castidade e evitar
serem molestadas pelos homens, guerreiros
ou jagunços. As roupas masculinas de Joana
incomodavam os clérigos e acirraram debates
teológicos. Usava calça, elmo e armadura no
peito. Diadorim, calça, chapéu e gibão de
couro. Ambas morreram no meio da rua: Joana,
queimada viva na Praça do Mercado, em
Rouen; Diadorim, no meio da rua no arraial
do Paredão, em Minas. Joana, na Idade Média
francesa; Diadorim, pelos idos de 1800, no
sertão profundo dos Gerais de leis medievais:
olho por olho, dente por dente. Sertão com
suas próprias leis e códigos de honra. Joana
só tinha amor a Deus e à França; Diadorim,
que negou o seu amor a Riobaldo, traindo a si
40
Chicos
mesma, era antes de tudo uma guerreira, como
Joana. Ambas de olhos verdes: cor da esperança,
os de Joana; os de Diadorim,
“buritizais levados de verde”...
A Donzela de Orléans, pura, inocente,
mas bélica; a Donzela dos Gerais, bela e bélica,
anjo vingador. Joana, santa guerreira, foi
queimada viva, como herege, “abandonada
por seu rei e pelo seu povo, salvos por ela”,
como disse Michelet. E, queimado, o seu corpo
desapareceu nas chamas que subiram ao
céu; mas seu verdadeiro túmulo está hoje no
coração dos franceses, da pátria que ela ajudou
a construir, pátria “que nasceu do coração
de uma mulher”, acrescentou Michelet.
Diadorim, revelada Deodorina, donzela de
grande beleza e perfeição, foi enterrada, a pedido
de Riobaldo, numa vereda onde ninguém
pudesse saber ou achar, guardada para sempre
no seu coração, seu segredo, e guardada
também no coração dos leitores do Rosa, brasileiros
e estrangeiros.
Joana não sabia ler nem escrever a língua
dos homens, mas sabia ler as palavras de
Deus. Ouvia Sua voz. Diadorim sabia ler? Leu
o amor de Ribaldo?
A camponesa Joana, histórica, tornou-se
Santa Joana D’Arc, em 1920. A sertaneja Diadorim,
criação rosiana, de 1956, encarnou o
mito de Joana, a francesa, e tornou-se personagem
universal da literatura. Duas heroínas,
dois destinos, dois perfumes de mulher.
Artist Mimmo Frassineti; "Jeanne
D'Arc"
* Vera Lúcia de Oliveira
Nasceu em Luziânia GO, mora em Brasília DF. É graduada em Língua Portuguesa
e respectivas literaturas pela Universidade de Brasília - UnB, onde também
se especializou em Literatura Brasileira e em Teoria Psicanalítica no Uni-
CEUB. Tem se dedicado à escrita de artigos, resenhas e ensaios publicados
em jornais de Brasília, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte e Ceará. É autora
do livro O beijo da mãe e outros ensaios de Literatura e Psicanálise.
41
Criaturas do mar
Chicos
*Raquel Naveira
Há em mim uma veia lusitana que faz
com que me sinta uma criatura vinda do mar.
Talvez porque tudo sai do mar e a ele retorna.
Talvez porque o mar esteja entre mim e Deus
neste século. Talvez porque atravesso o mar
da vida em um navio frágil.
Sou fascinada pelas viagens de descoberta
de Vasco da Gama, Cristóvão Colombo,
Fernão de Magalhães. Os primeiros exploradores
que enfrentaram os terrores do oceano
ensanguentado, as tempestades, o fogo
dos raios e trovões, as fúrias do vento, as ondas
agitadas. A ânsia de encontrar novas terras,
riquezas, oportunidades; novos problemas
e maneiras de pensar. O navegador não sabia
para onde ia, nem tinha esperança de voltar.
O importante era desafiar o desconhecido,
com iniciativa e coragem. Densos nevoeiros
infecciosos escondiam recifes e ilhas. Shakespeare
comparou as brumas a uma “suja e
contagiosa escuridão no ar.”
Monstros marinhos eram para os exploradores
uma realidade. Estavam nos desenhos
dos mapas; nos bestiários medievais, um tipo
de literatura comum entre os monges, que
descrevia as bestas fantásticas do mundo animal,
que povoavam a imaginação dos marinheiros.
Esses monstros de grandes bocas,
dragões com dentes e caudas, rondavam ao
largo e se alimentavam dos mastros do navio,
esmigalhavam a galera, os canhões, os barris
de vinho, os botes a remo. Formavam-se depois
redemoinhos. Baleias e tripulantes afogavam-se
aos gritos.
A poetisa argentina, Alfonsina Storni
(1892-1938), emigrou com a família da Suíça
para Santa Fé, onde modestamente trabalhou
como costureira, operária, atriz e professora.
Quando soube que era portadora de um câncer
de mama, suicidou-se, lançando-se ao mar
de um penhasco. Tinha 46 anos. A tragédia
foi registrada na canção “Alfonsina Y El
Mar”, gravada na voz tonitruante de Mercedes
Sosa (1935-2009). Alfonsina, com sua
solidão, foi buscar poemas novos nas espumas
de sal. Angústias e dores a calaram. Ela
se recostou numa rocha forrada de conchas.
Cinco sereias a levaram por caminhos de algas
e de corais. Cavalos-marinhos fizeram
uma ronda a seu lado com outros habitantes
da água como enguias, lagostas, golfinhos,
esses delfins que conhecem uma linguagem
cifrada de códigos ancestrais. Alfonsina vestiu
-se de mar...
42
Chicos
Também eu mergulhei em águas abissais
profundas do oceano do meu inconsciente.
Aprendi a sobreviver em condições difíceis,
extremas, com pouco oxigênio, muita pressão,
nua e com frio. Meu corpo se tornou elástico.
Meu esqueleto ficou leve, quebrado e minha
carne gelatinosa. Coloquei uma haste de luz
na ponta da minha cabeça como um espinho.
Meus olhos se tornaram enormes como lâmpadas.
Na treva verde, vejo esponjas, peixes
de vidro, ogros com longos caninos, plânctons,
caranguejos gigantes, pentes de águasvivas,
filamentos de seres clonados e chumbados
em colônias luminescentes.
Requer esforço voltar à tona, à superfície
do planeta. Sair dessa viagem, dessa vertigem.
Começo devagar a seguir os bandos de pássaros-contramestres
no céu. Observo boiarem
cascas de palmeiras, galhos de árvore. Saio
aos poucos daquele pântano inavegável e
cheio de monstros. Já não estou à mercê dos
elementos e dos perigos do mar, como o
apóstolo Paulo, que sofreu naufrágios durante
dias e noites no abismo. Os perigos foram
afastados por um clarão de eletricidade que
me salvou. Posso discernir entre instinto e intelecto.
Nado no nada. Contra a corrente. Sou
criatura do mar.
Caravelas de Kyrylo Bondarenko
* Raquel Naveira
Nasceu em Campo Grande MS, formada em Direito e Letras, doutoranda em
Literatura Portuguesa na USP, é autora de vários livros, entre eles: Abadia
(1996), Casa de tecla (1999) indicados ao Prêmio Jabuti de Poesia
43
Armando Leone
Chicos
*Enzo Menta
Aprendi a ler antes de entrar para a escola.
Duas irmãs mais velhas, com pouca diferença de
idade e eu a bisbilhotar os seus estudos. Meu
pai, quando voltava de sua ronda após o jantar,
trazia revistinhas em quadrinhos para nós. Walt
Disney foi minha iniciação. Ele lia vagarosamente
e eu ia juntando as sílabas. Era o prazer do
desenrolar da história com o aprendizado da leitura.
A banca de jornais do Seu Armando era o
meu paraíso. As revistinhas enfileiradas nas prateleiras,
cada capa colorida era um convite ao
deleite que só se comparava com a lista dos sabores
na sorveteria do Tuninho, algumas lojas
adiante. A sede era muita e o dinheiro era pouco.
Uma ou outra, na cota do mês, não satisfazia
o apetite por novas histórias e novas leituras.
A banca era imensa. Uma loja profunda
com a frente ampla localizada na estação. Meu
pai era frequentador. Ele, Constantino Papadopoulos,
o grego dono do comércio ao lado e
mais alguns ficavam defronte ao balcão, na conversa
com Seu Armando à noite. Nós meninos
ziguezagueávamos pelas bancas e prateleiras. Às
vezes folheávamos uma revista ou outra, que
escapava ao seu olhar, entretido na conversa. As
revistas sem capa ficavam no fundo. Não vendidas,
passavam por esse procedimento. Ele arrancava
as capas, as devolvia para a editora e doava
as revistas. Eram nosso objeto de cobiça. Depois
da aula passávamos pela banca, e pedíamos, Seu
Armando, pode pegar revista sem capa? Ele respondia,
com o indicador em riste, uma só. Na
esperteza de menino, colocávamos uma dentro
da outra e passávamos por sua inspeção. Achávamos
que o enganava, ele fingia que não via.
Dependendo do seu humor, confiscava o contrabando.
Eu disse uma só!
Mais tarde abriu uma filial na rodoviária. Foi
44
Chicos
meu júbilo. Mais perto de casa e com a Lena
tomando conta. Suas irmãs eram madrinhas minha
e de minha irmã, famílias amigas. Eu ia quase
todos os dias. Folheava as revistas e ela, sentada
por trás do balcão, erguia os olhos rentes a
ele. Eu colocava a revista de volta na prateleira.
Ela afundava os olhos por baixo do balcão, eu
pegava a revista de volta. Ficamos tempos nesse
jogo de gato e rato. Um dia, eu entretido na leitura,
ela veio silenciosamente e já perto de mim
disse baixinho, daqui a pouco Seu Armando chega,
ele vem todos os dias às dez. Se te pegar
lendo revistas, vai zangar comigo. Dali pra frente
ficou nosso acordo tácito. Antes das dez eu
limpava o trecho. Ele chegava, na sua Vemaguet
marron, pela rua do Pomba e estacionava. Trazia
pacotes de jornais e revistas, recolhia outras,
conferia a féria do dia anterior. Me esbaldei em
Mickey, Pateta, Pato Donald, Mônica, Cascão e
Cebolinha. Mais tarde os gostos foram mudando.
Tinha a revista Pop, que era a informação
sobre rock, música, praia, surf, a cultura americana
demarcando seu território. Com os hormônios
e neurônios vieram as Playboy, Status – na
época não vinham lacradas - e Sandra Bréa foi
minha musa e culpada das febres noturnas.
Seu Armando era um homem trabalhador.
quando ela fechava. Abria nos sábados até à
noite e nos domingos pela manhã. Assim como
meu pai, imigrante que chegou com uma mão
na frente, outra atrás e com il nostro spirito de
sacrificio, criou a família, fez patrimônio. Meu
pai era da Campania, ele da Calábria. Aqui, no
mesmo barco, superaram as diferenças regionais,
que na Itália são marcantes. Observei na época
em que estudava no Rio de Janeiro, o número de
calabreses donos de bancas de jornais. Um amigo,
afeiçoado a teorias da conspiração, me disse
que era a máfia calabresa que dominava o ramo.
Citava Chinaglia, grande distribuidora de revistas.
Fico com a teoria da imigração em cadeia,
onde um parente mais bem sucedido chama e
acolhe o outro.
Meu pai era torcedor do Fluminense. Os
italianos da época tinham preferência pelo Cruzeiro,
Fluminense ou Palmeiras. Armando Leone
era flamenguista. Um dia, ele com jeito perguntou:
- Armando, todo italiano é cruzeirense,
fluminense ou palmeirense. Por que você é flamenguista?
Ele impávido respondeu:
- Quando os outros times ganham, eu vendo
um jornal ou outro. Quando o Flamengo ganha,
eu vendo todos.
Ficava na banca de manhã, à tarde e à noite
* Enzo Menta
Nasceu em Cataguases MG, pós-graduado em estudos literários - UFJF,
odontólogo, músico, compositor, contista e cronista. Mantem uma página
no Facebook Crônicas & Agudas
45
Antiga estampa
Chicos
*Danilo Gomes
“A noite não estava muito escura, mas não
havia lua. Viam-se algumas estrelas, mas não
muitas. Quando chegaram ao fim da alameda,
viram o espectro.” ( Daniel Defoe, “O adivinho
na feira de Bristol”, no livro “Contos de fantasmas.”)
Há tempos, de repente, no meio da noite
de sábado, começo da madrugada, com minha
cerveja e meu charuto Suerdieck (da Bahia), lendo
uma crônica de Lourenço Diaféria (o grande
cronista de São Paulo), me veio uma súbita, nostálgica
vontade de comprar um chapéu na
“talvez mais antiga ( 1914) chapelaria em atividade
em São Paulo, a Chapelaria Paulista, na
Quintino Bocaiúva, 94, na veia do Centro Velho.”
São, como se nota, palavras do consagrado
cronista Lourenço Diaféria, com quem conversei
uma vez, por telefone, em São Paulo, ele com
uma gripe danada.
