A CORRESPONDêNCIA DE FRADIQUE MENDES - Figaro
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de sentir, os gostos, o pensar contemporâneo e ambiente, enriquece sempre o tesouro<br />
da documentacão histórica. Temos depois que as cartas dum homem, sendo o produto<br />
quente e vibrante da sua vida, contém mais ensino que a sua filosofia — que é apenas a<br />
criação impessoal do seu espírito. Uma Filosofia oferece meramente uma conjectura mais,<br />
que se vai juntar ao imenso montão das conjecturas: uma Vida que se confessa constitui<br />
o estudo duma realidade humana, que, posta ao lado de outros estudos, alarga o nosso<br />
conhecimento do Homem, único objectivo acessível ao esforço intelectual. E finalmente,<br />
como cartas são palestras escritas (assim afirma não sei que clássico), elas dispensam o<br />
revestimento sacramental da tal prosa como não há... Mas este ponto precisava ser mais<br />
desembrulhado — e eu sinto parar à porta o cavalo em que vou trepar ao pico de Bigorre».<br />
Foi a lembrança desta opinião de Fradique, tão clara e fundamentada, que me<br />
decidiu, apenas em mim se foi calmando a saudade daquele camarada adorável, a reunir<br />
as suas cartas, para que os homens alguma coisa pudessem aprender e amar, naquela<br />
inteligência que eu tão estreitamente amara e seguira. A essa carinhosa tarefa devotei<br />
um ano — porque a correspondência de Fradique, que, desde os quietos hábitos a que<br />
se acolhera depois de 1880, aquele andador de continentes», era a mais preferida das<br />
suas ocupações, apresenta a vastidão e a copiosidade da correspondência de Cícero, de<br />
Voltaire, de Proudhon, e de outros poderosos remexedores de ideias.<br />
Sente-se logo o prazer com que compunha estas cartas, na forma do papel — esplêndidas<br />
folhas de Whatman, ebúrneas bastante, para que a pena corresse nelas com o desembaraço<br />
com que a voz corta o ar; vastas bastante, para que nelas coubesse o desenrolamento<br />
da mais complexa ideia; fortes bastante, na sua consistência de pergaminho, para que<br />
não prevalecesse contra elas o carcomer do tempo. «Calculei já, ajudado pelo Smith<br />
(afirma ele a Carlos Mayer), que cada uma das minhas cartas, neste papel, com envelope<br />
e estampilha, me custa 250 réis. Ora supondo vaidosamente que, cada quinhentas cartas<br />
minhas, contêm uma ideia — resulta que cada ideia me fica por cento e vinte e cinco milréis.<br />
Este mero cálculo bastará para que o Estado, e a económica Classe Média que o<br />
dirige, impeçam com ardor a educação — provando, como iniludivelmente prova, que<br />
fumar é mais barato que pensar... Contrabalanço pensar e fumar, porque são, ó Carlos,<br />
duas operações idênticas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento».<br />
Estas dispendiosas folhas têm todas a um canto as iniciais de Fradique — F. M. —<br />
minúsculas e simples, em esmalte escarlate. A letra que as enche, singularmente desigual,<br />
oferece a maior similitude com a conversação de Fradique: ora cerrada e fina, parecendo<br />
morder o papel, como um buril, para contornar bem rigorosamente a ideia; ora hesitante<br />
e demorada, com riscos, separações, como naquele esforço tão seu de tentear, espiar,<br />
cercar a real realidade das coisas: ora mais fluida e rápida, lançada com facilidade e<br />
largueza, lembrando esses momentos de abundância e de veia que Fontan de Carmanges<br />
denominava le dégel de Fradique, e em que o gesto estreito e sóbrio se Ihe desmanchava<br />
num esvoaçar de flâmula ao vento.<br />
Fradique nunca datava as suas cartas: e, se elas vinham de moradas familiares aos seus<br />
amigos notava meramente o nome do mês. Existem assim cartas inumeráveis com esta<br />
resumida indicação — Paris, Julho; Lisboa, Fevereiro... Frequentemente, também, restituia<br />
aos meses as alcunhas naturalistas do calendário republicano — Paris, Floreal; Londres,<br />
Nivose. Quando se dirigia a mulheres, substituia ainda o nome do mês pelo da flor que<br />
melhor o simboliza; e possuo ainda cartas com esta bucólica data — Florença primeiras<br />
violetas (o que indica fins de Fevereiro); Londres, chegada dos Crisântemos (o que indica<br />
começos de Setembro). Uma carta de Lisboa oferece mesmo esta data atroz — Lisboa,<br />
primeiros fluxos da verborreia parlamentar! (Isto denuncia um Janeiro triste, com lama,<br />
tipóias no Largo de S. Bento, e bacharéis em cima bolsando, por entre injúrias, fezes de<br />
velhos compêndios) .