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PÚBLICO E ÍNTIMO<br />
ISABEL LEAL<br />
Psicóloga clínica<br />
38 Caixa Woman<br />
Primavera<br />
Mesmo que o Sol no céu, brilhe, que<br />
as andorinhas comecem a chegar, que os<br />
dias de praia sejam já, além de possíveis,<br />
saborosos, parece quase mal andar de<br />
sorriso afivelado, ter os ombros erguidos,<br />
as costas direitas e a testa sem franzidos.<br />
Parece quase mal não ter um ror de<br />
queixas a apresentar, não aproveitar o mais<br />
insípido mote para desfiar um imenso<br />
rosário de desconfortos, não dizer mal, a<br />
eito, de tudo o que nos rodeia e diz respeito.<br />
Parece que o país, que, há anos, estava de<br />
tanga, agora está mesmo nuzinho e que,<br />
por tal, devemos envergonhar-nos da nossa<br />
impudica nudez. Devemos esconder a cara,<br />
imbuirmo-nos do clima de ruína e<br />
mostrarmo-nos decentemente<br />
compungidos e tristonhos.<br />
Para alguns, mergulhar de cabeça na<br />
desgraceira é mais do que fado, é estilo de<br />
vida, e ter como pretexto uma crise<br />
reconhecida internacionalmente, com todos<br />
os condimentos devidos, é um momento<br />
áureo, culminando sucessivos anúncios<br />
de cataclismos próximos, castigadores<br />
do nosso desatino e da nossa leviandade.<br />
Para esses, há, em fundo, um “eu bem te<br />
avisei”, um “eu já te tinha dito”, que, mesmo<br />
que inúteia ou falseados, permitem<br />
o estranho consolo do ter razão.<br />
Para outros, no entanto, o que se passa<br />
à sua volta não consegue transpor os<br />
pequenos muretes defensivos, habilmente<br />
tecidos como recursos pessoais, que<br />
permitem que a vida de cada um não seja<br />
um mero espelho do mundo circundante,<br />
da baixa política ou da alta finança.<br />
Consegue viver-se em sociedade, viver-se<br />
com menos dinheiro e com menos objetos,<br />
ter, algures, um sentimento de perda<br />
ou de desilusão, experimentar sensações<br />
de maior insegurança e, ainda assim,<br />
apreciar o que há para apreciar.<br />
As boas notícias, nos tempos em que<br />
Consegue viver-se<br />
em sociedade, viver-se<br />
com menos dinheiro e<br />
com menos objetos, ter,<br />
algures, um sentimento<br />
de perda ou de<br />
desilusão, experimentar<br />
sensações de maior<br />
insegurança e, ainda<br />
assim, apreciar o que<br />
há para apreciar.<br />
as noticias parecem todas más, são as que<br />
nos permitem perceber que se consegue<br />
sempre descobrir zonas de conforto e<br />
bem-estar, mesmo no meio de adversidades.<br />
Quando se consegue construir redutos<br />
íntimos onde que o que conta é quem se<br />
é e o que se partilha com quem se aprecia<br />
e gosta, o que vai acontecendo como pano<br />
de fundo da nossa existência não passa<br />
de cenários. Uns melhores do que outros,<br />
mas, em todo o caso, cenários que não<br />
têm a força de nos impedir de receber<br />
a primavera que chega.