Por falar nisso, São Paulo sempre contou
com numerosos grandes cronistas. E me limito à
capital. Menciono apenas o poeta Vicente de
Carvalho, Jacob Penteado, José Agudo, Sylvio
Floreal e José Americano, senão a crônica vira
relatório. Além do Lourenço Diaféria, ali temos
os sempre nostálgicos Frederico Branco e Heródoto
Barbeiro, mais os mineiros lá radicados e
vivenciando a saga e a mitologia da cidade, como
Humberto Werneck e Ivan Ângelo.
Além de cultor da crônica, sou adepto de
chapéus e de bengalas. Nestes tempos de avanços
tecnológicos vertiginosos, me sinto um homem
de décadas passadas, quase de volta à época
da vacina obrigatória, da peste bubônica e
do cinema mudo, com Buster Keaton e Carlitos,
mais O Gordo e o Magro e Os Três Patetas, e
nossos Grande Otelo e Oscarito estreando e estrelando.
No mínimo – e é verdade- , sou do
tempo da tabuada, do bilboquê, do emplastro
Sabiá, do Biotônico Fontoura, da Emulsão de
Scott, das “miraculosas” pílulas de vida do Dr.
Ross, do óleo de fígado de bacalhau, do misterioso
linimento de Sloan, do horrível óleo de
rícino, da galocha, da capa espanhola azulona e
sem mangas, da japona também azulona e do
prestante Almanaque Capivarol, com ingênuas
charadas e cartas enigmáticas.
Como se deduz, já estou meio gasto, meio
sambado, com problemas na coluna cervical, um
pouco de artrose e muita saudade dos tempos
46
Chicos
que se foram.
Vim ao mundo numa cidade antiga. De
tanto ali ver, na minha meninice ( e depois em
Belo Horizonte), homens de bengalas, chapéus e
guarda-chuvas ( mesmo em dias de sol) , torneime
um deles, por mimetismo meio nostálgico,
meio melancólico.
Comprando mais um chapéu, dessa vez na
tradicional Chapelaria Paulista, talvez eu quisesse
repetir meu pai Daniel, que usava chapéus
das marcas (ainda não se dizia griffe) Cury ,
Prada e Ramenzoni. Para falar a verdade, não
dispenso nem o lenço branco no bolsinho do
paletó, o que era moda antigamente.
Às vésperas do ano 2000, tempos de informática
( que já se delineou como robótica e cibernética),
do raio laser, da internet, de aventuras
espaciais que Júlio Verne entressonhou, sou,
na verdade, um homem atrelado à década de
1940, 1950, saudoso dos bondes, dos footings
nos jardins e nas avenidas, das retretas de bandas
de música nas praças arborizadas a capricho,
do popular cine-grátis, do perfume das damas-da
-noite nos jardins das casas belle-époque de Belo
Horizonte, antiga Curral del Rey. Podem me
chamar de velhusco. Não me avexo, não.
À noite, o ronceiro rumor do bonde Pernambuco
deslizando sob a vigilância dos guardas-noturnos,
no então tranquilo Bairro dos Funcionários,
que virou Savassi, por causa da ótima
padaria dos três simpáticos irmãos Savassi. O
cheiro bom do pão fresco era inebriante. Grande
era a colônia italiana em Belo Horizonte, berço
do time de futebol Palestra Italia, depois Cruzeiro.
Conheci minhas avós Sinhá ( materna) e
Maricota ( paterna), mulheres do século passado,
mães de tantos filhos e filhas, heroínas de tantos
desassossegos. O avô materno não conheci:
morreu em 1928; o outro, recatado, foi apenas
uma sombra me olhando do alto da escada de
seu sobrado marianense: morreria em 1947.
Sou um tipo antigo, com meu chapéu e
minha bengala rústica, sem castão de prata.
Meus mortos me circundam o tempo todo, seus
rostos vão se esmaecendo com o esgarçar do
tempo.
E agora , com essa conversa retrô, passando
três dias em Belo Horizonte, me bateu uma
vontade de ir beber cerveja no antigo Bar do
Izidoro , na Praça da Igreja da Boa Viagem, bar
que conheço desde eu rapazote. Será uma volta
ao passado, uma breve viagem no tempo. O dono,
por certo já enrugado, cabelos bem brancos
e um pano, uma toalha , no braço, ainda se
lembrará de mim, nas primeiras calças compridas,
o menino-moço da Rua dos Inconfidentes,
1041, casa de minha rígida avó Sinhá e meu
afetuoso tio Aldo, vulgo Laspinho? Ainda estará
lá, comandando seu velho barco boêmio?
Depois de tantos anos? Eu frequentemente ia lá
buscar cervejas para tio Laspinho, freguês de
caderno. Levava ao bar uma sacola com cascos
escuros.
Adentro o antigo Bar do Izidoro. Sou um
senhor de meia-idade, de chapéu cinzento Ramenzoni.
Pai de dois filhos, morador de Brasília
47
Chicos
O bar não perdeu de todo seu ar antigo, senão
perde o charme. Ainda é um reduto de boêmios.
Peço uma cerveja casco-escuro. No relógio
da Boa Viagem, o carrilhão anuncia: são apenas
9 da noite. Uma noite clara, sem lua e de poucas
bolinhos de bacalhau de outrora, à espera do
azeite.…
Encosto a bengala no espaldar da cadeira
ao lado. Contrariando o manual de civilidade e
boas maneiras e a tradição do bom-tom , mantenho
na cabeça o velho chapéu Ramenzoni. É
como se o antigo menino estivesse em casa.
Do ar puro que vem de fora, do sossego da praça,
chega um cheiro levemente adocicado de
dama-da-noite…
Peço outra cerveja. Dessa vez, o próprio
Izidoro vem me servir. Olho-o com um certo espanto.
Há quanto tempo não o vejo! Está pálido,
com ar de cansado. O tempo passa para todos e
sobre todos. Mas me olha paternalmente, como
se me dissesse: “Ah, o sobrinho do Laspinho !”.
Há quantos anos não o vejo, meu Deus! Pela
porta da frente, entra um frio tão frio que parece
não ser deste mundo…Mas é apenas princípio
de maio. Izidoro destampa a garrafa, com
um discreto sorriso. Como está pálido ! Izidoro
Soveral, me lembro do sobrenome. Agradeço.
Tomo os primeiros goles. A friagem que vem
estrelas. O viajante
chegar, devagarinho,
do tempo como que vê
o primeiro fantasma da
de fora parece penetrar a alma do antigo rapazote.
Sinto um arrepio de cerveja muito gelada…O
noite. São fantasmas mansos, já se foram há um
bom tempo. Talvez ainda sintam uma sede da
pinga e da cerveja e uma saudade daqueles
velho Izidoro, homem educado, faz uma leve
reverência, em cumprimento. E, antes que eu
puxasse conversa, se vai, por certo, rumo ao
inesquecíveis torresmos
e daqueles deliciosos
balcão, ao seu posto de comando, junto à grande
caixa registradora de fabricação inglesa. Num
interlúdio de alguns segundos, olhei para o balcão.
Lá já não estava a vetusta e imponente
caixa registradora. O que havia era um computador,
com um homem quarentão no comando.
Pouco depois, ouvi o carrilhão da igreja de
aspecto gótico anunciando as 10 horas.
Sim, era uma noite não muito escura,
sem lua e com poucas estrelas, como no
conto de Daniel Defoe. Aos poucos, instalouse
no Bar do Izidoro um frio que foi aumentando,
quase fantasmagórico, vindo não sei
de onde. Talvez do antigo balcão. Talvez do
grande jardim da Igreja da Boa Viagem, em
frente. Foi bom ter trazido o velho chapéu.
Chamei pelo garçom. Pedi a última cerveja,
que veio gelada de arrepiar…
* Danilo Gomes
Nasceu em Mariana MG, mora em Brasília DF. É jornalista e escritor.
Autor, dentre outros, de Uma Rua Chamada Ouvidor, Água do Catete,
Antigos Cafés do Rio de Janeiro e Em Torno de Rubem Braga
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Um tempo em que nada mais surpreende
Chicos
*Lourenço Cazarré
A leitura de A Uruguaia, de Pedro Mairal,
se estende por três ou quatro horas, que
correm rápidas porque se trata de obra divertida
e de muitas peripécias. Já a ação do livro
se estende por duas dezenas de longas
horas. Começa de manhã bem cedo, quando
o narrador deixa Buenos Aires e se dirige a
Montevidéu onde pensa encontrar e levar ao
leito uma bela mulher e sacar 15 mil dólares.
E só acaba quando ele, literalmente alquebrado,
retorna ao lar.
Sigamos o dinheiro. Lucas, o narrador,
é um argentino. Ou seja, habita um país que
praticamente não tem moeda há muito. Se
possível, todos os argentinos abandonariam
seu peso pelo dólar num estalar de dedos.
“Era a época do dólar blue, do dólar soja, do
dólar turista, do dólar para compra e venda
de imóveis, do dólar oficial, do dólar futuro”,
diz o narrador/escritor. Recebendo no
Uruguai o dinheiro de direitos autorais, vindos
da Espanha e da Colômbia, ele conseguiria
o dobro do que na sua terra. O sistema
cambial argentino, segundo Lucas, funcionava
como se “em pleno verão você fosse
pago em gelo e proibissem geladeiras”.
O outro motivo, igualmente nobre, é
encontrar uma bela garota com que convivera
em um convescote literário praiano, no
verão anterior, e, se possível - em termos bíblicos
- conhecê-la. “O festival estava repleto
de garotos bem-nascidos brincando de ser
mendigos por um mês. Loiros esfarrapados,
rastafáris de universidade particular, semimúsicos,
artesãos temporários, malabaristas full
time”. Quem é do meio conhece bem a fauna!
O livro é um longo monólogo do narrador/marido,
dirigido à esposa, relatando sua
odisseia montevideana. Mas o leitor, se quiser,
pode até imaginar que está lendo uma
carta, o que, talvez, seja mesmo mais adequado.
Em meio a descrição dos muitos
acontecimentos, surge a vida familiar. As
rusgas com a mulher, a trabalheira com a
criação do filho pequeno e a vontade de
49
Chicos
viver da escrita em um país periférico e empobrecido.
Mas tudo isso é redigido com leveza
e bom humor. Não dê bola para o que
está escrito na contracapa. Lá diz que o
livro nos ensina “como devemos enfrentar as
promessas que fazemos e não cumprimos, as
diferenças entre aquilo que somos e o que
realmente gostaríamos de ser”. Esqueça!
Bons livros não ensinam absolutamente nada.
A verdade é que A uruguaia prende a
atenção do leitor não só pelo texto ágil e
brincalhão. Há condimentos meio policialescos,
digamos. Há ganchos de suspense. Será
que Lucas vai mesmo unir-se à bela garota
de ascendência basca? Será que retornará à
sua Tróia levando o cinturão em que carrega
o tesouro ianque? Há até mesmo o condimento
da violência. Que não é, claro, uma
violência tipo brasileira: corpos queimando
dentro de um micro-ondas improvisado com
pneus ou sendo retalhados por rajadas de
AK 45. Não! É violência uruguaia. É algo
que no Brasil não renderia nem B.O.
O dia é movimentado em Montevidéu.
Quem conhece a bela capital da nossa antiga
província cisplatina vai curtir bastante. A larga
rambla à beira do rio-mar, as ruas arborizadas
e silenciosas, bares e restaurantes com
terrazas e o estrambótico Palácio Salvo. Surge
até uma banda do roque só de mulheres,
a Cita rosa (brincadeira com o nome do maior
cantor uruguaio de todos os tempos, Alfredo
Zitarrosa).
Os argentinos, diz o escritor, gostam de pensar
que o Uruguai é uma espécie de província
deles, mas na outra margem do rio. Não
é. É uma nação em que as notas de dinheiro
ostentam fotos de poetas e pintores. O Uruguai
é um pequeno país, tradicionalmente
dirigido por políticos honestos, entalado entre
duas grandes nações frequentemente comandadas
por pessoas que amam outro tipo
de valores.
O narrador é um sujeito de meia idade que
vive de bicos em torno da farinha pouca da
literatura - feiras, seminários e aulas de escrita
criativa. É alguém de boa extração. É um
argentino tipo exportação: Tem todos os
dentes no lugar e ostenta uma musculatura
cevada em clubes e academias. “O dinheiro
estava na minha infância, me cercava, me
cobria de roupa boa, quadras de um bairro
seguro na capital, alambrados de fim de semana,
cercas de clubes, ligustros bem podados,
barreiras que se erguiam para eu passar.
E depois eu me dera o luxo de dar uma de
desajustado, de artista sem vocação empresarial,
de boêmio. Era um luxo a mais. O rebento
sensível da alta burguesia”.
50
Chicos
Como nos é apresentada a mocinha, Magalí
Guerra, pelo narrador indeciso? “Era uma
patricinha meio safada ou talvez meio vagal?
Dava uma de suburbana ou era mesmo?”.
Era linda, mas ele não sabe explicar o motivo.
Talvez pelo nariz. “Era um desses narizes
da banda Oriental, bem postos, com uma leve
inclinação, ponte alta, como o erre do nome
dela, o desafio ETA de sua linhagem basca
no nariz... E os olhões verdes, a boca do
beijo ininterrupto?”
