A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
o seu tormento; e como se depreende duma carta a Madame de Jouarre (datada de «Maio,<br />
sábado», e começando «Ontem filosofava com um amigo no jardim das Tulherias...»).<br />
Fradique corria nesse fiacre a uma desilusão bem rude e mortificante. Ora nessa tarde, ao<br />
crepúsculo, fui (como combinara) buscar Fradique à Rua de Varennes, ao velho palácio<br />
dos Tredemes, onde ele instalara desde o Natal os seus aposentos, com um luxo tão nobre<br />
e tão sóbrio. Apenas entrei na sala que denominávamos a «Heróica», porque a revestiam<br />
quatro tapeçarias de Luca Cornélio contando os Trabalhos de Hércules, Fradique deixa a<br />
janela donde olhava o jardim já esbatido em sombra, vem para mim serenamente, com<br />
as mãos enterradas nos bolsos duma quinzena de seda. E, como se desde essa manhã<br />
nenhum outro cuidado o absorvesse senão o seu tema do jardim das Tulherias:<br />
— Não lhe acabei de dizer há pouco... A Ciência, meu caro, tem de ser recolhida como<br />
outrora aos Santuários. Não há outro meio de nos salvar da anarquia moral. Tem de ser<br />
recolhida aos Santuários, e entregue a um sacro colégio intelectual que a guarde, que a<br />
defenda contra as curiosidades das plebes... Há a fazer com esta ideia um programa para<br />
as gerações novas!<br />
Talvez na face, se eu tivesse reparado, encontrasse restos de palidez e de emoção;<br />
mas o tom era simples, firme, dum crítico genuinamente ocupado na dedução do seu<br />
conceito. Outro homem que, como aquele, tivesse sofrido horas antes uma desilusão<br />
tão mortificante e rude, murmuraria ao menos, num desafogo genérico e impessoal: —<br />
«Ah, amigo, que estúpida é a vida!» Ele falou da Ciência e das Plebes, — desenrolando<br />
determinadamente diante de mim, ou impondo talvez a si mesmo, os raciocínios do seu<br />
cérebro, para que os meus olhos não penetrassem de leve, ou os seus não se detivessem<br />
de mais, nas amarguras do seu coração.<br />
Numa carta a Oliveira Martins, de 1883, Fradique diz: — «O homem, como os antigos<br />
reis do Oriente, não se deve mostrar aos seus semelhantes senão única e serenamente<br />
ocupado no ofício de reinar — isto é, de pensar». Esta regra, dum orgulho apenas permissível a<br />
um Espinosa ou a um Kant, dirigia severamente a sua conduta. Pelo menos comigo assim<br />
se comportou imutavelmente, através da nossa activa convivência, não se abrindo, não<br />
se oferecendo todo, senão nas funções da Inteligência. Por isso talvez, mais que nenhum<br />
outro homem, ele exerceu sobre mim império e sedução.<br />
V<br />
O que impressionava logo na Inteligência de Fradique, ou antes na sua maneira de se<br />
exercer, era a suprema liberdade junta à suprema audácia. Não conheci jamais espírito<br />
tão impermeável à tirania ou à insinuação das «ideias feitas»: e decerto nunca um<br />
homem traduziu o seu pensar original e próprio com mais calmo e soberbo desassombro.<br />
«Apesar de trinta séculos de geometria me afirmarem (diz ele numa carta a J. Teixeira<br />
de Azevedo) , que a linha recta é a mais curta distância entre dois pontos, se eu achasse que,<br />
para subir da porta do Hotel Universal à porta da Casa Havanesa, me saia mais directo e<br />
breve rodear pelo bairro de S. Martinho e pelos altos da Graça, declararia logo à secular<br />
geometria — que a distância mais curta entre dois pontos é uma curva vadia e delirante!»<br />
Esta independência da Razão, que Fradique assim apregoa com desordenada Fantasia,<br />
constitui uma qualidade rara: — mas o ânimo de a afirmar intemeratamente diante da<br />
majestosa Tradição, da Regra, e das conclusões oraculares dos Mestres, é já uma virtude,<br />
e raríssima, de radiosa excepção!