A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
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do corpo e originalidade da alma. Quando de lá voltar é um Adão forte e puro, virgem de<br />
literatura, com o crânio limpo de todos os conceitos e todas as noções amontoadas desde<br />
Aristóteles, podendo proceder soberbamente a um exame inédito das coisas humanas.<br />
Carlos, espírito que destilas espíritos, queres remergulhar nas Origens e vir comigo à<br />
inspiradora Hotentócia? Lá, livres e nus, estirados ao sol entre a palmeira e o regato que<br />
tu telarmente nos darão o sustento do corpo, com a nossa lança forte cravada na relva,<br />
e mulheres ao lado vertendo-nos, num canto doce, a porção de poesia e de sonho que a<br />
alma precisa — deixaremos livremente as ilhargas crestadas estalarem-nos de riso, à ideia<br />
das grandes Filosofias, e das grandes Morais, e das grandes Economias, e das grandes<br />
Críticas, e das grandes Pilhérias que vão por essa Europa, onde densos formigueiros de<br />
chapéus altos se atropelam, estonteados pelas superstições da civilização, pela ilusão do<br />
ouro, pelo pedantismo das ciências, pelas mistificações dos reformadores, pela escravidão<br />
da rotina, e pela estúpida admiração de si mesmos!...»<br />
Assim diz Fradique. Ora este «exame inédito das coisas humanas», só possível,<br />
segundo o poeta das LAPIDÁRIAS, ao Adão renovado que regressasse da Patagónia,<br />
com o espírito escarolado do pó e do lixo de longos anos de Literatura — tentou-o<br />
ele, sem deixar os muros clássicos da Rua de Varennes, com incomparável vigor e<br />
sinceridade. E nisto mostrava intrepidez moral. No mundo a que irresistivelmente o<br />
prendiam os seus gostos e os seus hábitos — mundo mediano e regrado, sem invenção<br />
e sem iniciativa intelectual, onde as Ideias, para agradar, devem ser como as Maneiras,<br />
«geralmente adoptadas» e não individualmente criadas — Fradique, com a sua indócil<br />
e brusca liberdade de Juízos, afrontava o perigo de passar por um petulante rebuscador<br />
de originalidade, ávido de gloriola e de excessivo destaque. Um espírito inventivo e<br />
novo, com uma força de pensar muito própria, deixando transbordar a vida abundante<br />
e múltipla que o anima e enche — é mais desagradável a esse mundo do que o homem,<br />
rudemente natural, que não regre e limite dentro das «Conveniências» a espessura da<br />
cabeleira, o estridor das risadas, e o franco mover dos membros grossos. Desse espírito<br />
indisciplinado e criador, logo se murmura com desconfiança: «Pretensioso! busca o efeito<br />
e o destaque!» Ora Fradique nada detestava mais intensamente do que o efeito e o destaque<br />
excessivo. Nunca Ihe conheci senão gravatas escuras. E tudo preferiria a ser apontado<br />
como um desses homens, que, sem ódio sincero a Diana e ao seu culto e só para que deles<br />
se fale com espanto nas praças, vão, em plena festa, agitando um grande facho, incendiarlhe<br />
o templo em Éfeso. Tudo preferiria — menos (como ele diz numa carta a Madame de<br />
Jouarre) «ter de vestir a Verdade nos armazéns do Louvre, para poder entrar com ela em<br />
casa de Ana de Varle, duquesa de Varle e de Orgemont. A entrar hei-de levar a minha<br />
amiga nua, toda nua, pisando os tapetes com os seus pés nus, enristando para os homens<br />
as pontas fecundas dos seus nobres seios nus. Amicus Mundus, sed magis amica Veritas!<br />
Este belo latim significa, minha madrinha, que eu, no fundo, julgo que a originalidade<br />
é agradável às mulheres e só desagradável aos homens — o que duplamente me leva a<br />
amá-la com pertinácia».<br />
Esta independência, esta livre elasticidade de espírito e intensa sinceridade —<br />
impedindo que, por sedução, ele se desse todo a um Sistema, onde para sempre<br />
permanecesse por inércia — eram de resto as qualidades que melhor convinham à função<br />
intelectual que, para Fradique, se tornara a mais continua e preferida «Não há em mim<br />
infelizmente (escrevia ele a Oliveira Martins, em 1882) nem um sábio, nem um filósofo.<br />
Quero dizer, não sou um desses homens seguros e úteis, destinados por temperamento às<br />
análises secundárias que se chamam Ciências, e que consistem em reduzir uma multidão<br />
de factos esparsos a Tipos e Leis particulares, por onde se explicam modalidades do<br />
Universo; nem sou também um desses homens, fascinantes e pouco seguros, destinados<br />
por génio às análises superiores que se chamam Filosofias, e que consistem em reduzir