A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
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Sempre que vinha a Portugal ia «retemperar a fibra» percorrendo uma província,<br />
lentamente, a cavalo — com demoras em vilas decrépitas que o encantavam, infindáveis<br />
cavaqueiras à lareira dos campos, fraternizações ruidosas nos adros e nas tavernas, idas<br />
festivas a romarias no carro de bois, no vetusto e venerável carro sabino, toldado de<br />
chita, enfeitado de louro. A sua região preferida era o Ribatejo, a terra chã da leziria e do<br />
boi. «Aí (diz ele), de jaleca e cinta, montado num potro, com a vara de campino erguida,<br />
correndo entre as manadas de gado, nos finos e lavados ares da manhã, sinto, mais que<br />
em nenhuma outra parte, a delicia de viver».<br />
Lisboa só lhe agradava — como paisagem. «Com três fortes retoques (escrevia-me ele<br />
em 1881, do Hotel Braganza) , com arvoredo e pinheiros mansos plantados nas colinas<br />
calvas da Outra Banda; com azulejos lustrosos e alegres revestindo as fachadas sujas do<br />
casario; com uma varredela definitiva por essas benditas ruas — Lisboa seria uma dessas<br />
belezas da Natureza criadas pelo Homem, que se tornam um motivo de sonho, de arte e<br />
de peregrinação. Mas uma existência enraizada em Lisboa não me parece tolerável. Falta<br />
aqui uma atmosfera intelectual, onde a alma respire. Depois certas feições, singutarmente<br />
repugnantes, dominam. Lisboa é uma cidade aliteratada, afadistada, catita e conselheiral.<br />
Há Iiteratice na simples maneira com que um caixeiro vende um metro de fita; e, nas<br />
próprias graças com que uma senhora recebe, transparece fadistice: mesmo na Arte há<br />
conselheirismo; e há catitismo mesmo nos cemitérios. Mas a náusea suprema, meu amigo,<br />
vem da politiquice e dos politiquetes».<br />
Fradique nutria pelos políticos todos os horrores, os mais injustificados: horror<br />
intelectual, julgando-os incultos, broncos, inaptos absolutamente para criar ou<br />
compreender ideias; horror mundano, pressupondo-os reles, de maneiras crassas,<br />
impróprios para se misturar a natureza de gosto; horror físico, imaginando que nunca se<br />
lavavam, rarissimamente mudavam de meias, e que deles provinha esse cheiro morno e<br />
mole, que tanto surpreende e enoja em S. Bento, aos que dele não têm o hábito profissional.<br />
Havia nestas ferozes opiniões, certamente, laivos de perfeita verdade. Mas em geral, os<br />
juízos de Fradique sobre a Política ofereciam o cunho dum preconceito que dogmatiza —<br />
e não duma observação que discrimina. Assim Iho afirmava eu uma manhã, no Braganza,<br />
mostrando que todas essas deficiências de espírito, de cultura, de maneiras, de gosto,<br />
de finura, tão acerbamente notadas por ele nos Políticos — se explicam suficientemente<br />
pela precipitada democratização da nossa sociedade; pela rasteira vulgaridade da vida<br />
provincial; pelas influências abomináveis da Universidade; e ainda por íntimas razões<br />
que são, no fundo, honrosas para esses desgraçados Políticos, votados por um fado<br />
vingador à destruição da nossa terra.<br />
Fradique replicou simplesmente:<br />
— Se um rato morto me disser, — «eu cheiro mal por isto e por aquilo e sobretudo por<br />
que apodreci», — eu nem por isso deixo de o mandar varrer do meu quarto.<br />
Havia aqui uma antipatia de instinto, toda fisiológica, cuja intransigência e obstinação<br />
nem factos nem raciocínios podiam vencer. Bem mais justo era o horror que lhe inspirava,<br />
na vida social de Lisboa, a inábil, descomedida e papalva imitação de Paris. Essa «saloia<br />
macaqueação», superiormente denunciada por ele numa carta que me escreveu em 1885,<br />
e onde assenta, num luminoso resumo, que «Lisboa é uma cidude traduzida do francês em<br />
calão» — tornava-se para Fradique, apenas transpunha Santa Apolónia, um tormento<br />
sincero. E a sua ansiedade perpétua era então descobrir, através da frandulagem do<br />
Francesismo, algum resto do genuino Portugal.<br />
Logo a comida constituía para ele um real desgosto. A cada instante em cartas, em<br />
conversas, se lastima de não poder conseguir «um cozido vernáculo!» — «Onde estão<br />
(exclama ele, algures) os pratos veneráveis do Portugal português, o pato com macarrão<br />
do século XVIII, a almôndega indigesta e divina do tempo das descobertas, ou essa