O final do livro nos guarda duas grandes surpresas
amorosas. Os cínicos podem, e certamente
farão isso, até dizer que se trata de
concessões à modernidade comportamental.
Meras concessões a um tempo em que nada
* Lourenço Cazarré
Nasceu em Pelotas RS, mora em Brasília DF. Jornalista, teatrólogo, escritor e autor de
mais de 40 livros, entre novelas juvenis, livros de contos e romances. Recebeu mais de
vinte prêmios literários de âmbito nacional, tendo vencido por duas vezes o maior certame
literário dos anos 80, a Bienal Nestlé, nas categorias romance, com O Calidoscópio
e a Ampulheta (1982), e contos, com Enfeitiçados Todos Nós (1984). Um de seus livros
para jovens, Nadando contra a Morte, recebeu o Prêmio Jabuti, em 1998, e o selo de
“Altamente Recomendável para Jovens”, da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil
(FNLIJ).
51
Chicos
Acorda, Brasil: Eis a língua-viva de Eugênia Sereno
*Eltânia André
Nasci em 1966, ano da publicação de “O
Pássaro da escuridão”, de Eugênia Sereno, vencedor
do Prêmio Jabuti na categoria Literatura-
Adulta-Autor-Revelação ao lado de grandes nomes
como: Lygia Fagundes Telles, Érico Veríssimo,
Antonio Candido. No mesmo ano, na Suécia,
Nelly Sachs, escritora judia/alemã, era a
quinta mulher a receber o Prêmio Nobel de Literatura
criado em 1901. Até aqui, nenhuma cadeira
da Academia Brasileira de Letras havia sido
ocupada por mulheres, sendo Raquel de Queiroz
eleita no mesmo mês em que eu faria onze anos
de idade.
Benedita de Rezende Graciotti adotou o
nome de Eugênia Sereno para apresentar-se como
escritora. Não se tem conhecimento dos motivos
que a levaram abdicar de sua identidade
mas, a história nos aponta que nos séculos XVIII
e XIX, escritoras de diversas nacionalidades se
renderam ao anonimato ou ao uso de pseudônimos,
sobretudo, masculinos, para as publicações
de suas obras. Diferente dos homens, as mulheres
recorreram a essa estratégia para conseguirem
entrar na cena literária, esse universo culturalmente
de privilégio masculino. Maria Firmina
dos Reis, escritora negra, precursora da temática
abolicionista e autora do romance
“Úrsula” (1859), também não assinou a sua obra
e se identificou como “uma maranhense”. Já no
final do século XX, por motivos mercadológicos,
a cultuada autora de “Harry Potter”, Joanne, foi
aconselhada a utilizar uma assinatura mais enigmática
para não deixar claro ao público masculino
o gênero do autor. Seguindo a tradição dos
romances policiais, ela adotou o nome Robert
Galbraith para produzir e avançar em uma nova
série de crime e suspense. “Um teto todo seu”,
livro de ensaio, de Virginia Woolf, que discorre
sobre essa problemática, conclui que a mulher
precisaria de “um teto todo seu”, ao menos um
quarto com chave para a concentração e, ainda
mais de independência financeira para sua completa
libertação e dedicação ao exercício criativo
e intelectual. Para finalizar o meu voo rasante
pela trajetória da produção literária feita por mulheres,
como a de Eugênia Sereno, destaco os
importantíssimos trabalhos de pesquisa feito pela
Nelly Novaes Coelho publicados em dois dicionários
“A Literatura Feminina no Brasil Contemporâneo”
(1993) e “Dicionário Crítico de Escritoras
Brasileiras” (2002 e 2011) - com o registro
de 1401 escritoras. Teresa Margarida da Silva
e Orta inaugura as primeiras páginas do Dicionário
com o seu "Aventuras de Diófanes” (1752),
considerada nas pesquisas de Nelly como o primeiro
romance das Américas e da literatura brasileira.
“O pássaro da escuridão” foi seu único livro
publicado, lançado pela Editora José Olympio.
O Brasil se surpreendeu ao constatar que
tínhamos alguém da dimensão estética de Eugênia
Sereno. Muitos críticos literários, estudiosos,
intelectuais e escritores da época demonstraram
espanto seguido de reconhecimento e admiração.
Sim, estamos diante de uma obra ontológica.
Contudo, hoje, se perguntarmos por ela,
poucos são os que afirmarão conhecê-la. Infelizmente,
escassos são os registros sobre o seu percurso
biográfico-literário e estudos acadêmicos
sobre a sua obra, apesar de conter várias janelas
que poderiam se abrir para múltiplas investiga-
52
Chicos
ações. Se há alguma proposta editorial para tirála
do esquecimento, desconheço. Entretanto,
Alexandre Bonafim, professor, crítico literário,
escritor, tem seguido os passos de Eugênia com
entusiasmo contagiante e tentado, com suas pesquisas
e dedicação, trazê-la a público. Foi quem
primeiro me falou desse romance-poema. Consegui
adquirir a quinta edição com o selo da Nova
Fronteira num sebo. Quando estava de mudança
para Portugal, não tive dúvidas, trouxe-o
para morar comigo e já o li duas vezes. Sobre a
autora não há vastas informações ou inserção no
mundo acadêmico, mas soube que Rita Elisa
Sêda e Sônia Gabriel publicaram um estudo biobibliográfico
sobre a escritora, intitulado “A menina
dos vagalumes - (resgate folclórico do Paraíba
ao Sapucaí)” pela editora Comdeus. Em São
Bento do Sapucaí foi criado o Espaço de Leitura
e Arte – Eugênia Sereno.
A leitura de “O pássaro da escuridão” remete-nos
a Húmus, de Raul Brandão, mas diferente
do narrador-ácido do português, Eugênia
empresta ternura e suavidade, apesar da noite
que se instala desde o título. Assim como Guimarães
Rosa ela presenteou-nos com uma linguagem
invulgar, deu à Língua Portuguesa uma
plasticidade ousada e arriscada, porém não deixou
que a narrativa descambasse para a caricatura
tão repetida do sujeito em seus timbres virgens,
genuiníssimo, tidos de maneira pejorativa
como “roceiros”. Ao contrário, trouxe à tona
uma dicção inovadora com vozes genuínas recolhidas
dos falantes de seu passado (Por isso, ela
faz o convite ao leitor: Retrogradai comigo no
tempo. Afundemos juntos no espaço). Extraiu o
suco da língua-mãe-do-seu-povo. Eis uma contadora
de histórias que trata do folclore, da antiguidade,
da mitologia, dos costumes ancestrais,
da angústia, do tédio, do recolhimento. Tudo
isso fundido em neologismo, oralidade, poesia e
musicalidade. Uma obra de arte.
Sua formação como normalista pode ter
contribuído para a construção dos personagens,
pois lecionou na zona rural do Vale do Paraíba,
recolhendo com maestria os sons, ritmos e dramas
tão peculiares àquele universo. Estudou no
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo
e tinha, portanto, uma intimidade com a musicalidade
das coisas e das palavras, harmonizando
o seu olhar sobre o mundo e as pessoas.
“O pássaro da escuridão” tem como espaço
geográfico a cidadezinha de Mororó-Mirim,
que tanto pode ser a cidade natal da autora –
São Bento do Sapucaí, como os tantos brasis
escondidos no mapa. Ela dá voz a esses protagonistas
anônimos, vidas miúdas com suas nuances,
mazelas, queixumes e singularidades, o que
guarda analogia com os seres encontradiços na
Macondo de Gabriel García Márquez; na Komala,
de Ruan Rulfo, na Santa María, de Onetti; na
Yoknapatawpha, de Faulkner; ou mesmo nas
veredas sertanejas de Guimarães Rosa; ou na
Pasmoso, de Ricardo Guilherme Dicke. Eugênia
destrincha e dilata a língua sem se curvar à norma
tida como culta e correta, rio que corre no
nosso sangue, como em tantas cidadezinhas esconsas
que muitos de nós ignoramos. Nesses
lugares e em “Mororó é assim. A montanha,
símbolo de fixidez é a muralha que motiva a ausência
do mundo ali. Os sinos são as suas mensagens.
O céu a sua aspiração. A coruja o seu
temor, a sua aflição, o seu decreto de morte. As
horas os seus adeuses. O terço a sua segurança.
O pecado o seu abismo. Os ventos o seu refrigerante.
O silêncio a sua sensaboria. O cochilo o
seu frenesim. As enchentes a sua calamidade. O
retrocesso o reumatismo atrofiante que o mina
surdamente. A vida do próximo a razão de ser
de sua vida íntima. E nada mais lhe falta. No
mais, contenta-se em ser pequeno, isolado, limitado,
agourador, rezadeiro. Em ter colibris de
dia e estrelas de noite. Pé de pequi com titica de
pintassilgo…”.
Romance com predominância noturna, a
53
Chicos
cidadezinha anoiteceu mas num amanheceu, lá a
coruja, “O pássaro da escuridão”, é a guardiã de
Mororó-Mirim e da morte: ave defuntólatra; locatária
imóvel, Musa sinistra deste Brasil triste,
do Brasilzinho sem porvir. Mas há os pirilampos:
estrelas terrestres, chãs e que se podem contar,
e há a lua que ilumina todos. Que seria de Mororó
sem o acréscimo dos vaga-lumes? Há Donana,
tal e qual Madame Bovary (em cujos olhos
mora uma nuvem), que quer saber se haverá algures,
no mundo, lugares sem marasmo pela
redondeza da Terra, onde a noite como o dia
não sejam como cá, mesmissimamente imóveis,
emperradas, estupefacientes, sonolentíssimas.
Seu marido, o João Badaró de Siqueira Badaró,
com sessenta e nove anos, não tem a resposta,
só sabe pensar em Candoca, uma adolescente
que o fisgou e depois o desiludiu. Apesar da influência
francesa que o narrador colhe da experiência
da autora e se interpõe como intertextualidade,
Rolinha adverte que Mororó não tem espaço
para poliglota, mas sim para cinco vasos
de avenca. Lá a vida particular é antídoto para o
tédio dos Maciéis; dos Pachecos; dos Peixotos;
das Ligas-das-Senhoras-Católicas; da Maria Brejaúba,
benzedeira, amortalheira, arengueira, rezadeira,
adivinheira, parideira e abençoadeira
preta que não sabe por que cargas d’água teve
um filho loiro… lá habita o Coxomongo, filho
póstumo de Pai Quibungo; Heliodora e o compadre
Zé-Flor e muitos outros eteceteras. Há outros
moradores, bem como os cães, mulas e tantos
animaizinhos de nomes diversos. Lá mora o
menino vendedor de pastéis, que se deslumbra
com recheio de azeitona do produto que não
pode comer, sente-se como se toda a vida lhe
palpitasse na boca, já que lhe foi negado o direito
de desejar. As personagens conhecem a saudade
que transpõe o Tempo, esse sutil genitor
de dissoluções, surdo fiandeiro de adeuses. E há
as tantas evidências simbólicas e marcantes, como:
o sino (que ganhou um capítulo); as cartas
anônimas que dormem no baú; o popó (pinico);
as estrelas: pequenas e esquivas, a irradiar em
cochilos de divinos brilhos frios, alheias à humanidade
e a tantos estertores, a tanta boa-fé, a
tantos pensamentos maus e abnegações ignoradas;
a fauna e a flora também se doam para
compor o léxico rico e inesgotável, fundindo-se
como deve ser, ao povo mororense, à natureza
universal da história. Mororó é vereda de lobisomem,
Sheherazadas, casa do Pererê, da Sereia
que vive nas águas da “Lagoa-Funda-da-
Pinguela-do-Pau-Furtado”; essas coisas fora de
moda, vetustérrimas...mas porém, autênticas e
irrefutáveis como uma impressão digital.
Se puderem, leiam Eugênia Sereno. Leiam
O pássaro da escuridão, essa história inesgotável
de tipos e surpresas estilísticas, cuja linguagem
divide com os demais personagens seu vigor e
densidade.
* Eltânia André
Nasceu em Cataguases MG, mora em São Pedro do Estoril, Portugal. É
autora dos livros Manhãs adiadas (2012), Para fugir dos vivos
(2015); Diolindas (2016) – em parceria com Ronaldo Cagiano – e Duelos
(2018).
54
Chicos
Lina Tâmega Peixoto: palavra & perenidade
*Ronaldo Werneck
A morte de Lina Tâmega Peixoto no último
1º de setembro não passou em branco: logo
chegavam textos homenageando a poeta, vindos
de vários lugares: Brasília, Rio, Ouro Preto, Cataguases,
Lisboa. Vários e afetuosos os saudares
e louvações de seus muitos amigos.
RW, Lina e Francisco Marcelo Cabral: Brasília, 2008
De Brasília, publicava ainda no dia seguinte
a poeta Angélica Torres Lima (que me disse
ter passado a noite escrevendo, ainda chocada
com a morte de sua amiga): “Tão significativo
quanto deixar como último legado um livro intitulado
Prefácio de Vida é partir dela, a vida, no
primeiro dia de setembro, quando o Cerrado se
derrama em flores... É como dar um toque mágico
ao momento, para todos tão difícil e sofrido.
