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Mas na hora que você se abaixa de manhã para recolher o jornal que lhe
foi entregue por assinatura e se dispõe a ler, é porque tem certeza de que tudo
aquilo aconteceu mesmo. E quando você, conduzindo seu veículo, muda de
trajeto por conta de uma informação de trânsito ouvida no rádio, é por estar
seguro de que o caminho habitual estará congestionado, pelas razões
anunciadas.
Da mesma forma, quando alguém, agora longe da mídia, conversando
com você num bar, se apresenta como professor de ética da universidade,
como admirador de música sertaneja, como louco por fígado acebolado e
grão-de-bico com salada de agrião, você dá continuidade ao diálogo
presumindo que tudo isso seja verdade.
Porque se mentirmos sobre nós mesmos, impedimos nossos interlocutores
de conhecer nossas práticas, hábitos, apetites, em suma, para falar simples, de
saber quem somos. O que impediria nossa identificação. E qualquer confiança
na veracidade de nossas afirmações.
O efeito benéfico de qualquer afirmação mentirosa é sempre de curto
alcance. Pouco sustentável. Porque uma vez associada a prática ao autor, suas
declarações tornam-se doravante suspeitas. “Este não é de confiança”,
dizemos. E, se por hipótese, todos se tornassem mentirosos, se a mentira virasse
regra universal, qualquer iniciativa mentirosa seria ineficaz. Ninguém daria
crédito a um mentiroso, sabendo tratar-se de um. O que tornaria a convivência
impossível. Por tudo isso, só podemos concluir, então, que mentir não é
adequado. Não ajuda a viver e conviver bem.
Por que mentimos assim mesmo?
Mas, apesar de toda esta argumentação, o fato é que mentimos com
frequência. Uns mais, outros menos, é fato. Então, de duas uma: ou somos
ignorantes e não sabemos viver, servimo-nos de uma razão viciada e erramos a
cada mentira; ou então, a mentira nos parece, em situações concretas da vida,
muito conveniente. Conveniência nossa, do mentiroso, mas também
conveniência do outro. A quem pretendemos proteger da verdade.
Comecemos pelo mais comum. Mentir para atender a conveniência de
quem mente. Conveniência do canalha, que age mal com vistas a um benefício
próprio. Daquele que sonega suas verdadeiras intenções para fazer crer no que
não pretende e auferir benefícios desta falsa crença. Conveniência do
xavequeiro, do paquerador, que, com escopo de cópula singular, faz crer em
projetos de longa duração, com direito a nomes para a prole, bairro e
arquitetura da futura residência e envelhecimento compartilhado.
Sempre se poderia argumentar que as delícias proporcionadas por uma
aproximação física prazerosa, com um parceiro desejado, têm total primazia
quando comparadas às miudezas de vidas a longo prazo. Afinal, sempre
passam tantas coisas pela nossa cabeça quando cogitamos sobre o futuro.