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Crónica - “Do Nosso Cantinho para o Vosso Cantão”

CRÓNICA

Quando me apercebi

que era emigrante.

Vai ficar tudo bem

— regresso ao passado. A Ucrânia deixou de existir!

Aragonez Marques (*)

Tal como o meu amigo

Manuel Araújo,

também eu não estou,

nas melhores

condições de saúde.

Ando entre as quimioterapias

e as radioterapias...pias.

Engana-se quem pretende,

mesmo que

seja um bicho horroroso,

a tentar cortar-me

o pio da vida.

Vou piar este mês,

oferecendo-vos uma

pequena parte que

muitos de vocês também

viveram.

A consciência já sem

retorno de que tinham

deixado tudo

para trás.

Ficaram em baixo, mãos no

alto acenando e reprimindo

o choro. É a última imagem

que Carlos Novais recorda

da família.

Levantou-se e entrou numa

casa de banho minúscula,

inventada para caber ali.

Sentou-se apertado na sanita

e ficou, olhar na portinha,

mesmo na frente, sozinho,

meio perdido nos balanços.

Carregou no que julgava ser

o autoclismo e caiu-lhe na

frente uma mesa de mudar

fraldas.

Não deveria ser aquele o botão.

Fechou-a.

Olhou para o lado e viu-se

gigante num espelho de lavatório

que o surpreendeu

pela proximidade.

Que fazes tu aqui?

Começou a rir à gargalhada.

De repente parou.

Encostou as duas mãos ao

espelho ficando a imagem

no meio, como um abraço limitado

por incompleto.

Uma tristeza apertou-lhe o

peito, com dentes que mordiam,

por dentro.

Não conteve o choro alto

que se misturava com o forte

ruído de fundo.

Só nesse instante se deu

conta, que tinha sobrevoado

o Egipto e rumava a Timor-

-Leste a oito mil pés de altitude.

Bateram à porta, disseram-

-lhe em inglês que havia turbulência

e tinha que sair.

Abriu a portinha estreita e a

hospedeira, habituada tanto

a lágrimas como a risos,

mandou-o sentar e apertar o

cinto.

Acompanhou-o ao lugar,

confirmou se o cinto estava

bem colocado, e tocou-lhe o

ombro.

Aquele toque, sentiu-o como

uma carícia de toda a gente

que amava e tinha deixado,

a caminho do desconhecido.

Aragonez Marques

In O Que Foste lá Fazer?

(*) Escritor

Carlos Matos Gomes

Na atual fase do discurso ocidental

sobre a guerra na Ucrânia os dirigentes

políticos transmitem a mensagem

de, após a guerra, a situação

na UE voltar ao passado: não haverá

inflação, desemprego, a energia será

barata, a União Europeia continuará a

vender os seus produtos de alto valor

acrescentado no mercado mundial

— apesar de a energia vinda dos

EUA ser muito mais cara — o estado

de bem-estar com serviços de saúde

e de previdência social vai ser sustentável,

mesmo que as despesas com

armamento cresçam e as exportações

diminuam…

O discurso dos políticos europeus aos

crentes das suas nações lembra a afirmação

de Aristóteles há 2500 anos: o

tempo não existe, uma vez que nem o

passado, nem o futuro realmente existem,

o passado porque já passou, o

futuro porque ainda não é. O presente,

por sua vez, é momentâneo, fugaz,

imediatamente se torna passado. Mas

para os atuais dirigentes políticos europeus

não existe o problema da aporia,

o “caminho inexpugnável, sem saída”, o

paradoxo, a contradição entre o tempo

e o movimento. Para Aristóteles é o movimento

que organiza o tempo, para os

atuais dirigentes políticos a verdade é

a falácia que impingem aos europeus

de que, apesar do movimento que entretanto

ocorreu (com a invasão sobre

vários eixos do território, o tempo parou

na Ucrânia e arredores. A guerra na

Ucrânia, para eles, não vai ter consequências.

O presidente português chegou

a afirmar que até vamos ganhar

com ela. Vamos ficar melhor!

Os dirigentes europeus transmitem aos

europeus a mesma mensagem que a

igreja Católica transmitiu no início do

século vinte através da senhora de Fátima

a três pequenos pastores: a Rússia

será vencida e tudo ficará bem. Há

quem acredite!

Os dirigentes europeus falam como se

a guerra na Ucrânia não tivesse consequências.