É como fazer um truque com imagens, que só
poetas de primeira grandeza, como Lina Tâmega
Peixoto, são capazes de fazer sem ter planejado.
Lina pôs ontem de luto a poesia brasileira”.
De Ouro Preto, o ex-Secretário de Cultura
de Minas, Ângelo Oswaldo, me enviava email:
55
“Minha solidariedade. Os Peixoto parece que
vieram de Portugal (os Botelho, dos Açores). Tâmega
é o rio que passa em Amarante e junto à
velha ponte postava-se São Gonçalo. Mas Lina
não era portuguesa, senão mineira de Cataguases
tocada pela poesia verde banhada nas águas
do Pomba espraiadas no lago Paranoá. Vamos
saudá-la na perenidade de sua palavra poética”.
Do Rio, o poeta Tanussi Cardoso me mandava
pelo zap: “Lina era uma das nossas maiores
poetas, cuja discrição silenciosa impediu que seu
nome e sua poesia tivessem o reconhecimento
merecido. (...) O uso inteligente das metáforas,
inversões, metonímias; das palavras como um
totem ontológico radical; desta íntima
“respiração” entre elas; desse silêncio loquaz
que capta a memória e o vazio das coisas, e, ao
mesmo tempo, o seu barulho – são de uma sensibilidade
rara em nossa poesia”.
De Cataguases, o poeta e crítico Joaquim
Branco: “Ontem (01-09-2020) recebi a notícia
da morte de Lina Tâmega Peixoto (1931-2020),
num hospital de Brasília. Fiquei muito consternado,
e mais ainda, pois já havia tomado conhecimento
do que acontecera ao poeta Sebastião
Carvalho. E com o Pedro (seu irmão, o poeta
P.J. Ribeiro), que falecera no final de março, os
fatos somados tomaram vulto a ponto de Zeca
Junqueira comentar que a cidade de Cataguases
se despoetizava... Não encontrei melhor expressão
para o momento. Entre as possíveis damas
da poesia cataguasense há uma prima dona: Lina
Tâmega Peixoto.
“Ler um livro de Lina – escreveu ainda Joaquim
Chicos
requer tempo. Não o tempo normal que se gasta
para leituras cotidianas, mas um tempo para se
concentrar mais, pois ele exige do leitor mais do
que a fruição de palavras que vão puxando palavras.
Seu discurso requer um silêncio dentre desse
tempo para se buscar. (...) Fui dirigindo meu
voo por penetráveis, porém surpreendentes vias
– que é assim o caminho dos bons livros – deparando
ora com o recurso da metalinguagem, ora
com a difícil música de alguns versos ou com a
ligeireza do pensamento”.
Joaquim Branco, Lina e RW: lançamento de
Alinhavos do tempo (Cataguases, 2019)
O mesmo Joaquim Branco – meu grande amigo
e companheiro de aventuras literárias que já vão
para mais de meio século – citado por Lina num
dos e-mails que ela me enviou, com a poesia de
sua imensa delicadeza, coisa de eterna lady, de
primeiríssima dama da literatura:
“Caríssimo amigo: acabei de ver o que se maravilha
da vida. E estive aí no Centro Cultural
Humberto Mauro para os 90 anos da Verde e
escutei você narrando Humberto Mauro e falando
no Mac. Voltarei depois para ouvir mais coisas
de seu gesto de coração de poeta e mais,
pedaços de sonhos que modificaram seu acordar
em Cataguases. A cidade precisa de pessoas como
você e o Joaquim, capazes de por à superfície
a memória definindo o Rio Pomba e cheia de
estrelas refazendo a luminosidade do pensamento.
Não pude deixar de registrar aqui as emoções
da inteligência que tive. Esta a mais perfeita e
profunda que vive no espírito. Peço que receba
meu abraço de afeto por suas palavras e que o
coloque na jarra como uma flor. Lina”.
De Lisboa, o também poeta e crítico cataguasense
Ronaldo Cagiano, que vive atualmente
na capital portuguesa e que lá esteve presente ao
lançamento de Alinhavos do tempo em janeiro
de 2019, enviou a meu pedido o seu depoimento:
“Caro Ronaldo, foi uma ótima noite o lançamento
da Lina na Casa do Brasil aqui em Lisboa:
bom público, apresentação da escritora Vania
Chaves, um belo ensaio lido por uma professora
da Universidade de Lisboa e depois as palavras
da Lina. (...) Foi um evento marcante, principalmente
porque reuniu amigos, colegas, leitores e
conterrâneos de Lina e todos tiveram oportunidade
de percorrer esse panorama sobre sua vida
e obra, buscando a gênese de seu processo criativo,
desde os primórdios da estudante que criou
com Francisco Marcelo Cabral a revista Meia-
Pataca; do estímulo do tio-poeta Francisco Inácio
Peixoto; do sopro literário de Hernâni Cidade,
um primo materno e um dos reconhecidos críticos
literários de Portugal que, do outro lado do
Atlântico, trouxe-lhe informações, conselhos e
dicas técnicas sobre o fazer poético; das influências
e amizade de Cecília Meireles, da presença
de Cataguases e Brasília na sua trajetória existencial
e criativa, dos tantos tempos, entretempos
& alinhavos que constituem sua tessitura e
culminam no polimento estético de sua arte”.
“A poesia de Lina – continua Ronaldo Cagiano
em seu depoimento – chegou a Lisboa como
um prefácio de vida, abriu-se aos leitores, como
as asas da cidade que escolheu para seu escreviver.
Sua poesia – que tem uma profunda inflexão
imagética e sensorial, carregada de símbolos
e metáforas, cristalina e diáfana na forma e na
linguagem –, sem dúvida a coloca entre as mel-
56
hores vozes da poesia que se faz em todo o
mundo lusófono, uma palavra carregada de simbologias
e afetos, que é fruto de um esmerado
senso de observação do mundo, das coisas; de
captura da memória e da geografia ancestral;
que, entre o rigor e a sofisticada elaboração, faz
uma ponte dialética entre o lírico e o metafísico,
entre o passado e o presente, com um sopro de
inegável humanismo”.
turmalina
o fio tâmega
o xis de peixoto
seixo
ao sol
do pomba
Chicos
lina-horizonte
peixoto
do tâmega
feixe-facho
de delicados dáctilos
ânfora de anapestos
Lina, RW e Ronaldo Cagiano no lançamento de
meu livro Momento Vivo: Lisboa, 24.10.2019
Antes de nossa recente troca de e-mails que vem
a seguir, fecho com um poema que dediquei à
minha agora saudosa amiga, publicado em meu
livro minerar O branco, de 2008.
lina lê-se em ardósia
proeza-poesia
proesia toda-prosa
fina escrita e valia
Ronaldo Werneck
Cataguases/agosto/2008
Lina lê-se em ardósia
A memória vai buscar uma
menina de treze anos,
improvisando uns versos que
teimavam em ser música.
De súbito, ela descobre que
tocava a poesia.
tâmara lina
Lina Tâmega Peixoto
pomar de minas
LINA: OS ÚLTIMOS E-MAILS
Sobre um texto meu que não consigo identificar
– 17.03. 2016
Querido amigo: li, colocando na língua, cada
palavra de seu longo texto, já que não aprecio
bebida, de modo geral. Pois seu texto foi um
vinho do Porto, bebido aos goles lentos. Me
emocionei com sua admirável memória afetiva,
onde agrega os amigos e as experiências que
viveram, de forma intensa, e que me parece,
ajudaram a formar sua identidade humana e
poética, seu jeito de contemplar as coisas das
coisas, e que explodiram, anos mais tarde, com
57
Chicos
uma força e balbucios de beleza e ternura, em
expressiva e sensível criação literária, tanto em
prosa como em poesia. Vou ler tudo de tudinho
com muita atenção, sofrimento, alegria e redenção.
Abraços, Lina.
Sobre meu post quando do prêmio Camões para
Chico Buarque – 31.05.19
Como sempre, sua crônica, ou melhor, seu testemunho
no mundo, é um espaço de prazer.
Aquele prazer que Roland Barthes nos ensina.
Poucas vozes se levantaram para saudar o prêmio
Camões, concedido ao Chico Buarque. Do
Governo não se esperava mesmo nenhum gesto,
mas da intelectualidade, até da fatia da música,
não li quase nada. Penso que sou eu que não
desvelo notícias, de tão absurdo este fato. Enfim,
Ronaldo, seu texto é preciso, cheio de nervos
de encantamento. Uma leitura feita de horizontes
de percepção e ordenança de significações.
Abraços diversos, Lina.
Sobre meu texto “Catawood”, publicado na letra
“C” da revista portuguesa “Linguará”, e a palestra
que faria (e fiz) no lançamento em Belo Horizonte
– 06.07.19
Boa noite, querido amigo: li, com gostosura, seu
texto de C, com tantos substantivos que mais
parecem atributos. Há uma leveza na linguagem
que é um tom constante em sua escritura. Outros
textos que me manda trazem esta margem
que contorna os significados de uma nuvem que
esvoaça, lenta, macia, mansa. Que sua apresentação
em BH seja uma alegria enorme e que a
noite seja um sol de sucesso. Muitos e inexplicáveis
abraços, Lina.
Quando do meu post sobre o livro Essa gente de
Chico Buarque – 07.12.19
Querido amigo: seu texto coça a inteligência do
leitor e faz cócegas na emoção. Li suas palavras
como se fizesse uma descoberta de mim mesma
por meio do Chico Buarque/Duarte. Sempre me
impressiona seu discurso narrativo seco e úmido
ao mesmo tempo, as imagens revelando um fino
e sutil humor de quem vê o mundo mordendo o
rabo. Parece que endoideci. A realidade parece.
Tudo parece sem ser igual. Com uma alegria
gorda e macia, meu abraço exaustivamente
grande para vc. e Patrícia.
Ao chegar de Lisboa – 18.01.20
Já estou em Brasília, enforcada de calor. Vim
enrolada em peles extras para isolar o frio e aos
poucos me desnudei de mim. E, com calma e
horizontes, li o texto do Ângelo Oswaldo sobre
seus poemas em Momento Vivo. Bem penetrante
e explicativo, ressaltando as simbologiaschaves
que permitem, a nós leitores, abrir as palavras.
Fico feliz em conhecer a repercussão de
seu fazer poético, da amplidão geográfica que
eles habitam. Muitos e fidalgos abraços.
Quando de uma postagem sobre a exposição
Fellini no MAM – 28.01.20
Suspiro, Ronaldo!!! Quisera ter estado no Rio,
no mesmo dia em que foi ao Museu, e acompanhar
sua visita ao Fellini. Abraços diversos e urgentes,
Lina.
23.04.20
Soube da morte do P. J. Ribeiro pelo seu texto.
Estou atônita e confusa. Liguei para o Joaquim e
consegui falar. Depois, mais tarde, entro em
contato com vc. Com meu coração, Lina
Sobre o poema “A peste pede passagem” postado
em meu blog – 30.04.20
Meu amigo: fiz um comentário, mas não sei resolver
colocações exigidas. Assim, coloquei anônimo.
Se você recebeu, me avise. O comentário
começa: "O poema interroga... e termina: pela
consciência do prazer". Eis o comentário que
Lina postou no meu blog: “O poema interroga a
continuidade, a importância, a impotência, o horizonte
do homem na vida. De repente, o poema
desfolha-se. O ritmo, que torce a camada fônica,
58
Chicos
fragmenta, com encadeamento sedutor, a tensão
dos múltiplos significados. O tema da peste configura,
pela estrutura da substância poética, um
aturdimento e uma vertigem apreendidas pela
consciência do prazer”.
Quando postei textos sobre Elisete e Nelson Cavaquinho
– 21.06.20
Querido amigo: também estive numa apresentação
da Elisete e do Nelson Cavaquinho nos por
aí dos 80. Lembro da sensação de euforia e prazer
que senti. Um passado sem "rugas". Uma
delícia rever tudo isso no seu excelente texto.
Inumeráveis abraços, Lina.
Sobre a morte do Pedro Branco, o P.J. Ribeiro –
24.06.20
Querido Ronaldo: teu texto foi uma pancada que
atingiu uma pálida e triste alma, a que me veste,
até hoje. Foi nela que li o avesso da mentira, a
da morte do P.J. Ribeiro. Seu texto foi armando
palavras e nelas deitou nosso amigo, com doçura
e sussurro de dor e saudade. Consegui falar com
o Joaquim e lhe dar meu abraço feito com muitas
palavras. Muitos abraços, Lina.
Sobre o envio da Revista Chicos, que publicara
seus poemas – 27.06.20
Querido amigo: foi um respirar profundo a surpresa
de ver a revista Chicos com eu lá dentro.
Foi a primeira vez que li a revista, mas sabia que
ela existia. Como nunca entraram em contato
comigo, ficava, burramente, atrás da porta, na
quina da esquina. Conheço o Emerson há tempos,
parece, inclusive, não sei, ou sei, talvez,
penso que, esteve no lançamento de meu livro
aí. Verdade? E veja, sou um gomo da revista,
que vou saborear depois. Ainda não olhei, com
nitidez, as palavras que falam de minha poesia,
(conheço bem o ritual bibliográfico) porque vim,
primeiro, lhe agradecer o envio do texto, de tudo.
