JANEIRO-2021
Edição de Janeiro de 2021. Número 272 da Revista do Centro Lusitano de Zurique
Edição de Janeiro de 2021. Número 272 da Revista do Centro Lusitano de Zurique
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Como o Covid está a comer “o coco”
às pessoas!
A funcionária deu a sensação de
medo, de repulsa pelos outros e, afastando-se,
disse a Gervásia da Silva
para se dirigir aos seguranças que estavam
no meio do “hall” de entrada.
Entretanto, o marido foi para a rua e
ela perdida naquele mundo.
Depois de repetir vezes sem conta
a tal pergunta, um dos seguranças
apontou o dedo para o chão e informou:
- Minha senhora, siga a linha roxa.
Gervásia, que mais parecia um barril
de pólvora, lá descobriu a linha roxa
entre tantas, até parecia que no chão
estava desenhado um arco-íris.
Seguindo a linha roxa durante uns
metros em frente, um quarto de volta
depois virou à esquerda e chegou
a um guiché onde, sem que tivesse
tempo para se informar, ouviu:
- O que anda aqui a fazer? Não pode
estar aqui!
Humildemente, ainda cumprimentou
a funcionária e explicou o porquê
de estar ali:
- Preciso de saber onde faço o ecocardiograma.
- Ah! Não, não, isso não é aqui. Isso
faz-se no quinto andar, na cardiologia.
Tem de sair por aquela porta e
encontrar o elevador ou pergunte a
um segurança.
- Valha-me Santa Engrácia! Perguntar
a um segurança! Mas que informações
tão confusas!- “o barril de
pólvora” estava quase a explodir pelo
corredor escuro e frio.
Mais ao fundo, encontrou o elevador
e pressionou o botão da chamada.
Decorridos uns segundos, abriu-se a
porta mas, de repente, uma senhora
muito chique de malinha de verniz
no braço, enfiou-se dentro da caixa
metálica e, para espanto de Gervásia,
cada vez mais aflita, disse-lhe:
- Só pode ir uma pessoa.
- Mas eu estava primeiro! - retorquiu
Gervásia da Silva, cheia de azedume e
com vontade de lhe puxar os cabelos.
O elevador não demorou a descer, a
professora entrou e procurou o botão
do quinto andar. Qual quê! O elevador
só subia até ao quarto andar! Mas
que situação caricata…
Gervásia, ao rubro do nervosismo,
disse em voz alta:
- Que horror! Vou chegar mais que
atrasada e com o coração fora do sítio!
Mas que chatice!
Chegada ao quarto piso, deparou-se
com uma porta e dois guichés. Mal
balbuciou meia palavra, foi imediatamente
avisada por uma voz forte:
- A senhora não pode passar para
aqui!
- Caramba, não tenho a peste, só preciso
de ajuda!
- Está na linha amarela, aqui só podemos
estar nós e, ironicamente, “os
que lidamos com a peste todos os
dias”.
- Eu sei, tenho os pés na fita amarela,
mas como vou para o quinto andar?
E a voz continuou:
- Aí à esquerda estão as escadas.
Furiosa com a situação, virou as costas
e nem agradeceu a informação.
Depois de umas dezenas de degraus
ei-la no quinto piso! Uma súbita alegria
invadiu Gervásia que já estava a
sentir-se doente.
Uma sala pequena com duas portas.
À direita a pediatria e à esquerda a
cardiologia.
- Alto aí! Onde pensa que vai?
Apeteceu-lhe deitar-se no chão em
posição fetal e meter o dedo na boca,
mas venceu o desespero e “plantou-
-se“ à frente da porta da cardiologia
que estava aberta e esperou.
Dali não sairia, passasse o que se passasse.
Alguns minutos depois, veio de lá
uma enfermeira muito simpática, finalmente,
que com voz ténue levantou
o ânimo da professora. Já era hora
de encontrar alguém gentil naquele
hospital!
Depois dos acertos com alguma papelada,
a enfermeira aconselhou a
professora a sentar-se para esperar
pelo médico. Já mais calma, telefonou
ao Zé Paixão de quem sentiu saudades
naquele percurso sombrio.
- Zé, finalmente cheguei ao quinto
piso. Nem imaginas as peripécias! Já
te contarei…
Ali sentada e muito só, ia observando
o movimento dos médicos, enfermeiros,
empregados da limpeza e de
alguns pais que saíam e entravam na
pediatria.
Estava incrédula! Pensava para os seus
botões:
- Eu, a professora, que todos os dias
incute aos seus alunos as palavras bonitas:
bom dia, boa tarde, olá, como
está… transmito-lhes tantos valores
para serem no futuro cidadãos com
regras e coração, e depois, vejo este
pessoal adulto com formação académica
que mais parecem robots. Não
precisamos ser conhecidos para nos
cumprimentarmos… um bom dia
é tão fácil de pronunciar e sabe tão
bem ouvir! Será que o maldito Covid
também atacou a “bolsa” dos valores
humanos?
Em que Mundo tão desgarrado vivemos?
Embrulhada nos seus pensamentos e
envolta numa certa nostalgia, Gervásia
da Silva foi chamada para realizar
o tão esperado ecocardiograma.
Já não era sem tempo. Dois anos à
espera, nessa altura ainda nem a sua
última neta tinha nascido!
Lurdes Ribeiro
É possível que a minha colega Lurdes,
que ainda hoje faz tanta falta na
escola (conforme fotografia que junto
do dia de S. Martinho, onde me
“entalou” para participar numa aula
com a Maria Castanha e o Santo da
capa, para poder motivar o grupo
para a diferença de discurso directo
e indirecto, sem dar por isso, numa
tarde em festa como a escola deverá
ser todos os dias) nunca mais vá a um
hospital até que tudo isto passe. 1
É pena, pois só o afastamento provocado
por estes maus funcionários públicos
é responsável da duplicação de
mortes para além das do Covid.
A malta tem medo!
1 Foto ausente, devido a problemas
técnicos de última hora. As nossas desculpas.
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