Como se a Rússia já estivesse

a arrumar as malas e a voltar para

casa (Venham mais 5, de Zeca Afonso),

deixando a Ucrânia disponível para a

“reconstrução”! Zelenski, o porta-voz do

mais que corrupto regime de Kiev, e cabeça

de cartaz eleito por um exército

de ideologia nazi, de segregação racial

e política, de ditadura sobre o povo e

de negação de direitos democráticos

elementares, chegou ao ponto delirante

de exigir que a Rússia pague a dita

“reconstrução”!

De facto, goste-se ou não, a situação

real em nada corresponde a esta encenação

idílica. De facto, uma das três superpotências

mundiais sentiu-se ameaçada

o suficiente para romper uma

situação pantanosa de ameaça nas suas

fronteiras e desencadear uma invasão a

um Estado que vendera a sua soberania

e se dispusera a ser uma base para o

seu “enfraquecimento” continuado (objetivo

explicitado pelas autoridades dos

EUA, a velha tática do envenenamento

por arsénio). A Rússia decidiu cuspir a

mistela e tomar a iniciativa: invadiu a

Ucrânia.

Com perdas maiores ou menores, o

facto é que a Rússia ocupou uma faixa

de terreno de cerca de 200 km que vai

do norte (Donbass) até ao controlo das

margens dos mares de Azov e Negro, e

dos seus portos. A Rússia controla estes

terrenos decisivos e destruiu o tecido

produtivo da Ucrânia e as suas vias de

importação e exportação.

A situação de facto é que a Rússia tornou

a Ucrânia um Estado inviável, pois

a Rússia controla toda a produção de

cereais e a exportação de bens e matérias-primas;

controla o território que

podia servir de base de ataque próximo

(Donbass); controla os dois mares e os

seus portos. O poder político ucraniano

apenas existe porque tem apoio político

e militar dos EUA e o apoio financeiro

da UE. O poder político da Ucrânia

apenas se mantem apoiado pelas suas

forças armadas, que em nada se parecem

com forças armadas de Estados de

Democracia liberal.

Sendo esta a situação, a Ucrânia deixou

de existir como existia em termos do

que define um Estado: uma soberania

aceite pela população e pela comunidade

internacional sobre um território.

Na realidade uma superpotência ocupa

os pontos decisivos do território e tem

uma reserva de armas (incluindo armas

nucleares táticas) para impor uma decisão

militar quando o entender e, depois

das sanções ocidentais e da rutura civilizacional

que lhe foi imposta pelo Ocidente,

não tem nada a perder em termos

reputacionais se usar essas armas.

A superpotência invasora, a Rússia, tem

o apoio de retaguarda de outra superpotência,

a China e do grupo dos países

emergentes e foi colocada na situação

de que mais vale um rei ser temido do

que amado (Maquiavel).

A proposta de reconstrução da Ucrânia

parte do fantasioso pressuposto de

que a Rússia iria aceitar ceder tudo o

que conquistou a duras penas em vidas

e bens para deixar que os Estados

Unidos e a UE e as suas empresas reconstruíssem

a situação anterior e até,

na delirante proposta de Zelenski, que

a propaganda apresenta como um tipo

a ser levado em conta, que a Rússia pagasse

a reconstrução! Os dirigentes da

UE têm apresentado este alucinado raciocínio

como um programa a ser levado

a sério!

Um dos elementos essenciais de análise

de situação militar é pensar como o

adversário. Não se trata de moral, nem

de proselitismo, mas de análise, de encontrar

as hipóteses mais prováveis e as

hipóteses mais perigosas. É assim que

os militares abordam as situações e não

em termos de bondade e maldade, em

termos morais.

A Rússia tem uma longa história assim

como as suas forças armadas, os seus

exércitos. É credível, como nos tentam

convencer os dirigentes europeus, que

depois dos sacrifícios em vidas e em

destruições materiais a Federação Russa

retire da Ucrânia, deixe a situação

como estava em Fevereiro, que pague

a reconstrução de edifícios e infraestruturas,

apresente os seus militares e políticos

algemados (supõe-se) na gaiola

de um tribunal internacional na Holanda,

em Nova Iorque, ou em Bruxelas?

Este cenário faz algum sentido? Mas é o

que os dirigentes europeus têm estado

a impingir aos europeus e há um coro

de comentadores que faz eco desta insanidade!

Vamos (os europeus) pagar a reconstrução

de quê, de que Ucrânia?

(*) Autor escreve segundo o AO

14 Lusitano de Zurique - JUNHO 2022 | www.cldz.eu

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