Anotei o email da Chicos e vou, ainda hoje,
vou escrever para o Emerson e José Antônio. Às
vezes viro um arquipélago, ilha que sou. Lanço
ponte e barco para ir à sua ilha e religar, ou relumar
ou relumbrar as fronteiras da poesia de nossas
vidas. Com um gordo e solar abraço, Lina.
Quando da postagem dos 50 anos do Festival
de Música de Cataguases – 05.07.20
Sabe, meu amigo, que já havia lido esta memória
do Festival em Cataguases. Não me lembro
quando. Nesta época, estava em Lisboa estudando
as origens do lirismo peninsular, mas soube
lá desta grande aventura de vc e Joaquim. Que
tempos maravilhosos aqueles! A leitura do texto
redobrou a fartura de lembranças que são asas
leves do encantamento. E como vc escreve bem
e firme o que são sensações e friúmes do sentir.
Uma jardineira de abraços. Estou olhando para
as miudinhas cores roxas do canteiro que estão
com olhos arregalados.
Quando respondi, dizendo que “friúmes” me
lembrava Mário de Andrade – 07.07.20
Curioso, Ronaldo, lembrar Mário de Andrade
pelo nome "friúmes " Me veio à memória (sei de
cor) o poema “Conversa piedosa” do tio Francisco
(o escritor Francisco Inácio Peixoto) em referência
a Cristo:
Madalena quando enxugou os seus pés
Com os cabelos dela, você não sentiu
Uma espécie de friúme no seu corpo?
Considero este poema belíssimo. Saudades de
todos e de todas as memórias.
Ao lhe enviar a introdução de meu novo livro,
“Cataguases Século XX – antes & depois” e dizer
que iria colocar um texto dela sobre Francisco
Inácio Peixoto – 08.07.20
Acabei de ler sua introdução e lendária, novamente,
minha observação sobre seu poder de
escrever uma linguagem firme, lúcida, objetiva,
voltada para a inteligência especulativa, e a do
bem-querer saber. Acho que melhor do que o
59
Chicos
texto sobre o Aprendizado (sobre Francisco Inácio
Peixoto, que eu sugerira) ... seria este que
lhe mando. Resultado de uma longa pesquisa na
Fundação Casa de Rui Barbosa (cartas do Guilhermino)
e de conseguir, em Porto Alegre, as
cartas do tio Francisco. Consegui todas e guardo
este acervo, com feroz carinho. Veja o que acha
de minha sugestão. Se quiser, revejo o texto,
para perceber algum cisco. Com abraços diversos,
Lina.
Quando lhe enviei um texto que havia escrito
sobre Francisco Inácio Peixoto – 11.07.20
Obrigada, amigo, por levantar minha memória
do chão. As pegadas do que faço vão se apagando
aos poucos, porque não sei, como você,
guardar as palavras numa gaveta de ar. E lhe
conto sobre o conto "Bapo". Ele foi inspirado
num fato que aconteceu com os peixinhos vermelhos
de minha mãe. Numa manhã, um dos
peixes do tanque amanheceu torto. Como era
costume, chamamos tia Eponina que sabia consertar
tudo, asa quebrada, osso partido, mauolhado,
enfim, mazelas, defeitos e virtudes de
bichos e de gente. O resultado da consulta resultou
em envolver o peixe com ataduras e prensar
o corpinho do peixe, com dois palitos de picolé
para que voltasse à forma. Evidente que o peixe
afundou e morreu. Vou reler seu artigo sobre tio
Francisco. Tudo que é sombra dele, em mim e
nos outros, se incendeia.
Com o melhor e mais azul das lembranças, Lina.
Ao ler uma postagem que fiz sobre os 110 anos
de Rosário Fusco – 18.07.20
Já li este interessante e instigante texto sobre o
Fusco, inclusive a entrevista no Pasquim. Há
muito vc me mandou, mas de qualquer jeito reli
com prazer e sabor. Abraços para vc e Patrícia.
Ainda sobre a postagem dos 110 anos do Fusco
– 23.07.20
Pois então, Ronaldo, o texto estava à superfície
dos olhos e reli, porque já havia lido nem sei há
quantos meses passados. Penso que lhe escrevi
na ocasião, se a memória sobrevoa as palavras.
Considero este texto sobre o Fusco uma excelente
página de uma narrativa memorista que lhe
pertence, mais do que a história sobre o Fusco.
Dele, tenho recortes de papos longos, na casa da
mãe, com uma garrafa de pinga na mesa. E em
outros encontros com ele debruçado na janela
conversando comigo, eu em pé na calçada, levantando
os pés para alcançá-lo. E as cartas que
me escreveu e que mandei para o Joaquim. Estão
publicadas no livro Meia-Pataca: a terceira
margem. A minha convivência maior foi com o
Marques (Rebelo), a quem devo o apoio (junto
ao apoio maior de meu tio Francisco) para o que
fiz, na juventude, de lances e embrulhos, na arte
e na poesia. Com o mais fidalgo abraço de admiração,
Lina.
Em 31.07.20 eu lhe escrevia em resposta:
Lina querida, passando pra dar um rápido (mas
afetuoso) abraço: só agora vejo esse seu email
de quase uma semana. As recordações do Fusco
são muitas: escrevo este email em Bodoni, para
homenageá-lo: era a tipologia de que mais gostava.
Exato agora não estou me lembrando do
livro Meia-Pataca: a terceira margem. Que livro
é esse? Acabei de reler nesta manhã “Dia do
Juízo”, um dos grandes romances do Fusco.
Marquei várias e várias passagens do livro (como
sempre faço com as leituras que me chamam a
atenção), passagens de que não mais me lembrava.
Lá pelo final tem um monólogo da personagem
Primavera que me remeteu ao monólogo de
Molly Bloom, no Ulisses de Joyce (será
“viagem” minha?). Você fala no Marques, que
conheci ligeiramente numa noite na casa do Chico
Peixoto, ele me falando (numa chaise-longue,
do alto de sua piteira) do filho, Zé Maria
(de quem fiquei amigo mais tarde), que estava
60
Chicos
necessitado”: a pintura não dava pra ele viver. E
aproveitou pra meter o pau nos concretos, que,
segundo ele, só faziam aqueles poemas porque
não precisavam de dinheiro: “Veja só, um deles
é até Pignatari”. Coitado do Décio, eu pensei,
apenas um mero professor universitário: nada a
ver com a fortuna dos Pignatari. Mas, falar no
Marques, por acaso você tem cópia (ou sabe onde
eu possa encontrar) daquela crônica dele intitulada
“Cataguases 1937”? Acho que é esse o
nome: penso em colocá-la nesse meu novo, em
homenagem aos “rapazes da Verde”. Você recebeu
o link de uma live minha falando poemas?
Abracíssimos, Ronaldo.
Resposta da Lina – 31.07.20
Oi, Ronaldo. Trocamos de amigos quando adolescentes
em Cataguases. Eu, com Marques, você
com Fusco. O livro Meia-Pataca: a terceira
margem é obra do Joaquim com a colaboração
de dois alunos. Mandei para ele, na época, todas
as cartas escritas e recebidas – para e do – Marques
e do Fusco. Deu um excelente panorama e
visão cultural do que foi aquela febre de literatura,
aquele grito de poesia. Esqueceu? Com certeza
tem aí caído em qualquer prateleira, este precioso
livrinho. Quanto à crônica que mencionou
"Cataguases -1937" está em Cenas da Vida Brasileira,
uma gostosura de fina ironia. Lembro
quando fala de Sete Lagoas. São oito lagoas,
mas só se vê uma. O livro é uma soma de olhares
para muitas cidades, buscando em cada uma
a ponta burlesca ou crítica que lhe dá a fisionomia.
Penso também que a crônica vestiria bem
as páginas de seu livro-documento. Ainda não
abri sua participação literária com a Noélia (uma
live da poeta de Brasília Noélia Ribeiro, onde fui
entrevistado e falei alguns poemas). Apareceram,
domesticamente, muitos problemas para
resolver, inclusive com a televisão que desmancha
as imagens com jeito de Miró. Exclusivos
abraços para Patrícia e você, Lina.
Seu último email – 17.08.2020
Meu caro amigo: peço desculpas por não ter respondido
ao envio das crônicas, mas só agora
estou saindo de uma brava pneumonia e meu
tempo, lento e gradual, se volta todo para minha
recuperação. Não sei onde apanhei a bactéria
que derruba a gente além do chão, subsolo,
abismo, qualquer palavra que signifique angústia
serve para definir a situação. Fica tudo para mais
tarde. Com o melhor dos abraços, Lina.
* Ronaldo Werneck
Nasceu em Cataguases MG. Poeta e jornalista, colaborou em vários jornais e revistas
cariocas. Publicou entre outros os livros: Poesia - Selva Selvaggia (1976),
Pomba Poema (1977), Minas em mim e o mar este trem azul (1999) Minerar o
Branco (2008), Cataminas Pomba e outros Rios (2012) e O Mar de Outrora e Poemas
de Agora (2014). Prosa - Há Controvérsias 2 (2011), Rosário Fusco por Ronaldo
Werneck/ Sob o signo do imprevisto (2017) e o ensaio biográfico “Kiryrí Rendáua
Toribóca Opé” Humberto Mauro Revisto por Ronaldo Werneck
61
Um colosso
Chicos
*Antônio Jaime Soares
O Cine-Teatro Cataguases foi inaugurado
em 14 de junho de 1953, às 14 horas,
com a presença de representantes dos três poderes,
comerciantes, industriais, fazendeiros,
‘gradas pessoas da nossa melhor sociedade’ e a
bênção do ainda cônego, depois monsenhor Solindo
José da Cunha, como informa o jornal Cataguazes
(com Z) de um domingo depois.
O industrial e escritor Francisco Inácio Peixoto,
presidente da Companhia Cinematográfica Cataguases,
que empreendeu a construção, sendo a
primeira proprietária do prédio, saudou os presentes,
enquanto o prefeito Nelson Soares Dutra
e o redator do Cataguazes, Alzir Arruda, saudaram
todos que se esforçaram em prol do empreendimento,
notadamente Augusto Cunha e seu
filho Edgard. Tempos depois, com o falecimento
deste, o cinema passou a se chamar Edgard Cine
Teatro.
Além de exibir filmes, o prédio abrigava, do lado
esquerdo de quem entra, um salão de chá. Do
lado direito, o acesso ao Clube Social, no andar
de cima e, no subsolo, o salão de sinuca Oásis.
Entre uma escada e outra, uma lojinha tão pequena
que se chamava Miniatura, formando o
todo um centro de diversões. Depois dos discursos,
foram servidas ‘profusas’ taças de champanhe
e exibido o filme O filho de Ali Babá.
Em entrevista à sofisticada revista Flan, do Rio
de Janeiro, Aldari Toledo, autor do projeto arquitetônico,
exaltou Cataguases e sua vocação
para a modernidade, o que fez dela uma cidade
diferente, no interior do Brasil. Essa vocação começou
no início do século passado, quando o
negócio do café demonstrava sinais de declínio e
62
o empresariado local, ao invés de ficar chorando
o café derramado, investiu na industrialização.
Na tela do cinema foram exibidas grandes produções
de grandes companhias, como Fox, Universal,
Paramount, Condor, Rank, Hammer,
RKO, Art, Franco Brasileira, Cinedistri, sem esquecer
o Festival Humberto Mauro, em 1961, e
o Cineport (Festival de Cinema de Países de Língua
Portuguesa), em 2005. No palco, apresentavam-se
artistas daqui e de fora, em peças de teatro,
shows e festivais de música e dança.
Naquele palco, estreei em teatro em 1964 (peça
O mestre, de Ionesco), sozinho em cena por uns
vinte minutos, encarando o público ao som da
trilha sonora composta por Prokofiev pro filme
Alexander Nevski, de Eisenstein. Minhas pernas
tremiam, pensei que ia desmaiar, até que terminou
o suplício, com a entrada de outros atores.
Por suplício maior em sua estreia passou Fafá de
Belém, na qual, segundo a própria, mijou nas
calças.
Outras lembranças: naquele cinema achei uma
caneta tinteiro, num tempo em que esferográfica
era chamada de lápis-tinta e pouca gente usava.
Igual à que eu tinha, tudo bem, fiquei com duas.
No térreo da atual Energisa, o Bar Elite era parada
obrigatória prum café ou sorvete, antes ou
depois das sessões.
E antes e depois tinha a paquera na calçada da
praça, que começava no flerte (hoje dizem
‘ficar’) e muitas vezes terminava em casamento.
Ou não: algumas moças não passavam do flerte
e três delas ganharam o apelido de ‘cem anos de
solidão’, a soma de suas idades.
