A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
— denominado o Capsarius; e compravam também, como eu, um bolo numa tia Marta<br />
do Velabro ou das Carinas, para comerem a merenda — que chamavam o Ientaculum.<br />
Pois, meu caro, no mesmo instante, a venerável antiguidade desses hábitos tirou-lhes a<br />
vulgaridade toda que neles me humilhava tanto! Depois de os ter detestado, por serem<br />
comuns aos filhos do Silva procurador — respeitei-os por terem sido habituais nos filhos<br />
de Cipião. A compra do bolo tornou-se como um rito, que desde a Antiguidade todos os<br />
rapazes de escola cumpriam, e que me era dado por meu turno celebrar, numa honrosa<br />
solidariedade com a grande gente togada. Tudo isto, evidentemente, não o sentia com<br />
esta clara consciência. Mas nunca entrei daí por diante na tia Marta, sem erguer a cabeça,<br />
pensando com uma vanglória heróica: — «Assim faziam também os Romanos!» Era<br />
por esse tempo pouco mais alto que uma espada goda, e amava uma mulher obesa que<br />
morava ao fim da rua...»<br />
Nessa mesma carta, adiante, Fradique acrescenta: — «Levou-me pois efectivamente<br />
à História o meu amor da Unidade — amor que envolve o horror às interrupções, às<br />
lacunas, aos espaços escuros onde se não sabe o que há. Viajei por toda a parte viajável,<br />
li todos os livros de explorações e de travessias — porque me repugnava não conhecer o<br />
globo em que habito até aos seus extremos limites, e não sentira continua solidariedade<br />
do pedaço de terra que tenho sob os pés, com toda a outra terra que se arqueia para além.<br />
Por isso, incansavelmente exploro a História, para perceber até aos seus derradeiros<br />
limites a Humanidade a que pertenço, e sentir a compacta solidariedade do meu ser. com<br />
a de todos os que me precederam na vida. Talvez você murmure com desdém — «mera<br />
bisbilhotice!» Amigo meu, não despreze a bisbilhotice! Ela é um impulso humano, de<br />
latitude infinita, que, como todos, vai do reles ao sublime. Por um lado leva a escutar às<br />
portas — e pelo outro a descobrir a América!»<br />
O saber histórico de Fradique surpreendia, realmente, pela amplexidade e pelo<br />
detalhe. Um amigo nosso exclamava um dia, com essa ironia afável que nos homens de<br />
raça céltica sublinha e corrige a admiração: — «Aquele Fradique! Tira a charuteira, e dá<br />
uma síntese profunda, duma transparência de cristal, sobre a guerra do Peloponeso; —<br />
depois acende o charuto, e explica o feitio e o metal da fivela do cinturão de Leónidas!»<br />
Com efeito, a sua forte capacidade de compreender filosoficamente os movimentos<br />
colectivos, o seu fino poder de evocar psicologicamente os caracteres individuais —<br />
aliava-se nele a um minucioso saber arqueológico da vida, das maneiras, dos trajes, das<br />
armas, das festas, dos ritos de todas as idades, desde a Índia Védica até à França Imperial.<br />
As suas cartas a Oliveira Martins (sobre o Sebastianismo, o nosso Império no Oriente,<br />
o Marquês de Pombal) são verdadeiras maravilhas pela sagaz intuição, a alta potência<br />
sintética, a certeza do saber, a força e a abundância das ideias novas. E, por outro lado, a<br />
sua erudição arqueológica repetidamente esclareceu e auxiliou, na sábia composição das<br />
suas telas, o paciente e fino reconstrutor dos Costumes e das Maneiras da Antiguidade<br />
Clássica, o velho Suma-Rabema. Assim mo confessou uma tarde Suma-Rabema, regando<br />
as roseiras, no seu jardim de Chelsea.<br />
Fradique era de resto ajudado por uma prodigiosa memória, que tudo recolhia e tudo<br />
retinha — vasto e claro armazém de factos, de noções, de formas, todos bem arrumados,<br />
bem classificados, prontos sempre a servir. O nosso amigo Chambray afirmava que,<br />
comparável à memória de Fradique, como «instalação, ordem e excelência do stock», só<br />
conhecia a adega do café Inglês.<br />
A cultura de Fradique recebia um constante alimento e acréscimo das viagens que,<br />
sem cessar, empreendia, sob o impulso de admirações ou de curiosidades intelectuais.<br />
Só a Arqueologia o levou quatro vezes ao Oriente: — Ainda que a sua derradeira<br />
residência em Jerusalém, durante dezoito meses, foi motivada (segundo me afirmou o<br />
cônsul Raccolini), por poéticos amores com uma das mais esplêndidas mulheres da Siria,