Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
configurariam o tal mal pelo mal. Em defesa do autor, sempre se poderá
argumentar que sádicos e perversos agem mal porque têm algum prazer nisto.
Se assim não fosse, seriam demônios, na categorização kantiana.
Bem, até aqui concluímos que o homem não é nem animal nem demônio.
Mas, se a origem do mal não está na sensibilidade, coisa de corpo e de animal,
nem na razão prática, coisa de alma e de demônio, onde poderia estar?
Preste atenção agora. Aqui está o pulo do gato da teoria kantiana sobre o
mal. A sua origem estaria no encontro dos dois. Encontro da sensibilidade,
apetites e pulsões com a consciência moral, com a razão prática. E qual seria o
problema nesse encontro entre o que sentimos e o que pensamos? O mal estaria
na inversão da hierarquia legítima entre ambos. Numa defasagem entre o que
deveria acontecer e o que acaba acontecendo.
Comecemos pelo que deveria acontecer. Sempre segundo Kant, qual seria
a relação hierárquica legítima entre a consciência moral e os apetites do corpo?
A prevalência da primeira, é claro. Senão não seria Kant. De tal maneira que
os últimos devem ser satisfeitos dentro dos limites e das condições definidos
pela primeira. Em outras palavras, a satisfação deve ser buscada de acordo
com a lei moral. Se preferirem, a busca da felicidade deve estar subjugada ao
dever.
Passemos, agora, ao que acaba acontecendo. A inversão desta hierarquia
legítima. Isto é, na adequação indevida das normas aos apetites. No
alinhamento do dever aos interesses do momento. Na lei como trampolim para
a felicidade. Quando só deveríamos aceitar o gozo e a felicidade na medida em
que estivessem conforme a lei moral, o que fazemos é respeitar esta última nos
limites e nas condições que nos permitam gozar e buscar o mais eficazmente
possível a felicidade. Perceba que, nesta reflexão kantiana, a busca da
felicidade pode ser o próprio mal. Mas nem sempre os filósofos pensaram
assim.
Bem. Com estas propostas sobre o bem e o mal temos que pôr um fim a
este nosso segundo capítulo. Se você termina este capítulo com a sensação de
dúvida, de dispor de menos certezas sobre a vida e sobre a convivência do que
tinha antes de começar a leitura então nosso objetivo foi alcançado. Afinal,
ética tem mais a ver com problematização da nossa convivência do que com
um gabarito de respostas certas que o professor apresenta tirando do bolso de
seu avental.
Se você quiser ir além sobre o que discuti aqui, eis algumas sugestões
(sempre entre tantas outras também imperdíveis): Ética, de Adolfo Sanchez
Vazquez, Kant e a religião nos limites da simples razão, Marcel Conche e sua
Educação filosófica, Comte-Sponville e o capítulo “Labirintos da moral” do seu
Tratado do desespero e da beatitude. E aqui eu me calo para não
submergirmos.