Chicos
E tinha o Cine Machado, onde hoje funciona o
Centro Cultural Humberto Mauro, que exibia
filmes da Metro, Columbia, Warner, United Artists,
Pelmex e Atlântida. De artista no palco, lá,
só me lembro de Elizeth Cardoso. Morcegos,
muitos, inclusive um que deu um rasante contra
a tela justo no momento em que Jean-Paul Belmondo
deu um tapa no ar, pra afastar um mosquito,
no filme Cem Mil Dólares ao Sol, um dinheirão,
na época. A plateia reagiu à altura, numa
sonora gargalhada.
foram unânimes e vale lembrar um rapaz de Joaquim
Vieira, o futuro comerciante aqui na cidade,
meu irmão Edson Soares Ramos, que viajou
de bicicleta por 17 quilômetros de estrada de
terra (ela acompanhava a linha do trem, com
muitas curvas e a distância era maior), no dia da
inauguração, e voltou dizendo que o cinema era
‘um colosso’. Colosso que finalmente passou a
ser propriedade do município. ‘É nosso’, diz a
faixa afixada na porta.
Sobre o Cine Cataguases e o prédio, os elogios
* Antonio Jaime Soares
Nasceu em Cataguases MG, lá na Chave. Participou de um dos movimentos culturais
mais ativos dos anos 60 em Cataguases, o CAC. Depois de morar um
longo tempo no Rio de Janeiro, onde entre outras foi redator de publicidade.
Retornou a Cataguases direto para a Vila. Poeta e cronista publicou Pedra que
não quebra (2011)
63
Chicos
Lygia Fagundes Telles, a dignidade da palavra
*Álvaro Alves de Faria
Numa pequena entrevista publicada em
livro (Rocco, Rio de Janeiro, 2007), Clarice Lispector
perguntou o seguinte para Lygia Fagundes
Telles:
-Como nasce o conto? E o romance? Qual
é a raiz do texto?
Lygia respondeu assim:
-Algumas imagens podem nascer de uma
simples imagem. Ou de uma frase que se ouve
por acaso. Um sonho. Uma tentativa vã de explicar
o inexplicável, de esclarecer o que não pode
ser esclarecido no ato de criação. Tudo é sombras
e mistério. O artista é um visionário. Um
vidente que passa livre no tempo que ele percorre
de alto a baixo no seu trapézio voador que
avança e recua no espaço: tanta luta, tanto empenho
que não exclui a disciplina. Vontade de
ser amado. De permanecer. Nesse jogo ele acaba
por arriscar tudo. Vale o risco? Vale, se a vocação
for cumprida com amor. É preciso se apaixonar
pelo ofício, ser feliz nesse ofício. Se em outros
aspectos as coisas falham (tantas falhas) que
ao menos fique a alegria de criar.
Essa pequena entrevista foi feita
quando Clarice Lispector não era ainda a Clarice
Lispector que hoje conhecemos. Tantos anos depois
as palavras continuam iguais, em outros
tons, mas iguais. Revelam a coerência em tudo
que Lygia fez na vida de escritora consciente de
seu ofício de escrever. Uma mulher que percorreu
todos os caminhos da escrita, como se cavoucasse
as palavras em busca de uma perfeição
que nunca a deixava satisfeita. Quem conviveu
com ela, como eu, sabe dessa preocupação com
o texto. A cada prova de uma nova edição de
um livro, ela passava dias fazendo alterações,
mudando palavras, excluindo até parágrafos inteiros
e, muitas vezes, até excluindo sua obra,
como se nunca tivesse existido, como fez com
os primeiros livros, a que chama de “ginasianos”
e que, portanto, não merecem consideração.
Não se sabe se Lygia está realmente feliz
com a reunião de seus contos, num belo volume
de 754 páginas, publicado pela Cia. das Letras,
com um posfácio competente de Walnice Nogueira
Galvão. Prefere não dizer nada sobre o
livro àqueles com que ainda conversa, apenas
algumas frases curtas que, no fundo, resumem
tudo:
-Poeta, segurar um livro assim é como ter
a vida inteira nas mãos.
A frase de algumas palavras é dita em
voz baixa. Lygia sente mais do que nunca o peso
das coisas, de todas as coisas, de tudo que a cerca
e, ao mesmo tempo, é alguma coisa que a
sufoca. Os contos reunidos revelam uma vida,
sim. Uma vida inteira de uma mulher escritora
que batalhou sempre pela qualidade literária em
tudo que fez e ainda pensa fazer.
-A vida inteira nas mãos...
Lygia Fagundes Telles, 97 anos, nasceu
em São Paulo em 19 de abril de 1923. Membro
da Academia Brasileira de Letras, eleita em 24
de outubro de 1985. Prêmio Camões de 2005.
Passou grande parte de sua juventude em cidades
do interior paulista. Não gosta de ser chama-
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Chicos
da de a dama da literatura brasileira. Não gosta
que digam que ela é a maior escritora brasileira
viva. Nada disso lhe interessa. Mas viu com algum
entusiasmo a reunião de todos seus contos
no livro publicado pela Cia. da Letras. “Os Contos”
tem 754 páginas de encantamentos, contos
que se tornaram famosos e necessitavam, mesmo,
ser reunidos num único volume.
A ensaísta e séria crítica literária brasileira
Walnice Nogueira Galvão observa, no posfácio
que assina, ser difícil ler Lygia Fagundes Telles
sem visualizar uma mulher. Uma impressão, certamente
induzida por uma narradora subreptícia,
sua voz mal se distingue no texto fortemente
entretecido de cortes, eclipses, interrogações,
dúvidas, com mudanças bruscas do interlocutor,
o que acontece mesmo no meio de uma
frase.
Walnice tem razão em tudo que escreveu
no livro de Lygia - contos com muitos personagens
mulheres - porque vai fundo nesse universo
feminino, descobrindo nuances que não estão
a olho nu, não de maneira clara, mas nas entrelinhas,
naquele espaço que, muitas vezes, o leitor
passa por cima sem notar:
-Nesse confinamento as mulheres voltaram-se
para dentro de si mesmas, com uma percepção
de espaço vendo com maior acuidade
tudo ao seu redor, especialmente os laços humanos,
bem como a clarividência sobre sua própria
psiquê, tornando-se dados à introspecção.
Walnice chama a atenção para a elegância
de “uma escrita quase minimalista” de uma
mulher que escreve como mulher tendo como
personagens figuras femininas de todos os tipos
e são essas mulheres que sempre falaram por ela
mesma. O que tinha a dizer, suas personagens
diziam. E isso começou a acontecer na sua narrativa
quando as mulheres tinham seus direitos
cerceados. Eram seres que iam para a igreja e da
igreja para casa. E só. Mas a literatura de Lygia,
com suas personagens, se insurgiu contra esse
cenário que durou muito tempo. As figuras femininas
começaram a falar o que sentiam e chamou
a atenção de uma crítica especialmente
masculina.
Lygia não pode falar muito. Seus 96
anos pesam. Não fala muito. Quase monossilábica.
Recebe ainda um grupo bastante pequeno de
pessoas amigas. Reserva-se a frases curtas como
respostas que, muitas vezes, referem-se a lembranças
de um tempo vivo em sua memória que
consulta às vezes sem querer, porque muitas cenas
já passadas há tantos anos saltam de si mesma
e se mostram inteiras, algo que não se alcança
mais, mas que vive ainda no pensamento:
-A literatura da mulher é diferente da do
homem!
-Por que, Lygia?
-A mulher é mais intuitiva. A mulher é
uma vidente!
Depois de um longo silêncio, o olhar
atento na sala, Lygia guarda um pequeno sorriso
na boca. Hoje não usa mais aquele batom vermelho
que acentuava a beleza de seu rosto, uma
bela mulher que sempre chamou a atenção por
sua beleza, desde quando estudou na Faculdade
de Direito do Largo de São Francisco, quando
conheceu seu professor Goffredo da Silva Telles
Jr., com quem se casou em 1950. Mesmo casada,
decidiu fazer a Faculdade de Educação Física
e Esporte. O casamento com Goffredo durou dez
anos. Em 1963, casou-se pela segunda vez com
Paulo Emílio Sales Gomes e com ele viveu até
1977, quando faleceu. Dois nomes notórios na
história recente brasileira repleta de contradições
e desencantos. Duas vozes que eram ouvidas em
tempos obscuros.
A importância da mulher na sociedade foi
tema de muitas palestras que fez e nos livros
que escreveu. Muitas vezes repetiu que Jesus, o
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Chicos
maior de todos os homens, tinha dedicação especial
pelas mulheres. Tanto que sempre esteve
rodeado por elas. E quando ressuscitou, apareceu
primeiro para duas mulheres, Maria Madalena
e a seguir Maria, de acordo com o Evangelho
de São Mateus.
Sou capaz de dizer que sinto uma certa
tristeza no semblante de Lygia Fagundes Telles.
Não me atrevo a lhe perguntar, seria como querer
entrar num universo que não me pertence.
Os caminhos foram tantos ao longo destes anos
todos que um dia de juntam. Publicou o seu primeiro
livro “Porão e sobrado” em 1938, custeado
por seu pai. Tinha 15 anos de idade. De lá
para cá passou por vários movimentos literários
pelos quais não foi contagiada, como afirma.
Preferiu seguir sendo ela mesma. Foi a terceira
mulher eleita para a Academia Brasileira de Letras
e a única brasileira indicada pela União Brasileira
de Escritores para o Nobel de Literatura,
em 2016. Lygia renegou esse primeiro livro e
alguns outros que vieram a seguir. E os que conservou
passaram por alterações que não terminavam
nunca. Um dia, estando no apartamento
dela, na rua da Consolação, em São Paulo, cheguei
a lhe dizer em forma de pergunta:
-Lygia, por que você muda tanto o texto a
cada edição de seus livros? Você não para de
alterar. Por que?
-É preciso poeta, a gente tem de mudar
sempre. À medida que o tempo passa o texto
passa também. Nunca vou deixar de alterar.
E assim foi sempre. Muitas vezes, para
mudar uma única palavra, pensava horas seguidas.
E sentia a mesma sensação de quando escrevia
romance ou conto. Oitenta anos de literatura.
Ao todo, são 19 livros de contos e quatro
romances. Lygia acha que os jovens escritores de
hoje são muito ansiosos para aparecer. E fazem
de tudo. A ansiedade num jovem escritor é um
perigo. Pode acabar com tudo. Lygia nunca pensou
em escrever suas memórias. Seus personagens
falam por ela. Também nunca escreveu diários,
por uma razão bastante simples: acabaria
por inventar tudo. Transformaria toda a realidade
em ficção.
-A literatura me ajudou a não enlouquecer.
Salvou-me do desespero. Ao escrever fico em
estado de plena paz.
Afirma, com seus 96 anos, que escrever é
um mistério, um grande mistério. A natureza
humana é angústia e raiva também. Garante que
criar personagens é alguma coisa mediúnica que
a ciência não sabe explicar. Os personagens têm
alma. Lygia gosta de lembrar o pensador italiano
Norberto Bobbio (1909-2004), para quem a revolução
da mulher foi a mais importante do século
20. Aquela “rainha do lar” tomou conta de
quase tudo, das fábricas, das universidades, do
jornalismo, passando, também, a participar ativamente
da vida cultural e das artes, quase tudo
que pertencia somente aos homens. A mulher
conquistou sua liberdade e tudo se transformou
rapidamente.
Na entrevista que fez com Lygia décadas
atrás, Clarice Lispector iniciou fazendo uma rápida
apresentação, dizendo que Lygia é um bestseller
no melhor sentido da palavra. Seus livros
são comprados por todo mundo. O jeito que ela
escreve é genuíno, pois revela seu modo de agir
na vida. “O estilo de Lygia é muito sensível.
Uma sensibilidade que capta seus enredos no ar,
muito femininos e cheios de delicadeza”.
Lygia comentou:
-A arte é uma busca e a marca constante
da busca é a insatisfação. Na hora em que o artista
botar a coroa de louros na cabeça e disser
que está satisfeito, nessa mesma hora ele morre
como artista. Ou já estava morto.
A coletânea ”Os Contos” de Lygia Fagundes
Telles na verdade representa um verdadeiro
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Chicos
documento histórico e literário escrito por uma
grande escritora brasileira que trabalhou arduamente
a vida inteira para deixar uma obra consistente
nestes tempos brasileiros de tantos equívocos.
Não é assim. A Literatura é um caminho
difícil de percorrer. É preciso persistir sempre,
garimpando as palavras para transformá-las em
literatura que retrate um tempo, uma época. Os
contos reunidos de Lygia descrevem todos os
sentidos da vida do homem, suas angústias, perdas,
solidão, desesperos, a falta de rumos, o desencanto,
o amor, o desamor, o esquecimento, a
vida, a morte, os ferimentos.
O volume reúne contos de todos os livros
da autora no gênero, como “Porão e Sobrado”
(1938). “Praia Viva” (1944), “O Cacto Vermelho”
(1949), “Histórias dos Desencontros”
(1949), “O Jardim Selvagem” (1965),
“Antes do Baile Verde” (1970), “Seminário dos
Ratos” (1977), “Filhos Pródigos” (1978), reeditado
em 1991como “A Estrutura da Bolha de
Sabão”, “A Disciplina do amor” (1980),
“Mistérios” (1981), “Venha ver o pôr do sol e
outros contos” (1987), “A Noite escura mais
Eu” (1995) e “Oito Contos de Amor” (1996).
