Revista Eletrônica de Julho - Centrodoscapitaes.org.br
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Um mar <strong>de</strong> cerveja<<strong>br</strong> />
OSM Evandro Felisberto Carvalho – CFM<<strong>br</strong> />
evandro.felisberto@bol.com.<strong>br</strong><<strong>br</strong> />
Uma viagem minha no graneleiro “Rio Apa”, do Lloyd Brasileiro, em 1993, como Chefe <strong>de</strong> Máquinas,<<strong>br</strong> />
teve lances pitorescos.<<strong>br</strong> />
De Vitória ao primeiro porto <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga, Hong Kong, escalando em Cape Town para abastecimento,<<strong>br</strong> />
muita água foi empurrada. De Hong Kong a viagem prosseguiu para Taichung, na ilha <strong>de</strong> Taiwan. Voltamos ao<<strong>br</strong> />
continente chinês, para Shangai, usando porém o artifício <strong>de</strong> escalar antes em Ishigaki-Shima, no Japão, já que<<strong>br</strong> />
Taiwan não tem relações diplomáticas com a China continental e, em conseqüência, o navio não po<strong>de</strong>ria<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong>spachar <strong>de</strong> Taichung para lá.<<strong>br</strong> />
O Comandante Mário Container entrou na foz do Rio Yangtzé com toda-força-adiante. Ele tinha pressa<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> chegar a Shangai. Levamos uma semana <strong>de</strong>scarregando na maior cida<strong>de</strong> da República Popular da China.<<strong>br</strong> />
Provi<strong>de</strong>ncialmente para a guarnição, que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tantos dias <strong>de</strong> viagem já estava totalmente arribada,<<strong>br</strong> />
principalmente <strong>de</strong> cigarros, foi recebido o abono <strong>de</strong> viagem ao exterior. O Comandante mandou imediatamente<<strong>br</strong> />
que a Chiquinha provi<strong>de</strong>nciasse a cota da tripulação.<<strong>br</strong> />
Aí cabem dois esclarecimentos: Chiquinha era a enfermeira <strong>de</strong> bordo, um tremendo “remo torto”, com<<strong>br</strong> />
QI proporcional à sua feiura. Cota é a quantida<strong>de</strong>, limitada pelo Comandante, da compra <strong>de</strong> bens (bebidas,<<strong>br</strong> />
cigarros, perfumes, etc.), livres <strong>de</strong> impostos, para uso interno, quando no porto existe “Bond store” (entreposto<<strong>br</strong> />
aduaneiro).<<strong>br</strong> />
Prosseguindo: Com a relação do Bond store embaixo da asa, quer dizer, do <strong>br</strong>aço, a Enfermeira<<strong>br</strong> />
Chiquinha parte com o pedido para entregar ao Ship Chandler no Friendship store, tradicional shopping estatal<<strong>br</strong> />
da RPC. Só havia um <strong>de</strong>talhe importante: a Chiquinha não falava inglês e muito menos mandarim. O máximo<<strong>br</strong> />
do diálogo que ela conseguiu com o chinês que a aten<strong>de</strong>u, em meio a ridículas mímicas, foi “Rio Apa” e “Bond<<strong>br</strong> />
Store” retribuindo com um sorriso amarelo ao sorriso <strong>de</strong> compreensão do amarelo.<<strong>br</strong> />
Sorriso, aliás, era o que não faltava ultimamente na expressão da Chiquinha. Ela havia conseguido um<<strong>br</strong> />
namorado durante a viagem. Longas travessias fazem milagre. O premiado era o Primeiro Oficial <strong>de</strong> Máquinas,<<strong>br</strong> />
um tremendo come ferro e, pelo visto, outras coisas.<<strong>br</strong> />
Missão cumprida, Chiquinha voltou satisfeita para bordo e se apressou em anunciar a todos, pelo boca<<strong>br</strong> />
<strong>de</strong> ferro, que o pedido da cota estava feito.<<strong>br</strong> />
Passaram-se alguns dias e nada <strong>de</strong> cota. O pessoal da guarnição impaciente. Alguns já fumavam<<strong>br</strong> />
folha <strong>de</strong> louro e outros temperos da cozinha. De tanto ouvir reclamações da guarnição Chiquinha armou-se <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
coragem e com uma cópia do pedido voltou <strong>de</strong>cidida ao Friendship store. Discutiu, <strong>br</strong>igou e, cheia <strong>de</strong> moral,<<strong>br</strong> />
regressou para bordo anunciando ter dado uma tremenda <strong>br</strong>onca no Ship Chandler, um tal <strong>de</strong> Mao-Tsé-Tung,<<strong>br</strong> />
informando que no dia seguinte o Bond store estaria a bordo. A guarnição se acalmou. Alguns chegaram até a<<strong>br</strong> />
