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A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro

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Assim conversando, penetrámos no adro da mesquita de El-Azhar, onde mais<br />

fulgurante e estridente tumultuava a festa do Beiram. Mas já não me prendiam as<br />

surpresas daquele arraial muçulmano — nem almées dançando entre brilhos de vermelho<br />

e de ouro; nem poetas do deserto recitando as façanhas de Antar; nem Dervíxes, sob as<br />

suas tendas de linho, uivando em cadência os louvores de Alá... Calado, invadido pelo<br />

pensamento do Bab, revolvia comigo o confuso desejo de me aventurar nessa campanha<br />

espiritual! Se eu partisse para Tebas com Fradique?... Por que não? Tinha a mocidade, tinha<br />

o entusiasmo. Mais viril e nobre seria encetar no Oriente uma carreira de evangelista, que<br />

banalmente recolher à banal Lisboa, a escrevinhar tiras de papel, sob um bico de gás, na<br />

Gazeta de Portugal! E pouco a pouco deste desejo, como duma água que ferve, ia subindo<br />

o vapor lento duma visão. Via-me discípulo do Bab — recebendo nessa noite, do ulema<br />

de Bagdade, a iniciação da Verdade. E partia logo a pregar, a espalhar o verbo babista.<br />

Onde iria? A Portugal certamente, levando de preferência a salvação às almas que me<br />

eram mais caras. Como S. Paulo, embarcava numa galera: as tormentas assaltavam a<br />

minha proa apostólica: a imagem do Bab aparecia-me sobre as águas, e o seu sereno<br />

olhar enchia minha alma de fortaleza indomável. Um dia, por fim, avistava terra, e na<br />

manhã clara sulcava o claro Tejo, onde há tantos séculos não entra um enviado de Deus.<br />

Logo de longe lançava uma injúria às igrejas de Lisboa, construções duma Fé vetusta e<br />

menos pura. Desembarcava. E, abandonando as minhas bagagens, num desprendimento<br />

já divino de bens ainda terrestres, galgava aquela bendita Rua do Alecrim, e em meio do<br />

Loreto, à hora em que os Directores Gerais sobem devagar da Arcada, abria os braços e<br />

bradava: — «Eu sou a Porta!»<br />

Não mergulhei no Apostolado babista — mas sucedeu que, enlevado nestas<br />

fantasmagorias, me perdi de Fradique. E não sabia o caminho do Hotel Sheperd, —<br />

nem, para dele me informar, outros termos úteis, em árabe, além de água e amor! Foram<br />

angustiosos momentos em que farejei estonteado pelo largo de El-Azhar, tropeçando nos<br />

fogareiros onde fervia o café, esbarrando inconsideradamente contra rudes beduinos<br />

armados. Já por sobre a turba atirava, aos brados, o nome de Fradique — quando topei<br />

com ele olhando plàcidamente uma almée que dançava...<br />

Mas seguiu logo, encolhendo os ombros. Nem me permitiu adiante admirar um poeta,<br />

que, em meio de fellahs pasmados e de Mohrebinos arrimados às lanças, lia, numa toada<br />

langorosa e triste, tiras de papel ensebado. A Dança e a Poesia, afirmava Fradique, as<br />

duas grandes artes orientais, iram em misérrima decadência. Numa e outra se tinham<br />

perdido as tradições do estilo puro. As almées, pervertidas pela influência dos casinos<br />

do Ezbequieh onde se perneia o cancã — já poluiam a graça das velhas danças árabes,<br />

atirando a perna pelos ares à moda vil de Marselha!<br />

E na Poesia triunfava a mesma banalidade, mesclada de extravagância. As formas<br />

delicadas do classicismo persa nem se respeitavam, nem quase se conheciam; a fonte<br />

da imaginação secava entre os muçulmanos; e a pobre Poesia Oriental, tratando temas<br />

vetustos com uma ênfase preciosa, descambara, como a nossa, num Parnasianismo<br />

bárbaro. . .<br />

— De sorte — murmurei — que o Oriente...<br />

— Está tão medíocre como o Ocidente.<br />

E recolhemos ao hotel, devagar, enquanto Fradique, findando o charuto, me contava<br />

que o espírito oriental, hoje, vive só da actividade filosófica, agitado cada manhã por uma<br />

nova e complicada concepção da Moral, que Ihe oferecem os Lógicos dos bazares e os<br />

Metafísicos do deserto...<br />

Ao outro dia acompanhei Fradique a Boulak, onde ele ia embarcar para o Alto Egipto.<br />

O seu debarieh esperava, amarrado à estacaria, rente das casas do Velho Cairo, entre<br />

barcas de Assouan, carregadas de lentilha e de cana doce. O Sol mergulhava nas areias

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