Com razão, Walnice Nogueira Galvão observa
que ao mesmo tempo que cativa, a literatura
de Lygia Fagundes Telles desnorteia o leitor.
Há mulheres personagens com olhar inclemente
e impiedoso, mas não isento de compaixão,
sem que essa compaixão consiga turvar a
lucidez. Nada de sentimental, essa mulher é dura
e sagaz nos seus diagnósticos: “Senhora de seu
ofício no conto que podemos chamar de realistas,
nos quais não há o que objetar em questão
de fidelidade. Lygia nos dá exemplares muito
bem realizados do conto fantástico”.
O texto corre normalmente, mas, de repente,
o fantástico explode tudo, deixando os fragmentos
de uma prosa mágica com enredo que
explica a vida do homem. Cuidadosa com o zelo
por sua literatura, Lygia sempre percorreu os caminhos
mais difíceis. Uma busca constante, que
não para nunca. Avança sobre ela mesma a conduzir
uma narrativa das melhores produzidas pela
literatura do Brasil. Walnice Nogueira Galvão
acentua que um dos grandes achados de Lygia é
uma imagem que estrutura internamente seus
contos: “Essa imagem é um concentrado ou condensado
de sentido, uma síntese extremada de
tudo que conta ou insinua. De tal modo que,
quando aparece, traz consigo um senso de revelação,
iluminando em rastilho toda a narrativa”.
A esta altura da vida, Lygia não tem
mais a desenvoltura física de se expor. Não está
isolada de tudo. Não. Mas são poucas as pessoas
que conseguem falar com ela. Poucas. E de uma
conversa amiga vai-se separando o que pensa da
vida e da literatura, sempre a literatura no fundo
de sua vida. Ensina ser preciso ter esperança
sempre. Um escritor sem esperança representa
uma grande contradição. Lygia é espiritualista.
Não é com todos que fala sobre esse assunto.
Será preciso ganhar sua confiança. Para ela, a
alma permanece. Não sabe onde, mas permanece.
-Não acho que tudo termina com a morte.
Acho até que muitos amigos que já morreram
vêm nos visitar.
Creio que cabem aqui alguns trechos de
longa entrevista que fiz com Lygia para meu livro
“Palavra de Mulher” (Editora Senac, SP,
2003) até para que mostrem a coerência dessa
mulher dona de uma literatura que nunca se rendeu
às facilidades, procurando, sempre, revelar o
que poucos conseguem ver.
Seguem esses trechos:
Ah!, a necessidade de mudar as frases,
as palavras. Sempre foi assim em relação à sua
obra. A cada reedição de seus livros as alterações
são inevitáveis. Lygia se diz uma escritora
inconformada e insatisfeita. Até gostaria de ser
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Chicos
um daqueles escritores que permanecem no alto
de sua montanha contemplando a própria beleza.
Mas não. Não será. Sempre terá a necessidade
de buscar o inatingível. Sempre desejará a
perfeição. É uma exigência que se impõe. Por
esse motivo já matou seus primeiros livros. Não
existem mais.
Desapareceram de sua cabeça. Desapareceram
de sua alma. Eram livros sem alma. Agora é diferente.
Agora tem de buscar sempre. Sempre.
Sempre. Quer falar como falam os jogadores de
futebol, depois de uma partida:
-Dei tudo de mim!
Quer falar assim, com um ponto de exclamação.
Lygia chama essa inquietação de
“inspiração”. É um momento de desespero, de
alegria e tristeza:
-Nesse momento se juntam os anjos e os
demônios. É a hora da paixão. É assim que escrevo.
Depois vem a calma. Então eu corto,
acrescento, rasgo, esqueço. É a hora do artesanato,
na qual me torno minha pior inimiga.
Percebe, então, como não é nada generosa
consigo mesma. Nem afetuosa. É para si
mesma uma pessoa estranha. Não se contempla,
não se dá perdão, não se aceita. É o instante da
autoflagelação:
-Tenho vocação para santo. Eu me chicoteio
até cair. Mas esse é também o momento de
celebração, porque estou percorrendo minha literatura
com minhas ferramentas para que me conheçam
melhor. Essa é a recompensa. Lygia costuma
chorar ao ver, por exemplo, as legiões de
crianças abandonadas à própria sorte. O Brasil
tem acenos de primeiro mundo de seus mandatários,
mas caminha para o quarto mundo, um
estado de plena miséria. Essa pobreza contaminou
quase tudo. Cita a televisão, essa fábrica de
boçalidades.
Lygia confessa ter paixão pelos poetas e
pela poesia:
-Todos meus grandes amigos são poetas.
Sempre convivi com poetas. Sempre dividi minha
vida com poetas. Não sei como me transformei
em prosadora. Fico muito feliz quando alguém
diz que minha prosa é poética.
Lygia Fagundes Telles tem em Deus o seu
refúgio. Tem paixão por Deus. Recorre a ele nos
momentos aflitos. Esse é seu lado espiritual.
Uma face intensa. Que lhe dá alegria. Essa paixão
por Deus se estende a Jesus, por tudo que
ele fez na sua vida de 33 anos. Como homem e
como filho de Deus. E Jesus é importante para o
planeta enfermo, que cada vez mais necessita de
luz. Um planeta que se destrói, que vai se exaurindo.
Ela recorre a essa luz que é Jesus para se
iluminar. E se ilumina. Consegue, então, pairar
sobre a grande escuridão que é a natureza humana.
Esse escuro da vida que precisa clarear,
escrevendo sempre entre os caminhos secretos e
dos descaminhos do homem. Sempre com o
pensamento de ajudar o próximo. Sempre, de
alguma maneira, cultivando a solidariedade entre
as pessoas. De alguma maneira, é preciso saberse
útil.
-Nada é em vão, embora tudo pareça provisório.
Mas não é. Nunca será. Por isso sempre
preciso seguir em frente. Será sempre preciso
subsistir. Sempre será preciso.
Quando se olha no espelho, Lygia não se
diz nada. Apenas se observa, percorre seu próprio
rosto com o olhar possível, a medir distâncias,
ausências, histórias, angústias, silêncios. As
pessoas que partiram para sempre, mas permanecem.
Estão presentes, como se nunca tivessem
partido. Ela se olha no espelho e pensa ser preciso
sempre se olhar com dignidade:
-Minha face no espelho nem me alegra
nem me entristece. Meu rosto é como uma máscara
que uso, que preciso usar. Talvez seja
até cômodo usá-la. Uma máscara contornável.
68
Chicos
Suponho que seja agradável.
Assim falou Lygia, para o livro de entrevistas
“Palavra de Mulher”, publicado por mim em
2003. A mesma palavra. A coerência. As palavras
em chama. Hoje vejo Lygia quieta em sua
poltrona. Os olhos continuam meigos. As mãos
delicadas. As palavras faladas agora vagarosamente.
Sílaba por sílaba. Mesmo a esta altura da
vida, Lygia vê o leitor como um cúmplice nas
suas histórias. A palavra ajuda a pensar melhor
na vida. A velhice complica, torna tudo mais
difícil. Na juventude, a gente se atira pela janela
e sai voando. Já na velhice, sente-se medo.
sua grande paixão, uma paixão que sempre cultivou.
Hoje está tudo longe. Uma paisagem distante
de quase tudo. Acha que agora vivemos
um tempo de vulgaridades. E nessa vulgaridade,
infelizmente, de alguma maneira, está na figura
da mulher que se expõe de toda maneira, em
busca de fama, uma exposição que cresce cada
vez mais nos meios de comunicação. A mulher
que não se respeita como mulher. Resume tudo
numa única frase de algumas palavras:
-Poeta, é um tempo de toda vulgaridade.
Eu sinto vergonha.
Lygia lembra Einstein, para quem, como
dizia, por trás da vida existe algo inexplicável.
Para ela, trata-se da alma. Pouco se aproximou
dos computadores. Gosta mesmo é do barulho
da datilografia, o barulho de sua velha
“Olivetti”. Não gosta de comentar sua idade.
Tudo agora é passado. Mas continua a pensar
como sempre pensou. Por exemplo: vê três espécies
em extinção: o índio, as árvores e o escritor.
No entanto, observa que sempre reagiu, porque
aprendeu a trabalhar com esperança no coração.
Mesmo assim, às vezes ri de si mesma.
Do signo Áries, afirma receber energia do sol, o
que significa receber energia de Deus. E Deus é
* Álvaro Alves de Faria
Nasceu em São Paulo SP. É poeta, ensaísta e jornalista. Estréia com o livro Noturno
Maior, publicado em 1963; Ganhador de vários prêmios, o poeta faz parte
da Geração 60 da poesia de São Paulo, junto com nomes como Carlos Felipe
Moisés, Jorge Mautner, Eunice Arruda), Claudio Willer, entre outros. Sua ampla
obra caracteriza-se pelo extremo lirismo e pela contestação social e política.
69
Minas Gerais - 300 anos
Chicos
*Hugo Pontes
Chamamos a atenção para o fato de,
com a sobreposição do atual Estado de Minas
aos mapas de então, o território, em parte,
encontrava-se nas terras pertencentes à
Coroa de Castela.
Somente a partir de 1534 as Terras de
Santa Cruz foram divididas em Capitanias
Hereditárias para garantir a sua posse, uma
vez que o aumento do tráfico da madeira
pau-brasil, por estrangeiros, não era contido
pelas expedições guarda-costeiras.
Bandeira de Minas Gerais
Fazer uma retrospectiva histórica, mesmo
que ligeira, sobre a constituição dos limites
do território brasileiro é importante porque
vários fatos históricos favoreceram a formação
do Estado de Minas Gerais.
Vamos retornar ao tempo anterior a
1500, ano em que a Coroa Portuguesa tomou
posse do território a que os portugueses
denominaram Terra de Santa Cruz. No dia 7
de julho de 1494, foi assinado pelos reis de
Portugal e os Reis Católicos de Castela - parte
da Espanha - o Tratado de Tordesilhas definindo
a divisão, entre as duas Coroas, do
chamado Novo Mundo descoberto por Cristóvão
Colombo.
A forma de administração territorial,
adotada no Brasil pela Coroa portuguesa foi
a das Capitanias, que vigorou até serem extintas
pouco mais de um ano antes da declaração
da Independência, muito embora os
limites do Tratado de Tordesilhas não vigorassem,
na prática, há anos.
Com isso, o processo da formação do
território que compreendia Minas Gerais remonta
- historicamente - à época do Brasil-
Colônia, à sua organização em capitanias hereditárias
e à distribuição de sesmarias à medida
que os bandeirantes desbravadores caminhavam
pelo interior em busca de ouro e
pedras preciosas. Dessa forma, Portugal consegue
romper a linha do Tratado de Tordesilhas
e anexar terras espanholas ao domínio
português.
Tendo como exemplo essa investida sobre
terras espanholas, Minas Gerais foi constituída
a partir de incorporações e anexações de
partes das terras de capitanias com as quais
70
Chicos
fazia divisa. O governo português, hábil estrategista,
criou a capitania das Minas Gerais
como território mediterrâneo, isolando-o e
não oferecendo uma saída para o mar, com
o objetivo de controlar a produção e o comércio
de ouro em relação às outras capitanias
como Goiás, Mato Grosso e São Paulo.
Anterior a essa concepção políticogeográfica,
Minas Gerais não existia. O descobrimento
de Minas Gerais deu-se em
1664, quando as primeiras Entradas chegaram
para fazer explorações nestas terras. A
futura província foi, aos poucos, constituída
à proporção em que as Bandeiras avançavam
sobre a demarcação que compreendia o Tratado
de Tordesilhas.
de 1720. Dessa carta ficaram de fora as regiões
do triângulo e do sul de Minas que continuaram
pertencendo à Capitania de São
Paulo.
Neste 2020 completam-se 300 anos de
uma das primeiras perspectivas de independência
no nosso território que durante toda a
sua existência foi muito cobiçado pelas riquezas
minerais que - a despeito de toda a
exploração que existe até os dias atuais -
constituem as suas terras.
Segundo os estudiosos da nossa história,
o território mineiro foi desmembrado da
Capitania do Rio de Janeiro em 1709, sob a
denominação de Capitania Unidade de São
Paulo e Minas Gerais dos Cataguás. Em 21
de fevereiro de 1720 foi desanexada, em
parte, de São Paulo, através de uma carta
régia elevando-a à categoria de Capitania
Independente de Minas Gerais e que foi efetivada
através do alvará de 02 de dezembro
* Hugo Pontes
Nasceu em Três Corações MG e mora em Poços de Caldas (MG). Poeta e professor,
fundou o Grupo VIX de poesia de vanguarda junto com Márcio Almeida,
Márcio Vicente Silveira Santos e Waldemar de Oliveira. Fez parte do movimento
de Poema/ Processo com o grupo de poetas de Cataguases. Sua produção está
ligada à poesia, ao poema visual, à arte postal e arte-xerox. Nos anos 1990, participa
de exposições no Canadá, Hungria, Rússia e Austrália com a temática do poema
visual. Desde 1996, mantém o site Poema Visual, que divulga poemas visuais e
71
Chicos
Lendo os Clássicos
*Luiz Ruffato
Morrer sozinho em Berlim (1947)
Este livro é a prova inconteste de que é
possível engendrar grandes livros em situações
absolutamente excepcionais. Neste
caso, trata-se, sem dúvida, de um dos melhores
livros que li em toda a minha vida.