comentar a <strong>br</strong>avura da Chiquinha especulando que ela sabia falar um pouco <strong>de</strong> chinês, herança <strong>de</strong> seu extrabalho<<strong>br</strong> />
em uma pastelaria <strong>de</strong> Santos.<<strong>br</strong> />
Finalmente chegou a cota. Chiquinha feliz da vida (não aguentava mais ser co<strong>br</strong>ada pela tripulação)<<strong>br</strong> />
conferiu tudo no caminhão e fez o pagamento se livrando daquelas verdinhas que já a incomodavam.<<strong>br</strong> />
O uísque chinês era pior que o do Paraguai e o cigarro apenas um pouco melhor do que a folha <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
louro, em compensação a cerveja, que já havia sido saboreada no Seaman’s Club, era show <strong>de</strong> bola. Leve,<<strong>br</strong> />
saborosa e convenientemente barata. Uma caixa com 24 garrafas <strong>de</strong> 750 ml da Tsingtao Larger Beer custava<<strong>br</strong> />
apenas 7 dólares. Ninguém comprou menos <strong>de</strong> 10 caixas, alguns até 20 (naquele tempo podia).<<strong>br</strong> />
Pela tar<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pois do café, com os fumantes relaxados tragando seus cigarrinhos e os beberrões<<strong>br</strong> />
curtindo sua cervejinha, atracou ao costado outro caminhão carregado. Subiu a bordo um chinês procurando<<strong>br</strong> />
pela Chief Steward Chiquinha. Era outra cota. Explicação: Da segunda vez que a Chiquinha foi ao Friendship<<strong>br</strong> />
store, nervosa, falou com outro chinês pensando ser o mesmo da vez anterior – pra ela chinês era tudo igual.<<strong>br</strong> />
E agora? O que fazer?<<strong>br</strong> />
Uma idéia luminosa (às vezes ela tinha)! Uma rápida enquete com os tripulantes concluiu que todos<<strong>br</strong> />
concordavam em pagar uma segunda cota (cerveja por um preço daqueles dava até para substituir a água).<<strong>br</strong> />
Engradados <strong>de</strong> cerveja foram acomodados da melhor maneira possível, as caixas eram <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e muito<<strong>br</strong> />
pesadas. Quem tinha comprado <strong>de</strong>z caixas da primeira vez agora tinha vinte. Era um mar <strong>de</strong> cerveja.<<strong>br</strong> />
A escala seguinte a Shangai foi Busan na Coreia do Sul, com a <strong>de</strong>scarga terminando em Kokura no<<strong>br</strong> />
Japão. De Kokura o navio seguiu vazio para Portland, nos Estados Unidos, para carregar trigo. Vazio não seria<<strong>br</strong> />
bem o termo. Na verda<strong>de</strong> seguia a bordo um carregamento <strong>de</strong> Tsingtao Beer. Um paiol vazio na popa foi<<strong>br</strong> />
adaptado para receber os engradados com as garrafas (vazias, claro) <strong>de</strong> cerveja.<<strong>br</strong> />
O “Rio Apa” (eu havia <strong>de</strong>sembarcado em Portland) tempos <strong>de</strong>pois regressou ao Rio <strong>de</strong> Janeiro e ficou<<strong>br</strong> />
fun<strong>de</strong>ado durante alguns meses na Baia <strong>de</strong> Guanabara. O nosso transporte <strong>de</strong> longo curso já agonizava.<<strong>br</strong> />
Passaram-se alguns anos <strong>de</strong>ssa aventura e um belo dia encontro o eletricista João da Silva no<<strong>br</strong> />
Sindmar. Confi<strong>de</strong>nciou-me que os poucos tripulantes que ficaram embarcados até a entrega do navio ao novo<<strong>br</strong> />
armador (o Lloyd ven<strong>de</strong>u o “Rio Apa” para a Netumar) passaram muita necessida<strong>de</strong>. Com o Lloyd em fase <strong>de</strong><<strong>br</strong> />
liquidação, pagamento atrasado, estava difícil so<strong>br</strong>eviver. Tiveram a ajuda, para espanto meu, das garrafas<<strong>br</strong> />
vazias <strong>de</strong> cerveja. Foram negociadas com um comerciante <strong>de</strong> Niterói que veio a bordo apanhá-las <strong>de</strong> lancha.<<strong>br</strong> />
Foram vendidas centenas <strong>de</strong>las e o dinheiro apurado foi, naquela situação <strong>de</strong> penúria, compensador.<<strong>br</strong> />
Eufórico com a transação o marinheiro Juvenal, ao <strong>de</strong>scer para a lancha a última lingada <strong>de</strong> garrafas,<<strong>br</strong> />
exclamou agra<strong>de</strong>cido olhando para o céu:<<strong>br</strong> />
- O<strong>br</strong>igado Santa Chiquinha! Você foi a salvação da lavoura.<<strong>br</strong> />
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