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A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro

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divina nas cubatas e nas colinas onde tiveram a sua residência carnal; e, comparando<br />

os cerimoniais e os fins destes cultos selvagens da África, com os primitivos cerimoniais<br />

litúrgicos dos Árias em Septa-Sandou, Fradique concluia (como mostra numa carta desse<br />

tempo a Guerra Junqueiro) que na religião o que há de real, essencial, necessário e eterno<br />

é o Cerimonial e a Liturgia — e o que há de artificial, de suplementar, de dispensável, de<br />

transitório, é a Teologia e a Moral.<br />

Todas estas coisas me prendiam irresistivelmente, sobretudo pelos traços de vida e de<br />

natureza africana, com que vinham iluminadas e sorrindo, seduzido:<br />

— Fradique! por que não escreve você toda essa sua viagem à Africa?<br />

Era a vez primeira que eu sugeria ao meu amigo a ideia de compor um livro. Ele<br />

ergueu a face para mim com tanto espanto, como se eu lhe propusesse marchar descalço<br />

através da noite tormentosa, até aos bosques de Marly. Depois, atirando a cigarette para o<br />

lume, murmurou com lentidão e melancolia:<br />

— Para quê?. . . Não vi nada na Africa, que os outros não tivessem já visto.<br />

E como eu lhe observasse que vira talvez dum modo diferente e superior; que nem<br />

todos os dias um homem educado pela filosofia, e saturado de erurdição, faz a travessia<br />

da África; e que em ciência uma só verdade necessita mil experimentadores — Fradique<br />

quase se impacientou:<br />

— Não! Não tenho sobre a Africa, nem sobre coisa alguma neste Mundo, conclusões<br />

que, por alterarem o curso do pensar contemporâneo, valesse a pena registar... Só podia<br />

apresentar uma série de impressões , de pa isagens. E então pior! Porque o verbo humano,<br />

tal como o falamos, é ainda impotente para encarnar a menor impressão intelectual, ou<br />

reproduzir a simples forma dum arbusto... Eu não sei escrever! Ninguém sabe escrever!<br />

Protestei, rindo, contra aquela generalização inteiriça, que tudo varria,<br />

desapiedadamente. E lembrei que a bem curtas jardas da chaminé que nos aquecia,<br />

naquele velho bairro de Paris onde se erguia a Sorbona, o Instituto de França e a Escola<br />

Normal, muitos homens houvera, havia ainda, que possuiam do modo mais perfeito a<br />

«bela arte de dizer».<br />

— Quem? — exclamou Fradique.<br />

Comecei por Bossuet. Fradique encolheu os ombros, com uma irreverência violenta<br />

que me emudeceu. E declarou logo, num resumo cortante, que nos dois melhores séculos<br />

da literatura francesa, desde o meu Bossuet até Beaumarchais, nenhum prosador para ele<br />

tinha relevo, cor, intensidade, vida. E nos modernos nenhum também o contentava. A<br />

distensão retumbante de Hugo era tão intolerável como a flacidez oleosa de Lamartine.<br />

A Michelet faltava gravidade e equilíbrio; a Renan solidez e nervo; a Taine fluidez e<br />

transparência; a Flaubert vibração e calor. O pobre Balzac, esse, era duma exuberância<br />

desordenada e barbárica. E o preciosismo dos Goncourt e do seu mundo, parecia-lhe<br />

perfeitamente indecente...<br />

Aturdido, rindo, perguntei àquele «feroz insatisfeito» que prosa pois concebia ele,<br />

ideal e miraculosa, que merecesse ser escrita. E Fradique, emocionado (porque estas<br />

questões de forma desmanchavam a sua serenidade), balbuciou que queria em prosa<br />

«alguma coisa de cristalino, de aveludado, de ondeante, de marmóreo, que só por si,<br />

plasticamente, realizasse uma absoluta beleza — e que expressionalmente, como verbo,<br />

tudo pudesse traduzir, desde os mais fugidios tons de luz até os mais subtis estados de<br />

alma...»<br />

— Enfim — exclamei — uma prosa como não pode haver!<br />

— Não! — gritou Fradique — uma prosa como ainda não há!<br />

Depois, ajuntou, concluindo

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