Publicado em 1947, e escrito no ano anterior,
portanto, logo após o fim da Segunda
Guerra Mundial, descreve, de forma brilhante,
a vida de cidadãos comuns sob a
vigência do regime nazista, e a resistência,
por vezes patética, à brutalidade, à insanidade,
à insensibilidade que a todos contamina.
O casal Otto e Anna Quangel, trinta
anos de casados, "sempre em harmonia,
ele silencioso e calmo, ela trazendo um
pouco de vida à casa" (p. 23), vive num
prédio na Jablonskistrasse, em Berlim, sem
contato com quase ninguém, tentando se
manter à margem das imposturas da ditadura
de Adolf Hitler. Em 1940, após receber
uma carta-padrão informando a morte
do único filho na frente de batalha, aquilo
que neles era indignação silenciosa transforma-se
em vontade de realizar algo que
pudesse abalar as pessoas. Então, Otto, um
sujeito de seus cinquenta anos, profissional
respeitado, ex-proprietário de uma pequena
marcenaria, falida em 1930, agora encarregado
na Movelaria Krause (que, seguindo
o curso da guerra, se transformará
em fábrica de caixas para bombas e por
fim em fábrica de caixões), insuspeito em
sua devotada neutralidade e dono de um
ritmo de vida obcecadamente rotineiro,
resolve agir. Com a anuência de Anna, ele
72
Chicos
passa a escrever cartões com palavras de
ordem contra o governo, o que se constitui
crime de alta traição, que abandona em
locais aleatórios. A regularidade com que
esses cartões são entregues à polícia acaba
chamando a atenção da Gestapo, que destaca
um delegado, Escherich, para investigar
e prender o subversivo. Otto estava
convencido de que, "mesmo que seu efeito
seja somente o de essa gente perceber novamente
acaba chamando a atenção da
Gestapo, que destaca um delegado, Escherich,
para investigar e prender o subversivo.
Otto estava convencido de que,
"mesmo que seu efeito seja somente o de
essa gente perceber novamente que ainda
há resistência, que nem todos seguem o
Führer. (...) Talvez façamos os outros pensarem
em escrever cartões parecidos. No
final, serão dezenas, centenas, sentados,
escrevendo... Vamos soterrar Berlim com
os cartões, vamos interromper o curso da
máquina, vamos derrubar o Fürher, acabar
com a guerra" (p. 174). Com o passar do
tempo, Otto encoraja-se e a passa também
a escrever cartas contra Hitler e o regime
nazista. Aos poucos, o delegado Escherich,
usando de métodos científicos, traça
o perfil daquele homem tão procurado e
vai se acercando dele. Até que, por um
descuido, em 1942, Otto é detido e levado
para a prisão, assim como Anna. É quando
Otto, por meio do delegado, descobre que,
dos 276 cartões e nove cartas espalhadas
por Berlim, ao longo de dois anos, apenas
18 não foram entregues à polícia. O delegado
o invectiva, dizendo que ele conseguiu
apenas trazer "medo e aflição" às
pessoas que encontravam os cartões: "Elas
quase se desmanchavam de terror, algumas
foram presas e conheço um que, com
certeza, se suicidou por causa deles" (p.
447). Decepcionado, frustrado, Otto admite
a derrota "nunca soube avaliar as pessoas
direito" (p. 448), mas ao mesmo tempo
tem consciência de ter feito a sua parte,
lembrando as palavras de seu colega de
cela, o maestro Reichhardt, de que "todo
homem morre sozinho. Mas não é por isso
que estamos sozinhos (...) não é por isso
que vamos morrer em vão. Nada acontece
por acaso neste mundo, e, como lutamos
pela justiça contra a violência cega, acabaremos
vencedores" (p. 509). Na prisão, Otto
e Anna serão terrivelmente torturados e
Anna, sem querer, mencionará os nomes
de Trudel Baumann, ex-noiva do filho,
agora casada com Karl Hergesell, e de seu
irmão, Ulrich. Presos, Karl morrerá em decorrência
das torturas, Trudel se suicidará
e Ulrich enlouquecerá. Curiosamente, o
delegado Escherich, que durante todo o
tempo tenta obsessivamente encontrar
aquele que chama de "solerte", torna-se o
único homem convertido pelos cartões de
Otto Quangel e, não suportando compreender
seu papel na máquina de tortura e
morte do regime nazista, estoura os miolos.
Ao final, Otto é decapitado e Anna
morre nos escombros da prisão, após um
bombardeio da aviação aliada. O romance
é escrito como uma espécie de thriller policial,
com reviravoltas, mas sem malabarismos,
pois já sabemos, desde o princípio
73
Chicos
do resultado daquela ação quixotesca,
de um mosquito que quer lutar contra o
elefante, como afirma o delegado Escherich:
"um simples trabalhador quer lutar
contra o Führer, que é apoiado pelo partido,
o Exército, a SS, a SA?" (p. 448). De
uma maneira impressionante, o narrador
opera com dezenas de personagens, profundos
em sua complexidade, explicitando
as várias facetas da Alemanha sob o jugo
nazista - o antissemitismo, as milícias formadas
por ladrões, assassinos e corruptos,
o medo, a deduragem, o clima de terror,
algo que o honesto juiz Fromm descreve
como "uma metade do povo aprisiona a
outra metade (...) Quanto pior melhor. O
fim chega mais rápido" (p. 441). Mas, no
meio dessa barbárie, há lugar para pequenos
grandes atos heroicos, como o de Otto
e Elise Hampel, nomes verdadeiros das
pessoas reais que inspiraram o romance.
Morrer sozinho em Berlim (1947)
Hans Fallada (1893-1947) - ALEMANHA
Tradução: Claudia Abeling
São Paulo: Estação Liberdade, 2018, 639 páginas
Avaliação: Obra prima
* Luiz Ruffato
Nasceu em Cataguases MG, reside em São Paulo SP. Entre tantas obras de sua
autoria destacam-se: Eles eram muitos cavalos, de 2001, ganhou o Troféu
APCA oferecido pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado
de Assis da Fundação Biblioteca Nacional. Esse livro o tornou um escritor reconhecido
no país. Em 2011 concluiu o projeto Inferno Provisório, com a publicação do
romance Domingos Sem Deus, iniciado com Mamma, son tanto Felice em 2005,
composto por cinco livros sobre o operariado brasileiro.
74
Chicos
Clips
Cartografia do abismo
Ronaldo Cagiano
Editora Laranja Original
ano de edição: 2020
www.laranjaoriginal.com.br
A cartografia passa por muitos momentos da
literatura e diversas partes do planeta, aproximadas
pela presença do poeta, que palmeia o mapa
de sua vida, nesse balanço um tanto precoce e
talvez por isso mais pungente e inquietante. Brasileiro
vivendo há vários anos em Portugal, incorpora
autores lusitanos às suas referências,
entre outros, expandindo a própria expressão ao
mesmo tempo em que rompe as convenções territoriais
que tantas vezes constrangem os artistas
com falsos limites. Enfim, trata-se de um tema
da banalidade cotidiana universal e, paradoxo,
eterno. É grito e lamento diante do absurdo que
se renova a cada fração de segundo da consciência.
Um construir que se dá exatamente na sua
negação.
Uma agulha no coração
Adília César
Editora Urutau
ano de edição: 2020
www.editoraurutau.com.br
Uma agulha no coração, Adília César reúne seu
arsenal afetivo e sensorial para traçar a cartografia
da memória e de uma mitologia pessoal. Na
tessitura do poema, fecunda seu diálogo com
um território íntimo e físico, sendo o coração e a
casa receptáculos simbólicos de uma evocação
lírica. Se para a poeta “o mapa do lar é um labirinto”
onde confluem tensões e apreensões, nele
faz a catarse das pulsões e ambiguidades do ser.
Nessa autópsia de “Acontecimentos, emoções,
equívocos, patologias” deslinda-se um cenário
em que objetos, espaços, lembranças, fantasmas
e obsessões falam sobre “este lugar-corpo”: o
amor. Em sofisticado discurso poético, a poeta
desvela o “espectro que funde o lado de dentro
com o lado de fora” e, à maneira de Saint-
Exupéry, reconhece que, em meio à relatividade
dos sentimentos, “o essencial ainda está invisível
em todas as equações”.
Ronaldo Cagiano
75
Chicos
Hidroavião
Alberto Bresciani
Editora Patuá
ano de edição: 2020
www.editorapatua.com.br
“Muito se tem falado que a poesia de Alberto
Bresciani tem como marca a simplicidade, porque
é acessível a todos os leitores. Eu digo que é
mais do que isso. Em Hidroavião, solidifica-se
uma escrita cuja tessitura é a honestidade. Vem
daí o diálogo fluido com o leitor. Uma conversa
em versos na qual emissor e receptor se unem
por meio de uma emoção íntegra. Esta obra, para
além do seu conteúdo, estabelece a personalidade
de um autor que se revela não apenas pelo
domínio de técnicas, mas, antes, e principalmente,
pelo respeito à poesia.
Hidroavião encanta e instiga. Traz, ao mesmo
tempo, a visibilidade sem rodeios das superfícies
e a profundidade das metáforas que oferecem ao
leitor um mergulho sem garantias até as fendas
abissais. Acerca disso, inclusive, é necessário
dizer mais. Que Alberto Bresciani insere, com
maestria, metáforas dentro de metáforas. Como
se criasse matrioskas poéticas. As menores —
mais escondidas — impressionam pela perfeição
e nitidez dos traços tanto quanto as maiores,
mais vistosas e exuberantes.”
Cinthia Kriemler, em posfácio, sobre Hidroavião
Pomba Um rio meu Seu Nosso
Washington Magalhães
GAM Editorial
ano de edição: 2020
livrodoriopomba@hotmail.com
Este livro não tem a pretensão de ser uma obra
pronta e acabada sobre o rio Pomba, um recurso
hídrico de substancial importância para parte da
Zona da Mata Mineira e do Noroeste Fluminense.
Ao longo de mais de 300 quilômetros, ele
serve a uma população onde vivem mais de 400
mil pessoas.
Mostrar um pouco de sua realidade e chamar a
atenção para seus principais problemas é o que
se quer de imediato. Isso, sem deixar de ressaltar
sua fascinante beleza natural.
A exceção de textos acadêmicos, pouco ou quase
nada existe sobre ele. Pomba, Um rio Meu
Seu Nosso, com uma linguagem objetiva e de
fácil leitura, certamente contribuirá para dar maior
consciência ecológica a todos nós.
Washington Magalhães
76
Chicos
La Tarda Estate
Luiz Ruffato
Tradução Marta Silvetti
La Nuova Frontiera
ano de edição: 2020
www.lanuovafrontiera.it
Edição italiana de O verão tardio, com ótima
tradução de Marta Silvetti.
“Questi alberi mi hanno vegliato, questo selciato
ha accompagnato i miei passi… I muri hanno le
orecchie, ma non la bocca. Se l’avessero, racconterebbero
del bambino magro che volava per la
città con la sua bicicletta Caloi verde, ingoiando
il paesaggio. Padrone del tempo, ampliavo sempre
di più gli orizzonti, senza sapere che questo
spazio, dilatato, mi avrebbe fatto perdere la rotta,
la testa, per poi, alla fine, sbarcare nello stesso
identico luogo, ma così diverso che non riesco
a ritrovare colui che sono stato, così come
spesso non riconosciamo, nelle vecchie fotografie,
i volti delle persone che abbiamo accanto.”
Narrato in prima persona, con i tratti vividi della
scrittura cinematografica e le atmosfere malinconiche
della stagione ormai al tramonto, La tarda
estate ci porta tra le strade di una cittadina brasiliana
che si fa microcosmo di un’intera società.
Matrioska de Chita: haicais e outros
poemas
Cassiana Lima Cardoso
Editora Venas Abiertas
ano de edição: 2020
“A leveza do haicai ao capturar num flash a
beleza de um instante sempre me encanta. E logo
no início já estou numa "manhã de chuva
fina / a primeira camélia branca desabrocha /
maior que em meus sonhos." e como é bom
amanhecer na poesia... passo por uma
"amendoeira distraída" e descubro uma amizade
secreta com a garça nos versos líquidos e translúcidos
de Cassiana, nesta que é a primeira seção
do livro, chamada Haicais Tropicais e Brejeiros.
Na segunda seção, Poemas de Quarentena, fui
convidada a habitar um apartamento cheio de
plantas, saudade e esperança. Há um tempo lento
que observa a rotina através dos versos que
me aconselham a "cultivar a chama (...) mesmo
do pequeno
apartamento /
sonhar as cores
do beijaflor
em brasa /
e gestar a liberdade
futura
/ em seu
voo" e renovam-me
as
forças. ...”
Diana Pilatti
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