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dominação só é de fato eficaz quando desobriga o dominante a dar explicações
a respeito de suas decisões. Quando estas são tomadas como óbvias. Ter de
argumentar é indicativo de fraqueza.
Coisas que convêm
Muito do que aprendemos na escola é sobre o mundo. Sobre o lugar onde
estamos. Sobre o terreno de jogo. Sobre as condições materiais da vida. Assim,
o movimento dos astros, os climas, o relevo, a vegetação, os outros animais, o
nosso próprio corpo, suas células, seus órgãos, seus sistemas de órgãos etc. E
tudo isso poderá nos interessar ou não. Mas raramente seremos estimulados a
relacionar assuntos tão diversos com nossas trajetórias específicas.
Até você, que adora física e química, que se encantou ao descobrir a
biologia como ciência da vida, deve admitir a existência de saberes mais
relacionados à sua própria vida. Fundamentais para continuar vivendo. Porque
uma coisa é a digestão celular e seus Complexos de Golgi. Outra é dar-se conta
de que rabada ou mocotó – no meu caso qualquer coisa com alho – não caem
bem em refeições noturnas.
Alguns destes saberes ajudam qualquer um. Seja você quem for. Como,
por exemplo, evitar um mergulho de cabeça numa piscina vazia. Tentar voar
sem nenhum recurso flutuador. Ou não confundir soro com vaselina na hora
que precisamos mais dos nutrientes do primeiro do que de lubrificação das
nossas vias sanguíneas.
Outras coisas que aprendemos têm a ver com nossas particularidades.
Recentemente aprendi, por acaso, uma prática dietética que revolucionou
minha rotina. Convidado para jantar por alunos/amigos médicos em Belo
Horizonte, optei por um risoto de camarão com quiabo. Nunca fui um grande
admirador de suas babas. Mas a iguaria se revelou magnífica e altamente
eficaz para o trânsito. Passei a noite dormitando no vaso. Dose excessiva, por
certo.
Mas, desde então, revelou-se terapêutico. Ingerido com moderação todas
as noites, tornou minhas manhãs menos presas. Mais respeitadoras dos fluxos
existenciais. Articuladas com a impermanência do mundo da vida. E se o preço
desta previsibilidade evacuativa parecer alto demais, afinal quiabo toda noite,
sempre se poderá optar por uma vida menos previsível. Uma surpresa a cada
manhã. Como já sugeriam há muito os inesquecíveis secos e molhados.
Todos esses saberes permitem identificar coisas que não nos convêm. E
discriminá-las das que nos convêm. São os primeiros passos para aprender a
viver. Perceber que as coisas do mundo não nos são indiferentes. Que algumas
nos caem bem e outras nos caem mal. Pelo menos por algum tempo. E que,
por isso mesmo, as julgamos boas e más. Enquanto este tempo durar.