A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
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Com efeito, nesta saudade de Fradique pelo Portugal antigo, havia amor do «pitoresco»,<br />
estranho num homem tão subjectivo e intelectual: mas, sobretudo, havia o ódio a esta<br />
universal modernização que reduz todos os costumes, crenças, ideias, gostos, modos,<br />
os mais ingénitos e mais originalmente próprios, a um tipo uniforme (representado pelo<br />
sujeito utilitário e sério de sobrecasaca preta) — com a monotonia com que o chinês apara<br />
todas as árvores dum jardim, até lhes dar a forma única e dogmática de pirâmide ou de<br />
vaso funerário.<br />
Por isso Fradique em Portugal amava sobretudo o povo — o povo que não mudou,<br />
como não muda a Natureza que o envolve e lhe comunica os seus caracteres graves e<br />
doces. Amava-o pelas suas qualidades, e também pelos seus defeitos: — pela sua morosa<br />
paciência de boi manso; pela alegria idílica que lhe poetiza o trabalho; pela calma<br />
aquiescência à vassalagem com que depois do Senhor Rei venera o Senhor Governo; pela<br />
sua doçura amaviosa e naturalista; pelo seu catolicismo pagão, e carinho fiel aos Deuses<br />
latinos, tornados santos calendares; pelos seus trajes, pelos seus cantos... «Amava-o ainda<br />
(diz ele) pela sua linguagem tão bronca e pobre, mas a única em Portugal onde se não<br />
sente odiosamente a influência do Lamartinismo ou das Sebentas de Direito Público».<br />
VI<br />
A última vez que Fradique visitou Lisboa foi essa em que o encontrei no Rato,<br />
lamentando os saraus beatos e sécios do século XVIII. O antigo poeta das LAPIDÁRIAS<br />
tinha então cinquenta anos; e cada dia se prendia mais à quieta doçura dos seus hábitos<br />
de Paris.<br />
Fradique habitava, na Rua de Varennes, desde 1880, uma ala do antigo palácio dos<br />
Duques de Tredennes, que ele mobilara com um luxo sóbrio e grave — tendo sempre<br />
detestado esse atulhamento de alfaias e estofos, onde inextricavelmente se embaralham<br />
e se contradizem as Artes e os Séculos, e que, sob o bárbaro e justo nome de bricabraque,<br />
tanto seduz os financeiros e as cocottes. Nobres e ricas tapeçarias de Paisagem e de<br />
História; amplos divãs de Aubusson; alguns móveis de arte da Renascença Francesa;<br />
porcelanas raras de Delft e da China; espaço, claridade, uma harmonia de tons castos —<br />
eis o que se encontrava nas cinco salas que constituiam o «covil» de Fradique. Todas as<br />
varandas, de ferro rendilhado, datando de Luis XIV, abriam sobre um desses jardins de<br />
árvores antigas, que, naquele bairro fidalgo e eclesiástico, formam retiros de silêncio e<br />
paz silvana, onde por vezes, nas noites de Maio, se arrisca a cantar um rouxinol.<br />
A vida de Fradique era medida por um relógio Secular, que precedia o toque lento<br />
e quase austero das horas, com uma toada argentina de antiga dança de corte: e era<br />
mantida numa imutável regularidade pelo seu criado Smith, velho escocês da clã dos<br />
Macduffs, já todo branco de pêlo e ainda todo rosado de pele, que havia trinta anos o<br />
acompanhava, com severo zelo, através da vida e do mundo.<br />
De manhã, às nove horas, mal se espalhavam no ar os compassos gentis e melancólicos<br />
daquele esquecido minuete de Cimarosa ou de Haydn, Smith rompia pelo quarto de<br />
Fradique, abria todas as janelas à luz, gritava: — Morning, Sir! Imediatamente Fradique,<br />
dando de entre a roupa um salto brusco que considerava «de higiene transcendente»,<br />
corria ao imenso laboratório de mármore, a esponjar a face e a cabeça em água fria, com<br />
um resfolgar de Tritão ditoso. Depois, enfiando uma das cabaias de seda que tanto me<br />
maravilhavam, abandonava-se, estirado numa poltrona, aos cuidados de Smith que, como<br />
barbeiro (afirmava Fradique), reunia a ligeireza macia de Fígaro à sapiência confidencial